Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 8 • Número 386
São Paulo, de 22 a 28 de julho de 2010
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“Doença genética” ameaça economia da União Europeia A crise econômica e política da União Europeia (UE) tem como sua principal causa uma falha que advém da própria fundação do bloco. Esta é a análise de especialistas como José Luis Fiori e Immanuel Wallerstein, em entrevistas ao Brasil de Fato. Segundo eles, o problema central é o fato de a UE ter uma única moeda, o euro, mas não uma administração central. Com a crise, a Alemanha de Ângela Merkel vem assumindo uma postura de liderança “egoísta” no continente, de acordo com Fiori, o que tem ofuscado a posição de outras nações e ameaçado a coesão do bloco. Págs. 10 e 11
Eduardo Sales de Lima
IMS
PMDB exerce domínio total no estado do Rio de Janeiro O Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) exerce um domínio histórico no Rio de Janeiro. A legenda controla o governo, a Assembleia Legislativa, a prefeitura e a câmara da capital. Para completar seu controle da máquina, o partido ainda acumula força em estatais e no Judiciário. Pág. 5
A escassez de água imposta aos palestinos por Israel Armazenar o máximo de água possível é um ato de sobrevivência na Palestina. O abastecimento, controlado por Israel, ocorre a cada cinco dias. É o que relata ao Brasil de Fato o engenheiro palestino Yousef Awayes, do Ministério das Águas da Autoridade Nacional Palestina. Pág. 9
Moradores de Mutum-Paraná, distrito que desaparecerá por causa da hidrelétrica de Jirau
Obra em andamento não freia a luta no rio Madeira A construção do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, em Rondônia, vem atingindo diretamente as
famílias que compõem sua renda e modo de vida por meio do rio. A atual situação da vila de pescadores de
São Sebastião e do distrito de Mutum-Paraná retrata bem tal realidade. Para piorar, o deputado federal
Moreira Mendes (PPS/RO) criminaliza os moradores que resistem comparandoos a terroristas. Pág. 3
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e as
O julgamento do ditador Em entrevista, o membro da organização H.I.J.O.S. Martín Notarfrancesco fala sobre o significado do
juízo contra Jorge Rafael Videla, primeiro presidente da última ditadura argentina. Pág. 12
ISSN 1978-5134
cores da resistência Pág. 8
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de 22 a 28 de julho de 2010
editorial NO DIA 17, acabou o prazo regimental de funcionamento da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI contra a reforma agrária), instalada no Congresso Nacional. Durante oito meses, dezenas de oitivas com entidades de apoio à reforma agrária e órgãos de governo foram realizadas, investigações foram feitas e nada foi encontrado que pudesse incriminar os movimentos sociais que lutam por reforma agrária. E o relatório final do deputado federal Jilmar Tatto (PT/SP) aponta a improcedência das denúncias contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e as entidades de apoio à reforma agrária. A verdade é que, enquanto a comissão funcionava plenamente, com dezenas de audiências, os ruralistas estavam ausentes. A senadora Kátia Abreu (DEM/TO), por exemplo, não participou de nenhuma sessão, embora tenha sido a maior defensora da sua instalação. Ou seja, dinheiro público foi gasto em uma CPMI criada como dispositivo de criminalização dos movimentos sociais e contra avanços na reforma agrária. Agora, esses mesmos parlamentares ruralistas – mesmo sem participarem da maioria das sessões – insistem que a comissão está prorrogada por mais seis meses. E, para forçar a continuidade de algo nitidamente já acabado, os representantes do latifúndio apelaram ao levantarem assinaturas para a prorrogação. E acabaram criando
debate
O que eles não querem é a reforma agrária uma confusão jurídica: em comissões parlamentares mistas de inquérito, onde participam deputados e senadores, as decisões devem ser tomadas em sessões do Congresso Nacional. Como não conseguiram, o vice-presidente da CPMI, deputado Onyx Lorenzoni (DEM/RS), lança mão de uma manobra regimental e argumenta que basta o Senado fazer a leitura do requerimento. Frente a essa manobra, o senador Eduardo Suplicy (PT/SP) foi o primeiro a questionar o método dos ruralistas e recorreu à Comissão de Constituição e Justiça do Senado. O deputado José Genoíno (PT/SP) fez o mesmo questionamento na Câmara, que encaminhou a decisão para o presidente do Congresso. Para complicar o meio de campo, o relatório do deputado Jilmar Tatto (PT/SP) não foi votado. Em comunicado oficial, o MST denuncia a utilização dessa CPMI pelos ruralistas para barrar qualquer avanço da reforma agrária, promover a criminalização dos movimentos sociais, ocupar espaços na mídia e montar um palanque para a campanha eleitoral. Para o movimento, se os ruralistas conseguirem
atropelar o regimento do Congresso Nacional, senadores e deputados serão coniventes com a criação de um fato político, que será utilizado pelos setores conservadores nas eleições contra a reforma agrária e as organizações sociais. O MST é um dos alvos dos ruralistas, que cada vez mais se apoiam no parlamento para impedir o cumprimento da Constituição Federal. Hoje, mais de 15 projetos tramitam no Congresso e vão de encontro aos direitos sociais conquistados pelos pobres e camponeses. Indígenas e quilombolas também sofrem com a atuação ruralista e veem seu direito à demarcação de terras ameaçado cotidianamente. A defesa da propriedade privada, em detrimento do respeito da função social da terra, ultrapassa os limites do que seja socialmente saudável e sustentável. A aprovação do relatório do deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB/ SP) na comissão especial que discute alterações no Código Florestal, na primeira semana de julho, é outro exemplo. Além de outros pontos, o documento prevê anistia a todos os latifundiários criminosos que desrespeitaram o Código Florestal
até julho de 2008. Nesse caso, são perdidos milhares de hectares que deveriam ser destinados à reforma agrária. Além disso, libera novas áreas, para expansão do latifúndio, de terras frágeis, mas férteis, em beiras de rios e nascentes. É a permissão do desmatamento e da manutenção da propriedade privada sob qualquer custo. Com os índices de produtividade do campo, a lógica permanece a mesma. O medo da distribuição de terras para os mais pobres deste país fazem com que, novamente, o parlamento brasileiro seja usado para que o cumprimento da Constituição e da Lei Agrária seja impedido. Os índices usados atualmente são de 1975. Mesmo com toda a produtividade propagandeada pelo agronegócio, os ruralistas não aceitam a atualização dos parâmetros utilizados para definir o que é produtivo ou não. O nível de insanidade chega naquilo que o senso comum já condena como absurdo: o trabalho escravo. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do trabalho escravo está há mais de oito anos parada no Congresso Nacional por imposição da mesma bancada ruralista. A es-
crônica
Frei Betto
Cuba: Estado e Igreja em parceria
cravidão viola os direitos humanos e, se um proprietário de terra utiliza sua propriedade como instrumento para isso, deve perdê-la, sem direito a indenização. É aí que a proposta se torna inviável para os ruralistas, mesmo que milhares de pessoas, inclusive crianças, estejam com a sua dignidade destruída. A desapropriação de terras para fins de reforma agrária será sempre combatida pelo latifúndio. O estado de direito do latifúndio só existe para a defesa da propriedade privada. Leis e conceitos importantes, conquistados pelo povo ao longo da história e consolidados com a Constituição de 1988, são diuturnamente ameaçados e até ressignificados em nome do interesse ruralista. Se a sociedade brasileira não estabelecer um limite para os setores do atraso, as consequências serão desastrosas. O agronegócio faz com que o Brasil seja o campeão em consumo de venenos agrícolas, utiliza mão-de-obra escrava, expulsa o homem do campo para as periferias das cidades. É nocivo não só pelo que a natureza já reclama com a sua má exploração, mas também pelo seu modelo concentrador de terras nas mãos de poucos. Até quando teremos que aguentar os desmandos daqueles que deveriam representar os interesses do povo e estão utilizando o parlamento para instituir o atraso social? Eis uma boa reflexão.
Luiz Ricardo Leitão
“Futebol não é o mais importante”
Gervasio Umpiérrez
COMO ENTENDER que o Estado cubano, num país socialista, aceite a mediação da Igreja Católica para libertar presos de consciência, como lá são chamados os presos políticos A figura central nesse processo é o cardeal Jaime Ortega, 73, arcebispo de Havana. Hábil negociador, ele foi vítima, no passado, do sectarismo esquerdista que, sob influência da União Soviética, atiçou a perseguição religiosa. Ainda seminarista, nos anos 1960 Ortega foi enviado a um campo de “reeducação ideológica”. Apesar disso, jamais demonstrou ressentimento e nem se aliou aos que deram as costas à Revolução. O período esquerdista da Revolução Cubana – repudiado publicamente por Fidel – congelou as relações Igreja-Estado. Entre 1964 e 1981, bispos e autoridades não se falaram. Ao me encontrar com Fidel pela primeira vez, em 1980, ele me fez a proposta de intermediar a retomada do diálogo. No ano seguinte, participei da reunião da conferência episcopal, em Santiago de Cuba, quando expus a proposta. Os bispos a acolheram como um sinal positivo. Pouco depois, Fidel os recebeu em audiência. Em 1985, o líder cubano concedeu-me longa entrevista sobre a questão religiosa, publicada sob o título Fidel e a Religião. O livro causou impactou na população, cuja religiosidade possui forte raiz sincretista, mescla entre catolicismo e tradições de origem africana. Era a primeira vez que um dirigente comunista no poder abordava o tema da fé de modo respeitoso e, inclusive, admitindo que sua formação religiosa aprimorara-lhe o caráter. Num país de 11 milhões de habitantes, 1,3 milhão de cópias foram editadas até hoje. Na opinião de um bispo cubano, o livro “tirou o medo dos cristãos e o preconceito dos comunistas”. Em 1986, a Igreja promoveu o Encontro Eclesial Cubano, versão local de um miniconcílio para traçar novas diretrizes pastorais. O bom entendimento entre Igreja e Estado viu-se subitamente interrompido pela queda do muro de Berlim. O cardeal Law, de Boston, ao pregar o retiro dos bispos, insistiu que o efeito dominó da falência do socialismo não pouparia Cuba, e os bispos, à semelhança do episcopado polonês, deveriam se assumir como novos Moisés capazes de conduzir o povo à democracia... Em janeiro de 1990, Fidel veio ao Brasil para a posse do presi-
dente Collor. Fui ao seu encontro em Brasília. Insisti na continuidade do diálogo e, pouco depois, desembarquei em Havana para entrevistar-me com Jaime Ortega. Foi a primeira e única vez que o vi pessimista. Não acreditava que o governo tivesse boas intenções. Talvez esperasse, para breve, o fim da Revolução. Cuba não foi atingida pelo furacão neoliberal que assolou o Leste europeu, e uma série de circunstâncias favoreceu a visita do papa João Paulo II ao país, em 1998. Fidel convidou a mim e a um grupo de teólogos, entre eles Leonardo Boff, para assessorá-lo no decorrer da visita papal. Cabia-nos “decifrar” a linguagem e os protocolos eclesiásticos. O êxito da viagem – o papa não condenou o regime cubano, como queria Bush, e elogiou suas conquistas sociais – e a empatia que se criou entre Fidel e Woityla reabriram os canais de diálogo. Porém, Fidel, por razões de saúde, se afastou do comando do governo em 2006, quando então Raúl Castro assumiu. Intensifiquei minhas viagens a Havana para aprofundar a questão religiosa com Raúl e Caridad Diego, chefe da Oficina de Assuntos Religiosos (uma espécie de Ministério do Culto). Decidiu-se comemorar, em março último, os 25 anos de lançamento de Fidel e a Religião. Todas as denominações religiosas atuantes no país foram convidadas. Raúl esteve presente e lamentou que nenhum bispo católico tivesse comparecido. Na mesma noite, jantamos juntos. Falamos da ação pastoral da Igreja Católica junto aos pri-
sioneiros e de como a Revolução só teria a ganhar com a libertação dos presos de consciência, sem acusações de delitos de sangue ou atos terroristas. A 10 de maio Raúl Castro recebeu, pela primeira vez, o cardeal Jaime Ortega. A conversa prolongou-se por cinco horas. O arcebispo solicitou a transferência dos presos para locais próximos às suas famílias e mostrou a disposição da Igreja em colaborar para que fossem anistiados. O governo considerou que valia a pena apostar na proposta do cardeal e, assim, evitar gestos extremistas, de ampla repercussão internacional, como greves de fome levadas às últimas consequências. Jaime Ortega nada tem de progressista e, muito menos, de anticomunista. Seu papel, como pastor, é criar condições favoráveis à evangelização do povo cubano. E ele sabe que iniciativas humanitárias como a libertação de prisioneiros não apenas reforçam o prestígio da Igreja mas, sobretudo, testemunham profunda fidelidade ao Evangelho. E, de quebra, dão provas da tolerância da Revolução. O que tanto a Igreja quanto o Estado mais esperam, agora, é que Obama liberte os cinco cubanos presos nos Estados Unidos, desde 1998, acusados de espionagem. Esta é a condição para a retomada de um diálogo positivo entre Washington e Havana, tendo em vista a suspensão do bloqueio imposto pelos EUA a Cuba.
