Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 8 • Número 384
São Paulo, de 8 a 14 de julho de 2010
R$ 2,80 www.brasildefato.com.br Antônio Cruz/Abr
PNDH: repulsa à audiência pública tem fim ideológico As críticas que foram feitas à recomendação do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) de que, antes das reintegrações de posse, ocorressem audiências coletivas com os envolvidos, escondem um fundo ideológico. A proposta foi retirada após pressão de setores conservadores que confiam no comprometimento incondicional do Poder Judiciário com a defesa da propriedade. Esse é o tema da quarta e última reportagem da série publicada pelo Brasil de Fato sobre recuos do governo federal em pontos chave do PNDH-3. Pág. 7
A disputa pela água no Haiti pós-terremoto Como forma de impedir a privatização da água sugeridas por transnacionais, os camponeses no Haiti têm trocado experiências, sobretudo com movimentos sociais como a Via Campesina, acerca de um modelo solidário de captação de chuva por meio de cisternas especiais que armazenam até 8 mil litros. Pág. 11
No Quirguistão, motivações dos enfrentamentos não são étnicas À medida que o tempo passa e a situação no Quirguistão torna-se mais desesperadora para os refugiados, o mito de que o conflito seja meramente étnico cai por terra, ao menos parcialmente, depois de uma análise sobre suas origens. A jornalista uzbeque Ekaterina Golubina acredita que “ainda que haja, de fato, um embate maior entre membros das etnias uzbeque e quirguiz na região, é provável que o conflito se trate de uma luta por poder entre a elite deposta e a nascente”. Pág. 12
Estragos causados pela enchente do Rio Mundaú no município de Branquinha, em Alagoas
Descaso do poder público agrava situação das vítimas no Nordeste As chuvas que provocaram enchentes em Alagoas e Pernambuco não são uma exclusividade desta temporada. Elas ocorrem todos os anos, ainda que, neste, as consequências tenham sido mais graves. Os desastres são sempre acompanhados de promessas dos governantes de fazer investimentos para que a população não seja mais atingida. Entretanto, os projetos implementados raramente
conformam reformas estruturantes que resolvam o problema dos atingidos. Um exemplo é o projeto dos governos federal e alagoano de construção de moradias na Lagoa Mundaú, em Maceió (AL). A oferta não acompanha o crescimento demográfico da região e habitações que estavam quase prontas, com beneficiários definidos, foram ocupadas por vítimas das enchentes. Págs. 4 e 5
O lado real do trabalhador em serviços de telemarketing A categoria do operador de telemarketing é odiada por boa parte das pessoas. Mas o que poucos sabem é que essa profissão revela indícios diversos de exploração do trabalho. “O trabalho é muito isolado. O tempo para refeição e para ir ao banheiro é muito pequeno. E há a inexistência de tradição sindical”, afirma Ricardo Antunes, um dos organizadores do livro Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual. Pág. 3 ISSN 1978-5134
Na Venezuela, a crise inventada pela imprensa Em artigo, o economista Mark Weisbrot analisa as diferenças entre as situações econômicas de Venezuela e Grécia. Para ele, o país sul-americano não está em crise; apenas sofre as consequências de algumas políticas macroeconômicas equivocadas do governo. Pág. 11
No pós-golpe, economia de Honduras definha Um ano após a deposição de Manuel Zelaya em Honduras, a situação política instável do país reflete negativamente na economia. Mais de 1,2 milhão dos cerca de 8 milhões de hondurenhos não têm emprego e um terço da população vive com menos de um dólar por dia. Pág. 9
Reprodução
Alfonso Ocando/Prensa Miraflores
Cena do filme Bom dia, meu nome é Sheila, que retrata a profissão de operador de telemarketing
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editorial
Copa do Mundo, esquerda dividida e direita sedenta
ANO DE COPA do Mundo é também ano de eleições em nosso país. São disputas que mobilizam o povo, carregam expectativas e sonhos, porque tocam a vida dos milhões de brasileiros. No campeonato de seleções de futebol, os brasileiros fazem verdadeiro mutirão passivo para torcer pelo Brasil. Já as eleições, normalmente ensejam engajamento, mobilização e uma tomada de posição ativa. Enquanto o resultado da primeira pode nos alegrar ou entristecer, as eleições podem mudar a vida da população para melhor ou para pior. Além disso, desde a redemocratização, é a primeira vez que Luiz Inácio Lula da Silva não será candidato. A partir de 1989, a eleição de Lula foi fator de unidade da esquerda, sobretudo antes de 2002.
pelos Estados Unidos, quer voltar ao Planalto. Por isso, vão lutar até o fim e lançarão mão do que existe de pior na política brasileira. O orçamento “oficial” é assustador: R$ 180 milhões.
Fragmentação da esquerda
Embora em um momento delicado – em que os setores populares apresentam diversas candidaturas – não resta dúvidas quanto ao necessário enfrentamento ao que representa a campanha tucana. Por mais que as três candidaturas mais bem posicionadas nas pesquisas, Dilma, Serra e Marina, sejam semelhantes na medida em que não enfrentam os problemas estruturais do país com medidas que coloquem limites ao avanço do grande capital, não há que se duvidar do grau de retrocesso que representa a vitória do PSDB.
Unidade da direta
Boas análises de setores populares sobre as forças da esquerda podem deixar de lado a conjuntura do campo inimigo, das forças anti-populares, do grande capital e do imperialismo. Por exemplo, a direita está unificada na candidatura do tucano José Serra e se prepara para as eleições. A ação de Aécio Neves, que criou uma fissura com Serra, aponta que o mineiro almeja o Planalto para 2014 e constrói a sua caminhada. A candidatura de Serra ruma com passos tortuosos e atrapalhados e, apesar disso, a direita neoliberal, alinhada ao imperialismo capitaneado
debate
Copa do Mundo
A Copa do Mundo 2010 acaba para o Brasil. A seleção brasileira comandada pelo Dunga se despediu da África do Sul ao ser derrotada pela Holanda. É verdade que muitas são as lições a serem tiradas dessa eliminação e de
todo o processo dos que comandam o futebol brasileiro. Na derrota, cabe, inclusive, uma boa análise de todo esse ufanismo da chamada grande mídia e das grandes empresas nacionais e transnacionais que lucram com esse evento, considerado o maior espetáculo mundial do futebol. Assim, durante quase um mês, o Brasil viveu apenas do “planeta bola”. Na derrota brasileira, somada com os fiascos de França, Itália e Inglaterra, seria maravilhoso se a opinião pública mundial atentasse para o poder onipotente das federações nacionais de futebol e da própria Federação Internacional de Futebol (Fifa), uma verdadeira máfia que impõe exigências aos governos nacionais e não se submete a nenhum mecanismo democrático de fiscalização e controle público. Em 2014, o próximo Mundial da Fifa será realizado no Brasil. Essa máfia está preparada, em conluio com a máfia nacional (leia-se CBF), para sugar daqui uma gigantesca soma de riqueza produzida pelo povo brasileiro. Como condição, imporão a necessidade de construir novos estádios e uma infra-
crônica
Antonio Lassance
A velha mídia está derretendo COMO UM iceberg a navegar em águas quentes e turbulentas, a velha mídia está derretendo. O mundo está mudando, o Brasil é outro e os brasileiros desenvolvem, aceleradamente, novos hábitos de informação. Um retrato desse processo pode ser visto na recente pesquisa encomendada pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom-P.R.), destinada a descobrir o que o brasileiro lê, ouve, vê e como analisa os fatos e forma sua opinião. A pesquisa revelou as dimensões que o iceberg ainda preserva. A televisão e o radio permanecem como os meios de comunicação mais comuns aos brasileiros. A TV é assistida por 96,6% da população brasileira, e o rádio, por expressivos 80,3%. Os jornais e revistas ficam bem atrás. Cerca de 46% costumam ler jornais, e menos de 35%, revistas. Perto de apenas 11,5% são leitores diários dos jornais tradicionais. Quanto à internet, os resultados, da forma como estão apresentados, preferiram escolher o lado cheio do copo. Avalia-se que a internet no Brasil segue a tendência de crescimento mundial e já é utilizada por 46,1% da população brasileira. No entanto, é preciso uma avaliação sobre o lado vazio do copo, ou seja, a constatação de que os 53,9% de pessoas que não têm qualquer acesso à internet ainda revelam um quadro de exclusão digital que precisa ser superado. Ponto para o Programa Nacional da Banda Larga, que representa a chance de uma mudança estrutural e definitiva na forma como os brasileiros se informam e comunicam-se. A internet tem devorado a TV e o rádio com grande apetite. Os conectados já gastam, em média, mais tempo navegando do que em frente à TV ou ao rádio. Esse avanço relaciona-se não apenas a um novo hábito, mas ao crescimento da renda nacional e à incorporação de contingentes populacionais pobres à classe média, que passaram a ter condições de adquirir um computador conectado. O processo em curso não levará ao desaparecimento da TV, do rádio e da mídia impressa. O que está havendo é que as velhas mídias estão sendo canibalizadas pela internet, que tornou-se a mídia das mídias, uma plataforma capaz de integrar os mais diversos meios e oferecer ao público alternativas flexíveis e novas opções de entretenimento, comunicação pessoal e “autocomunicação de massa”, como diz o espanhol Manuel Castells. Ainda usando a analogia do iceberg, a internet tem o poder de diluir, para engolir, a velha mídia.
Gama
A pesquisa da Secom-P.R. dá uma boa pista sobre o grande sucesso das plataformas eletrônicas das redes sociais. A formação de opinião entre os brasileiros se dá, em grande medida, na interlocução com amigos (70,9%), família (57,7%), colegas de trabalho (27,3%) e de escola (6,9%), o namorado ou namorada (2,5%), a igreja (1,9%), os movimentos sociais (1,8%) e os sindicatos (0,8%). Alerta para movimentos sociais, sindicatos e igrejas: seu “sex appeal” anda mais baixo que o das (os) namoradas (os). Estes números confirmam estudos de longa data que afirmam que as redes sociais influem mais na formação da opinião do que os meios de comunicação. Por isso, uma informação muitas vezes bombardeada pela mídia demora a cair nas graças ou desgraças da opinião pública: ela depende do filtro exercido pela rede de relações sociais que envolve a vida de qualquer pessoa. Explica também por que algo que a imprensa bombardeia como negativo pode ser visto pela maioria como positivo. A alta popularidade do governo Lula, diante do longo e pesado cerco midiático, talvez seja o exemplo mais retumbante. Em suma, o povo não engole tudo o que se despeja sobre ele: mastiga, deglute, digere e muitas vezes cospe conteúdos que não se encaixam em seus valores, sua percepção da realidade e diante de informações que ele consegue por meios próprios e muito mais confiáveis. É aqui que mora o perigo para a velha mídia. Sua credibilidade está descendo ladeira abaixo. Segundo a citada pesquisa, quase 60% das pessoas acham que as
estrutura de transportes e hospedagens desassociadas das necessidades da população – criando verdadeiros elefantes brancos. Ainda, exigem isenções fiscais paras os patrocinadores, aumentando os lucros das transnacionais, às custas do povo brasileiro. Ambiente propício para proliferar a corrupção. O fato é que, agora, esperamos que o país se volte para sua realidade, que está muito além apenas do futebol e da Copa do Mundo. Ou seja, passada a Copa, é hora do país encarar seus graves problemas. Este ano teremos eleições para cargos importantíssimos em nosso país, como o de presidente da República, o Congresso Nacional, governos estaduais e Assembleias Legislativas. Sinalizamos, com essas eleições, o percurso que queremos percorrer para construir o futuro do nosso país. As eleições são importantes. Mas não são determinantes. Nenhum eleitor estará dando um cheque em branco ao seu candidato. Ao contrário, caberá ao eleitor exigir dos seus representantes eleitos o cumprimento das promessas feitas nos períodos eleitorais. Isso
notícias veiculadas pela imprensa são tendenciosas. Um dado ainda mais grave: 8 em cada 10 brasileiros acreditam muito pouco ou não acreditam no que a imprensa veicula. Quanto maior o nível de renda e de escolaridade do brasileiro (que é o rumo da atual trajetória do país), maior o senso crítico em relação ao que a mídia veicula - ou “inocula”. A velha mídia está se tornando cada vez mais salgada para o povo. Em dois sentidos: ela pode estar exagerando em conteúdos cada vez mais difíceis de engolir, e as pessoas estão cada vez menos dispostas a comprar conteúdos que podem conseguir de graça, de forma mais simples, e por canais diretos, mais interativos, confiáveis, simpáticos e prazerosos. Num momento em que tudo o que parece sólido se desmancha... na água, quem quiser sobreviver vai ter que trocar as lições de moral pelas explicações didáticas; vai ter que demitir os pit bulls e contratar mais explicadores, humoristas e chargistas. Terá que abandonar o cargo, em que se autoempossou, de superego da República. Do contrário, obstinados na defesa de seus próprios interesses e na descarga ideológica coletiva de suas raivas particulares, alguns dos mais tradicionais veículos de comunicação serão vítimas de seu próprio veneno. Ao exagerarem no sal, apenas contribuirão para acelerar o processo de derretimento do impávido colosso iceberg que já não está em terra firme. (Carta Maior: www.cartamaior.com.br) Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política.
somente será possível com um maior nível de conscientização política, organização e lutas populares. Caso contrário, prevalecerá, sempre, o poder do capital.
Desafios
Precisamos estar atentos à este processo eleitoral. Mesmo que no atual processo eleitoral não exista realmente disputa de projetos e que os verdadeiros problemas do povo não entrem na pauta dos principais candidatos. A ausência desses debates se deve, em grande parte, à mídia burguesa que é partidária e esforça-se para escamotear as causas dos problemas que afetam o povo brasileiro. Mais do que isso, buscam criminalizar as organizações populares, os movimentos sociais e todos os que se contrapõem aos seus interesses e objetivos. Há, nesse país, desde a eleição de Lula, em 2002, uma complexidade política ainda indecifrável para as forças de esquerda e progressistas. A evidência maior dessa realidade é exatamente a fragmentação com que a esquerda enfrentará a próxima eleição. Isso, somente será superado num próximo ascenso das lutas sociais. Portanto, caberá aos movimentos sociais continuar trabalhando na formação política, na organização de base e na mobilização popular. Somente assim, asseguraremos conquistas significativas e duradouras ao povo brasileiro.
