BDF_387

Page 1

Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 8 • Número 387

São Paulo, de 29 de julho a 4 de agosto de 2010

R$ 2,80 www.brasildefato.com.br Sérgio Lima/Folhapress

Justiça ignora riscos à saúde e ao ambiente de obra da Vale A Justiça paraense ainda não se pronunciou a respeito de irregularidades apontadas pelo Ministério Público nas obras da siderúrgica Aços Laminados do Pará (Alpa), empreendimento da Vale. Em maio, a promotoria entrou com ação apontando riscos ambientais e à saúde. Pág. 5

Estado de Israel prende cerca de 700 crianças e jovens por ano Hoje, há cerca de 330 crianças e adolescentes palestinos presos em Israel, muitos acusados de crimes que sequer cometeram. A maioria das acusações são por jogar pedras durante manifestações ou por pertencimento a uma organização política. Pág. 8 ISSN 1978-5134

O candidato do PSDB à presidência José Serra, durante sabatina da CNA (Confederação Nacional da Agricultura)

Sem rumo, Serra apela para discurso ainda mais reacionário O candidato a presidente José Serra (PSDB) começou a campanha oficial com ataques a Dilma Rousseff e ao PT. Há até poucos meses, o tucano tentava evitar a imagem de candidato de oposição e ressaltava seu passado como liderança estudantil, opositor da ditadura e exilado. No entanto, diante do crescimento de Dilma,

Serra apelou para o discurso da direita tradicional brasileira. Aos moldes do anticomunismo mais atrasado, a coligação PSDB-DEM tenta associar o PT às Farc, ao narcotráfico e a presidentes de esquerda da América Latina. Até o momento, as pesquisas não comprovaram o êxito da estratégia. Pág. 3

Jose Lizaure/ABI

Arquivo Público do Estado de São Paulo

Bolívia tem nova lei de autonomias e descentralização O presidente boliviano Evo Morales promulgou, no dia 19 de julho, a Lei Marco de Autonomias e Descentralização. Assim, fica conformado o corpo legal básico que permitirá o pleno funcionamento do novo Estado boliviano, conforme a Nova Constituição. O passo é fundamental dentro do processo de mudanças que vem sendo posto em prática no governo liderado pelo Movimento ao Socialismo (MAS). A Lei Marco é a quinta grande mudança legal aprovada. As demais delinearam os novos Órgão Judicial, Tribunal Constitucional, Órgão Eleitoral e Regime Eleitoral. Pág. 12

A travessia

do rio dos

Mortos

O presidente boliviano Evo Morales

Reprodução

Especial desaparecidos da ditadura

Ricardo Stuckert/PR

Crise Colômbia x Venezuela abre espaço para a Unasul Novo organismo busca substituir a OEA venezuelano, Hugo Chávez (foto à direita), em torno da

a região.


2

de 29 de julho a 4 de agosto de 2010

editorial NA ÚLTIMA reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA), realizada em Washington (EUA), o governo colombiano Álvaro Uribe, seguindo um script previamente afinado com o governo dos Estados Unidos, lançou uma série de acusações sobre a existência de acampamentos guerrilheiros em território venezuelano. E, como já é de praxe, em seguida, toda a mídia burguesa repetiu incansavelmente. A candidatura Serra, pelo próprio tucano e através de seu vice, reforçam as acusações, amplificando-as para uma possível ligação também das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia-Exército do Povo (Farc) com o Partido dos Trabalhadores (PT). Em resposta às provocações, o governo Hugo Chávez, da Venezuela, agiu célere em defesa de sua soberania: cortou unilateralmente as relações diplomáticas com a Colômbia. Realmente não poderia ficar calado diante de tamanha audácia de um governo vizinho em fim de mandato – Uribe deixa o cargo em 7 de agosto. Mas a repercussão do teatro montado pelo mandatário colombiano não conseguiu obter apoio dos governos da região. Ao contrário, vizinhos como o Equador e a Bolívia exigiram explicações do presidente colombiano. E o Brasil tratou de colocar água fria e mediar a encenação de Uribe.

debate

As artimanhas de Uribe a serviço do império Mas, afinal, quais são os objetivos de tamanha bravata? Aparentemente, o presidente colombiano quis aproveitar sua última participação na reunião da falida OEA para criar um factoide que pudesse gerar polêmicas e conturbar o processo da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e da Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos (Celac). Uribe sabe que a OEA está com os dias contados e já não consegue unificar todos os países do continente. E a fundação (em fevereiro) e consolidação da Celac, sem os Estados Unidos e Canadá, serão a pá de cal na tumba da moribunda OEA, que já não representa nada. Em segundo lugar, Uribe faz um teatrinho para as disputas internas em seu país, tentando sinalizar para a esquerda e direita que continuaria ativo e com voz de comando entre as forças direitistas e fascistas. Afinal, seu próprio pimpolho recém-eleito, Juan Manuel Santos, dava sinais de querer se reaproximar da Venezuela e, também, de desejar se aproximar

mais dos interesses de Obama do que dos falcões do departamento de Estado dos EUA. O terceiro objetivo era prestar mais um serviço como marionete do departamento de Estado estadunidense, para fazer provocações baratas a Hugo Chávez e pautar as disputas político-ideológicas do continente. E isso ele conseguiu. Imediatamente após sua encenação teatral, todos os meios de comunicação da mídia oligopólica do continente passaram a pautar o tema. E os candidatos direitistas em nosso país se apressaram também em repercutir, amplificando as denúncias e tentando envolver o PT e a candidatura de Dilma Rousseff. Mas toda essa encenação baseada em factoides teve vida curta, deixando evidente suas manipulações. Porém, se a acusação de existência de colombianos em território venezuelano pudesse ser levada a sério, caberiam algumas perguntas: a) Quem seriam os responsáveis pela presença de forças paramili-

tares colombianas que, frequentemente, transpassam a fronteira e, às vezes, são presas até em Caracas? b) Quem seria responsável pelos narcotraficantes colombianos que circulam por diversos países da América Latina? c) Quem seriam os responsáveis pelos bilhões de dólares originários do narcotráfico que alimentam o sistema financeiro dos Estados Unidos? d) Por que quando o Brasil prendeu o número dois do narcotráfico colombiano, num luxuoso condomínio da burguesia paulistana, o governador Serra não se apressou em colocar a culpa no governo de Uribe? A verdade é que o senhor Uribe já vai tarde. Com uma biografia marcada por violência, perseguições, corrupção e subordinação total aos interesses do capital estadunidense, esse senhor não tem nenhuma moral para denunciar a quem quer seja. E, diga-se de passagem, havia acusação contra ele nas cortes do próprio Estados Unidos.

crônica

Roberta Traspadini

Desafios de um governo popular A HISTÓRIA do poder institucional no Brasil tem uma raiz colonial-republicana-neoliberal. O desenvolvimento do poder burguês imprimiu na sociedade brasileira dois conceitos-chave com seus respectivos conteúdos de classe: 1. A concepção de cidadania baseada em deveres, com direitos atrelados a eles. A premissa básica da cidadania capitalista clássica é o direito de consumir e o dever civil obrigatório de arcar com o pagamento da dívida; 2. A consolidação no imaginário coletivo brasileiro de um Estado de direito aparentemente democrático, próximo dos anseios de toda sociedade. Com base nessa construção de cidadania e de Estado “democrático de direito”, a burguesia se perpetua no poder e nega a possibilidade de levante da outra classe. Institui diversos mecanismos de dominação, de consolidação de uma forma única de agir e pensar e cria formas reais de opressão e exploração da classe trabalhadora. Os modelos brasileiros de escola, de saúde, de Estado de direito e de desenvolvimento são cópias originais de processos burgueses aparentemente bem-sucedidos em outros territórios conhecidos como desenvolvidos. Em pleno período eleitoral de continuidade do modo burguês de operar as regras do jogo na história brasileira, as perguntas-chave para a classe trabalhadora são: 1. O que é o poder popular? O poder popular é um processo de construção social da classe para si. É a consolidação de um poder com as formas e os conteúdos da classe trabalhadora. É o poder que, além de emanar da classe, pulsa e se revigora desde seu próprio protagonismo político enquanto sujeitos ativos não mais sujeitados à lógica operante do capital. O poder popular é o poder definido, disputado, consolidado, mantido e desenvolvido pela classe trabalhadora ao longo de seu caminhar histórico, tanto no poder institucional como para além dele. 2. Quais são as bases que sustentam esse poder? Organização, formação e luta de classes. Todo poder, seja ele burguês ou popular, necessita compreender tanto a estrutura de funcionamento que vigora sob as bases de dominação do inimigo como a que pretende ser posta em movimento pela própria classe. A formação é a base de consolidação de uma teoria da ação revolucionária. Base esta que coloca em movimento permanente o que se tem e o que deve ser superado para se concretizar o que se quer. Ela evidencia que a luta e a organização devem servir de elementos constitutivos no processo de compreensão da realidade a ser transformada. A luta de classes nos forma e nos forja a repensarmos a concepção de sujeito emanada do poder burguês. Mas essa luta, sem o referencial de classe, sem os conteúdos-chave de explicação oriundos dos próprios sujeitos da classe, não dá o

Luís Brasilino

salto qualitativo necessário, que é o de superar o vivido a partir de outro projeto próprio da classe. A organização, por sua vez, requer, tanto no reivindicativo como no revolucionário, a disciplina e o envolvimento participativo com tarefas bem distribuídas. Organizar as pautas reivindicativas, consolidar os projetos revolucionários, articular e dar unidade ao projeto são os elementos constitutivos da organização popular manifesta na luta de classes. Organizar significa constituir um partido que estabeleça, na estratégia e na tática, os elementos-chave da consolidação do poder popular da classe trabalhadora. 3. Quais os desafios do poder popular? Primeiro: organização popular da classe frente a um mundo do trabalho fragmentado, heterogêneo e diversificado. Organização popular em que o resgate da memória e da história das lutas dos trabalhadores seja tomado como essencial no “que-fazer” da classe para si. Parte expressiva da classe trabalhadora brasileira e mundial está imersa no mundo da sobrevivência cada vez mais desumano no tempo que requer para se manter vivo, a partir de uma lógica de trabalhadores livres escravos de um trabalho mal-remunerado. Com base neste curto espaço de tempo fora do mundo do trabalho, que deverá ser compartilhado entre família, tempo livre, estudo e outros aspectos, é central no processo de reconhecimento dos sujeitos políticos a decisão de dar prioridade à militância nas causas da classe. Reconhecer-se como classe não é uma opção individual feita a partir da seleção de temas comuns. Reconhecer-se como classe trabalhadora é fruto de uma formação coletiva em que as lutas tornamse comuns, ainda em meio a pautas diversas. Segundo: compreender a atual forma-conteúdo da classe trabalhadora nos seus respectivos territórios e definir uma atuação concreta dos sujeitos a partir do cotidiano diverso da classe. Isto requer a retomada da educação popular como elemento constitutivo dos encontros nos territórios e nos espaços de organização da classe trabalhadora.

A educação popular nos permite ressignificar os encontros na produção cotidiana de um processo a ser protagonizado pela classe com compreensão dos limites e possibilidades, frutos do nosso tempo histórico. Terceiro: consolidação de um projeto comum – que dispute as eleições, mas que vá além – nos elementos estratégicos cotidianos da classe em que estejam pautados os modelos de desenvolvimento, de educação, de agricultura, de saúde e de garantia do público, com redução gradativa ou radical dos espaços privados no que é estratégico para a classe. Projeto em que os trabalhadores se reconheçam não somente no mundo das necessidades, mas no mundo da produção do que realmente desejam implementar, executar, avaliar, avançar. Quarto: materialização do poder popular nos territórios, nos espaços de ocupação da classe, na produção da vida, em que a propriedade privada dos fatores e meios de produção seja substituída pela propriedade comum no desenvolvimento sustentável do humano não mercantilizado e da vida regida por ele. Quinto: realização de outro conceito de vida, de sociedade, de relação internacional e integração centrada nas reais necessidades instituídas pelos trabalhadores do mundo, como protagonistas políticos do processo de desenvolvimento que realizam e que lhes pertence. Estes são apenas alguns dos desafios que integram o processo de consolidação do poder popular que, além de disputar o eleitoral, criam as bases de manutenção para a execução e perpetuação de seu poder de classe. Esses elementos, integrados a outros tantos, têm que permitir que pelas veias abertas da América Latina circulem as produções provenientes de outro processo coletivo de desenvolvimento. Processo em que o sangue e o suor da classe trabalhadora latina consolidem a construção coletiva e comum de uma riqueza cujo valor de uso se sobreponha ao valor mercantil impresso na história hegemônica de manutenção do projeto burguês no continente. Roberta Traspadini é economista, educadora popular, integrante da Consulta Popular/ES

A velha OEA também já teve seu prazo de validade vencido. E se prestar a esse tipo de maniqueísmo barato só acelera sua inutilidade. Com a constituição formal da Celac, em fevereiro, e a realização da plenária continental, em julho de 2011, seus dias estão contados. Já no Brasil, a direita, atônita e prevendo mais uma derrota eleitoral, vocifera como cão de guarda em seus poderosos meios de comunicação, aumentando o tom contra Chávez e Evo Morales (Bolívia). Mas as forças progressistas, os movimentos sociais de todo o continente estão alertas e reagiram, em toda parte, ridicularizando o triste papel de Uribe. Oxalá o novo presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, tenha mais juízo e seja um pouco mais independente dos interesses estadunidenses, e que as relações diplomáticas entre os dois países possam se normalizar. O presidente eleito sabe que o rompimento das relações com a Venezuela trará muitas contradições internas com a própria burguesia colombiana, que vende, em média, 6 bilhões de dólares anuais ao país vizinho. E vende produtos alimentícios e da indústria de consumo popular, que não terá mercado em nenhuma outra parte, muito menos nos Estados Unidos.