PERTENÇO A UMA geração cuja iniciação nos segredos mais transcendentais deste mundo se deu, em grande parte, pela leitura da obra luminosa de Monteiro Lobato. Nosso imaginário povoou-se desde cedo com as personagens e causos do escritor de Taubaté... Graças ao tapete mágico de sua sedutora ficção, viajávamos nos serões de Dona Benta pelos mais diversos rincões do tempo e do espaço, desde a prodigiosa mitologia clássica greco-romana até as fábulas universais do Visconde ou as histórias bem brasileiras de Tia Nastácia. Que oportunidade rara esta de conhecer o outro lado da vida sem carecer de drogas milionárias – e contentando-se apenas com o poder miraculoso do pó de pirlimpimpim da Emília... Surpreendeu-me constatar, já no final do século 20, em Cuba, a adoração que os discípulos de José Martí nutriam por nosso prosador. Muitos haviam lido as aventuras da turma do Sítio do Pica-pau Amarelo em singelas traduções editadas no arquipélago, ao passo que outros a conheceram pela série televisiva que a emissora local exibia desde os anos 1980. Logo percebi, porém, que o reino encantado de Lobato era uma contraface multicolorida da sutil criação de Martí, cuja prosa e poesia serviam igualmente de referência às ambiciosas pautas de vida do povo caribenho. Acossada pelo tsunami neoliberal da década de 1990, Cuba resistiu bravamente às sereias da pós-modernidade, optando por postular uma globalização da solidariedade em lugar de aderir cegamente aos ditames nefastos do Consenso de Washington. Para que esse processo lograsse algum êxito, contudo, foi absolutamente imprescindível aplicar a pedagogia martiana nas lides diárias da Revolução. Por isso, em todos os espaços por onde circulava, no interior ou na capital, lá estavam as frases e aforismos do “Apóstolo da Independência”, secundados por outros pensamentos de Che & Fidel, lembrando a todos que “pátria é humanidade” e que “trincheiras de ideias valem mais do que trincheiras de pedras”. Embora eu fosse um “homem de letras”, jamais lograra aquilatar até então a dimensão colossal da cultura letrada na formação de um povo. A ‘revelação’ me sobreveio de forma tragicômica num ônibus habanero superlotado, onde dois adolescentes da fuzarca provocavam uma senhora já bem idosa (mas forte e atarracada), imprensando-a contra a roleta nas curvas e freadas da viagem. De repente, enfezada com os moleques, ela passou a esmurrar as costas do mais próximo, causando um enorme pasmo em todos os passageiros, inclusive neste escriba que vos fala, que não passava de um extranjero em terras caribenhas. Todos se perguntavam qual seria o desfecho daquele insólito episódio, quando a trocadora interveio de modo providencial, sem sequer mover-se de seu assento, sentenciando: – Compañera, ¡sin perder la ternura!... O efeito da frase foi imediato: iluminados pelo poder terapêutico do verbo, todos se apaziguaram dentro do veículo, inclusive as duas pestes, seguindo seu percurso sem novos incidentes. Evoco essa passagem agora, quando a ressaca da Copa já passou, ao ler uma sábia entrevista do técnico uruguaio Oscar Tabárez, em que este rejeita a manipulação política de sua seleção e deixa claro que, a seu juízo, as causas sociais de sua terra são bem mais relevantes do que um time de futebol: “Não estou de acordo que deem prioridade ao futebol num país que não tem política de esporte. Existem coisas mais importantes, reitero.” É claro que ele está falando de saúde, educação e outros itens básicos que qualquer sociedade dita civilizada deveria assegurar a todos os seus cidadãos – eis a lição sumária do treinador, sem dúvida um craque da pelota e da palavra, que faz jus à tradição do patrício Galeano. Cá em Bruzundanga, os livros andam um pouco esquecidos, mas as lições não param de surgir na tela platinada. Já que os leitores escasseiam, não descuidemos dos milhões de espectadores que hoje se iniciam nos ardis de nossa versão periférica da sociedade de consumo hipertrofiada, marca registrada desta era que o crítico estadunidense Fredric Jameson chama de pós-moderna. Apesar do bombardeio alucinante da mídia, ainda há tempo para refletir sobre os ensinamentos que eventos nada virtuais, como o fiasco da seleção de Dunga & Ricardo Teixeira, ou a escabrosa história do goleiro Bruno, propiciam ao público. Enquanto as empresas se preocupam apenas em forjar mais e mais consumidores, fazendo com que a nova classe média gaste até 60% de seus salários comprando tênis de marcas importadas ou colecionando réplicas de bolsas Louis Vuiton a R$ 700,00 (!), muita gente simples se indaga: de que vale ter tanto dinheiro se a cabeça – e a consciência social – continua a ser tão vazia e destrambelhada? Eis aí um ótimo aperitivo para se discutir o modelo de prosperidade (?) de uma província que se vangloria de ser a 8ª economia do globo, mas cujo ensino público está falido e os índices de violência não logram diminuir. Afinal, como nos disse o hermano, o futebol, definitivamente, não é o mais importante...
Frei Betto é escritor, autor do romance Um homem chamado Jesus (Rocco), entre outros livros.
Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil (lançado em 2009 pela Expressão Popular).
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
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Vila de “pescadores” só no nome RIO MADEIRA Apesar de contratados pelo consórcio que está construindo a usina Santo Antônio, renda de moradores diminuiu Eduardo Sales de Lima enviado a Porto Velho, Mutum-Paraná e Jaci-Paraná (RO) AS POPULAÇÕES desalojadas forçadamente por grandes obras de infraestrutura como usinas hidrelétricas são, na maioria dos casos, as principais vítimas dessas construções. No caso do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, muitas famílias atingidas compunham sua renda e modo de vida com o extrativismo tradicional ligados à dinâmica sazonal do rio, como a pesca, a coleta de frutos e o plantio de hortaliças e leguminosas nas ribeiras. A vila de pescadores de São Sebastião retrata bem o caso dessas famílias atingidas. Ela está localizada próxima à construção da usina hidrelétrica Santo Antônio, a 7 quilômetros de Porto Velho (RO). “Aqui era uma boa área para pescar”, conta Regi-
Eduardo Sales de Lima
no, pescador e morador do local. Ele explica que, por causa da construção da barragem, já não ocorre o fenômeno da piracema como antes do início de sua construção. “Já no ano passado, por causa da construção, só subiram os [peixes] ‘barbas-chatas’”, conta Regino. Existem no rio Madeira mais de 750 espécies de peixes.
Proibida de pescar, a maioria dos moradores da Vila São Sebastião não teve outra opção a não ser trabalhar para uma empresa de proteção à fauna e à flora, contratada pelo consórcio. Os pescadores recebem, em média,
Segundo Raimundo, a renda não melhorou, simplesmente porque “R$ 700 a gente fazia por semana, e só vendendo dourados”
“Já no ano passado, por causa da construção, só subiram os [peixes] ‘barbas-chatas’”, conta Regino
R$ 700 pelo serviço. Porém, segundo Raimundo, a renda não melhorou, simplesmente porque esses “R$ 700 a gente fazia por semana, e só vendendo dourados”. (Colaborou Alisson Cleiton)
Outro morador da vila é Raimundo. Há 14 anos trabalhando como pescador, ele revela que agora, em julho, seria a melhor época do ano para pescar. “Por causa da usina, a quantidade de peixe é bem menor. Agora era época de pescar apapá e piramutaba”, explica, com saudade dos tempos idos. “Aqui dava muito dourado, de três a quatro por dia”, arrebata. Segundo ele, o que piorou a condição dos pescadores é que o consórcio Santo Antônio Energia proibiu a pescaria em diversas localidades próximas à vila.
Para entender
Rede sem peixe: Raimundo pescava até quatro dourados por dia
Resistência criminalizada no rio Madeira
Aumenta a pressão por “troca” de Mutum
Leonardo Prado/Agência Câmara Eduardo Sales de Lima
Moradores criticam consórcio da usina de Jirau por falta de diálogo do enviado a Porto Velho, Mutum-Paraná e Jaci-Paraná (RO) As empresas que produzem energia elétrica para a venda no “mercado livre” começaram a poder utilizar o mecanismo de desapropriação por interesse público durante a construção de usinas hidrelétricas, que desalojam forçadamente as populações atingidas pelas obras. Isso é o que explica o advogado do setor de direitos humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Leandro Scalabrin. O mecanismo teria começado na era das privatizações do setor elétrico no país, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Por outro lado, de acordo com o advogado, não houve nenhuma medida legislativa, no sentido de definir o conceito legal de população atingida por barragem, os direitos das populações desalojadas e afetadas pelas hidrelétricas, ou no sentido de criar um órgão estatal responsável pela promoção das indenizações. Isso permitiu, segundo ele, que o poder de realizar todos esses atos ficasse nas mãos dos investidores, o que se tornou “a principal causa de violações de direitos humanos na construção de barragens no Brasil e de impunidade das empresas”. Tais informações lançam luz aos caminhos que desembocaram no atual tratamento que a GDF/Suez oferece às comunidades atingidas pela usina de Jirau, no rio Madeira. A 120 quilômetros de Porto Velho (RO) situa-se o distrito de Mutum-Paraná, que desaparecerá por causa do funcionamento da hidrelétrica. Desde o dia 14 de junho até o início de julho, 14 das 118 famílias do distrito se instalaram
Piracema – Fenômeno no qual os peixes nadam em direção à nascente para realizar a desova, de modo a poderem se reproduzir.
Deputado relaciona movimentos sociais a “terroristas” do enviado a Porto Velho, Mutum-Paraná e Jaci-Paraná (RO)
Negão e Rovaldo criticam pressão da Suez
numa nova cidade planejada que será chamada de Nova Mutum. A localidade comportará 1.600 residências e equipamentos públicos como escola, posto de saúde, prédios para administração pública municipal e estadual e terminal rodoviário. O consórcio de Jirau garante que os moradores terão uma vida boa. Mas não é o que pensa o líder comunitário Rovaldo Herculino Batista. “Lá vai ser pior que aqui, que tem garimpo pelo menos; lá não tem nada [para trabalhar]”, argumenta o morador de Mutum-Paraná. Além da casa em Nova Mutum, que custaria R$ 50 mil, Rovaldo informa que o consórcio Energia Sustentável, comandado pela empresa franco-belga GFD/Suez, também pode oferecer uma indenização que chega no máximo a R$ 35 mil. O agricultor, entretanto, revela que o consórcio de Jirau assedia os moradores de Mutum-Paraná em meio a uma forte pressão psicológica. “Eles sempre batem na tecla de que, se nós ficarmos aqui e não aceitarmos os acordos, não teremos nem energia, nem saúde e nem educação”, conta. “Infelizmente, muita gente aceitou essa mixaria e fez o acordo”, diz Rovaldo. Dentre os que não aceitaram está José Silvério Cardoso, também conhecido como Negão. “Fi-
zeram uma proposta máxima de R$ 21.900 pela minha casa aqui em Mutum-Paraná e depois ficou uma dificuldade falar com eles”, destaca Negão, que terá 21 alqueires inundados pelas águas da barragem de Jirau. “Eu quero o direito de morar com minha mulher e minha filha onde eu quiser”, pondera. Ao lado de Negão, ainda existem mais 56 famílias dispostas a negociar, mas que não aceitam os questionáveis termos impostos pelo consórcio. “Posso até estar pessimista, mas acredito que não vai dar certo; eu sei de muita gente que já está querendo vender essa casa em Nova Mutum”, revela Rovaldo. Entre os dias 13 e 17 de maio, por sinal, a transnacional GDF/Suez, que terá a concessão da usina hidrelétrica de Jirau por 35 anos, foi condenada pelo Tribunal Permanente dos Povos (TPP), em Madri (Espanha), ao lado de outras empresas que integram a construção do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, como o Banco Banif, de Portugal, e o Banco Santander, da Espanha, por cometer “graves, claras e persistentes violações dos princípios, normas, convênios e pactos internacionais que protegem os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais das pessoas”. (ESL, colaborou Alisson Cleiton)
Para legitimar a construção do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, está ocorrendo uma criminalização de qualquer reação social autônoma. É o que interpreta o sociólogo Luiz Fernando Novoa, da Universidade Federal de Rondônia (Unir), a partir de discurso do deputado federal Moreira Mendes (PPS/RO), realizado em 18 de maio. Com base em informações “sigilosas”, Mendes “denunciou” na Câmara dos Deputados, em Brasília (DF), a existência de uma suposta ameaça de “invasão terrorista” à usina hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira. À época, ele afirmou que um grupo, liderado pelo Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), estaria preparando tal ação para 21 de maio, em represália ao consórcio Energia Sustentável, comandado pela transnacional franco-belga GDF/ Suez, que venceu o leilão para a concessão da usina hidrelétrica de Jirau. De acordo com o parlamentar, as informações que detinha eram de que o grupo formado por índios kaxarari, garimpeiros, comunidades dos distritos de MutumParaná e Extrema, além dos integrantes do próprio MAB, teria mapeado os pontos estratégicos da obra, como o paiol de explosivos utilizados para dinamitar as rochas, a planta de combustíveis e as centrais de refrigeração (onde é armazenada a amônia). Mendes chegou a destacar que ocorreria uma “ação planejada, arquitetada nos mínimos detalhes, a
Mendes, considerado o braço político dos consórcios
fim de produzir o maior impacto possível”. Mais de dois meses se passaram e nada aconteceu. De seu lado, Océlio Muniz, da coordenação regional do MAB em Rondônia, se viu obrigado a comentar o caso. “O movimento não pensou em nenhum momento fazer uma ação desse tipo”, explica. Segundo ele, as pessoas das comunidades atingidas por Jirau estavam se organizando para lutar por seus direitos, primeiramente a partir de “um amplo debate realizado sobre as ações da Suez, que está privatizando o rio Madeira”.
