Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 8 • Número 393
São Paulo, de 9 a 15 de setembro de 2010
R$ 2,80 www.brasildefato.com.br Gustavo Ohara
“Mobilizações não cessaram, o povo segue se organizando”
Celeridade na construção e na expulsão de famílias De Norte a Sul, as grandes obras de usinas hidrelétricas atingem cada vez mais populações, afetando seus direitos mais básicos. Comunidades do Rio Grande do Sul, Tocantins e Maranhão testemunham a falta de transparência das empresas, a concessão de polêmicas licenças ambientais e a truculência na expulsão de famílias que não possuem documento da terra. Págs. 4 e 5
CPT aponta crescimento de conflitos pela água no Brasil A Comissão Pastoral da Terra (CPT) apresentou dados coletados no primeiro semestre de 2010 para o relatório de “Conflitos no Campo”. Nele se pode notar que o embate pela água tem se intensificado nos últimos meses. Como principal motivo para os conflitos, por um dos bens mais preciosos ao ser humano, a construção das barragens em diferentes rios. Dados sobre a terra também apresentam aumento de enfrentamentos e de trabalhadores rurais vítimas de diferentes tipos de violência, com destaque especial às regiões Sul e Sudeste. Pág. 7
Mais de mil manifestantes participaram da marcha que percorreu 125 km em dez dias
Vale não paga impostos e é inclusa em lista de devedores A mineradora Vale, maior companhia privada do país, foi inscrita, no dia 23 de agosto, no Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal (Cadin), um banco de dados no qual se encontram registrados os nomes de pessoas físicas e jurídicas em débito com órgãos e entidades federais. A decisão de incluir o nome da empresa na lista foi
tomada pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Segundo o órgão, a Vale deixou de pagar aproximadamente R$ 400 milhões (em ICMS, PIS e Cofins) para a prefeitura de Parauapebas (PA). Além disso, a companhia não teria pago mais de R$ 350 milhões em Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (Cfem). Pág. 3 Reprodução
Oposição a Evo busca nova cara na Bolívia
Trabalhadores vencem Sadia em seu campo: o sindicato Foi necessária a interferência do Ministério Público do Trabalho (MPT) para a realização das eleições do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Carnes e Derivados (Sitracarnes), em Chapecó (SC). Ligada à empresa Sadia, a diretoria do Sitracarnes dominou a entidade por 22 anos, ignorando a superexploração sofrida pelos trabalhadores. De um total de 6 mil operários da unidade de Chapecó, cerca de 1.100 estão afastados pelo INSS, como decorrência de doenças, amputações ou lesões ocupacionais. Pág. 6 ISSN 1978-5134
Crise econômica e desemprego. Resistência e mobilização. Após 40 dias em Honduras, Ronaldo Pagotto, militante da Consulta Popular, conta em entrevista como se encontra o atual cenário político e econômico do país. A impressão que teve é de que a ligação do presidente deposto, Manuel Zelaya, com a população ainda se configura como um fator que “ameaça qualquer golpista”. Pág. 9
No novo mandato do presidente boliviano Evo Morales, iniciado em janeiro deste ano, a correlação de forças no cenário político está definitivamente mudada. As eleições de 2009 tiveram efeito positivo para o MAS, partido de Evo, e foram devastadoras para a oposição radical que ensaiava um golpe. Em entrevista ao Brasil de Fato, o líder da oposição no Senado boliviano, German Antelo, define-se como um social-democrata e reclama de um suposto centralismo do governo, mas elogia as políticas sociais. Pág. 10 Policial moçambicano observa manifestação em rua de Maputo, capital do país
Custo de vida alto gera revolta em Moçambique Moçambique é um dos países mais pobres do mundo, ocupando a 172ª posição em um ranking de 177 países. Saído de um
regime socialista, o país adotou um ultraliberalismo. As condições precárias às quais a população é submetida estão gerando revolta
entre os afetados. No início deste mês, uma série de manifestações eclodiu após o aumento do preço do pão, o que agravou a carestia.
A repressão deixou oito mortos. Atualmente, o país é governado por Armando Guebuza, homem mais rico de Moçambique. Pág. 11 GusRicardo Cassiano/Folhapresstavo Ohara
O Brasil retratado pelo rumo da bola Pág. 8
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editorial O ANÚNCIO da retirada das tropas estadunidenses do Iraque não pode alimentar ilusões quanto à natureza militarista, expansionista e imperialista da política externa do governo de Barak Obama. O complexo industrial-militar dos EUA é um dos maiores financiadores de campanhas, e tanto o Partido Republicano quanto o Partido Democrata são financiados por empresas que acumulam capital com a produção e multiplicação de guerras e conflitos regionais. Está no DNA da política externa dos EUA a guerra de conquista por novos territórios e mercados. Em relação ao Iraque, os EUA já flertou no passado com Saddam Hussein, fornecendo armas e tecnologia para o mesmo atacar o Irã durante a guerra entre os dois países (IrãIraque). Também era estadunidense a tecnologia usada para produzir as bombas e gases lançados contra os curdos nos anos 1980. Mas nessa época o imperialismo queria se vingar do Irã por causa da Revolução Islâmica de 1979, que nacionalizou a indústria de petróleo do país. Saddam resolver fazer carreira solo e se projetou como uma liderança política do mundo árabe supostamente capaz de enfrentar o imperialismo e o sionismo. Da sua aventura no Kwait em 1990 resulta a primeira invasão
debate
Os EUA saem do Iraque derrotados militarmente imperialista, na Guerra do Golfo, em 1991. Com os bombardeios da coalizão, 100 mil iraquianos morrem . De 1991 a 2003 o Iraque foi bombardeado quase toda semana por EUA e Inglaterra, e um bloqueio econômico, financeiro e militar foi imposto ao país, com apoio da ONU: 1 milhão de pessoas haviam morrido, sendo 500 mil crianças, num país sem comida e sem remédios. Em 11 de setembro de 2001, com os ataques ao World Trade Center em Nova York, o governo Bush lança ao mundo a ideia de que Saddam financiava terroristas da chamada Al-Qaeda de Osama Bin Laden. Nada mais absurdo, pois nunca houve nenhuma proximidade política ou religiosa entre os dois. Os meios de (des)informação em massa se apressaram para reproduzir mais essa mentira, para justificar e apoiar a chamada “Guerra contra o terror”, também conhecida como “Guerra preventiva”. Armas de destruição em massa, químicas, nucleares, tudo isso
estaria no Iraque e poderia ser utilizado contra a “civilização cristã-ocidental”. Em outubro de 2001 ocorre a invasão do Afeganistão, onde os EUA, depois de apoiarem os talibãs entre 1979-1991 na guerra contra a URSS, agora apoiam a Aliança do Norte, uma organização de narcotraficantes que serve de linha de frente na perseguição contra os que agora são chamados de terroristas. Obama tem anunciado a retirada gradativa das tropas do Iraque para reforçar a guerra no Afeganistão. Mas os alvos podem ser o Irã, a Coreia do Norte, a Venezuela e os países da Alba (como já ocorreu com Honduras), ou também pode ser algum país africano, continente que ainda concentra inúmeras riquezas e recursos naturais. Mas o Iraque deixa lições importantes, pois as diversas forças políticas e sociais da resistência iraquiana deram uma demonstração incrível de capacidade organizativa e disposição de luta, apesar das contradições
profundas no interior desse bloco de forças que encontrou unidade na luta contra o invasor imperialista. A possibilidade de enfrentar o imperialismo em condições bastante desfavoráveis, e vencer, foi novamente demonstrada no Iraque. Mas, também, a cooptação e a divisão impostas pelos EUA tiveram algum êxito, fato que dificulta as relações entre sunitas e xiitas, e, entre estes, os curdos. Os EUA saem do Iraque derrotados militarmente, pois não conseguiram se impor plenamente pela força das armas, mesmo com os mais de 165 mil soldados e mais alguns milhares de mercenários de empresas privadas estadunidenses que passaram por lá. Mas será que podemos afirmar que os EUA saem de lá plenamente derrotados politicamente? Ou será que os aliados que eles plantaram naquele país árabe vão continuar a política de repressão contra o povo e suas organizações? A correlação de forças pode se alterar de maneira significativa no próximo período
artigo
Adolfo Pérez Esquivel
A contaminação informativa A VIDA DOS povos está submetida aos impactos ambientais, à contaminação auditiva e visual da palavra e das ideias para impor a monocultura das mentes. Os avanços tecnológicos são utilizados muitas vezes para o controle dos meios de comunicação e assim condicionar e manipular os povos. Nenhum meio informativo é asséptico, mas deve se basear na ética e em valores a serviço dos povos, e não a serviços dele mesmo. Uma das grandes conquistas das lutas sociais foi a liberdade de imprensa, o direito de informar e ser informado, mas os grandes monopólios econômicos, ideológicos e políticos que controlam os meios de informação têm matado a liberdade de imprensa e querem confundi-la e reduzi-la à liberdade de empresa, e não são sinônimos. A contaminação da palavra e a propaganda midiática têm chegado a tal extremo que não permitem ver com claridade onde está a veracidade informativa. A ética e a busca da verdade estão ausentes, e prevalece a distorção da realidade. A CNN é um exemplo dessa contaminação com que sofrem os povos. Sua ação no Iraque é e foi para justificar a guerra e difundir que esse país tinha armas de destruição massiva. Algo semelhante estão armando atualmente contra o Irã e outros países, e por outra parte ocultam os massacres e assassinatos de crianças e populações no Iraque e Afeganistão, onde os que dizem defender a “democracia” se dedicam ao saque do patrimônio do povo iraquiano e implantam centros de torturas, levando destruição e morte a essa região. Os acusa de “terrorismo islâmico”, quando os verdadeiros terroristas são os torturadores e assassinos que invadem esses países, violando os direitos humanos e dos povos e todas as convenções internacionais. Os grandes monopólios informativos da Europa, Estados Unidos e América Latina estão em uma forte campanha para atacar e desprestigiar governos como o de Hugo Chávez, na Venezuela, acusando-o de tirano e de todos os males; ignorando, em seus esquecimentos intencionais, que Chávez é um dos poucos presidentes a ser submetido a eleições e o povo o reelege, por suas políticas sociais e trabalho em favor dos setores mais negligenciados. Outro branco midiático dessa campanha de desprestígio é o presidente Evo Morales, da Bolívia, que deve suportar a campanha e a ação dos meios concentrados de comunicação contra um governo que tem buscado a integração e a vida dos povos, em um país plurinacional e nacional, e tem tocado os interesses econômicos e políticos que sempre dominaram a Bolívia. As campanhas midiáticas dos grandes monopólios informativos estão dirigidas à contaminação mental que debilita os governos progressistas. Através do tempo, vemos que o mesmo ocorre com Fidel Castro e o go-
verno cubano; 50 anos de resistência e assombro no mundo sobre os avanços e capacidades de seu povo, seus programas de saúde, educação e luta contra o analfabetismo e a pobreza. O evidente é que Cuba é um povo solidário com outros povos mais necessitados, e os atos falam por si mesmos. Há muito tempo, antes do terremoto que assolou o Haiti, Cuba enviou médicos, educadores, técnicos para apoiar e trabalhar solidariamente junto ao povo haitiano, vítima da pobreza, marginalidade, violência social e estrutural e dos desastres naturais. Os Estados Unidos, como resposta às necessidades do povo haitiano, enviou 20 mil soldados para controlar e subjugar o povo. Mas disso não se fala, a intencionalidade das campanhas jornalísticas é estar a serviço dos interesses econômicos e políticos dos poderosos para subjugar os povos. Tenho tornado público e sustento que a Lei de Meios Audiovisuais sancionada pelo Parlamento argentino é necessária, já que permite romper o controle dos monopólios informativos, gerar o pluralismo jornalístico e recuperar a liberdade de imprensa. A reação das corporações, como o Grupo Clarín, tem desatado uma campanha virulenta contra o governo acompanhada por uma voracidade da oposição sem ideias, que busca unicamente golpeálo e que tem todos os meios à sua disposição, como a vidente que anuncia todo tipo de catástrofes, sem diferenciar as contribuições e avanços do governo, e destacando somente seus erros, e ampliados. É preocupante para a vigência democrática do país. Com o tema Papel Prensa, empresa monopolista, se faz necessário investigar a ação da ditadura militar e a quem favoreceu. A família Graiver foi submetida a sequestros, torturas, cárcere e morte, e seus bens foram apropriados. O governo argentino iniciou uma investigação para determinar responsabilidades. A ditadura militar utilizou manobras semelhantes ao Papel Prensa para se apropriar de empresas e recursos dos irmãos Iaccarino, vítimas da violência e da impunidade desses anos todos. Ao mesmo tempo, o governo – e eu tenho notado em reiteradas oportunidades – não sabe e não quer dialogar, é um governo de confronto e agudização dos conflitos, que se move com muita soberba e pouco sentido político para resolver problemas do país. Isso se soma às políticas provinciais dos senhores feudais, que fazem o que querem e não o que devem, e estão levando as províncias à sua desintegração social, cultural, política e econômica. Uma coisa é o federalismo
Gama
com a saída das tropas estrangeiras? O que será necessário para isso ocorrer? Quais são, de fato, as forças com disposição e capacidade para livrar de uma vez por todas o Iraque da fome, da pobreza e da submissão aos interesses imperialistas? Como serão as lutas por uma nação livre, justa, soberana e verdadeiramente democrática a partir de agora? São questões que só o povo iraquiano, em especial, a classe trabalhadora, poderá responder. Uma coisa é certa: se o Iraque não é ainda o que o seu povo deseja que ele seja, ele também não se transformou naquilo que EUA queriam que ele fosse – mais um território subordinado aos interesses de Washington. Os EUA não podem comemorar uma vitória militar, mas eles destruíram o país, economica, política, social e militarmente. Parece que essa destruição em massa dos EUA no Iraque cria enormes desafios para as massas populares do mundo árabe, que não podem impor a derrota contra o sionismo e o imperialismo sem um mínimo de unidade e articulação entre suas lutas. Seguimos no apoio à justa e legítima resistência popular iraquiana, palestina, curda, saharauí, pois nada, nem ninguém, pode deter um povo determinado a conquistar a sua libertação.
