Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 8 • Número 397
São Paulo, de 7 a 13 de outubro de 2010
A luta das organizações bolivianas para serem ouvidas Diante do protagonismo do presidente boliviano, Evo Morales, na luta contra a crise ambiental no cenário internacional, movimentos sociais vêm intensificando a pressão para mudanças internas neste campo. As organizações já haviam evidenciado sua insatisfação com o tratamento dado pelo governo da Bolívia às questões ligadas ao meio ambiente durante a Conferência Mundial dos Povos sobre Mudanças Climáticas, realizada em abril deste ano na cidade de Cochabamba. Em 28 de setembro, elas promoveram mais um encontro para tentar reverter a situação. O principal alvo de insatisfação é a falta de atenção do governo ao direito à consulta prévia aos povos indígenas e camponeses sobre os empreendimentos e obras de infraestrutura em seus territórios. Pág. 9
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Movimentos se articulam para derrotar José Serra A Central Única dos Trabalhadores (CUT), a organização Consulta Popular e a Via Campesina Brasil, dentre outras entidades, estão convencidas de que, no segundo turno, é necessário realizar uma campanha para derrotar José Serra (PSDB). De acordo com elas, uma eventual vitória tucana representaria um retrocesso para os trabalhadores.“Seria a
volta daqueles que destruíram o Estado brasileiro”, garante Artur Henrique, presidente da CUT. Gilberto Cervinski, da Via Campesina, acrescenta que, apesar das contradições em torno da candidatura de Dilma Rousseff (PT), o PSDB representa o neoliberalismo, com a precarização do trabalho, perda de soberania e retirada de direitos dos brasileiros. Págs. 2, 4 e 5 Presidencia de la República del Ecuador
A fome e a pobreza no no centro do capitalismo Segundo o último relatório do Ministério da Agricultura dos Estados Unidos, 49,1 milhões de pessoas (14,6% dos lares) passaram fome no país em 2008, ano marcado pela recessão e por aumentos de preços dos alimentos. A pesquisa, realizada pelo Programa de Investigações acerca da Assistência Alimentar e Nutrição, mostrou que, em um ano, o número de famintos aumentou quase um terço. Nos lares em que vivem crianças, a cifra de famintos sobe para 22,5%. É a maior taxa de “insegurança alimentar” registrada nos EUA desde 1995, quando o primeiro levantamento nacional foi realizado. Pág. 12
Contra a precarização, 10 milhões nas ruas Em artigo, Breno Bringel e Janaina Stronzake explicam as razões que levaram cerca de 10 milhões de trabalhadores espanhóis às ruas no dia 29 de setembro. Precarização das relações de trabalho e privatização dos setores públicos são dois dos fatores que explicam a mobilização. Pág. 11
Democracia efetiva, só com participação popular
O importante é competir, mas com espírito solidário Nas areias da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, de ugandenses a russos “deram um show de bola”. Representantes de moradores de rua, descendentes indígenas, ex-dependentes químicos, povos em situação de risco e de países em estado de guerra estiveram presentes. Entre os dias 19 e 26 de setembro, o Campeonato Mundial de Futebol Social teve a participação de 48 países e contou com 300 jogos. Pág. 8
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O educador e advogado popular Jacques Alfonsin mostra, em entrevista ao Brasil de Fato, como, por meio do processo de luta pela regularização fundiária das comunidades que vivem no morro Santa Teresa, em Porto Alegre (RS), a vitória das comunidades podem ocorrer concretamente. Para ele, é a participação popular a chave deste tipo de conquista. Pág. 3
Milhares de equatorianos marcham, em rua de Quito, em apoio a Rafael Correa
Esquerda rechaça golpe, mas quer mais de Correa
ISSN 1978-5134
A rebelião da Polícia Nacional do Equador, que manteve o presidente Rafael Correa detido em um hospital por 12
horas no dia 30 de outubro, não teve força suficiente para se converter em um golpe de fato, mas, nem por isso,
tira a gravidade do ocorrido. Apesar de condenar a tentativa de golpe, movimentos e analistas afirmam que Correa
precisa aumentar o diálogo com os movimentos e aprofundar a chamada Revolução Cidadã. Págs. 10 e 11 STF
Estruturas do STF: o Judiciário politizado
Págs. 6 e 7
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de 7 a 13 de outubro de 2010
editorial CONCLUÍDO o primeiro turno do processo eleitoral, há inúmeras análises políticas que buscam interpretar o resultado das urnas e vislumbrar, de imediato, sinais dos possíveis resultados do segundo turno que será realizado dia 31. Junto com tantas outras análises que surgirão, o trabalho dos marqueteiros dos partidos políticos, que estão na disputa, a busca de alianças com os partidos derrotados e as mudanças no que insistem em denominar de programa de governo, na tentativa de agradar o senso comum, irão predominar nos espaços noticiosos até o último dia deste mês. A campanha eleitoral ficou polarizada entre candidata do PT, Dilma Roussef, e o candidato tucano José Serra. O resultado eleitoral, ainda por motivos não totalmente decifráveis, desfez essa polarização com os quase 20 milhões de votos que obteve a candidata Marina da Silva do PV. Assim, não se concretizou a vitória da candidata do governo Lula no primeiro turno, como era a expectativa. É possível que o fracasso da eleição plebiscitária – polarização entre o governo FHC e o governo Lula – se deva aos ataques e manipulações de baixo nível protagonizadas pela mídia burguesa, pela sórdida campanha realizada pelos setores religiosos mais conservadores das