“A resposta do seu braço repressivo [o deputado] foi criminalizar o MAB ou qualquer vinculação da comunidade com a organização” Em vista disso, Muniz pondera que a empresa se utilizou de “um de seus por-
ta-vozes”, no caso, o deputado federal Moreira Mendes, para “frear o processo de organização das famílias, confrontar os operários da construção da usina hidrelétrica com as comunidades e criminalizar o MAB”. O sociólogo Luiz Fernando Novoa soma-se ao coro com Océlio Muniz e destaca o caso de Mutum-Paraná (distrito próximo a Jirau), em que a própria comunidade se levantou diante da intransigência e da falta de diálogo por parte da GDF/ Suez. “A resposta do seu braço repressivo [o deputado] foi criminalizar o MAB ou qualquer vinculação da comunidade com a organização”, explica. Reforçando a opinião de Novoa, o Tribunal Permanente dos Povos, ocorrido em Madri, também condenou a Suez por negar os direitos das comunidades atingidas por grandes obras. Além disso, o TPP denunciou as constantes tentativas de criminalização dos movimentos sociais por parte do aparato privado-estatal ligado à construção de grandes obras de infraestrutura, como usinas hidrelétricas, e ratificou o direito das comunidades atingidas à resistência, organização e mobilização de todas as vítimas em defesa do território. (ESL, colaborou Alisson Cleiton)
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Onde o chão é para bem poucos HABITAÇÃO STJ declara que Cohab firmou contratos fraudulentos para 37.751 imóveis na Cidade Industrial de Curitiba (CIC) Pedro Carrano
Pedro Carrano de Curitiba (PR) O CHÃO EM Curitiba é muito caro. É o que pensa o morador e liderança do Jardim Eldorado, Osmano Reis. A rotina de reuniões e as “correrias” da Associação de Moradores Esperança e Nova Conquista, que ele preside, aumentaram este ano. A Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab), ligada à gestão da prefeitura, motivo constante de críticas dos movimentos de moradia, agora está contra a parede. Em fevereiro, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou os contratos feitos pela companhia para a regularização de imóveis em 12 vilas. Parte delas na região do “Bolsão Sabará”, local de habitação de trabalhadores na Cidade Industrial de Curitiba (CIC). Desde os anos de 1990, a Cohab vinha fornecendo contratos de termos de concessão de uso do solo aos moradores. A companhia, porém, realizou o parcelamento a partir de uma área total, onde na verdade não havia projeto, como denunciam os advogados do movimento popular. Para eles, os termos de concessão de uso não eram claros, dando a entender que os ocupantes seriam os proprietários do chão onde vivem, podendo inclusive negociá-los – algo proibido por lei nesse formato de contrato. Mas o principal ponto é que a Cohab não é a dona dos lotes que colocava à venda.
“A Cohab vendeu uma área que não é dela. Fizeram o registro em nome de quem? Fomos saqueados” Nos últimos anos, um grupo de moradores desconfiou dos contratos e abandonou as prestações. Pneus foram queimados. O gesto fez com que o Ministério Público entrasse com ação civil pública em nome das associações de mora-
Assembleia em Sabará, na Cidade Industrial de Curitiba
dores pela anulação dos contratos. Agora, é público que 37.751 imóveis foram negociados pela companhia sem margem legal. “A Cohab vendeu uma área que não é dela. Fizeram o registro em nome de quem? Fomos saqueados pela Cohab. Hoje o invasor é a Cohab. E não tem como dar o que não é dela”, expõe uma liderança do Jardim Eldorado. O número de famílias afetadas pode ser ainda maior que o de lotes. Afinal, diferentes núcleos familiares muitas vezes vivem em um mesmo terreno. Os dados sobre o número exato de famílias afetadas, de acordo com Juliana Avanci, advogada da Terra de Direitos, que assessora os moradores, não é divulgado com precisão pela Cohab, assim como a quantidade de imóveis que já estariam regularizados. As informações são divergentes. A Cohab ainda não respondeu os documentos enviados pela associação de moradores. A companhia defende-se na mídia afirmando que cerca de 80% dos imóveis estão regularizados. Mas moradores presentes nas assembleias populares mostram as mãos vazias, sem a escritura da propriedade. A empreitada dos anos de 1990 forneceu bons rendimentos à companhia de habitação, de capital misto. O advogado Felipe Spack, do coletivo de advogados populares
Formatos de organização “Nosso movimento popular é para assegurar que todos tenham acesso à moradia” de Curitiba (PR) Localizada na Cidade Industrial de Curitiba (CIC), a Associação Comunitária dos Moradores das Vilas Esperança e Nova Conquista é uma junção promovida pelas lideranças de duas vilas lesionadas pela Cohab e prefeitura. Decidiram lutar a partir de uma ação pelo usucapião coletivo do solo, em 2008. O presidente da antiga associação recusou-se a encaminhar a ação. Foi preciso fundar outro espaço organizativo. O metalúrgico Sebastião Fagundes, ocupante há 21 anos da região, explica que os moradores da área há muito já haviam deixado de pagar as prestações. “Nunca fomos procurados pela Cohab para regularizar”, explica. Há dez anos, uma série de moradores já havia deixado de pagar a Cohab. O movimento atu-
al, explica o advogado Felipe Spack, é a continuidade de um acerto de contas antigo. Há dois anos, formalizaram a inquietação por meio da ação de usucapião coletivo do solo. Até o momento, apenas 1.500 pessoas entraram na ação coletiva. O objetivo agora é estendê-la às demais associações e moradores afetados.
“Nunca fomos procurados pela Cohab para regularizar” No relato de Fagundes, cerca de 60 casas na Vila Eldorado ficam assentadas às margens de um rio. Não possuem saneamento básico. O dilema é que não há uma política pública de regularização ou reassentamento. Ele explica que a resistência à realocação se deve também ao fato de o tamanho da casa onde vivem ser maior que os 37 metros quadrados oferecidos nas novas habitações. Esta parece ser a luta: pelos direitos na sua totalidade e acesso à moradia digna. (PC)
que assessora o movimento, propõe o seguinte cálculo: se estimado um valor médio de R$ 5 mil pagos por família, a Cohab teria lucrado por volta de R$ 185 milhões. Esse valor pode ser ainda maior. Como ele mesmo afirma, certamente são mais de 37 mil famílias, que em muitos casos pagaram mais do que R$ 10 mil ao longo dos anos. Em 1973, o governo Ney Braga, em meio à ditadura, fundou a Cidade Industrial, por meio de um endividamento com o governo estadual. O passivo atingiu R$ 464 milhões (valores de 2009) e recebeu anistia por parte do go-
verno do estado. Nos anos de 1990, enquanto os moradores começavam a pagar pelo terreno ocupado, as empresas justamente receberam desconto de ICMS e IPTU para instalação. A dívida municipal se apresenta como quitada. O destino da fatia do salário dos moradores perdida fica em aberto. Em situações como esta, de ocupação irregular, normalmente os ocupantes beneficiam e erguem ruas, instalam redes elétricas e água. Passados 20 anos, o alto preço não se reverteu em serviços públicos e infraestrutura. “O manilhamento, o anti-
pó e as calçadas foram feitos e pagos pelos próprios trabalhadores. Muitos têm até hoje as notas fiscais desses investimentos. Água e luz também. A prefeitura também não investiu muito em transporte e em postos de saúde, porque faltam médicos e linhas de ônibus”, descreve Spack. Além da questão individual
O início dessa movimentação de afetados pela prefeitura e Cohab aconteceu no dia 2 de maio, na Associação Vila Esperança, com a presença de diferentes entidades. Uma assembleia popular reuniu mais de 300 pessoas. Constituída, a Cohab
O prefeito Luciano Ducci em prédio da Cohab, na Cidade Industrial: STJ anulou contratos da companhia
comissão de moradores buscou os presidentes de associação de moradores de áreas vizinhas. Alguns responderam, outros não se envolveram na questão. A cooptação de associações de moradores, por meio de federações ligadas ao poder público, é um fato corriqueiro em Curitiba. A desmobilização é a meta dos órgãos da prefeitura. Promessas e conversas particulares com lesionados pelos contratos marcam a prática da Cohab, ontem e hoje. No momento, “a Cohab tem mandado cartas para os moradores dizendo que não precisa mais pagar a prestação, quem já pagou deve deixar quieto. E os que estão pagando vão ter o dinheiro abatido (mas continuam pagando). Eles não podem brincar com a inteligência do povo”, denuncia Osmano Reis. As assembleias de domingo em diferentes vilas têm mobilizado no mínimo 50 pessoas. Até agora nove associações de bairro somaram-se ao movimento. As práticas da companhia não se resumem à Cidade Industrial de Curitiba. Realocações de moradores mal planejadas, como no caso da área Monteiro Lobato, no bairro do Tatuquara, cujos moradores estão assentados ao lado de uma estação de esgoto, é apenas mais uma narrativa entre tantas que marcam uma fila de espera de 60 mil inscritos. O futuro do movimento atual é seguir convocando as diferentes vilas de trabalhadores. O Ministério Público têm atuado no caso, com reunião agendada entre as partes, Cohab e trabalhadores. Caso o silêncio se mantenha e a indenização não seja atendida, a opinião de Osmano é de que chegou a hora de um ato público em frente à companhia, localizada no centro da capital. “O povo tem medo. Imagine quantos anos de enganação. Nossos atos devem dar visibilidade para aquelas outras áreas em Curitiba que também foram afetadas. Temos o apoio do coletivo de advogados, ONGs e sindicatos”, coloca. (Com informações do jornal Folha do Sabará de julho/ agosto, organizado pela associação de moradores da Vila Nova Esperança e movimentos sociais)
TRABALHO
Operários de fábrica de porcelana brigam por direito ao salário Pedro Carrano
Empresa justifica entrada de material da China como a razão para atraso nos salários de Campo Largo (PR) NOS DIAS MAIS frios do ano, entre 13 e 16 de julho, os 560 operários da empresa Porcelanas Schmidt paralisaram o trabalho e chegaram a atear fogo em pneus em frente à fábrica/ loja, na região metropolitana de Curitiba. Cinco dias de atraso da empresa no pagamento foi o suficiente. É uma instabilidade que os trabalhadores da fábrica já viveram noutros momentos. Esta é a terceira paralisação. A Porcelanas Schmidt tem outras duas sedes, uma delas em Mauá (SP) e a outra em Pomerode (SC). Juntas, as unidades de Campo Largo e Pomerode produzem cerca de
560 operários da Porcelanas Schimdt em paralisação
1,8 milhão de peças de porcelana por mês. Demandas básicas, como vale-alimentação e vale-transporte, também são levantadas. Os operários protestam contra a situação na qual, por um lado, recebem uma grande fatia do salário por produtividade – o que chamam de o “prêmio da empresa”. O paradoxo é que, ao mesmo tempo que se prega a concorrência para atingir metas, há trabalho ocioso no interior da fábrica. “Está
faltando matéria-prima, o que afeta a renda”, diz um trabalhador. Gerson, operário, há dez anos trabalha na fábrica. Ele é solteiro, mas afirma que os operários com família e filhos ficam em situação complicada. “Um outro trabalhador está com a mulher grávida e não teve como comprar o enxoval”, relata. Vinte e oito empresas de cerâmica estão instaladas na cidade de Campo Largo. De acordo com os trabalhadores, a empresa jus-
tifica a entrada de material da China como a razão para uma queda no lucro e atraso nos salários. Porém, o sindicato cita o caso de outras empresas da cidade que alcançam bons resultados. “O faturamento no ano passado foi de R$ 5 milhões. Outra empresa de Campo Largo, a Porcelana Germer, está bem”, comenta o presidente do sindicato dos trabalhadores nas indústrias de cerâmica de louça de pó (Sinpolocal), Paulo Sérgio de Andrade. (PC)
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brasil
A ditadura do PMDB no Rio POLÍTICA Partido exerce controle sobre Executivos e Legislativos e tem forte influência sobre Judiciário e estatais locais Carlos Magno/Governo RJ
Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) DURANTE A ditadura civil-militar brasileira (19641985), o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) foi o partido de oposição ao regime. A suposta redemocratização do Brasil se deu com a liderança de Ulysses Guimarães e Tancredo Neves. Desde então, a legenda, que passou a chamar-se PMDB, esteve quase sempre no primeiro escalão federal. Tudo o que se sabe nas eleições presidenciais deste ano é que, seja quem for o eleito, o partido permanecerá no poder. Já no estado do Rio de Janeiro a presença peemedebista é ainda mais marcante. Tradicionalmente tratado como moeda de troca por PT e PSDB, o PMDB exerce uma influência sem paralelo na história do estado. O governo, a prefeitura da capital, a Assembleia Legislativa e a Câmara de Vereadores são, todos, capitaneados por peemedebistas. Dos 92 prefeitos fluminenses, 91 apoiam ou não se opõem à reeleição do governador Sérgio Cabral (PMDB). Nas estatais com sede no Estado, o deputado federal Eduardo Cunha (RJ) e o senador José Sarney (AP), ambos peemedebistas, têm forte influência.