Luiz Ricardo Leitão
Lições (quase) definitivas da África EMBORA A COPA 2010 ainda esteja às vésperas da sua final, o badalado torneio terá sido, sem dúvida, tão ou mais interessante fora das quatro linhas do que lá dentro do gramado, onde raros craques e seleções lograram comover os amantes da pelota. Afinal de contas, enquanto o famigerado padrão toyotista do “futebol de resultados” parece ser a tônica da maioria absoluta das partidas (à exceção, claro, dos jogos de Alemanha e Espanha), o debate acerca das relações sociais e mercantis que gravitam ao redor do bilionário espetáculo tem obtido uma enorme repercussão na mídia e na opinião pública. No Brasil e no exterior, quase tudo foi objeto de oportunas matérias de revistas como Le Monde Diplomatique e Carta Capital, em especial as negociatas da Fifa, dirigida desde 1976 por dois renomados mafiosos da bola, e a crescente crise financeira das grandes equipes europeias e brasileiras. Graças à Copa, pisou-se na lama de Havelange, Blatter, Teixeira & Cia, cujos escândalos de corrupção e lavagem de dinheiro atingem um patamar só comparável à dívida dos clubes – que, lá como cá, vivem todos eles à beira da falência, ao passo que seus dirigentes desfilam garbosos pelos estádios com ares de estrelas midiáticas. A própria eliminação da equipe de Dunga & Cia. deveria servir de lição a todos nós, que amamos o esporte, mas não ignoramos a sua singular dimensão simbólica e cultural. A derrota, apesar de dolorida, tem lá suas compensações. De imediato, ela estanca por completo o pernicioso chauvinismo cultivado pelos canalhas de plantão (não apenas os grotescos Galvões Buenos da mídia, mas também as grandes corporações envolvidas no negócio), que se travestiu nesta Copa no “espírito guerreiro” apregoado por uma cervejaria de Bruzundanga. A expulsão de Felipe Melo após a estúpida agressão ao ‘rival’ holandês talvez ajude a sepultar, se possível antes de 2014, aquela triste e belicosa concepção de jogo defendida por Dunga, cedendo espaço, quem sabe, ao alegre futebol-arte graças ao qual Garrincha, Pelé, Tostão, Gérson, Rivelino, Zico, Sócrates, Romário, Ronaldo e tantos outros craques encantaram o planeta-bola. Abra-se aqui um parêntese imprescindível, que a vitória alemã sobre a Argentina nos impõe: se a virtude está sempre em um ponto médio (“in media res”, diziam os latinos), não basta apenas o talento individual de Kakás, Messis ou Cristianos Ronaldos para triunfar em um jogo coletivo como é o futebol. A inteligência tática dos alemães, sob o comando do competente técnico Joachim Löw, demonstrou-nos que é preciso contar com um bom elenco, em que se conjugue a experiência dos veteranos à nova safra de craques, e, sobretudo, explorar muito bem os pontos vulneráveis do adversário – itens subestimados tanto pelo carismático, porém neófito treinador Maradona, quanto pelo tosco e obstinado Dunga. Com uma dose cruel de ironia, o fiasco na África ensina ainda que, no teatro da vida, a busca do equilíbrio é a única forma de redenção. Quem alegava que o fracasso de 2006 se deveu ao suposto clima de ‘libertinagem’ desfrutado pela tchurma de Ronaldinho & Adriano, sob os olhares cúmplices de Parreira, justificando assim o regime de caserna adotado para os ‘guerreiros’ de Dunga, deverá agora rever seus conceitos, ciente de que não será jamais um quartel, nem tampouco um bordel, a justa medida para um saudável convívio social. Reação doentia a 2006, o neodunguismo não deixa de ser um índice eloquente do estágio em que se encontra a civilização de Bruzundanga. As declarações absurdas de Felipe Melo, incapaz de admitir a própria truculência e destempero, são uma súmula irretocável do comportamento que as elites da colônia cultivam há séculos, hoje disseminado pelo conjunto da classe média e já visível em vários estratos populares. O motorista de trânsito que avança sobre o pedestre, o playboy que agride mendigos e prostitutas, ou o deputado que ignora a Lei da Ficha Limpa e, sob as bênçãos do Supremo, sonha eleger-se para mais um mandato de maracutaias – todos eles são netos e bisnetos de Brás Cubas e Macunaíma, com um discurso liberal de exportação e uma práxis cotidiana de exclusão. As mazelas desta era pós-moderna e biocibernética do capital, porém, não são exclusivas das nações periféricas. Que o diga o completo desequilíbrio da França de Raymond Domenech, retrato da fratura étnica e social do país, onde a imigração pós-colonial africana assusta a ‘elegante’ burguesia e acirra as reações racistas dos torcedores, que, após o vexame na África, invadiram a sede da Federação para exigir “uma seleção branca e cristã”, sem nenhum atleta negro ou muçulmano. Felizmente, apesar da Jabulani e das falhas de arbitragem, nem tudo é motivo para pessimismo no planeta-bola: além de belos gestos de fair-play dos atletas, atos como o apoio dos argentinos à indicação das Avós da Plaza de Mayo para o Nobel da Paz, ou a singela iniciativa dos uruguaios de firmar um acordo de intercâmbio técnico com a província que os recebeu na África, indicam-nos que ainda há sinais de vida inteligente entre nós. Oxalá sejam eles o prenúncio de tempos menos belicosos e mais solidários de hoje até 2014! Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil (lançado em 2009 pela Expressão Popular).
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Nina Fideles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
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brasil Reprodução
Do outro lado da linha, o proletário TRABALHO Em ampla expansão, a categoria dos operadores de telemarketing reproduz, em novos moldes, as relações de trabalho precarizadas do passado Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) NOS ESTADOS Unidos, o 4 de julho é uma data amplamente comemorada. O Dia da Independência do país é marcado por potentes marchas militares e outras celebrações. No Brasil, a data está destinada a ter pouca visibilidade e até gerar certa repulsa. É que o 4 de julho marca, no país, o Dia do Operador de Telemarketing. Em ampla expansão – cresce de 14% a 17% ao ano – a categoria é odiada por boa parte das pessoas em todo o mundo. Tomado por chato, o operador é frequentemente maltratado pelas pessoas. O que poucos conseguem perceber é que, muitas vezes, essa é a alternativa de emprego que têm. Surgida na carona dos avanços tecnológicos – que supostamente serviriam para melhorar a vida das pessoas –, a profissão revela indícios diversos de exploração do trabalho. Há alguns meses, foi lançado o livro Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual. A obra foi organizada pelos sociólogos Ricardo Antunes, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Ruy Braga, da Universidade de São Paulo (USP), e aborda o surgimento da profissão no contexto da reconfiguração do mundo do trabalho e das analogias entre a precarização do setor e a do universo industrial dos séculos XIX e XX. A principal constatação dos estudos é a de que o operador de telemarketing, mesmo atuando no setor de serviços, é uma espécie de novo proletário. A partir do aumento do uso da tecnologia de informação, e da permanência de relações de exploração do trabalho, surge um trabalhador contraditório. É moderno, mas convive com as condições de trabalho precárias do passado. “O trabalho é muito isolado – as pessoas trabalham em baias. O tempo para refeição e para ir ao banheiro é muito pequeno. E há a inexistência de tradição sindical”, afirma Ricardo. A profissão surgiu nos anos de 1990. A partir da privatização das telecomunicações, empresas passaram a oferecer serviços por telefone. Com o tempo, as centrais de atendimento tornaram-se verdadeiros núcleos de comunicação e de verificação de satisfação de clientes. O fenômeno ocorre no mundo todo. Embora o Brasil tenha um número menor de centrais em relação a outros países – 4% do que têm os Estados Unidos –, apresenta maior índice de trabalhadores por local de trabalho – média de 1.103 por corporação, contra 172 na Alemanha. O crescimento do setor é significativo, também, em todo o mundo – no Reino Unido, avançou 250% em dez anos; na Alemanha, 100% em sete. Enquanto nos Estados Unidos 3% da população já trabalham no setor, no Brasil o índice é de 2% da população economicamente ativa com ensino superior incompleto.
máquina e o chefe”, diz. Escudado pela distância promovida pelo telefone, e com o poder de desejar e reclamar, o cliente seria elevado a uma “condição de rei”. Alguns estudiosos criaram o conceito de hipertaylorismo, a medida que as novas tecnologias permitem controle da produtividade dos operadores em tempo real.
Em média, nos primeiros quatro meses, há um enorme desgaste do trabalhador, pela cobrança excessiva, pela ausência de resultados e pela individualização do fracasso Segundo os dados, os trabalhadores do telemarketing não têm o tempo de preparação adequado. O treinamento, que deveria durar cerca de quatro meses, costuma ser oferecido por um período que varia de uma semana a um mês. O resultado é a incapacidade de cumprir as rigorosas metas que são estabelecidas. Em média, nos primeiros quatro meses, há um enorme desgaste do trabalhador, pela cobrança excessiva, pela ausência de resultados e pela individualização do fracasso. Depois, por aproximadamente dez meses, ocorre uma relativa satisfação do trabalhador, porque ele passa a conseguir desempenhar o seu papel. Após esse tempo, vem o período chamado de “rotinização”. O trabalhador passa a sofrer com o monitoramento constante, a incapacidade de progredir e as doenças que invariavelmente aparecem (LER, tendinite, surdez precoce, afetação nas cordas vocais, entre outras).
Mas o operador fica, de certa forma, preso ao emprego. “Num mercado como o brasileiro, em que dois em cada três postos pagam menos de dois salários mínimos, ele não tem para onde ir. Torna-se um operador ‘lateralizado’. Muda de emprego sem mudar sua forma de atuação”, diz Ruy Braga, que na última década se especializa no estudo do setor. Em poucos meses, o trabalhador considera sua atividade insuportável – e por vezes antiética –, mas não tem como sair. “O telemarketing resume as relações de trabalho nos anos 2000. Exemplos disso são o fechamento de postos, o aumento do setor de serviços e a precarização”, completa Ruy. Home office
Outro questionamento trazido pelos pesquisadores diz respeito à suposta vantagem do “home office”. A capacidade que as novas tecnologias têm de permitir que se trabalhe em casa é, em geral, considerada positiva. As pessoas tendem a louvar a possibilidade de planejar seu horário e trabalhar perto da família. Entretanto, Ricardo Antunes denuncia a precarização embutida nesse processo. “Esse é o melhor dos mundos para o capital. Ele se desobriga de fornecer espaço ao trabalhador, de pagar custos, de arcar com as demandas de saúde. E, ao trabalhar em casa, a pessoa perde o controle da carga horária: o público e o privado se misturam. A jornada termina por se estender”, avalia. Os dados do livro são peremptórios. O aclamado avanço tecnológico não tem gerado benefícios sociais e a exploração do trabalho segue, revestida por novos formatos. “O avanço tecnológico está a serviço das relações de exploração e da busca por lucro”, avalia Ruy. Ricardo concorda. “A tecnologia tal como conhecemos é plasmada por relações sociais de produção capitalista. Tem a cara, a forma e o conteúdo do capital. É moldada para a valorização do lucro.” Segundo ele, uma sociedade que não se deixe escravizar pelo produtivismo poderia usar a tecnologia para trabalhar apenas três horas por dia, quatro dias por semana.
Profissão das minorias Entre os operadores de telemarketing, predominam jovens, mulheres, negros e homossexuais do Rio de Janeiro (RJ) As pesquisas relacionadas ao setor de telemarketing revelam dados inquietantes. Entre os operadores, há uma predominância massiva de jovens e de mulheres. Além disso, o índice de negros, obesos, homossexuais, transexuais e deficientes físicos é acima da média de outras categorias. Enquanto empresários do setor louvam tal perfil, afirmando que o setor seria mais “democrático”, os estudiosos não são tão otimistas. As causas da constatação revelariam distúrbios sociais, além de novos indícios de precarização do trabalho. O motivo principal do predomínio de setores sociais marginalizados seria a invisibilidade permitida aos operadores.
Do outro lado da linha, os potenciais clientes não percebem se o trabalhador é negro, homossexual ou obeso. E, por não encontrarem oportunidade em carreiras mais valorizadas, esses setores terminam por se contentar com o telemarketing. Como não existe uma perspectiva de carreira, eles estão condenados a permanecer na função. Transexuais afirmaram, em entrevistas para pesquisas, que se não puderem trabalhar nos setores que tradicionalmente os emprega – moda, por exemplo – eles não têm tantas opções. O predomínio de jovens entre os operadores é fácil de se explicar – a profissão não exige grandes qualificações. Porém, o dado que mais impressiona é a presença de mulheres. Segundo estudos, de 76% a 85% dos trabalhadores são do gênero feminino. Segundo a socióloga Selma Venco, isso se dá por conta “de uma construção social histórica sobre a presença da mulher no trabalho”. Consideradas mais dóceis e delicadas, seriam mais capazes de dar tratamento adequado aos clientes. Os homens ficariam com o cargo de chefia (os dados revelam, inclusi-
ve, que homens abandonam com maior frequência a função de operador).
Segundo a socióloga Selma Venco, isso se dá por conta “de uma construção social histórica sobre a presença da mulher no trabalho Para Claudia Mazzei Nogueira, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), não há uma predominância das mulheres apenas nesse setor. Todas as profissões com jornada parcial demandariam trabalho feminino. Por permitir maior tempo às tarefas domésticas, as carreiras seriam ideais às mulheres. “E a própria mulher legitima essa situação. Ela acha satisfatório, porque pode cuidar dos filhos”, lamenta. A predominância de homossexuais também teria relação com o jeito dócil de tratar o cliente. (LU)
Divulgação
Infoproletário nas telas Divulgação
Filme premiado no Festival do Rio já tratava da precarização na função do Rio de Janeiro (RJ)
Hipertaylorismo
A socióloga Selma Venco, da Unicamp e autora de um dos capítulos de Infoproletários, encontra na precarização da profissão elementos do chamado taylorismo. “São diversas características próprias do mundo industrial. Há a separação entre quem trabalha e quem planeja, a obediência a um tempo médio, o controle massivo da produtividade através da própria tecnologia. Mas há elementos novos, como a capacidade de pressão do cliente. Já não é mais só a
Mesmo atuando no setor de serviços, o operador é uma espécie de novo proletariado
Serviço Infoproletários Subtítulo: Degradação real do trabalho virtual Organizadores: Ruy Braga e Ricardo Antunes Páginas: 256 Ano de publicação: 2009 Preço: R$ 44,00
Em 2009, um curta-metragem do diretor Ângelo Defanti, um dos principais da nova geração carioca de cineastas, fez sucesso no Festival do Rio. “Bom dia, meu nome é Sheila – ou como trabalhar em telemarketing e ganhar um vale-coxinha” retrata, com humor, as condições precárias do trabalhador do setor. Inspirado em reportagem homônima da revista Piauí, ganhou o prêmio Porta Curtas do Festival. Desde então, o trabalho já foi exibido em diversos festivais do interior, acumulando o Prêmio Luis Espinal na 5ª Mostra CineTrabalho. O vale-coxinha faz referência ao tíquete alimentação recebido pelos operadores, em seu pequeno ho-
O “vale-coxinha” que alimenta a “senzala eletrônica”
rário destinado à refeição. O curta faz constante alusão ao linguajar dos operadores, repleto de gerundismos e ao treinamento antiético que receberiam. “Em parte, escolhi tratar esse tema porque queria algo que me permitisse experimentar novas linguagens. Mas eu também queria denunciar a degradação da profissão. Mostrar o lado do operador aos que se irritam com ele”, diz Ângelo, que no filme chama o ambiente de trabalho de “senzala eletrônica”. Segundo a reportagem que inspirou o filme, existiriam organizações, nos
Estados Unidos e na Europa, para repelir as ligações de telemarketing. A estratégia seria responder ao operador com outras perguntas ou respostas estranhas. Ativistas holandeses criaram o site www.egbg.nl, com tradução em português, para orientar as pessoas a lidar com as ligações. A organização de defesa do consumidor estadunidense, Federal Trade Commission, criou um cadastro de pessoas que não desejam ser incomodadas por telefonemas – o Do Not Call Registry. A empresa que ligar para os números cadastrados é multada. (LU)
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brasil Fotos: Denilson Vasconcelos
As velhas e conhecidas enchentes no Nordeste CHUVAS NO NORDESTE Pobreza, ocupação irregular, desmatamento e letargia das oligarquias políticas nordestinas fazem as chuvas matar gente, praticamente, todos os anos Jônatas Campos do Recife (PE) PASSARAM-SE mais de 20 dias das fortes chuvas e inundações que destruíram dezenas de cidades em Pernambuco e Alagoas, principalmente na Zona da Mata. Desde o dia 18 de junho, início das enchentes, levantamentos preliminares asseguram que já existem 57 mortos, 69 desaparecidos e 300 mil desabrigados nos dois estados. Foram destruídas mais de 30 mil casas, além de pontes, hospitais e milhares de quilômetros de estradas e linhas férreas. Palmares, Mata Sul de Pernambuco, é uma das cidades mais atingidas. A ponte que faz parte das obras de duplicação da BR-101 e que sequer tinha sido inaugurada, foi destruída pela força das águas do rio Una, junto com outra ponte antiga. Desde que elas ruíram, carros e caminhões têm que fazer desvios para seguir do Nordeste ao Sul por uma das principais rodovias do país.