Thomaz Ferreira Jensen
No país, trabalhadores intensificam mobilizações
Adolfo Pérez Esquivel é Prêmio Nobel da Paz em 1980.
OS DADOS DO PIB revelam que a economia brasileira se expandiu 8,9% no primeiro semestre de 2010 em relação ao mesmo período do ano passado, puxada, sobretudo, pelo crescimento da indústria, da agropecuária e dos gastos do governo. Esse crescimento no semestre projeta um crescimento do PIB acima de 7% em 2010, uma das taxas mais elevadas do mundo, só abaixo das projeções para as economias de China e Índia. Diante desses resultados, importantes categorias estão em plena campanha salarial neste segundo semestre. Ao todo, são mais de cem categorias, entre as quais: metalúrgicos, químicos, comerciários, petroleiros e bancários. Essas campanhas são praticamente unificadas, uma vez que as pautas convergem em diversos pontos, inclusive o percentual de aumento real, acima da reposição da inflação, que está sendo reivindicada. Os bancários se organizam já há alguns anos num comando unificado nacional, que negocia com os representantes dos bancos. Os petroleiros negociam praticamente com uma única empresa, a Petrobras, e também fazem uma campanha unificada. Este ano, algumas categorias estão se aproximando para reforçarem suas jornadas reivindicatórias. É o caso da Força Sindical e da União Geral dos Trabalhadores (UGT), cujas federações e sindicatos filiados – dos setores da indústria, comércio e serviços no Estado de São Paulo – realizaram manifestações unitárias para a entrega das pautas de reivindicação à Fiesp (Federação das Indústrias) e à Fecomércio (Federação patronal do comércio). As dezenas de Sindicatos envolvidos representam cerca de 2 milhões de trabalhadores do setor metalúrgico, indústria alimentícia, químico, padeiros, aeroviários, gráficos, de laticínios, têxteis e do comércio da capital e várias regiões do interior. Os dirigentes sindicais manifestaram que irão atuar conjuntamente nas negociações de cada categoria, o que inclui apoio para realização de greves. Os percentuais reivindicados para o aumento dos salários também se elevaram. No ano passado, a maioria das categorias obteve aumentos entre 1,5% e 2% acima da inflação. As reivindicações este ano partem de 5%, e muitas chegam a 11% de aumento real. Os petroleiros, por exemplo, reivindicam aumento real de 10%. Já os bancários, que haviam obtido pouco mais de 1% em 2009, reivindicam 5% além da reposição da inflação. Para subsidiar as ações unitárias das Centrais Sindicais, o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) elaborou estudo destacando, além da conjuntura favorável às negociações coletivas, desafios que o Movimento Sindical pode buscar enfrentar com sucesso em tempos de crescimento econômico. No centro da disputa, a redução da desigualdade de renda e o aumento da participação dos salários na renda nacional. Segundo dados apurados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nas Contas Nacionais, a participação da parcela salarial na renda nacional em 2008 era estimada em apenas 43,6%, enquanto nos países centrais do capitalismo estava acima dos 60% (68,1% nos EUA; 75,9% na Coreia do Sul; 64,9% na Alemanha). A disputa pela renda nacional se desenrola em diversos planos. Na esfera do Estado, a reforma tributária e a redução das taxas de juros fixadas pelo governo através do Banco Central são necessárias para diminuir as vantagens do capital em relação aos trabalhadores. Destaca-se também a necessidade de manter a valorização do salário mínimo. Segundo o Dieese, em agosto, o salário mínimo necessário deveria ser de R$ 2.023,89, ou seja, 3,97 vezes o mínimo em vigor, de R$ 510,00. No plano das negociações coletivas, as principais reivindicações concentram-se na redução da jornada de trabalho para 40 horas; na elevação dos pisos salariais das categorias, contribuindo para elevar a taxa mínima de exploração e elevar a pirâmide salarial no país; e na incorporação dos ganhos de produtividade aos salários – nos últimos dez anos, os níveis de produção da indústria brasileira acumularam elevação de 26,4%. Enquanto isso, o volume de horas pagas mostrou crescimento bem mais modesto (2,9%), e o Custo Unitário do Trabalho, que indica o crescimento do custo salarial em relação aos ganhos de produtividade, ficou praticamente estável (-0,1%) para o mesmo período. Como resultado dessa diferença entre o aumento da produção e das horas pagas entre 2001 e 2010, verifica-se que a produtividade física na indústria cresceu nada menos que 22,8%. Ou seja, existe muita riqueza gerada pelos trabalhadores que está sendo apropriada exclusivamente pelo capital.
Tradução: Patrícia Benvenuti
Thomaz Ferreira Jensen é economista do Dieese.
que partilha a integração e um projeto de país, e outra, de feudalismo que leva à desintegração nacional. A política neoliberal que impulsiona o governo não se modificou desde o menemismo que tanto dano causou ao país. Pelo contrário, se aprofundou, porque uma coisa são os discursos progressistas, e outra, a realidade. O problema político e econômico do governo e da Sociedade Rural Argentina não são muito diferentes, simplesmente a disputa está em quem fica com a parte maior do bolo. Basta ter presente que o governo não faz nada para frear os danos ambientais e os agrotóxicos, nem a exploração da megamineração com seus desastres e danos para a saúde das populações e suas economias regionais e familiares. Os desafios são enormes, e é necessário repensar o país, gerar um novo contrato social que permita avançar na construção democrática e na vigência dos direitos humanos em sua integridade. A liberdade de imprensa permitirá maior consciência crítica e o fortalecimento de valores éticos, sociais, culturais e políticos. Superar a contaminação informativa e assim poder repensar o país que queremos. (A íntegra deste artigo encontra-se em: www.brasildefato.com.br).
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patrícia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
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Vale não paga corretamente seus impostos para prefeitura no Pará DEVEDORA Mineradora é inscrita no Cadin por dever aproximadamente R$ 800 milhões à prefeitura de Parauapebas Douglas Mansur
Marcio Zonta de Parauapebas (PA) A VALE é a maior empresa de mineração diversificada das Américas. Presente em 14 estados brasileiros e em cinco continentes, a companhia é a maior exportadora de minério de ferro e pelotas do mundo. A transnacional também é a principal prestadora de logística do Brasil, operando mais de 9 mil quilômetros de malha ferroviária e 10 terminais portuários próprios. Seus lucros, no segundo trimestre deste ano, chegaram a R$ 6,6 bilhões, 344% maior que o mesmo período de 2009. Segundo levantamento da advogada Luciana Garcia, da ONG Justiça Global, a mineradora está entre as empresas que mais recebem subsídios do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com financiamentos, entre os anos de 2008 e 2010, de aproximadamente R$ 8 bilhões. Diante desse cenário, o prefeito da cidade de Parauapebas (PA), Darci José Lermen (PT), não consegue entender por que a Vale se recusa a pagar corretamente seus impostos para a prefeitura. O fato levou a empresa a ser inscrita, no dia 23 de agosto, no Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal (Cadin) e, assim, não poderá obter financiamentos e nem participar de licitações.
Circulação de Mercadoria e Prestação de Serviços (ICMS), Programa de Integração Social (PIS), Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins). O montante devido chega a um valor de aproximadamente R$ 400 milhões. Além disso, a Vale paga indevidamente a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (Cfem). Segundo Lermen, a empresa utiliza-se de subterfúgio para retirar da base de cálculo da Cfem a diferença da transferência dos preços feitos para suas controladas Vale Overseas e Vale International, sediadas em paraísos fiscais das Ilhas Cayman e da Suíça. Essas diferenças de valores de bases de cálculo podem chegar, segundo a prefeitura, a mais de R$ 17 bilhões, entre janeiro de 2004 a junho de 2009. Assim, a companhia deixa de gerar Cfem correspondente a R$ 351.003.671,40. Monocrática
Para o prefeito de Parauapebas, a companhia atua sem reconhecer os ditames constitucionais do DNPM e dos tribunais brasileiros. “A Vale não aceita a autoridade constituída do DNPM e, de forma monocrática, exacerba a lei e dá a sua interpretação, pagando somente o que entende ser legal, descumprindo todas as normas e as decisões da Justiça”. Em nota, a própria Vale reforça o discurso do prefeito: “esclarecemos que há divergências entre a interpretação da legislação por parte da empresa e do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). A Vale tem recolhido os valores incontroversos de forma regular e exercido seu direito de defesa contra cobranças que considera indevidas”. No entanto, Darci acrescenta que “não pagar a Cfem devida e gloriarse dos lucros auferidos não é merecedor de aplausos, mas sim de lamentações”.
“A Vale não aceita a autoridade constituída do DNPM e, de forma monocrática, exacerba a lei e dá a sua interpretação, pagando somente o que entende ser legal”
Para entender O que ela deve
A Vale foi inscrita no Cadin pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) por não pagar para a prefeitura de Parauapebas tributos referentes ao Imposto sobre
Jazida de minério de ferro da Vale em Carajás, no sudeste do Pará
Companhia inventa cidades “A mineradora passa a elaborar projetos e a definir a política do município”, critica sociólogo de Parauapebas (PA) Habitada por índios, da etnia xikrins do cateté, até início da década de 1970, e então pertencente ao município de Marabá, a cidade de Parauapebas, a cerca de 836 km da capital paraense Belém, é um exemplo da dominação econômica e política imposta pela Vale. Suas características, de vila e área indígena, começaram a mudar quando Carajás, a maior reserva mineral do mundo, foi descoberta na região, no final dos anos de 1960. Emancipada há 22 anos, o município hoje “representa centro da província mineral de Carajás”, segundo a definição do sociólogo e agrônomo Raimundo Gomes Oliveira, presidente do Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (Cepasp). Por interesse da Vale, outras vilas também foram transformadas em cidades, como Canaã dos Carajás, criada em 1997, na divisa com Parauapebas, e Curianópolis, com 21 anos de existência,
todas no sul paraense e ricas em níquel e cobre.“A emancipação dessas vilas em cidades, todas com menos de 30 anos, têm tudo a ver com os negócios da Vale. Todos esses municípios pertenciam ao território de Marabá, não existiam”, alerta Oliveira.
