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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 8 • Número 394

São Paulo, de 16 a 22 de setembro de 2010

Riqueza do petróleo carece de controle social Municípios que recebem grandes somas de royalties não as revertem em conquistas sociais e pecam na transparência das contas relacionadas à exploração do petróleo. Em entrevista, o professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) Frederico Romão defende uma reestruturação social, política e jurídica das regras de exploração da riqueza oriunda do pré-sal. Pág. 8

R$ 2,80 www.brasildefato.com.br

Serviços públicos no Brasil são de país subdesenvolvido “O Brasil vive uma tragédia social”. Esta é a avaliação do sociólogo Ricardo Antunes sobre os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, do IBGE, divulgada no dia 8. Os números mostram que, em 2009, mais da metade dos domicílios não possuíam rede de esgoto e que a taxa de analfabetismo permanece alta, em 8,9%. Por outro lado, a Pnad realça

uma melhoria no consumo, o que, entretanto, não aponta para avanços estruturais em políticas públicas. Esse baixo investimento em serviços essenciais pode ser explicado pelos gastos com a dívida pública, que disparou nos últimos anos em um processo repleto de irregularidades, conforme apurou CPI sobre o tema realizada na Câmara dos Deputados. Págs. 4 e 5 Cristiano Trad/Folhapress

Para tentar repetir 2006, mídia e PSDB se articulam

ETA declara cessar-fogo e aponta trégua definitiva

A quebra do sigilo fiscal de pessoas ligadas ao PSDB tem servido de pretexto para o partido e a mídia realizarem uma ação orquestrada. As denúncias são repercutidas e expostas na campanha eleitoral de José Serra. De acordo com Venício Lima, o escândalo tem caráter midiático. Para jurista da PUC, as violações não devem ser tema eleitoral. Pág. 6

No dia 5, o grupo basco ETA anunciou em um vídeo enviado à BBC que vai interromper suas ações armadas de forma incondicional, unilateral e por tempo indeterminado. A atitude tem sido interpretada como uma trégua definitiva. Segundo o vídeo, o ETA tem por objetivo iniciar um processo de negociação com o governo da Espanha, que, até então, tem se recusado a negociar diretamente com o grupo ou mesmo com seu braço político, o ilegalizado Batasuna, agora sob o nome de Ezker Abertzalea (Esquerda Nacionalista). O governo espanhol, entretanto, por meio do primeiro-ministro José Luis Zapatero, afirmou mais uma vez sua intenção de não dialogar com o ETA e defendeu a dissolução incondicional e completa do grupo. Pág. 10

Vitória tucana em SP piorará descaso com a reforma agrária O integrante da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Gilmar Mauro, denuncia em entrevista o legado da gestão de José Serra em relação à reforma agrária. “Não foi feito nada, esta é a verdade: nem quanto ao acompanhamento de assentamentos, nem quanto à arrecadação de terras”, afirma. Pág. 7 ISSN 1978-5134

Em Belo Horizonte (MG), crianças passam por esgoto a céu aberto no caminho para escola João Zinclar

Reprodução

Moshe Milner/GPO

México, a última fronteira Pág. 12

Palestina e Israel: Eleições, momento de pedagogia política

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negociações sem esperança

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de 16 a 22 de setembro de 2010

editorial O ATUAL cenário eleitoral, se prevalecer o indicativo das pesquisas de opinião pública, está praticamente definido. A candidata petista, segundo todos os prognósticos, vencerá a eleição. E, como é de se esperar, as forças de oposição conservadoras tentarão seus truques para reverter a iminente derrota. É grave que o atual pleito, que deveria ser um espaço político para apresentar projetos para o país e elevar a consciência da população, está despolitizado. Mas também é grave a tentativa do candidato presidencial conservador, José Serra, de transformar em escândalo eleitoral a mal explicada quebra de sigilo fiscal de sua filha, a empresária Verônica Serra, e de alguns dirigentes tucanos. Nesse sentido, receberam um contragolpe. A divulgação de informação sobre uma megaquebra de sigilo, ocorrida em 2001, por iniciativa do sítio Decidir.com. Em reportagem assinada por Leandro Fortes, a revista Carta Capital revela que a filha de Serra é sócia dessa empresa. A outra sócia é a empresária Verônica Dantas, irmã do banqueiro Daniel Dantas, proprietário do Banco Opportunity, um dos maiores beneficiados pelas privatizações promovidas pelo governo de Fernando

debate

Entulho neoliberal Henrique Cardoso. Na ocasião, pelo menos 60 milhões de contribuintes tiveram seus dados bancários abertos à consulta pública pelo sítio Decidir.com. Ou seja, estamos falando de uma quebra sistemática, generalizada do sigilo bancário e fiscal. Mais grave: uma operação ilegal totalmente vinculada à mais nefasta alienação e internacionalização de patrimônio público jamais registrada na história do país. Então, é muito curioso que Serra seja protagonista de acusações lançadas contra Dilma. E sem qualquer prova que explique porque uma candidata que está com enorme possibilidade de vencer as eleições em primeiro turno iria se utilizar de expedientes dessa natureza. Aliás, sem que qualquer informação bancária ou fiscal da empresária supostamente vítima tenha sido utilizada em qualquer tempo durante a campanha. Mas algumas conclusões podem ser tiradas do episódio. Primeiro, o vazamento de informações no sistema tributário do país não

gado a dizer, quais são os quatro artigos fraudados. Além disso, está claro que a sociedade entre a filha de Serra e a irmã de Dantas tem relação direta com a privatização. E é exatamente a nefasta privatização o maior dos crimes de lesa-pátria que permanece sem qualquer investigação. O livro Os porões da privatização, de autoria do jornalista Amaury Ribeiro Jr., resultado de investigação encomendada pela alta direção do jornal O Estado de Minas, de estreita identificação editorial e política com o ex-governador mineiro Aécio Neves, talvez venha à luz muito tardiamente para desmascarar por completo a manipulação eleitoral midiática da candidatura conservadora desesperada pela possibilidade de perder no primeiro turno. De todo modo, fica claro o prejuízo causado à transparência e à verdadeira democracia a não apuração de todo o dano causado pelo “entulho neoliberal” com o qual o povo brasileiro ainda não pode fazer um imprescindível ajuste de contas. Para exemplificar, vale citar a pressão

ocorre apenas em épocas eleitorais. O próprio Serra lamentou, durante reportagem feita pelo SBT em 2009, que houvesse essas quebras de sigilo. Mas, naquela oportunidade, quando a emissora informou que também o presidente Lula e seu filho tiveram, junto com o então governador paulista, os seus respectivos sigilos quebrados, Serra não culpou o PT nem mostrou qualquer indignação. Ainda não era campanha eleitoral. E todos sabemos também que são passíveis de fraudes, adulterações e manipulações os sistemas bancário e tributário, o painel do Senado, as urnas eletrônicas, a produção farmacêutica, o orçamento, as informações da Previdência, o sistema de licitações, os concursos públicos, o Enem... Basta lembrar que Nelson Jobim, então presidente do Supremo Tribunal Federal, declarou à nação que a Constituição tinha sido fraudada em quatro de seus artigos. E nada ocorreu. Pelo contrário, ele virou ministro da Defesa de Lula. Mas, nunca informou, nem foi obri-

crônica

Thalles Gomes

Novos protestos contra a Minustah “ESTÃO ME sufocando” foi o grito escutado pelos funcionários do hotel Henri Christophe no dia 17 de agosto de 2010, na cidade de Cap-Haitien, capital do departamento norte do Haiti. O pedido de socorro veio da Base Formed Police Units (FPU), pertencente à Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti). Nesse mesmo dia, os soldados nepaleses da ONU informaram que o haitiano Gerald Jean Gilles havia invadido a sua base militar e se enforcado. Gerald tinha 16 anos de idade. A nota divulgada pela ONU não explica, todavia, como o jovem Gerald conseguiu invadir a base militar, amarrar uma corda no pátio e se enforcar sem que nenhum soldado tomasse conhecimento. Essa versão é contestada com veemência por parentes e amigos de Gerald. De acordo com eles, o jovem prestava serviços informais aos soldados do Nepal há algum tempo, em troca de dinheiro ou comida. A suspeita de que Gerald havia roubado 200 dólares de um dos soldados foi a razão para que os militares nepaleses o torturassem e sufocassem até a morte. De fato, a verdade sobre a real causa da morte de Gerald Jean Gilles continua indefinida. Isso porque a Minustah só liberou o corpo do jovem para autópsia passadas mais de 72 horas de seu falecimento, o que pode ter alterado os resultados apresentados pela perícia forense. O suicídio por enforcamento, entretanto, está descartado, uma vez que nenhuma vértebra cervical da vítima foi danificada.

Abusos constantes Esta não é a primeira vez que as tropas nepalesas da ONU são acusadas de desvios e abusos de autoridade. Alguns dias antes do falecimento de Gerald, a imprensa local noticiou a denúncia de que um soldado nepalês havia detido e torturado um menor em plena praça pública de Cap-Haitien, chegando a “meter as mãos na boca do jovem no intuito de separar a mandíbula inferior da mandíbula superior, ao ponto de lacerar a pele de sua boca”. Em 2008, o estupro de uma adolescente haitiana por parte de soldados da unidade nepalesa ganhou repercussão internacional. A ONU afirmou à época que puniria e afastaria os culpados, após investigação interna. Abusos e ações controversas não são uma regalia dos nepaleses, infelizmente. Na noite de 24 de maio de 2010, sob o pretexto de que uma pedra havia sido lançada contra um dos veículos da Minustah, soldados brasileiros invadiram as instalações da Universidade Estatal do Haiti. Utilizando cassetetes e bombas de gás lacrimogêneo, a tropa brasileira sequestrou livros, cadernos e laptops de vários estudantes, além de ter prendido o universitário Mathieu Frantz Junior. As bombas de gás lacrimogêneo utilizadas pela Minustah atingiram inclusive as vítimas do terremoto que viviam em acampamentos improvisados nas proximidades da universidade. O próprio representante

ONU

Membros da Minustah conduzem estudante da Universidade do Haiti preso durante protestos

especial da Secretaria Geral da Minustah, Edmond Mulet, classificou a ação dos soldados brasileiros como “hostil” e se desculpou publicamente em pronunciamento oficial. Essa reiterada “hostilidade” vem gerando diversos protestos e manifestações contra as tropas de ocupação da ONU. As ruas de Cap-Haitien foram tomadas nas últimas semanas por marchas e atos públicos, com participação de movimentos urbanos e camponeses, que exigem a punição dos soldados nepaleses pelo assassinato de Gerald Jean Gilles. Enquanto isso, estudantes da Universidade Estatal do Haiti tomaram as ruas de Porto Príncipe no dia 4 de setembro para cobrar providências contra as ações arbitrárias e violentas dos soldados brasileiro, que até agora não foram punidos.

Crise de legitimidade Instalada em 2004, após a invasão militar estadunidense que tirou do poder o então presidente Jean Bertrand Aristide, a Minustah passa atualmente por uma de suas maiores crises de legitimidade em terras haitianas. O objetivo inicial da missão, a estabilização do país, já não encontra justificativa plausível, visto que os atuais índices de violência estão abaixo dos de países mais desenvolvidos, como Brasil ou África do Sul. Enquanto o país cujo exército coordena as tropas da Minustah possui em seu próprio território uma média de 57 homicídios por 10 mil habitantes, e o país sede da última Copa do Mundo possui 250 homicídios por 10 mil habitantes, no Haiti esse número se resume a apenas 15 homicídios para cada 10 mil habitantes. Além disso, passados oito meses desde o terremoto que abalou o país, em 12 de janeiro de 2010, as tropas da ONU ainda não foram capazes de dar uma resposta eficaz às vitimas. Entulhos e acampamentos improvisados ainda tomam as ruas da capital Porto Príncipe, mas não se vê nenhuma movimentação por parte das tropas militares para a retirada dos escombros e início da reconstrução de prédios e edifícios. E não se pode culpar a falta de verbas ou recursos humanos, já que, depois do terremoto, houve

o incremento de 3.500 pessoas no corpo da Minustah, com orçamento reforçado em 126 milhões de dólares anuais, somente em soldos. Não custa lembrar que um soldado designado para serviços militares no Haiti recebe por mês cerca de 3 mil dólares, o equivalente a quatro anos de trabalho de um haitiano que vive com um salário mínimo.