Marcelo Barros

Democratizar a democracia NESTES DIAS, vários países latino-americanos e até de outros continentes recordam o ideal da libertação e da independência de seus povos. No dia 19, a Nicarágua celebrou o aniversário da vitória da Revolução Sandinista, que libertou o país da ditadura de Somoza (1979). Em Cuba, 26 de julho lembra o dia do assalto dos revolucionários comandados pelo jovem Fidel Castro ao quartel de Moncada (1953). Foi o passo decisivo para a vitória da revolução popular. A cada ano, o povo celebra esse aniversário como “o primeiro território livre das Américas”. No dia 28, o Peru recorda o dia de sua independência (1821). Uma marcha indígena reclama uma independência também social e econômica. O Paraguai se prepara para receber, nos próximos dias, o Fórum Social das Américas. Isso só é possível porque, depois de séculos de dominação, o país elegeu um governo mais democrático. Na Venezuela, o povo terá outra eleição democrática. Será a 12ª ocorrida sob a liderança do presidente Hugo Chávez. As agências internacionais de notícia, apesar de detestarem o governo bolivariano, têm de reconhecer que são eleições honestas, democráticas e justas. No Brasil, onde os principais jornais e meios de comunicação continuam a fazer campanha contra o presidente da República, este obtém aprovação de mais de 80% da população. Hoje, o mundo se debate em uma crise social, econômica e ecológica. Esta revela o fracasso do sistema social e político internacional, profundamente desumano com os trabalhadores e com a grande massa dos pobres. Enquanto isso, na América Latina, organizações indígenas, movimentos de trabalhadores rurais e populações de periferia urbana têm fortalecido um novo processo social e político. Elegeram governantes populares e votaram em novas constituições, que garantem direitos de cidadania para todos. Ainda há um longo caminho a percorrer, mas é profundamente esperançoso ver a Organização das Nações Unidas (ONU) declarar a Venezuela um país livre do analfabetismo. Há apenas dez anos, mais de 50% do povo venezuelano era analfabeto, e a pobreza atingia mais de 90% da população. Hoje, a reforma agrária e as novas leis trabalhistas garantem trabalho e renda mais digna para a maioria. Na mesma linha, pela primeira vez, o povo da Bolívia elege um índio como presidente. Há poucos meses, ele foi reeleito com mais de 70% de aprovação. E acaba de receber um prêmio internacional da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) pelo seu plano de alfabetização de adultos e sua política de inclusão dos povos indígenas no destino do país. No Brasil, apesar da senadora do Tocantins declarar que é normal trabalhadores rurais serem escravizados por grandes fazendeiros, o governo brasileiro continua lutando para acabar com a escravidão no campo. Não há como negar: em meio a contradições e muitas dificuldades, em todo o continente, florescem novos movimentos sociais e políticos. Eles não se baseiam em partidos e não se classificam nos moldes dos velhos padrões socialistas. Inspiram-se nas culturas indígenas e buscam como critério “o bom viver”, ideal que as civilizações andinas propõem para todas as pessoas e até na relação com todos os seres vivos. Os governos todos são eleitos e respeitam eleições democráticas e o sistema parlamentar. Entretanto, ao lado da democracia representativa, aprofundam o direito constitucional das comunidades e organizações populares participarem mais das decisões sociais e políticas. É a “democracia participativa” que assegura o direito do povo destituir qualquer deputado ou governante, mesmo no meio de um mandato, se este não cumprir o compromisso assumido com seus eleitores. Neste começo de campanha eleitoral, é bom os candidatos saberem disto: cada vez mais, também no Brasil, os eleitores terão mais direito de intervir nos destinos do país e do Estado. Mesmo se as instâncias do Judiciário ainda aceitarem candidaturas menos limpas, cada vez mais a consciência do povo rejeitará candidatos acusados de corrupção. A Lei da Ficha Limpa veio para ficar. Além disso, o antigo Código de Graciano, lei das Igrejas cristãs nos primeiros séculos, já ensinava: “Tudo o que diz respeito a todos deve ser, por direito, decidido por todos”. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 30 livros, entre os quais Dom Helder, profeta para os nossos dias, Goiás, Ed. Rede da Paz, 2006.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


de 29 de julho a 4 de agosto de 2010

3

brasil

Desnorteado, Serra se agarra à direita Sérgio Lima/Folhapress

ELEIÇÕES Candidato do PSDB aceita as críticas de seu vice ao PT e ataca países vizinhos Renato Godoy de Toledo da Redação JÁ NA PRIMEIRA semana oficial da campanha presidencial, o candidato à vice-presidência Índio da Costa (DEM), da chapa de José Serra (PSDB), fez com que a imagem “progressista” que o tucano buscava construir caísse por terra. Em uma entrevista a um site da campanha tucana, o membro do antigo PFL associou o PT às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), ao narcotráfico e a “tudo que há de pior”. O constrangimento da cúpula tucana foi evidente. Após a repercussão do caso, os administradores do site retiraram o vídeo do ar. No entanto, o presidenciável José Serra tratou de afagar o seu vice, reiterando que o PT possui relações com os guerrilheiros colombianos – “mas não com o narcotráfico”. Segundo o ex-governador paulista, a relação do PT com as Farc é pública e notória. “O PT e as Farc fazem piquenique juntos”, afirmou Serra, em Porto Alegre. Serra manteve o tom agressivo contra países governados pela esquerda latino-americana. Em junho, acusou a Bolívia de ser conivente com o narcotráfico. Agora, afirma que Hugo Chávez dá abrigo a guerrilheiros das Farc. A postura tucana aponta o que seria um governo do PSDB: relações estremecidas

O candidato à presidência da República José Serra lutou, mas não conseguiu criar uma imagem “progressista”

com vizinhos progressistas e alinhamento fiel aos EUA, com enfoque na “guerra ao terror” e ao narcotráfico, aos moldes do que a Colômbia já pratica no continente. Ao mesmo tempo, em questões internas, o candidato aponta que pretende manter e ampliar os programas que são carro-chefe do governo Lula, tentando atrair uma parcela do eleitorado que se inclinaria a votar em Dilma Rousseff (PT). Sem foco

Para o sociólogo Rudá Ricci, a elevação do tom da campanha do PSDB é reflexo das

“O discurso internacional da campanha demo-tucana está a serviço desses interesses estrangeiros, interesses imperialistas, como diríamos noutros tempos”, avalia Valter Pomar dificuldades que a coligação tem passado nos últimos meses. “O fato é que ele está num momento difícil porque precisa se viabilizar como candidato, e as pesquisas indicam que já teria atingido seu teto de intenção de votos, mostrando que sua ad-

versária continua crescendo, embora mais modestamente que em relação ao início do ano. Minha impressão é que ele não conseguiu acertar um discurso de campanha, um foco. Desde o início vem saltando temas. Ao perceber que seu eleitorado é mais conser-

vador, parece tentar garantir sua identidade para que consiga estancar a sangria. Não se trata, portanto, de uma questão ideológica, mas meramente eleitoreira”, aponta. Na opinião do petista Valter Pomar, do Diretório Nacional do partido, a postura adotada por Serra nos últimos dias revela em que posição do espectro político a coligação se situa, à direita. “Endurecer o discurso tem um pouco de tática, mas também é ato reflexo de uma candidatura de direita. No que possui de tática, essa atitude visa, em primeiro lugar, deter a debandada de eleitores e de figuras pú-

blicas dos partidos oposicionistas em direção à candidatura Dilma. E visa, em segundo lugar, jogar cascas de banana no nosso caminho. Mas acontece que pisar nelas e escorregar depende de nós. Uma campanha em dificuldades apela para mentiras. Uma campanha de direita usa argumentos de direita. No caso, Serra olha o mundo e a região a partir do ponto de vista dos Estados Unidos. O discurso internacional da campanha demo-tucana está a serviço desses interesses estrangeiros, interesses imperialistas, como diríamos noutros tempos”, avalia.

Estratégia não é eficiente, aponta sociólogo

Tucano teve encontro com Farc em 1999

Tentativa de colar PT e Dilma à guerrilha não deve surtir efeito, afirma Rudá Ricci

Em busca de apoio para acordo de paz, representante da guerrilha esteve com políticos brasileiros

Waldemir Rodrigues/Agência Senado

da Redação A candidatura José Serra (PSDB) apresentou uma mudança de discurso em um curto espaço de tempo. O ex-líder estudantil, perseguido pela ditadura e exilado parece ter dado espaço ao gestor eficiente que deve combater a expansão da esquerda na América Latina. Baseado em uma estratégia aos moldes do anticomunismo tradicional, a campanha de Serra vem tentando desgastar a candidata de Lula não por críticas ao seu governo – com avaliação recorde –, mas pela associação a alguns aliados políticos do presidente na região. Hugo Chávez, Evo Morales, as Farc e os irmãos Raúl e Fidel Castro têm aparecido como os “amigos do PT” nos discursos de Serra e de seu vice Índio da Costa. Após a massiva aparição deste tema na imprensa, as pesquisas eleitorais evidenciaram que a estratégia não obteve êxito, por enquanto. A única mudança perceptível foi a disparada de Dilma na pesquisa Vox Populi, em que a petista aparece com 41%, contra 33% do tucano. Na enquete do Datafolha, o cenário de empate técnico se manteve. De acordo com o sociólogo Rudá Ricci, a tentativa

de associar Lula a um radicalismo de esquerda já não é exitosa como foi há algumas décadas. “[A associação do PT às Farc] não me parece um tema relevante nesta eleição por vários motivos. O primeiro deles: o eleitorado de Lula é conservador, como já demonstraram inúmeras pesquisas. Não é progressista. E é pragmático. Lula não é associado aos grupos guerrilheiros. As pesquisas revelam que Lula é considerado um político pragmático, que melhorou as condições de vida da maioria da população sem romper com a ordem. Enfim, o discurso mais à direita organiza a base eleitoral de Serra, mas não rouba votos do lulismo, incluindo a candidata do lulismo”, aponta.