“As emancipações dessas vilas em cidades, todas com menos de 30 anos, têm tudo a ver com os negócios da Vale Interferência
As decisões políticas e econômicas dessas cidades sofrem interferência da Vale. “A mineradora passa a elaborar projetos e a definir a política do município, influenciando também, através da compra de áreas de agricultores e fazendeiros, na queda da produção de leite, queijo e produtos como arroz, feijão, milho e mandioca”, observa o sociólogo. E, como é vista pelos governos municipais enquanto geradora de emprego e crescimento, “a decidir sobre a realidade da área”, diz Oliveira. Privação
Além do domínio político, Oliveira destaca as áreas públicas
desses municípios e arredores que foram tomadas de posse pela Vale, principalmente após sua privatização, em 1997, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), com o mero objetivo de exploração. “A Vale determinou e acompanhou a criação da Floresta Nacional do Itacaiunas, da Floresta Nacional e da Reserva Biológica do Tapirapé Aquiri, da área de proteção ambiental conhecida como APA do Gelado e da Floresta Nacional de Carajás, esta com 411 mil hectares”, revela o sociólogo. Assim, essas áreas públicas passaram a ter segurança privada e acesso restrito para funcionários da Vale ou para aqueles que têm sua entrada autorizada pela empresa. “Se for encontrada alguma pessoa nesse limite, ela será presa pelos guardas da Vale e levada para a Polícia Civil”, comenta Oliveira. Isso dificulta o acesso de agricultores e pescadores da região às águas dos rios. “Nos rios que fazem limite entre as florestas e as áreas de agricultores, as pessoas só podem pescar até ao meio do rio, pois, se os guardas pegarem alguém pescando fora desse espaço, serão tomados seus pertences e serão presas”. Portanto, destinando a região apenas para seus projetos de mineração, sobretudo, nesses três municípios, “a Vale já polui o rio Parauapebas e o rio Itacaiunas, domina boa parte do solo, domina os governos e quer dominar a população”, desabafa Oliveira. (MZ)
Cadin – O Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal é um banco de dados no qual se encontram registrados os nomes de pessoas físicas e jurídicas em débito com órgãos e entidades federais.
A sanha por lucros de Parauapebas (PA) Além de ter seu nome incluído no Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal (Cadin) por não debitar seus impostos corretamente em Parauapebas (PA), a Vale é alvo de outra ação na Justiça, na comarca do município, por não pagar aos seus funcionários a quantia referente ao tempo gasto desde seus domicílios até os locais de trabalho. A empresa se recusava a aceitar essa reivindicação, juridicamente denominada de hora in itinere (no itinerário). Segundo o jornalista Lúcio Flávio Pinto, autor de diversos livros sobre a região, a Vale “alegava que não era responsabilidade dela e que o transporte era de competência do poder público, por se tratar de espaço público, situado fora dos limites da sua propriedade”. Diante da situação, o Ministério Público do Trabalho propôs uma ação civil pública contra a empresa, e o juiz da 1ª vara do trabalho de Parauapebas, Jônatas Andrade, averiguou que era mesmo a Vale quem transportava os empregados. Assim, condenou a companhia a recolher R$ 200 milhões ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) pela prática de “dumping social” e mais R$ 100 milhões como danos morais coletivos, a serem pagos aos funcionários. No acordo feito com os empregados em Belém (PA), no dia 20 de julho, ficou acertado que eles receberão diariamente um adicional pelos 44 minutos gastos até a mina de ferro de N4; 54 minutos até a jazida de cobre do Sossego; e 80 minutos até a mina de manganês do Azul. A empresa terá também de quitar o débito acumulado nos últimos 42 meses.
Esperteza
No entanto, Lúcio Flávio chama atenção para um detalhe desse acordo: “as empreiteiras serão mais oneradas do que a própria mineradora, cujos funcionários têm um percurso bem mais curto do que o dos demais”. Isso porque, dos 15 mil homens que atuam, 12 mil são terceirizados e moram em Parauapebas, distante 30 quilômetros da entrada da mina de Carajás e não no núcleo residencial interno, reservado aos funcionários da Vale. Além dos impactos da folha de pagamento. “Enquanto na Vale é calculado em 3%, o das empreiteiras deverá chegar a 10%. Ainda assim, é um ônus singelo em vista do peso suave dos salários no custo total de produção e em relação aos lucros e dividendos obtidos desde a venda da estatal”, observa o jornalista. Ademais, uma condenação dessas poderia ser utilizada contra a companhia pela prática de concorrência desleal junto à Organização Mundial do Comércio ou a tribunais arbitrais internacionais. “Aí a sua dor de cabeça seria profunda e cara”. Mas, para Lúcio Flávio, “como sempre, a Vale concentra para si, seus sócios, acionistas e compradores no exterior os grandes benefícios da extração até a rápida exaustão dos recursos minerais do Pará. O trabalhador, como os estados nos quais a empresa atua, fica só com o troco”. (MZ)
Para entender Dumping social – Trata-se da prática em que se buscam vantagens comerciais através da adoção de condições desumanas de trabalho.
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Quando vencer um sindicato é derrotar o patrão
Retrato de uma operária
Pedro Carrano
SINDICALISMO Trabalhadores da Sadia derrotam peleguismo em eleição que revelou condições de superexploração e mutilação no trabalho Pedro Carrano de Chapecó (SC) “ESTAMOS trabalhando há 18 dias sem acidentes com afastamento. Nosso recorde é de 115 dias”, diz o aviso na frente da entrada da maior unidade de corte de carne da Sadia, no bairro Efapi, município de Chapecó, na região oeste de Santa Catarina. A placa ainda diz pouco. Em frente à fábrica, os olhares são duros. Atrás das grades da empresa, um ou outro operário surge, observa a movimentação de fora e retorna à produção intensiva. Lá dentro, oito horas diárias vão ser ultrapassadas. Como descrevem os operários, não há alívio, janelas e nem tempo para se distrair. Em outra conjuntura, a exploração seguiria invisível. Mas o dia 1º de setembro foi incomum na vida desses trabalhadores, a maioria deles jovens, mulheres, indígenas e antigos agricultores da região, quem às vezes gasta três horas para chegar à fábrica. Pela primeira vez em 22 anos, eles acompanharam uma eleição para a disputa do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Carnes e Derivados (Sitracarnes), filiado à Força Sindical. No dia 31 de agosto, às vésperas da votação, os panfletos entregues na frente da Sadia reforçavam promessas de assistencialismo da atual direção. Mas, desta vez, outros também falavam de independência e direito dos trabalhadores. Para acontecer o pleito, foi preciso a ação do Ministério Público do Trabalho (MPT). A atual direção do sindicato foi processada pelo órgão, devido a acordos coletivos em prejuízo dos trabalhadores e fraude nas eleições. No dia 1º, as duas chapas ficaram de cada lado do quarteirão, separadas por cordões de isolamento da Polícia Militar, há 50 m do sindicato, onde foram instaladas duas urnas. Os órgãos de imprensa surgiram apenas à noite no local, após um dia inteiro de apreensão e temor de fraudes ou repressão. Às 23h, um dos lados começou a se dispersar, e os trabalhadores tiveram a notícia da vitória da Chapa 2, que conquistou mais do dobro dos votos (489 ao total, contra 216 da situação). Ao longo dos 22 anos, o sindicato controlou e restringiu a sua base, fracionando-se em duas agremiações, criando um outro sindicato para os trabalhadores da empresa Aurora. Outra parte dos trabalhadores havia se desfiliado, afinal havia controle e regras, tais como votar com dois anos de filiação. Durante as eleições, houve um embate em torno de possível fraude da lista de votantes, apresentada com 950 filiados, mas definida com cerca de 748 entre as partes e o MPT. O MPT havia garantido que, se o trabalho da Chapa de Oposição fosse criminalizado, a direção da Sadia seria acusada de formação de quadrilha, por estar vinculada à direção atual do sindicato. A medida permitiu o trabalho de conscientização na porta da fábrica, no dia 31 de agosto, um dia antes da votação, apesar da presença de inúmeros “leões-de-chácara”,
Fábrica da Sadia em Chapecó (SC): assistencialismo contra direitos trabalhistas
O MPT havia garantido que, se o trabalho da Chapa de Oposição fosse criminalizado, a direção da Sadia seria acusada de formação de quadrilha vestindo a camisa da Chapa 1, como forma de intimidação. Tensão exposta A disputa colocou em evidência as condições de trabalho dessa empresa do agronegócio que, no ano passado, operou uma fusão com a Perdigão, tornando-se Brasil Foods. De um total de 6 mil operários da unidade de Chapecó, a maioria mulheres, cerca de 1.100 estão afastados pelo INSS em decorrência de doenças ou lesões ocupacionais. Cerca de 200 mil frangos são abatidos diariamente para exportação. Desde a entrada na empresa, em um prazo muito curto de tempo, dores nos braços são inevitáveis. Os relatos apontam
que, em média, os trabalhadores fazem 6 mil movimentos na linha de produção, na qual um frango, por exemplo, deve ser desossado a cada oito segundos. Esta é a história da operária Cida, que há três anos está afastada devido à tendinopatia – lesões nos tendões causadas por traumas ou por esforços repetitivos. Ela se queixa dos quatro atendimentos médicos que têm direito por ano, ainda assim tendo que pagar a metade do serviço. No dia primeiro de setembro, Cida foi um dos inúmeros trabalhadores afastados que se deslocaram da periferia da cidade para dar o seu voto na urna instalada no sindicato.
Organização de base A organização paciente dos trabalhadores foi construída ao longo de três anos. A atual forma de luta é considerada pelas organizações apoiadoras uma referência para outros sindicatos e pode ter um efeito dominó. Membro da futura direção colegiada, o operário Jenir de Paula recorda que, ainda em 1988, a oposição já havia triunfado, mas foi impedida de assumir o sindicato. Mais tarde, diz ele, tentativas de organização levaram a dez companheiros demitidos. À época, para não ser demitido, Jenir passou a trabalhar no terceiro turno, afastado de qualquer forma de organização. Há três anos começou a reorganização com a meta de tomar o sindicato, a partir do trabalho do movimento social de Chapecó. “Desde 1988, não haviam feito nova eleição, sequer assembleias para consultar a base. Entramos com pedido de eleição e o Ministério Pú-
blico confirmou. Há dois meses demitiram colegas nossos. Tentaram me mandar embora quando quebrei o osso da face. Voltei pela Justiça e registramos a chapa”, descreve. E complementa: “Aqui existia uma ditadura sindical”. A unidade entre diferentes centrais sindicais na construção da Chapa 2 é outro ponto sinalizado pelos militantes que acompanharam a vitória da oposição. Estiveram presentes nesse processo organizações como o Sindicato dos Bancários de Blumenau, Intersindical da região de Campinas (SP), Consulta Popular, MST, Conlutas, além do apoio da CUT, entre outros. “A vitória aqui envolveu elementos importantes, como a derrota de uma estrutura sindical ligada à empresa, um campo amplo de unidade entre as forças do movimento sindical e popular, e também o elemento de organização no interior da fábrica”, analisa Antônio Goulart, da Coordenação Nacional da Consulta Popular.
Integrante da Chapa 2 do Sitracarnes, Neucira Terezinha Enderle passou 14 anos na luta pela terra, entre acampamentos e ações de despejo. Há cerca de três anos voltou ao Oeste de Santa Catarina em busca de melhores condições. “Um melhor salário”, como diz. Ela se afirma ainda agricultora, por isso teve tantas dificuldades com a forma de trabalho na Sadia. A operadora de produção do setor Hamburger, na unidade de produção da Sadia, topou com a mesma trajetória de tantos outros operários. “Tomava o café às 3h da madrugada, antes de sair. Na fábrica é proibido o lanche, então tomava água para saciar a fome, quando dava a tremedeira”, narra Neucira. A lesão nos braços a impediu de fazer atividades básicas, como varrer a casa, descascar uma mandioca ou esfregar uma meia. Neucira teve tendinopatia nos braços, inflamação que se espalha a outras partes do corpo, e que nela já se encontra desde 2007. “Perguntaram, em tom de ameaça, se queria ir embora ou continuar. Mas eu tinha filha, pagava aluguel, tinha metas para cumprir mesmo com dores no braço”, afirma. Conta que teve problemas para que o atestado fosse aceito pelo departamento médico da empresa, numa tentativa de negar a condição de doença do trabalho. “Há companheiros machucados fazendo serviços mais leves. Outro, com 27 anos de trabalho na fábrica, e os dedos torcidos. Mas há gente que acha que a empresa está no prejuízo e temos que ajudála. Eu mesma queria dar lucro para ela, quando senti a dor no braço é que fui ver a realidade”, narra. (PC)
Pedro Carrano
A volta das oposições sindicais Dirigente compara a vitória da oposição com o movimento do final dos anos de 1970 de Chapecó (SC) 20% dos funcionários estão afastados por lesões e acidentes de trabalho
Cindidos pelo capital Saúde e salário são as demandas urgentes dos trabalhadores
so, pessoas enfermas acabam seguindo no trabalho. Entre tantos relatos, um trabalhador teve a perna presa na máquina, e o médico responsável recomendou a amputação da perna inteira para não estragar a máquina. Outras trabalhadoras não conseguem erguer e
de Chapecó (SC) Os organizadores do movimento de oposição sindical calculam que cerca de 1.100 operários da Sadia, ou 20% do quadro de funcionários, estão afastados devido a lesões e acidentes de trabalho. O maior exemplo desse cenário: dentre os 24 integrantes da chapa vencedora, 12 deles estão em licença. O número total é incompleto, uma vez que a empresa pressiona os operários lesionados. Com is-
O maior exemplo desse cenário: dentre os 24 integrantes da chapa vencedora, 12 deles estão em licença
movimentar o braço. Há ainda dois casos recentes de suicídio. O salário líquido inicial dos operários é de R$ 600,00 e, após aproximadamente 20 anos de trabalho na empresa, não costuma exceder R$ 800,00. Por isso, o “S”, marca característica e de marketing da empresa, agora dá lugar às bandeiras de saúde e salário da Chapa 2. De acordo com o operário Argeo Machado, do setor de evisceração de peru, a perda salarial nos últimos anos é sensível. Nesse sentido, as principais lutas colocadas pela nova direção do Sitracarnes são a redução da jornada de trabalho para 40 horas, o aumento de salário e igualdade entre homens e mulheres, a participação nos lucros e resultados e o fortalecimento dos instrumentos para defender a saúde do trabalhador. (PC)
Um trabalho silencioso. A construção de uma oposição sindical frente a um sindicato aparelhado por uma grande empresa, fruto de um processo de trabalho organizativo na base, são elementos que remontam ao trabalho do final dos anos 1970. A avaliação é de Eliezer Mariano da Cunha, da direção nacional da Intersindical. “Um dos elementos importantes é que está surgindo a iniciativa de trabalhadores em diversas categorias para retomar um movimento que aconteceu fortemente nos anos de 1970 e de 1980, movimento dos trabalhadores contra o peleguismo encastelado nos sindicatos. Essas oposições deram uma força extraordinária para a construção da maior central à época”, comenta o dirigente, ressaltando, porém, que as experiências atuais são embrionárias. Isso porque, ao contrário do movimento anterior, a oposição do Sitracarnes não se dá numa con-
juntura de ascenso do movimento operário e sindical. “Estamos longe ainda de um período de ascenso como era na época, quando as greves e movimentos paredistas eram muito fortes”, analisa.