Para quê? É diante desse panorama que diversos setores da população haitiana questionam a real utilidade da permanência das tropas de ocupação da ONU no país. “Se a Minustah estivesse cumprindo sua missão de promover a estabilização do país e acompanhar projetos de desenvolvimento, como então ela não sabia que havia esse risco de terremoto no país? Devia saber que havia esse risco e propor um conjunto de medidas e soluções para enfrentá-lo. A Minustah deveria ao menos socorrer a população. Mas nem isso pôde fazer: socorrer as pessoas e organizar a alimentação”, denuncia Gerald Mathurin, coordenador do Kros (Kòdinasyon Rejyonal Òganizasyon Sidès) e integrante da Via Campesina Haiti. “A questão militar acompanha sempre as intenções das potências internacionais quando necessitam fazer algo no país. Os militares que vieram antes, e os que vêm agora, têm sempre a mesma missão, têm sempre o mesmo objetivo, que é aplicar o projeto do imperialismo”, conclui Mathurin. No bojo dessas denúncias e reflexões, os movimentos sociais do Haiti e da América Latina prometem realizar atos públicos por todo o continente em defesa da soberania nacional e da liberdade do Haiti no próximo dia 15 de outubro. É que nessa mesma data o Conselho de Segurança da ONU se reunirá em Nova York para definir a renovação ou não do mandato da Minustah por mais um ano. Será a oportunidade ideal para a comunidade internacional avaliar se a sua tão propagada solidariedade com o povo haitiano necessita realmente de soldados, armas e tanques de guerra para se efetivar. Thalles Gomes é membro da Brigada da Via Campesina Brasileira no Haiti.

que as telecomunicações privatizadas vêm fazendo contra a Telebrás e contra o Plano Nacional de Banda Larga. A pressão que as transnacionais vêm fazendo contra o processo de renacionalização da Petrobras. A pressão das transnacionais midiáticas para a desnacionalização da TV por assinatura, por meio do PL-29, em tramitação no Congresso. Não ter apurado a fundo, investigado e responsabilizado os que promoveram essa terrível privatização é o que dá fôlego aos seus promotores, como Serra. E, apesar de tudo, ele ainda pretende não ser apontado como responsável pela privatização neoliberal. Assim, ainda é tempo para se investigar e, inclusive, responsabilizar os que negligenciaram as solicitações de investigação feitas pelo então presidente da Câmara Federal, deputado Michel Temer, à direção do Banco Central, que, tudo indica, participou, junto com a mídia, da operação abafa. Que se investiguem todos os vazamentos de informações, de antes e agora. Mas, sobretudo, que finalmente se jogue luz sobre esse “entulho neoliberal”, herança privatista que fez o Brasil recuar em sua capacidade de formular e organizar um projeto de nação soberana.

Luiz Ricardo Leitão

O show tem de continuar... ANO APÓS ano, a plateia parece estar cada vez mais indiferente ou, até mesmo, hostil aos políticos. Lá em Dourados (MS), por exemplo, inspirado pelo jornalista árabe que atirou seu sapato contra Bush, um eleitor acertou em cheio o rosto do vereador 171 que, apesar de soterrado no mar de lama que resultou na prisão do prefeito e de seus cúmplices na Câmara, teve a desfaçatez de aparecer na sessão marcada (e logo suspensa) para tratar do escândalo no município. Ainda assim, por obra de mais um estranho sortilégio da tal ‘democracia’ burguesa, o show das eleições continua a mil em Bruzundanga, revelando-nos, tal qual uma cruel caricatura, os traços mais singulares de nossa sociedade espetacular, criada e cevada nos mais tristes descaminhos da periferia do capitalismo. A fórmula que as elites adotaram para manter o poder em plagas tropicais é a velha máxima enunciada por Lampedusa no romance O leopardo (que aborda a crise da nobreza siciliana no século 19): é preciso mudar, para que tudo fique como está... Nos acordos firmados pelas oligarquias, todas elas a serviço da agroexportação, o povo foi sempre um indesejável figurante. Para dirimir eventuais arestas entre as frações dominantes, encenaram-se toscas “revoluções” que jamais implicaram nenhuma ruptura mais violenta do sistema. Ao longo da história, sempre que necessária, a receita nunca falhou, como nos advertiu o saudoso Caio Prado Jr., ao descrever a agonia do Império às vésperas da República: “Uma simples passeata militar foi suficiente para lhe arrancar o último suspiro...” Lembro-me de Caio Prado e Florestan Fernandes quando vejo o Lulinha Paz & Amor esculachar a elite paulista em seu quintal, durante a inauguração de mais uma escola técnica federal, acusandoa de nunca ter permitido aos trabalhadores sonhar com os bancos universitários. Com a velha varinha mágica da compensação social que o “pai dos pobres” Getúlio usou há mais de meio século, o major eleitoral de Dilma alicia a massa e trata de isolar o tucanato, costurando a ‘nova’ aliança com os coronéis do século 21, a exemplo do que Gegê fizera em 1930, ao reunir caciques da Paraíba ao Chuí para sepultar, após a crise de 1929, a moribunda política do “café com leite”. Julgando-se a locomotiva do capitalismo tupiniquim, a poderosa burguesia da terra roxa até hoje não acertou o passo com o minueto de Bruzundanga. A frustrada reação em 1932, que os salões continuam a celebrar com pompa e circunstância, não lhe serviu de lição. Seu ressentimento (flagrante, inclusive, na ausência de vias públicas com o nome de Getúlio em Sampa), mais uma vez, deverá custar caro nas eleições. Até um idiota como o prefeito carioca Eduardo Paes, ao receber com tapete vermelho o enviado da Fifa ao Brasil, declarou que a escolha do Rio para sediar o sorteio das eliminatórias e o Centro de Imprensa da Copa 2014 era “uma chinelada nos paulistas”. Eis aí o roto falando do esfarrapado! Mero acólito do príncipe Cabral, Paes é apenas mais um de tantos governantes que, conforme escreveu um ferino jornalista da terra da garoa, recebem a Fifa como se fosse a Família Real, gastando mundos e fundos do contribuinte para hospedar a corte da pelota. De fato, quem pode aceitar, em sã consciência, tantas imposições de Blatter & Cia. sobre os estádios e a infraestrutura do torneio, ciente de que obras como o rebaixamento dos gramados e as alterações no anel inferior se dão por causa das placas publicitárias de 1 m de altura exibidas à beira do gramado na Copa Enquanto isso, o chamado ‘show da democracia’ não para! Estamos agora na sessão denúncia, muito comum nesta época. Para quem pensa que as farpas entre PT e PSDB são novidade, lembro os idos de 1984/85, quando Maluf, Andreazza e Aureliano disputavam a vaga à sucessão de Figueiredo pelo PDS e os escândalos da finada ditadura espocavam a toda hora na grande imprensa da colônia. A mídia – leia-se: Folha, Estadão, Veja, Globo e outros –, aliás, sempre tão ciosa de sua ‘imparcialidade’, desta vez entrou para rachar, apostando alto em Serra e abrindo fogo pesado contra Dilma. Tão generoso com a banca e o agronegócio, Lulinha Paz & Amor não deveria esquecer que, afinal de contas, ele e o seu partido (o mais novo e ambicioso gerente da franquia Brasil) têm de aparar certas arestas com os demais acionistas. Depois de outubro, porém, tudo promete voltar à calmaria nesta pátria-mãe tão pródiga e abençoada pelos deuses: seja qual for o resultado das urnas, mudaremos para não mudar, prometem-nos todos eles. E você, caro e rebelde leitor, já tirou o seu sapato? Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa: poeta da Vila, cronista do Brasil e de Lima Barreto: o rebelde imprescindível.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patrícia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


de 16 a 22 de setembro de 2010

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brasil João Zinclar

“A eleição é um momento de pedagogia política” ENTREVISTA Para Plinio Arruda Sampaio, movimentos sociais deveriam aproveitar as eleições para dar o troco às classes dominantes, explicitando repúdio aos três candidatos da ordem Nilton Viana da Redação PARA PLINIO Arruda Sampaio, candidato à presidência da República pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol), a burguesia determinou que a eleição presidencial deste ano ficaria restrita a uma escolha do melhor gerente para o modelo instalado, mobilizoando-se para que o debate fosse apenas entre os três candidatos da confiança do sistema: Dilma Rousseff (PT), José Serra (PSDB) e Marina Silva (PV). Plinio acredita que a eleição é um momento de pedagogia política, uma oportunidade de disputa ideológica que não deve ser desperdiçada. Nesse sentido, sugere que “os movimentos sociais deveriam aproveitar as eleições para dar o troco às classes dominantes, explicitando seu repúdio aos três candidatos da ordem, especialmente a Dilma, cujo governo recusouse a fazer a reforma agrária. Em entrevista ao Brasil de Fato, o candidato do Psol afirma: “Lula vem cooptando as lideranças e as organizações populares. Tornou-se uma liderança política altamente funcional para a dominação burguesa”. Para ele, a crise tanto da esquerda partidária como dos movimentos sociais decorre diretamente da colaboração com o lulismo. Plinio acredita que, nas eleições, a colaboração explicita-se no apoio mais ou menos envergonhado à candidatura oficial. E dispara: “Demonizar a candidatura Serra e omitir os compromissos de Dilma com o grande capital é somar para Dilma. Fazer análise de conjuntura eleitoral e omitir as candidaturas de esquerda também soma para a Dilma”. Brasil de Fato – Há hoje na sociedade uma relativa sensação de que a economia brasileira está bem estabilizada. O senhor concorda com esse sentimento? Plinio Arruda Sampaio – A pergunta permite que se esclareça uma questão que me fazem invariavelmente as publicações pró-Lula. Quando a burguesia fala de “estabilidade”, na verdade, ela se refere à “estabilidade” de um padrão de acumulação de capital. O importante, portanto, é entender o que está sendo estabilizado. A vitória do Plano Real, a estabilidade dos preços tão celebrada pela burguesia, foi a vitória de um padrão de acumulação de capital que acirra a desigualdade social e compromete a soberania nacional. A sensação de que a economia brasileira está “bem estabilizada” decorre da percepção de que a ordem neoliberal se enraizou no Brasil e possui sólida base social de sustentação. É isto que dá ao grande capital um horizonte relativamente “estável” de acumulação. A estabilidade do padrão de acumulação iniciado por Collor, consolidado por FHC e legitimado por Lula se manifesta no sentimento de que não existe alternativa ao status quo. Foi este o

maior serviço que Lula prestou à burguesia brasileira e internacional. No entanto, é ingênuo imaginar que, na era da globalização dos negócios, uma economia dependente possa ser “estável”, sobretudo quando se leva em consideração que o mundo se encontra imerso em uma gravíssima crise econômica. Na verdade, a economia brasileira nunca foi tão instável, como fica evidente na expansão exponencial do seu passivo externo e na preocupante expansão do deficit do balanço de pagamentos em conta corrente. Se a economia brasileira fosse, de fato, estável, os banqueiros não exigiriam que o Brasil imobilizasse mais de 250 bilhões de dólares em reservas cambiais, a um custo monumental para o Tesouro Nacional. Esse dinheiro só serve para financiar uma eventual fuga de capital.

“Quando a burguesia fala de ‘estabilidade’, na verdade, ela se refere à ‘estabilidade’ de um padrão de acumulação de capital” Caso a crise econômica mundial atinja o Brasil, como o senhor avalia as consequências para o povo brasileiro? Quando Lula afirmou que a crise não passava de uma “marolinha”, disse uma inverdade. Não existe capitalismo em um só país. A digestão da crise vai se arrastar por décadas e provocará transformações de grande envergadura em todas as dimensões da realidade, inclusive na hierarquia que rege a relação entre as potências imperialistas e o elo fraco do sistema capitalista mundial. A crise vai agravar todos os aspectos nefastos do capitalismo brasileiro. As pessoas se iludem, porque, após a recessão de 2009, a economia voltou a crescer. Mas, como lembrava Florestan Fernandes, o crescimento não resolve os problemas do país. O mito do crescimento é a ideologia do subdesenvolvimento. O importante é saber a quem beneficia o crescimento. O primeiro impacto da crise já reforçou o caráter antissocial e antinacional do modelo econômico brasileiro, degradou as relações de trabalho, reforçou os mecanismos de transferência de renda do Estado para o capital, aumentou a dependência do Brasil em relação à entrada de capital internacional e acelerou a especialização regressiva do parque produtivo brasileiro na economia mundial. Como o senhor analisa o atual modelo de desenvolvimento adotado no Brasil?