“Num momento em que perde fôlego, resta à oposição estancar a sangria e tentar provar que a candidata de Lula é pior que ele, incapaz de garantir estabilidade e gerenciamento eficiente” Novo cenário

Para Ricci, a eleição deste ano se dará em um cenário

em que a maioria do eleitorado pertence à classe C. Em parte, essa fração da sociedade chegou a essa posição nos últimos 10 anos. Segundo o sociólogo, há pesquisas que apontam que esse estrato social apresenta uma postura pragmática e individualista. “Este parece ser um eleitorado muito satisfeito com a performance de Lula. Há identidade entre o pragmatismo de um e outro. Contudo, trata-se de um eleitorado conservador. Temas como aborto são abominados por esse segmento. Esta eleição já é plebiscitária. Para a oposição, tratase de apresentar um projeto que se apresente mais seguro à estabilidade e ascensão da classe C que o apresentado por Lula”, analisa. Nesse quadro, ainda de acordo com Ricci, a disputa real não se dá entre Serra e Dilma, mas entre o que o lulismo representa hoje e algo que poderia ser melhor do que ele. Tal cenário tem deixado a oposição de direita com dificuldades de encontrar um eixo. “A eleição se dá entre o lulismo e algo que se apresente mais eficiente que ele. E a oposição não conseguiu construir, até o momento, uma proposta verossímil que seja superior ao lulismo. Num momento em que perde fôlego, resta à oposição estancar a sangria e tentar provar que a candidata de Lula é pior que ele, incapaz de garantir estabilidade e gerenciamento eficiente. Os serristas ainda não conseguiram projetar uma proposta convincente. Tentam, no momento, debelar a identidade de Dilma com Lula. E nada mais”, completa. (RGT)

da Redação Índio da Costa (DEM) e José Serra (PSDB) sustentam que a relação do PT com as Farc advêm do Fórum de São Paulo (FSP), criado em 1990. Esse grupo reúne partidos e movimentos de esquerda da América Latina e, ao contrário do que sustenta o PSDB-DEM, as Farc não participaram da fundação do FSP. A guerrilha colombiana chegou a participar de alguns encontros, mas não gozava de bom trânsito no órgão, sobretudo quando aumentaram as acusações por parte da imprensa internacional de que o grupo abandonara a luta política e tornara-se uma entidade criminosa. No final dos anos de 1990, as Farc, os grupos paramilitares de direita e o governo colombiano chegaram a esboçar um princípio de solução pacífica para o conflito armado no país, que dura desde a década de 1960. Em uma dessas investidas, em 1999, o representante das Farc, Hernán Ramiréz, veio ao Brasil buscar apoio para as negociações de paz. No Rio Grande do Sul, reuniu-se com o então governador petista Olívio Dutra. Em Brasília, encontrou-

O senador tucano Arthur Virgílio

se com o então deputado Artur Virgílio (PSDB), secretário-geral do partido na época. A pauta da reunião tratava da abertura de um escritório da guerrilha no país para mediar os conflitos. Hoje senador, Virgílio é um dos principais expoentes do partido e não se pronunciou sobre sua “relação” com a guerrilha.

“Hoje, o conflito armado interessa aos Estados Unidos, que quer manter presença militar na região” Relação com as Farc

De acordo com Valter Pomar, membro do diretório nacional do PT e secretário do FSP, o partido nunca teve re-

lações com a guerrilha colombiana. Para ele, que foi secretário de relações internacionais do partido, a saída negociada de paz na Colômbia não depende apenas de as Farc abandonarem as armas. Em outras ocasiões, como nos anos de 1980 e 1990, após acordos de paz, a direita colombiana assassinou milhares de militantes de esquerda que abandonaram a luta armada. “Isso cria uma enorme desconfiança entre os que estão na guerrilha acerca do que pode acontecer caso deixem as armas e optem pela luta social e eleitoral. Entretanto, hoje, o fato de existir uma maioria de governos progressistas e de esquerda na América do Sul cria as condições internacionais para um acordo de paz que seja confiável. Hoje, o conflito armado interessa aos Estados Unidos, que quer manter presença militar na região; e interessa à direita colombiana, que usa o medo como argumento eleitoral e também para receber recursos dos EUA”, sustenta. (RGT)


4

de 29 de julho a 4 de agosto de 2010

brasil

STF abre brecha para que pacientes paguem por atendimento no SUS Ivan de Andrade/Palácio Piratini

SAÚDE Em decisão favorável ao Conselho de Medicina do Rio Grande do Sul, STF permite pagamento no município de Giruá Raquel Júnia do Rio de Janeiro (RJ) EM GIRUÁ, no Rio Grande do Sul, há pouco mais de 17 mil habitantes. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, a rede de saúde do município é composta por quatro postos de Saúde da Família (PSFs) e um posto central que atende especialidades. Além disso, há também outros cinco postos em distritos do interior, onde ocorre atendimento uma vez por semana. Existe um único hospital em Giruá, que não é público e sim filantrópico, mas atende pelo SUS e destina cerca de 32 dos 50 leitos ao serviço público de saúde, por meio de convênio. De acordo com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) proferida em maio, passa a ser instituída em Giruá a chamada “diferença de classe” no serviço público de saúde. Isto significa que qualquer habitante da cidade que tenha dinheiro poderá pagar por determinado serviço nesse único hospital da cidade, que atende pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O paciente pode comprar um leito individual ou a possibilidade de ser operado por determinado médico de sua preferência. O pagamento pode ser feito ao hospital e também ao profissional escolhido. A ação para permitir essa diferenciação de classe partiu do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) e obteve decisão favorável da Vara Federal de Santo Ângelo (RS). Há outras 11 ações do Cremers contra 10 municípios e uma contra o governo do estado, que também é responsável pela gestão da saúde em cidades gaúchas. A prefeitura de Giruá entrou com uma ação na Justiça Federal para não cumprir o que determina o STF. De acordo com o prefeito da cidade, Fabiam Thomas (PDT), não é possível que o município cumpra a diferenciação de classe, e a prefeitura está disposta, inclusive, a pagar multa caso os instrumentos jurídicos que está movendo para embargar a decisão não surtam efeito.

“Isso vai permitir que usuários do SUS sejam tratados diferentemente de acordo com sua condição econômica, o que contraria todos princípios constitucionais que regulam o Sistema” Foi estipulada uma pena de R$ 500 por dia caso Giruá não estabeleça a possibilidade de pagamento pelo SUS. “Não há como cumprir essa decisão sem descumprir inúmeras outras normas, principalmente a Constituição Federal, porque essa decisão tem um alcance muito maior do que se imagina. Não é simplesmente dar ao cidadão o direito de pagar a diferença e escolher um

Crianças repousam em leito de hospital no município de Giruá (RS)

quarto melhor ou o seu médico. Estamos falando do SUS, que possui duas marcas muito evidentes: uma é a igualdade e outra é a gratuidade. O gestor de saúde hoje não pede o contracheque de ninguém no posto de saúde”, protesta o prefeito. No dia 8 de julho, uma comitiva formada por prefeitos e secretários de municípios do Rio Grande do Sul, representantes do Conselho Nacional de Saúde, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), de associações dos municípios, da procuradoria do estado e deputados realizaram uma audiência com o ministro do STF, Carlos Ayres Britto, para questionar a decisão. “Na audiência, foi ressaltado pela procuradora do estado do Rio Grande do Sul a diferença entre os primeiros casos que criaram a jurisprudência no tribunal e os casos que estão sendo julgados atualmente. O Supremo está utilizando uma jurisprudência dele mesmo, mas os casos concretos são diferentes. O ministro disse que reconhecia a gravidade da situação e que iria avaliar a questão com cuidado”, conta a assessora jurídica do Conasems, Fernanda Terrazas. Fernanda explica que as decisões anteriores nas quais o Supremo se baseou para julgar a medida em relação ao município de Giruá foram relativas a casos de pessoas que solicitavam acomodações diferenciadas no SUS em decorrência de uma necessidade de saúde. Ela exemplifica com o caso de um paciente com leucemia que, por isso, precisava de um isolamento. Mas numa situação como esta, segundo Fernanda, o SUS já seria obrigado a dar esse tratamento diferenciado devido a uma necessidade de saúde. “O que o STF fez foi apenas garantir esse direito”, afirma. O Procurador Regional da República da 4ª região (Rio Grande do Sul), Paulo Leivas, diz que, nesse caso, a jurisprudência – decisão que abre precedentes para que outras situações tenham o mesmo julgamento – é questionável. “Ela se cria exatamente a partir da repetição de fatos: é aplicado o mesmo entendimento judicial em relação aos mesmos fatos. Então, se aquelas decisões foram tomadas para casos distintos, não se pode dizer que há uma jurisprudência do Supremo em relação a essa matéria”, diz. Decisão polêmica Paulo Leivas considera que, se o STF fizer uma análise melhor do caso, poderá haver uma decisão diferente com relação às outras 11 ações movidas pelo Cremers, já que, na opinião dele, não foram atentados nessa decisão a estrutura e o funcionamento do SUS. “A Justiça tem considerado há muitos anos ilegal, inclusive considerando crime, a cobrança de honorários mé-

“Esses movimentos são as provas absolutamente cabais de que estão em curso já há alguns anos os processos de desconstrução do SUS” dicos de usuários do SUS”, aponta. Paulo informa que foi feito um pedido de vista pelo Ministério Público Federal dos processos em tramitação, o que também pode contribuir para mudar o entendimento sobre o tema. O procurador questiona também o fato de essa matéria ter sido analisada e a decisão, tomada por um único ministro. Para ele, a possibilidade de qualquer pagamento dentro do SUS viola o direito de

igualdade previsto na Constituição. “Isso vai permitir que usuários do SUS sejam tratados diferentemente de acordo com sua condição econômica, o que contraria todos os princípios constitucionais que regulam o Sistema”, destaca. O Cremers, entretanto, tem uma leitura diferente da situação. O presidente da entidade, Fernando Mattos, diz, inclusive, que a medida pode ajudar a Constituição a ser cumprida. “Todos nós, ricos ou po-

bres, temos o direito constitucional individual de utilizar o SUS, mas na maioria das vezes nós estamos aguardando numa fila de espera que demora um, dois, três anos. Neste caso, os pacientes com maior poder aquisitivo poderiam pagar pela diferença de classe, por um quarto em melhores condições que permitisse ficar junto com seus familiares na hora da doença e escolher o seu médico de confiança”, argumenta. Para o Cremers, a decisão ajuda, inclusive, a reduzir as filas do SUS. “Na medida em que um paciente está na fila e consegue sair dela pagando ele mesmo, pelo seu direito, abre oportunidade para o próximo que, por sua vez, chegará mais rapidamente

para receber o atendimento do SUS”, defende Fernando. O médico explica que, neste caso, o SUS seria desonerado do pagamento do quarto e do médico e arcaria com os gastos de medicamentos e exames que o paciente faria durante a hospitalização. O presidente do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Batista Júnior, que também esteve na audiência junto ao STF para questionar a decisão, refuta o argumento de que as filas do SUS diminuirão. “Quem está na fila hoje é quem não tem condição de pagar um plano de saúde e um procedimento privado, e essa pessoa não pagaria de qualquer maneira. Ela permanecerá na fila e agora com um quadro mais grave: esta fila será furada, como se diz popularmente”, contesta. Francisco diz que o Conselho lamenta muito que a ação tenha partido de um órgão de classe que representa profissionais da saúde. Para ele, trata-se de uma tentativa de reserva de mercado para os médicos. “Isto é uma violência com os princípios básicos do SUS. Nós temos um sentimento que eu não sei se é tristeza ou indignação – tudo que nós sempre combatemos para implementar o SUS de repente aparece através de uma proposta que é desconstrutiva, desestruturante, violenta, ilegal, imoral e antiética”, comenta. (Publicado originalmente na Revista Poli – saúde, educação e trabalho, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – Fiocruz)

Críticas à desconstrução do Sistema Prefeitura de Giruá

do Rio de Janeiro (RJ) Há cerca de 10 anos, começou a ser deflagrado no país um movimento para desconstruir o SUS, fisicamente, politicamente e ideologicamente. O diagnóstico é do presidente do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Batista Júnior. Para ele, a diferença de classes é uma das ações que vêm sendo adotadas para desestruturar o sistema. “São vários os movimentos: estão aí as fundações de direito privado e as parceirizações, que é como estão sendo chamadas as privatizações da gestão do SUS, como a parceria público-privada que está sendo realizada na Bahia com atores internacionais. Para mim, esses movimentos são as provas absolutamente cabais de que estão em curso já há alguns anos os processos de desconstrução do SUS”, explicita.