Suposto apoiador de Gabeira, Zito é historicamente acusado, em Duque de Caxias, de mandar executar aliados A aliança para reeleger Cabral uniu ao PMDB outros 15 partidos. Principal adversário até há pouco tempo, o expeemedebista Anthony Garotinho, atualmente no PR, teve a candidatura impugnada e já desistiu de concorrer ao governo. Pela segunda eleição consecutiva, as acusações contra Garotinho surgiram às vésperas do pleito.
O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, e o governador carioca, Sérgio Cabral
Há os que atribuem à impugnação evidências de que a influência do PMDB chega, inclusive, aos órgãos da Justiça Eleitoral. Agora, Cabral tem como único oponente de maior densidade eleitoral o deputado federal neodireitista Fernando Gabeira (PV). Partidos de tradição progressista, como PT, PDT e PCdoB, formam aliança com Cabral, que, segundo pesquisas, será eleito no primeiro turno. Prefeitos alinhados Na prefeitura do Rio de Janeiro, cidade com 40% do eleitorado, está Eduardo Paes (PMDB). Em 2008, ele foi lançado de última hora na campanha. Garotinho, então no PMDB, tentava emplacar Marcelo Itagiba, hoje no PSDB. Cabral dizia apoiar o então candidato do PT, Alessandro Molon. De última hora, traiu Molon, lançando Paes. Com financiamento recorde na campanha, o atual prefeito saiu de desconhecido a vi-
Mais um troféu que envergonha PF aponta Rio de Janeiro como campeão em crimes eleitorais do Rio de Janeiro (RJ) Uma semana depois do Rio de Janeiro ter sido anunciado como o vice-líder em educação precária, segundo o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), outro ranking volta a envergonhar os cariocas. O estado foi apontado, pela Polícia Federal (PF), como líder em incidência de crimes eleitorais. A PF fez mais de 3.400 investigações no estado, nos últimos quatro anos. O objetivo era averiguar denúncias de caixa dois, compra de votos, boca de urna e transporte irregular de eleitores. O maior número de currais eleitorais foi constatado no interior do estado. Em todo o país, foram cerca de 20 mil inquéritos, com mais de cinco mil pessoas indiciadas. O segundo colocado, Minas Gerais, teve um número de investigações bastante menor, 56% do total fluminense (1.912). São Paulo, com eleitorado muito superior ao do Rio, que é o terceiro do país, ficou em terceiro lugar. A compra de votos é considerada o mais grave entre os crimes. Segundo analistas, não é apenas prática corriqueira tradicional; é também indício recente do desencantamento popular com a política. A PF anunciou, também, que vai firmar convênio com o Ministério Público Eleitoral (MPE) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ela alega que a prevenção é mais efetiva que a ação pós-eleitoral. (LU)
torioso. Já no primeiro mês de mandato, substituiu boa parte da administração, que estava há uma década e meia sob comando de Cesar Maia (DEM) e aliados. O único prefeito que ainda não se posicionou em relação ao apoio a Cabral é o de Campos dos Goytacazes, Nelson Nahim (PR), que substituiu a esposa de Garotinho, Rosinha (PR), legalmente afastada. Nahim é irmão de Garotinho, mas também amigo de Cabral. Até o prefeito de Duque de Caxias, José Camilo Zito (PSDB), deu declarações de não enfrentamento. Suposto apoiador de Gabeira, Zito é historicamente acusado, na cidade, de mandar executar aliados. Sua esposa, a deputada federal Andrea Zito (PSDB), fez recente caminhada ao lado de Cabral, em campanha, na cidade. O prefeito estaria colocando a estrutura municipal toda a favor de Cabral. Ao todo, 38 prefeitos da base alia-
da do governador e 19 da oposição farão campanha assumida para ele. Os outros não vão se opor. A adesão maciça dos prefeitos à candidatura de Cabral talvez possa ser explicada pela relação de dependência que lhes foi imposta durante os quatro anos do mandato peemedebista. O governo estadual já investiu, por exemplo, R$ 25 milhões em obras. Há ainda a aliança tríplice entre governos federal, estadual e municipal (capital). Boa parte dos recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) é aplicada no Estado. “O PMDB faz política a partir da máquina do Estado. Boa parte das prefeituras que dão apoio é da oposição. É o apoio pelo interesse. O governo manipula, por exemplo, os recursos dos royalties [do petróleo]. Os métodos são o fisiologismo e o clientelismo”, explica o cientista político Leo Lince.
Neochaguismo José Rechuam (DEM), prefeito de Resende, no sul do Estado, deixou claro o motivo das alianças ao afirmar, publicamente, que a campanha eleitoral não havia começado agora. Segundo ele, teria iniciado há um ano e meio, com os investimentos do governo estadual. Presidente da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), Jorge Picciani (PMDB) é outro que detém enorme poder. É o candidato ao Senado imposto, inclusive, ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que preferia formar aliança com Lindberg Farias (PT), prefeito de Nova Iguaçu (RJ) até abril, e com o senador Marcelo Crivella (PRB). Na Câmara Municipal, o presidente Jorge Fellipe é o peemedebista que controla uma base de 31 dos 51 vereadores. Embora inédito, o cenário traz um óbvio paralelo com o chaguismo. Uma das
maiores expressões do antigo MDB, Chagas Freitas governou a antiga Guanabara de 1971 a 1975, e o estado do Rio de 1979 a 1983. Ele tinha controle sobre a maioria das prefeituras e sobre a Alerj. “O Rio foi um estado historicamente oposicionista, mas o MDB era um feudo do Chagas Freitas. Era uma falsificação da oposição popular, que segue até hoje”, afirma Virgínia Fontes, professora de História aposentada da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Nos últimos cinco anos, perderam-se totalmente. Eles têm se diferenciado cada vez menos. O PMDB abriga aqueles que já optaram pela emancipação popular, mas que agora estão na descaracterização desse processo”, completa.
“O PMDB abriga aqueles que já optaram pela emancipação popular, mas que agora estão na descaracterização desse processo”
Ex-presidente da Alerj, Sérgio Cabral tem relação de amizade histórica com prefeitos e teria o domínio dos mecanismos de controle pelo clientelismo. A aliança com o PT, nos planos estadual e nacional, também ajuda. A aliança com o partido fragilizaria o eventual surgimento de uma oposição à esquerda – atualmente rarefeita, protagonizada pelo Psol e por dissidentes de PT e PDT. O deputado federal Eduardo Cunha é outro que exerce forte influência. O presidente de Furnas, Carlos Nadalutti, teria sido indicado por ele. José Antonio Muniz, presidente da Eletrobrás, também com sede no Rio, é da cota do senador José Sarney (AP). Na Petrobras, o partido aponta diretores e controla a Transpetro – o presidente, Sérgio Machado, foi indicado pelo senador Renan Calheiros (PMDB/AL).
Desapropriação e degradação, o modelo de sempre Ignácio Ferreira/Governo RJ
Arco Metropolitano está com as obras atrasadíssimas, mas já reproduz o modelo de desenvolvimento predatório de seus pares do Rio de Janeiro (RJ) Talvez o principal símbolo do projeto desenvolvimentista de forte degradação ambiental implantado no Rio de Janeiro venha a ser, no futuro, o Arco Metropolitano. A rede rodoviária, em construção, está destinada a conectar os megaprojetos do governo estadual. Inicialmente, vai ligar o polo siderúrgico de Itaguaí (com protagonismo da siderúrgica recém-inaugurada TKCSA), ao polo petroquímico de Itaboraí. Há, ainda, quatro portos privados em construção e a expansão do Porto de Sepetiba. Não é um projeto qualquer. Entretanto, com inauguração inicialmente prevista para 2010, está com as obras muito atrasadas. No principal trecho, de 71 quilômetros, somente 15%
Obras do Arco Viário Metropolitano
Reproduzindo o modelo dos projetos associados a ele, o Arco Metropolitano também deixará consequências nocivas ao povo pobre do projeto foi executado. Apenas R$ 100 milhões, dos R$ 965 milhões destinados a esse trecho, foram executados. O projeto é parte integrante do PAC, do governo federal. Reproduzindo o modelo dos projetos associados a ele, o Arco Metropolitano também deixará consequências nocivas ao povo pobre. Trinta famílias do bairro Nova Brasília, de Nova
Iguaçu, ameaçadas de remoção pelo Departamento de Estradas de Rodagem (DER), estão mobilizadas contra o projeto. Em 12 de junho, representantes da organização de direitos humanos ComCausa reuniram-se com os moradores para planejar a resistência. No encontro, as famílias afirmaram estar enfrentando “ameaças e constrangimentos” por
representantes das empreiteiras responsáveis pela obra. Ao todo, são previstas 3.500 desapropriações. “As pessoas estão com muito medo. Não querem falar”, acusa Bruna Teixeira, assessora jurídica da ComCausa. Segundo ela, muitas famílias ainda pagam o financiamento das casas a serem desapropriadas, compradas em lote. O valor oferecido pelo governo às famílias nem sempre supera o débito do financiamento. Destituição de lares e desrespeito ambiental têm sido a tônica dessa série de projetos em andamento no estado. Há alguns meses, a polêmica foi a perereca Physalaemus soaresi. As obras estavam destinadas a passar pela Floresta Nacional Mário Xavier (Flonamax). Mas, por ameaçar a espécie, em risco de extinção, o projeto encontrou a oposição do Ibama e do Instituto Chico Mendes. A solução encontrada, ainda sem execução, é a construção de um viaduto sobre o brejo principal. Há também, na região, 34 sítios arqueológicos. Segundo o planejamento original, as obras também passariam por sobre o sambaqui de Sernambetiba, em Itaboraí. Entretanto, o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) já anunciou que não vai permitir a depredação, considerada desastrosa. (LU)
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Matriz energética, uma questão para todos
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
População negra
Ana Manuela Chã
ENERGIA Debate em Maceió discute o avanço dos agrocombustíveis como alternativa para a escassez de petróleo
Jogo eleitoral
Perfeitamente previsível, o bate-boca despolitizado e supérfluo tem sido a tônica das mais ricas campanhas presidenciais, alimentadas tanto pela mídia comercial como pelo jornalismo chapa-branca – todos empenhados na defesa dos interesses particulares de seus patrões. Aparentemente não interessa a essas campanhas colocar em debate as propostas que tenham a ver com os destinos dos trabalhadores, do povo e do país. O que importa é a distração!
Rafael Soriano de Maceió (AL) CHEGANDO EM Maceió, a capital de Alagoas, já dá para sentir que a cana-de-açúcar voltou com tudo. A planta, que reinou no Brasil colonial e depois foi a menina dos olhos do governo militar com o programa Pró-álcool, é de novo louvada pelos governantes como a salvação da lavoura. Em meio a esse cenário, cerca de 200 trabalhadores e estudantes de Alagoas lotaram, no dia 12, o auditório do Sindicato dos Urbanitários, no Centro de Maceió, para participar do terceiro evento do ciclo de debates “Matriz energética brasileira: suas potencialidades e desafios”, realização conjunta do Brasil de Fato com a Petrobras. Vindos de diversas regiões do estado, os espectadores puderam entrar em contato com informações raramente levantadas para a população em geral sobre a geração e o uso de energia no país. Na mesa, estavam o professor Cícero Adriano dos Santos, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), e Débora Nunes, da Via Campesina e representante dos movimentos sociais. “Todo mundo paga conta de luz, não paga? Por isso precisamos entender sobre as fontes de geração de energia em nosso país, até para saber por que ela é tão cara atualmente”, introduz Débora, para um auditório lotado. Ela explica que a “matriz energética” é a representação de toda a energia disponível e que, no Brasil, 56% dessa energia não é renovável. Vem daí a urgência em se pensar uma alternativa ao petróleo que simbolize a autonomia do país, mas também o respeito ao ambiente.