Manifestação do Grito dos Excluídos realizada este mês em Campinas

É um modelo de desenvolvimento nefasto, que aumenta escandalosamente a concentração de renda. O fato fica evidente quando se examina a evolução da distribuição da renda entre salário e lucro – a chamada distribuição funcional da renda. Entre 1990 e 2003, o lucro aumentou a sua participação na renda em 14 pontos percentuais, passando de 38% para 52%. Essa renda foi tirada do trabalho, cuja participação na renda diminuiu de 62% para 48%. No governo FHC, a participação do salário na divisão da renda diminuiu 12 pontos percentuais. Foi o período de maior concentração. No governo Lula, a divisão da renda a favor do lucro continuou aumentando, ainda que em ritmo menor. Até 2006, aproximadamente 1% da renda nacional foi transferida do salário dos trabalhadores para o lucro dos capitalistas. Grande parte desse quadro social terrível é devido à falta de reforma agrária. E a América Latina, como o senhor vê o atual cenário do continente? Estamos vivendo uma fase particularmente perversa do capitalismo. O que acontece no Brasil – o avanço da barbárie – também ocorre em outros países da América Latina. O povo latino-americano debate-se para livrar-se desta situação. Em alguns países, como a Venezuela, Bolívia e Equador, o povo tem reagido de maneira construtiva e constituído governos comprometidos com a busca de novos rumos. Cuba é sempre um exemplo de resistência à prepotência imperialista. E o que pensa sobre a esquerda brasileira nesse atual cenário? No último período, a esquerda sofreu uma forte divisão. Uma parte – a maior – aderiu ao “lulismo”, abandonou a perspectiva de classe e transformou-se em uma espécie de “esquerda da ordem”, ou seja, converteu-se ao social-liberalismo. A outra parte – hoje bem reduzida e fragmentada – busca novos rumos para combater o capitalismo e impulsionar a luta pelo socialismo. A esquerda brasileira tem o conhecimento verdadeiro da realidade social do país? Para superar a situação atual, a esquerda precisa compreender por que o governo Lula foi tão frustrante, por que a burguesia brasileira é tão hermética aos processos de mudança social. A esquerda precisa de uma nova teoria para orientar a sua intervenção na luta de classes. Na sua opinião, quais são os elementos fundamentais hoje para um processo revolucionário conducente à superação do capitalismo? Isso é possível hoje? Para que o mundo não se afunde na barbárie, a superação do capitalismo é mais necessária do que nunca. É claro

que tal superação é possível. O problema não se encontra na inexistência de condições objetivas para a superação do capitalismo, mas na falta de bases subjetivas, o que só será resolvido no dia em que os trabalhadores vencerem o estado de alienação e tomarem as rédeas do poder. Isto não acontecerá no Brasil enquanto a classe estiver enquadrada no “lulismo”.

“Grande parte desse quadro social terrível é devido à falta de reforma agrária” Quais são, na sua avaliação, os principais problemas do povo brasileiro e quais os desafios colocados para a esquerda brasileira? Os problemas do povo brasileiro podem ser resumidos na falta de terra, trabalho, teto, na precariedade da educação, da saúde e da assistência social. Em outras palavras, as dificuldades vivenciadas pelo povo brasileiro decorrem da situação de segregação social, que se manifesta em todas as esferas da sociedade: a econômica, a social, a política, a jurídica e a cultural. A tarefa da esquerda brasileira é criar instrumentos de luta social e política que permitam à classe trabalhadora superar o desalento e alienação em que ela se encontra. O grande desafio consiste em forjar uma unidade de classe para enfrentar um padrão de dominação cada vez mais intolerante com todas as manifestações que coloquem em questão os privilégios dos ricos. Os instrumentos políticos da esquerda, principalmente partidos políticos, ao seu ver, têm sido capazes de fazer frente à atual realidade brasileira? A responsabilidade pessoal de Lula e da direção do PT pela capitulação do governo Lula às exigências do capital é grande. Mas ela não conta toda a história. Na hora decisiva, os partidos de esquerda e os movimentos sociais não pressionaram com a devida contundência o governo Lula para que ele cumprisse as promessas de mudanças. Os instrumentos de luta da classe ficaram bem aquém do que seria necessário. O acúmulo de força não foi suficiente para enfrentar os desafios da transformação social. A parcela da esquerda que não abandonou a trincheira da luta pela superação do capitalismo está em processo de reorganização para que tal erro não se repita. Para o senhor, a esquerda brasileira vive um momento de crise? A esquerda precisa se adaptar às novas circunstâncias da luta de classes. A ordem econômica é cada vez mais iní-

qua, e o padrão de dominação é cada dia mais rígido. A desigualdade e a barbárie foram naturalizadas. A esquerda precisa se preparar para enfrentar uma burguesia que neutralizou os instrumentos de luta política e social da classe trabalhadora. Lula vem cooptando as lideranças e as organizações populares. Tornou-se uma liderança política altamente funcional para a dominação burguesa. Ora, um líder operário que tem a desfaçatez de afirmar que “os usineiros são heróis da nação” está evidentemente a serviço dos poderosos. A crise tanto da esquerda partidária como dos movimentos sociais decorre diretamente da colaboração com o lulismo. Nas eleições, a colaboração explicita-se no apoio mais ou menos envergonhado à candidatura oficial. Demonizar a candidatura Serra e omitir os compromissos de Dilma com o grande capital é somar para Dilma. Fazer análise de conjuntura eleitoral e omitir as candidaturas de esquerda também soma para a Dilma. O Programa Democrático Popular construído pelo PT em 1986 ainda está atual? Não sei exatamente do que se trata o “Programa Democrático Popular construído pelo PT em 1986”. Mas é claro que algo feito há 25 anos não pode ser atual.

“A esquerda precisa de uma nova teoria para orientar a sua intervenção na luta de classes” Como o senhor avalia o cenário eleitoral deste ano? Ufa! Pensei que não perguntariam sobre as eleições de 2010. Não se deve supervalorizar as eleições, mas tampouco subestimar sua importância. A eleição é um momento de pedagogia política. É uma oportunidade para expor os problemas do povo e suas possíveis soluções. É uma oportunidade de disputa ideológica que não deve ser desperdiçada. Nestas eleições, a burguesia determinou que a eleição presidencial ficaria restrita a uma escolha do melhor gerente para o modelo instalado, mobilizando-se para que o debate fosse apenas entre os três candidatos da confiança do sistema: Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva. É isto que explica a censura imposta a todos os candidatos socialistas. Não fazem isso à toa. A burguesia não aguenta uma semana de debate livre sobre os problemas do país. As entranhas do modelo são indefensáveis. Os movimentos sociais deveriam aproveitar as eleições para dar o troco às classes dominantes, explicitando seu repúdio aos

três candidatos da ordem, especialmente a Dilma, cujo governo recusou-se a fazer a reforma agrária, plano que coordenei e entreguei a Lula. E qual a sua avaliação sobre as candidaturas de esquerda neste cenário que, pela primeira vez desde 1989, não terá Lula como candidato? Lutei pela formação de uma Frente de Esquerda. Infelizmente isso não foi possível. É uma pena, pois unidos teríamos mais força. Na condição de candidato à presidência pelo Psol, não creio que seja o momento de avaliar as outras candidaturas do campo da esquerda. Esta é uma discussão que deveria ter sido feita antes e que deve ser feita depois de outubro. Agora, vira fofoca que só interessa à grande mídia. É fundamental não dar à direita e ao lulismo o gosto de ver a esquerda atacando-se. Como o senhor vê a atuação dos movimentos sociais no Brasil? É uma questão complexa. Os movimentos sociais são muito heterogêneos entre si, e mesmo dentro de cada organização existe muita diferença. Uma coisa, no entanto, é possível afirmar sem risco de equívoco: para que os movimentos sociais funcionem como instrumento de luta do povo, precisam preservar a todo custo a independência econômica, política e ideológica em relação aos governos que administram o Estado burguês. Sem optar claramente pelas candidaturas de esquerda, perdem o moral e viram massa de manobra de interesses espúrios. José Cruz/ABr

Quem é Plinio Arruda Sampaio é militante histórico da esquerda brasileira, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). Atualmente é filiado ao Partido Socialismo e Liberdade (Psol), sigla pela qual é candidato à presidência da República. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), em 1954 militou na Juventude Universitária Católica, da qual foi presidente, e na Ação Popular, organização de esquerda surgida a partir dos movimentos leigos da Ação Católica Brasileira. Foi promotor público, assessor da Organização Mundial para a Alimentação e Agricultura (FAO-ONU), deputado federal constituinte e atualmente preside a Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), além de dirigir o site Correio da Cidadania.




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brasil

Por 2º turno, mídia age de forma articulada

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Mais fome

Marcello Casal Jr/ABr

A FAO-ONU realiza reunião em Roma, Itália, dia 24, para analisar o agravamento da crise alimentar que vitima milhões de pessoas em todo o mundo. Apesar da previsão de aumento das safras de grãos em 2010, a especulação nos preços dos alimentos básicos – em alguns países a farinha de trigo subiu até 40% nos últimos dois meses – deve provocar desabastecimento nas regiões mais pobres. A fome continua presente.

Sem luta

Seis centrais sindicais de trabalhadores – CUT, Força Sindical, CTB, CGTB, UGT, NCST – divulgaram nota conjunta para defender o aumento do salário mínimo de R$ 510,00 para R$ 560,00, a partir de 2011. É muito pouco se levar em consideração que o Dieese indica para recompor o poder de compra do mínimo algo próximo de R$2.000,00. Ou as centrais não querem lutar ou estão sem força para tanto.

Nova crise

De Peter S. Goodman, articulista do jornal The New York Times (6.9.2010): “Mas a economia americana, há muito tempo o motor do crescimento global, está novamente se inclinando para o perigo. Apesar de um regime de tratamentos agressivos, há crescentes temores de uma segunda recessão”. Será que se acontecer uma nova onda de quebradeira nos Estados Unidos o Brasil passará incólume? O secretário da Receita Federal, Otacílio Cartaxo

ELEIÇÕES Órgãos de imprensa e campanha de José Serra fazem “dueto” para tentar evitar fracasso eleitoral Renato Godoy de Toledo da Redação A menos de um mês das eleições presidenciais, a campanha de José Serra (PSDB) realiza uma tabela com os principais órgãos de imprensa, numa escalada de denúncias contra supostas irregularidades atribuídas a petistas. De concreto, até o momento, sabe-se que o sigilo fiscal do vice-presidente do PSDB, Eduardo Jorge, e da filha e do genro de José Serra, foram violados. No entanto, o próprio candidato admitiu que sabia das violações desde janeiro. No final do ano passado, uma reportagem veiculada pelo SBT mostrava a venda de dados sigilosos por camelôs no centro de São Paulo. A matéria repercutiu com políticos o acontecimento. Entre eles, destacou-se a declaração de José Serra afirmando ter tomado conhecimento do assunto e que deveriam investigar o caso. O tom das declarações, na época, foi ameno; nem de perto se compara à atual indignação do candidato.

A denúncia surge numa revista semanal, é repercutida nos jornais impressos, ganha a manchete nos telejornais e é martelada durante toda a semana na campanha de José Serra

Parece haver um caminho “natural” das notícias: a denúncia surge numa revista semanal, é repercutida nos jornais impressos, ganha a manchete nos telejornais e é martelada durante toda a semana na campanha de José Serra. Conspiração, sim Para Venício Lima, professor de comunicação da Universidade de Brasília (UnB), sempre que algum membro da academia aponta para uma ação articulada dos meios de comunicações, alguém o critica por defender uma “teoria da conspiração”. “Mas o fato é que conspirações existem, e, às vezes, funcionam. No caso da cobertura do escândalo do mensalão, o [professor da USP] Bernardo Kucinski comprovou que havia uma articulação e um comando. Hoje, não posso dizer que exista algum dado concreto que comprove essa articulação, mas um observador atento pode perceber que há um dueto: os ‘jornalões’ publicam uma manchete e ela aparece no horário eleitoral”, explica. Um exemplo dessa afirmação de Venício é a manchete da Folha de S. Paulo do dia 5 de setembro de 2010: “Consumidor de luz pagou R$ 1 bi por falha de Dilma”. A manchete foi criticada pela ombudsman do jornal, Suzana Singer, e gerou uma sátira ao jornal no Twitter. A hashtag #DilmaFactsByFolha foi a mais utilizada em todo o mundo e levou jornais como o inglês The Independent a noticiarem o assunto. O professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo, Luiz Tarcísio Teixeira Ferreira, aponta que há motivação política na maneira como as quebras de sigilo vêm sendo abordadas, ainda que

estas representem uma violação. “A mídia está certa em divulgar o fato, a população está certa em exigir que sejam punidos os responsáveis. Agora, o que não se pode é transformar esse fato em bandeira de luta eleitoral. O que eu vejo é que determinados veículos de comunicação estão exacerbando essa questão por conta dos interesses no candidato de oposição. A Veja e a Folha de S. Paulo têm esse perfil, como se não houvesse mais nada importante para ser divulgado em matéria de eleição, a não ser a violação do sigilo”, opina.