debate
O governo dos nossos pesadelos igrejas Católica e Evangélicas à candidatura de Dilma. Mas também não é possível ignorar que uma parcela significativa dos eleitores se sentiu decepcionada com a despolitização da campanha, que se propunha a confrontar com o governo neoliberal dos tucanos. Denunciar os descalabros que sãos os 16 anos de administração tucana, em São Paulo, ficou ausente da campanha. A corrupção acobertada pelo domínio sobre as assembleias legislativas, sobre os tribunais de contas, setores do poder judiciário e a completa subordinação da mídia aos seus interesses asseguram a impunidade dos governo tucanos e vicejam lideranças políticas sem nenhum compromisso com a ética e com a verdade. Deixar as bandeiras históricas da classe trabalhadora aos candidatos sem chances de vitória eleitoral foi um erro da candidata petista. Militantes sociais, mesmos decepcionados com o governo Lula, mas cientes do que significa uma vitória tucana, sentiram-se órfãos nesta campanha. Estavam sem porta-vozes das bandeiras das lutas populares, e os discursos bem elaborados, nos gabinetes acadêmicos, não os seduziram.
Lastimável foi também a atuação das autoridades eleitorais nesse processo. A história há de registrar a participação ativa da controvertida vice-procuradora-geral eleitoral, doutora Sandra Cureau. Sua tentativa de cercear a revista Carta Capital, por não estar subordinada aos interesses do candidato tucano, e a resposta do editor da publicação semanal, Mino Carta, estarão registrados tanto nas escolas de jornalismo quanto nas do poder judiciário eleitoral. Coube ainda ao poder judiciário deixar indefinida a questão da “ficha limpa”. Milhares de eleitores votaram em candidatos e candidatas que não sabiam se estavam ou não aptos para disputar a eleição. Se o Tribunal agora decidir pela inaptidão do candidato, seus eleitores fizeram papel de bobos, não porque são, mas pela incompetência daquele. O mesmo se pode dizer da exigência legal da documentação para votar. A lei exigia o título de eleitor e um documento oficial com foto. É a bizarra situação jurídica em que um documento oficial tem que comprovar a veracidade de outro docu-
mento. O Supremo Tribunal Federal revogou a lei exigiu obrigatoriamente um documento oficial com foto. Jogou-se o título de eleitor, definido pelas autoridades eleitorais que não teria foto, na lata do lixo. Coube ainda mais um deslize do Supremo Tribunal Federal: a descoberta que um de seus membros, Gilmar Mendes, (Dantas, para alguns da mídia), foi monitorado pelo candidato tucano na sessão que julgou a necessidade ou não de dois documentos para votar. Até o momento, nenhum pronunciamento do STF sobre esse caso vergonhoso a que foi submetido. O impeachment do Mendes/Dantas se torna um imperativo. Sobre a mídia burguesa, talvez tenha sido a maior conquista da sociedade brasileira neste processo eleitoral. Ela mesma – frente a fragilidade dos partidos direitistas – se outorgou o papel de ser o partido de oposição ao governo Lula. Não poupou espaços em seus noticiários para algumas lideranças do campo de esquerda – desde que fosse para falar de escândalos pontuais e atacar a pessoalmente a candidata Dilma. Não hesitou em massacrar o
crônica
Ronaldo Pagotto
currículo de vida de pessoas públicas, mesmo sem provas. Recorreu á receptador de cargas de mercadorias roubadas, repassador de notas falsas de dinheiro, condenado pela justiça, para noticiar fatos não comprovados. “Assassinou” um senador (Romeu Tuma) hospitalizado. Enfim, caiu a máscara da mídia burguesa. Ganhamos! Nesse sentido, precisamos consolidar esta vitória conquistando uma lei de controle social sobre os meios de comunicação, que garantam a liberdade de expressão e o direito à informação ao povo brasileiro. A bandeira da democratização da comunicação é da esquerda e dos movimentos sociais, não dos demotucanos e dos proprietários dos meios de comunicação. Agora é o espaço de luta do segundo turno das eleições. Não há espaço encima do muro. Os movimentos populares da Via Campesina brasileira, já no início do processo eleitoral, tomaram a definição de impedir o retrocesso ao governo neoliberal representado pela candidatura de José Serra. É hora de levar essa decisão, buscando a unidade, com todos os movimentos populares, sindicais e estudantis, do campo e da cidade. Se a Dilma não é o governo dos nossos sonhos, certamente o Serra é o governo dos nossos pesadelos.