A destruída Braquinha é a base da política dos coronéis “Renans”,“Collors” e outros. O cenário de miséria que agora é visto pelo mundo midiatizado O município de Barreiros, litoral sul de Pernambuco e desembocadura do rio Una, foi devastado. A cidade de Correntes, no agreste pernambucano, também te-
ve pontes arrastadas e bairros inteiros levados pelo rio Mundaú, o mesmo que arrasou Branquinha, Rio Largo, Murici e União dos Palmares, em Alagoas. O fenômeno climático chamado “Onda de Leste”, que foi intensificado pelo aquecimento acima do normal do Oceano Atlântico com a intensificação dos ventos tropicais, provocou, em curto espaço de tempo, uma grande quantidade de chuva concentrada nas proximidades das cabeceiras dos vários rios. Caiu mais água em três dias na região do que, em média, em um mês inteiro. Mas, apesar da força desproporcional ocorrida neste último desastre, as enchentes são velhas conhecidas do litoral e zonas da mata nordestinos. Não há nada de extraordinário na elevação das águas dos rios. São ciclos naturais em épocas de intensidade de chuvas. O drama humano que estão vivendo as pessoas daquela região tem a ver com uma série de fatores que vão muito além dos climáticos. A monocultura da cana-deaçúcar devastou as matas ciliares que protegiam as margens dos rios e asseguravam a retenção de sedimentos, evitando o assoreamento nos cursos das águas. A ocupação irregular das margens pelas populações mais pobres é um problema cultural e secular. O uso político da pobreza pelas elites políticas mais conservadoras e atrasadas que estão exatamente nesta região e a falta de infraestrutura de barragens são ingredientes da tragédia. Dezenas de enchentes no século passado deixaram suas marcas em Pernambuco e Alagoas, destacando-se as de 1966, 1970, 1974 e 1975. Nenhuma dessas com a intensidade da enchente de agosto de 2000 e da atual. Além disso, pequenas inundações e deslizamentos ceifam vidas todos os anos na região. Nes-
sas épocas, ocorrem os sobrevoos de autoridades em helicópteros, edição de medidas provisórias, visitas às áreas atingidas e muita, muita promessa. A principal delas é a retirada das famílias das áreas ribeirinhas. “As prefeituras não podem permitir novas ocupações nesses locais de modo algum, serão escolhidos terrenos em regiões seguras”, assegurou o secretário nacional de Defesa Civil, Pedro Sanguinetti, em agosto de 2000. “Será muita irresponsabilidade reconstruir na beira do rio. Precisamos arrumar terrenos longe do rio”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 24 de junho, visitando Palmares.
O drama humano que estão vivendo as pessoas daquela região tem a ver com uma série de fatores que vão muito além dos climáticos O bairro das Pedreiras, em Palmares, fica à beira do rio, em uma área de curva das águas. Em 2000, foi inundado. Agora, além da destruição das casas, nem os postes de iluminação pública restaram. Assim como a praça Ismael Gouveia, também em Palmares, que tornou-se uma cratera com cerca de cinco metros de profundidade, para onde foram arrastados uma carreta e alguns carros de passeio. Nos municípios alagoanos, o drama humano é maior e anterior às enchentes. Estas, só terminaram por destruir a parca atividade produtiva da região e os casebres construídos sem nenhuma estrutura. A destruída Braquinha é a base da política dos coronéis “Renans”, “Collors” e outros. O cenário de miséria que agora é visto pelo mundo midiatizado. A Constituição Federal de 1988 já determinava a elaboração dos Planos Diretores de Desenvolvimento para as ci-
dades acima de 20 mil habitantes. Nesses planos, deveriam constar as normas para ocupação de terras para moradia, preservação das margens dos rios e ocupação do solo. Em 2001, a Lei Federal 10.257, o Estatuto das Cidades, apontou novas diretrizes para a gestão urbana e, inclusive, a participação popular nas decisões dos poderes executivos. Caso a lei seja, de fato, cumprida, dezenas de bairros nesses municípios terão, simplesmente, que desaparecer. Sem uma política afirmativa para realocar centenas de famílias dos locais onde outrora construíram suas vidas e sua identidade, estas voltarão novamente às margens, como fizeram em tragédias anteriores. Quem vive da pesca e de plantar pequenos roçados às margens dos rios da região, sabe que, apesar de poluídos por usinas, lavanderias industriais, hospitais e esgotos, os rios têm vida. E que uma hora ele acaba devolvendo o que teimam em jogar dentro do seu leito. Nas enchentes, o rio retoma o espaço que era seu, suas margens e antigos alagadiços aterrados para construção das cidades. Em enchentes, o rio não obedece a suas curvas, “vai reto”, como diz a sabedoria popular.
Como ajudar Para dirigir doações ao Comitê Ecumênico, o telefone é (81) 3226.0063 Donativos preferenciais:
mineral • Água de higiene • Material pessoal de limpeza • Material Alimentos • consumo para pronto agasalhos e • Roupas, cobertores e colchões Doações em dinheiro Banco do Brasil Agência: 3234-4 Conta Corrente: 5633-2 Obs.: Em nome do Comitê da Ação da Cidadania Pernambuco Solidário. Acompanhe as ações do Comitê no Blog http:// soschuvaspe.blogspot.com.
Destruição em Palmares, Mata Sul de Pernambuco
Governo anuncia R$ 55 milhões para aposentados
Entidades se mobilizam para atender as vítimas do Recife (PE) Enquanto a imprensa local e nacional se convencia da destruição nas áreas atingidas, um comitê formado por entidades da sociedade civil e igrejas já se mobilizava, prevendo o pior. No dia 19 de junho, com algumas cidades ainda debaixo d’água, o Comitê Ecumênico de Apoio às Vítimas das Enchentes já se articulava para colher donativos, carros para transporte e dinheiro. Essas mesmas pessoas vivenciaram a enchente de 2000 na região e já tinham relatos da gravidade das ocorridas deste ano. O Comitê da Ação da Cidadania é uma das entidades que fazem parte do Comitê Ecumênico. Seu coordenador, Anselmo Monteiro, considera que a sociedade amadureceu, pois compreendeu a tragédia, mas tam-
bém está interessada em soluções para além das emergenciais. “A emergência continua, mas são necessárias ações estruturadoras para que sofrimentos idênticos não se repitam”, diz. O Comitê Ecumênico já discute a criação de espaços de convivência e outras ações lúdicas para as crianças, “o elo mais fraco desta corrente”, segundo Anselmo. Mas, se por um lado a sociedade civil se mobiliza, por outro, a desorganização dos municípios fica evidente quando os donativos começam a chegar. As pessoas e entidades não sabiam a quem se reportar. Em Palmares (PE), a prefeitura parecia inexistente. Foi preciso que a Defesa Civil e o Exército, praticamente, assumissem o comando da cidade. Na corrente de solidariedade, cada um ajuda como pode. O sargento do Exér-
Mobilização da sociedade teve de enfrentar despreparo das administrações municipais
Em Palmares (PE), a prefeitura parecia inexistente. Foi preciso que a Defesa Civil e o Exército, praticamente, assumissem o comando da cidade cito, Silvio Severino Carvalho, que compôs as tropas do Brasil no terremoto ocorrido no Haiti, disponibilizou a água de seu poço artesiano para toda a população. Água
é item básico e escasso nos municípios atingidos. O pico d’água fica até 24 horas funcionando. O Movimento dos Trabalhadores Rurais SemTerra (MST) organizou du-
as brigadas de solidariedade que trabalham no apoio à população e na reorganização do município. O Governo de Pernambuco recruta voluntários para trabalhar na reconstrução das cidades. As pessoas cadastradas exercem funções de apoio administrativo como digitadores, merendeiros, cuidadores de idosos e crianças, recreadores, auxiliares de cozinha e serviços gerais, entre outras. (JC)
Na dia 05, os ministros Carlos Eduardo Gabas (Previdência Social) e Rômulo Paes (Desenvolvimento Social e Combate à Fome) anunciaram a liberação de R$ 55 milhões para 110 mil aposentados e pensionistas de Pernambuco e Alagoas. O dinheiro será liberado através de empréstimos que aposentados poderão fazer no valor de seu benefício e pagar em 24 vezes sem juros. O 13º salário dos aposentados também será liberado a partir de agosto. Os ministros sobrevoaram as áreas atingidas na Zona da Mata de Pernambuco e tiveram uma reunião com o governador Eduardo Campos (PSB) no Palácio do Governo pernambucano. Campos anunciou o mapeamento de 600 hectares para reconstrução de casas longe dos locais de risco. (JC)
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Desabrigados e favelados disputam moradia em área violenta de Maceió CHUVAS NO NORDESTE Negligência do governo alagoano acirra disputa entre afetados por enchentes Paulo Rios/Agência Alagoas
Clarice Maia de Maceió (AL) “A PESSOA TEM que passar por toda essa humilhação para ter onde morar?”, se pergunta, sozinha, a desconhecida que observa atônita a confusão formada em frente à Federação dos Pescadores de Alagoas (Fepeal), na orla da Lagoa Mundaú, em Maceió (AL). O bate-boca entre lideranças comunitárias era apenas o início de uma discussão que, no decorrer do dia 1º de julho, ainda envolveria representantes do governo estadual e dos moradores das favelas, desabrigados após as fortes chuvas que caíram no estado. Na área, estão em plena construção blocos de apartamentos para abrigar pescadores. Em frente, nas margens da Lagoa, há centenas de barracos tomados pela cheia e por dejetos de toda espécie. Quando a água baixou, restaram lama, lixo, baratas e ratos por toda a parte. Desesperadas com a situação, cerca de 100 famílias ocuparam 72 das habitações parcialmente prontas. Segundo informações dos moradores locais, outras 50 famílias chegaram a ocupar uma escola da rede pública de ensino e outras foram removidas para abrigos. Outros moradores da comunidade resolveram procurar a Secretaria de Infra-Estrutura (Seinfra) para saber quais famílias seriam contempladas para morar nos apartamentos ocupados e como ficaria a situação dessas. Receberam um pedaço de papel. Nele constava o nome do “contemplado” e o número do apartamento, carimbado e assinado por uma assistente social do órgão, chamada Fátima Vieira, para que eles pudessem “negociar” a saída dos ocupantes. A partir daí estava ampliada a crise e a situação de violência entre os moradores. Alguns que receberam o papel resolveram esperar, atenderam aos pedidos dos ocupantes. “A gente não quer tomar nada de ninguém, só quer ter onde morar. Só queremos que digam para onde a gente vai”, disse Adriana Torre de Jesus. Outros resolveram enfrentar a situação com a força. Segundo os relatos, apareceu até policial militar armado. “Tem gente que chega até com pedaço de papel de caderno, outros escritos a lápis, sem assinatu-
Casas do conjunto residencial às margens da Lagoa Mundaú, no bairro do Vergel do Lago, que foram ocupadas
ra, dizendo que é dono e que a gente tem que sair”, conta Flávia Queiroz. “Eles agiram muito errado [os funcionários do governo]. Como é que eles dizem para as pessoas que elas são as donas dos apartamentos e mandam elas irem lá nos tirar? Eles deviam ter esperado”, argumenta Rita de Cássia dos Santos.