A condição de aparelhamento do sindicato, aliada à intensa repressão no local de trabalho, forçaram uma organização clandestina A condição de aparelhamento do sindicato, aliada à intensa repressão no local de trabalho, forçaram uma organização clandestina, iniciada no local de moradia. “A falta de uma política sindical das centrais sindicais, no geral, levou a um grau de precarização inimaginável, em pleno século 21. Em função do grau de perseguição da empresa e do seu sindicato, os trabalhadores não puderam fazer as ações diretas no local de trabalho; as organizações ficaram fora do local de trabalho para alterar o local de trabalho”, analisa Eliezer. (PC)
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brasil
CPT anuncia aumento nos conflitos por água e terra MAB
CAMPO Números de levantamento relacionam embates pela água com construção de barragens Natasha Pitts de Fortaleza (Ceará) O AVANÇO das barragens e a concentração de terra seguem gerando sérios embates na sociedade rural brasileira. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou no dia 1º de setembro dados de seu levantamento sobre “Conflitos no Campo”, relativos ao primeiro semestre de 2010. O documento chama atenção para situações como o aumento dos conflitos pela água e pela terra, assim como para o crescimento da violência e das denúncias sobre trabalho escravo. Com relação à luta por um dos bens naturais mais preciosos, a água, a Comissão Pastoral da Terra registrou neste ano um aumento de 32% nos conflitos, que passaram de 22, em 2009, para 29, em 2010. O número de famílias envolvidas nos conflitos também aumentou e passou de 20.458 para 25.255. O Nordeste e o Sudeste estão no topo das regiões brasileiras onde esses conflitos estão acontecendo com mais frequência. Enquanto em 2009 o Nordeste registrou sete casos, em 2010 este núme-
Protesto bloqueia a trecho da BR-116 entre Vacaria (RS) e Lages (SC)
A terra também tem sido o motivo de diversos embates, sobretudo na região Nordeste ro subiu para nove. Já no caso do Sudeste as cifras cresceram ainda mais e passaram de quatro para 11 casos de luta pela água. A região Norte foi a única onde o número de conflitos não cresceu, contudo, o número de famílias envolvidas passou de 2.250 (2009) para 11.150 (2010).
O motivo dos conflitos não é novo nem muito menos desconhecido. De acordo com o relatório da CPT, “dos 29 conflitos pela água, 11, ou 38%, estão relacionados com a construção de barragens e ocorreram em 14 estados da Federação, em 2010, quando em 2009, atingiram 13 estados”.
Por terra
A terra também tem sido o motivo de diversos embates, sobretudo na região Nordeste. Contrariando uma tendência de redução, aí se registrou 194 casos, o que corresponde a 54% dos conflitos por terra ocorridos no Brasil até julho de 2010. As ocorrências de conflitos por terra passaram de 95 para 126. No caso das ocupações, as cifras passaram de 57 para 65, enquanto os acampamentos foram reduzidos de seis para três. As outras regiões do
país registraram queda nesses números. Outra situação considerada bastante preocupante é o aumento da violência nas regiões Sul e Sudeste, contrariando a tendência que está se espalhando pelo Brasil. A CPT relembra que as regiões são as mais abastadas do país e, mesmo assim, isto não tem sido o bastante para garantir a paz de suas populações. Sul e Sudeste tiveram destaque negativo pelo alto número de trabalhadores presos e agredidos.
No Sudeste, a quantidade de trabalhadores presos passou de três (2009) para 11 (2010), o que significa um aumento de 276%; e o número de agredidos passou de quatro para 15, registrando aumento de 275%. No Sul, o número de presos passou de 12 (2009) para 18 (2010), aumento de 50%; e o de agredidos, de dois (2009) para 20 (2010), representando acréscimo de mais 900%. O trabalho escravo é mais uma das situações que violam os direitos mais básicos dos seres humanos, mas que tornam a se repetir em todo o país. A boa notícia é que foram registrados menos casos: de 134 ocorrências envolvendo 4.241 trabalhadores, com a libertação de 2.819, em 2009; passou-se, neste ano, para 107 casos envolvendo 1.963 trabalhadores, dos quais 1.668 foram libertados. O Centro-Oeste disparou um crescimento de 16 ocorrências (2009), com 259 trabalhadores envolvidos e libertados, para 21 em 2010, com a libertação de 526 trabalhadores. Em todos os estados do Sul e Sudeste registraram-se casos. “O Sudeste, com o aumento de ocorrências, porém com diminuição de trabalhadores envolvidos e libertados; e o Sul com a diminuição das ocorrências, mas com aumento significativo no número de trabalhadores envolvidos e libertados”, destaca o relatório. Alagoas e Amazonas, neste ano, entraram na rota do trabalho escravo. (Agência de Informação Frei Tito para América Latina – Adital)
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esporte
O Brasil traçado pela trajetória da bola ENTREVISTA Livro de historiador conta a história do futebol brasileiro em meio aos acontecimentos políticos Eduardo Anizell/iFolhapress
Renato Godoy de Toledo da Redação EM FUTEBOL, uma janela para o Brasil, o historiador Felipe Dias Carrilho relata a história de maneira metafórica e metalinguística a história do futebol brasileiro. Tal qual uma partida de futebol, o livro inicia com a preleção e termina com o apito final. De maneira didática, a obra contempla desde aficionados pelo esporte até leigos. Para o autor, o futebol é um “janela privilegiada” para observar os acontecimentos sociais e políticos do Brasil. O historiador já colaborou com o jornal Brasil de Fato e atualmente é um dos apresentadores do programa “100 anos de história”, transmitido aos sábados pela webrádio Coringão. Confira a seguir entrevista com o autor. Brasil de Fato – Em seu livro, você afirma que o futebol foi negligenciado pela classe acadêmica por muitos anos. Como explicar esse desprezo? Felipe Dias Carrilho – Acho que há dois níveis para se abordar esse problema. Por um lado, isso se deve às próprias limitações metodológicas e de abordagem das Ciências Humanas em geral. Durante muito tempo, a História, por exemplo, foi concebida como uma narrativa dos principais fatos da política de uma nação. O que interessavam eram os atos, as medidas tomadas por governantes, fossem eles reis, papas ou presidentes. Temas como a cultura popular, ou os esportes, eram considerados menores, ou simplesmente ignorados. Isso começou a mudar na Europa a partir dos anos 1930, com a eclosão da Escola dos Annales, na França, que abriu o leque de possibilidades temáticas para a historiografia. Mas esse movimento demorou a se disseminar mesmo na Europa. E só atingiu a produção acadêmica brasileira décadas depois. Ainda hoje o futebol é um tema marginal para boa parte da nossa intelectualidade. Por outro lado, existe uma questão intrínseca à concepção histórica do futebol. Historicamente, o futebol foi uma espécie de normatização das práticas populares de lazer, conduzida pelas elites que lideraram o processo de industrialização na Inglaterra do século 19. Até esse ponto, se não era explorado cientificamente pela intelectualidade, ao menos tinha o seu respaldo enquanto elemento constitutivo de virtudes como a disciplina, a lealdade ou a higiene corporal. No entanto, à medida que foi se tornando popular, com a inclusão de negros e operários entre seus praticantes, o futebol passou a ser duramente criticado pelos nossos intelectuais. Rui Barbosa, por exemplo, chamou os jogadores da seleção brasileira de 1916 de “corja de malandros e vagabundos”. Até intelectuais de esquerda, como Graciliano Ramos e Lima Barreto, não perceberam o potencial de mobilização do futebol, classificando-o como estrangeirismo barato. Há momentos na história brasileira em que o futebol serve como “ensaio geral” para os acontecimentos sociais e políticos? Nunca havia pensado nessa metáfora leninista, mas acho que pode ilustrar muito bem o futebol em alguns casos. Se pensarmos que a Democracia Corinthiana, de certo modo, antecipou o movimento das Diretas Já, é válida. Não sei, apenas, se podemos dizer que isso serve como uma teoria ou uma regra geral do futebol. O que talvez possamos afirmar é que existe algo que está na estrutura do jogo e que é rebelde
No campo, Corinthians e Flamengo: visão privilegiada dos acontecimentos sociais e políticos do país
“[Em 2006,] A cobertura midiática excessiva gerou um efeito ilusório sobre os jogadores e sobre todo o país” na essência. Não é à toa que o futebol é muito mal visto, ainda hoje, pelos EUA. Não foram poucas as vezes em que jornalistas estadunidenses se referiram ao que eles chamam de “soccer” como um esporte de gente “esquerdista” e “pouco confiável”. Recentemente, um apresentador de televisão “parabenizou” a nação por “fazer parte, oficialmente, do terceiro mundo”, no momento em que a seleção dos EUA havia se classificado para as oitavas de final da Copa da África do Sul. Não podemos desconsiderar outras questões, mas a própria lógica interna do futebol representa um desconforto à utopia neoliberal. O futebol é, por excelência, o lugar privilegiado do acaso e da incerteza, o único esporte em que o mais fraco tem sempre boas chances de derrotar o mais forte. Além disso, o futebol não pode ser quantificado. Aliás, o resultado do jogo não pode ser definido pela somatória de determinadas ações, muito diferente do que acontece no futebol americano ou no basquete.
“O futebol é, por excelência, o lugar privilegiado do acaso e da incerteza” Em Futebol, uma janela para o Brasil, você cita o intelectual brasileiro José Miguel Wisnick, para quem uma Copa do Mundo diz muito sobre o momento que vive o país. Na sua opinião, o que pode se inferir a partir da participação brasileira no Mundial da África do Sul? Em geral, o historiador teme comentar fatos tão recentes, em nome de certa distância temporal crítica. Acho que, no mínimo, é possível perceber, por essa Copa, o crescimento das religiões evangélicas no Brasil (risos). Havia um número imenso de jogadores evangélicos no time, como Kaká, Elano, Felipe Melo.