Para o professor Cícero Adriano dos Santos, a política mundial de agrocombustíveis é “o pulo do gato do grande capital” Crise energética Os palestrantes fizeram um balanço crítico da matriz energética majoritária hoje no país, baseada na energia fóssil do petróleo e nas bacias hidrográficas passíveis de represamento (energia hidre-
Desmoralização
Cerca de 200 trabalhadores e estudantes compareceram ao debate
“Só dá para pensar em culturas de alimentos que possuem potencial energético depois que a produção agrícola estiver organizada para que toda a população tenha acesso a alimentos” létrica). Os impactos para populações, fauna e flora com a construção de uma barragem para geração de energia pelos rios, como o caso de Belo Monte, no Pará, são imensuráveis. Além disso, a submissão ao valor oscilante do petróleo no mercado internacional mantém os preços dos combustíveis (gasolina, diesel, gás de cozinha) sempre em alta, um grande peso na tímida renda da média da população. Paralelamente, o nível de poluição global, que aumenta desde a Revolução Industrial (há aproximadamente 160 anos), tem questionado, por fora e por dentro do sistema capitalista, a manutenção do atual modelo civilizatório. Nesse sentido, na mais recente demonstração de adaptação às necessidades da conjuntura, os grandes capitalistas lançaram uma nova via na geração de uma “energia limpa”, os agrocombustíveis, e, dessa alternativa, vem a nova expansão da cana que cerca Maceió. Para o professor Cícero Adriano dos Santos, a política mundial de agrocombustíveis é “o pulo do gato do grande capital”. Ele acredita que, com a finitude do petróleo, bem não-renovável, e a crescente necessidade de “‘alimentar’ uma gigantesca frota de carros, aviões etc., a política de agrocombustíveis, como o chamado biodiesel, foi uma cartada estratégica das grandes oligarquias, que viram assim assegurado seu modelo agrícola baseado no latifúndio”, explica. De acordo com ele, o agronegócio, que se via numa conjuntura de tensão com os movimentos
sociais no campo, passou a ter assegurada e incentivada sua expansão, inclusive para territórios já conquistados ou em disputa com os camponeses. Fonte limpa? Pelas palavras de Débora Nunes, da direção nacional do MST, esse tipo de energia só é limpa para quem não a vê de perto, como a maioria dos alagoanos. Num estado imerso em um mar de canaviais, “assistimos à substituição de nossas matas, degradação de nossos rios, um trabalho escravizante, tudo pela cana. Essa energia não é limpa”, adverte Débora. Débora reforça que, da forma como é explorado hoje, o agrocombustível representa mais monocultura, mais concentração de terra, mais lucro para grandes usinas e empresas. A trabalhadora rural reforça: “nós, que dependemos da terra, sabemos o quanto precisamos preservá-la”. Santos explica que nada do que é produzido sozinho, em grandes
extensões, pode ser sustentável. O professor ainda assegura que o Brasil pode produzir sua própria energia sem depender do petróleo nem da hegemonia dos canaviais. “Além disso, não faz o menor sentido produzir biocombustível para alimentar carros enquanto aumenta a fome no mundo”, dispara. O modelo que prioriza a produção de energia em larga escala, mas que priva grande parte da população do acesso a alimentos, não pode ser considerado limpo ou sustentável, acrescenta Débora. “O debate do biodiesel tem que ser feito dentro do debate da soberania alimentar. Só dá para pensar em culturas de alimentos que possuem potencial energético depois que a produção agrícola estiver organizada para que toda a população tenha acesso a alimentos, variados e de qualidade”, aponta. Assim como o professor, a representante da Via Campesina concorda que a pequena agricultura pode dar conta do recado, mas desde que em outros marcos de produção. “O Brasil possui tantos potenciais... poderia investir em energia hídrica a partir de pequenas obras, em energia eólica, solar. É caro? Mas e as usinas subsidiadas pelo governo, não são? O que está em jogo é o tipo de desenvolvimento”, afirma. Débora e Santos deixam uma questão: há necessidade de tanta energia?
Ciclo de debates O Brasil de Fato e a Petrobras realizam uma série de cinco debates envolvendo a produção e consumo de agroenergia. Com o tema “Matriz energética brasileira: suas potencialidades e desafios”, as discussões reúnem especialistas, representantes de movimentos sociais e da Petrobras, além de agricultores ligados a cooperativas. Nesta página, confira reportagem sobre a etapa do dia 12 de julho, realizada em Maceió (AL). Também estão na programação das cidades que sediam os debates Caruaru (PE), Fortaleza (CE), Montes Claros (MG) e Brasília (DF).
Na agricultura familiar, a raiz da solução Segundo professor da Ufal, mandioca pode ser tão poderosa para produção de energia quanto a cana de Maceió (AL) Muitos dos pequenos agricultores presentes no terceiro debate da série “Matriz energética brasileira: suas potencialidades e desafios”, realizado dia 12 em Maceió (AL), demonstraram interesse em conhecer mais sobre a geração autônoma de energia. Eles ouviram falar de rodas d’água, catavento, práticas de geração de energia através de um dínamo, adaptáveis a sua realidade. Além destas, as placas de silício são uma alternativa para a independência energética.
Relatório do Inesc informa que entre janeiro de 2008 e junho de 2010 o governo federal titulou apenas dois quilombos no Rio Grande do Sul, sendo que a demanda por regularização das terras quilombolas atinge quase cinco mil comunidades em todo o Brasil. Outro dado chocante: nos últimos cinco anos foram gastos menos de 20% das verbas orçadas para as titulações. Está na cara que outros interesses mandam nesse jogo!
Porém, o professor Cícero Adriano dos Santos, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), lamenta que esse debate não circule na sociedade. “[Tal discussão] Não é interesse dos que mandam, mas podemos garantir nossa autossustentação energética, por exemplo, com o uso de biocombustores”, analisa. Um biocombustor é alimentado pelas fezes de animais criados no campo, que, com o tempo, geram gás para uso doméstico. Embora essa prática de biocombustores já tenha sido incentivada nas décadas de 1960 e 1970 pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Alagoas (Emater), hoje ela não é muito difundida. O próprio professor Santos é autor de um projeto destinado às áreas de assentamento do complexo Agrisa-Peixe (aproximadamente 23 mil hectares), em Flexeiras, Joaquim Gomes e São Luis do Quitunde, em Alagoas, que consiste no incentivo aos biocombus-
tores com cinco vacas em cada casa, alimentação de um centro de produção de humus, gerando mais esterco e mais gás, e a produção de fruticultura para extração de óleo e produção de biodiesel, além de cataventos e micro-hidrelétricas. De acordo com Santos, o projeto é uma adaptação do que ele viu como realidade em Cuba, em visita a ilha.
“Não é interesse dos que mandam, mas podemos garantir nossa autossustentação energética, por exemplo, com o uso de biocombustores”
Mandioca? Santos cita ainda diversas alternativas possíveis para que os povos possam se autoabastecer de energia e conquistar maior soberania energética. Em pequenas unidades produtivas, como são, por exemplo, os assentamentos de reforma agrária, é possível fazer a produção de agrocombustíveis em consonância com a produção de alimentos. “Uma alternativa é a fruticultura, com espaçamento maior e, nas entrelinhas de culturas, a produção de biocombustível, como o amendoim, o girassol, a própria mandioca”, aponta. Cícero sustenta que essa raiz pode ser tão poderosa para a transformação em energia como a cana. Ele diz que esse potencial foi apontado na época do Pró-álcool, mas teria sido rejeitado justamente por representar uma alternativa simples e viável para os pequenos produtores. (RS)
Aprovada com alterações pelo Congresso Nacional e logo depois ignorada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, a lei da “ficha limpa” para candidatos a mandatos eletivos confirma apenas que as leis, no Brasil, não são feitas para todos, mas para perseguir os mais pobres, os trabalhadores e os lutadores do povo – jamais para mexer nos privilégios das elites, dos ricos e dos poderosos. Caiu a máscara rapidamente!
Direito humano
O ranking do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) demonstra que o desempenho escolar dos estudantes dos colégios particulares, frequentados por quem pode pagar mensalidades de R$ 2 mil a R$ 3 mil, continua melhor do que o dos estudantes das escolas públicas. Portanto, se quiser realmente oferecer igualdade de oportunidade para todos, o Estado precisa investir muito mais em educação pública – muito além dos 4% do PIB.
Lembrança viva
Vários eventos registram a passagem de 65 anos do lançamento das bombas atômicas nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, ocorrido respectivamente em 6 e 9 de agosto de 1945, no final da 2ª Guerra Mundial. Essas bombas foram lançadas pelos Estados Unidos, mataram 220 mil pessoas e provocaram sequelas graves – devido à radiação – em dezenas de milhares de habitantes do Japão. A humanidade ainda espera o fim do armamento nuclear.
Falta mobilização
Em nota distribuída à imprensa, o presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Arthur Henrique, afirma o seguinte: “Estamos lutando para criar uma política permanente de recuperação do poder de compra das aposentadorias e pensões acima do mínimo, e pela superação do fator previdenciário, e exigimos a criação de um fórum de negociação específico para tratar desses assuntos”. Só falta colocar os trabalhadores nas ruas!
Luta, Fenaj
Duas chapas disputam a eleição da Federação Nacional dos Jornalistas nos dias 27 a 29 de julho, entidade que já teve papel relevante na luta pela democracia, mas que enveredou pelo oficialismo e pelo imobilismo. Nos últimos anos, a categoria perdeu a conquista histórica do diploma para o exercício profissional e tem sido vítima de brutal degradação dos salários e das condições de trabalho. A oposição promete reativar as lutas dos jornalistas. Tomara!
Violência estatal
Os defensores públicos Alexandre Grabert, Noadir Marques da Silva Jr. e Elpídio Ferraz Neto pediram à juíza corregedora de Campinas (SP) a interdição das celas reservadas às mulheres, no 5º Distrito Policial, por absoluta inadequação das instalações. Constataram a falta de carceragem e a prisão de até 10 mulheres numa cela de 6 metros quadrados. O Estado também patrocina a violência contra as mulheres!
Lucro fácil
Como era esperado, o aumento da taxa de juros pelo Banco Central continua atraindo especuladores dos títulos emitidos pelo governo brasileiro. De janeiro a maio deste ano, o fluxo desses capitais atingiu 12 bilhões de dólares, bem maior que nos três anos anteriores. É claro que os especuladores ganham aqui o que não conseguem em nenhum outro lugar do mundo: no curto prazo, sem risco e sem qualquer trabalho. Moleza!
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brasil
O Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos Juvenal Pereira/Câmara SP
DITADURA Após audiências públicas em San José, na Costa Rica, familiares que representam 25 desaparecidos políticos da Guerrilha do Araguaia acreditam que o organismo condenará o Brasil Michelle Amaral da Redação FAMILIARES DE desaparecidos políticos da Guerrilha do Araguaia acreditam que o Brasil possa ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). O Estado brasileiro é réu em um processo de responsabilização por crimes cometidos durante a repressão ocorrida entre os anos de 1972 e 1974. Em uma sessão pública na Câmara Municipal de São Paulo, realizada em junho, familiares das vítimas e representantes das organizações que moveram a ação contra o Estado brasileiro se reuniram para fazer um relato de como foram os seus depoimentos nas audiências públicas realizadas pelo organismo, em San José, capital da Costa Rica. Nessas audiências, que aconteceram entre os dias 20 e 21 de maio, prestaram depoimento representantes das vítimas, testemunhas, peritos e representantes do Estado brasileiro. Com isso, foi iniciado o processo de finali-
zação do julgamento, restando, agora, a sentença da corte, que deverá ser emitida no final de agosto. “A gente tem certeza de que o Brasil vai ser condenado. A gente já tinha antes da audiência, mas agora mais explícito”, afirma Beatriz Stella de Azevedo Affonso, do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), que representa os familiares das vítimas no processo. Segundo ela, as falas dos juízes e o modo como o julgamento foi conduzido permitem essa certeza. A ação contra o Estado brasileiro foi movida pelo Cejil, pela organização Tortura Nunca Mais e pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo.