“Nós queremos resolver nosso problema porque não temos para onde ir, não temos onde morar” Mobilização Apavorados com a situação instável instalada, um grupo, liderado principalmente por mulheres, organizou uma manifestação no dia 29 de junho. Enquanto o então secretário de infra-estrutura, Marco Fireman, e outras autoridades locais, inauguravam um conjunto habitacional, as mulheres interditaram uma avenida. Durante a manifestação, as lideranças denunciaram di-
versas irregularidades e esquemas de negociação, troca e venda das moradias. No dia 1º, sete representantes das famílias – cinco mulheres e dois homens – se reuniram com a líder comunitária responsável pelo cadastro da área, conhecida como Vânia, a presidente da Fepeal, Maria Eliane, e os representantes do governo: o secretário adjunto Leonardo Bitencourt, a responsável pelo projeto de desenvolvimento urbano da Seinfra, Ângela Paim, e a assistente social Fátima Vieira. Os pontos de pauta eram a situação das pessoas que ocuparam, sem ter para onde ir, e que são ameaçadas pelos “contemplados”; segurança para quem ocupou; pescadores que não receberam casas e outros que possuem imóveis e ganharam novas moradias; pescadores que vivem nas favelas há mais de 15 anos e novos “moradores” que rapidamente ganham moradias; postura da secretaria de habitação; e quantidade de apartamentos a serem construídos. “Nós queremos resolver nosso problema porque não temos para onde ir, não temos onde morar”, disse Maria Mercedes dos Santos. Alternativa forçada Com uma postura fechada para negociação, o secretário
adjunto parecia armado com o argumento de que, em caso de resistência, a população seria retirada a partir da ação judicial. Essa seria a “alternativa buscada pelo governo”. “O senhor fala assim porque tem casa. Aqui ninguém quer nada de ninguém, a gente só quer ficar lá até ter para onde ir. Eu cheguei lá eu tinha 16 anos e agora tenho 30”, tentou argumentar Joseilda dos Santos Zacarias. As falas mais fortes foram das mulheres que acusaram as duas representantes do governo de ir pessoalmente mandar os “contemplados” negociar, com elas, uma troca: os apartamentos ocupados pelos barracos deles. “Não foi ninguém que me disse, eu estava lá e vi, isso foi falado na minha frente”, argumenta Adriana. As funcionárias da Seinfra e o secretário não viram problema algum na proposta e a reafirmaram como solução. Desespero final Ao final da reunião, na frente da sede da Secretaria, a situação era de desespero. As mulheres choravam sem saber o que diriam ao grupo que aguardava o resultado na sede da Fepeal. “Eles querem que a gente saia de lá que nem cachorro. Se eu tivesse dinheiro alugava um apartamento ou uma casa, mas eu não te-
Projeto do governo é insuficiente Programa de construção de casas promete, mas não deve atender pescadores de Maceió (AL) A obra de urbanização da orla da Lagoa Mundaú é um dos carros chefes do governo de Alagoas e poderá ser usada como um dos palanques eleitorais de Teotônio Vilela Filho (PSDB), que pretende concorrer à reeleição com o ex-presidente Fernando Collor de Mello (PTB). Segundo informações da Secretaria de Infra-Estrutura (Seinfra), o projeto está orçado em R$ 35 milhões, sendo R$ 29,7 milhões cedidos pelo governo federal, recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e R$ 5,2 milhões de contrapartida estadual. Prevê a construção de 1.181 habitações para famílias que vivem no entorno da Lagoa Mundaú, sendo 360 para as que dependem da pesca e ou-
tras 821 para os que desempenham outras atividades. “Nós temos muito mais de trezentos pescadores, não sei dizer quantas famílias, mas todos que passam necessidade recorrem à pesca do peixe ou do sururu”, diz Maria Eliane, a presidente da Federação dos Pescadores de Alagoas (Fepeal). Os contemplados seriam moradores das comunidades Sururu de Capote, Muvuca, Torre e Mundaú. “Eles não podem misturar todo mundo nos apartamentos, as pessoas que são de uma favela querem ficar junto com as outras que são do mesmo lugar. Tem lugar que é mais perigoso que outro e as pessoas às vezes não se dão”, explica a moradora Adriana Torre. As habitações destinadas aos pescadores são blocos de apartamentos de 42 m², com dois quartos, cozinha, ba-
nheiro, sala e área de serviço. Os 36 primeiros a ficarem prontos foram entregues em 2009, não a pescadores, mas às pessoas que foram removidas de casas situadas na área onde seriam feitas as construções. Segundo Ângela Paim, responsável pelo projeto de desenvolvimento urbano da Seinfra, durante a reunião com o governo, essas pessoas receberam apartamentos para que não fosse preciso pagar indenização. Ainda segundo as informações oficiais, mais 132 apartamentos foram entregues este ano. A escolha dos contemplados é feita pela Seinfra, junto com as lideranças comunitárias a partir de cadastros feitos entre os anos de 2005 e 2008. “Eles deviam ter entregue para todo mundo de uma vez, dar para um e não dar para outros que estão no meio da la-
ma há muito mais tempo não é justo”, diz a moradora Maria Mercedes. Os 72 apartamentos ocupados pelas mais de cem famílias de desabrigados seriam entregues em breve, eles estavam parcialmente acabados. “Tem apartamento com duas, três famílias dentro. É certo a gente ficar nessa situação enquanto outros apartamentos foram dados até para dono de mercadinho? Não deveria ser entregue para quem é pescador e para quem é marisqueira?”, questiona a moradora Joseilda dos Santos Zacarias. Além da construção das casas, as obras de urbanização preveem a retirada de toda a favela da área. A propaganda do governo, em torno do projeto, é de que a área ficará semelhante às outras exploradas com o turismo em Maceió. (CM)
nho nada, não tenho para onde ir. Se eles mandarem a polícia para lá vão ter que me tirar, eu não vou sair, não vou sair que nem cachorro”, lamentou Joseilda. Na volta, mais de 100 pessoas aguardavam pelas respostas que poderiam dar novo rumo às famílias. Segundo os presentes, no meio da assembléia havia ainda traficantes e outros responsáveis por crimes na região. O clima era tenso e a população ameaçava, em caso de despejo, acampar em frente ao palácio do governo. Foi então que o secretário, empossado naquele dia, Fernando Nunes, enviou uma assessora para informar que será formada uma comissão com representantes do governo, das colônias de pescadores Z5 e Z16, além da Federação dos Pescadores de Alagoas, para verificar os critérios de distribuição dos apartamentos e se os escolhidos são pescadores. “É certo fazer isso, mas e as pessoas que ganharam, será que elas vão esperar? E depois, a gente vai morar lá mesmo?”, questiona Joseilda. O conflito Para entender melhor o conflito e a possibilidade de haver um desfecho violento nos próximos dias, é preciso conside-
rar que as moradias estão sendo construídas em uma região em que a população pobre tem se multiplicado e junto com ela a violência. A orla lagunar é uma bela área contrastada pela miséria de centenas de barracos erguidos sobre pedaços de pau, papelão, lona e plástico. Dejetos e esgoto se acumulam por toda a parte. Entre eles, homens e mulheres tentam juntar o sururu e garantir a própria sobrevivência. “As margens da Lagoa já foram bonitas. Hoje, os pescadores que tiravam o sustento catando sururu correm riscos de pegar um monte de doenças. É muito esgoto despejado, lixo, se não fizerem alguma coisa a situação vai ficar pior. Tem assalto para todo lado, jovem, pai de família está correndo risco, é uma situação complicada. O sururu está diminuindo e muitos têm que fazer outros trabalhos para sobreviver”, alerta Antonio Gomes, conhecido como Toinho Pescador, liderança da categoria no estado. Caminhar na calçada e na ciclovia é mais seguro se estiver na companhia de um morador local. “Alguém que conheça as pessoas daqui”, comenta a presidente da Federação dos Pescadores de Alagoas, Maria Eliane. Os alertas aparecem por toda parte: “um garoto de 14 anos que colocou um revólver na minha cabeça e mandou entregar tudo que eu tinha”; “um traficante que chegou e disse para eu sair do barraco que agora era dele”; ou “a pessoa sai para pescar e quando volta tem um monte de maloqueiro fumando maconha no barraco”. Dezenas de pessoas, cada uma com uma história diferente. Nenhuma tem vontade de denunciar, de dizer o nome. Todas têm medo de não conseguir criar os filhos: “tenho uma filha pequena moça, não posso falar nada não”. Alguns relatos são entregues escondidos, em forma de carta. Neles, acusações contras as lideranças comunitárias responsáveis pela organização dos cadastros e do diálogo com o governo. Denúncias de negociação e favorecimento para escolha dos contemplados. As lideranças se defendem, argumentam ser mal compreendidas. O certo é que ali, naquele local, miséria briga com miséria. São desabrigados a contar com a solidariedade de favelados. Todos com a esperança de ter onde morar.
Pescadores sofrem com as chuvas de Maceió (AL) O rio Mundaú desagua na Lagoa Mundaú. Ele fez aumentar o volume de água que surpreendeu moradores da região. No estado, 28 cidades foram atingidas pelas enchentes. Dessas, quatro (São Luiz do Quitunde, Matriz do Camaragibe, Jundiá e Ibateguara) estão em situação de emergência. Outras 15 (Quebrangulo, Santana do Mundaú, Joaquim Gomes, São José da Laje, União dos Palmares, Branquinha, Paulo Jacinto, Murici, Rio Largo, Viçosa, Atalaia, Cajueiro, Capela, Jacuípe e Satuba) decretaram estado de calamidade pública. Novecentas e sessenta famílias de pescadores que vivem nos municípios de Santa Luzia do Norte, Pilar, Marechal Deodoro, Coqueiro Seco e Maceió também esta-
riam passando por necessidades. “Essas famílias estão sem condição de se manter com a pesca, a situação está complicada. Disseram que está difícil de conseguir doações, elas parecem que não chegam aos pescadores”, explica Maria Eliane, presidente da Fepeal. As enchentes no estado atingiram 181 mil pessoas e provocaram 37 mortes, 69 pessoas estão desaparecidas. Ao todo, 26.618 pessoas estão desabrigadas e 47.897 desalojadas. No dia 29 de junho, foi divulgado o boletim epidemiológico. Ele aponta que mais de 200 pessoas já teriam apresentado problemas de saúde e há grande preocupação com os casos de leptospirose. Segundo informações do Corpo de Bombeiros de Alagoas, 950 homens estão envolvidos nas ações humanitárias. (CM)
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A absurda impunidade no Pará ENTREVISTA Justiça do Pará acoberta crimes de latifundiários e assassinatos prescrevem após mais de 20 anos sem julgamento Elcimar Neves/Ag.Pará
Marcio Zonta de Marabá (PA) A COMISSÃO Pastoral da Terra (CPT) no Pará e o Comitê Rio Maria divulgaram nota, no dia 22 de junho, denunciando a morosidade da justiça paraense e as manobras judiciais orquestradas para garantir a liberdade dos fazendeiros Valter Valente, Geraldo de Oliveira Braga e Jerônimo Alves Amorim. Os três são mandantes impunes de assassinatos contra trabalhadores rurais e líderes sindicais na região. Eles permanecem livres pois os crimes, cujas ações judiciais tramitaram por mais de 20 anos, terminaram prescritos. Em entrevista, o advogado da CP, Frei Henry Burin des Roziers, explica e comenta estes casos. Para ele, a justiça paraense é muito bem alicerçada para cometer arbitrariedades, anulações e fazer vista grossa em benefício dos latifundiários do estado. O religioso também destaca as principais áreas de conflitos agrários na região e fala sobre sua atuação no estado desde a sua chegada, em 1990. Brasil de Fato – Há quanto tempo o senhor está no Brasil e, especialmente, trabalhando no Pará? Frei Henry – Cheguei em 1978. Sou dominicano e vim para o Brasil visitar todas as comunidades dominicanas. Meu primeiro contato com a região Norte do país, mais intenso, foi quando fiz um estágio num curso da CPT: fui informado de que era uma região de conflitos agrários e que seria importante conhecer. Porém, fui morar no Pará mesmo em 1990, vindo de Goiás, mas quase não fiquei. Quis conhecer também os problemas de países como a Guatemala, onde tinha uma repressão terrível nos anos de 1990. Depois de quatro meses na Guatemala, decidi que ficaria por lá. Voltei ao Pará apenas para me despedir dos amigos da CPT e, de passagem comprada para retornar, aconteceu o assassinato do sindicalista Expedito Ribeiro de Souza [presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, mu-
“A justiça paraense não é independente, é muito ligada à classe social mais abastada e manipulada pela ideologia de grupos dominantes do agronegócio” nicípio do sul paraense], em fevereiro de 1991. Ofereci-me para ficar e acompanhar o caso. Nesse momento, foi criado o Comitê Rio Maria – que se espalhou pelo Brasil e até pelo mundo para pressionar o andamento do processo – e passei a morar em Rio Maria. Dediquei-me tanto à causa que comecei a trabalhar com todos os assassinatos ocorridos na região, entre eles o do sindicalista João Canuto de Oliveira [morto em dezembro de 1985], colocando esses processos, antes parados, para andar e arrumando testemunhas que, inclusive, só iam depor porque confiavam em mim. Elas tinham muito medo de represálias dos fazendeiros e pediram que eu ficasse até a conclusão dos processos. E aqui estou até hoje, sem conseguir
Manifestação contra a violência no campo em frente ao Tribunal de Justiça do Pará
“Todo esse tribunal de júri é uma farsa, algo para iludir o povo. Como se vai julgar um crime 28 anos depois de cometido? Não tem condições” ainda prender ninguém, mas lutando para isso. O assassinato de Expedito Ribeiro de Souza é um dos mais emblemáticos entre os divulgados na nota do dia 22? Sim, pelo modo como a justiça paraense tratou a condenação do mandante, o fazendeiro Jerônimo Alves de Amorim, além de todas as ilegalidades que surgiram ao longo do processo, com a conivência do Tribunal de Justiça de Belém. A condenação de Jerônimo foi extremamente difícil. Um dos líderes da bancada ruralista no Congresso, o deputado federal Ronaldo Caiado [DEM/GO], dizia na imprensa que não aceitaria que “nosso companheiro Jerônimo” fosse preso. Assim, Jerônimo só teve sua prisão decretada em 1993. Mas, até 1997, ele passeava de camionete, carregado de pistoleiros fortemente armados, pelas ruas de Rio Maria, sorrindo. E isso com a prisão pedida. A justiça do Pará não tinha coragem de prendê-lo. Só depois de uma forte pressão internacional, quando fomos atrás do chefe da Polícia Federal de Brasília pedindo sua prisão, é que ele foi preso pela Interpol; e no México, num cruzeiro marítimo que fazia com sua mulher em 1999. Levado para Belém, Jerônimo permaneceu preso até 2000, quando começamos outra briga: marcar o seu julgamento. Foi outra tormenta, pois, quando marcavam a data, os jurados designados para o caso desistiam por medo ou porque eram comprados por Jerônimo. O julgamento quase não acontece porque ninguém queria participar. Então, apelamos para a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Reunimos-nos com o arcebispo dom Thomás de Alquino e fizemos uma campanha muito forte para o julgamento ser realizado. Por fim, com muito empenho, conseguimos. [Em junho de 2000,] Ele pegou 19 anos e seis meses de prisão em regime fechado. Mas, mesmo assim, Jerônimo coordenou de dentro da cadeia a criação de um clima de terror na região de Rio Maria e Xinguara [PA], quando sua fazenda começou a ser ocupada por trabalhadores rurais sem-terra. A “operação” resultou na morte de mais duas pessoas a seu
mando. Em seguida, seus advogados pediram sua transferência para perto de sua família, em Goiás. Mesmo com ele respondendo a outros crimes no Pará, o Tribunal de Justiça de Belém, ilegalmente, aceitou o pedido. Pessoalmente fui ver o promotor do caso em Belém, indagando sobre essa transferência, mas o Tribunal de Justiça de Belém já tinha decidido e o caso passou à tutela do Tribunal de Justiça de Goiás. Lá, ele teve todas as mordomias, como autorização para ir a festas de família no interior do estado. Finalmente, o mais deprimente. Em 2001, Jerônimo já cumpria sua pena em prisão domiciliar graças a um atestado de doença que lhe foi dado após uma junta de médicos militares ter diagnosticado um glaucoma e um câncer de próstata e, em seguida, ter sido pedido pelos seus advogados um indulto por ter uma doença incurável. Porém, em nenhum lugar o laudo atestava que ele tinha uma doença incurável, que estava em fase terminal de sua vida. Por isso, o juiz de primeira instância negou, mas um desembargador, em dezembro de 2001, concedeu o indulto, após apenas um ano e meio preso. Ele está muito bem de saúde até hoje. Sabendo disso, ainda fizemos a última tentativa de pedir uma indenização para
a viúva de Expedito, mas ele nem compareceu na audiência. Mandou apenas um advogado que a todo instante o consultava por telefone sobre o valor pedido pela viúva de Expedito. Conclusão, o advogado disse: “meu cliente não aceita esse valor”, audiência encerrada. Os crimes cometidos por outros dois fazendeiros, contra líderes sindicais, divulgados pela nota, aconteceram na mesma época do assassinato do Expedito. Existe uma articulação entre fazendeiros para assassinar lideranças locais dos trabalhadores? Sem dúvida. Os fazendeiros tinham articulado o assassinato de várias lideranças, como João Canuto de Oliveira, Braz Antonio de Oliveira, entre outros. Vale lembrar, que o Braz era diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria e foi morto junto ao seu companheiro de luta Ronan Rafael Ventura, em abril de 1990, por uma máfia a serviço desses fazendeiros, em especial, de Geraldo Oliveira Braga. Aliás, com relação à morte desses dois companheiros, existe uma outra barbaridade cometida pela justiça do Pará. Após 19 anos de tramitação e morosidade, no dia 16 de fevereiro de 2009, o Supremo Tribunal Federal declarou a prescrição do crime. Braga, hoje com 74 anos, é dono de um grande latifúndio em Minas Gerais. E os fazendeiros Adilson Laranjeira e Vantuir Gonçalves de Reprodução
A missionária Dorothy Stang
Paula, que mandaram matar o sindicalista João Canuto de Oliveira, foram condenados, em 2003, a 19 anos e 10 meses de prisão. Contudo, eles nunca foram capturados para cumprir pena. Um deles até morreu de morte natural, em 2007. Então, há uma articulação entre os fazendeiros e a justiça do Pará para que os assassinatos de lideranças permaneçam impunes? Logicamente. Por isso, nossa luta sempre foi para colocar na cadeia esses fazendeiros criminosos, pois, se a justiça é conivente, a matança continua. E o motivo de toda essa morosidade é que a justiça paraense não é independente, é muito ligada à classe social mais abastada e manipulada pela ideologia de grupos dominantes do agronegócio. Todo esse tribunal de júri é uma farsa, algo para iludir o povo. Como se vai julgar um crime 28 anos depois de cometido? Não tem condições. Outro caso é o do lavrador Belchior Martins da Costa, assassinado em março de 1982, com 140 tiros, a mando do fazendeiro Valter Valente. Hoje, com 80 anos, Valente não será submetido a julgamento. E José Herzog, acusado pelo assassinato, foi julgado e absolvido só no último dia 24 de junho deste ano. Ambos se beneficiaram da morosidade proposital.