Mas, falando sério, acho que essa Copa mostrou claramente que não superamos, ainda, a moral disciplinadora dos tempos do amadorismo. Penso que a lógica do favor, tão presente nas problematizações sociológicas sobre o Brasil, ficou evidenciada na convocação do Dunga, que não abriu mão de nenhum de seus “homens de confiança”. O futebol é um esporte que nasce na elite, mas depois passa a aceitar os negros e operários. Por que esse processo não foi acompanhado pela sociedade em geral? Aí eu gostaria de esboçar uma teoria do futebol, ao menos do brasileiro. Parece-me que historicamente esse esporte funcionou como uma espécie de sublimação dos conflitos sociais do Brasil, no sentido freudiano do termo mesmo. Veja que é uma ideia muito diferente da concepção preconceituosa da “válvula de escape”, que procura enfatizar um aspecto dito “alienante” do futebol. Acho que o futebol foi um importante meio de resistência e luta dos negros brasileiros. A própria ideia de “democracia racial”, do Gilberto Freyre – que foi muito criticada por causa da persistência do racismo no país –, tem a sua melhor realização no futebol brasileiro, mais especificamente na seleção brasileira. Não que eu esteja dizendo que não há racismo no futebol, pelo contrário. Mas acho que é no futebol, e talvez na nossa música popular, que a utopia de uma sociedade multirracial e harmônica se realiza da maneira mais promissora. E, nesse sentido, o futebol não é mero entretenimento, mas um horizonte aberto para o futuro do país. No livro, a atuação da seleção brasileira tricampeã em 1970 é retratada quase como uma “afronta” ao que você denominou “pátria em coturnos”. Na sua opinião, a prática do que convencionouse chamar futebolarte rivalizou com a estrutura militarizada
daquela delegação? Em outros termos, dá para dizer que o preterido João Saldanha já havia “contaminado” aquela equipe? Não acho que tenha sido a figura progressista de João Saldanha o fator determinante para essa aparente contradição. Na verdade, prefiro pensar que o futebol-arte é um prodígio da nossa cultura popular, que é um fenômeno muito mais profundo do que qualquer situação política, sempre passageira por definição. Fernand Braudel dizia que a história é como o oceano, em que os fatos são representados pelas pequenas ondas e oscilações da superfície. O verdadeiro movimento da história estaria nas correntezas mais profundas do mar, nas estruturas, como a sociedade, a cultura. A cultura de um povo é um fenômeno de longa duração, como costumam dizer os historiadores. O futebol mágico apresentado pelo time de 1970 é, talvez, a expressão futebolística máxima da originalidade da formação cultural brasileira, assim como um grande disco do João Gilberto, para forçar a comparação com a música.
“Prefiro pensar que o futebol-arte é um prodígio da nossa cultura popular” Ao comentar o fracasso da seleção brasileira em 2006, você cita que aquele escrete já está forjado no modelo neoliberal globalizante, já que os principais craques atuavam na Europa com salários exorbitantes. Você acredita que o individualismo (a busca de marcas individuais, como maior número de gols, maior número de partidas com a seleção etc.), exacerbado pelo neoliberalismo, possa ter contribuído para aquela derrota? O fato, em si, de a seleção ter sido derrotada não diz nada. O problema foi o time não ter correspondido a todas as expectativas e ao seu próprio potencial, não jogan-
Andréia Rente
O historiador Felipe Dias Carrilho
do bem. A cobertura midiática excessiva gerou um efeito ilusório sobre os jogadores e sobre todo o país. Sabemos que a fetichização das mercadorias é um elemento marcante do ideário neoliberal. Nesse caso, houve uma fetichização dos jogadores. O que não foi uma novidade, pois isso é uma tendência mundial há algumas décadas. É que o fracasso de 2006 foi o melhor retrato desse fenômeno. Se o futebol nasce das elites e é praticamente dominado pelas classes mais pobres, parece haver agora um movimento inverso com uma elitização. Você aponta a realização da Copa de 2014 no Brasil como um trampolim para essa exclusão do povo dos estádios. Explique essa sua opinião. Na verdade, a realização da Copa de 2014 no Brasil não é o motivo desse processo que está sendo chamado de elitização do futebol. A Copa é apenas o evento privilegiado para se olhar para esse processo, pois nesse momento as condições irão se acirrar, o preço dos ingressos, por exemplo, aumentará como nunca. Temos agora o Estatuto do Torcedor, que, de fato, impõe uma série de restrições a quem frequenta os estádios. No entanto, a elitização é um projeto muito velho, que está apenas se cristalizando agora. Ela é, no Brasil, fruto da profissionalização do futebol, que começou na década de 1930. Se, por um lado, a regulamentação trabalhista do jogador de futebol permitiu
que setores marginalizados da nossa sociedade pudessem ser remunerados enquanto profissionais do esporte, por outro, isso reproduziu as condições gerais e precárias do trabalho no Brasil. Ou seja, uma pequena elite muito bem remunerada de trabalhadores parece ofuscar os rendimentos modestos da maioria. Sem falar no desemprego... No futebol isso é gritante, com as transações milionárias envolvendo nossos jogadores rumo ao futebol exterior. Não se trata, portanto, de voltar às várzeas... Para se democratizar o futebol, de fato, é preciso superar o modelo atual por meio de um projeto que leve em conta não apenas o esporte, mas a política e toda a sociedade.
Serviço Futebol, uma janela para o Brasil Autor: Felipe Dias Carrilho Editora: Nova Espiral (www.novaespiral.com.br) Preço: R$ 23
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américa latina Fotos: Reprodução
Polícia hondurenha reprime com violência manifestação de professores em Tegucigalpa, capital do país
Honduras e a luta anti-imperialista ENTREVISTA “O vigor das grandes manifestações é garantido por um trabalho regular e muito consistente nas comunidades, nas ocupações, bairros e demais setores do país”, afirma Ronaldo Pagotto Nilton Viana da Redação “A SITUAÇÃO é bastante crítica. Há uma crise econômica profunda que fora agravada pelo golpe civil-militar”. Esta é a avaliação de Ronaldo Pagotto, militante da Consulta Popular que esteve em Honduras durante 40 dias, entre os meses de julho e agosto. Segundo ele, que participou de atividades de solidariedade com organizações populares e com a Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP), mesmo passados 13 meses do golpe que depôs o presidente Manuel Zelaya, em 28 de junho de 2009, o povo segue resistindo. “As mobilizações não cessaram, o povo segue se organizando nas ruas, e com um vigor incrível”. Nesta entrevista ao Brasil de Fato, Pagotto analisa o atual cenário político e econômico de Honduras e afirma: “A ligação de Zelaya com as massas populares é profunda, não se explica somente com elementos objetivos. É algo que ameaça qualquer golpista”. Brasil de Fato – Você esteve durante 40 dias em Honduras. Qual a avaliação política que faz do país passados mais de um ano do golpe civilmilitar?
Ronaldo Pagotto – A situação é bastante crítica. Há uma crise econômica profunda que fora agravada pelo golpe civilmilitar. O desemprego é crescente, entre jovens alcança índices alarmantes; o preço dos alimentos sobe e impulsiona o aumento do custo de vida, resultando em fome crônica em grande parte da população. Essa crise econômica é a base das mudanças mais significativas do governo Zelaya, com medidas para combatêla e desde uma prioridade aos mais pobres. O golpe não só rompe com isso como patrocina um verdadeiro saque às finanças do Estado. Até mesmo o dinheiro oriundo da Alba foi roubado dos cofres! O governo atual, que é parte do processo do golpe e sua tentativa de legitimação, não passa uma semana sem uma nova crise. Ele é um misto de atabalhoado e um fiel títere dos ditames do Pentágono. Passou meses correndo atrás de situações de emergência, sem resultado algum. Combateu enchentes, e o povo todo sofrendo; a dengue, e os dados oficiais apontam para um volume de casos recorde no país. E o sujeito vestido de caça-mosquitos não perde nem batizado. Qualquer oportunidade de aparecer sorrindo, o sujeito vai. Se chamar para
batida de carro, show, copa do mundo, jogo de botão, festa, inauguração da placa da praça então... O povo hondurenho assimilou o golpe ou ainda tem resistência?
Mesmo passados 13 meses do golpe, as mobilizações não cessaram, o povo segue se organizando nas ruas, e com um vigor incrível. Pude notar uma disposição muito boa. Apesar de já ter passado todo esse tempo e da forte repressão. Mas a resistência segue firme, com boa unidade, trabalho nacional e muito ânimo. A Frente Nacional de Resistência Popular, que reúne todos os setores populares que estão contra o golpe, não nasceu do golpe apenas. É parte de um trabalho de resistência anterior. A coordenação nacional de resistência popular foi organizada em 2003 e é a base da FNRP, o que ajuda a entender como a resistência foi capaz de organizar atos, manifestações, ocupações e outras formas de resistir desde os primeiros momentos do golpe. Nos 40 dias em que por lá estive, conheci e participei de algumas manifestações em um volume incrível. Em dias de semana, é certo que todos tivemos alguma mobilização, seja geral e mais unitária, seja de algum setor – taxistas, professores, indígenas, pequenos camponeses, sem-terra, movimento de mulheres, juventude, funcionários públicos, liberais em resistência e outros. Agora, no início deste mês, estão concluindo um trabalho de coleta de assinaturas para a convocatória de uma Assembleia Constituinte. Já tinham alcançado mais de 1 milhão no dia 30 de agosto. E preparam uma paralisação nacional para o dia 7. Outra atividade que farão é um grande ato nacional que promete mobilizar centenas de milhares de pessoas no dia 15, data comemorativa da independência com relação a Espanha.
“O governo atual, que é parte do processo do golpe e sua tentativa de legitimação, não passa uma semana sem uma nova crise” E como tem se comportado os movimentos populares de Honduras?
São a base e estrutura da resistência. E o vigor que aflora nas grandes manifestações é garantido por um trabalho regular e muito consistente nas comunidades, nas ocupações, bairros e demais setores. Podemos afirmar que o golpe acelerou o trabalho popular e dos movimentos. Há um esforço muito claro em articular as lutas específicas com as grandes questões. Todos os temas de lutas pautam as linhas gerais da Resistência Popular [FNRP], com uma unidade entre os movimentos sociais, as centrais de trabalhadores, os professores (que são a maior força organizada). Juntamente com esse impulso, muitas organizações de
bairros, de artistas, de jovens em resistência nasceram desse momento de ruptura. Não há controle sobre isso. É um florescer de organizações que reúne pessoas que nunca haviam se mobilizado, mas agora estão nas ruas, usando os muros como tribunas populares e agitando o povo a se mobilizar. Esse clima é geral e muito animador.
“Agora, no início deste mês, estão concluindo um trabalho de coleta de assinaturas para a convocatória de uma Assembleia Constituinte” Há uma repressão muito forte contra os movimentos contrários ao golpe. O que você pode perceber sobre essa violência?
A repressão é a primeira face do golpe, e podemos dizer que tem momentos distintos. A primeira fase, do golpe à posse do Pepe Lobo [27 de janeiro] foi de repressão mais ampla nas ruas, sobretudo nas marchas, com sequestros e assassinatos durante os longos períodos de toque de recolher. Nesse período foram mais de 14 mortos e uma centena de exilados. Após a posse, a repressão adota outra estratégia, mais seletiva, combinada com a militarização de regiões de maior conflito, desaparecimento de pessoas e muita tortura e ameaças. E o governo adota a mesma postura desde o golpe: em Honduras não há tortura, não há repressão, não há assassinatos políticos. Parece até que resgataram os manuais das ditaduras sanguinárias da América Latina e não mudam uma vírgula. E há comprovadamente uma operação mais estratégica orquestrada pela CIA e Mossad em identificar lideranças, infiltrar agentes na resistência e promover ações mais contundentes e “cirúrgicas”. Há casos de jovens que já foram presos e torturados mais de dez vezes, mas que seguem na luta.
Você acredita que a atual conjuntura política do país permite um retorno de Zelaya?
Zelaya, conhecido pelo apelido de Mel (contração de Manoel) é uma referência de massas incrível. Seu nome é bradado por todos os setores com a carinhosa frase “Urge, Mel”. Sua volta é uma das bandeiras centrais da unidade da FNRP, e uma ameaça aos golpistas. Só para se ter ideia, durante a estada de Zelaya na Embaixada do Brasil, o povo fez vigília permanente dentro da casa, com mais de 70 pessoas. E, do lado de fora, sempre aos milhares, por vezes eram dezenas de milhares. No dia da sua saída, 27 de janeiro, também da posse de Pepe Lobo, o ato de despedida no aeroporto da capital levou mais de 500 mil pessoas às ruas. A ligação de Zelaya com as massas populares é profunda, não se explica somente com elementos objetivos. É algo que ameaça qualquer golpista. Sua capacidade de mobilizar as massas, de ser a princi-
pal referência e, mesmo após o golpe, continuar demonstrando o compromisso com o povo e as pautas populares que deram razão ao golpe levam os setores golpistas a temerem seu retorno. Isso simboliza que ele é um líder sustentado pelas massas, dispostas a irem até o fim, ao que me parece. Zelaya está exilado na República Dominicana, com restrições para dar entrevistas e manifestar-se nos meios de comunicação, e, sempre que ameaçou voltar, os golpistas respondem que, caso volte, será preso. A resistência tem como um dos pontos a volta do presidente deposto, mas seu conteúdo está nos pontos programáticos de combate à pobreza e enfrentamento com os interesses da oligarquia, das transnacionais e do imperialismo. Diversas lideranças dão sustentação a isso e também se multiplicam no país. Temos recebido informações sobre vários assassinatos de lideranças, inclusive jornalistas, no país. Isto é verdade? Na sua avaliação, qual o porquê desses assassinatos?