Altamiro Borges
Aborto é armadilha da direita NAS MANCHETES dos jornalões e nos monólogos da televisão, a direita tenta forçar a candidatura Dilma Rousseff a discutir unicamente o tema do aborto. A mídia evita tratar dos grandes temas nacionais, das diferenças abissais de projetos entre os dois concorrentes no segundo turno e se esforça para impor uma pauta carregada de ignorância, preconceitos e dogmas religiosos. A armadilha é visível. Na campanha, Dilma tratou o tema como uma questão de saúde pública, evitando visões simplistas. Já o demotucano Serra até poderia ser mais facilmente prejudicado pelos preconceitos. Como ministro da Saúde de FHC, ele liberou o uso da “pílula do dia seguinte”. Em 1998, ele também foi demonizado pela cúpula da Igreja Católica por normatizar a realização do aborto nos casos previstos em lei. Agora, ele simplesmente foi poupado pela direita e sua mídia.
Todos contra Serra! O GOLPE EM Honduras, em junho do ano passado, marcou um novo período de contra ofensiva imperialista em nosso continente. Na semana passada, a tentativa de golpe no Equador e a comprovada participação de assessores da CIA nas eleições parlamentares da Venezuela evidenciam que as forças imperialistas farão de tudo para conter qualquer avanço dos setores populares. Nesse sentido, cada eleição converte-se num confronto entre os setores que querem prosseguir com a ofensiva neoliberal e a resistência popular da América Latina. As eleições brasileiras não fogem desse cenário. Até agora, o que temos visto é uma ofensiva das forças conservadoras e reacionárias, numa articulação entre a grande mídia e a candidatura Serra (juntamente com seus candidatos aos governos e parlamento), que utilizou toda sua capacidade manipulatória e inventiva para derrotar a candidatura de Dilma Rousseff. Sem limites. Ainda com tudo isso tiveram um desempenho pífio e estão em aparente desespero. Nomes simbólicos como Yeda Crusius, Marco Maciel, Heráclito Fortes, Mão Santa, Romeu Tuma, Arthur Virgilio, Cesar Maia e Tasso Jereissati, foram esmagados nas urnas. As candidaturas do campo progressista e da base aliada do governo venceram em onze estados logo no primeiro turno, tendo ainda a disputa em vários outros. As contundentes vitórias no Rio Grande do Sul, Bahia e Sergipe representaram importantes derrotas da direita. A isto se soma o crescimento das bancadas
progressistas no Senado e Câmara dos Deputados e bom crescimento nos estaduais. A candidatura Dilma fez 46,7% dos votos e ultrapassou os votos do Lula em 2006, mas com uma expectativa de que poderia ganhar no primeiro turno, acabou reanimando a direita. Não podemos esquecer de que a candidatura Serra não conseguiu galvanizar a oposição ao Governo Lula. Seu discurso direitista e mentiroso, e as manipulações da imprensa burguesa, o colocaram numa posição de direita ideológica derrotada. Com a concretização do segundo turno, tentam se recompor, construir alianças que superem este quadro e jogam todas as energias nesta disputa decisiva. Serão capazes de criar todo tipo de incidentes e difamações. Na reta final, a campanha de Serra acusou Dilma de ser contra a vida e a família, o que obteve penetração entre eleitores de algumas igrejas evangélicas e da igreja católica. Tudo mostra que serão capazes de qualquer expediente para ganhar. O segundo turno é um momento entre duas opções, e antes de cairmos no encanto de que é positivo e poderá favorecer uma maior explicitação das diferenças e avançar nas propostas, o que ocorre é uma maior pressão para rebaixar, ainda mais, os compromissos da candidatura Dilma com as forças populares e bandeiras históricas, a começar por toda a ofensiva sobre o tema do aborto. A grande mídia fará tudo para pautar os interesses que representa: das forças antipopulares, antidemocráticas e antinacionais.