“Quando Dorothy Stang foi assassinada, saiu um lista em que minha morte valia R$ 100 mil. Desde então, a justiça do Pará, contra minha vontade, determinou que um segurança me acompanhasse”
E quais são as regiões mais afetadas? A região mais tensa nesses últimos tempos é a da fazenda Maria Bonita, do banqueiro Daniel Dantas, ocupada pelo MST em Eldorado dos Carajás [PA]. Além desta, há uma região explosiva formada pelos municípios de Santana do Araguaia, San-
ta Maria e Cumaru do Norte [todas no Pará], onde há extensas fazendas, inclusive do grupo de Daniel Dantas, e infelizmente ainda não existem movimentos sociais organizados. Por isso, as ocupações nessa área sofrem mais com as ameaças de pistoleiros, seguranças de empresas privadas e da própria polícia. Sem contar que essa região também tem um histórico de trabalho escravo. Um exemplo é a fazenda Cristalina, em Santana do Araguaia, que é conhecida como a antiga fazenda da Volkswagen. A empresa recebeu essa fazenda, de 140 mil hectares, nos anos de 1980. Em 2008, quando 84 mil hectares dela foram desapropriados pelo Incra, uma organização que lutava pela terra, a Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar [Fetraf], ocupou a área com 600 famílias. Porém, o processo de assentamento até hoje não aconteceu e a situação ficou explosiva porque essas famílias, muito pobres, passaram a sofrer represálias de grupos armados que, inclusive, extorquem dinheiro desses miseráveis. Qual a principal tarefa da CPT no Pará? Além da luta contra a impunidade, apoiamos as ocupações de terra, principalmente do MST. Outra vertente é o combate ao trabalho escravo. De 1978 até 2000 havia muito trabalho escravo na região e só conseguimos acabar com parte disso quando pressionamos o Ministério do Trabalho a formar uma frente contra essa vergonha que ainda perdura no Brasil. Antes, a justiça ajudava o fazendeiro, pois ele ia nas repartições públicas e ameaçava, comprava servidores para não ser denunciado, e quando os fiscais ignoravam essas ameaças ou não se vendiam, eles eram assassinados. Só depois que esse grupo formado pelo Ministério do Trabalho começou a agir com um pessoal móvel apoiado pela Polícia Federal é que diminuiu a tensão e o trabalho escravo na região sul do Pará. Qual reflexão o senhor faz desses vintes anos em que está no Pará, mudou algo? O que mudou é que agora existem ocupações de terra feitas de modo organizado pelo MST. Agem de maneira focada contra o latifúndio, o agronegócio, têm uma causa e defendem a preservação da região amazônica. Por outro lado, nesses últimos anos, houve muito despejo violento. Outro agravante, sobretudo na região sul do Pará, é que a força do latifúndio agropecuário foi se espalhando muito, tendo uma atuação gigantesca, principalmente do grupo Santa Bárbara, de Daniel Dantas, que fortaleceu muito o grupo de políticos ruralistas. Para encerrar, quanto “custa” hoje a vida do senhor? E quem quer pagar por ela? Venho sofrendo ameaças desde 2000 de fazendeiros. A partir de 2005, também comecei a ser ameaçado por dois policiais civis que denunciei pela tortura de uma criança. Um deles ainda não cumpre seu mandado de prisão. Quando Dorothy Stang foi assassinada [em fevereiro de 2005], saiu um lista em que minha morte valia R$ 100 mil. Desde então, a justiça do Pará, contra minha vontade, determinou que um segurança me acompanhasse. Agora dizem que vale só R$ 20 mil, me desvalorizaram [risos]. Mas sei que um fazendeiro da região disse que, se ocupassem a fazenda dele, ele se vingaria de mim e me mataria. De todo modo, estou tranquilo, seguindo meu trabalho.
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Retrocesso no combate à violência PNDH 3 O Brasil de Fato publica nesta edição a quarta e última reportagem da série produzida pela Escola Politécnica de Sáude Joaquim Venâncio – EPSJV/Fiocruz sobre recuos do governo federal em pontos chave do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos. Confira, a seguir, matéria sobre a realização de audiência coletiva antes de reintegração de posse Raquel Júnia do Rio de Janeiro (RJ) AS AMEAÇAS e intimidações começaram às 10 horas da manhã, quando um grupo de segurança armada chegou ao local – um acampamento de famílias sem terra, na Fazenda Cambará, em Santa Luzia do Pará, a 200 km da capital, Belém. Os seguranças, com escopetas, dispararam sete tiros em direção a uma ocupação onde estavam 150 famílias. Além disso, bloquearam a entrada e a saída do local. Assim foi o dia todo. Por volta de 17 horas chegaram as polícias civil e militar, de quatro cidades da redondeza para mediar o conflito. Segundo os sem terra, no entanto, eles já apareceram dispostos a expulsar as famílias do local, embora não houvesse mandado de reintegração de posse. As autoridades policiais requentaram uma ordem expedida seis meses antes e já considerada nula pela justiça paraense. As lideranças do acampamento pediram um tempo para dialogar e pensar o que fazer, já que sabiam que aquele mandado era inválido. “Não vamos dar tempo. Daqui a pouco o choque está chegando. E o choque vocês sabem como é que tira vocês, então é melhor saírem logo”, respondeu o coronel da PM, segundo relato de Ulisses Manaças, da coordenação estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Pará. Este caso ocorreu no dia 11 de junho. Ulisses estava no acampamento no momento do despejo e relata que, como não teve conversa, as famílias foram instruídas a tirar os pertences dos barracos e colocar no próprio caminhão da polícia. O Batalhão de Choque chegou, mas não precisou agir. As famílias seguiram em marcha até um local distante dois quilômetros da propriedade, onde se alojaram, provisoriamente, em um pequeno pedaço de terra cedido por um camponês. “Havia três mulheres grávidas e muitas crianças. E eles fizeram terror o dia todo. Felizmente, ninguém ficou ferido, mas criaram um clima de pânico”, denuncia Ulisses.
O texto original sugeria que, antes de reintegrações de posse, ocorressem audiências coletivas com os envolvidos De acordo com as recomendações do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), como foi publicado originalmente, esta desocupação não teria acontecido desta maneira. O texto original sugeria que, antes de reintegrações de posse, ocorressem audiências coletivas com os envolvidos e também com a
Fotos: Elcimar Neves/ Ag.Pará
presença do Ministério Público, poder público local, órgãos públicos especializados e PM. Mas o decreto 7.177, de 12 de maio, modificou este item do programa. A quarta e última reportagem da série sobre as modificações no PNDH 3 discute o problema dos conflitos pela terra no Brasil e como o texto original tratava o tema. Em visita à Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), onde foi convidado para proferir a aula inaugural do ano letivo, o ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, comentou a reação dos latifundiários à proposta, explicando que o Plano não era uma ameaça à propriedade privada. “O que o programa diz é que deve haver um mecanismo de mediação pacífica de conflitos, sem desrespeitar o direito à propriedade, mas sem passar pela via da criminalização”, disse.
“O que o programa diz é que deve haver um mecanismo de mediação pacífica de conflitos, sem desrespeitar o direito à propriedade”
“Invocaram uma autonomia e independência do Judiciário, na verdade, para justificar um comportamento reacionário”
O que mudou
A partir do decreto de 12 de maio, o texto do PNDH 3, no que se refere ao tema da mediação dos conflitos no campo, passou a vigorar com duas modificações: a expressão “audiências coletivas” foi suprimida e, apesar de a mediação de conflitos continuar sendo sugerida, a prática deixou de figurar como ato inicial. O assunto é tema da ação programática “d”, presente no objetivo estratégico “VI – Acesso à justiça no campo e na cidade”. O texto original sugeria: “Propor projeto de lei para institucionalizar a utilização da mediação como ato inicial das demandas de conflitos agrários e urbanos, priorizando a realização de audiência coletiva com os envolvidos, com a presença do Ministério Público, do poder público local, órgãos públicos especializados e Polícia Militar, como medida preliminar à avaliação da concessão de medidas liminares, sem prejuízo de outros meios institucionais para solução de conflitos”. Após o decreto, a redação ficou assim: “Propor projeto de lei para institucionalizar a utilização da mediação nas demandas de conflitos coletivos agrários e urbanos, priorizando a oitiva do Incra, institutos de terras estaduais, Ministério Público e outros órgãos públicos especializados, sem prejuízo de outros meios institucionais para solução de conflitos”. Em fevereiro de 2010, menos de dois meses após o lançamento do PNDH 3, o deputado federal Carlos Mendes
Mesmo sem mandato judicial, a polícia chega para expulsar acampados
o dispositivo previsto no PNDH 3 afronte os princípios constitucionais. Para ele, por trás deste argumento, se esconde um discurso reacionário. “Invocaram uma autonomia e independência do Judiciário, na verdade, para justificar um comportamento reacionário. Não há nada de inconstitucional em você sugerir ao juiz que faça audiência”, diz. Luiz Fernando completa que, mesmo sem esse dispositivo no PNDH 3, é plenamente possível aos juízes realizarem audiências antes de tomarem decisões como a de conceder uma liminar para reintegração de posse, por exemplo. Ele explica que o código de processo civil permite ao juiz agir desta maneira e que, portanto, o Plano não apresentou nada inédito, apesar de ser importante este item estar expresso na publicação. “Se eu quiser fazer uma audiência para ouvir as pessoas, eu faço, não precisa de lei para isso. Vários juízes já tiveram esse cuidado de chamar os envolvidos, sentar, conversar. Todas estas críticas serviram, na verdade, para uma tentativa maldosa de desqualificar o Plano e o ministro, algo de má fé”, observa.
Protesto do MST em Belém pela reforma agrária e contra a violência no campo
Thame (PSDB/SP) apresentou quatro projetos de decreto legislativo (PDC) para tornarem nulos alguns dispositivos do plano. Um deles, o PDC 2399/2010 questiona justamente essa ação programática. “O dispositivo do PNDH 3 do presidente Lula, cuja eficácia deve ser suspensa, afronta os princípios constitucionais de independência do Poder Judiciário e do amplo poder de cautela assegurada ao julgador, que se encontram vin-
culados ao princípio do juiz natural, na sistemática jurisdicional brasileira. A simples concepção de instaurarse, como estágio preliminar para a solução de demandas e conflitos agrários e urbanos, a mediação obrigatória, constitui-se em ato emasculatório do Poder Judiciário”, diz Thame, na justificativa do projeto. Segundo o deputado, o dispositivo tem uma função “castradora” do Judiciário. “O enunciado é muito claro em
seus objetivos: institucionalizar a mediação como ato inicial das demandas de conflitos agrários e urbanos, denotando claramente o propósito de subverter a ordem jurídica e seus princípios basilares, inclusive com grave prejuízo à celeridade processual e para a pacificação da conflituosidade social”, completa Thame. O presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), o juiz Luiz Fernando Barros Vidal, discorda que
A reportagem procurou o deputado Mendes Thame, mas, por meio de sua assessoria, ele informou que está de licença médica e que, portanto, não poderia responder. Entretanto, a assessoria de imprensa do deputado adiantou que o projeto de decreto legislativo 2399/2010 perde o objetivo com as mudanças realizadas pelo governo federal no Plano, por meio do decreto 7.177, de 2010. (Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
Rejeição às audiências tem fundo ideológico Opositores do PNDH confiam no alinhamento dos juízes com os latifundiários do Rio de Janeiro (RJ) Como já informou a primeira reportagem desta série (sobre ensino e símbolos religiosos, publicada na edição 381), um conjunto de movimentos lançaram uma campanha pela integralidade do PNDH 3. Entre essas entidades está a Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Igreja Católica, que questiona, entre outros aspectos, a modificação do dispositivo que previa a realização de audiências coletivas. “Qualquer ação que um movimento faça, eles [os latifundiários] apelam para o Poder Judiciário e o Poder Judiciário é rapidíssimo para atender qualquer demanda do agronegócio”, avalia Antônio Canuto, secretário da coordenação nacional da CPT. Na opinião do juiz Luiz Fernando Barros Vidas, da Associação Juízes para a De-
“Sem isso a tendência é que a decisão seja supostamente técnica, despida de qualquer sentido da realidade e marcadamente ideológica” mocracia (AJD), ao pressionarem pela retirada das audiências públicas do Plano, os setores contrários a este dispositivo, na realidade, fazem uma aposta de que o ordenamento jurídico e os critérios ideológicos dos juízes são de defesa intransigente da propriedade. “Conhecendo a nossa história, o perfil do Judiciário, as características das nossas leis, você apostar nesta solução de tutela incondicional da propriedade é uma aposta boa, pega bem”, comenta. Para ele, a reação conservadora objetivava condicio-
nar o juiz a decidir pura e simplesmente com base em critérios ideológicos, de forma a privá-lo de ter contato com a realidade. “O conflito fundiário é eminentemente de fundo social e o juiz fica melhor instrumentalizado para compreender a realidade. Sem isso, a tendência é que a decisão seja supostamente técnica, despida de qualquer sentido da realidade e marcadamente ideológica”, diz. O caso que abre esta reportagem, da desocupação da fazenda Cambará, é, na opinião de Ulisses Mana-
ças, do MST, um exemplo de situação em que a audiência era necessária, já que, segundo o movimento, não havia um mandado de reintegração atual. Ulisses denuncia que, na realidade, a parte da fazenda ocupada pelas famílias se trata de uma gleba federal. A fazenda fica às margens da BR 316, que liga o Pará a São Luiz do Maranhão e, como se trata de uma rodovia federal, de acordo com o MST, as áreas em torno da BR são consideradas públicas, mas que foram apropriadas ilegalmente pelo dono da fazenda Cambará. “A primeira proposta [do PNDH 3] era um avanço. Este é um exemplo escandaloso de terra pública apropriada de forma ilícita. Se houvesse a audiência pública na região, provavelmente a polícia não faria o despejo de forma violenta”, aposta. (RJ)
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Agricultura familiar pode produzir biodiesel necessário para o Brasil DEBATE No Ceará, Petrobras Biocombustíveis reafirma prioridade em trabalhar com pequenos agricultores associados em cooperativas Aline Scarso enviada a Fortaleza (CE) CERCA DE duzentas pessoas, entre representantes de cooperativas da agricultura familiar, comunidades de bairros e estudantes da Universidade Federal do Ceará (UFC), participaram de debate sobre agroenergia realizado em Fortaleza (CE), no dia 30 de junho. Com o tema “Matriz energética brasileira: suas potencialidades e desafios”, este foi o primeiro de uma série de cinco eventos promovidos pelo Brasil de Fato, em parceria com a Petrobras, para discutir a diversificação da matriz energética brasileira a partir de fontes limpas e sustentáveis, e organizar a agricultura familiar para a produção de agrocombustíveis no Brasil. “É muito importante para um país não depender só de petróleo”, destacou o gerente de gestão tecnológica da
Miguel Stédile
Petrobras Biocombustíveis, João Noberto Noschang Neto, um dos palestrantes do seminário. “Nós estamos desenvolvendo tecnologia agrícola, melhorando as condições de cultivo e de sementes para macaúba, pinhão-manso... A fixação do agricultor no campo, com a geração de emprego e renda, não é um problema só nosso, mas do mundo todo, e os biocombustíveis têm essa função social”, afirmou. O biodiesel é alternativa para substituir os derivados do petróleo na produção de energia e pode ser refinado a partir da soja, mamona, girassol, macaúba, dendê, entre outras espécies. No Ceará, o programa de biodiesel tem incentivo do governo estadual, que dá ao agricultor R$ 200 por hectare plantado com oleaginosa consorciada com alimentos. Três mil e duzentos agricultores destinam parte do trabalho para esse tipo de produção depois de uma parceira entre a Petrobras Biocombustíveis e cooperativas da agricultura familiar. “Estamos neste projeto por duas questões: primeiro porque estamos evitando a monocultura. A outra questão é que a produção de oleaginosa é uma forma de agregar renda ao produtor”, explicou a representante dos movimentos sociais do campo e também palestrante do seminário, Antônia Ivoneide da Silva, da Via Campesina. “Mas não iremos substituir a produção de comida pela de oleaginosa para atender a demanda. Todos os pés de mamona, girassol ou algodão que nós plantamos foram consorciados com alimentos. Reprodução
tiu na cadeia das oleaginosas como investimos atualmente, porque nunca houve tanta necessidade. Eu estive com o presidente Lula e ele pediu para que fizéssemos um balanço do Programa Nacional do Biodiesel pois confia que o biodiesel é a grande esperança para a geração de emprego e renda para o pequeno produtor no semi-árido”.