Nesse quadro repressivo, os alvos seletivos preferidos são jornalistas, professores, lideranças de organizações populares e militantes com algum destaque. Nesse ano foram dez jornalistas mortos, e isso explica parte da estratégia dos golpistas: repressão ampla e agora seletiva, medidas circenses do governo e uma mídia que todos os dias repete: em Honduras não se passa nada. Os assassinatos dos jornalistas têm sempre justificativas da imprensa que apoia o golpe. E as explicações variam: ou eram jornalistas com muitos problemas pessoais, ou conjugais, com grupos políticos locais... e, quando nada pode ser dito, usavam o argumento de que foram mortos por grupos de narcotraficantes. E o mais torpe é que, logo no dia seguinte das mortes, os jornais golpistas já tinham as justificativas prontas.
“É um florescer de organizações que reúne pessoas que nunca haviam se mobilizado, mas agora estão nas ruas” Já que você citou a imprensa, que análise faz do papel da mídia burguesa no país?
A mídia golpista, aliada da oligarquia hondurenha, é muito semelhante ao que temos aqui no Brasil. Nos lembra o comportamento da mídia brasileira no golpe civilmilitar. Repetição de imagens boas, tentativa de criminalizar lutas, organizações, e de silenciar ante aos movimentos da resistência. Mas há uma perda gradativa dessa capacidade de construir uma versão dos fatos desde os interesses golpistas.
E a imprensa alternativa, popular; qual tem sido o papel desses meios frente a esse cenário?
A resistência conta com uma ampla gama de rádios
comunitárias. Em Honduras, a população, sobretudo do campo, preserva o hábito de ouvir mais rádios do que ver televisão ou ler jornal. Então, essas rádios alcançam todo o território. Também contam com um programa diário, de duas horas, veiculado à noite em uma das rádios mais importantes do país – Globo –, coordenado pela FNRP. Nesse programa se compartilham informes, orientações unitárias, entrevistas gerais com pessoas da FNRP ou internacionalistas. Também falam sobre a agenda da semana e comentam os passos dos golpistas. É um programa organizador do processo. E há um programa diário também de sátira contra os golpistas, de muito boa qualidade, comentando os fatos mais importantes da conjuntura e com uma audiência grande entre os jovens.
“Há casos de jovens que já foram presos e torturados mais de dez vezes, mas que seguem na luta” O Brasil se mostrou solidário abrigando o presidente deposto e condenou o golpe. Como o povo hondurenho viu essa postura brasileira?
Participei de muitos espaços, debates, estudo, saudações, e, apenas por ser apresentado como brasileiro, gerava uma simpatia incrível. Não foram poucos os que vieram pessoalmente me agradecer pela solidariedade prestada pelo governo brasileiro na figura do presidente Lula ao povo hondurenho e a Zelaya. Queriam saudar, mandar abraços ao povo brasileiro. Na marcha de 18 de agosto, com mais de 70 mil pessoas, a segunda bandeira mais vista era a do Brasil. Isso se combina com uma certa ideia generalizada de que no Brasil tudo está sendo resolvido, não há fome, pobreza. Ou seja, não existiria aqui os problemas que vivem lá. O que é falso. Em alguns debates, quando expusemos o quadro da situação do campo, por exemplo – em que a reforma agrária está paralisada, o enorme incentivo ao agronegócio, o uso recorde de agrotóxicos, monocultivo e o velho problema da pior distribuição de renda do mundo –, não geramos espanto, mas uma certa decepção.
E como acha que serão os desdobramentos e operações dos golpistas nos próximos meses?
Com todo esse quadro de mobilizações, de fortalecimento da unidade popular e incapacidade dos golpistas de assegurarem uma mínima governabilidade, os rumos estão indefinidos. Dependem da capacidade dos dois blocos – golpistas e resistência – em operar uma tática exitosa e forte. Do lado dos golpistas, operam resumidamente buscando neutralizar setores populares estimulando as divisões – embora sem muito sucesso – e cooptar setores com medidas pontuais do governo que resolveriam parte do problema da fome. Além dis-
so, há movimentações do governo para neutralizar o movimento camponês, embora também sem sucesso. Mas seguem com a estratégia. Tudo isto, junto ao pretexto da militarização com a justificativa de combate ao narcotráfico. Honduras é uma região estratégica da logística de distribuição de drogas para os EUA. Esta é a justificativa para duas novas bases militares estadunidenses no país. Também há um esforço para reconhecimento internacional do atual governo, comprometido desde o golpe com o não reconhecimento da OEA, ONU, Unasul e outros. E há um setor dentro do campo golpista que quer o endurecimento do regime. Quer o fim das liberdades de organização, de imprensa etc. para derrotar o movimento de massas. Hoje essa alternativa não encontra respaldo, em parte por não contar com o apoio – por enquanto – do Pentágono e também por não ter coesão com um setor da burguesia ligado ao comércio internacional, temendo perder espaço e negócios. Mas não deve ser descartada. E é disso que fala Pepe Lobo, temeroso de ser golpeado pelo seu próprio grupo.
“Honduras é uma região estratégica da logística de distribuição de drogas para os EUA” E a resistência, como deve se comportar nos próximos meses?
Por parte da resistência, não temos clareza de quanto tempo mais conseguirão manter as mobilizações e organizações populares. O tempo gera desgaste e, se não são obtidas conquistas e vitórias, pode gerar uma desmobilização. Pode ser ousado dizer, mas a vitória de processos como este depende de ações de desgaste, de demonstração de força e unidade. E também de ações que sejam capazes de reverter a correlação de forças. Honduras é hoje um símbolo da luta anti-imperialista e antineoliberal. Lá, os enfrentamentos são com uma oligarquia sanguinária, que atua com apoio dos falcões do Pentágono. Portanto, penso que toda solidariedade é fundamental. Honduras somos todos nós, povos do mundo combatendo o imperialismo, o neoliberalismo, as classes dominantes locais e caminhando para a construção de um outro mundo e da nossa América sonhada por Bolívar, Morazan e Martí. Arquivo Pessoal
Quem é Ronaldo Pagotto é militante da Consulta Popular e graduado em Direito.
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américa latina
“Nos classificamos como oposição construtiva”, diz senador boliviano ABI
NOVA DIREITA? Entrevista com o senador boliviano German Antelo retrata a mudança de perfil da oposição à Evo Morales Vinicius Mansur correspondente em La Paz (Bolívia) OS PRIMEIROS meses de segunda gestão de Evo Morales, iniciada em janeiro deste ano, deixam claro uma nova correlação de forças no cenário político boliviano. As seguidas vitórias políticas, eleitorais e também militar – ao derrotar aqueles que esboçavam uma guerra civil em 2008 – levaram Morales à reeleição, deram dois terços do parlamento ao seu partido (Movimento ao Socialismo – Instrumento pela Soberania dos Povos, o MAS-IPSP) e foram fulminantes para a direita agressiva que polarizava a política boliviana. Tamanha hegemonia faz com que o cenário político nacional, especialmente aquele visibilizado pela imprensa, seja agora ocupado majoritariamente pelas disputas internas do governo e do MASIPSP e pelas mobilizações da própria base social do proceso de cambio, com variadas cobranças ao Executivo. O novo cenário que escancara conflitos e contradições da própria “revolução democrática e cultural” boliviana é o mesmo que evidencia a queda da antiga oposição. Parte dela deixou o país – taxando de perseguição política os processos por corrupção movidos pelo governo –, parte aderiu ao oficialismo e, mesmo aqueles que mantiveram postos-chave, como os governos departamental e municipal em Santa Cruz, atuam agora em baixo perfil. Para saber como a oposição busca sua sobrevida no atual cenário, o Brasil de Fato entrevistou o líder da bancada de oposição no Senado, German Antelo (PPB-CN, Plan Progeso para Bolívia – Convergencia Nacional). Brasil de Fato – Resuma a sua trajetória política, por favor. German Antelo – Sou de Santa Cruz, médico neurocirurgião, formado na Argentina na época das ditaduras. Não tive participação em partidos políticos, mas fui permanentemente ligado a instituições médicas, como presidente do Colégio Médico de Santa Cruz e da Bolívia. Também fui vice e presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, a maior organização da sociedade civil local, presidi o processo que construiu o projeto de autonomias departamen-
Sessão da Assembleia Legislativa Plurinacional da Bolívia
tais para o país que agora está na Constituição. Sempre fui oposição, quando era Banzer, Goni, Mesa [ex-presidentes] e agora também. No ano passado, um partido me propôs como candidato à presidência da República e, para evitar a dispersão do voto, terminamos apoiando a Convergência Nacional [cujo candidato a presidente era Manfred Reyes Villa]. Estou de senador, tive 53% na eleição.
“O governo está fazendo pouco para diversificar a economia, seguimos como país de rentistas” Como o senhor se classifica politicamente? Me formei na linha da esquerda quando estive na Argentina, lutando contra as ditaduras. Agora poderia chamar-me de esquerda democrática, centro-esquerda ou social-democracia, não sei. Mas creio firmemente que o objetivo é o ser humano. E como o senhor avalia a situação da Bolívia antes e depois do Evo? O governo não dá a solução definitiva para os problemas dos bolivianos. Do ponto de vista de políticas públicas, ele deixou uma boa impressão no povo pelas bolsas – que havia antes, mas eles aperfeiçoaram – para as crianças, mães gestantes e idosos. Isso gerou uma sensação na gente pobre, que é mais de 60% da população, ainda que tenham ganhado pouco. Assim, Evo Morales teve a possibilidade de re-
petir votações. Em segundo, há a identificação com uma pessoa que veio da pobreza. A outra característica foram as nacionalizações, que sabemos que foram só os aumentos dos preços que permitiram mais recursos para a Bolívia e que permitiram ao povo ganhar autoestima. Outro aspecto é manter a macroeconomia. Não há pontos negativos? A tentativa de tomar o adversário como inimigo, a perseguição permanente até a tomada total do poder, destruir a independência dos poderes... O Poder Legislativo já é um apêndice do Executivo, todas as leis são trazidas elaboradas de lá. Eles conseguiram os dois terços do Congresso e não somos escutados. Depois, esse Legislativo deu a possibilidade ao Executivo de eleger o Judiciário, indicando as autoridades que faltavam nos diferentes órgãos da Justiça. A Constituição não permite isso, ela diz que se elejam as novas autoridades por voto direto da população. E sabemos que a eleição do Judiciário não vai ser totalmente imparcial, porque é o Legislativo que vai escolher as pessoas que vão ser votadas pelo povo. Então, novamente, a Justiça seguirá com gente afim ao partido do governo. O Estado tenta o manejo hegemônico e já não necessita de repressão na rua, simplesmente utiliza a Justiça cooptada. Mas o que vocês propõem para escolher essas autoridades? A Constituição não permite também o Legislativo elegê-los. Mas o Legislativo tem maior legitimidade, tem representantes de todos os setores do país. Porém, não há alternativa, a Constituição diz que tem que ser assim. ABI
O senador German Antelo ao lado do presidente Evo Morales
E qual é sua opinião sobre a nova Constituição? Grande parte do país não estava de acordo com ela, uns 60 “e tantos” por cento apoiaram e quase 40% a rechaçaram. Uma Constituição tem que ser um pacto social, com mais apoio. Essa constituição foi imposta, houve muita violência, confrontou o país e saiu uma Constituição que era inaplicável. Eles se deram conta e a mudaram parcialmente, em mais de 100 artigos, para torná-la viável, para que tenha uma visão de conjunto, não uma só visão. A Constituição tem muitas coisas difíceis de entender, se contradiz, e acho que vai chegar o momento de revê-la, já com a cabeça mais fria.