“Trata-se de um retrocesso legitimado pelo Poder Judiciário e levado a cabo por uma instância de classe. É evidente que há médicos que não compraram a ideia do SUS” Os professores-pesquisadores da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Felipe Machado e Camila Borges acreditam que a diferença de classe fere a universalidade, princípio fundante do

O prefeito de Giruá, Fabiam Thomas

SUS e que o separa do sistema de saúde que vigorava anteriormente. “É um retrocesso assustador em direção à situação que a gente viveu até a Constituição de 1988, na qual se diferenciava o tipo de atendimento pelo tipo de inserção que o paciente tinha no mercado. O SUS tenta romper com isso. Trata-se de um retrocesso legitimado pelo Poder Judiciário e levado a cabo por uma instância de classe. É evidente que há médicos que não compraram a ideia do SUS”, diz Felipe. Camila aponta que a dependência do SUS em relação aos setores privados que atuam em convênio com o sistema público é um agravante para esse tipo de problema. “O Poder Executivo tem dificuldades de dotar o orçamento para investir em rede própria. Quando conseguirmos investir em rede própria talvez diminuamos a dependência do setor filantrópico, que é uma instância privada, e consi-

gamos fazer frente a esse tipo de ação”, observa. Retrocessos paulatinos Os pesquisadores explicam que na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, foi aprovada a total estatização da saúde, de forma que não poderiam existir no país redes de saúde privada. Entretanto, na Constituição isso não foi garantido, mas sim a convivência entre os sistemas público e privado de saúde. Foi definido ainda que os últimos poderiam participar do SUS de forma complementar, mediante convênio ou contrato de serviços. Atualmente, de acordo com dados do Conselho Nacional de Saúde, mais de 90% de alguns procedimentos, como hemodiálise e análises clínicas, estão na rede privada. Essas instituições são pagas pelo SUS para oferecer atendimentos gratuitos à população. Para Felipe, a definição pela diferença de classe no

SUS está dentro das recentes práticas de judicialização da saúde, nas quais há uma sobreposição do indivíduo em relação à coletividade, pela via judicial. “Isso tem acontecido no SUS de outras formas. A pessoa que tem curso superior, que fala inglês, que tem acesso aos estudos científicos de uma universidade estrangeira, por exemplo, descobre que estão pesquisando um leite que talvez sirva para o filho dela. O leite não é vendido no Brasil, custa 2 mil dólares a lata, e ela entra na Justiça para o Estado comprar. É a mesma coisa, é o Judiciário atuando para garantir os privilégios e o status de classe”, opina. Resistência De acordo com Francisco, o CNS, junto a outras entidades, continuará tentando conversar com os ministros do STF para que não julguem as outras ações do Cremers da mesma maneira. Para o prefeito de Giruá, Fabiam Thomas, os municípios devem continuar mobilizados para impedir decisões como esta. Na opinião dele, se o julgamento for o mesmo em relação a outras cidades do Rio Grande do Sul, isso pode significar a expansão de ações desse tipo por conselhos de medicina de outros estados. “Todas as entidades nacionais estão envolvidas nessa luta, como os conselhos e a própria secretaria de estado. O sistema não tem como continuar com o poder econômico fazendo parte do processo de escolha, todos têm que percorrer o mesmo caminho para poder se beneficiar do SUS – esta é a essência. Isso existia no antigo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) e a própria sociedade brasileira fez questão de sepultar esse sistema”, recorda o prefeito. (RJ)


de 29 de julho a 4 de agosto de 2010

5

brasil

Com riscos à saúde e ao ambiente, siderúrgica da Vale no Pará avança PARÁ Ministério Público cobra evidências científicas sobre o empreendimento e suspensão da licença prévia Ricardo Stuckert/PR

O presidente Lula e a governadora do Pará, Ana Júlia, dão início à terraplanagem da usina siderúrgica Aços Laminados do Pará (Alpa)

Marcio Zonta de Marabá (PA) AS OBRAS DA siderúrgica Aços Laminados do Pará (Alpa), indústria que a Vale planeja instalar em Marabá (PA), no sudeste do estado, continua mesmo depois que o Ministério Público do Estado do Pará (MPE) e o Ministério Público Federal (MPF) enviaram, em maio, à Justiça paraense uma ação civil pública apontando irregularidades na construção e no futuro funcionamento da siderúrgica. No processo, o procurador da República Tiago Modesto Rabelo, responsável pela ação, indica as principais irregularidades do projeto: “realização de audiência pública em desconformidade com a legislação pertinente; acesso insuficiente ao EIA-Rima [Estudo

“É inadmissível que as coisas sejam conduzidas de qualquer forma, em atropelo aos ditames constitucionais” e Relatório de Impacto Ambiental] para análise adequada e nem prazo razoável dos estudos de impactos ambientais; insuficiente publicidade dos estudos; e, consequente, participação inefetiva dos interessados na audiência”. A ação pede a realização de novas audiências públicas, anulação da licença prévia e suspensão do licenciamento ambiental da siderúrgica. Pressa Rabelo indica que as falhas do processo que concedeu o licenciamento prévio são resultado da pressa em aprovar o

População adormece diante das promessas dos empreendedores de Marabá (PA) Embora tente se protestar pelo plano jurídico contra a Alpa, o advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), José Batista Afonso, reconhece que “não dá para barrar esses projetos apenas juridicamente. Uma frente da sociedade tem que ser urgida, pois os tribunais superiores são altamente influenciáveis a favor dos executores”. No entanto, ele identifica os motivos que fragilizam a participação mais efetiva da população contra a irregularidade desses empreendimentos. “A propaganda de crescimento econômico e emprego adormece os setores da sociedade civil. Hoje, a mobilização, principalmente contra o projeto Alpa, inexiste”, observa. Num dos lugares mais movimentados de Marabá, conhecido como a Feira da Folha 28, o senhor Adelson, de 65 anos, reforça a constatação de Batista ao defender a construção da Alpa: “vai gerar crescimento, mais emprego, acho que vai ser bom”.

Falácias Para o professor de Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará (UFPA), Cloves Barbosa, as justificativas difundidas pelos diversos meios de comunicação formam uma opinião favorável na população. “O que parece aos olhos e mentes das pessoas é que está acontecendo a implantação de um grande empreendimento que vai gerar mais empregos, trazer maiores oportunidades de geração de renda e proporcionar maiores chances de formação profissional. Mas isto não passa de um grande engano geral”, reflete. Contudo, o jovem Antônio, de 25 anos, vendedor de relógios na Feira da Folha 28, se entusiasma: “esse projeto significa esperança para o jovem, a região vai desenvolver, vai ter emprego para todos”. Barbosa, porém, observa que, “quanto mais o capitalismo avança, mais os empreendimentos se tornam marcados pelo uso de tecnologias e máquinas que empregam cada vez menores quantidades de força de trabalho”. (MZ)

projeto. “Afinal, que esclarecimentos acerca da análise pública do relatório de impacto ambiental poderiam ter sido prestados em audiência, sendo que tais informações ainda estavam sendo colhidas?”, questiona. Em nota, a Associação dos Servidores da Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Pará disse que denunciou ao MPE a pressão sofrida por parte de ocupantes de cargos superiores e informou que – “dada a exiguidade do prazo de análise do empreendimento com vistas à apreciação da licença prévia, recentemente

concedida” – não foram realizados os estudos necessários e aprofundados da obra. Os servidores também criticaram, além da pressa, “a adoção de posturas informais na Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema), de forma a atropelar as devidas cautelas exigidas pelos estudos”. O MPE informou optar pela via judicial, principalmente, porque a Sema não atendeu aos pedidos do órgão para novas audiências e estudos. Para Rabelo, é “inadmissível que as coisas sejam conduzidas de qualquer forma, em atropelo aos ditames constitucionais, legais e aos preceitos e princípios que regem o procedimento de licenciamento ambiental”. Risco de câncer Uma das preocupações que fez o MPE agir é o risco emi-

nente dos trabalhadores da siderúrgica e população circundante contraírem câncer. Segundo apuração técnica da promotoria, “o estudo considera injustificável o fato do projeto Alpa não possuir medida de controle para o benzeno, nem para outros compostos aromáticos tão perigosos quanto este poluente”. De acordo com o Ministério da Saúde, o benzeno é cancerígeno, mesmo em baixas concentrações. José Batista Afonso, advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), afirma que “nem o Estado nem a Vale apresentaram estudo que mostra esses impactos ambientais e os níveis de poluição do ar, do solo e da água”. André Raupp, do MPE, e que também acompanha o desfecho da liminar enviada à justiça do Pará, desaba-

fa: “Tentar fazer com que os estudos sobre os empreendimentos tenham maior publicidade tem sido talvez a maior dificuldade da atuação do Ministério Público em relação a projetos como esses na Amazônia”.

Para entender EIA-Rima – O Estudo e o respectivo Relatório de Impacto Ambiental são dois documentos distintos, que servem como instrumento de Avaliação de Impacto Ambiental (AIA), parte integrante do processo de licenciamento ambiental. No EIA é apresentado o detalhamento de todos os levantamentos técnicos e no Rima é colocada a conclusão do estudo, em linguagem acessível, para facilitar a análise por parte do público interessado.

Grandes projetos minerais deixam rastro de destruição Douglas Mansur/Novo Movimento

Pobreza, destruição da natureza e inchaço de população nas cidades são intrínsecas aos empreendimentos de mineração de Marabá (PA) Um estudo realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (Cepasp) e Movimento Debate e Ação (MDA) mostra a nocividade de projetos de mineração como o da siderúrgica Aços Laminados do Pará (Alpa) para o meio ambiente e para a sociedade. Raimundo Gomes, uns dos coordenadores do estudo, diz que o desmatamento em grande escala é inevitável. “A floresta é derrubada na área da jazida onde vai ser retirado o minério”, introduz. No entanto, a degradação na natureza se acentua, pois, “mais áreas são desmatadas no entorno para a construção de alo-

Extração de minério de ferro no Pará

“O que se vê são o equívoco e as contradições desses grandes empreendimentos minerais, que saqueiam nossa riqueza e em troca deixa a miséria e a pobreza” jamentos, estradas, linhas de transmissão de energia e pátios de depósitos de minério”. Segundo o estudo, a poluição é outro agravante. “O ar, a água e o solo são contaminados pelo uso de tóxicos e substâncias utilizadas no processo de extração e transformação do minério”, afirma o estudo.

Para completar, Gomes alerta que, “como o minério é retirado do subsolo, as áreas são transformadas em enormes crateras, provocando danos ambientais irreparáveis”. Social No âmbito social, Gomes diz que os impactos desses

empreendimentos contribuem para a desestruturação socioeconômica. “Com a expectativa da oportunidade de emprego e renda ocorre um grande fluxo migratório, mas, como essas oportunidades são muito limitadas, os que chegam se somam àqueles que já estão desempregados, formando um grande exército reserva de mão-deobra pronto para ser explorado por outras empresas da região”, explica. A perda de território também é outro agravante. “Os projetos de mineração vêm de fora para dentro, ou seja, eles chegam sem que os trabalhadores rurais, ribeirinhos e índios tenham condições de optar, sendo na maioria das vezes expulsos de suas terras”, relata Gomes. Por fim, o aumento das desigualdades: conforme denuncia o estudo, os projetos minerais geram um pequeno grupo beneficiado de políticos, empresários e comerciantes, muito deles de fora da região. “Em contrapartida, o que se vê são o equívoco e as contradições desses grandes empreendimentos minerais, que saqueiam nossa riqueza e em troca deixa a miséria e a pobreza”, lamenta Gomes. (MZ)


6

de 29 de julho a 4 de agosto de 2010

brasil

Especialistas analisam os limites dos agrocombustíveis ENERGIA Apesar dos planos e do discurso do Programa Nacional de Uso e Produção de Biocombustíveis focar a agricultura familiar, na prática, o controle é das grandes empresas Cristiano Navarro

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Atraso social

Estudo da ONU divulgado no dia 23 de julho coloca o Brasil em 3º lugar na relação dos países mais desiguais da América Latina. Perde apenas para a Bolívia e o Haiti. A pesquisa registra que 58% de uma geração no Brasil mantêm o mesmo nível de desigualdade de seus antecedentes, ao contrário do que acontece nos países com maior mobilidade social. O desafio continua: por que o país não consegue reduzir a brutal desigualdade?

Violência atual

Relatório do Cimi sobre violências praticadas contra os povos indígenas em 2009 registra 60 assassinatos de índios no Brasil, sendo 33 casos de guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul. O relatório indica que a maior parte das violências decorre do atraso no processo de demarcação das terras indígenas, quando grileiros e seus jagunços usam a força para expulsar os índios. Essa violência permanece impune.

Terra limitada

Várias entidades e movimentos sociais – entre os quais o Fórum Nacional da Reforma Agrária, pastorais sociais da CNBB e a Assembleia Popular – organizam a realização do Plebiscito sobre o Limite da Propriedade da Terra, de 1º a 7 de setembro, uma medida urgente para promover maior justiça no campo e impedir a enorme concentração das terras nas mãos de grupos empresariais nacionais e estrangeiros.

Manobra externa

Nildo de Souza Vianna, da Universidade de Brasília, e Océlio Muniz, do Movimento de Atingidos por Barragem (MAB), debatem sobre matrizes energéticas

Cristiano Navarro e Poliana Viana de Brasília (DF) e de Montes Claros (MG) A HISTÓRIA da produção de agrocombustíveis no Brasil não traz lembranças positivas para a sociedade. Concentrador de terras e gerador de mão-de-obra escrava são alguns dos adjetivos dados pelos críticos ao programa Pró-Álcool, criado no Brasil em 1975, durante a ditadura civil-militar. O programa, que durou até o ano 2000, consistia no subsídio por parte do governo à produção de álcool etanol em substituição à gasolina. Para não cometer os mesmos erros sociais, o Programa Nacional de Uso e Produção de Biocombustíveis tem como indicação o apoio da produção da agricultura familiar. “O etanol nasceu em cima da estrutura da cana-de-açúcar, uma estrutura arcaica que carregava com ela toda tradição de exclusão social e de concentração de renda. O Programa Nacional de Uso e Produção de Biocombustíveis tem outra conotação. Ele já nasceu com a intenção de fazer a inclusão social”, defende João Nildo de Souza Vianna, professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília durante o debate “Matriz energética brasileira: suas potencialidades e desafios”, realizado no dia 19 de julho pelo Brasil de Fato com o apoio da Petrobras, em Brasília (DF).