“Não tenho nenhuma hesitação em dizer que se trata de um escândalo político midiático, mas não sei dizer se ele pode ter os mesmo efeitos de 2006” Efeito 2006 Venício estudou os escândalos políticos midiáticos que pautaram os debates nas eleições de 2006 e aponta que há algumas semelhanças entre o que foi feito naquele momento com o atual cenário. “[O sociólogo John B.] Thompson, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, identifica várias situações em que os escândalos políticos midiáticos surgem com intuito de provocar um estrago na reputação de pessoas que participam do

Violações devem ser investigadas, mas não em âmbito eleitoral, diz jurista Justiça Eleitoral negou pedido de impugnação de Dilma feito por tucanos da Redação

Por outro lado, a revista Carta Capital apontou que uma exempresa da filha de José Serra teria quebrado o sigilo de mais de 60 milhões de brasileiros. A notícia, no entanto, não foi repercutida por nenhum órgão da grande imprensa. Após sucessivas rodadas de pesquisas de intenção de voto, foi constatado que a candidatura Dilma Rousseff (PT) estabilizou-se na casa dos 50%, enquanto Serra encontra-se mais perto dos 20% do que dos 30%. As constantes investidas da campanha, portanto, não surtiram efeito.

processo. Não tenho nenhuma hesitação em dizer que se trata de um escândalo político midiático, mas não sei dizer se ele pode ter os mesmo efeitos de 2006”, aponta. Em 2006, às vésperas da eleição presidencial, surgiu o chamado escândalo dos “aloprados”, em que alguns agentes ligados ao PT foram presos tentando comprar um dossiê contra o então candidato ao governo paulista José Serra. A revista Carta Capital denunciou que o Jornal Nacional, da Rede Globo, optou por se dedicar somente ao assunto e à divulgação da foto com o dinheiro dos petistas em detrimento de anunciar o acidente aéreo da companhia Gol. A vitória de Lula no primeiro turno era dada como certa, mas, após essa notícia e a exploração da cadeira vazia do petista no debate da TV Globo, às vésperas do pleito, Geraldo Alckmin (PSDB) conseguiu forçar um 2º turno. “É muito difícil estabelecer uma comparação com 2006. Mas, podese dizer que, hoje, a mídia não tem mais o mesmo poder. E temos esse contrapoder que é a internet. Há muito mais informações políticas disponíveis hoje, e a internet atinge um tecido social muito maior”, analisa Venício. O especialista comenta que o fato de as denúncias publicadas na mídia, pautadas na campanha de Serra, ainda não terem afetado o desempenho da petista nas pesquisas pode estar relacionado com a falta de um apelo imagético. “Há quem considere que esses escândalos carecem de imagens, como no caso do dinheiro dos aloprados. Neste caso, não há uma imagem que confere um poder muito maior”, comenta. (Colaborou Aline Scarso, da Radioagência NP)

O sigilo fiscal é um preceito constitucional e sua violação é crime. No entanto, não há qualquer indício que a violação contra membros do PSDB e parentes de José Serra tenha tido finalidade eleitoral. Essa é a opinião do professor de Direito Constitucional da PUC-SP, Luiz Tarcísio Teixeira Ferreira. O jurista considera que a Justiça Eleitoral agiu certo ao desconsiderar o pedido de investigação e de impugnação da candidatura Dilma Rousseff (PT) feito pela campanha de José Serra (PSDB).

Para ele, não há uma crise na Receita, como se tem noticiado na grande imprensa. “O que existe é um problema pontual na Receita Federal de Mauá (SP). Para quem conhece um pouco a administração pública, imaginar que a máquina pública não seja suscetível a uma série de problemas é não trabalhar com a realidade. Esses vazamentos acontecem? Acontecem. O que tem que ser feito é exatamente verificar onde e tentar melhorar o sistema. Atrás dos cargos e de um sistema, há pessoas. Se você suborna as pessoas, não tem sistema que resista”, aponta.

O professor considera equivocada e ineficaz a estratégia de usar a quebra de sigilo de forma eleitoral. “Acho que é um equívoco o candidato que teve o sigilo violado se ater nesse ponto como bandeira de luta eleitoral. É perder o foco. Está equivocado nesse sentido. Agora, por outro lado, não posso concordar que não haja problema nenhum que os cidadãos que declaram seus bens tenham seus dados levantados. Tem sim. Essa é uma determinação constitucional, a Constituição não aceita a violação”, explica. (RGT, colaborou Aline Scarso, da Radioagência NP)

Tática furada

Em agosto, no município de Vivaro, na Itália, cem militantes do grupo ambientalista “Ya Basta” destruíram uma plantação de milho transgênico. Além disso, o agricultor foi multado e poderá ser preso por plantio ilegal. Lá, o milho transgênico Mon810 continua proibido, como em boa parte da Europa. E a tática da Monsanto de estimular plantios clandestinos não está dando certo – ao contrário do que aconteceu no Brasil.

Contra rodeio

Multiplicam-se no estado de São Paulo as manifestações populares e as decisões judiciais contra a realização dos rodeios, principalmente com a argumentação de que tais eventos proporcionam maus tratos aos animais – cavalos e touros. Pelo menos 20 municípios já conquistaram essa proibição. Em setembro, os moradores de Limeira também entraram na luta contra os rodeios e fizeram várias passeatas. “Êta, pião!”

Música livre

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina decidiu isentar a Rádio Comunitária de Canoinhas de pagar os direitos autorais, cobrados pelo Ecad, das músicas veiculadas pela emissora. De acordo com a sentença, “Se a exposição pública de obra intelectual se realiza sem objetivo de lucro, não é devida a cobrança de direitos patrimoniais do autor”. A medida ajuda a viabilizar economicamente boa parte das rádios comunitárias.

Menor custo

Pesquisa da Unctad com 200 empresas transnacionais apontou o Brasil como sendo o 3º país mais atraente para o investimento estrangeiro, depois de China e Índia. Evidente, na visão dos empresários, o que interessa é ter lucro máximo mais rapidamente, o que tem sido possível com mão de obra barata, impostos baixos e total liberdade na remessa dos ganhos para a matriz. Enfim, o paraíso!

Energia precária

Pelo menos dez bairros de São Paulo sofreram queda de energia elétrica durante a chuva do dia 7 de setembro. Segundo o Sindicato dos Eletricitários essa situação deve ficar bem mais grave nos próximos meses, já que a empresa Eletropaulo, concessionária do serviço público, opera com número reduzido de funcionários, promove rotatividade para rebaixar salários e não faz o devido treinamento. Isso é que é privatização!

Superexploração

Estudo da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) revela que o índice de rotatividade do emprego no Brasil aumentou de 28,9%, em 1999, para 33,9%, em 2008. Aqui, o tempo médio de emprego é de 5,1 anos, enquanto que nos países europeus está entre 10 e 12 anos. Isso comprova a prática de demissões sem justa causa para fazer o rebaixamento dos salários. Mais uma violência permitida pelo Estado.


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brasil Sérgio Lima/Folhapress

“Os tucanos são contrários à reforma agrária” SÃO PAULO Para Gilmar Mauro, do MST, vitória do PSDB no estado significaria o aumento das privatizações e da repressão aos trabalhadores Sofia Prestes de São Paulo (SP) “A CONTINUIDADE do governo PSDB no estado de São Paulo é a continuidade do projeto neoliberal e da criminalização do MST”. A avaliação é de Gilmar Mauro, integrante da Direção Nacional do MST, que atua no estado de São Paulo. Em entrevista à Radioagência NP, Mauro revisa as políticas do governo José Serra (PSDB) em relação à reforma agrária no estado, aponta o crescimento do processo de repressão das lutas sociais durante sua gestão e o estímulo dado ao modelo agrícola de exportação de commodities em detrimento da produção de alimentos nos últimos anos. Para o sem-terra, a continuidade da administração tucana no estado significaria a conso-

lidação de um plano de privatização de vários serviços públicos, a piora da qualidade do ensino público e o acirramento da violência contra a classe trabalhadora.

“Está tudo praticamente paralisado, todos os processos de arrecadação de terras, porque não há iniciativa nenhuma do governo do estado em arrecadar” Em sua avaliação, como o governo Serra tratou a questão agrária e o MST à frente do governo estadual? Gilmar Mauro – Um primeiro aspecto é que nós nunca conseguimos fazer uma reunião com o Serra quando ele era governador. A única que fizemos foi com secretários de governo. Está tudo praticamente paralisado, todos os processos de arrecadação de terras, porque não há iniciativa nenhuma do governo do estado em arrecadar. Prova disso é que os trabalhadores do Itesp

[Instituto de Terras do Estado de São Paulo] fizeram uma greve recentemente porque há um desmonte desse órgão por parte do governo Serra. Então, no que se refere à reforma agrária, não foi feito nada, esta é a verdade: nem quanto ao acompanhamento de assentamentos, nem quanto à arrecadação de terras. No estado de São Paulo, não avançamos em absolutamente nada. Qual é a tarefa do estado em relação à arrecadação das terras devolutas? São necessárias várias iniciativas. A primeira é a iniciativa política, de querer arrecadar, ir para a região, como acontecia no governo Mario Covas [1995-2001]: “é terra do Estado, vamos arrecadar e transformar em reforma agrária”. A segunda é através das Procuradorias de Justiça: estimular a Procuradoria do estado a entrar com os pedidos de reivindicação dessas áreas, para que possam tomar a medida chamada de reivindicatória. Antes disso, ainda há uma série de tarefas que precisam ser tomadas do ponto de vista jurídico. E essas iniciativas são poucas no governo Serra. O que a gente sabe é que havia várias ações judiciais – inclusive, acabou de sair uma decisão considerando devolutas terras do Pontal do Paranapanema [interior do estado de São Paulo], mas isso é fruto de um trabalho anterior, feito há muito tempo atrás. O engra-

O candidato à presidência José Serra

“As ações policiais (…) têm acontecido de forma muito mais violenta, com um processo de repressão bastante intenso” çado é que o governo, ao invés de fazer isso, mandou para a Assembleia Legislativa um projeto de lei para regularizar o grilo no Pontal e em todo o estado. Então, além de não arrecadar terras, o governo Serra buscou regularizar o grilo. Qual foi o comportamento da polícia nas ações que envolveram trabalhadores do campo e da cidade sob o governo Serra? Primeiro, é preciso lembrar que não há interesse al-

gum em fazer a reforma agrária por parte do governo Serra e do tucanato em geral. Eles são contra a reforma agrária. Depois, as ações policiais, ultimamente (diferentemente de algum tempo atrás, quando havia algum tipo de diálogo), têm acontecido de forma muito mais violenta, com um processo de repressão bastante intenso. Aliás, não só conosco, mas com professores, com a própria Polícia Civil, trabalhadores urbanos, das favelas etc.

Para a população paulista, o que significaria uma nova vitória da candidatura PSDB no estado? Seria a consolidação de um projeto de privatização de vários serviços públicos. O estado de São Paulo está cheio de pedágios, não há mais por onde andar sem pagar. Este é um processo de privatização das estradas, em que o direito de ir e vir está sendo violado. Do ponto de vista da repressão e criminalização, também existe uma intensificação, e a prova disso é a incapacidade do governador Serra em dialogar com os setores da classe trabalhadora em luta. Sei, inclusive, que os próprios prefeitos do PSDB dizem ter muita dificuldade de dialogar com o Serra.