“Lamentavelmente, a Bolívia foi e segue sendo uma panela dos partidos, com muita corrupção, com muitos interesses particulares e sectários” Passada a aprovação da Constituição e a reeleição de Morales, a oposição perdeu muito espaço. Isso se deu mais por acertos do MAS ou por erros da oposição? Os desacertos principais, que sucedem em toda América Latina e no mundo, vêm um pouco da desconfiança em partidos políticos – falo de antes das eleições de Morales, quando os partidos não tinham grande porcentagem nas eleições e eram a somatória de duas ou três forças que governavam. Lamentavelmente, a Bolívia foi e segue sendo uma panela dos partidos, com muita corrupção, com muitos interesses particulares e sectários. Santos Ramires [que está preso] era o segundo homem do governo e foi denunciado na YPFB [petroleira estatal boliviana]. As coisas não mudam, seja com a direita, com a esquerda, mais indígena ou menos indígena, o ser humano segue sendo o mesmo, com suas debilidades e fortalezas e, na Bolívia, aqueles que assumiram o poder se deixaram levar pelos interesses. Mas tenho a impressão de que a oposição
mudou, que é muito menos dura agora, não? Quase não se vê mais a polarização entre ocidente e oriente, por exemplo. Eu sempre pensei igual. Quando você fala de oposição, provavelmente mescla diferentes setores políticos, que não se pode mesclar. Nós não somos a oposição que existia antes porque nunca pertencemos a nenhum partido tradicional, somos uma nova geração política, que crê na democracia, somos conscientes de que são necessárias mudanças. Quanto à polarização, foi o MAS quem criou isso, colocaram o oriente como inimigo, mas nunca foi assim, o oriente sempre foi abandonado pelo país; historicamente, dirigido por pessoas do ocidente. E nossas posições seguem as mesmas, lutando para aprofundar o processo descentralizador. O MAS assumiu o processo autonômico na Constituição, mas na Lei Marco de Autonomias não respeitaram o voto cidadão, porque os estatutos autonômicos aprovados por essas regiões são muito mais descentralizadores. E a luta vai continuar, talvez em menor escala, pelo arsenal persecutório do governo, que processa todos que se assumem como adversários. Nós queremos a democracia, não cremos em governos hegemônicos e centralizadores. E como está sendo o trabalho no Congresso com mais de dois terços da bancada sendo do MAS? Nos classificamos como oposição construtiva, apoiamos tudo aquilo que vemos que é bom, porque há muitas necessidades na Bolívia. E somos críticos a tudo que está fora do marco de respeito aos direitos elementares das pessoas. Lastimosamente, as leis estão saindo sem nenhum consenso, com exceção da Lei Marco de Autonomias, que permitiu um pouco de participação. As pautas tratadas pela Assembleia estão a contento, ou outros temas deveriam ser prioritários? Há coincidências nos temas tratados, em geral são legislações sociais, como a Lei de Pensões, que é fundamental. Já está definido na Constituição que isso deve ser manejado pelo Estado, não vão aceitar empresas que já estão trabalhando. Pela minha percepção, elas têm aceitação do povo, então, o fato de que as estatizem fará com que quem perca sejamos nós, que fizemos os aportes.
Há também a Lei Geral de Trabalho e a Lei de Seguro Único de Saúde, pela qual sempre lutamos. Há outra de muita importância, que é a Lei de Controle Social. Ela deverá ser trabalhada de maneira adequada para evitar que setores que se autodenominam o Controle Social se apoderem, sem que ninguém tenha votado por eles. Tememos que setores com pouca representação possam assumir o controle por cima de representantes eleitos, de senadores, de deputados, de ministros etc. Um suprapoder, uma espécie de quinto poder que não foi eleito por ninguém, mas com decisões que não podem ter apelação, gerando instituições e gente privilegiada; um controle paraestatal perigoso. E o que fará a oposição para superar a hegemonia criticada? Há um desgaste natural do MAS. O governo está fazendo pouco para diversificar a economia, seguimos como país de rentistas, vivendo dos recursos da prata, do estanho, do gás, de empresas estatais que infelizmente não são eficientes. Em vezs de 500 empregados, tem mil ou 2 mil, destinando recursos mais para pagamentos aos empregados do que para gerar excedente para ser reinvestido no país e diversificar a economia. Isso não vai ser resolvido em pouco tempo, porque para investir milhões de dólares para duplicar a geração de gás demora dois, três ou quatro anos. Para ser possível o projeto de Mutún [extração de ferro], precisa-se de 100 bilhões de dólares, não há esse recurso. Para ser viável, a extração de lítio demorará vários anos. Até quando irá a paciência dos cidadãos? Isso está fazendo com que se produzam levantamentos de gente pedindo o que se prometeu. O papel da oposição é esperar? Não, não. Nós vamos permanentemente denunciando à opinião pública essas coisas. O oficialismo deveria agradecer que haja uma oposição. Não deveria perseguir a oposição; se fossem democratas deveriam pedir que ela seja mais ativa.
“O oficialismo deveria agradecer que haja uma oposição. Não deveria perseguir a oposição” Há possibilidades de somar forças com a oposição que começa a surgir das próprias bases do governo, como Felipe Quispe, Román Loayza, Lino Villca, Filemón Escobar e outros? Sem dúvida. Não necessita que a oposição pense exatamente o mesmo, nem estar na mesma linha ideológica. Há que haver parâmetros globais que unam a todos: a democracia, os direitos humanos, a pluralidade, a justiça social, a geração de riqueza para poder distribuí-la, a busca de soluções aos problemas estruturais, a geração de políticas de Estado de longo prazo, não importando se suba um de esquerda ou de direita, ou indígena ou não indígena, mas que todos pensem a Bolívia que queremos daqui a 50 anos. Se há fatores que nos unam, sem dúvida será uma alternativa de mudanças no país, com menos ódio, menos rancor e com muito mais tolerância.
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áfrica IISD
Revolta contra o custo de vida leva população às ruas MOÇAMBIQUE Oito manifestantes foram mortos em protestos contra a alta de preço do pão estipulada pelo presidente da República Boaventura Monjane de Maputo (Moçambique) SÃO OITO horas da manhã e o dia amanheceu com sol. A cidadã e trabalhadora pública Carlota Tembe* sai à rua para inteirar-se dos acontecimentos, pois na noite anterior, quando foi deitar, havia ainda grupos de manifestantes protestando nas proximidades da praça da juventude, no populoso bairro da Magoanine, na periferia da cidade de Maputo, capital de Mocambique. Depois de dois dias de intensas manifestações, parece que a calma volta a Maputo. As ruas que nos últimos dois dias estiveram em agitação, com queimas de pneus, fumaça, fogo e contingentes policiais que respondiam às manifestações populares com violência, estão mais tranquilas. Ainda assim, nenhum transporte público está em circulação.
De acordo com os dados do Pnud, Moçambique é um dos países mais pobres do mundo (ocupando, em 2007, a 172ª posição numa lista de 177 países) A senhora Carlota Tembe* juntou-se a muitos dos seus vizinhos e participou das manifestações do dia 1º de setembro. A subida do preço dos alimentos de primeira necessidade, que motivou as manifestações, está afetando significativamente a vida dessa mulher trabalhadora. Casada e mãe de três filhos, (dois estudando), toma conta da família sozinha, pois seu esposo imigrou para a África do Sul há quatro anos. Com os atuais agravamentos dos preços do pão, arroz, luz e água, Carlota Tembe precisaria ganhar três vezes mais para aguentar o custo de vida que hoje vive o povo de Moçambique. Carlota recebe por mês um salário que ronda os 2.300 meticais (cerca de 62 dólares). Com o aumento do preço de pão, por exemplo, vai passar a gastar cerca de 21 meticais por dia. Calcula-se que, até ao final do mês, tenha gasto perto de um terço
do seu salário, só na compra do pão, alimento básico para a população de Moçambique. Com o que lhe sobra deve ainda garantir a alimentação e a ida de seus filhos à escola. Com a subida do custo de vida, Carlota verifica um deficit enorme entre o que ganha e o que precisa ter apenas para alimentação. Pobreza absoluta As dificuldades que enfrenta Carlota servem de parâmetro para compreender a vida dos moçambicanos. De acordo com os dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Moçambique é um dos países mais pobres do mundo (ocupando, em 2007, a 172ª posição numa lista de 177 países no que diz respeito ao Índice de Desenvolvimento Humano); 54% da sua população vive com menos de um dólar por dia. O país é profundamente dependente de doadores externos. Mais da metade do seu orçamento geral é garantido por um grupo de 19 doadores estrangeiros – 17 países mais o FMI e Banco Mundial. Esses atores, em última instância, são os que ditam a estrutura econômica e os modelos de desenvolvimentos adotados em Moçambique. De socialista a ultraliberal Com o fim da guerra civil que durou 16 anos em Moçambique, passou-se de um regime socialista para uma política ultraliberal que trouxe o aumento do desemprego e a criação de elites econômicas e políticas. O presidente da República de Moçambique, que também lidera o partido Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), Armando Guebuza, é considerado o moçambicano mais rico, sendo dono das mais lucrativas empresas que operam em diferentes ramos no país. A promessa que Guebuza fez na sua campanha eleitoral, tanto para o mandato anterior como para o atual, foi de reduzir drasticamente a pobreza absoluta e melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. Essas promessas políticas foram se tornando utópicas a cada dia que passava, pois o custo de vida tem constantemente registrado aumentos em Moçambique. Com o agravamento da situação e a incapacidade de busca de soluções para problemas básicos, o governo levou o povo ao desespero, tendo este se manifestado. Desenvolvimento? Nos últimos anos, Moçambique tem atraído investidores estrangeiros, com destaque para as multinacionais que operam majoritariamente no setor da indústria extrativista. Um exemplo é a empresa que fabrica alumínio, MOZAL, e a brasileira Vale, que opera na extração de minérios, no centro de Moçambique. O governo tem anunciado que o país registra atualmente um excelente crescimento econômico devido à influência que exercem esses investimentos. Contudo tal não se
O presidente de Moçambique, Armando Emilio Guebuza
verifica na vida direta do cidadão moçambicano. A pergunta da contradição é: há crescimento econômico? Mas por que não há comida no prato do cidadão comum? É que, tal como explicou o economista Nuno Castelo Branco, “essas multinacionais exportam lucros líquidos de muitos milhões de dólares anuais sem pagar ‘uma quinhenta’ [quase nada] de impostos”. Ou seja, os investimentos das multinacionais não trazem nenhum impacto direto no melhoramento da vida da população moçambicana.
O país é profundamente dependente de doadores externos. Mais da metade do seu orçamento geral é garantido por um grupo de 19 doadores estrangeiros Manifestações As condições para que a população moçambicana se manifestasse, tal como fez no início de setembro, já estavam há muito tempo reunidas. Aliás, com o fenômeno dessa semana, apenas se consolidou uma revolta popular que vinha se construindo com o passar dos anos, cujo sinal de grande dimensão se verificou no dia 5 de fevereiro de 2008, quando uma manifestação de mesma dimensão paralisou as cidades de Maputo e Matola, durante três dias, porque o preço do chapa, uma espécie de transporte público moçambicano, foi aumentado sem que os salários tivessem sido reajustados. Mais do que a situação de pobreza em si, as desigualdade sociais que se verificam principalmente na capital moçambicana – cujo centro é coabitado, por um lado, pelos proprietários das grandes empresas, pessoas das ONGs e das 17 agências das Nações Unidas aqui instaladas, e, por outro, pela elite negra moçambicana, demonstrando desse modo uma espécie de apartheid social entre o centro e a periferia – são apontadas como sendo a razão principal que levantou essas manifestações populares. “O anúncio do aumento dos preços foi apenas a gota que transbordou o copo, mas o povo já vinha vivendo em situações muito críticas”, disse uma fonte ligada ao Instituto Moçambicano de Estudos Sociais e Econômicos (Iesa). Uma cidadã de um bairro periférico expressou sua indignação na televisão, quando
era feita a cobertura das manifestações, dizendo: “eles [o governo] estão lá na cidade a comer do bom e do melhor, e nós estamos aqui a passar fome. Vamos nos manifestar até que respondam as nossas reclamações”. Segundo disse o jornalista e analista moçambicano Jeremias Langa, “estamos, diante de uma classe que se sente excluída dos processos de partilha e redistribuição da renda, que sente que o Estado rompeu o contrato social consigo; que não vê mais no Estado uma fonte de soluções, mas sim de problemas – porque promove a acumulação de uns em detrimento da maioria”. Estava, portanto, evidente que essas manifestações fossem acontecer. Só um governo insensível e indiferente
poderia fechar os olhos e surpreender-se com elas. Responsabilidade O governo moçambicano teima em não assumir as suas responsabilidades pela degradação do poder de compra do povo moçambicano. Na sua reação, atribuiu a culpa à chamada conjuntura internacional e chamou os manifestantes de vândalos, desempregados, bandidos e criminosos. No lugar de considerar uma reavaliação da sua medida em relação à subida do preço dos alimentos, ordenou que a população abandonasse as ruas e regressasse ao trabalho, porque, segundo ele, só assim se elimina a pobreza. “A subida de preços é irreversível, o governo está traba-
lhando para acalmar os ânimos. Mas os preços não vão baixar”, anunciou Alberto Nkutumula, vice-ministro da Justiça e porta-voz do Conselho de Ministros. Vários círculos de opinião condenam essa posição do governo. Os governantes sinceros nunca aparecem para pedir calma a um povo faminto e desgastado pelas péssimas condições de vida que o próprio governo ajudou a construir. De acordo com dados oficiais, até o dia 2 de setembro, oito pessoas morreram e 288 ficaram feridas no confronto entre a polícia e os manifestantes. * nome fictício – pela sua preferência, alteramos o nome real da fonte.