Familiares de vítimas e representantes de organizações em sessão pública realizada na Câmara Municipal de São Paulo
“A gente tem certeza de que o Brasil vai ser condenado. A gente já tinha antes da audiência, mas com ela ficou mais explícito”
Julgamento
As audiências fazem parte do julgamento em curso contra o Estado brasileiro pelo desaparecimento forçado de 70 pessoas, a impunidade dos crimes cometidos e o não esclarecimento da verdade sobre os fatos ocorridos na Guerrilha do Araguaia – resistência guerrilheira existente na região amazônica brasileira enReprodução
Ação militar durante a guerrilha do Araguaia
tre o final da década de 1960 e meados dos anos de 1970, nas proximidades do rio Araguaia – durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). A ação n° 11.552, chamada “Caso Gomes Lund e outros”, tramitou por 13 anos na Comissão de Direitos Humanos da OEA (CIDH). Esta, como não obteve uma resposta do governo brasileiro à demanda dos familiares dos desaparecidos, o levou ao julgamento da corte em 2008. Em seu parecer, a CIDH considerou a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de membros do PCdoB e camponeses. A partir de 1982, com o início do processo de redemocratização do país, os familiares de 25 desaparecidos políticos da Guerrilha do Araguaia
passaram a cobrar, na Justiça brasileira, a localização e recuperação de seus restos mortais. Em 1995, sem nenhum resultado no sistema judicial interno, resolveram levar o caso à CIDH. “Para mim, foi muito sofrido ter que buscar justiça para meus companheiros, para meus familiares, fora do meu país”, disse Criméia Almeida, sobrevivente do Araguaia que, até hoje, busca os corpos do marido André Grabois e do sogro Maurício Grabois, militantes da guerrilha mortos em 1973. Segundo ela, o mais triste é saber que os familiares dos desaparecidos do Araguaia não são os únicos que não conseguem obter justiça no Brasil. “Talvez, tantos outros brasileiros, não só desaparecidos políticos, mas vítimas de tantos outros desres-
peitos aos direitos humanos não estejam conseguindo seus direitos aqui no Brasil e nem tenham condições de buscar os seus direitos fora”. No mesmo sentido, Suzana Lisboa, ex-integrante da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, lamentou o fato de se ter “que buscar uma instância no exterior para encaminhar e julgar questões tão básicas”. Condenação
Laura Petit, irmã da exguerrilheira do Araguaia Maria Lúcia Petit, primeira militante a ter seu corpo identificado – somente dois corpos foram identificados até hoje; o segundo foi o de Bergson Gurjão Farias –, afirmou ter esperança de que haja uma condenação internacional e que isso represente o fim da impunidade dos torturadores. “A gente sente a diferença entre estar falando para uma corte que se preocupa com os diretos humanos e falar aqui no Brasil, porque a gente tem
repetido essa história da luta dos familiares pela busca dos desaparecidos durante décadas, e não se fez nada”, relatou. De acordo com o advogado Belisário dos Santos Júnior, que também participou como testemunha nas audiências realizadas pela corte, uma condenação do Estado brasileiro pela OEA acarretaria sérias consequências jurídicas. “Poderia implicar na obrigação de se revogar uma parte da Lei de Anistia, na atribuição de indenizações mais completas aos familiares e na obrigação do Estado brasileiro de perseguir judicialmente a responsabilidade pelas torturas e as graves violações dos direitos humanos que foram cometidas naquele período”, estima. Apesar da importância de uma condenação pela Corte da OEA, Criméia alega que, para que ela seja cumprida, ainda será necessária muita luta por parte dos familiares dos desaparecidos. “Espero que o país seja condenado sim, e sei que ainda vou ter que lutar muito para que essa sentença seja cumprida”, disse.
“A corte já deu sinais de que ela não aceita a autoanistia” Advogado afirma que condenação do Brasil na OEA pode resultar na abertura de novos processos referentes a violações cometidas durante o período ditatorial da Redação Em entrevista ao Brasil de Fato, o advogado Belisário dos Santos Júnior, que, no processo contra o Estado brasileiro que tramita na Corte Interamericana de Direitos Humanos, participou como testemunha de acusação, fala sobre as consequências jurídicas de uma condenação do Brasil, como, por exemplo, uma revisão parcial da Lei de Anistia, e os efeitos práticos que tal decisão acarretaria ao país, como a abertura de novos processos referentes a violações cometidas durante o período ditatorial. Brasil de Fato – No seu depoimento, o senhor falou sobre a relação de desconfiança dos familiares com as Forças
Armadas. O senhor pode falar mais um pouco sobre o porquê das vítimas procurarem uma corte internacional em busca de justiça?
Belisário dos Santos Júnior – O primeiro requisito para se ter acesso ao sistema interamericano de direitos humanos, que é a comissão e, em sequência, a corte, é não ter levado esse caso a um outro sistema, ou seja, o universal. O segundo requisito é as vítimas terem utilizado o sistema jurisdicional interno até que ele tenha sido esgotado. Então, o primeiro requisito está presente, porque esse caso não foi levado ao sistema universal. E o segundo requisito também, por dois motivos: primeiro, porque o Supremo decidiu que as vítimas não têm o direito de levar à Justiça os torturadores e, portanto, a corte não tem porque esperar mais que o Brasil se pronuncie; mas eles [as vítimas] já tinham esse motivo pela demora do Estado brasileiro em buscar a responsabilidade dos torturadores. Então, seja porque a Justiça demorou muito, seja porque o Supremo assim decidiu ao interpretar a lei de Anistia, esse requisito também está preenchido. Os familiares foram à corte exatamente porque eles não obtiveram internamente a resposta para as suas perguntas. “Onde estão os corpos dos nossos familiares? Por que a Justiça não leva a julgamento os algozes dos nossos fami-
liares?”. E estas são demandas que se encaixam dentro de uma perspectiva bastante conhecida do direito internacional, que é o direito à reparação integral. Hoje, parte do direito à reparação total foi atendida, mas não a parte referente às garantias de que isso não aconteça mais. O Estado não se prestou a responsabilizar os torturadores pelo que eles cometeram naquela época, e a responsabilização dos autores de graves crimes contra os direitos humanos já é um dos requisitos da reparação integral. Por outro lado, o Estado tampouco prestou todas as informações sobre o que aconteceu aos familiares. Entre elas, a maior das informações é a sobre onde estão os corpos das pessoas que o Exército matou: os que foram mortos em confronto ou que foram mortos em tortura. Como o senhor avalia a atuação do grupo de trabalho criado pelo governo para efetuar as buscas na região do Araguaia e que não obteve resultados?
O grupo de trabalho, pela informação que eu disponho, trabalhou com rigor e foi bem assessorado por universidades federais e peritos. O fato é que, e isto é o problema, o grupo de trabalho foi constituído no âmbito do Ministério da Defesa. Ou seja, as pessoas que habitam a região teriam possivelmente colaborado mais se não houvesse um
“Se a corte decidir bem e o Brasil souber respeitar, pode ser, claro, que ela seja mais demandada em determinados casos em que a Justiça brasileira demorar para decidir ou decidir mal” envolvimento militar profundo nessa missão. Um sintoma disso é que uma informação que pôde levar a alguns achados foi dada a uma familiar, e não ao grupo de trabalho. O segundo problema é que eles atuaram com a mesma informação que já se dispunha antes. O exército não aportou nova informação: não se usou o arquivo do exército, que seguramente existe, para obter informação nova; não se foram buscar nos baús, que existem por aí, as informações novas; não se apurou nada em relação à Operação Limpeza [operação realizada após 1975, cuja finalidade era a de eliminar focos de militantes remanescentes na região], sobre a qual temos informações razoavelmente confiáveis de que houve. Então, realmente, com as mesmas informações, o resultado não poderia ser muito diferente. Do ponto de vista jurídico, o que uma condenação pela OEA acarretaria para o Brasil?
Seria preciso ver os termos, mas poderia implicar na obrigação de se revogar uma parte da Lei de Anistia, na atri-
buição de indenizações mais completas aos familiares e na obrigação do Estado brasileiro de perseguir judicialmente a responsabilidade pelas torturas e as graves violações dos direitos humanos que foram cometidas naquele período.
como abrangendo torturadores. E, seguramente, cada vez que o tribunal julga e que suas decisões são honradas e cumpridas, as pessoas recorrem mais [a ele]. Então, se a corte decidir bem e o Brasil souber respeitar, pode ser, claro, que ela seja mais demandada em determinados casos em que a Justiça brasileira demorar para decidir ou decidir mal. (MA) (Leia esta entrevista na íntegra em www.brasildefato.com.br) Reprodução
E do ponto de vista prático? Pode ser um precedente para que outros processos venham a ser abertos contra o Estado brasileiro?
Primeiro, eu faço minhas as palavras do presidente da corte ao encerrar a audiência. Ele falou: “eu tenho certeza de que o Brasil, assim como todos os demais países do sistema interamericano que aceitaram a competência contenciosa da corte, cumprirá suas decisões”. Eu acho que o Brasil cumprirá. Eu quero crer que a decisão será pelo cumprimento dos standard internacionais. A corte já deu sinais de que ela não aceita a autoanistia. Resta saber se ela entenderá essa [nossa] anistia como uma autoanistia. Pode ser que peça que seja revogada ou que seja entendida como não escrita essa expressão [da lei] que foi entendida
Quem é Belisário dos Santos Júnior é advogado de presos e perseguidos políticos e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública. É ex-presidente da Associação de Advogados Latino-Americanos pela Defesa dos Direitos Humanos.
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cultura
Quando o pincel é uma arma MÚSICA Mostra em São Paulo reúne cerca de 100 trabalhos, entre capas de disco, capas de revista e cartazes de peças criadas pelo artista Elifas Andreato nos últimos 45 anos, tendo como foco a resistência à ditadura civil-militar Aldo Gama da Redação DURANTE a ditadura, Elifas Andreato fez do lápis, da caneta e do pincel as armas com as quais lutaria. E boa parte das suas obras criadas nesse período estão em exposição no Memorial da Resistência de São Paulo, na mostra “As Cores da Resistência”, aberta até o dia 24 de outubro. São cerca de 100 trabalhos que também documentam outras fases da vida do país, criados pelo artista nos últimos 45 anos. “Essa exposição tem um significado especial, principalmente por acontecer em um lugar onde houve tortura”, conta Elifas, referindo-se ao fato de o Memorial ocupar parte do edifício que sediou o Deops entre os anos de 1940 a 1983. “São registros da época, trabalhos que eram possíveis diante da censura”, continua, “e tenho um olhar crítico sobre eles, por vezes mal feitos ou inacabados. Mas era o que tinha que ser feito. E hoje têm a função de revelar um pouco da barbárie daquela época”, completa. Embora nunca tenha se filiado a nenhum partido político, Elifas encara sua postura de oposição ao regime como uma decisão pessoal que o levou a colaborar com uma série de publicações da imprensa alternativa, como o Jornal Momento e Opinião, criar cenários e cartazes de peças, como Mortos sem Sepultura, e a capa do Livro Negro da Ditadura Militar. Artista gráfico, cenógrafo e jornalista, Elifas revolucionou, ou elevou a status de arte, a criação de capas de discos no Brasil. Como exemplo, pode-se citar a ilustração do disco Nervos de Aço, gravado por Paulinho da Viola em 1973. “A capa trazia uma nova informação, era uma declaração pública de como o artista se sentia. Foi feita com o consentimento do Paulinho e acabou virando um marco”, conta o artista, que, nos anos de chumbo, tinha a censura e a opressão como inimigos. Hoje, tem o mercado. A seguir uma entrevista exclusiva com o artista.
“Sempre fiz o que interpretava da obra. Me obrigava a estar com o autor. Jogava sinuca, futebol, bebia cerveja” Brasil de Fato – Como era criar uma arte contestatória durante uma ditadura? Elifas Andreato – Era um embate. A censura cerceava a informação e nos forçava a ser criativos. Fazíamos o registro do momento por meio de metáforas. Era um grande desafio trabalhar, muitas vezes, com censores na própria redação. Mas não acho que a censura tenha acabado. Ela apenas se transformou, e hoje é exercida pela mídia e pelo poder econômico. A quantidade de lixo nas bancas e na TV é absurda. Se espremer a programação, pouca coisa é relevante. Por trás disso está o interesse de alienar, e não discutir os problemas do país. Se a TV é uma concessão pública, por que não tem nenhum programa educativo no horário nobre?