Além da necessidade de uma organização mais consistente por parte dos pequenos agricultores, o professor ressalta ainda a necessidade de um zoneamento agroecológico Apesar de o programa ter completado cinco anos, a agricultura familiar é responsável por menos de 1% da produção de agrocombustíveis no Brasil. Vianna aponta a dificuldade organizativa como um dos entraves para uma maior participação dos pequenos agricultores. “O beneficiado, que era quem receberia os benefícios que para a agricultura familiar, não estava suficientemente preparado para entrar num programada deste. Este é o primeiro grande pro-

“Qual a desconfiança que se tem? É que, quando se está trabalhando com energia, se está trabalhando com o insumo mais importante na sociedade. Então naturalmente há setores que vão querer se apoderar disto” blema, porque o agricultor familiar não tinha escala de produção e não tinha como se organizar, tradição de organização para se associar e criar escala de produção”. Zoneamento Além da necessidade de uma organização mais consistente por parte dos pequenos agricultores, o professor ressalta ainda a necessidade de um zoneamento agroecológico que aponte para a diversificação da produção de matériaprima para os agrocombustíveis. Longe de atender os objetivos do programa, atualmente a produção de biodisel está praticamente baseada na monoculutura da soja. “O zoneamento agroecológico aponta o melhor tipo de plantação para cada região. E um bom exemplo de produção com ganhos diferentes é a combinação da produção de feijão com mamona, ambos cultivos ganham”. Outras incertezas pairam sobre a produção de agroenergia, estas ligadas a interesses comerciais. “Qual a desconfiança que se tem? É que, quando se está trabalhando com energia, se está trabalhando com o insumo mais importante na sociedade. Então naturalmente há setores que vão querer se apoderar disto. Quais são estes setores? Os mesmos que se apropriam do agronegócio e da indústria do petróleo”, explica Vianna.

Dos interesses Durante o debate em Brasília, o dirigente do Movimento de Atingidos por Barragem de Rondônia, Océlio Muniz, acrescentou um outro limite sobre os agrocombustíveis: “Não basta discutirmos a forma de produção dos agrocombustíveis. A questão energética passa pela pergunta: Energia para quê? E para quem?”. Muniz citou como exemplo a construção do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, no seu estado. “Tanto os agrocombustíveis como os recursos hidrelétricos, ao final, não servem para baratear a energia e melhorar a vida da população, mas para a concentração de riquezas no país”, critica. Alternativas Os agrocombustíveis surgiram como uma alternativa para a substituição ao uso de combustíveis fósseis, como petróleo e carvão mineral. Tornaram-se viáveis a partir da crise mundial do petróleo no final da década de 1970, quando as reservas de petróleo em todo o mundo tornaram-se escassas. Devido à vasta área produtiva e à combinação de clima e solo, o Brasil tem atraído interesses estrangeiros para a produção e consumo de agrocombustíveis. Concordando com Vianna, o professor adjunto da Universi-

dade Federal de Viçosa Klemens Laschefski pontua que, apesar dos esforços do governo em afirmar que os programas são direcionados à agricultura familiar, quem controla toda a produção são os grandes produtores e usineiros. Klemens foi um dos palestrantes que participaram do último debate da série, ocorrido também no dia 19 de julho, na Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), em Montes Claros (MG). Estiveram presentes ainda representantes de movimentos sociais, estudantes, sindicalistas e ativistas sociais. Da Alemanha O professor Klemens apresentou experiências diferentes praticadas na Alemanha, onde estão sendo discutidas cotas para a mistura de agrocombustíveis, o que “obrigaria as distribuidoras a substituírem uma parte dos combustíveis originais por agrocombustíveis”. Isto, segundo ele, favoreceria a agricultura familiar. A experiência alemã teve início em 2001 com um programa denominado “100 tratores”, em que era utilizado o óleo vegetal cru em tratores e outros maquinários agrícolas. Porém, devido a uma possível competição com o combustível misturado, o programa foi interrompido em 2005. Para Klemens, esse programa poderia ser uma alternativa para os pequenos agricultores brasileiros. “O uso do óleo vegetal cru e do biogás necessita de modificações nos motores e seria uma alternativa interessante para os agricultores, pois pode torná-los independentes ou mesmo autossuficientes no mercado oficial de combustíveis”, destaca. Diva Braga

A Associação dos Produtores de Sementes de Mato Grosso denunciou mais uma manobra da transnacional Monsanto: a empresa, que nos anos anteriores fornecia 50% de sementes convencionais e 50% de sementes transgênicas aos produtores, reduziu drasticamente para 15% a oferta de sementes convencionais na safra 2010-2011. Deixou claro que o objetivo é forçar o plantio das espécies transgênicas. Pode?

Desnacionalização

Cada vez mais os grupos privados estrangeiros avançam no controle de universidades e do sistema educacional brasileiro. Em julho, o grupo britânico Pearson Education comprou todo o setor de método de ensino e de material didático do COC, Pueri Domus, Dom Bosco e Name – que abrange mil escolas em sete estados brasileiros. Pergunta básica: ensino controlado pelo capital estrangeiro não ameaça a soberania nacional?

Extermínio oficial

Artigo da médica psiquiatra Flávia Fernando Lima Silva, do SUS de João Pessoa, na Paraíba, veiculado no site Coletivo DAR, afirma o seguinte: “Uma a cada três vítimas de homicídios na Paraíba é criança ou adolescente. De 2000 a 2009, 38,8% do total de mortes no Estado atingiram o público de zero a 18 anos, ou seja, das 2.479 vítimas, 963 eram menor de idade”. O que comemorar nos 20 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente?

Guerra suja

Especializado em revelações sigilosas, o site Wikileaks, dos Estados Unidos, acaba de colocar na internet milhares de documentos secretos sobre a guerra no Afeganistão, que mostram as barbaridades praticadas pelas forças armadas estadunidenses: execuções sumárias de prisioneiros, comandos especializados em assassinatos, ocultação das mortes de civis etc. O governo de Barack Obama não sabe o que dizer!

Destruição total

No dia 25 de julho, um grupo de 300 índios – de 11 tribos diferentes – ocupou as obras da usina hidrelétrica de Dardanelos, em Aripuanã, no norte de Mato Grosso. Os índios protestam contra a destruição de antigo cemitério e sítio arqueológico. A mesma usina já foi alvo de inúmeros protestos de ambientalistas, já que o lago vai inundar reserva florestal e região de grutas e cachoeiras. O estrago é incalculável!

Máfia paulista

Participantes do último debate da série, realizado em Montes Claros (MG)

Entre as máfias que atuam na área da saúde, uma delas já está bem identificada: é integrada por laboratórios farmacêuticos, médicos e advogados, que em 2009 obrigaram o estado de São Paulo a gastar R$ 400 milhões com remédios específicos, via ações judiciais. Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa mapeou que as ações de alguns poucos médicos e advogados visam favorecer determinados laboratórios. Bingo!


de 29 de julho a 4 de agosto de 2010

7

brasil

Prefeito quer “mini-Brasília” em região devastada pelas enchentes Fotos: Jorge Américo

NORDESTE Ações oficiais tentam conter a organização autônoma da população de Água Preta, um dos municípios pernambucanos que decretaram estado de calamidade pública

Monopólio do socorro

Jorge Américo de Água Preta (PE) COM O DEDO indicador apontando para um morro que fica do outro lado da estrada, um sujeito de camisa branca engomada, cabelos grisalhos e óculos escuros se lança como candidato a herói da nossa gente. “Dentro de 15 dias, os tratores começarão a derrubar aquele canavial para dar início à construção da Nova Água Preta. Guardadas as proporções, ergueremos ali uma mini-Brasília”, promete.

“Eu tive que vir para o acampamento, mas não deu tempo de construir um barraco porque os homens da lei chegaram e disseram que não podia” O homem – ladeado por dois seguranças de braços cruzados e testas franzidas – é Eduardo Coutinho, prefeito de Água Preta (PE), um dos municípios que mais sofreram os efeitos das chuvas que despencaram sobre a região Nordeste em junho. Em tom profético, ele anuncia a missão que lhe foi confiada: “A

primeira moradia a ser construída em “Nova Água Preta”. Observado por olhares atentos, ele se esquiva: “É um processo burocrático que não depende da gente, mas a intenção é que eles fiquem aqui, no máximo, por um ano”.

Prefeito anuncia a desapropriação de área onde será construída a Nova Água Preta

reconstrução desta cidade é uma tarefa que está sob meu comando, responsabilidade e destino. Eu conto com todos vocês para dar cabo disso”. O terreno escolhido para abrigar complexos escolares, hospitalares, industriais e comerciais é uma área de 219 hectares, desapropriada pelo governo estadual. O prefeito ainda informa sobre o desenvolvimento de um planejamento urbano feito pelo Ministério das Cidades. “Está prevista a instalação de uma rede de saneamento básico, com coleta de esgoto e distribuição de água potável, ruas planejadas e 3 mil moradias populares.” A promessa é feita diante de aproximadamente 100 pessoas, num acampamento que começou a ser erguido com bambu e lona preta. “A minha casa acabou-se na água. Sou pai de oito filhos e não podia deixar eles jogados. Eu tive que vir para o acampamento, mas não deu tempo de construir um barraco porque os homens da lei chegaram e disseram que não podia”, revela Severino Manoel da Silva, de 32 anos.

“O pessoal da prefeitura disse que ninguém pode entregar nada direto para a gente, tudo tem que passar por eles. Passei muita dificuldade nesses dias” Os olhos distantes um pouco da face revelam que Severino foi acometido pela “velhice antes dos trinta”, diagnosticada sem eufemismos, em Morte e Vida Severina, por João Cabral de Melo Neto. Severino é sertanejo, daqueles que nascem no Sertão mesmo. Pode até tomar como ofensa, ultraje ou mangação essa exposição indevida. Severino tornou-se um lugar-comum. É a expressão mais dura e mais contundente de um problema que varou séculos. É a prova viva de que o latifúndio ainda existe no Brasil. Depósito de gente

Depois de inúmeras aparições públicas ao lado do presidente da República e alguns de seus ministros, Coutinho recebeu na sede da prefeitura uma comitiva formada por moradores desabriga-

dos e lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Na pauta, inúmeras denúncias a respeito das condições precárias dos alojamentos provisórios, além das hostilidades de autoridades contra aqueles que tentam se organizar de maneira autônoma. Oficialmente, as aulas na rede pública de ensino teriam início em 18 de julho, mas as escolas que não foram completamente destruídas viraram abrigos. Em um deles, instalado na Escola Municipal Macena Mathias, 22 pessoas dormiam apertadas numa única sala de aula de aproximadamente 20 m². “Todo mundo vive misturado, passando por tudo de ruim. É muita catinga, muita sujeira e a gente fica aqui jogado. Ninguém sabe até quando ficaremos aqui. Toda hora alguém

fala uma coisa diferente”, protesta Lilian Roberta da Silva, cuja casa permanece interditada pela Defesa Civil. A situação de abandono levou os desabrigados a iniciarem a construção de barracos em um terreno que fica a três quadras da escola, no bairro da Liberdade. Com o apoio de camponeses ligados ao MST, foram planejadas instalações capazes de abrigar as famílias individualmente, com maior privacidade. A presença da polícia e a recomendação para que se interrompessem as atividades geraram desconforto entre os desabrigados e voluntários. Em visita ao local, o prefeito anunciou a montagem de parte das 400 barracas doadas por uma organização internacional. Com capacidade para 10 pessoas, as barracas (semelhantes às utilizadas no Haiti depois da onda de terremotos que atingiu o país no início de 2010) têm durabilidade de três anos. Questionado sobre os riscos de elas ficarem ali até o fim da vida útil, o prefeito não pôde apontar com precisão a possível data de entrega das chaves da

Grávida do sétimo filho aos 26 anos de idade, Maria José da Silva é uma das futuras moradoras dessas barracas. Ela reclama da burocracia criada para o serviço de ajuda humanitária. “O pessoal da prefeitura disse que ninguém pode entregar nada direto para a gente, tudo tem que passar por eles. Passei muita dificuldade nesses dias. Tinha comida, mas não tinha onde cozinhar. Corri tanto atrás de um fogão, mas ainda não consegui e não tenho como comprar”, relata. Caso receba um fogão de presente, dificilmente Maria poderá utilizálo dentro de casa no próximo ano. Pelo tamanho, as barracas parecem ter sido projetadas para servir apenas de dormitório. Após ter sido decretado o estado de calamidade pública em Água Preta, a coordenação do MST de Pernambuco criou uma força-tarefa formada por médicos, enfermeiros e educadores para atuar nesta e em outras cidades. Entre outras atividades, foi feito um mutirão para a recuperação da Escola Agrícola de Palmares, tomada pela lama que destruiu equipamentos, laboratórios e viveiros, matando centenas de animais. A brigada trabalha no atendimento médico de urgência, na distribuição de alimentos e na reorganização do município, que teve quase toda a infraestrutura destruída. “Começamos a pensar em ações preventivas para evitar futuras doenças e epidemias que podem afetar a população por causa das condições às quais está exposta. Os médicos do município não voltaram para o trabalho depois das enchentes. Se conseguíssemos revalidar os diplomas com mais pressa, certamente teríamos muitos outros profissionais da saúde para atuar em situações como esta”, lamenta o médico formado em Cuba Cícero José de Lins, que tenta revalidar o seu diploma no Brasil desde 2009.