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cultura
Civilizados a golpes de barbárie
LITERATURA ARGENTINA Polarização civilização e barbárie é essencial para entender a história da literatura do país Olmo Calvo Rodríguez/CC
Dafne Melo e Silvia Beatriz Adoue de Campo Grande (MS) EM CADA época, a elite elege seus bárbaros. Se hoje os favelados, pobres e militantes de movimentos sociais são os bárbaros da vez, escravos e indígenas foram vistos como o elemento social a ser eliminado, em nome da construção de uma civilização em moldes europeus. Talvez mais do que em qualquer outro país da América Latina, o discurso da oposição entre civilização e barbárie encontra terreno fértil na Argentina, não por acaso o único país que elaborou um projeto oficial de extermínio de indígenas após a independência, ou seja, elaborado e levado a cabo pelas “novas” elites dirigentes. O episódio, conhecido como Conquista do Deserto, ocorreu entre 1869 e 1878, e hoje é considerado como um genocídio dos indígenas mapuche, tehuelche e ranquel, que habitavam a região da Pampa e a Patagônia. Para garantir a inserção (subalterna) no mercado mundial capitalista, a Argentina, assim como o resto das nações da América Latina, precisou, depois da descolonização política, manter as mesmas formas pré-capitalistas de superexploração do trabalho e da natureza que haviam se afirmado durante a colônia, que só se mantêm a custa de muita violência. É o neocolonialismo, e não o povo dos países, a causa da barbárie. Em entrevista ao Brasil de Fato, a professora da Universidade de Buenos Aires e escritora Maria Rosa Lojo comenta os momentos principais em que essa oposição aparece, tema especialmente tratado nas suas obras, e afirma que, para as elites, os bárbaros de hoje, de acordo com o discurso propagado pela imprensa, seriam os movimentos piqueteiros, que ganharam forma no país após a crise de 2001. Leia a entrevista a seguir. Brasil de Fato – Quando o binômio civilização e barbárie aparece pela primeira vez na literatura argentina? Maria Rosa Lojo – Para os argentinos e para a América hispânica, com o livro Facundo – civilização e barbárie, de Domingo Faustino Sarmiento [obra de 1845]. Não que não fosse usado antes; há uma história em termos do que se considera civilização e o que se considera bárbaro, selvagem, que é uma visão europeia sobre o Novo Mundo. Mas Sarmiento populariza esse binô-
Criança senta aos pés de manifestantes na Argentina: elementos a serem eliminados para a construção de uma civilização de moldes europeus
mio para toda América Latina. Atenção que ele usa “e”, e não versus. Talvez porque ele fosse consciente de que aquilo que era chamado barbárie era também uma forma de cultura, e que o Facundo que ele constrói é um representante antropológico do argentino. Em algum momento ele diz que, ao levantar a gola do fraque com que o argentino se disfarça, se encontrará debaixo o gaúcho [entendido como o camponês característico das regiões do sul do Brasil, Uruguai e Argentina]. O texto do Facundo é muito interessante pela sua complexidade, pelas contradições, pela fascinação que o personagem desperta em Sarmiento. Mas qual é o problema? Facundo se converte em uma figura mítica, um personagem rico por suas ambivalências, mas como obra política foi utilizado – e simplificado, há de se dizer – de tal maneira que tudo aquilo qualificado como bárbaro termina convertendo-se em algo que é ruim, sem razão de ser, uma maneira de estar no mundo que deve ser modificada para que a América hispânica possa ascender ao estatuto de civilização, de sociedade racional. O problema é que “bárbaro” vira tudo aquilo que é o outro. A única possibilidade de não ser bárbaro é seguir uma norma cultural que vem definida pela ilustração europeia. Mais posteriormente, ele vai se seduzir pela sociedade estadunidense, ao mesmo tempo Reprodução
Domingo Faustino Sarmiento, autor de Facundo – Civilização e barbárie
que não deixa de estar seduzido por aquilo que ele chama de barbárie. É parte da contradição sarmientina.
“O que aconteceu com a gente? Se o país prometia tanto, como caímos tão baixo? Isto se perguntam” E como aparece essa fascinação pela barbárie? Eu diria que Sarmiento era ele mesmo bastante “bárbaro”. Thomas Eloy Martinez [escritor e jornalista argentino] tem uma frase com a qual concordo: “fomos civilizados a golpes de barbárie”. Ele veio de uma cultura provinciana, onde se conservavam muitas características arcaicas da cultura hispânica. Como homem, era bastante colérico e descontrolado, ao mesmo tempo, de muita coragem. Aqui aparece já meu lado escritora, que vê Sarmiento como um personagem interessante. Ele estava sempre em contato com o novo, pensando no que poderia funcionar e ser bom para a Argentina se nela aplicado. O melhor lado de Sarmiento é sem dúvida sua relação com a educação, principalmente em relação às mulheres, pois nesse sentido as via como colegas, defendia que elas deveriam estudar, que não deveriam necessariamente ter a mesma opinião política de seus maridos; celebrou a aparição de mulheres escritoras e apoiou algumas delas, como Eduarda Mansilla. Ao mesmo tempo, foi um sujeito que disse coisas, como o trecho da carta a Bartolomé Mitre, sempre citada, “não poupe o sangue dos gaúchos porque é o único que tem de humano”. Quando sabemos que foram os gaúchos que fizeram a independência na América hispânica toda... chame de gaúchos, cholos, campesinos. Sem esse apoio popular teria sido difícil a independência. Lucio Mansilla teria uma outra forma de ver os povos originários na Argentina, não? Tanto ele como sua irmã, Eduarda Mansilla, têm um olhar complexo e duplo, contrapesando sempre os dois mundos. No caso dela há uma tensão que não está clara, que
talvez esteja ligada ao que hoje se chama uma perspectiva de gênero, pois se ocupa de um outro lado desses relatos épicos, abordando as mulheres que estavam atrás dos heróis. Mulheres que os esperam, que perdem seus filhos, que ficam viúvas e se viram como podem; mulheres analfabetas que não têm como educar-se, ainda que ricas. O olhar deles muda de um mundo ao outro, mas possui mais tolerância, de comparação e valorização do outro, ou seja, é um olhar mais integrador, e não binário como o de Sarmiento, que separa ou pretende separar um mundo outro e eliminar esse outro. Em um artigo, eu falo da “Argentina completa”, sobre os irmãos Mansilla, para sair dessa armadilha dicotômica formadora, através de um olhar que tenta resgatar certa multiculturalidade possível. Lucio Mansilla é capaz de ver, naquela época, que existe uma cultura indígena e que nela há valores que inclusive podem ser superiores aos da sociedade chamada de civilizada. Na obra de Eduarda aparecem negros, por exemplo. Na literatura canônica eles foram eliminados, ou aparecem como animais, como em O matadouro, de Esteban Echeverría.
“No imaginário da classe média e de parte da imprensa, os piqueteiros ocuparam esse lugar. São os bárbaros invasores” Onde a oposição civilização e barbárie aparece na literatura, desde então, de forma destacada? A verdade é que está em todos os lados na literatura e pode estar reafirmada ou ressignificada. É uma característica fundacional que seguiu marcando a literatura. Está muitíssimo em Jorge Luis Borges, em contos como “Sul”, “O fim”, “A intrusa”, “A festa do monstro” [onde o “monstro” do título é Juan Domingo Perón e os bárbaros identificados como sua base social] e em uma dezena de outros. Aparece em um livro clássico, Sobre heróis e tumbas (1961), de Ernesto Sábato. Está também em Adán Buenosayres (1948), de Leo-
poldo Marechal, de forma ressignificada. Aparece em toda a literatura que faz referência ao peronismo, para o bem ou para o mal. Um livro do qual gosto muito é Cabecita negra (1962), de Germán Rozenmacher, no qual também inverte-se essa polaridade. Eu acho que não há livro de ficção de alguma importância na Argentina que de alguma maneira não passe pelo binômio. No Brasil há um mito de que somos o país do futuro. Na Argentina há o mito de que no passado houve esse momento em que o país poderia ter se tornado uma potência, mas perdeu a oportunidade, e então é necessário escolher os bodes expiatórios para isso, que seria justamente esse elemento “bárbaro”. Sim, sempre estão buscando os culpados para entender quem tem a culpa. O que aconteceu com a gente? Se o país prometia tanto, como caímos tão baixo? Isto se perguntam. No século 19, antes do momento de grande crescimento, que vai de 1880 a 1920, a ideia que dominava era que, para sair do atraso, o elemento não branco, ou seja, o aborígene, deveria ser eliminado. Há também rechaço aos imigrantes não anglo-saxões, como espanhóis e italianos, como faz Eugenio Cambaceres em En la sangre, um livro naturalista que coloca os italianos incultos que chegavam como um elemento retardatário e que ia corromper a Argentina, e como tinha como valor a ascensão social sem escrúpulos, ia corromper as classes altas também. Isso ocorre depois de 1880, pois o que se acredita antes é que para se construir a Argentina deveria se eliminar o elemento indígena. Quando a imigração começa a aumentar muito, começa a existir resistência aos bárbaros imigrantes. Mas repito: a Argentina era poderosa e rica apenas em alguns lugares do país. As desigualdades sociais eram enormes. No interior se vivia de uma forma primitiva, sem luz, água, saneamento básico, escola, sem comunicação com outros lugares, em economia de subsistência. Negros, indígenas, mulheres, imigrantes, peronistas... quem são os bárbaros hoje? No imaginário da classe média e de parte da imprensa, os piqueteiros ocuparam esse lu-
gar. São os bárbaros invasores. Pelo fato de que continuam havendo manifestações, que geralmente mostram bastante resistência, os setores conservadores afirmam que são um bando de desocupados que não querem trabalhar e vivem às custas de subsídios do governo, que são incultos, quase selvagens – e aí se repetem os estereótipos. Mas quando escutamos eles falarem, vemos que estão longe dessa caracterização, são pessoas que sabem o que estão falando e por que estão lutando; buscam inserção, soluções coletivas, mas, dentro do fascismo popular são os bárbaros da vez. [Assim como] Os imigrantes latino-americanos, bolivianos, paraguaios também, embora tenha melhorado um pouco, porque eles já conquistaram seu espaço, uma comunidade forte na Argentina. Hoje despertam mais desconfiança da classe média os coreanos e chineses. Outro grupo que entra na categoria de bárbaros hoje são os catadores de papel. Em Buenos Aires, não existiam pessoas que viviam de lixo. Nunca a miséria urbana foi tão visível nos centros da cidade. Hoje, quando cai a noite, quando a cidade para de funcionar, todos os executivos vão embora, aparecem verdadeiros exércitos de gente para mexer no lixo. E são pessoas que não estão em nenhuma estrutura formal, não têm direitos sociais e seguramente vivem mal. Estes são os novos bárbaros que invadem a cidade, como os peronistas antes. Meu marido é de Missiones e sempre diz que de fato o peronismo significou uma mudança enorme na vida, um antes e um depois, pois a economia rural era de subsistência, não havia dinheiro circulante, escolas, hospitais. Isso apareceu com o peronismo apenas. Quando se fala na grandiosidade da Argentina na década de 1920 e 1930, que país tão rico que podíamos ter sido... É irreal isso. Missiones era, por exemplo, um dos bolsões de pobreza do país, onde não havia nada. Havia uma região mais rica, onde está a cidade de Buenos Aires, mas a desigualdade regional era enorme.
Quem é Maria Rosa Lojo é professora de literatura argentina da Universidade de Buenos Aires (UBA), pesquisadora e escritora, autora de livros de poesia e ficção, como La princesa federal, Una mujer de fin de siglo, Finisterre.
Para entender Facundo – Civilização e barbárie – Recentemente publicado em português, é um livro escrito por Domingo Faustino Sarmiento, em 1845. O texto é, ao mesmo tempo, um ensaio histórico e um panfleto político. Começa com a descrição da geografia rural e dos tipos humanos por ela gerados para, depois, passar à crônica histórica do caudilho popular Facundo Quiroga. Depois da descolonização, sobreveio um período de guerra civil que opunha federais, apoiados por proprietários rurais junto com os gaúchos iletrados, e unitários, apoiados pela elite letrada e os comerciantes do porto de Buenos Aires. Facundo, caudilho federal, surge, no texto de Sarmiento, como encarnação dos tipos humanos do llano, a planície semiárida do interior argentino. As teorias climática e racial eram o terreno ideológico desse “enredo”. Para Sarmiento, o “deserto”, a planície infinita, só podia ser cenário e causa da barbárie americana. A cidade era entreposto da civilização, que, no texto, se confunde com a civilização europeia.