Como você vê a questão dos direitos humanos hoje no Brasil? São muito pouco respeitados, a começar pelo direito das crianças. Somos um país perverso com uma grande maioria vivendo na pobreza. Quando comecei a trabalhar, muitas das figuras políticas já estavam aí, legislando em causa própria. Uma realidade que mudou muito pouco em mais de 40 anos. Observando sua obra, percebe-se uma nítida ligação com a música popular brasileira. De que maneira as duas artes se encontram? Faço parte de uma geração que, embora tenha sofrido com uma ditadura, foi vitoriosa. Uma geração talentosa da qual acabei fazendo parte como aquele que fazia a interpretação visual daquele momento. A música era uma voz forte contra o arbítrio. E meu trabalho era a síntese do que acontecia em uma única imagem, seja na música, no teatro ou em livros. Sempre tive a consciência de que o que fazia era o primeiro convite para as pessoas ouvirem o disco, assistirem a peça ou ler o livro. Eu tinha que assumir a responsabilidade de transformar graficamente aquelas criações. Suas capas de discos se tornaram uma referência para o público. Sempre fiz o que interpretava da obra. Me obrigava a estar com o autor. Jogava sinuca, futebol, bebia cerveja. E inaugurei uma nova maneira com o disco para o Paulinho (Nervos de Aço, 1973), que eu considero o primeiro e que acabou virando um marco. Toda criação de comum acordo com o artista. A opção da indústria fonográfica pelo CD te afetou de alguma maneira? A redução do espaço foi frustrante e também tem a questão da camisa de força da caixinha plástica. Existe toda uma estrutura que envolve da empilhadeira que carrega os CDs na fábrica até as gôndolas de exibição. Tudo relacionado ao formato das caixinhas. Além disso, acrescentar uma simples luva de papel muda todo o custo, porque a caixinha é feita em larga escala, que é a forma mais barata. E também houve uma mudança de mentalidade na indústria. Mas continuo fazendo para amigos ou coisas de que gosto. Recentemente fiz para o Martinho (Poeta da Cidade – Martinho canta Noel), com uma homenagem ao Nássara, para o Tom Zé, para o Paulinho da Viola... E as novas tecnologias influenciam sua produção? Continuo na prancheta, mas tenho um assistente que trabalha com uma ferramenta incrível que é o computador. Ela é precisa e é impossível pensar no mundo sem ela. Mas ela não pensa, não cria. E a arte depende do artista, seja revolucionária ou não.
Serviço Elifas Andreato – As Cores da Resistência Memorial da Resistência de São Paulo Largo General Osório, 66 De terça a domingo, das 10 às 17h30
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internacional
Controle de terras, vidas e água Dafne Melo
PALESTINA Cidades árabes da Cisjordânia recebem água apenas a cada cinco dias; consumo de israelenses é cinco vezes maior que o dos palestinos Dafne Melo enviada a Ramallah (Palestina) AO ANDAR pelas estradas da Cisjordânia, a vista de casas aglomeradas, de longe, pode gerar a dúvida na cabeça de um estrangeiro: uma colônia judia ou um vilarejo árabe? A resposta é obtida pela presença ou não de caixas d’água em cima dos telhados. Como todos os recursos hídricos da Palestina, o tratamento e distribuição de água são controlados por Israel – inclusive na Cisjordânia. Os palestinos recebem água apenas uma vez a cada cinco dias, em média, e são obrigados a armazenar o máximo possível do recurso em tanques, geralmente pretos, colocados em cima dos telhados. Em média, um palestino consome 80 litros de água por dia, abaixo do mínimo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), de 100 litros por dia per capita. Já um israelense chega a consumir 420 litros. Um relatório feito pela Anistia Internacional sobre o tema, em outubro de 2009, apontou que, em áreas rurais, há árabes vivendo com menos de 20 litros por dia. Na Faixa de Gaza, a situação é ainda mais grave. A área, sob governo do partido islâmico Hamas, é abastecida pelo Aquífero da Costa. Entretanto, devido à extração intensa para suprir as demandas da região – que possui uma das maiores densidades populacionais do mundo –, cerca de 90% de suas águas estão contaminados por esgoto ou água do mar e são impróprios para uso. O Estado de Israel não permite a transferência de água da Cisjordânia para Gaza, tampouco projetos de dessalinização.
“Nós, em média, consumimos 80 litros/dia per capita. Um israelense, nas cidades, consome 380 litros/dia per capita, e, nas colônias, chega a [consumir] 420 litros/dia” Em entrevista ao Brasil de Fato, o engenheiro Yousef Awayes, do Ministério das Águas da Autoridade Nacional Palestina (ANP), afirma que qualquer esforço dos palestinos para resolver os problemas são barrados. “[Os israelenses ] não aceitam porque precisam controlar tudo, saber de toda água que consumimos”. Brasil de Fato – Qual é a atual situação do controle da água por Israel?
Yousef Awayes – O controle da água é um ponto estratégico para Israel, que faz um esforço para controlar todos os recursos hídricos. Nós consumimos 15% dos recursos, mas não controlamos nada, pois esses 15% também são controlados por Is-
Tanques de água espalhados sobre os telhados das casas de palestinos
E só permitem que a água seja liberada uma vez a cada cinco dias. Por isso as casas palestinas têm tantas caixas d’água para armazenar. Então, liberam um dia, e, nos outros cinco, fecham. No máximo, mandam água por dois dias, e há comunidades que recebem a cada 15 dias. Já os israelenses recebem 24 horas por dia, 365 dias ao ano, na quantidade que quiserem. As colônias dentro da Cisjordânia sequer pagam pela água. Quando você olha uma colônia, vê que não há tanques em cima dos telhados, porque não há necessidade de armazenar. Uma vez, em uma reunião, Israel propôs que os palestinos informassem a quantidade de tanques que cada família coloca nas casas. Nós conseguimos barrar isso. Nós dissemos: mas quem manda a água é vocês, já há controle, querem mais? Se deixarmos, controlam as pessoas dentro do banho.
ISM
rael. Às vezes, há uma confusão sobre o tema, pois há quem diga que controlamos esses 15%, e os israelenses, os outros 85%, mas, na verdade, eles controlam tudo. Nosso consumo pode até aumentar, mas somente se Israel quiser. Quando eles precisam reduzir o consumo de água, os primeiros afetados somos nós. Então, às vezes, até consumimos menos. Em tempo de secas, por exemplo, há medidas de racionamento que são aplicadas aos palestinos, e aí o consumo vai a 10%, até 8%. É o que chamam de Gestão Nacional para Secas. Muitas vezes, faz-se o racionamento, mas tampouco nos deixam controlá-lo. Frequentemente, afirmam que um determinado poço não pode mais produzir, chegam com o Exército e o fecham. E nem mesmo a Autoridade Nacional Palestina [ANP] tem poder de reabri-lo. O ano passado foi declarado um ano de seca, tanto pelos israelenses como pelos palestinos. Eles tomaram medidas internas, mas, primeiro, medidas aqui. Qual é a média de consumo?
Os palestinos, em geral, mesmo em tempos normais, consomem muito menos que um israelense. Nós, em média, consumimos 80 litros/ dia per capita. Um israelense, nas cidades, consome 380 litros/dia per capita, e, nas colônias, chega a [consumir] 420 litros/dia. A média de consumo deles é muito alta. Se comparamos com Europa, por exemplo... na Alemanha, a média é de 240 litros/ dia, isso porque lá a precipitação é alta, é um país considerado de terra úmida. A região, aqui, é semiárida. No norte da Espanha, consomem-se 300 litros/dia, no sul, 200 litros/ dia, ou seja, muito abaixo da média israelense.
Nos planos para a seca, os israelenses também reduzem a água para as colônias judias ilegais na Cisjordânia?
A quantidade de água que chega às colônias israelenses não é tocada. Dentro de Israel, tomam-se medidas também, se necessário, mas a média vai de 380 a 300 litros/ dia, reduzindo-se, também, a água usada para irrigação. Se o gasto em irrigação é de 78%, vai para 70%. Outra medida é o aumento do preço da água. Para um israelense, é mais fácil pagar, pois o nível de vida é mais alto que o daqui, além de que, normalmente, o preço que eles pagam já é muito inferior ao que pagamos.
A ANP, se quiser, pode controlar o racionamento?
Jamais dão direito aos palestinos de controlar ou gerir recursos, pois isso está fora da estratégia de Israel. Eles apenas nos veem como consumidores de água, consumidores de segunda classe, não nos veem sequer como sócios, para pensar, sen-
tar juntos, buscar planos conjuntos de racionamento de água. Tampouco quando há muita água fazem planos para beneficiar ambas partes. Somente nos dão o direito de consumir, e de acordo com as regras que eles impõem.
“Só permitem [autoridades israelenses] que a água seja liberada uma vez a cada cinco dias. Por isso as casas palestinas têm tantas caixas d’água para armazenar”
Há muitos relatos de que eles fecham poços abertos por palestinos, principalmente em áreas rurais.
Quando os palestinos querem abrir um poço, isso nunca é permitido, nunca. Sobretudo nos Aquíferos do oeste e do norte (veja mapa nesta página), parte do Aquífero da Montanha. Esses são dois aquíferos estratégicos, porque suprem 15% de toda água consumida em Israel. Mas todos os poços que estão dentro da Cisjordânia são controlados por Israel. No aquífero do oeste, eles retiram 342 milhões de metros cúbicos por ano – chegando até a 400 – , e os palestinos, apenas 20 milhões. Os poços que têm a permissão para serem explorados são totalmente controlados por Israel. Se os palestinos começam a extrair mais do que o permitido, os israelenses os fecham ou os destroem, com o exército. No ano passado, houve um caso em que estavam destruindo oito poços, na frente de todo mundo, quando um dos camponeses se colocou na frente e o mataram.
Há muito desperdício de água?
O que acontece é que os encanamentos que temos aqui estão velhos, em más condições e há um grande desperdício, sim. No nosso sistema, perdemos até 50%. Ou seja, pagamos por água que não utilizamos, que é desperdiçada.
Tanques furados por colonos judeus israelenses na cidade de Hebron
Não há como reformar os canos e sistema de abastecimento para diminuir o desperdício?
Nós temos que pedir autorização para Israel para fazer qualquer reforma. Muitas vezes, eles negam. É algo que não os afetaria em nada, a única diferença é que aproveitaríamos mais a água que eles nos permitem ter. Ou seja, não mudaria a quantidade de água que eles já mandam. Só evitaria desperdício. Mas, na maioria das vezes, não nos permitem fazer consertos e reformas. Fora que pedir a autorização é um processo demorado, burocrático, que toma tempo e trabalho. Alguém pode perguntar: mas por que vocês não reformam e pronto, sem pedir autorização? Bom, para a reforma, temos que comprar um sistema novo de canos. E de onde eles vêm? De Israel. Se não vêm de lá, vêm de fora e têm que passar pelo aeroporto, pelo litoral... e isso é controlado por Israel. Têm que passar pelo controle de fronteiras “deles” também. Se tentarmos negociar com outro país, a primeira coisa que esse país vai fazer é pedir permissão para Isra-
Água em abundância Diferentemente de boa parte do Oriente Médio, a região da Palestina histórica possui água subterrânea em abundância. O mapa ao lado mostra como estão distribuídos os aquíferos explorados pelo Estado de Israel. O Aquífero da Montanha, que toma boa parte do território, tem 80% de seus recursos usados para os israelenses, que também tiram água da parte palestina. O rio Jordão, na fronteira com a Jordânia, ainda que dentro da Cisjordânia, tampouco pode ser explorado pelos palestinos. Somente o Estado de Israel pode utilizar os recursos.
el. Mesmo que esse país mandasse os equipamentos, as peças parariam no aeroporto ou no porto. E, se vem por flotilha... Ou seja, não há outra medida, não tem negociação. Isso é o controle total do sistema. E não adianta querer comprar no mercado negro e jogar gato e rato, porque eles, depois, mostram quem é o rato e quem é o gato. Como eles controlam a água do ponto de vista técnico? Há colônias muito próximas a cidades e vilas árabes.
Primeiro, obrigam-nos a instalar canos com espessura determinada. Assim já começa a diferença entre os sistemas israelenses e palestinos, pois o diâmetro dos nossos canos é menor, como forma de se controlar a quantidade de água. Até um ponto, por onde sai a água dos israelenses, os tubos são maiores. A parte que vai para abastecimento de palestinos é mais fina. Ou colocam retentores para diminuir o fluxo, porque, às vezes, há uma colônia muito próxima a uma cidade árabe ou no meio de uma cidade árabe – como em Hebron.
Há projetos para se gerir águas residuais ou coletar água da chuva?
A agricultura é muito prejudicada permanentemente por esse controle. Então, há projetos para tratar água residual, por exemplo. Mas, normalmente, exigem que a água seja tratada dentro de Israel e que nós paguemos por ela. Uma vez, tivemos um diálogo com organizações alemãs que estavam dispostas a fazer uma estação de tratamento de água residual para ser usada na agricultura. Fizemos o acordo, nós, palestinos, com os alemães. Veio Israel e disse: não, não pode. Perguntamos por que e disseram que os palestinos não eram tecnicamente e culturalmente capazes de tratar essa água. Chegamos a propor um projeto conjunto entre Palestina e Israel, numa região de fronteira. Nós coletaríamos a água residual, Israel trataria, pagaríamos e nos devolveriam a água. Mas nos disseram que não, que, se tratassem a água, pelo menos parte dela seria deles. É a mesma coisa que alguém ir em uma lavanderia e pagar para lavar uma camisa. Você chega lá e o cara está com a sua camisa e te diz: eu lavei, agora é minha. Isso não é cooperação, isso se chama roubar. Ou seja, não permitiram o acordo com os alemães, propomos uma parceria, e eles nos responderam isso. Ou seja, os palestinos recolhem a água, pagam para tratá-la e ainda a damos para eles, para as colônias, com o dinheiro dos palestinos. Se vamos fazer um projeto de dessalinização de água em Gaza, eles dizem que os palestinos não têm capacidade de administrar e exigem que a estação seja, então, de Israel, pois assim eles podem administrar a quantidade de água. Muitas vezes nos propusemos a isso. Mas somos capazes de fazer, ainda que com dinheiro de ajuda humanitária internacional. Não aceitam porque precisam controlar tudo, saber toda água que consumimos.