“Sei, inclusive, que os próprios prefeitos do PSDB dizem ter muita dificuldade de dialogar com o Serra” E a eventual vitória de José Serra para a presidência, o que pode representar? A linha política do Serra é a do grande capital. O que agravaria a situação para o nosso lado é que o governo tucano é antidemocrático e buscou, no período Fernando Henrique Cardoso, criminalizar os movimentos sociais. Tomando como exemplo a política de Serra no estado de São Paulo, que nunca sentou conosco, imagino que em nível nacional isso se repetiria, e haveria um aumento vertiginoso do processo de criminalização da pobreza. (Radioagência NP)


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brasil

“Sem controle social, os pobres passarão ao largo” Divulgação

PETRÓLEO Segundo pesquisador da área, os recursos provenientes de royalties cresceram 714% no norte fluminense e 520% no Rio Grande do Norte, nos últimos cinco anos – mas suas cidades permanecem paupérrimas

dos royalties como patrimônio da união, com finalidades eminentemente sociais, intergeracionais e com sentido de reparação de exclusões históricas das classes mais desfavorecidas, ninguém mais adequado para essa função do que o Tribunal de Contas da União. Deve-se somar, à fiscalização do TCU, a exercida por organizações como MST, OAB, ABI, CUT, Conlutas, dentro do controle social amplo.

“Pode-se chegar a uma condição em que o fundo criado terá tantas obrigações e possibilidades de uso que não se terá resultado efetivo prático”

Carol Cavassa e Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) PROFESSOR da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Frederico Romão tem se destacado pelos surpreendentes estudos na área do petróleo. Através de seu trabalho, foi revelado, por exemplo, que as principais cidades que recebem os royalties de exploração do mineral não têm revertido estes recursos em conquistas sociais – frequentemente estão entre os municípios de mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Nesta entrevista, Romão defende uma reestruturação social, política e jurídica das regras de exploração da riqueza oriunda do pré-sal. Defende, também, o controle social sobre o destino dos royalties e dá exemplos claros das quantias fabulares de dinheiro, em determinados municípios, cujo destino é pouco transparente, e estas não se revertem em melhoria social ou urbana. Brasil de Fato – Há bastante tempo, as suas pesquisas tratam de questões relacionadas ao modelo de exploração de petróleo no Brasil, os seus impactos para a economia do país e, consequentemente, para a população. Diante da descoberta do présal, um dos debates de maior relevância está focado em uma nova legislação para esse setor e a melhor forma de distribuição das verbas oriundas desses recursos, como os royalties, por exemplo. Fale sobre essa polêmica que ainda confunde a maioria dos cidadãos brasileiros. Frederico Romão – Precisa-se instaurar uma estrutura social, política e jurídica que garanta a destinação de toda a riqueza a ser produzida a partir do petróleo existente na camada pré-sal, na qual se insere a distribuição dos royalties para os seus mais justos proprietários, que são as grandes massas historicamente excluídas vivendo nas periferias das cidades; populações imensas que sobrevivem às margens das plantações de cana, de soja, à margem dos grandes latifúndios. O momento é oportuno para se caracterizar correta e eticamente a quem pertence a riqueza petróleo, que não é apenas a existente na camada pré-sal. Os frutos do minério armazenado há milhões de anos são propriedade particular de indivíduos, municípios, estados que, por obra do acaso ou sorte, possuem direito de propriedade? Ou essa riqueza deve ser entendida como patrimônio da nação? É riqueza dos que hoje estão vivendo nos municípios e estados produtores, ou precisa ser enten-

Plataforma da Petrobras localizada em Macaé, litoral do Rio de Janeiro

“Quando se discute a questão dos royalties, é preciso reafirmar que esta é uma riqueza da nação brasileira atual e futura” dida como patrimônio intergeracional? O petróleo precisa ser tratado como patrimônio do país. Seu uso deve servir ao conjunto da nação. O uso dessa riqueza produzida ao longo de milhares de anos não pode servir apenas aos que hoje vivem no Brasil. Por seu componente ético, é uma riqueza que precisa ser usufruída também pelas gerações futuras. Então, quando se discute a questão dos royalties, é preciso reafirmar que esta é uma riqueza da nação brasileira atual e futura, que deve servir social e economicamente de forma preferencial aos historicamente excluídos. Para a maioria dos especialistas, trabalhadores, parlamentares e integrantes dos movimentos sociais, os recursos do présal necessitam de controle social. E para a distribuição dos royalties? É preciso um controle de aplicação das verbas e mecanismos de acompanhamento de gastos para a população? Sem controle social sobre toda a riqueza do pré-sal, a grande maioria dos habitantes do Brasil irá mais uma vez ver passar ao largo. Será mais um ciclo econômico sem ter qualquer proveito, seja econômico ou social. Em toda a nossa história, passamos por diversos ciclos, alguns extrativos, como da borracha e do ouro. Outros foram ciclos de produção, a exemplo da cana-de-açúcar, do gado, do cacau. Todos eles resultaram em grandes produções de riquezas apropriadas de forma privada e excludente. Por conta da não existência de controle social, os setores populares da sociedade não usufruíram em nada desses períodos de desenvolvimento econômico. Ademais, esses diversos ciclos serviram apenas para conformar um país brutalmente desigual, no qual existem mecanismos muito próprios de reafirmação da desigualdade. É fundamental que se estabeleça muito claramente em lei como podem e como não podem ser gastos os recursos da produção de petróleo em seu conjunto, e os royalties em particular. É preciso ficar devidamente estabelecidos quais tipos de investimentos poderão ou não

ser feitos com esses recursos. Como garantia de que uma legislação socialmente justa será respeitada, é preciso definir também quais mecanismos de transparência e de controle social permitirão ao conjunto da população acompanhar se os interesses populares estão sendo preservados e a legislação, cumprida. Certamente, a ausência de controle social permitiu, no ano 2000, que Mossoró, cidade produtora de petróleo no Rio Grande do Norte, gastasse mais de R$ 1 milhão com cada vereador do município.

“A ausência de controle social permitiu, no ano 2000, que Mossoró, cidade produtora de petróleo no Rio Grande do Norte, gastasse mais de R$ 1 milhão com cada vereador do município” Algumas de suas pesquisas mostram que os índices de serviços como saneamento e educação de áreas com atividade exploratória de petróleo são os mesmos de cidades que não recebem os royalties. Dê exemplos que constatem essa realidade. Segundo a Agência Nacional de Petróleo (ANP), entre 1999 e 2009 foram distribuídos mais de R$ 19 bilhões de reais em royalties. Do total de 5.561 municípios, apenas 870 participam de forma direta dessa distribuição. É muito dinheiro. Até porque os municípios que receberam são de pequeno e médio porte, e a distribuição não ocorre de forma equitativa. Logo, alguns municípios gastam verdadeiras fábulas em recursos. No norte fluminense, os recursos distribuídos pelos royalties cresceram 714,01% em seis anos. A região do petróleo no Rio Grande do Norte cresceu sua arrecadação em 520% em cinco anos. Cresci-

mento semelhante se observa nos estados de Sergipe, Bahia e Espírito Santo. Apesar de receberem somas elevadas de recurso, uma simples visita a alguns dos municípios produtores de petróleo há décadas é suficiente para que se perceba que os royalties recebidos não fizeram com que se tornassem diferentes das cidades do entorno que não recebem. Esta é a realidade de municípios como Carmópolis, em Sergipe, e Catu, na Bahia. No Rio Grande do Norte, quando se compara indicadores como número de alfabetizados, abastecimento de água, saneamento básico e coleta de lixo, percebe-se que não existe diferença entre a região produtora de petróleo e o restante do estado. Na Bahia, quando se faz comparação semelhante no tocante ao abastecimento de água, energia elétrica e coleta de lixo, a realidade é a mesma do Rio Grande do Norte. O norte fluminense arrecada em torno de 75% dos royalties distribuídos no Brasil; entretanto, em 2001, teve uma evasão escolar no ensino fundamental de 6,26%, superior à do estado do Rio de Janeiro, que foi de 5,61%. O mesmo norte fluminense possui uma estrutura hospitalar menor do que a de outras regiões do estado. Na sua opinião, a proposta que mudou a divisão dos royalties entre estados e municípios pode ser uma forma de resolução desses problemas? Ou é preciso um novo mecanismo que facilite a fiscalização federal nas prefeituras? Penso que as premissas que têm marcado a discussão sobre a distribuição dos royalties são absolutamente

incorretas. Nos parece que o sentido é de apropriação privada de um recurso que é eminentemente social. É algo mais ou menos como “a riqueza está aí, é muita... e preciso me apropriar dela agora”. Este parece ser o sentimento hegemônico das classes dominantes.

“É algo mais ou menos como ‘a riqueza está aí, é muita... e preciso me apropriar dela agora’. Este parece ser o sentimento hegemônico das classes dominantes” É verdade que existe, por parte de alguns grupos, inclusive do governo federal, ideias positivas, como a criação de um “fundo soberano” para investimentos de cunho social, considerando, inclusive, aspectos intergeracionais. Infelizmente, percebe-se também que, à medida que a pressão das elites – interessadas apenas em usufruir da riqueza de forma privada – cresce, ampliam-se as possibilidades de uso do fundo soberano. Em síntese, pode-se chegar a uma condição em que o fundo criado terá tantas obrigações e possibilidades de uso que não se terá resultado efetivo prático, a exemplo do que foi a CPMF para a saúde. Quanto a quem deveria exercer a fiscalização, acreditamos que deve ser o Tribunal de Contas da União [TCU]. Se caracterizarmos os recursos

Durante essa mudança, diversos especialistas e parlamentares polemizaram o assunto, afirmando que os estados produtores de petróleo sofrerão com a redução das verbas dos royalties, principalmente por causa dos impactos ambientais. Isto é verídico ou trata-se de mais um mito que justifica o mal uso desses recursos? É mito. Os impactos ambientais devem ser devidamente amparados quando dos contratos com as petroleiras que explorarão as reservas. Deve-se garantir que as mesmas executem seus procedimentos operacionais dentro das mais atuais técnicas de segurança. Com a força de trabalho adequadamente treinada, tendo acesso a equipamentos em boas condições de uso. Trabalhadores devidamente representados por seus sindicatos, que, através de suas ações, contribuirão com a fiscalização no tocante ao cumprimento da legislação e das condições de trabalho. Ademais, existem os seguros, que devem prever as possíveis intercorrências quando estas ocorrerem. Hoje, a forma pela qual os royalties são distribuídos e gastos representa um verdadeiro desperdício; são absolutamente inefetivos para as populações carentes dos diversos municípios produtores. Os dados de diversas pesquisas deixam isso muito evidente. Quem efetivamente perde com a mudança na legislação, caso venham se instituir formas democráticas e transparentes do uso dos royalties, são grupos minoritários que têm se refestelado com toda essa riqueza de forma privada e excludente ao longo de décadas. Isamu Mitsueda

O professor Frederico Romão


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internacional Moshe Milner/GPO

Palestinos rejeitam negociações com Israel

Muitos consideram que o presidente da ANP, Mahmoud Abbas, sequer tem legitimidade para negociar pelo povo palestino

ORIENTE MÉDIO Principais partidos políticos da resistência rechaçam iniciativa; para eles, não passa de um jogo de cena de EUA e Israel Dafne Melo da Redação NO INÍCIO de agosto, a Autoridade Nacional Palestina (ANP) e o Estado de Israel, após 20 meses sem diálogo, abriram uma nova rodada de negociações. Na pauta, ainda não definida, deverão constar os mesmos pontos de quase todas as conversações entre israelenses e palestinos nos últimos anos: reconhecimento de Israel como um Estado judeu, retirada das colônias judias da Cisjordânia, reconhecimento do Estado palestino e efetivação do direito de retorno dos refugiados palestinos. A estes, soma-se, desta vez, uma pauta mais recente: o fim do bloqueio à Faixa de Gaza, iniciado em 2007 depois que o grupo islâmico Hamas, vitorioso das eleições parlamentares de 2006, tomou o poder na região após duros enfrentamentos com o Fatah, partido nacionalista de caráter laico que governa a Cisjordânia por meio da ANP. Os Estados Unidos, que lideraram, ao lado de Israel, o não reconhecimento ao triunfo do Hamas, entram mais uma vez como país mediador, agora representado pela secretária de Estado Hillary Clinton. Mais do mesmo Para boa parte dos palestinos e israelenses, os pontos de pauta e a mediação estadunidense não são as únicas semelhanças em relação aos acordos de paz anteriores: a opinião predominante é a de que, mais uma vez, as atuais negociações não devem colher frutos. Uma pesquisa feita por um canal de TV israelense apontou que 60% dos entrevistados não acreditam que have-

rá avanços. Por parte dos palestinos, a falta de perspectiva é a mesma. Dessa vez, até representantes dos governos têm manifestado sua descrença. “Alguns integrantes da comissão de negociações da ANP declararam, em diversas ocasiões, que não têm esperança de obter algum resultado positivo”, afirma o palestino de Hebron, Ahmad Jaradat, do Centro Alternativo de Informação (AIC, na sigla em inglês). Do lado israelense, o ministro de Assuntos Exteriores israelense, Avigdor Lieberman, afirmou que a paz é um “objetivo inalcançável nesta geração”, e que não via sentido em negociar com os palestinos. Líder do partido de extremadireita Israel Beiteinu, Lieberman se integrou ao Executivo israelense ao aderir à coalizão formada pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, do partido Likud, após as eleições parlamentares de fevereiro do ano passado.