Escombros desnudam a situação fundiária de Pernambuco Agronegócio gera divisas econômicas, mas empurra os mais pobres para a beira dos rios de Água Preta (PE) Pernambuco contabilizou 20 mortos e 27 mil desabrigados após o último período chuvoso. O bairro do Jiquiazinho (nome indígena que significa “beira do rio”), localizado na parte baixa de Água Preta, foi inteiramente tragado pelas águas do rio Una. Segundo os antigos moradores do bairro, antes das enchentes que colocaram no chão centenas de casas, ninguém ali conseguia mais viver da pesca. “O veneno que eles jogam no canavial desceu o morro e matou todos os peixes. Aqui não dá mais nada”, lamenta um ex-morador, que tenta garimpar entre os entulhos qualquer coisa que remeta ao seu passado ou talvez algum objeto que possa ter utilidade num futuro que começa a ser construído sem recurso algum.

Diversos especialistas relacionam a tragédia no Nordeste brasileiro a um fenômeno climático. Outros apontam para o agronegócio, que gera divisas econômicas, mas empurra os mais pobres para a beira dos rios. A mono-

“Não sobrou nada no Jiquiazinho. A turma está toda instalada nas terras do Seo Paulo [acampamento], enquanto o governo não constrói uma casa para a gente” cultura tem modificado as paisagens do sertão de Pernambuco. Nas laterais da estrada que liga os municípios de Caruaru e Palmares (também devastado pelas enchentes), dois paredões de canade-açúcar se estendem volumosos por dezenas de quilô-

Cheia do rio Una destruiu o Jiquiazinho; ao fundo, canavial permanece imponente

metros. Não fosse o asfalto tão rústico e inapropriado para a vegetação, possivelmente tudo ali teria virado uma única lavoura. Segundo estimativas, apenas 3% da vegetação original de Mata Atlântica que cobria o estado de Pernambuco ainda não foi devastada. A soci-

óloga Débora Nunes responsabiliza a atividade canavieira pela degradação ambiental e pela ocupação desordenada dos rios e mananciais. “A Mata Atlântica foi substituída pela monocultura da canade-açúcar ao longo dos anos. Tudo isso aliado ao êxodo rural, quando milhares de famí-

lias foram expulsas das usinas e fazendas e tiveram que se amontoar nessas cidades”, analisa. No poema “Evocação do Recife”, Manuel Bandeira recorda a rua da União e outras ruas da sua infância e teme que algumas delas não existam mais ou tenham passa-

do a se chamar “Dr. Fulano de Tal”. Jacira Maria dos Santos, conterrânea do poeta modernista, passa agora por uma angústia parecida. Ela viveu numa rua que se chamava Silveira Alécio. Quando as águas do rio Una (que chegaram a atingir 20 metros de altura em alguns pontos) baixaram, Jacira percebeu que sua rua e seu bairro não existiam mais. “Não sobrou nada no Jiquiazinho. A turma está toda instalada nas terras do Seo Paulo [acampamento], enquanto o governo não constrói uma casa para a gente”, relata, com a neta de três anos de idade enroscada entre as pernas. Assim como os filhos do retirante Fabiano, protagonista do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, a Menina (como é chamada pela avó) ainda não tem um nome. De pés descalços e barriga de fora, não pode nem mesmo ser beneficiária dos programas de transferência de renda. Enquanto não tiver casa para morar, escola para estudar, comida para se alimentar, roupa para vestir, um nome para assinar, a Menina continuará adiando o projeto nacional de superação da pobreza extrema. (JA)


8

de 29 de julho a 4 de agosto de 2010

internacional

Sem direito de ser criança Crédito fotos: Dafne Melo

PALESTINA Estado de Israel mantém 335 menores de idade presos por motivos políticos Dafne Melo de Ramallah (Palestina) COM A ESCOLA em greve, Mohammad, de 14 anos, decidiu, no início da tarde, ir jogar bola com os amigos. No meio da partida, apareceu um grupo de homens vestidos como civis. “Não estávamos com medo porque não pareciam soldados”. Se aproximaram e, sem falar nada, jogaram gás de pimenta nos olhos de Mohammad, que ainda recebeu uma coronhada na testa. “Comecei a sangrar muito e um deles começou a chutar minha perna. Me algemaram e me levaram”, conta o palestino da vila de Biddu, Cisjordânia, próxima à colônia judia de Bivast Hadasha.

“ (…) relatório feito pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Geral da ONU, em 2009, apontou que 20% das crianças que vivem na Faixa de Gaza sofrem de estresse póstraumático” A polícia israelense o acusava de ter jogado pedras, durante uma manifestação, em frente ao muro construído por Israel na Cisjordânia. Sem a presença de um advogado, Mohammad foi interrogado. Negou verbalmente a acusação, mas acabou assinando uma confissão em hebraico, língua que não entendia, sob a promessa de que o deixariam sair e voltar para sua casa. Porém, o adolescente foi sentenciado a quatro meses de prisão, tempo em que não recebeu nenhuma visita dos pais. “Costumo sonhar que soldados invadem a vila, fazendo busca nas casas e prendendo pessoas, e eu me sinto com muito medo ou saio correndo”. A prisão e interrogatórios de crianças não é algo raro na Palestina. De acordo com a organização Defesa para Crianças Internacional (DCI), por ano, cerca de 700 delas são presas pelo Estado de Israel, somente na Cisjordânia. De 2000 a 2008, a organização contabilizou 6.500 detenções de crianças e adolescentes. “Neste momento, há 335 deles presos”, afirma Verônica Naranjo, advogada da DCI. Modus operandi A maior parte das acusações é por jogar pedras e coquetéis molotov, ou de pertencer a organizações políticas. “Não creio que em outros lugares do mundo existam crianças presas por motivos políticos”, explica Verônica. A maioria das detenções e agressões se dá em regiões próximas ao muro ou a colônias, pois, geralmente, são áreas onde há mais protestos e confrontos entre colonos judeus e os árabes. “O mais comum é uma tropa israelense entrar nas casas durante a noite. Algemam e vendam a criança e a levam embora. Quase sempre, [os menores] sofrem agressões antes de serem interrogados, momento em que sofrem todos tipos de maus-tratos. Reco-

Menina palestina caminha em rua da vila de Ni’lin, próxima a Ramallah

lhemos testemunhos dessas crianças e adolescentes, e, em todos, há evidências de torturas e maus-tratos durante os interrogatórios”, conta Verônica. A advogada afirma que 14% das crianças e adolescentes ainda sofrem abusos sexuais, como choques elétricos na região genital. O também advogado do Ministério dos Prisioneiros da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Jawad al-Amawi, alerta que a detenção de crianças e adolescentes viola a Convenção dos Direitos das Crianças da Organização das Nações Unidas (CRC, na sigla em inglês), que, no artigo 37, especifica que tal procedimento pode ser utilizado como último recurso, somente pelo bem-estar da própria criança e pelo menor tempo possível. “Eles usam esse recurso com frequência e não há nenhum interesse pelo bem-estar da criança. Eles também misturam adultos e crianças nas prisões, o que também viola a Convenção”, aponta al-Amawi. Além disso, a prisão política dos menores, assim como a de presos políticos palestinos em Israel – hoje, mais de 6 mil casos – desrespeitam as Convenções de Genebra – que tratam do Direito Humanitário Internacional –, pois submete civis a leis e cortes militares.

De acordo com a organização Defesa para Crianças Internacional (DCI), por ano, cerca de 700 crianças são presas pelo Estado de Israel, somente na Cisjordânia Duas medidas A maioridade penal para os palestinos, para o Estado de Israel, é de 16 anos. “Isso quer dizer que, fez 16 anos, o jovem é julgado como adulto”, diz Verônica. Um jovem israelense, entretanto, é julgado como adulto apenas depois dos 18 anos. “As leis israelenses são discriminatórias, o que vale para israelenses não vale para os palestinos, evidenciando o apartheid dessa ocupação”, complementa Verônica. Jawad al-Amawi aponta outra violação: os jovens detidos são impedidos de continuar seus estudos dentro da ca-

Cartaz em Ni’lin lembra seus mártires; ao centro, Ahmad, 10 anos, assassinado por um soldado israelense

Depoimentos Passei de uma vida normal na minha casa às algemas, privação do sono, gritarias, ameaças, sessões de interrogatórios e a ouvir acusações graves. Nessas circunstâncias, a vida fica sombria, preenchida pelo medo e pessimismo – foram dias duros que as palavras não são suficientes para descrever. Mahmoud D., 17 anos Um soldado apontou a metralhadora para mim, bem perto do meu rosto. Fiquei com tanto medo que comecei a tremer. Ele começou a rir, se divertir com aquilo e disse: ‘Tá tremendo? Me diga onde está a arma antes que eu atire na sua cabeça.’ Ezzat H., 10 anos Oito dias depois de ser preso, me mandaram para uma corte militar. Quando cheguei lá, fui direto para o julgamento sem nenhum advogado. O julgamento durou somente três minutos. Me disseram que meu tempo de detenção havia sido postergado, mas não me informaram por quanto tempo, porque ninguém me traduziu nada [do hebraico ao árabe] do que estava sendo dito. Imad T., 15 anos (acusado de jogar um coquetel molotov contra a guarda de uma colônia judia) Andei uns 400 metros, olhei para a direita e vi quatro soldados saindo de trás das oliveiras, a cerca de 20 metros de mim, vindo em minha direção. Eles me mandaram parar, em árabe, então eu parei. Depois, eles se aproximaram. (...) o soldado mais alto, de óculos escuros, perguntou: ‘de onde você está vindo?’. Eu disse: ‘da escola’. Em seguida, me perguntou de onde eu era. Respondi, mas ele me disse que eu estava mentindo. ‘Você estava jogando pedras nos carros na estrada’. Disse que não. Uso muito as mãos quando estou falando, e o soldado se irritou com isso. ‘Você levantou sua mão para mim, seu animal’, me disse. Me deu um tapa, me pegou pelo colarinho e me acusou de ter jogado pedras, usando muitos palavrões. Continuei dizendo que não tinha feito nada. Aí, outro soldado de pele escura se aproximou e chutou minha perna direita. Doeu muito (...) e ele me deu uma joelhada na coxa. Caí no chão, os outros soldados se aproximaram e eles ficaram me chutando por uns dois minutos. Minhas roupas rasgaram. Eles, então, me colocaram de pé e um deles me golpeou no peito com a metralhadora. Me empurraram e me pediram para sentar em uma pedra na rodovia. Depois de cinco minutos, um jipe militar israelense chegou. Um soldado desceu e me disse: ‘Não vai confessar? Estou com seus amigos e eles me disseram que você estava jogando pedras’. Neguei e disse que podia negar na frente deles, se necessário. Tiraram um dos meninos do jipe. Estava com os olhos vendados, algemado e tinha uma bandeira palestina amarrada ao redor da cintura. Os soldados tiraram a venda e perguntaram se eu estava com ele e os outros meninos. O menino disse que não era eu, que havia uma quarta pessoa que havia fugido. A boca e o nariz dele estavam sangrando. O soldado com óculos escuros me mandou voltar para casa (...) e disse que, se me visse de novo na área, me prenderia. Yusif I., 17 anos Fonte: DCI – Palestina www.dci-pal.net

deia. “Em novembro de 2009, levantamos um caso na Suprema Corte de Israel contra o serviço prisional israelense, para que deixassem os palestinos fazerem seus exames da escola. Colocaram uma data para discutir o caso: 3 de janeiro de 2011. Acontece que os últimos exames foram feitos em junho de 2010. É assim que a lei israelense trata qualquer caso relacionado à Palestina”, protesta. Verônica aponta que a violência sofrida pelas crianças não parte apenas do Estado de Israel, mas também de colonos. Há muitos episódios em que judeus agridem as crianças, como o caso de Jameel, em Hebron, cidade de maioria árabe. “Nossa vida não é normal, estamos cercados de policiais e colonos. Todos os dias, tenho que passar por sete check-points no caminho para a escola”. Um dia, Jameel foi interceptado por soldados e agredido. Colonos que estavam por perto também começaram a golpeá-lo. A família, avisada por testemunhas, chegou ao local e filmou parte da agressão. Tempos depois, um soldado soltou Jameel e o ameaçou de morte caso contasse sua história para alguém. A família entrou com uma ação, mas, até hoje, o caso não foi julgado. “Toda vez que vejo soldados ou colonos andando na rua, vou para o outro lado, evito olhar para eles, pois sei que não posso me defender sozinho”.