“Mas não iremos substituir a produção de comida pela de oleaginosa para atender a demanda”
O debate reuniu cerca de 200 pessoas para discutir a diversificação das culturas de oleaginosas
Se não for assim, não serve para a agricultura familiar”. Cadeia produtiva Priorizar a plantação de alimentos não significa descartar a agricultura familiar da cadeia produtiva de agrocombustíveis. Dados da Petrobras Biocombustíveis confirmam que 75% do agrocombustível produzido no país tem origem no esmagamento da soja. Como são poucos os pequenos agricultores que
conseguem trabalhar com esse grão no país, a principal fonte de óleo para o biodiesel não cria nenhum emprego a mais no campo. Também não há garantias de que a renda oriunda da plantação de qualquer oleaginosa seja suficiente para a manutenção da família do pequeno produtor no campo. Isso porque 80% do custo do biodiesel está no processamento do óleo. Como cabe à agricultura familiar somen-
Energia sob controle do povo brasileiro da enviada a Fortaleza (CE)
O biodiesel pode ser refinado a partir de espécies como a mamona
te vender a semente para esmagamento, resta ao produtor rural uma mísera parte da renda gerada. Segundo Norberto, a Petrobras Biocombustíveis estuda formas de esmagar a semente e retirar o óleo a partir das próprias cooperativas, o que agregaria mais valor ao produto e garantiria maior renda para quem trabalhou duro na plantação. “Estamos percebendo que existe muito que melhorar. Nunca se inves-
O desafio que se coloca é como diversificar as culturas de oleaginosas no país e, ao mesmo tempo, garantir que a produção de agrocombustível não fique sob controle das grandes empresas. Representantes da agricultura familiar presentes no evento reivindicaram o controle da cadeia produtiva e disseram que estão dispostos a plantar, esmagar e produzir o óleo. “Quero saber como é possível aplicar essas técnicas na minha região que ainda não tem nada”, indagou Neuber Josélio Amador, assentado no estado de Goiás.
A produção de fontes limpas de energia é uma questão colocada internacionalmente desde que pesquisas confirmaram o risco de uma catástrofe humanitária caso se mantenha os atuais níveis de emissão de gás carbônico. No Brasil, a produção de agrocombustíveis começa a ganhar corpo, mas a dúvida que fica é a seguinte: a sua produção será socialmente sustentável?
Com o estímulo à fabricação de etanol no Brasil a partir da década de 1970 por meio do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), o monocultivo da cana-de-açúcar foi responsável por expulsar a população rural de suas terras. O temor é que possa acontecer algo semelhante a partir do incentivo da produção de oleaginosa para o biodiesel, se este for apoderado por grandes empresas do setor produtivo. Mas como o povo brasileiro pode assumir o controle de uma possível nova matriz
energética? “O nosso grande desafio é esse. É importante fazermos esse debate. O povo brasileiro precisa adquirir mais conhecimento nesse tema para que a gente possa lutar para assumir o controle da matriz”, destaca Antônia Ivoneide da Silva, da Via Campesina. No Ceará, depois da privatização da Companhia Energética do Ceará (Coelce), responsável pela produção e distribuição em todo o estado, o preço da energia encareceu. Desde 1998, a empresa é con-
trolada pela Endesa Espanha, que hoje possui quase 60% das ações da companhia. Também a Petrobras, quarta maior empresa de energia do mundo, também sofre com a crescente internacionalização de seu capital. Atualmente, mais de 60% da (ainda) estatal pertence a acionistas estrangeiros. Para a integrante da Via Campesina, o controle social da produção e distribuição é a única forma de reverter essa condição e, para isso, a luta é o único caminho. (AS)
PROMOÇÃO
Campanha do petróleo promove concurso para universitários Fatima Lacerda do Rio de Janeiro (RJ) QUEM DISSE que a esquerda só se une na prisão, errou. A velha anedota que corre nos meios políticos e movimentos sociais não vale como referência para a campanha “O Petróleo Tem que Ser Nosso!”. Pelo menos é o que se pode concluir, a partir do conjunto de organizações e entidades que se reuniu para promover o 1º Concurso Nacional de Trabalhos Universitários, patrocinado pelos petroleiros do Estado do Rio de Janeiro, por meio da contribuição financeira da categoria. As inscrições para o concurso vão se estender até 10 de setembro. O tema é “Petróleo, para que e para quem? O futuro do Brasil em nossas mãos.” Mais do que revelar talentos, em diversas áreas de produção artística, jornalística e
acadêmica, o objetivo é ampliar a consciência e aprofundar o debate sobre questão tão relevante na atualidade: como explorar e o que fazer com essa fabulosa riqueza escondida no mar? Afinal, as reservas de petróleo descobertas poderão tirar o país do atraso e seu povo da miséria? Ou servirão apenas para atrair a cobiça internacional e a “maldição do petróleo”? Em que medida o trabalhador organizado e atuante tem condições de intervir nessa história? Dezenas de prêmios Haverá três premiações para cada uma das oito modalidades (ver box). Os trabalhos classificados em primeiro lugar receberão computadores; em segundo lugar vale-livros no valor de R$ 1 mil; em terceiro lugar, vale-livros no valor de R$ 500,00. Os trabalhos selecionados serão publicados e amplamente utiliza-
dos na campanha “O Petróleo Tem que Ser Nosso”, que reúne trabalhadores da cidade e do campo, centrais sindicais, movimentos sociais, um amplo leque de representações partidárias, organizações estudantis, religiosas e instituições civis. A campanha tem como bandeiras a retomada do monopólio estatal do petróleo, com controle social, o fortalecimento da Petrobras, a prospecção do petróleo de acordo com as necessidades estabelecidas a partir de um projeto de desenvolvimento nacional, sem desprezar a questão ambiental. Defende, ainda, que os recursos oriundos do petróleo sejam investidos em educação, saúde, reforma agrária, moradia e na pesquisa de fontes energéticas alternativas e menos poluentes. O projeto-de-lei dos movimentos sociais pode ser acessado na página www.apn.org.br.
Sobre o concurso, os candidatos que quiserem mais informações devem acessar a página eletrônica www.concu rsopetróleo.org.br. Para fundamentar os trabalhos, sugere-se como fontes de pesquisa artigos e matérias da Agência Petroleira de Notícias, www.apn.org.br ou das páginas eletrônicas de parceiros na promoção do concurso: Associação de Engenheiros da Petrobrás (Aepet), Frente Nacional do Petroleiros (FNP), Federação Única dos Petroleiros (FUP), Sindicato Estadual dos Profissionais do Ensino (SepeRJ), Sindicato dos Professores do Rio e Região (SinproRio e Região), diretórios centrais de estudantes (DCE) da UFRJ, UFF, UEE-RJ; além do Sindipetro-RJ e demais entidades que participam da Campanha “O Petróleo Tem que Ser Nosso!” (da Agência Petroleira de Notícias).
Veja como se inscrever Podem participar do concurso estudantes universitários das redes pública e privada, da graduação ou pós-graduação (lato sensu e stricto sensu), concorrendo em uma das oito modalidades, de livre escolha: 1) Áudio; 2) Vídeo; 3) Texto literário; 4) Texto acadêmico; 5) Texto jornalístico; 6) Trabalhos digitais; 7) Artes plásticas, desenho ou fotografia; 8) Criatividade livre. O primeiro passo é preencher a ficha de inscrição na página eletrônica www.concursopetroleo.org.br. Os trabalhos são individuais e devem ser postados no correio ou entregues na Agência Petroleira de Notícias do Sindipetro-RJ (Avenida Passos, 34, centro do Rio de Janeiro/RJ) até o dia 10 de setembro de 2010. Os trabalhos não devem ser identificados, sob pena de desclassificação. O candidato deverá imprimir a ficha de inscrição on line e anexar ao trabalho, que será identificado pelos organizadores do certame com um código. Os nomes dos autores só serão revelados, após a seleção final da banca examinadora. (FL)
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No pós-golpe, economia hondurenha definha e desemprego dispara UM ANO DE GOLPE Honduras enfrenta consequências da instabilidade política interna e da crise financeira internacional Reprodução
Tese de participação dos EUA no golpe ganha força Ex-candidato à presidência afirma que governo atual é dirigido por Washington do enviado a Tegucigalpa (Honduras)
Criança brinca perto do lixo em Tegucigalpa, capital hondurenha
Renato Godoy de Toledo enviado a Tegucigalpa (Honduras) É SABIDO QUE o saldo de um ano de golpe em Honduras, na esfera política, tem a instabilidade e a repressão velada como principais características. No aspecto econômico, a situação acompanhou a piora e o país amarga as consequências da instabilidade política e da crise financeira internacional. Segundo dados oficiais, o desemprego atinge cerca de 1,2 milhão de pessoas, em um país com uma população total de menos de 8 milhões de habitantes. Ainda de acordo com estatísticas governamentais, um terço dos hondurenhos vive com menos de 20 lempiras (a moeda local) diárias, o equivalente a um dólar. Para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), a renda inferior a um dólar diário configura pobreza extrema. Com o salário mínimo elevado pelo presidente deposto Manuel Zelaya, em 2008, parte da população aponta que o problema do desemprego é fruto da política “populista” do ex-governante. Hoje, o déficit total de Honduras chega a 20 bilhões de dólares, o que equivale a 142% do PIB registrado em 2009. No ano do golpe, o país apresentou uma retração econômica de 2%. Por decreto, Zelaya colocou o salário mínimo a 290 dólares para os trabalhadores urbanos e 214 para os rurais.
Desemprego atinge cerca de 1,2 milhões de pessoas, em um país com uma população total de menos de 8 milhões de habitantes Classes altas Apesar das críticas do patronato e de setores conservadores, hoje, o salário mínimo considerado alto não supre as reais necessidades dos hondurenhos. Uma cesta básica com 30 itens para uma família de cinco membros vale 338 dólares. O descontentamento com o momento econômico do país não se limita apenas aos mais pobres. Nas classes mais altas, há uma reclamação contra os pacotes econômicos apresentados pelo governo de Porfirio Lobo, que têm como principal marca o aumento de impostos. No entanto, setores conservadores se valem das sanções econômicas promovidas pela Organização dos Estados Americanos (OEA) para argumentar que o problema hondurenho não tem relação com o golpe de Estado, mas com o bloqueio da ajuda financeira ao país centro-americano. Direitos econômicos Gilberto Ríos, da FoodFirst Information & Action Network (Fian), aponta uma piora significativa da condição de vida em Honduras no último período. “Além dos direitos humanos, o golpe tem repercussões ligadas aos direitos econômicos e sociais. A si-
tuação econômica e social do país piorou ainda mais. Há um maior desemprego e diminuição da renda da população e mais fome”, explica. Para o ex-candidato à presidência de Honduras, Carlos H. Reyes, há um processo de piora econômica que tem sido combatido pelos membros da Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP), organização criada após o golpe de 2009. De acordo com Reyes, que retirou sua candidatura no ano passado por considerar ilegítimo o processo eleitoral, a defesa de direitos econômicos e sociais têm sido tão importantes para a FNRP como as bandeiras da volta de Manuel Zelaya ao país e da instauração de uma Assembleia Nacional Constituinte. “Esse governo já emitiu um pacote de impostos e tudo indica que vai impor outros. Estão nos levando aqui ao que está acontecendo na Grécia. Além de toda nossa luta pela Assembleia Nacional Constituinte, estamos em vigília em defesa dos nossos direitos sociais e econômicos. A situação no país piora por conta do desemprego e pelo fato de os EUA devolverem uma grande quantidade de imigrantes. E aqui não há trabalho”, relata.
FNRP lança “Comissão de Verdade” Iniciativa se contrapõe à comissão instaurada pelo governo Porfirio Lobo do enviado a Tegucigalpa (Honduras) A fim de receber o reconhecimento de países latino-americanos e europeus, o presidente hondurenho Porfirio Lobo instaurou uma Comissão da Verdade, para, segundo ele, apurar o que ocorreu antes, durante e depois do golpe de Estado que derrubou o presidente Manuel Zelaya, em junho de 2009. Como os movimentos sociais que compõem a Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP) não reconhecem o governo, por ter sido eleito durante o regime golpista, as próprias organizações criaram um mecanismo civil de apurar os abusos ocorridos. A Comissão de Verdade (com ênfase no “de”) foi ini-
ciada no dia 28 de junho deste ano, em Tegucigalpa, após o encerramento da marcha que celebrou um ano de resistência contra o golpe de Estado. As investigações serão feitas por membros da sociedade civil hondurenha e internacional. Diversas personalidades devem participar das atividades, tais como a integrante das Avós da Praça de Maio Nora Cortiñas (Argentina), o Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel (Argentina), o sociólogo François Houtart (Bélgica) e o padre Fausto Milla (Honduras). “A participação dessas personalidades dá uma grande credibilidade à nossa comissão, que é uma contrapartida à comissão instalada pelo governo, que visa legitimar o regime de fato”, explica Gilberto Ríos, da FoodFirst Information & Action Network (Fian).
“Ditadura” Ríos aponta que o regime golpista aplicou medidas ditatoriais e contra a vida humana, e que isso deve ser analisado na comissão. “Havia violações de todo o tipo. Destacamos os direitos humanos de primeira geração: o direito à vida, à verdade e os civis e políticos. Houve uma massiva agressão física contra manifestações e violações contra a mulher, perseguição e assassinatos”, relata. Para Nohemí Peréz, irmã de Samuel Peréz, desaparecido político desde 1982, a comissão instalada pelo governo não conta com qualquer confiança dos familiares de vítimas. “Do governo, não espero nada. Não quero ser pessimista, mas, deles, não posso esperar nada. Mas tenho esperança na Comissão de Verdade e na plataforma de direitos humanos. São personalidades que têm sido transparentes em suas lutas”, aponta Peréz, que é membro do Comitê de Familiares de Detidos e Desaparecidos em Honduras. (RGT)
Os EUA tentam vender a imagem de que Honduras vive um governo de conciliação, onde não há violação aos direitos humanos e a resistência praticamente não existe. Essa é a visão de Carlos H. Reyes, sindicalista hondurenho e ex-candidato à presidência da República de Honduras, em 2009. Atendendo aos movimentos sociais, Reyes foi um dos candidatos que desistiu do pleito e engrossou o boicote ao processo eleitoral. Para o sindicalista, o governo de Honduras, desde o golpe de junho de 2009, tem suas ações baseadas nos interesses de Washington, basicamente. “O embaixador dos EUA aqui [Hugo Llorens] é quem dirige o governo. Eles tentam unificar o Partido Liberal para dividir a resistência e continuam aumentando o poder das Forças Armadas, dando-
lhes mais armas e dinheiro. Além disso, há dois meses instalaram a segunda base militar no país, em meio a uma zona indígena onde há petróleo e água”, aponta. Sob essa constatação, Reyes afirma que o golpe em seu país é parte de uma estratégia dos EUA de retomar o controle sobre a América Central. Zelaya acusa No aniversário do golpe de Estado em Honduras, o presidente deposto Manuel Zelaya afirmou que as ações que o tiraram do poder foram orquestradas pelos EUA. O país administrado por Barack Obama, inicialmente, mostrou-se contrário ao golpe, mas foi uma das poucas nações a reconhecer as eleições de novembro de 2009. “Tudo indica que o golpe foi orquestrado na base militar de Palmerola, pelo Comando Sul dos EUA, e executado torpemente por maus hondurenhos. O tempo e o apoio pú-
blico que os EUA terminaram dando ao golpe e àqueles que o executaram confirmam sua participação”, afirma a carta enviada por Zelaya, desde seu exílio na República Dominicana.