A opinião predominante é a de que, mais uma vez, as atuais negociações não devem colher frutos Jogo de cena Para Yoav Bar, membro do movimento Abnaa el-Balad, que reúne judeus e palestinos nos territórios ocupados em 1948, as negociações são apenas um jogo de cena, cuja única função é criar uma falsa percepção de que os EUA

Mahmoud Abbas cumprimenta Benjamin Netanyahu em recente encontro nos EUA

se empenham em construir a paz no Oriente Médio. Uma das principais promessas do presidente estadunidense Barack Obama é justamente o fim do conflito na região. Além disso, para o mundo, fica a imagem de que há real disposição de Israel em negociar. “É evidente que as negociações são um beco sem saída. O maior perigo é que elas aliviam a pressão que hoje existe por mudanças reais, como o fim do bloqueio à Faixa de Gaza. Dá ao imperialismo estadunidense e israelense margem de manobra e legitimidade, justamente quando passam a ser mais questionados internacionalmente”, opina Bar. Outro ponto criticado é que, mesmo antes do diálogo se iniciar de fato [a segunda rodada estava marcada para dia 14, dia do fechamento desta edição], Israel já sinalizou negativamente em relação a uma das condições que a ANP exigiu para sentarse à mesa: a continuidade da paralisação da construção de colônias judias na Cisjordânia, território ocupado ilegalmente, de acordo com diversos analistas de direito internacional. Há dez meses, Israel afirma ter congelado as construções. A informação é contestada

Congelamento de construção de colônias é parcial da Redação Uma das condições exigidas pela Autoridade Nacional Palestina (ANP) para seguir com as negociações com Israel é que seja paralisada a construção de colônias judias na Cisjordânia, território palestino invadido por Israel em 1967, na Guerra dos Seis Dias. Israel alega que há dez meses congelou as construções no território palestino. Entretanto, os palestinos desmentem a afirmação. “Nada parou. Em Jerusalém Oriental, por exemplo, Israel acelerou sua política de limpeza étnica”, conta Yoav Bar, integrante do movimento Abnaa elBalad. Uma prova concreta é o bairro de Silwan, próximo à Cidade Velha, onde dezenas de famílias estão sendo ameaçadas de despejo pela prefeitura de Israel, que quer construir no lugar um parque em homena-

gem ao rei David. Para Yoav, Israel não está disposto a abrir mão da Cisjordânia. “Pelo contrário. Israel tem a palavra dos Estados Unidos de que todas as colônias serão anexadas. Não é de estranhar, portanto, que eles estejam construindo mais e mais.”

“Não queremos apenas que isto pare, mas que eles se retirem daqui, que respeitem as resoluções da ONU e desocupem toda a Cisjordânia”

dânia. Há duas autoridades. Objetivamente, isso faz com que Abbas não seja o representante do povo palestino. Para além disso, a maior parte dos partidos políticos – como Hamas, Frente Popular pela Libertação da Palestina, Partido do Povo Palestino e Frente Democrática pela Libertação da Palestina – é contra essas negociações. Organizações não governamentais e sindicatos também estão contra, em sua maioria. A percepção geral é que essa rodada não pode nos ajudar em absolutamente nada”, avalia Ahmad Jaradat, do AIC.

Confisco de terras De acordo com a ONG israelense Peace Now, pelo menos 13 mil casas de colonos estão na fila para serem construídas logo após o fim do congelamento, no dia 26 de setembro. Ahmad Jaradat afirma que, ainda que parte das construções de casas tenha parado, a ocupação ilegal não se dá apenas assim, mas com o confisco de terras e recursos naturais, o que não foi paralisado nos últimos dez meses. “A política de ocupação não é apenas construir as colônias, mas confiscar terras e casas. Os israelenses estão retalhando o território da Cisjordânia. Sabemos sempre de novas casas sendo construídas, de novas rodovias. E, assim, eles vão retalhando nosso território. Não queremos apenas que isto pare, mas que eles se retirem daqui, que respeitem as resoluções da ONU e desocupem toda a Cisjordânia”, defende. (DM)

pelos palestinos (leia a matéria abaixo), que afirmam que as investidas apenas diminuíram, mas não pararam.

“É evidente que as negociações são um beco sem saída. O maior perigo é que elas aliviam a pressão que hoje existe por mudanças reais, como o fim do bloqueio à Faixa de Gaza” As autoridades israelenses, entretanto, já declararam que não há chances de se prolongar o congelamento. Benjamin Netanyahu declarou que tal medida não será renovada. “Israel não construirá todas as residências já aprovadas, mas também não podemos congelar a vida dos residentes da Judeia e Samaria [nomes bíblicos pelos quais os judeus se referem à Cisjordânia]”.

Legitimidade Hoje, há cerca de 500 mil israelenses em 145 colônias na Cisjordânia. No total, de acordo com as Nações Unidas, Israel já ocupa 42% da região, contabilizando estradas, residências e áreas ditas de interesse militar. Da Faixa de Gaza, os colonos foram obrigados a sair em 2005, após a proposta de retirada unilateral do primeiro-ministro israelense da época, Ariel Sharon, ter sido decretada. Analistas avaliam que tal decisão tenha sido uma jogada estratégica do Estado de Israel, com o objetivo de aumentar o controle sobre a Cisjordânia. Como Israel reconhece apenas a ANP, pois considera o Hamas um grupo terrorista, aceita negociar somente com o Fatah, que foi derrotado nas eleições legislativas de 2006, mas se manteve no governo, com apoio dos Estados Unidos, União Europeia e Rússia. Novas eleições deviam ter ocorrido no ano passado, mas não foram convocadas. Por isso, muitos consideram que o presidente da ANP, Mahmoud Abbas, sequer tem legitimidade para negociar pelo povo palestino. “Os palestinos hoje estão divididos entre a Faixa de Gaza e a Cisjor-

Refugiados Um dos principais objetivos de Israel nessa rodada é que a ANP o reconheça Israel como um Estado judeu, especificamente. Na opinião de muitas organizações palestinas, caso o faça, a ANP irá criar as condições para que o sionismo expulse os árabes que ainda vivem dentro da região ocupada em 1948 (Israel) e feche de vez a possibilidade de retorno dos refugiados, uma das mais importantes reivindicações dos palestinos. Hoje, há cerca de 7,1 milhões de refugiados palestinos em todo o mundo, o que representa 67% de toda a população palestina (10,6 milhões). Desses, apenas 427 mil continuam no interior da “Palestina histórica”, ou seja, o que hoje é Israel, Faixa de Gaza e Cisjordânia. O maior grupo de refugiados tem origem na Nakba (como os palestinos chamam a ocupação de 1948) – cerca de 5,7 milhões, englobando os expulsos e seus descendentes. O tema é evitado a todo custo pelos israelenses, já que, na prática, acabaria com o que os sionistas, quando ainda planejavam a primeira ocupação, chamavam de “equilíbrio populacional”, ou seja, fazer com que o número de árabes fosse o menor possível e sempre mantido sob controle. A volta dos refugiados representaria a impossibilidade desse equilíbrio, que vem sendo ameaçado também pelo crescimento da população árabe de cidadania israelense.

Uma história de negociações frustradas 1993 –

Após a Primeira Intifada, iniciam-se os Acordos de Oslo, criticado pela grande maioria da resistência palestina por reconhecer a legitimidade do Estado de Israel e por aceitar que Israel administrasse parte do território da Cisjordânia. O acordo, com mediação do então presidente estadunidense Bill Clinton, criou a Autoridade Nacional Palestina (ANP), que seria o embrião de um Estado palestino independente, o que nunca se concretizou. Questões centrais para os palestinos, como o direito de volta dos refugiados, assegurada pela resolução 194 das Nações Unidas, e a retirada das colônias judias de Gaza e Cisjordânia, são deixadas de lado.

2000 – Os EUA, ainda sob o comando de Bill Clinton, promovem os Acordos de Camp David. O objetivo era tratar de temas como fronteiras, Jerusalém e os refugiados, que foram deixados de lado nos Acordos de Oslo. Não houve acordo entre o então presidente da ANP, Yasser Arafat, e o então premiê israelense, Ehud Barak. As negociações ocorreram em um contexto de grande insatisfação popular na Palestina, pouco antes de estourar a Segunda Intifada. A ANP não abriu mão do retorno dos refugiados nem da saída dos colonos da Cisjordânia, ambas medidas apoiadas por determinações da ONU. Israel não aceitou.

2003 – Chamado de “Mapa da Paz”, tratou-se de um plano formulado pelo chamado “Quarteto”: EUA, Rússia, União Europeia e ONU. Não chegou a ser uma negociação, mas apontou uma série de medidas. Tinha a solução dos dois estados como premissa, mas não apresentava uma proposta concreta de quais seriam as fronteiras do Estado palestino.

2007 –

A chamada Conferência de Annapolis colocou frente a frente o então premiê israelense Ehud Olmert e Mahmoud Abbas. Participaram também o “Quarteto” e alguns países árabes. O Hamas declarou que não reconheceria qualquer definição das negociações, interrompidas pela operação “Chumbo Fundido”, contra Gaza, no final de 2008.


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internacional

O ETA está começando a dizer adeus? Reprodução

PAÍS BASCO O ponto mais significativo da declaração do grupo separatista não está na trégua em si, mas em seus termos: na decisão de não realizar mais ações armadas de forma incondicional e unilateral Raphael Tsavkko Garcia APÓS 51 ANOS de luta armada contra a ditadura de Francisco Franco (1939-1975), contra a política de ilegalizações de partidos, prisões políticas e tortura por parte do regime democrático espanhol, o ETA anunciou, em 5 de setembro, um cessar-fogo incondicional, unilateral e por tempo indeterminado, o que poderia supor uma trégua definitiva e, até mesmo, o desmantelamento do grupo, caso as condições fossem propícias. A declaração do ETA tem por objetivo, segundo o vídeo enviado à rede BBC e especialistas, a instalação da paz e da consolidação de um processo democrático; busca impor uma agenda de negociações ao governo espanhol, que, até então, tem se recusado a negociar diretamente com o grupo, ou mesmo com seu braço político, o ilegalizado Batasuna, agora sob o nome de Ezker Abertzalea (Esquerda Nacionalista). No vídeo veiculado pela BBC e logo depois reproduzido pelo diário nacionalista basco Gara (Nós), o ETA anuncia sua intenção de depor as armas de forma incondicional e, o que surge como uma novidade, de forma verificável.