O que argumentam para dizer não?
Afirmam o de sempre: isso afeta a segurança nacional israelense. E aí não adianta perguntar: que tipo de segurança? Dizem: isso é secreto.
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américa latina
“Por toda nossa vida, esperamos pelo julgamento dos repressores” ARGENTINA Em entrevista, ativista de direitos humanos fala sobre a importância do início do juízo contra o primeiro presidente da última ditadura do país
Reprodução
“Vejo nele [em Videla] uma postura diferente da dos outros: está orgulhoso, não nega nada e assume toda a responsabilidade”
Luciana Taddeo de Buenos Aires (Argentina) “NÃO ESQUECEMOS, não perdoamos, não nos reconciliamos. Justiça e castigo aos genocidas e seus cúmplices”. Essa mensagem circulou em folhetos e cartazes pela Argentina durante anos e, finalmente, a sociedade vivencia o julgamento dos responsáveis pelos crimes cometidos durante o regime militar, entre 1976 e 1983. Desde 2 de julho, o Tribunal Oral e Federal nº 1 de Córdoba, segunda maior cidade argentina, está julgando o primeiro presidente da ditadura militar do país, Jorge Rafael Videla (1976-1981), além de militares de patente mais baixa, como o general Luciano Benjamín Menéndez, que comandou ações do exército em dez províncias argentinas entre 1975 e 1979. Os dois já foram condenados à prisão perpétua por crimes contra a humanidade e respondem, agora, pelo fuzilamento, em 1976, de 31 detidos em uma prisão de Córdoba. Em entrevista ao Opera Mundi, o porta-voz de causas judiciais da organização H.I.J.O.S. (Filhos pela Identidade e Justiça, contra o Esquecimento e o Silêncio, na sigla em espanhol), Martín Notarfrancesco, fala sobre o significado desse acontecimento para a Argentina e avalia a trajetória do grupo na busca por justiça. Criados em 1995, os H.I.J.O.S. ganharam destaque ao organizar os “escraches”, ações que consistiam na localização e desmoralização de um repressor, com o uso de cartazes em seu bairro com fotos e dizeres “Nesse bairro vive um torturador”. Videla foi alvo de uma das manifestações.
“As leis foram uma trava importante para o cumprimento da justiça, e Videla ficou muito tempo livre” Como funciona a organização H.I.J.O.S.?
Martín Notarfrancesco – Além de filhos de desaparecidos e assassinados, somos jovens que nos assumimos como filhos dessa geração que foi perseguida e massacrada pelo Estado. Investigamos os casos de bebês apropriados, que hoje são jovens que não conhecem sua verdadeira identidade, pensamos em políticas de memória para os excentros de detenção e acompanhamos e divulgamos os julgamentos. Queremos que todos saibam do paradeiro dos genocidas. Qual é a importância do início dos julgamentos, depois de tanto tempo?
É um momento muito esperado. Jorge Rafael Videla já tinha sido condenado em 1985, quando foram julgados apenas os nove comandantes da Junta Militar. Mas o Código Penal da época era diferen-
Videla em dois momentos, sempre de bigode: durante a ditadura e no julgamento (abaixo) Indymedia/Argentina
te e só foram julgadas as patentes mais altas. No governo de Raúl Alfonsín [1983-1989], foram instituídas leis de impunidade que impediram o cumprimento da justiça. Segundo a Lei de Obediência Devida, de 1987, os militares não podiam ser punidos pelos crimes, porque teriam somente obedecido a ordens de seus superiores. A de Ponto Final, promulgada em 1986, paralisou os processos judiciais e limitou o tempo para a realização dos julgamentos em 60 dias. Mas muita gente demorou anos para dar depoimentos, por medo, tanto que, até hoje, recebemos denúncias diariamente. Em 1998, o Congresso derrogou as leis, sem anulá-las. Foi um avanço, mas insuficiente, porque não era possível dar continuidade ao que já estava em processo. Só com a anulação, em 2003, essas causas puderam ser reabertas. As leis foram uma trava importante para o cumprimento da justiça, e Videla ficou muito tempo livre. O que difere esse julgamento dos anteriores?
Ele reúne elementos muito paradigmáticos. Primeiro, a presença de Videla, ao lado de 30 acusados de patentes mais baixas. Nenhuma província teve tantos julgados. Outra particularidade é a cumplicidade entre a força militar e a civil, a Igreja Católica e juízes, que agora se explicita. Muitos juízes autorizavam o que se chamava de “traslados”, em que os detidos eram tirados da prisão e fuzilados em via pública, principalmente em 1976, ano do pico da repressão. Agora também serão julgadas as causas dos bebês. Muitas grávidas foram sequestradas e seus bebês, nascidos em cativeiro, entregues a outras famílias. Estima-se que 500 deles tenham sido apropriados, dos quais 101 foram identificados.
Quais foram as suas impressões sobre o depoimento de Videla?
Era o momento mais esperado, porque ele nunca tinha falado, nem no julgamento da Junta Militar, realizado em 1985. Ele mostra desconhecer a Justiça federal ao dizer que somente a Justiça militar pode julgá-lo. Vejo nele uma postura diferente da dos outros: está orgulhoso, não nega nada e assume toda a responsabilidade. Ele age como se não tivesse cometido crimes, mas sim participado de uma guerra. Ele se coloca em posição de chefe, mandando uma clara mensagem aos seus subordinados, para que se sintam patriotas.
Qual é a avaliação dos H.I.J.O.S. dos primeiros dias de julgamento?
Muito positiva. Finalmente, teremos um acesso à verdade histórica de uma maneira mais ampla da que temos hoje. Por toda nossa vida, esperamos por este momento. Os julgamentos são a instância mais importante da nossa luta. É senso comum que um julgamento com essa envergadura é um momento histórico. Independentemente da posição política, toda a sociedade sabe da importância desse acontecimento. Como o público se comportou no tribunal?
Com muito respeito. Temos vontade de insultá-los e vaiálos, mas sabemos da importância deste momento e mantemos o silêncio para que o julgamento não seja interrompido.
Como foi a evolução dos organismos de direitos humanos na Argentina?
Com o retorno da democracia, o movimento de direitos humanos se consolidou. Chegar aos julgamentos foi um fator político de peso para a sociedade. Principalmente nesses longos anos de
impunidade, em que se tentou impedir a revisão do passado, nossa luta se enraizou. Uma forma de pedir justiça eram os “escraches”. Averiguávamos onde os militares moravam, o que faziam, e divulgávamos essa informação para todos os vizinhos, convidando para uma passeata
na frente da casa dele. Nossa intenção é que fosse demitido do trabalho, que o vizinho deixasse de cumprimentá-lo e que o padeiro se recusasse a vender-lhe pão. Se ele se mudasse, descobríamos para onde e iniciávamos esse trabalho com seus novos vizinhos. Outra conquista foram os Julgamentos pela Verdade, realizados entre 1998 e 2003. A Corte Interamericana de Direitos Humanos [da Organização dos Estados Americanos (OEA)] chegou à Argentina por petição de uma mãe que queria saber o paradeiro de seu filho. Como as causas não podiam ser reabertas, foram realizados julgamentos sem condenações. Os repressores eram obrigados a comparecer como testemunhas, não como acusados. Seus rostos começaram a ser conhecidos pela sociedade e pudemos coletar muitas provas que nos prepararam para os julgamentos de agora. Os “escraches” continuarão?
Com menos intensidade. Dizemos que, quando não tem justiça, fazemos “escrache”, mas, agora, há justiça, então eles ficarão em segundo plano. O “escrache” traz essa discussão para a sociedade, mostra que a pessoa com quem você convive, o seu vizinho, era um torturador. Manifesta algo que não foi falado e coloca os repressores em evidência. Muitos ainda têm que ser julgados, então continuaremos o trabalho. Alega-se que parte da sociedade não sabia o que acontecia no país... A esta altura, quem diz isso não diz com sinceridade. As detenções aconteciam a todo o momento, e a ditadura durou muitos anos. Pode-se afirmar que poucos argentinos imaginavam a intensidade do regime, mas quem diz que não via nada não queria ver. (Opera Mundi)
ANÁLISE
Os marines desembarcam na Costa Rica O império aprofunda a militarização da região e os preparativos para uma aventura militar de proporções globais Atilio Borón Com os votos do oficialista Partido da Liberação Nacional (PLN), do Movimento Libertário e do deputado evangélico do Partido Renovação Costarriquenho, Justo Orozco, o Congresso da Costa Rica autorizou, no dia 1º de julho, o ingresso a esse país de 46 navios de guerra, 200 helicópteros e aviões de combate e 7 mil marines das Forças Armadas dos EUA. O que Washington comunicou ao país centro-americano foi que a situação imperante no México havia forçado os cartéis da droga a modificar suas rotas tradicionais de ingresso aos EUA, e que, para desbaratar essa manobra, era preciso enviar um sólido contingente de forças militares ao istmo centro-americano. O governo da presidente Laura Chinchilla – estreitamente vinculada, ao longo de muitos anos, à Usaid – brindou todo seu apoio e o de seus parlamentares para responder obedientemente à requisição de Washington. A permissão concedida se estende por seis meses; no entanto, essa concessão tem metas, mas não prazos, fazendo com que seja praticamente zero a possibilidade de que os marines saiam
da Costa Rica no fim deste ano. Igualmente ao estabelecido no Tratado ObamaUribe, o contingente militar estadunidense gozará de total imunidade perante a Justiça costarriquenha, e seus integrantes poderão entrar e sair da Costa Rica a seu bel prazer, circular por todo o território nacional vestindo seus uniformes e portando seus apetrechos e armamentos de combate.
Igualmente ao estabelecido no Tratado Obama-Uribe, o contingente militar estadunidense gozará de total imunidade perante a Justiça costarriquenha Militarização
Essa iniciativa se situa no contexto da crescente militarização da política exterior dos EUA, cujas expressões mais importantes no
marco latino-americano foram a reativação da Quarta Frota, a assinatura do tratado Obama-Uribe, a ocupação militar de fato do Haiti, a construção do muro da vergonha entre o México e os EUA, o golpe de Estado em Honduras e a posterior legitimação da fraude e a concessão de novas bases militares pelo governo reacionário do Panamá. A tudo isso – obviamente articulado com a manutenção do bloqueio e do acosso à Revolução Cubana e o permanente ataque a Venezuela, Bolívia e Equador –, soma-se, agora, o desembarque dos marines na Costa Rica. Em resumo, o império aprofunda a militarização da região e os preparativos para uma aventura militar de proporções globais. Com isso em vista, os EUA procuram garantir, a qualquer preço, o controle absoluto e sem fissuras sobre o que seus estrategistas políticos denominam a grande ilha estadunidense, que se estende do Alasca à Terra do Fogo, separada tanto da massa terrestre eurasiática como da África, e que, segundo eles, desempenha um papel fundamental para a segurança nacional estadunidense. É ridículo pretenderem convencer nossos povos de que as duas dezenas de bases militares estabelecidas na região – junto às quais, agora, somam-se o desembarque na Costa Rica e a ativação da Quarta Frota – têm por objetivo combater o narcotráfico. Como a experiência nos ensina, não se com-
bate o narcotráfico com uma estratégia militar, e sim com uma política social. Experiências fracassadas
A experiência anterior da Colômbia e, agora, do México (com seus mais de 26 mil mortos desde que o presidente Felipe Calderón declarou sua “guerra ao narcotráfico”, em dezembro de 2006) atestam que o problema não se resolve com marines, porta-aviões, submarinos e helicópteros de artilharia, mas sim construindo uma sociedade justa e solidária, algo incompatível com a lógica do capitalismo e repugnante para os interesses fundamentais do império. Em síntese: o desembarque dos marines na Costa Rica tem por objetivo reforçar a dominação estadunidense na região, derrocar, por meio de diversos métodos, os governos considerados “inimigos” (Cuba, Venezuela, Bolívia e Equador), debilitar ainda mais os vacilantes e ambivalentes governos da centro-esquerda e fortalecer a direita, que vem crescendo no litoral do Pacífico (Chile, Peru, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Honduras e México), reordenando, desse modo, o “pátio traseiro” do império para, assim, ter as mãos livres e a retaguarda assegurada para sair a reafirmar a prepotência imperial guerreando em outras latitudes. (Página/12) Atilio Borón é cientista político Tradução: Igor Ojeda