A Comissão de Verdade (com ênfase no “de”) foi iniciada no dia 28 de junho deste ano, em Tegucigalpa, após o encerramento da marcha que celebrou um ano de resistência contra o golpe de Estado O porta-voz do Departamento de Estado dos Estados Unidos, Mark Toner, limitou-se a dizer que a declaração do ex-presidente é “ridícula”. (RGT)
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américa latina Fotos: Reprodução
Café em La Pequena Havana, região de Miami ocupada, principalmente, por imigrantes cubanos
Um socialista cubano em Miami ENTREVISTA Radialista que migrou de Cuba para os EUA defende o regime político vigente na ilha caribenha Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro (RJ) A ASSOCIAÇÃO Nacional de Cubanos Residentes no Brasil (ANCREB) realizou, no Rio de Janeiro, a sua segunda convenção para analisar como pode contribuir para fazer frente à ofensiva midiática contra Cuba, que, nos últimos meses, intensificou-se. Um dos participantes do encontro, o jornalista cubano Edmundo García – que veio de Miami, onde vive há dez anos e tem um programa de rádio de grande audiência (um milhão de ouvintes em AM e na internet) –, conversou com o Brasil de Fato sobre os desafios de se viver numa cidade dos Estados Unidos em que cubanos-estadunidenses têm grande presença e influência, inclusive na política estadunidense. Ele explica, também, que os cubanos que eventualmente vivem no exterior não necessariamente se alinham com as organizações de extrema direita que fazem violenta campanha contra o regime socialista da ilha caribenha. Segundo ele, as novas gerações de cubanos, embora não cheguem a ser revolucionárias, não aceitam o ideário anti-castrista dos remanescentes da época em que Cuba era considerada o prostíbulo do Caribe. O jornalista cubano revela – segundo ele, pela primeira vez – como Cuba, ao informar o serviço secreto dos Estados Unidos de um complô, evitou que a extrema direita estadunidense perpetrasse um atentado que poderia ter assassinado o então presidente Ronald Reagan (1981-1989) e que, possivelmente, convulsionaria aquela nação.
“Não há dúvidas que Obama deu esperanças aos Estados Unidos e ao mundo, por sua cor, por sua inteligência e pela necessidade real de uma mudança, mas o establishment o engoliu” al. Nunca fiz parte da chamada “oposição” nem tive algum enfrentamento ou colisão com o governo cubano. Vivo em Miami porque é lá onde estão minhas raízes cubanas mais próximas. Desde que se radicou em Miami, esteve alguma vez em Cuba?
Visitei Cuba em oito ocasiões depois de partir.
De um modo geral, quando se fala de cubanos residentes nos Estados Unidos, eles são associados aos setores de direita, dos que saíram nas ruas para comemorar a doença de Fidel Castro ou dos que previam o fim do socialismo em Cuba, o que já foi objeto até de crônica irônica do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Mas parece que nem todos estão nessa linha. Explique o panorama dos cubanos que vivem nos Estados Unidos.
Sim, em Miami, vivem terroristas, mas que estão cada vez mais em minoria. Eles têm seus protetores, incluído o próprio governo dos Estados Unidos. Mas, agora, a co-
munidade cubana, sobretudo os que chegaram depois de 1980, têm uma visão diferente sobre Cuba. Não digo que sejam revolucionários, e sim que não sentem vínculos com a extrema direita, que é igual a um tigre com dinheiro, mas sem dentes, nem força de convocação, nem prestígio e moral. Estão condenados pela história. Como se deu o seu processo de politização até chegar a ser um defensor do regime cubano?
A ultra-direita cubana me fez abrir mais os olhos e pude ver que seus interesses são alheios e perigosos para o povo cubano.
Você é um radialista cubano que atua em Miami num espaço com um milhão de ouvintes. Como é ser cubano, não anti-regime socialista, vivendo em Miami? Em suma: como é viver numa cidade onde se encontram notórios terroristas circulando impunemente, como Posada Carriles e outros? Aliás, explique para os leitores quem é Carriles.
É um desafio diário levantar uma voz alternativa em Miami, mas é gratificante quanto alcançamos quem queremos. Enfrentar diariamente os anti-cubanos produz adrenalina, que estimula os desejos de realizar. Posada Carriles é o Osama Bin Laden da América Latina, com dezenas de torturas, desaparecimentos e assassinatos em seu currículo. Os Estados Unidos o julgam apenas como mentiroso e não querem deportá-lo para a Venezuela, onde ele está condenado por ser o responsável por uma explosão de um avião da Cubana de Aviação que provocou 73 mortes. Posada Carriles ingressou recentemente nos Estados Unidos burlando o serviço de imigração. Mentiu para entrar. Mas é bom saber que os Estados Unidos não querem molestar esse terrorista. É pura hipocrisia, portanto, sobretudo pelo fato de os Estados Unidos se colocarem, aos olhos do mundo, diferenciando terroristas. Ou seja, os bons, como Posada Carriles, e os demais. Você tem sofrido ameaças da direita cubana, integrada por remanescentes do anterior regime e, até mesmo, repressores da ditadura de Fulgencio Batista (ditador derrubado pela Revolução Cubana, em 1959)?
Sim, fizeram-me ameaças pouco importantes, mas perseguiram-me economicamente para que eu não fale, para que não transmita minhas ideias. Entender de fora de Cuba o processo políti-
“Nunca fiz parte da chamada “oposição” nem tive algum enfrentamento ou colisão com o governo cubano”
so tome o poder. Tudo isso é muito perigoso para os Estados Unidos e para o mundo, principalmente para a América Latina. A política externa estadunidense pouco mudou. Claro que Obama me decepcionou.
“Em Miami, vivem terroristas, mas que estão cada vez mais em minoria. Eles têm seus protetores, incluído o próprio governo dos Estados Unidos”
Você vê possibilidade de, no governo Obama, ocorrer alguma mudança de postura dos Estados Unidos em relação a Cuba?
Em sua palestra no Rio de Janeiro, na atividade da Associação Nacional dos Cubanos Residentes no Brasil, você disse que o governo cubano informou ao governo dos Estados Unidos, no período do presidente Ronald Reagan, sobre a possibilidade de um atentado para assassiná-lo. Como é essa história?
A história é como contei. Nos anos 1980, um grupo extremista branco dos Estados Unidos tinha tudo preparado para assassinar o presidente Ronald Reagan. Cuba obteve essa informação e a transmitiu às autoridades daquele país. O atentado foi neutralizado e os extremistas presos, com todas as provas. O serviço secreto dos EUA agradeceu ao governo cubano. O irônico da história é que o governo estadunidense financiava e assessorava a tristemente célebre Fundação Nacional Cubano Americana, a qual, entre outras coisas, organizaria o plano de assassinato de Fidel Castro naquele ano.
Você, como cidadão estadunidense, revelou ter votado no presidente Barack Obama. Por que votou nele? E agora, está decepcionado ou repetiria tranquilamente o voto?
Brasil de Fato – Há quanto tempo vive em Miami?
Edmundo García – Há mais de dez anos. Por que decidiu sair de Cuba e ir para Miami?
Minha saída de Cuba se deveu a uma decisão pesso-
co do país é algo longo de explicar, mas te digo: está relacionado com a consciência de cada um, principalmente quando nos damos conta dos perigos e injustiças que Cuba enfrenta.
Queremos um pedaço do sonho americano, pede imigrante em cartaz
Não há dúvidas que Obama deu esperanças aos Estados Unidos e ao mundo, por sua cor, por sua inteligência e pela necessidade real de uma mudança, mas o establishment o engoliu. Falta-lhe caráter e, se não reagir logo, passará para a história como mais do mesmo. E a direita estadunidense vai radicalizar ainda mais ca-
Creio que Obama ainda está em tempo de cumprir tanto as promessas de campanha como as que fez na última Cúpula da Américas, em Trinidad y Tobago, aos presidentes da região; algo que não fez, mas, oxalá, corrija. Bastaria apenas que cumprisse o dito em Trinidad y Tobago e já estaria colocando um novo rumo em sua política em relação a Cuba. Fará isso? Não tenho grandes esperanças, mas aguardemos com a paciência de Jó, sempre com a certeza do que está em jogo para Cuba.
Alguma mensagem especial aos leitores do Brasil de Fato?
Ao Brasil, o gigante deste continente, ao seu povo, agradeço pela solidariedade, por ser uma força de importância vital dos novos tempos. Defender o direito de Cuba a sua soberania, sem ingerências nem embargos comerciais, é algo que ajuda a que esses mesmos direitos sirvam para esta nossa América. Não se deixem enganar por campanhas midiáticas pagas e vergonhosas contra a pequena, mas heroica e solidária, Cuba. Ajudem-nos a libertar os cinco heróis presos nos Estados Unidos.
Quem é Edmundo García, 42 anos, é um cubano que vive em Miami (EUA) há dez anos. Tem um programa de rádio cuja audiência alcança um milhão de ouvintes em todas as tardes, em AM e na internet, e onde defende a Revolução Cubana e denuncia ações da extrema direita do exílio cubano.
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O acesso à água no Haiti: entre a privatização e a solidariedade Reprodução
COOPERAÇÃO Os movimentos sociais que compõem a Via Campesina Brasil estão compartindo com os camponeses haitianos as experiências e técnicas de captação da água da chuva Thalles Gomes Ti Rivye Latibonit (Haiti) MUITOS SÃO os desafios do povo haitiano na tarefa de reconstrução do país após o terremoto de 12 de janeiro de 2010, que vitimou mais de 300 mil pessoas e desabrigou 1,5 milhão. No entanto, uma das demandas mais emergenciais – e que já dificultava a vida de milhões de haitianos bem antes do terremoto – é a do acesso à água limpa. Segundo dados da OMS (Organização Mundial de Saúde), um em cada dois haitianos não tem acesso à água potável. Se somarmos isso ao fato de que apenas 19% da população têm acesso ao sistema de saneamento básico, e que esses dados não contabilizam os danos da catástrofe de 12 de janeiro, podemos perceber a gravidade e centralidade da questão da água no panorama atual do país.
Crianças carregam vasilhas e garrafas d´água: metade dos haitianos não tem acesso à água potável
A ida de técnicos brasileiros ao Haiti e a visita de camponeses e lideranças haitianas ao Brasil vêm alastrando e divulgando as diversas técnicas de construção e utilização de cisternas Enquanto algumas multinacionais propõem como saída para esse dilema a privatização da água, transformandoa cada vez mais em mera mercadoria – a Nestlé, por exemplo, colocou em circulação no país, após o terremoto, cerca de 1 milhão de dólares em garrafas de água –, há os que buscam outras formas de so-
lidariedade. Os movimentos sociais que compõem a Via Campesina Brasil, por exemplo, estão compartindo com os camponeses haitianos as experiências e técnicas de captação da água da chuva. Solução Com índices pluviométricos anuais que variam de 500
mm nas regiões mais áridas a 2.500 mm nas montanhas, o Haiti possui uma média anual de incidência de chuvas semelhante a de algumas das regiões mais úmidas no Brasil. De fato, não falta água no Haiti, o que falta é um melhor aproveitamento da que já existe. Diante disso, a técnica de captação de água da chuva por meio de cisternas e seu posterior reaproveitamento, tanto para uso humano como para atividades produtivas agropecuárias, se configura como uma das soluções mais viáveis para o problema do acesso à água limpa no país. Uma troca de experiências nessa área já está em cur-
so há alguns anos entre movimentos camponeses haitianos e brasileiros. A ida de técnicos brasileiros ao Haiti e a visita de camponeses e lideranças haitianas ao Brasil vêm alastrando e divulgando as diversas técnicas de construção e utilização de cisternas. Entretanto, após o terremoto, tornou-se necessário intensificar e incrementar essa troca. Por esse motivo, uma parceria entre a Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza do Governo da Bahia, a Coordenação-Geral de Ações Internacionais de Combate à Fome do Ministério de Relações Exteriores e a Via Cam-
pesina Brasil está proporcionando a entrega de 1.284 cisternas emergenciais de polietileno às famílias camponesas haitianas. Formação Esse tipo especial de cisterna, com capacidade para armazenar até 8 mil litros de água, por ser feita de material mais flexível e financeiramente mais acessível, é o mais indicado para atender as necessidades emergenciais dos camponeses e camponesas haitianos. Essas 1.284 cisternas desembarcaram em solo haitiano no dia 10 de junho de 2010 e, através da ação da Brigada da Via Campesina Brasil no Haiti e movimentos camponeses haitianos, já começaram a ser distribuídas e instaladas em diversas regiões do país. Comunidades camponesas nos departamentos Norte, Noroeste, Nordeste, Latibonit, Central, Oeste, Sudeste, Nippes e Grandanse já receberam as cisternas. O passo atual é o da formação técnica e política, para que as comunidades beneficiadas possam não só instalar as cisternas em suas casas, como também compreender os entraves e desafios do acesso à água enfrentado no Haiti e no mundo. Essa formação já está em curso, organizada pelos movimentos camponeses haitianos e a Brigada da Via Campesina Brasil no Haiti. As primeiras cisternas já foram instaladas. A perspectiva é que, para o próximo período, 30 mil cisternas sejam enviadas ao Haiti. Um exemplo concreto de solidariedade entre os povos, que não precisa nem de armas nem de lucros para se efetivar.
ECONOMIA Alfonso Ocando/Prensa Miraflores
que eles mantêm seus câmbios vinculados ao euro, e perderam em produção 6 ou 8 vezes o que a Venezuela perdeu nos últimos anos.