A declaração do ETA tem por objetivo, segundo o vídeo enviado à rede BBC e especialistas, a instalação da paz e da consolidação de um processo democrático Debates O processo de discussão no seio da Esquerda Nacionalista teve seu início visível no documento “Zutik Euskal Herria” (De pé, País Basco), lançado em fevereiro de 2010 por militantes do Batasuna, que pregava um processo amplo de negociações e o abandono sistemático da violência como arma política, que seria substituída pela acumulação de forças populares. Na esteira desse documento, a Rede Lokarri, grupo que vem impulsionando mesas de diálogo entre os cidadãos bascos, tomou a frente do processo e convidou, no ano passado, o negociador sul-africano Brian Currin para indicar os caminhos para a paz. Esta se materializou em março deste ano, na Declaração de Bruxelas, documento assinado por mais de 20 lideranças mundiais de peso – dentre elas, a Fundação Nelson Mandela, Frederik de Klerk, Desmond Tutu, Albert Reynolds, Christopher Mitchell e John Hume. A declaração pressionava por um processo de negociação baseado nos Princípios Mitchell e servia como demonstração, por parte da comunidade internacional, de que os olhos do mundo estavam sobre o País Basco e que tanto o ETA quanto a Espanha deveriam realizar esforços pesados para a resolução do conflito. Princípios Mitchell Este é o 11º cessar-fogo do grupo, mas, sem dúvida, o primeiro com termos tão claros e dentro dos Princípios Mitchell, um conjunto de seis regras básicas formuladas pelo senador estadunidense George Mitchell, que pregam, por exemplo, que um lado use meios ex-

clusivamente pacíficos e democráticos para resolver questões políticas, através do desarmamento de todas as organizações paramilitares de forma verificável e por uma comissão independente; e, do outro lado, que as prisões arbitrárias, torturas e “castigos” sejam suspensas e que políticas de prevenção sejam criadas e implementadas. Os mesmos princípios nortearam o processo de paz na Irlanda do Norte, culminando com a entrega das armas por parte do IRA (Exército Republicano Irlandês) e da relativa pacificação dos grupos mais radicais. Um ponto central dos Princípios Mitchell é a aceitação incondicional e respeito aos termos de qualquer acordo alcançado através de negociações sem exclusões, multipartidárias, o que, para o ETA, significaria a legalização de seu braço político e a volta à normalidade democrática. Segundo diversas fontes, está em curso um processo de negociações e consultas na base da Esquerda Nacionalista, já há alguns meses, que culminou com a recente declaração. Desde o começo desse processo de consultas internas, o ETA se absteve de levar a cabo ações armadas e se comprometeu a encontrar uma solução democrática para o conflito. Repressão Infelizmente, o mesmo não vale para o outro lado. Ações repressivas, prisões arbitrárias, tortura e até mesmo invasões e tumulto em festas populares são as marcas da atual administração basca, nas mãos de uma coalizão composta por PP (Partido Popular) e Psoe (Partido Socialista Operário Espanhol), logo, partidos completamente avessos ao nacionalismo basco, cujas lideranças sequer dominam o idioma nativo. Este talvez seja o momento decisivo do conflito armado no País Basco. Pela primeira vez em décadas, o braço político parece ter tomado o controle, ou, ao menos, sobrepujado o braço militar e tornado possível uma via democrática para o conflito. Há meses, a Esquerda Nacionalista se movia na direção de um processo democrático e buscava formar bases para uma negociação com o governo. De um lado, a consulta interna levada a cabo pelo ETA; do outro, a política de conversações do Batasuna com outras formações nacionalistas, o que levou a uma onda de prisões de lideranças abertzales (nacionalista de esquerda). Sem saída Arnaldo Otegi, porta-voz do Batasuna, na cadeia há quase um ano, foi o primeiro a tentar abrir um canal de diálogo com o ETA em busca de um marco democrático e do fim da violência. A sua prisão, portanto, é motivo de descontentamento não só da militância nacionalista, mas também da esquerda em geral, que não compreende os motivos para o principal impulsionador do processo de paz ser tratado como criminoso. O recente acordo eleitoral firmado entre a Esquerda Nacionalista e o partido Eusko Alkartasuna (Social-democracia Basca, EA), reafirmado pelo documento “Princípios da mudança política e social em Navarra: Decálogo progressista, de esquerdas e abertzale”, publicado em 10 de setembro, é um indicativo deste amplo processo de negociações, e uma tentativa de legalizar o Batasuna. Outras formações, como o Aralar, antigo racha do Batasuna, também iniciaram conversações para a normalização

Imagem de vídeo gravado pelo ETA quando anunciou um cessar-fogo incondicional

do processo democrático basco e para a formação de uma frente ampla nacionalista e de esquerda. No seio da Ezker Abertzalea já nascia, há algum tempo, a ideia de que, se o ETA não renunciasse à luta armada e aceitasse negociar, ele seria desligado do grupo, passando a agir sem qualquer cobertura política, vendo-se só, abandonado. Desde a fundação do primeiro partido abertzale, o Herri Batasuna (Unidade Popular), em 1978, passando pelo Euskal Herritarrok (Nós, cidadãos bascos), em 1998, e, finalmente, o Batasuna (Unidade), em 2000-2001, o ETA jamais havia perdido o controle efetivo sobre o aparato institucional do que se convencionou chamar de Movimiento de Liberación Nacional Vasco (Movimento de Libertação Nacional Basco, MLMB).

Segundo diversas fontes, está em curso um processo de negociações e consultas na base da Esquerda Nacionalista já há alguns meses, que culminou com a recente declaração Esperança No meio nacionalista em geral, a declaração do ETA foi vista com entusiasmo. Partidos como Ezker Abertzalea, Alternatiba, Eusko Alkartasuna; organizações e iniciativas como a Lokarri, Independistak, Adierazi EH; além de diversos outros grupos e indivíduos, receberam a trégua com esperança e energia renovada. Por outro lado, o governo basco, numa aliança entre os partidos de caráter pró-espanhol PP e Psoe, acredita ser insuficiente a declaração. Rodolfo Ares (PSE-EE/Psoe), conselheiro do Interior do governo basco, afirmou que a declaração do ETA, além disso, é “ambígua e fraudulenta”, e que tanto o governo espanhol quanto o basco “não estão em trégua” e continuarão a atuar com “a mesma decisão e firmeza”, ou seja, com a mesma violência e intransigência. Pensamento próximo compartilha o governo espanhol e o primeiro-ministro José Luis Zapatero (Psoe), que afirmou mais uma vez sua intenção de não negociar com o ETA. Para esses governantes, apenas a dissolução incondicional e completa do grupo seria sufi-

ciente, ao passo que não dão qualquer condição real para que essa esperança/vontade se concretize. Sem acordo Não está na pauta do governo espanhol o repatriamento ao País Basco das centenas de presos políticos mantidos em cadeias espalhadas por toda a Espanha; nem a revisão da pena dos enfermos e dos que já a cumpriram; ou ainda o fim das torturas e da política de incomunicação; e, muito menos, a disposição para legalizar as di-

versas formações nacionalistas proibidas desde 2003. Porém, mesmo entre os “espanholistas” e os nacionalistas bascos de direita – PNV, ou Partido Nacionalista Basco –, o rechaço à trégua não é unânime. Joseba Egibar, presidente do PNV na região basca de Guipúzcoa, acredita que é o momento certo pra se voltar a negociar, pensamento compartilhado por Jesús Eguiguren, presidente do PSE-EE/ Psoe do País Basco. Mas, efetivamente, o ponto mais significativo da declara-

ção do ETA não está na trégua em si, mas em seus termos: na decisão de não realizar mais ações armadas de forma incondicional e unilateral, ou seja, decisão que, como bem interpretou o jornalista catalão Jordi Armadans, significaria que o ETA está, timidamente, começando a dizer adeus. Raphael Tsavkko Garcia, jornalista e blogueiro, é graduado em Relações Internacionais (PUC-SP) e mestrando em Comunicação (Cásper Líbero).


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américa latina Stewart Cutler/CC

Um chamado à unidade

camente deficitários de mão de obra, como os de agricultores, construtores, professores, policiais, operários industriais e outros”, diz a declaração da CTC. Também serão gerados empregos em setores nos quais são executados atualmente importantes investimentos, como é o caso do petróleo, da construção, biotecnologia, indústria farmacêutica e turismo. Além disso, serão impulsionadas outras produções de bens e ampliada a exportação de serviços.

CUBA Central de Trabalhadores de Cuba afirma que a entidade deve manter “o controle sistemático” sobre o processo de corte de meio milhão de empregos estatais Patrícia Grogg de Havana (Cuba) A REORGANIZAÇÃO trabalhista em Cuba, que implica a eliminação de meio milhão de vagas até o primeiro trimestre de 2011 – medida anunciada em 13 de setembro –, constitui um dos aspectos mais complexos e sensíveis das reformas assumidas pelo presidente Raúl Castro. “Durante anos, estiveram me dizendo que o pleno emprego era uma conquista da Revolução e, agora, me falam de quadros inflados. Não entendo nada”, queixou-se um empregado do comércio, que não quis se identificar, ao ser perguntado pela IPS sobre esse espinhoso assunto. Em uma declaração divulgada no dia 13, a Central de Trabalhadores de Cuba (CTC), única permitida no país, afirma que o sindicato deve manter “o controle sistemático” do reajuste e recorda que, nas transformações empreendidas, a “unidade dos trabalhadores” continuará sendo “a arma estratégica mais importante”. Atualização econômica A questão também é tema de análise em reuniões convocadas pelo governante Partido Comunista de Cuba

(PCC) nos centros de trabalho para assegurar o consenso político e social que deve acompanhar o processo, que, após cinco anos, deverá reduzir em mais de um milhão de empregos o pessoal do majoritário setor estatal. Segundo a CTC, a redução nos próximos meses de 500 mil postos de trabalho está prevista nas “diretrizes” para 2011 e tem correspondência com “o processo de atualização do modelo econômico e as projeções da economia para o período 20112015”. Esse plano ainda não foi divulgado. “Essas medidas de disponibilidade trabalhista buscam a identificação dos postos de trabalhos que não são indispensáveis, e a recolocação em outro, onde seja necessária e possível a reorientação trabalhista dos que as ocupam”, diz o texto sindical. O documento também reitera que, para absorver a mão de obra que ficará “disponível”, serão ampliadas e diversificadas opções de trabalho autônomo como aluguel de quartos, cooperativas e trabalho por conta própria, “para onde se moverão centenas de milhares de trabalhadores nos próximos anos”. A população cubana ocupada chegava a pouco mais de 5,7 milhões de pessoas em 2009,

Após cinco anos, processo deverá reduzir em mais de um milhão de empregos o setor estatal

Segundo a CTC, a redução nos próximos meses de 500 mil postos de trabalho (…) tem correspondência com “o processo de atualização do modelo econômico e as projeções da economia para o período 2011-2015” sendo cerca de 2 milhões, de mulheres. Produtividade Com a reestruturação, o governo espera elevar a produtividade, melhorar a disciplina e a eficiência no aproveitamento dos recursos. “É preciso apagar para sempre a noção de que Cuba é o único país do mundo em que se pode viver sem trabalhar”, disse Raúl Castro em agosto. A eventual perda do emprego trouxe ao setor trabalhista novas preocupações, mas também grandes expectati-

vas pelo alcance que pode ter o trabalho por conta própria, cujo regime tributário e garantias para funcionamento ainda não são conhecidos. Em um trabalho inédito sobre a atualização do modelo econômico a que a IPS teve acesso, o economista Omar Everleny Pérez Villanueva fala que essa abertura ao trabalho autônomo deve superar insuficiências que até agora dificultaram seu desempenho. A esse respeito, mencionou problemas com a compra de insumos, política fiscal, mecanismos quase ine-

xistentes de ajuda financeira e controles estatais, bem como restrições para a subcontratação de força de trabalho, entre outros. Aumentar a oferta Na opinião de Omar, dentro das propostas de expansão do trabalho por conta própria, pode ser analisada a formação de pequenas e médias empresas que, entre outras vantagens, permitiriam aumentar a oferta de bens e serviços. Em 2004, havia em Cuba 166.700 trabalhadores por conta própria, dos quais 39.600 eram mulheres. Em seus anos de auge, a partir de 1995, chegou a haver 200 mil, mas, depois, foi caindo o número de registrados, em parte porque o governo congelou as licenças para muitas atividades antes permitidas. No setor estatal, até agora o principal empregador, “só será possível ir cobrindo as vagas que forem imprescindíveis, em trabalhos histori-

Progressivamente A CTC assegura que “as mudanças na política de emprego serão aplicadas de forma gradual e progressiva, começando de imediato, e que, por sua magnitude e incidência, atingirão todos os setores”. Além disso, “já não será possível aplicar a fórmula de proteger ou subsidiar com salários de forma indefinida os trabalhadores” que perderem seus empregos. “Na identificação, traslado e recolocação para outras áreas, um papel muito importante será o da gestão e disposição do pessoal interessado”, destacou a organização sindical, enfatizando ainda que a “idoneidade demonstrada” será o princípio determinante sobre quem ocupará as vagas disponíveis. A CTC repete o critério oficial de que o Estado “não pode e nem deve continuar mantendo empresas, entidades produtivas, de serviços e com pessoal inflado, com perdas que pesam na economia, que são contraproducentes e geram maus hábitos, deformando a conduta dos trabalhadores”. “É necessário elevar a produção e a qualidade dos serviços, reduzir os elevados gastos sociais e eliminar gratuidades indevidas, subsídios excessivos, o estudo como fonte de emprego e a aposentadoria antecipada”, alertou a central. Envolverde/IPS


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américa latina

Muito além do narcotráfico Reprodução

VIOLÊNCIA NO MÉXICO Dos policiais aos cidadãos comuns, todos tentam se aproveitar da situação de vulnerabilidade dos milhares de jovens que cruzam o país para tentar chegar aos Estados Unidos

ra: “Na primeira, o trem tombou. Caí ao lado do trilho e tive muita sorte, porque consegui pegar de novo o trem, só fiquei com uns raspões. Mas conheço gente que ficou sem as pernas. Não recomendo essa viagem a ninguém, mas vou seguir meu sonho. É minha vida e estou decidido”.