A maioridade penal para os palestinos, para o Estado de Israel, é de 16 anos. (…) Um jovem israelense, entretanto, é julgado como adulto apenas depois dos 18 anos Mortes De 2000 até 2008, a DCI contabilizou a morte de 1.333 crianças e adolescentes, mais da metade delas em Gaza. A maior causa são os bombardeios aéreos e ação da polícia ou do exército em mobilizações, ocasiões em que a presença de adolescentes e crianças é comum. “As crianças já sabem, desde muito pequenas, que há um conflito, que há um inimigo, que vivem sob ocupação. Estão prontas para lutar desde pequenos. Os presentes depois do Ramadã são armas de plástico, e elas brincam de israelense-palestino, como se brinca de mocinhobandido”, explica Verônica. Um dos assassinados foi Ahmad Mousa, baleado à queima-roupa, na cabeça, no vilarejo árabe de Ni’lin, cortado pelo muro da Cisjordânia. Como ocorre em todas as sextas-feiras, houve uma manifestação em frente ao muro, do meio-dia até mais ou menos três da tarde. Às cinco, a família soube que uma criança havia sido assassinada por um soldado enquanto brincava. Ninguém foi punido até hoje. “As crianças morrem quase todos os dias, vítimas da ocupação. Para eles, todos os palestinos que nascem são futuros combatentes”, opina Verônica Narajo. A tensão em que vivem as crianças também faz da Palestina um dos lugares onde elas mais apresentam problemas psicológicos. O último relatório feito pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Geral da ONU, em 2009, apontou que 20% das crianças que vivem na Faixa de Gaza sofrem de estresse pós-traumático.


de 29 de julho a 4 de agosto de 2010

9

américa latina Divulgação

A vez da Unasul CRISE DIPLOMÁTICA Conflito entre Colômbia e Venezuela evidencia incapacidade de mediação da OEA e abre espaço para o protagonismo da instituição latino-americana Manuela Sisa de Caracas (Venezuela) A CRISE ENTRE Venezuela e Colômbia em torno da suposta presença de guerrilheiros em território venezuelano voltou a colocar em questionamento a capacidade da Organização dos Estados Americanos (OEA) de mediar os conflitos na região. Na esteira da disputa por assumir o protagonismo na coordenação de uma aliança latino-americana, a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) pretende aproveitar o vazio deixado pelo organismo criado em 1948 para se projetar como árbitro, independente da influência dos Estados Unidos, na solução da atual crise. “Esta é uma velha aspiração da região, não só dos governos de esquerda, mas também daqueles que são favoráveis à unidade latino-americana”, afirmou ao Brasil de Fato o historiador estadunidense Steve Ellner, professor da Universidade do Oriente, na Venezuela. “A Unasul pode se fortalecer [com a crise], mas dependerá de como vai atuar a partir de agora [para solucioná-la]”, acrescentou. Um dos piores episódios da conflituosa relação entre Caracas e Bogotá chegou ao seu ápice na quinta-feira, 23 de julho, quando o embaixador da Colômbia na OEA, Luis Alfonso Hoyos, acusou a Venezuela de abrigar 87 acampamentos e 1,5 mil guerrilheiros em seu território.

Para o historiador colombiano Medófilo Medina, a OEA deixou de ser o “árbitro ideal” por ter como membro os Estados Unidos Fotografias Hoyos mostrou fotografias nas quais, supostamente, se pode ver líderes rebeldes com um cenário selvático de fundo, além de coordenadas sobre a suposta localização dos acampamentos. As informações foram contestadas pela Venezuela. “Conta outra”, disse o embaixador da Venezuela na OEA, Roy Chaderton, ao questionar se as fotografias haviam sido tomadas em seu país. Em resposta às acusações, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, rompeu relações com o governo de Álvaro Uribe e criticou a OEA “por se prestar” ao que qualificou como um “show midiático” contra seu governo. A partir dali, o governo venezuelano passou a articular uma resposta “sul-americana” à crise, com a mediação da Unasul. Para o historiador colombiano Medófilo Medina, a OEA deixou de ser o “árbitro ideal” por ter como membro os Estados Unidos, “um país que desequilibra a balança a favor de um dos lados, quando se trata de Colômbia e Venezuela”, afirmou. “A OEA foi arrastada a essa situação

por atender à pressão dos Estados Unidos. Para Chávez, este não é um espaço neutro”, acrescentou. A credibilidade do organismo também foi duramente questionada em 2008, durante a crise entre Colômbia e Equador, em consequência da invasão do Exército colombiano a território equatoriano para bombardear um acampamento das Farc. Questionamento E foi justamente o presidente do Equador, Rafael Correa, cujo governo preside, temporariamente, o Conselho Permanente do organismo e a Unasul, o primeiro a questionar o papel de mediação da OEA. Para Correa, aliado de Chávez, o secretário-geral do organismo, José Miguel Insulza, é “o grande culpado” pela crise binacional. Ele questionou o fato de Insulza não ter acatado seu pedido para que a reunião no Conselho Permanente fosse adiada, sob o argumento de que não era “prudente” discutir o assunto de “forma precipitada”, pois poderia “colocar em risco a manutenção da paz na região”. “A que pressões [Insulza] estará respondendo? Porque o regulamento não diz que a sessão deve ser convocada imediatamente. Ao contrário, há uma série de requisitos e, aqui, de forma precipitada, [foi convocada] uma sessão do Conselho Permanente para tratar de um tema muito crítico. Aí estão as consequências”, disse. Correa chegou a pressionar seu embaixador na OEA, Francisco Proaño, encarregado de convocar a reunião extraordinária, a adiar a reunião do Conselho Permanente. Alegando respeito às regras da OEA, Proaño renunciou ao cargo, abrindo uma crise na chancelaria equatoriana. Insulza, por sua vez, apoiou-se no regulamento para justificar a realização da reunião, argumentando que o pedido de qualquer país membro deve ser acatado. Proposta de paz A resposta “sul-americana” à crise foi costurada a partir de conversas de Chávez e seu chanceler, Nicolás Maduro, com os presidentes de Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai. Em entrevista ao Opera Mundi, Maduro disse que a proposta surgida dessa articulação está “focada na necessidade de um plano de paz permanente” para a região. “A guerra civil na Colômbia extravasou suas fronteiras e ameaça a segurança das nações andinas”, afirmou. Antes mesmo de conhecer o plano, Uribe rejeitou a iniciativa de internacionalizar uma saída de paz para a guerra colombiana. Ele vê na proposta uma “armadilha” para dar novo fôlego à guerrilha. “Sabemos que a cobra do terrorismo, quando sente que está encurralada e com uma corda no pescoço, pede processos de paz, para que afrouxemos a forca e ela possa tomar oxigênio e voltar a envenenar”, disse Uribe, durante ato de despedida no Ministério da Defesa. A internacionalização do conflito armado colombiano e a ausência de controles efetivos na porosa fronteira do país não é uma novidade para os governos da região. Assim como “não é nada no-

Chávez e Uribe: como legado, presidente colombiano deixa nova crise entre os países

vo”, admitiu Chávez, que na fronteira de mais de 2 mil quilômetros entre as duas nações circulem paramilitares e guerrilheiros “para roubar, sequestrar”. Ele afirma, no entanto, que seu governo “rejeita e rejeitará” a presença de grupos armados em seu território.

A crise como legado de Uribe Presidente colombiano deixa a seu sucessor um dos mais graves conflitos diplomáticos da história do país de Caracas (Venezuela)

A resposta “sul-americana” à crise foi costurada a partir de conversas de Chávez e seu chanceler, Nicolás Maduro, com os presidentes de Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai Farc como “desculpa” Com frequência, representantes do Executivo venezuelano acusam grupos paramilitares de estarem infiltrados nas favelas de Caracas com o objetivo de desestabilizar o país. Em 2004, 180 paramilitares colombianos foram capturados em Caracas e deportados. De acordo com Chávez, o objetivo do grupo era “assassiná-lo”. Medófilo Medina afirma que, desde 1994, cinco anos antes de Chávez ter assumido o poder, ataques das Farc em território venezuelano contra militares do país passaram a ocorrer com mais frequência. O que mudou de lá pra cá, segundo Medina, é que as “Farc [agora] são o pretexto para atacar a Venezuela”, afirmou. A seu ver, a discussão sobre mecanismos de cooperação para se estabelecer controles efetivos na fronteira “não seria um problema tão grave se não fosse a utilização política [da internacionalização do conflito colombiano]”. Para ele, a Unasul só conseguirá fazer diferença na condução da crise binacional se conseguir apontar mecanismos de cooperação concretos, físicos, de corresponsabilidade, que possam ir “além da disputa política”.

O presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, deixará o cargo no dia 7 de agosto, após oito anos de governo, e entregará a seu sucessor e aliado político, Juan Manuel Santos, um país submerso em uma das piores crises diplomáticas de sua história e com as portas fechadas a um acordo de paz coordenado regionalmente. No dia 27 de julho, Uribe rejeitou a proposta de um “plano de paz” que vinha sendo articulado pelos países da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). Tal posicionamento, aliado à decisão de detonar a crise com a Venezuela a apenas duas semanas de deixar a presidência, foi vista com desconfiança pelos governos da região e como uma medida “desesperada” por analistas políticos ouvidos pelo Brasil de Fato. “O que eu, na verdade, estranhei é que faltam poucos dias para o companheiro Uribe deixar a presidência da República. (...) Os sinais [de reaproximação] estavam andando bem, até que o presidente Uribe resolve fazer uma denúncia na OEA contra a Venezuela”, afirmou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante uma entrevista coletiva em Pernambuco, no dia 23 de julho. O mandatário equatoriano, Rafael Correa, seguiu o mesmo raciocínio: “Por que 15 dias antes de um novo governo da Colômbia se gera um conflito desta magnitude? Faz sentido? Por que as mesmas acusações? Fizeram o mesmo conosco”, afirmou, em referência ao bombardeio, pelo Exército da Colômbia, de um acampamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) em seu território, em março de 2008. Na ocasião, foi morto o número 2 da guerrilha, Raúl Reyes, e outras 25 pessoas. “Tensão” Para o historiador e analista político colombiano Medófilo Medina, Uribe pretendeu “manter um clima de alta tensão” nos meios de comunicação contrários ao go-

verno da Venezuela para marcar, assim, a linha política para o próximo governo. “É uma medida para deixar aberta uma crise”, afirmou Medina, que acrescentou: “O governo de Santos tinha dado sinais de que pretendia buscar a distensão [nas relações com a Venezuela]”. Para a analista política colombiana Laura Gil, “Uribe mostra desespero” e teme que seu sucessor, apesar de ser seu principal aliado político, se distancie da política – chamada Segurança Democrática – que Uribe vinha aplicando. Outra herança que Santos receberá é a queda em 70% do comércio bilateral entre os dois países desde o início da crise. O Banco Central da Colômbia afirmou que as exportações para a Venezuela não devem ultrapassar 1,2 bilhão de dólares. No ano passado, a Colômbia, que até então era o segundo sócio comercial da Venezuela, exportou 4 bilhões de dólares. Em 2008, antes do aprofundamento da crise, as exportações colombianas superaram os 6 bilhões de dólares. Na avaliação de analistas políticos, a necessidade de recuperar o comércio bilateral e a pressão de empresários colombianos deve levar o novo governo a buscar a distensão com Caracas.