Comparar e contrastar A ideia de que a Venezuela está enfrentando uma “crise econômica” é simplesmente equivocada, especialmente comparando-se com a Grécia Mark Weisbrot A CONTRAÇÃO da economia venezuelana observada no ano passado (como aconteceu na imensa maioria das economias do hemisfério ocidental), o racionamento de energia elétrica no país e a queda severa do valor da moeda local no mercado paralelo fizeram com que reportagens sobre a ruína econômica da Venezuela voltassem às manchetes. O The Washington Post, em uma matéria que mais parece um editorial, relata que a Venezuela está “presa em uma crise econômica” e que “anos de intervenções estatais na economia estão prejudicando brutalmente os negócios privados”. Mas há um importante fato que quase nunca é mencionado em reportagens sobre a Venezuela, pois não se encaixa na narrativa de um país que gastou selvagemente durante os anos de bonança e que, logo, como a Grécia, enfrentará seus dias de acerto de contas. É o nível da dívida governamental: atualmente, em cerca de 20% do PIB. Em outras palavras, mesmo triplicando o gasto social
real por pessoa, aumentando o acesso a saúde e educação e emprestando ou doando bilhões de dólares para outros países latino-americanos, a Venezuela estava reduzindo sua dívida durante a alta do preço do petróleo. Comparação A dívida pública caiu de 47,5% do PIB em 2003 para 13,8% em 2008. Em 2009, devido ao encolhimento da economia, esse passivo chegou a 19,9% do PIB. Mesmo se incluirmos a dívida da empresa estatal de petróleo, a PDVSA, a dívida pública venezuelana fica em 26% do PIB. A parcela estrangeira dessa dívida é menor que a metade do total. Compare esses números com os da Grécia, onde a dívida pública representa 115% do PIB e, estima-se, chegará a 149% em 2013. (A média da União Europeia é cerca de 79%). Dado o nível muito baixo das dívidas pública e externa do governo venezuelano, a ideia de que o país está enfrentando uma “crise econômica” é simplesmente equivocada. Com o petróleo a cerca de 80 dólares o barril, a Venezuela está obtendo um razo-
O presidente venezuelano Hugo Chávez
ável superávit em conta corrente, e tem um nível saudável de reservas. Além disso, o governo pode pedir dinheiro emprestado se necessário – há alguns meses, a China concordou em emprestar à Venezuela 20 bilhões de dólares como adiantamento ao pagamento de futuros fornecimentos de petróleo. Desafios No entanto, o país ainda enfrenta significativos desafios econômicos, alguns dos quais pioraram depois de medidas macroeconômicas equivocadas. A economia encolheu 3,3% no ano passado. A imprensa internacional tem dificuldade para entender, mas o verdadeiro problema foi que a política fiscal do governo foi muito conservadora – ao cortar gastos enquanto a economia se caminhava para a recessão. Foi um erro, mas, oxalá, o governo reverterá essa situação ra-
pidamente, com a expansão planificada do investimento público neste ano, incluindo 6 bilhões de dólares para a geração de eletricidade. O maior erro econômico do governo a longo prazo foi a manutenção de uma taxa de câmbio fixa e sobrevalorizada. Apesar do Executivo ter desvalorizado o câmbio em janeiro, de 2,25 bolívares para 4,3 bolívares o dólar para a maioria das transações estrangeiras, ele continua sobrevalorizado. A taxa do mercado negro está em mais de 7 bolívares o dólar. Câmbio sobrevalorizado Tal situação, por tornar, artificialmente, as importações mais baratas e as exportações mais caras, prejudica os setores de bens que não o petróleo e impede a diversificação da economia do país. Pior: a alta taxa de inflação (28% no último ano e uma média de 21% anuais nos últimos sete anos)
torna o câmbio mais sobrevalorizado a cada ano. (A imprensa também entendeu mal esse problema – a inflação, por si só, é muito alta, mas o principal prejuízo que traz à economia não é a elevação dos preços em si, mas uma crescente sobrevalorização da taxa de câmbio real.) Mas a Venezuela não está na mesma situação da Grécia – nem de Portugal, Irlanda ou Espanha. Nem da Letônia ou Estônia. Os quatro primeiros países estão presos em uma taxa sobrevalorizada – no caso, o euro – e implementam políticas fiscais pró-cíclicas (por exemplo, redução do déficit) que estão aprofundando suas recessões e/ou retardando suas recuperações. Eles não têm nenhum controle sobre políticas monetárias, prerrogativa do Banco Central Europeu. Os últimos dois países se encontram em situação semelhante, uma vez
Controle Já a Venezuela, pelo contrário, controla suas próprias políticas cambial, monetária e fiscal. O país pode usar políticas fiscais e monetárias expansionistas para estimular a economia, e, também, pode mudar a política cambial – deixando o câmbio flutuante. Um câmbio administrado – através do qual o governo não fixa um câmbio, mas intervém, quando necessário, para preservar a estabilidade cambial – beneficiaria muito mais a economia venezuelana. O governo poderia estabelecer uma taxa de câmbio em um nível competitivo e não teria que desperdiçar tantos dólares, como o faz atualmente, tentando reduzir a diferença entre o câmbio oficial e o paralelo. Embora houvesse previsões (como sempre exageradas) de que a inflação dispararia devido à mais recente desvalorização, ela não disparou, possivelmente porque muitas transações com o exterior acontecem no mercado paralelo de qualquer forma. A Venezuela está em uma boa posição para resolver seus atuais problemas macro-econômicos e buscar uma robusta expansão econômica, como o fez entre 2003 e 2008. O país não está enfrentando as consequências de uma crise, mas as de uma escolha política (do Counterpunch, originalmente publicado no The Guardian). Mark Weisbrot é economista e co-diretor do Center for Economic e Policy Research. É co-autor, com Dean Baker, de Social Security: the Phony Crisis. Tradução: Igor Ojeda
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internacional
Uma visão do conflito no Quirguistão ÁSIA CENTRAL Os enfrentamentos recentes entre quirguizes e uzbeques dificilmente podem ser resumidos como puramente étnicos Raphael Tsavkko Garcia À MEDIDA que o tempo passa e a situação no Quirguistão torna-se mais desesperadora para os refugiados e relativamente mais calma na cidade de Osh – principal foco dos enfrentamentos que vem ocorrendo recentemente –, o mito de que o conflito seja meramente étnico cai por terra, ao menos parcialmente. As mortes nos confrontos na cidade de Osh, no sul do Quirguistão, vêm depois da deposição do presidente Kurmanbek Bakiev, após uma violenta revolução que levou milhares de pessoas às ruas numa onda de violência avassaladora. Revoluções e conflitos não são novidades no Quirguistão, que já havia enfrentado outro processo revolucionário em 2005, conhecido como Revolução das Tulipas, que acabou com a deposição do ditador Askar Akayev, no poder desde 1990, e a posse do agora destituído Bakiev.
“Emerge um consenso de que nada disso ocorreu porque dois grupos étnicos não gostam um do outro” Luta por poder
Osh, em particular, também foi palco de conflitos sangrentos, quando, em 1990, uzbeques e quirguizes entraram em conflito pelo status político da região; a maioria uzbeque exigia um status especial ou a “devolução” da área ao Uzbequistão.
Mas, agora, o conflito dificilmente pode ser resumido como puramente étnico. É o que diz Mirsulzhan Namazaliev, quirguiz e editor do blog Neweurasia.net. Ele salienta que os “casamentos interétnicos são muito comuns na região do Vale do Fergana”, onde fica Osh, e que “a proximidade entre Uzbequistão, Tadjiquistão e Quirguistão, que ali fazem fronteira, torna a migração algo extremamente simples e corriqueiro”. Ekaterina Golubina, uzbeque e autora e tradutora do portal de mídia cidadã Global Voices Online, acredita que “ainda que haja, de fato, um embate maior entre membros das etnias uzbeque e quirguiz na região, é provável que o conflito se trate de uma luta por poder entre a elite deposta e a nascente”, ideia compartilhada pelos editores do blog Registan.net, uma das mais fiáveis fontes de informação em inglês sobre a região. Guerra civil
“Emerge um consenso de que nada disso ocorreu porque dois grupos étnicos não gostam um do outro. Há indícios de que o conflito começou como uma tentativa de desestabilizar o novo governo” [sob o comando de Roza Otunbayeva], dizem eles, que afirmam ainda que a queda do antigo governo quebrou de forma drástica a cuidadosa cadeia de poder no país, em especial no sul – de onde vinha a família de Bakiev. Ou seja, o que vemos é uma competição por poder em que dois grupos antagônicos se digladiam e os uzbeques aproveitam para exigir maiores direitos e liberdades civis, acabando por sofrer as consequências. Todos concordam que, de fato, existe um perigo de
Reprodução
quanto as Forças Armadas quirguizes são fracas, mal armadas e em pequeno número, o que talvez explique a ordem dada pela presidente interina de atirar para matar. O temor é o de que, confrontados com opositores bem armados, as forças de segurança locais não consigam controlar a situação e que o envio massivo de efetivos para o sul tenha deixado o norte – e, consequentemente, a capital do país, Bishkek – desprotegida e livre para a ação dos apoiadores do regime deposto. Potências
Homem e criança descansam em campo de refugiados no Uzbequistão, próximo à fronteira com o Quirguistão
Revoluções e conflitos não são novidades no Quirguistão, que já havia enfrentado outro processo revolucionário em 2005, conhecido como Revolução das Tulipas guerra civil no Quirguistão, mas descartam categoricamente um enfrentamento com o Uzbequistão, que tem se limitado a observar, reforçar suas fronteiras e coordenar os esforços para a chegada de, até o momento, mais de 100 mil refugiados do país vizinho. Mesmo com a certeza da morte de civis uzbeques, o governo desse país dificilmente teria vontade de intervir, de uma forma ou de outra. É o que acredita Namazaliev. Segundo ele, qualquer tipo de intervenção uzbeque seria vista como uma afronta à soberania do Quirguistão, sendo logo rechaçada.
Lições
Os editores do Registan.net lembram ainda que os conflitos em Osh em 1990, dada a magnitude e os mais de 300 mortos, serviram como uma poderosa lição para desencorajar qualquer tipo de hostilidade entre os países. Além disso, o presidente do Uzbequistão, Karim Islamov, teria maiores preocupações, como se manter no poder e solidificar seu governo repressivo, do que efetivamente intervir em assuntos estrangeiros. A relação entre os dois países, porém, sempre foi tensa, e, normalmente, os acontecimentos em um refletem no outro, como foi o caso da Re-
volução das Tulipas no Quirguistão, que acabou animando a oposição democrática e liberal uzbeque a sair às ruas e exigir democracia. Como consequência, entre 300 e mil pessoas foram massacradas na cidade de Andijan (os números até hoje são desconhecidos e nenhuma investigação independente jamais foi feita) e, desde então, o governo tem evitado dar qualquer espaço para contestação ainda que, de acordo com Golubina, o povo também tenha aprendido sua dura lição. Temores
É unânime a certeza de que a continuação do conflito no Quirguistão traria apenas mais sofrimento à população local e que todo esse processo se deu pela incapacidade do exército local em intervir a tempo e com firmeza. Namazaliev afirma ainda que o único exército minimamente capaz é o do Uzbequistão, enquanto tanto a polícia
O fim do conflito ainda está por vir. Por hora, espera-se alguma atitude das potências e da ONU, e até mesmo uma ação mais firme da Rússia, para que o conflito chegue ao fim e seja dada uma solução para o retorno dos refugiados. Golubina acredita que a comunidade internacional não deixará a região se tornar um palco de conflitos semelhante aos vizinhos Afeganistão e Paquistão. Mas, até agora, nenhum esforço internacional foi enviado para a região e apenas a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) considerou analisar os pedidos de ajuda vindos do país. Entrementes, a ajuda humanitária continua a chegar, vinda do norte, e uma imensa rede de blogueiros e ativistas foi formada para que a verdade possa ser espalhada e para que sejam minimizados os esforços de contrainformação que tanto facilitam o trabalho dos que ativamente tentam tornar o conflito ainda maior. Raphael Tsavkko Garcia é bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestrando em comunicação pela Faculdade Cásper Líbero
ANÁLISE Roosewelt Pinheiro/Br
O novo triângulo geopolítico do Oriente Médio A recente aproximação entre Irã, Turquia e Síria está criando um novo eixo regional que poderá causar impactos significativos na geopolítica da região. Reginaldo Nasser A GRANDE imprensa brasileira não deu o devido destaque para a visita que o presidente da Síria, Bashar Al-Assad, fez ao Brasil recentemente. Para desgosto dos críticos da política externa nacional, ele afirmou que o país tem credibilidade perante Israel e as nações árabes e, portanto, poderá exercer papel de destaque no processo de paz no Oriente Médio. É importante notar que os EUA desfrutaram, durante um bom tempo, de uma capacidade única para mediar os conflitos na região e, ao que tudo indica, continuarão a ter influência mais do que qualquer outro poder. Mas sua capacidade está sendo reduzida, cada vez mais, como reflexo de um dinamismo maior das forças regionais. O fortalecimento do poderio militar norte-americano em todas as partes do globo tem como propósito enviar uma mensagem para os inimigos, dissuadindo-os a não praticar determinados atos conside-
rados como ameaçadores do sistema internacional. Acreditava-se que as invasões militares no Afeganistão e Iraque teriam como consequência o alinhamento à política norte-americana dos estados denominados párias (Síria e Irã). Mas, no entanto, longe de se tornarem receosos de ser alvos de intervenções norte-americanas, os estados do Oriente Médio não se aliaram aos EUA; pelo contrário, buscaram fortificar seu poder por meio de alianças, deixando de lado rivalidades regionais.
Se reforçado – e é nessa possibilidade que o governo Lula aposta –, esse novo trio poderia diminuir ainda mais a influência dos EUA
O que aconteceria se, por exemplo, os EUA e Europa intensificassem uma pressão sobre a Turquia para escolher entre os dois lados
Novo eixo
A recente aproximação entre Irã, Turquia e Síria está criando um novo eixo regional que poderá substituir o tradicional triângulo árabe (Arábia Saudita, Egito e Síria) com impactos significativos na geopolítica da região. As visitas dos presidentes iraniano e sírio à Turquia e a participação deste último, juntamente com o Brasil, no episódio do problema nuclear iraniano são fortes indicações de um novo sentido de aliança que está sendo observado com muito interesse e preocupação no Ocidente e, principalmente, em Israel, que vive, no momento, uma crise de governo. O ministro de Relações Exteriores de Israel, Avigdor Lieberman, contestou duramente o encontro secreto que o premiê Benjamin Netanyahu teve com representantes do governo turco na tentativa de reaproximação dos dois governos. Se reforçado – e é nessa possibilidade que o governo Lula aposta –, esse novo trio poderia diminuir ainda mais a influência dos EUA, evitando, ao mesmo tempo, polarização com setores mais radicais no Oriente Médio, ao introduzir uma diversificada composição de forças e objetivos.
Recursos
Cada um desses atores (Irã, Turquia e Síria) possui impor-
prometimento com os EUA (Egito e Arábia Saudita) minaram a credibilidade desses governos perante árabes e muçulmanos.
Lula recebe o presidente da Síria, Bashar Al-Assad, no Itamaraty
tantes recursos estratégicos: o Irã é uma potência energética do golfo Pérsico e tem crescente influência política na região (Hizbollah, Hamas e xiitas no Iraque); a Síria é uma nação árabe estável com importantes recursos militares e econômicos; a Turquia é uma potência euro-asiática emergente e membro da OTAN. Apesar de separados por idioma e uma experiência histórica imperial, a Turquia tem reforçado os laços econômicos com seus vizinhos, abriu as suas fronteiras e realizou uma ampla consulta sobre importantes questões regionais com os países muçulmanos. Assiste-se, ao mesmo tempo, a uma progressiva deterioração das relações com o governo de Israel devido à questão palestina.
No aspecto comercial, os três países têm mantido uma política de fronteiras abertas e podem criar um mercado de mais de 150 milhões de pessoas. A discordância da Síria com o Egito sobre a questão palestina e suas tensões com a Arábia Saudita sobre a questão iraniana – entre outros fatores – serviu para minar a unidade do chamado triângulo árabe, que exerceu uma importante influência sobre a geopolítica do Oriente Médio durante décadas. Questões
Desacordos sobre a melhor forma de responder às guerras israelenses no Líbano e em Gaza, as divergências em lidar com o Hizbollah e o Hamas, e o excessivo com-
Todas essas perspectivas são muito importantes, mas serão duradouras? O que aconteceria se, por exemplo, os EUA e Europa intensificassem uma pressão sobre a Turquia para escolher entre os dois lados? Ou, se a Arábia Saudita e o Egito ofereceram à Turquia um papel central nos assuntos regionais, como parte de um novo eixo apoiado pelo os EUA e Europa? E se Barack Obama exercer influência sobre a Turquia para ser sua nova voz na região, em vez do Egito e a Arábia Saudita? Seja qual for a resposta a essas questões, o fato é que, tal como um extremado pensador conservador (Samuel Huntington) admitiu, a contragosto, “os povos e governos das civilizações não ocidentais já não são objetos da história, enquanto alvos da colonização ocidental, mas juntam-se ao Ocidente como agentes e sujeitos da história”. (Carta Maior) Reginaldo Nasser é professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)