“À migração mexicana, não importa te deportar, e sim tirar o que você tiver. Há muita discriminação no México contra todos os centroamericanos”

de Tapachula e Cuautitlán Izcalli (México) A CHACINA que vitimou 72 imigrantes em Tamaulipas, no norte do México, no final de agosto, chamou a atenção do mundo sobre uma realidade assustadora. Um quadro generalizado de violência espreita os imigrantes que tentam cruzar o país rumo ao sonho dourado de chegar aos Estados Unidos. Das autoridades federais a funcionários locais, do crime organizado ao cidadão comum, todos querem tirar algum tipo de proveito da fragilidade dessas pessoas, que viajam sem documento e proteção legal. Os casos de violência começam no sul do país, tão logo se atravessa a fronteira em lugares como o rio Suchiate, cuja travessia de balsa custa 2 dólares, sem que ninguém lhe peça os documentos – nem mesmo as autoridades mexicanas que monitoram o lugar a partir de uma ponte próxima. Perto dali, em Tapachula, no estado de Chiapas, fronteira com a Guatemala, está uma Casa do Migrante que integra a rede mantida pela congregação católica dos Scalabrinianos. Reunidos na rua em frente ao albergue, dezenas de hondurenhos e salvadorenhos, principalmente, esperam pelo momento de seguir viagem. Cigarros, refrigerantes, comida e histórias, especialmente muitas histórias, circulam entre os presentes. A explicação para estar ali é que nunca muda. “Estou aqui porque eu quero ir à América”, é a resposta que todos têm na ponta da língua. Na roda está Francisco*, que vem de Honduras. Ele foi assaltado no caminho e, agora, anda “conseguindo algum para poder seguir viagem”. Os assaltantes, explica ele, estavam vestidos com roupas civis e lhe tiraram absolutamente todos os bens, quando ele estava no trem: “Tinham facões. Nos tiraram do trem e levaram tudo. Quem resistia, apanhava”. O hondurenho teve de voltar para Tapachula, mas já planeja retomar a viagem assim que “resolver o problema da imigração”.

O hondurenho Adolfo, 30 anos, acaba de chegar à cidade. Um dia antes de sua chegada, foi assaltado exatamente na travessia entre Guatemala e México

Leis

Policial da patrulha da fronteira estadunidense exibe imigrantes presos em operação

Os casos de violência começam no sul do país, tão logo se atravessa a fronteira em lugares como o rio Suchiate, cuja travessia de balsa custa 2 dólares, sem que ninguém lhe peça os documentos Ele já esteve nos EUA trabalhando como empregado doméstico em Minesota, estado no norte dos país. “A ‘migra’ te pega na empresa onde você trabalha. Já me levaram três vezes, e tive de voltar para meu país”, conta. “Migra” é o apelido que os imigrantes dão às polícias migratórias. A última vez que Ernesto deixou El Salvador foi há oito meses. Ele conseguiu chegar à fronteira norte do México: “Depois, fui pego pela migração mexicana, que me prendeu. Minha família diz que eu sou louco, mas eu tenho que continuar tentando”. Alberto, também de Honduras, juntou-se a outros dois compatriotas para facilitar a viagem: “Você tem que caminhar de uma aldeia a outra, conseguindo algum trabalho, e seguir pelas montanhas, evitando os postos de fiscalização. É um longo caminho”. “Ninguém lhe dá de graça a passagem, você tem que ter até para pagar as kombis. Às vezes, é o mesmo motorista que te assalta ou te denuncia para a migração. Você pode até tentar se passar por mexicano, mas, na hora em que lhe pedem o documento, aí já era”. O hondurenho Adolfo, 30 anos, acaba de chegar à cidade. Um dia antes de sua chegada, foi assaltado exatamente na travessia entre Guatemala e México: “Invadiram a balsa. Levaram tudo que eu tinha”. Não é sua primeira viagem, esclarece. Em 1997, ele viu um assaltante tentando agarrar a irmã de um jovem que viajava próximo a ele. A menina resistiu, e o homem disparou a escopeta que carregava. Ela morreu na hora. O irmão reagiu e acabou sendo morto também. “Isso foi um pouco antes de Arriaga, aqui em Chiapas”. O rosto do narrador fica triste por um momento. “Que ninguém olhe para trás, nos disseram. Ninguém se virou, e os 11 que íamos seguimos em frente, porque o trem estava prestes a sair para o norte”. Travessia

Caso de polícia

O salvadorenho Ernesto também está ali. “Eles te assaltam exatamente quando você deixa seu país. Logo na fronteira com a Guatemala, a polícia já lhe pede dinheiro. Depois, há os ladrões que te tomam o dinheiro da passagem que você demorou tanto tempo para juntar”, comenta.

Luis, de El Salvador, lembra a primeira vez que fez a travessia para o México. “Eu não sabia de nada, e o cara que me conduzia na câmara [a jangada feita de câmaras de pneus] me ameaçou. ‘Está vendo aquele ali do outro lado? Se você não me pagar tanto, te entrego para ele’”. Na fronteira norte, continua recordando, é ainda pior. Uma vez, ten-

tou a travessia em Nuevo Laredo, mas, lembra-se, a coisa ali é complicada, porque é região dominada pelos Zetas, o conhecido cartel mexicano que é o principal suspeito da chacina ocorrida em agosto. “Eles compraram todos ali na fronteira. Ou melhor, se apossaram de tudo, têm até cabines e cobram 2 mil pesos [155 dólares] pela passagem”. Roger Mitchell diz: “A ‘migra’ mexicana aqui é um pouco lerda. O bom é que não pedem muito dinheiro”. “A polícia municipal, sim, esta pede muito. Quando me pararam, da outra vez, me surraram para que eu desse dinheiro. Depois, me prenderam por duas horas”. Luis, 32 anos, é pescador. Conta que saiu de El Salvador pela falta de oportunidades: “Eu não podia manter a minha empresa, pois é dada prioridade a multinacionais estrangeiras. Você acredita que El Salvador melhorou quando implantaram o dólar por lá [em 2001]? Isso não era futuro para nós, era futuro para os Estados Unidos. O custo da cesta básica cresceu, e os salários permaneceram os mesmos”. A política estadunidense é assunto que os imigrantes como Luis acompanham com interesse. Para ele, com Obama, nada melhorou: “Se tudo fosse aberto, como diz o Nafta [da sigla em inglês para o Tratado de Livre Comércio da América do Norte, do qual fazem parte EUA, México e Canadá], poderíamos ir e vir, sem problema. Mas não é assim. Acho que os Estados Unidos paga ao México uma certa quantia de dinheiro por cada migrante que prende. Se fizerem a reforma migratória [promessa de campanha de Obama], será para o benefício dos que já estão lá, não para nós que ainda estamos do lado de cá”.

viagem que fazem agarrados a trens cargueiros. “Em Honduras, sou agricultor, mas não temos terra lá, temos que arrendar. Saí com um irmão para trabalhar em Chiapas, mas não conseguimos trabalho e ficamos sem dinheiro. Daí, pensamos em tentar a sorte mais ao norte”, conta ele. Juan saiu há 16 dias de seu país, e há dez tomou o trem em Chiapas, na fronteira sul do México. “A partir daí, você começa a ouvir histórias de assaltos. No México, todo mundo te assalta. A polícia, os próprios camponeses, que são tão pobres como a gente, os vigias dos trens...”, conta ele.

“Parece que já passou o mais perigoso. Há muitos que ficam no caminho. São assaltados, mortos, ou caem dos trens. Eu tenho um irmão em Houston [Texas]. Ele trabalha de jardineiro” Em Lechería, o agricultor se sente otimista: “Parece que já passou o mais perigoso. Há muitos que ficam no caminho. São assaltados, mortos, ou caem dos trens. Eu tenho um irmão em Houston [Texas]. Ele trabalha de jardineiro. Não tenho ideia de quanto tempo mais me falta para chegar. Calculo que uns 15 dias. Em geral, mais ou menos, a viagem tarda um mês”. O guatemalteco Pablo descreve o clima de terror que

envolve as viagens: “Por todo o caminho, você vai escutando os rumores sobre o perigo. Ouve-se de tudo. Que os Zetas vão te sequestrar. Que já pegaram um e levaram a um quarto. Que, se te pegam, te prendem e te pedem um número telefônico de um familiar nos EUA ou em seu país de origem para tirar dinheiro da família. Se não lhe mandam o dinheiro, no mínimo, você leva uma surra. Isso se não te matarem. E ainda tem os assaltantes: tiram tudo o que você tiver. Mas não trazemos quase nada conosco. Costumamos viajar sem dinheiro e vamos pedindo às pessoas pelo caminho”. Para que suportar tudo isso? “Alguns dizem que está dura a situação nos EUA. Mas é lá que está o dinheiro. É melhor aguentar os maus-tratos para poder viver. Que importa ser bem tratado se você não tiver nada no bolso?” O hondurenho Danilo tem só 18 anos: “Não há dúvida de que a migração mexicana é mais dura que a gringa [dos EUA]. A mexicana é mais corrupta. Te pegam e te soltam se você der dinheiro. Se não tiver, te batem e tiram o que você tiver. À migração mexicana, não importa te deportar, e sim tirar o que você tiver. Há muita discriminação no México contra todos os centro-americanos. Sempre estão perseguindo você. A ‘migra’ te faz perguntas muito bobas. Pedem para você cantar o hino mexicano, perguntam quantas tunas [frutas do cacto] tem o nopal [cacto] desenhado na bandeira nacional do México. Ainda que você diga, eles te batem e te maltratam. Aqui em Lechería, já estamos mais para lá do que para cá, mas ainda não sabemos se vamos chegar. Daqui em diante, os coiotes te cobram 1.200 dólares”. O guatemalteco Aurelio tem 21 anos e já está na segunda tentativa de cruzar a frontei-

Muito se falou, nos últimos meses, da ultrarrígida lei de imigração do estado do Arizona, que abriu as portas para detenções injustificadas de cidadãos suspeitos, mas entidades de direitos humanos apontam a falta de discussão sobre casos de detenção de mexicanos por sua aparência. As organizações têm denunciado casos como o de três cidadãos detidos no início do ano pela ‘migra’ em Tapachula simplesmente porque não apresentaram seus documentos e por terem modos e sotaque de guatemaltecos, na visão dos agentes. O espanhol García-Ruiz Rubio, que trabalha como voluntário em centros de assistência aos imigrantes em Chiapas, critica o papel do México diante do debate sobre as leis de imigração. “Fazem uma lei como a do Arizona e aparecem os políticos, artistas, para assinar manifestos, publicar artigos contra... enchem a boca ao falar de direitos humanos. Mas o México é um país muito racista com os imigrantes centro-americanos”, diz ele. Em seu trabalho, ele testemunha a exploração da mão de obra barata dos imigrantes. Caminhonetes passam em frente aos albergues que acolhem essas pessoas para leválas todos os dias: “Trabalham de pedreiros, carregadores ou na colheita de frutas, ganhando diárias. Muitas vezes, nem são pagos”. Fermina Rodríguez Velasco, coordenadora do Centro de Direitos Humanos Fray Matías de Córdova (CDHFMC), identifica as diferenças entre as fronteiras do sul e a do norte do México: “Os casos de violação dos direitos humanos que ocorrem no sul são pouco conhecidos; aqui morrem como no norte, só que, aqui, os enterram em valas comuns. Morrem na mão de assaltantes, delinquentes, e ninguém diz nada”. (Desinformémonos) *a pedido dos entrevistados, os nomes dos imigrantes são todos fictícios. Reprodução

Clima de terror

Juan, 23 anos, de Honduras, encontramos já bem mais ao norte, em Lechería, estação de trem no município de Cuautitlán Izcalli, região metropolitana da Cidade do México, que é famoso ponto de encontro de imigrantes e coiotes-guias que os primeiros contratam para ser levados aos EUA, mas que não oferecem garantia alguma de sucesso na viagem. Lá, o ânimo dos imigrantes é maior porque, quando se chega a esse ponto, já se pensa ter vencido a maior parte da arriscada

Placa sinaliza presença de pedestres cruzando estrada próxima à fronteira


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