Outra herança que Santos receberá é a queda em 70% do comércio bilateral entre os dois países desde o início da crise Agressão militar Para o governo da Venezuela, no entanto, as acusações da Colômbia são parte de um plano coordenado com os Estados Unidos para cercar seu país e atacá-lo militarmente. No dia 25 de julho, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, disse que há “possibilidades como nunca nos úl-

timos anos” de uma agressão armada da Colômbia contra a Venezuela. Chávez disse que, caso fosse atacado, suspenderia o envio de petróleo aos Estados Unidos, seu principal aliado comercial, considerado por ele “o grande culpado” pela crise com a Colômbia. “Sou obrigado a falar ao povo a verdade. Estamos ameaçados pelo império ianque e, desde agora, digo: se houver alguma agressão armada contra a Venezuela a partir do território colombiano ou de qualquer lugar, impulsionada pelo império ianque, nós, ainda que tenhamos que comer pedras, suspenderemos o envio de petróleo aos Estados Unidos”, afirmou. “Estamos dispostos a defender a dignidade de nossa pátria, custe o que custar”, acrescentou. Movimento de tropas O governo venezuelano incrementou em mil efetivos a segurança na extensa fronteira de 2,2 mil km com a Colômbia e disse ter informação de que há movimentos de tropas colombianas ao longo dela. A crise com a Colômbia é vista pela oposição venezuelana como uma estratégia do governo para reunificar seus simpatizantes em torno das candidaturas chavistas, de olho na reconfiguração do Parlamento nas eleições legislativas de setembro. César Pérez Vivas, governador opositor do estado de Táchira, fronteira com a Colômbia, qualificou a ruptura de relações com o país vizinho como um “show” para angariar votos. “Isto é parte da sua campanha eleitoral. Como ele [Chávez] está desesperado, encurralado em consequência de sua política, montou um show para distrair a atenção”, afirmou. Para o analista político estadunidense Steve Ellner, da Universidade do Oriente, na Venezuela, Chávez tem mais a perder que a ganhar com a crise binacional. “As pessoas querem tranquilidade. Muitos podem optar por não votar ou votar em um candidato alternativo ao chavismo devido à tensão”, disse ao Brasil de Fato. (MS)




12

de 29 de julho a 4 de agosto de 2010

américa latina

As cinco leis fundamentais do Estado Plurinacional BOLÍVIA Baseadas na Nova Constituição Política de Estado (NCPE), as leis delineiam novos Órgão Judicial, Tribunal Constitucional, Órgão Eleitoral e Regime Eleitoral, além de definir um novo marco de descentralização da administração territorial do Estado Plurinacional G. Jallasi/ABI

Vinicius Mansur correspondente em La Paz (Bolívia) COM A promulgação da Lei Marco de Autonomias e Descentralização pelo presidente Evo Morales, no dia 19 de julho, foi conformado o corpo legal básico que permitirá o pleno funcionamento do novo Estado boliviano, conforme a Nova Constituição Política de Estado (NCPE). O prazo para a aprovação deste corpo, também composto pelas outras quatro leis orgânicas citadas, já estava definido nas disposições transitórias da nova Constituição: o Congresso boliviano tinha o dia 22 de agosto como data limite para entregá-las ao presidente. A oposição a Morales classificou de autoritária a rapidez empreendida ao processo de aprovação, porém, pouco pode fazer diante de uma bancada governista que corresponde a mais de dois terços do Parlamento. Alguns pontos das novas leis também foram taxadas de autoritárias pelos oposicionistas, mas até mesmo a Lei Marco de Autonomias e Descentralização, alvo das maiores polêmicas, foi considerada um avanço por Ruben Costas, governador de Santa Cruz, departamento que reúne a mais forte oposição a Morales. “Se recorremos à história da Bolívia e de Santa Cruz, encontraremos que nunca houve tantos avanços em autonomia como tivemos nos últimos cinco anos”, declarou.

“Esse processo deve buscar participação dos municípios, povos indígenas e organizações da sociedade civil para conseguir um documento altamente representativo e consensual” Autonomias

Denominada de Andrés Ibáñez, em homenagem ao líder da Revolução Igualitária de 1877, em Santa Cruz, a Lei Marco de Autonomias e Descentralização define o regime de competência e os mecanismos de coordenação entre os diferentes níveis de governo, além de criar o Conselho Nacional de Autonomias e do Serviço Estatal Técnico de Autonomias para acompanhar o processo de descentralização. A nova lei concede diferentes níveis de autonomia

Câmara de senadores da Assembleia Legislativa Plurinacional sanciona a Lei do Órgão Eleitoral

a regiões, departamentos, municípios e territórios indígenas autônomos, descentralizando ações em mais de 20 áreas, como saúde, educação, transporte, obras públicas, meio ambiente, entre outras. De acordo com o ministro de Autonomias, Carlos Romero, a nova lei serve para promover o desenvolvimento econômico e produtivo do país: “Uma vez aprovada a lei de classificação de impostos, vão poder [as unidades autônomas] exercer sua reforma tributária, o que vai lhes permitir aumentar seus recursos, mas também assumir empreendimentos econômicos que lhes permitam dar sustentabilidade às autonomias, captando receitas próprias e não sujeitando-se somente às projeções de renda geradas pela exploração de recursos naturais”. Um Fundo de Produção e Solidariedade foi criado pela nova lei para complementar a renda dos departamentos mais pobres. A desconcentração de poderes prevista pela NCPE e especificada na nova lei, a princípio, pode não soar muito inovadora para a realidade brasileira de Estado federal. Porém, significa grandes mudanças na Bolívia, país com forte herança centralista, no qual seu povo sequer tinha o direito de eleger os governadores antes da NCPE, sendo estes indicados diretamente pelo presidente. Tal herança se justifica na histórica dificuldade boliviana de forjar a unidade e a identidade nacional, fato que sempre travou a descentralização de poderes em nome do medo da fragmentação do Estado. Ou, ao contrário, motivou movimentos separatistas que se camuflavam sob a bandeira da “autonomia”. O exemplo mais recente aconteceu em 2008,

Eduardo Paz destaca que, após conquistado o Poder Executivo, as novas leis vêm para permitir uma mudança da classe dirigente em outros níveis de poder, especialmente no Legislativo quando quatro departamentos do oriente boliviano (Santa Cruz, Pando, Tarija e Beni), governados pela oposição a Morales, realizaram, sem reconhecimento dos órgãos do Estado nacional, os chamados referendos autonômicos, aprovando estatutos que conferiam aos governos departamentais poderes até então monopolizados pelo governo central. Enquadrando a oposição

O estatuto de Santa Cruz, por exemplo, permitia ao departamento ter seu próprio regime eleitoral, ter o controle de titulação de terras, sobre os serviços de telecomunicações, sobre recursos naturais, entre outros. Com a Lei Marco de Autonomias e Descentralização, esses departamentos estão obrigados a enquadrar seus estatutos às novas disposições legais, o que, de acordo com a presidente da Comissão Mista de Autonomias e Descentralização da Assembleia Legislativa Plurinacional, a masista Betty Tejada, obrigará Santa Cruz a modificar 40 dos 168 artigos de seu estatuto. Tejada explicou que todos os departamentos terão até dezembro para adequar seus estatutos ou para redigir novos. Em 5 de dezembro, o Tribunal Constitucional será eleito por voto popular, em janeiro de 2011 tomará posse, tendo até maio para aprovar os estatutos elaboraJose Lirauze/ABI

dos. Em setembro do mesmo ano, todos os estatutos deverão ser submetidos a referendos populares. A adequação dos estatutos deverá ser feita pelas assembleias legislativas departamentais e aprovada por dois terços dos assembleístas, condição que não é alcançada pelos opositores a Morales em nenhum departamento, o que os obrigará a pactuar. Para o senador masista Eduardo Maldonado, “mais do que debater e apro-

var o estatuto, esse processo deve buscar participação dos municípios, povos indígenas e organizações da sociedade civil para conseguir um documento altamente representativo e consensual”. Diante de um cenário amplamente desfavorável, três dos quatro departamentos que precisam remodelar seus estatutos já começaram os trâmites. Apenas Santa Cruz está com o processo parado. Os crucenhos questionam, sobretudo, o artigo 145 da Lei Marco, que ordena a suspensão de autoridade eleita quando apresentada contra ela uma acusação formal, por algum órgão de Justiça, de supostos atos de delito. Cidob protesta

A Confederação de Povos Indígenas do Oriente Boliviano (Cidob) iniciou uma mar-

cha no dia 21 de junho, saindo da capital do departamento de Beni, Trinidad, enquanto a Lei Marco estava em debate no Congresso. A organização apresentou um documento com 13 reivindicações, entre elas a regularização de terras, anulação de concessões florestais e mineiras em suas áreas e autonomia plena. Antes que a marcha chegasse a La Paz, Cidob e governo assinaram um acordo que contemplava 11 dos 13 pontos, entre eles, um financiamento de 1,5 milhão de dólares para a regularização de terras e a revisão de todas as concessões. O acordo suspendeu a marcha, porém o dirigente da Cidob, Johnny Rojas, afirmou que “os projetos de desenvolvimento são uma derrota” e que “vão denunciar ao mundo inteiro que não somos atendidos, apesar de termos um governo indígena”. De acordo com o ministro Romero, o único problema na negociação foi a “chantagem” imposta pela Cidob, que reivindicava um cargo no órgão público Autoridade de Fiscalização e Controle Social de Florestas e Terras. Próximos passos

Segundo o diretor do curso de Sociologia da Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), Eduardo Paz, “as leis aprovadas até aqui tratam de modificar a superestrutura, de maneira a afiançar o atual governo”. Paz destaca que, após conquistado o Poder Executivo, as novas leis vêm para permitir uma mudança da classe dirigente em outros níveis de poder, especialmente no Legislativo. Passada a aprovação das cinco leis, o sociólogo acredita que o governo impulsionará a Assembleia Legislativa Plurinacional a tratar de temas mais diretamente ligados à vida do povo, como aposentadoria, saúde, educação e código de trabalho.

Principais novidades das outras quatro leis Lei de Regime Eleitoral

Regulamenta referendos e eleições, estabelecendo critérios para aumentar a presença das mulheres e a diversidade étnica em eleições para o Legislativo e o Judiciário. Define que os mais altos cargos do Órgão Judicial serão eleitos por voto popular. Promove a democracia intercultural, reconhecendo como legítimos os mecanismos de democracia direta, participativa, representativa e também comunitária. O texto convida os bolivianos a “reconhecer e respeitar as distintas formas de deliberação democrática, diferentes critérios de representação política e os direitos individuais e coletivos da sociedade intercultural boliviana”. Reconhece o direito a consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas. De maneira inédita na Bolívia, estabelece o segundo turno nas eleições para cargos do Executivo. Foi criticada por impor limites às campanhas e às coberturas jornalísticas nas eleições para o Órgão Judicial e também por estabelecer somente sete circunscrições especiais indígenas (equivalentes a sete cadeiras no Congresso), uma vez que, dentro dessas sete circunscrições, existem mais de 30 povos indígenas.

Lei do Órgão Eleitoral Plurinacional (OEP)

Estabelece que o novo órgão terá um Tribunal Supremo Eleitoral, com sede em La Paz, tribunais departamentais em cada um dos departamentos, além do Serviço de Registro Cívico. O Tribunal Supremo será dirigido por sete membros, sendo um escolhido pelo presidente e os outros seis pela Assembleia Legislativa Plurinacional, com pelo menos dois terços dos votos. Dos sete, pelo menos três terão que ser mulheres e dois de origem indígena originária camponesa. Os tribunais departamentais serão dirigidos por cinco membros, dos quais pelo menos dois devem ser mulheres e um de origem indígena originária camponesa.

Lei do Órgão Judicial

Reconhece a Justiça Indígena Originária Camponesa, que goza de igual hierarquia à Justiça ordinária, porém não define seus limites jurisdicionais, que serão estabelecidos pela Lei de Deslinde Jurídico. Define que os magistrados do Tribunal Superior de Justiça (TSJ) e do Tribunal Agroambiental, além dos conselheiros do Conselho de Magistratura, serão eleitos por sufrágio universal. A Assembleia Legislativa Plurinacional selecionará uma lista de candidatos inscritos para ir a votação, garantindo a presença de pelo menos 50% de mulheres e de uma pessoa de origem indígena originária camponesa. No caso do TSJ, serão eleitos um magistrado titular e um suplente por departamento. Caso o mais votado seja homem, sua suplente deverá ser a mulher mais votada. Caso seja mais votada uma mulher, seu suplente será o homem mais votado.

Lei do Tribunal Constitucional

Congresso boliviano tem até 22 de agosto para aprovar as leis

Encarregado de elucidar os conflitos entre as novas autonomias e receber ações de inconstitucionalidade. Serão eleitos, por sufrágio universal, sete magistrados titulares e sete suplentes, sendo que pelo menos um deverá vir do sistema indígena originário camponês, por autoidentificação. A Assembleia Legislativa Plurinacional selecionará previamente 28 dos candidatos inscritos, tendo que garantir 50% de mulheres na lista.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.