Estamos diante de um momento decisivo. Não podemos correr o risco de tratar as candidaturas Dilma e Serra como iguais. Ainda que as diversas forças políticas de esquerda tenham concepções diferenciadas sobre o Governo Lula e a candidatura da Dilma, inclusive tendo lançado candidatos/as, neste momento temos duas forças em disputa e ganha centralidade o desafio de somarmos todas as forças para derrotar o inimigo comum. A superioridade de Dilma Rousseff, com mais de quatorze pontos percentuais sobre seu adversário, corresponde à ampla base de apoio popular de sua candidatura e é uma clara expressão da existência de uma maioria em favor da continuidade do processo iniciado a partir de 2003. As forças progressistas e do movimento popular engajados na campanha de Dilma vão enfrentar o segundo turno, como disse a candidata, com garra e energia. Este momento, não admite vacilações. É preciso derrotar Serra, as candidaturas do seu campo nos Estados e tudo o que ele representa. Esperamos que esse momento permita que todos os setores, preservando suas diferenças e autonomia, possam caminhar juntos ante a uma ameaça real, concreta e de impacto na conjuntura brasileira, latina e mundial. E nossos inimigos, os inimigos da classe trabalhadora, dos setores populares, das organizações sociais e forças progressistas sabem disso e estão empenhados em derrotar Dilma. Façamos a nossa tarefa: derrotar Serra e seu projeto. Ronaldo Pagotto é militante da organização Consulta Popular e graduado em Direito
A demonização de Dilma Entre as baixarias da campanha da direita, muitos avaliam que este tema foi um dos responsáveis pelas surpresas nos últimos dias do primeiro turno – queda de Dilma Rousseff, identificada com as lutas feministas, e crescimento de Marina Silva, evangélica e conservadora. Serra, blindado pela mídia, acabou se beneficiando da polêmica travada entre as duas candidatas mulheres. O jogo sujo foi pesado. A Regional Sul da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que contempla São Paulo, divulgou documento nas missas em que “recomenda encarecidamente” que não se vote em Dilma por ser “contra a vida”. Pela internet, um culto da Igreja Batista de Curitiba, visto por quase 3 milhões de pessoas, mostra cenas fortes de fetos mortos e despedaçados, e o pastor pedindo que não se vote na petista, que “defende o aborto e o casamento gay”.
Deve-se evitar a armadilha imposta pela direita. O que está em debate, na sucessão, é o futuro do Brasil Campanha fascista de boataria O impacto desta boataria foi corrosivo. Marcelo Déda, reeleito em Sergipe, garante que “a queda de Dilma e o crescimento de Marina no final se deveram ao recrudescimento do fundamentalismo religioso. É o efeito do púlpito nas igrejas”. No mesmo rumo, Eduardo Campos, reeleito em Pernambuco, afirma que “nos últimos quinze dias, especialmente, houve uma campanha fascista de boataria”. O senador Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, lembra que “o pastor pode ter dificuldade para conseguir votos dos fiéis. Para tirar voto, o efeito é inverso”. Apesar de vários alertas – o blogueiro Rodrigo Vianna foi um dos primeiros a advertir sobre os estragos nas bases católicas e evangélicas –, o comando de campanha de Dilma, sempre muito hermético, não percebeu o efeito nefasto da onda de boatos. Agora, finalmente ela reconhece que subestimou o tema. “Foi uma campanha perversa, com inverdades sobre o que penso, o que digo. Vamos fazer um movimento no sentido de esclarecer com muita tranquilidade nossas posições... A gente percebeu tarde, mas percebeu”, explica a candidata. Da cegueira ao exagero O comando de campanha afirma, agora, que a reconquista destes votos passou a ser prioridade no segundo turno. Ou seja, de um extremo ao outro – da cegueira ao exagero. De fato, é necessário esclarecer a sociedade, principalmente os setores religiosos mais conservadores. Mas este não é o principal tema da campanha, nem sequer para os movimentos feministas mais lúcidos. Deve-se evitar a armadilha imposta pela direita. O que está em debate, na sucessão, é o futuro do Brasil. Altamiro Borges é jornalista, blogueiro e presidente do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias de Moura • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
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brasil
Para advogado, regularização depende de participação popular ENTREVISTA Democracia direta foi protagonizada pela população na campanha do morro Santa Teresa, avalia Jacques Alfonsin Marcelo Träsel/CC
Aline Rodrigues e Katia Marko de Porto Alegre (RS) QUANDO apresentou um Projeto de Lei (PL) para permutar o terreno da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase) do Rio Grande do Sul, que se encontra em mais ou menos metade da área onde vivem milhares de famílias no morro Santa Teresa em Porto Alegre, o Governo do estado cometeu seu maior erro político. Precisamente porque ignorou leis que refletem conquistas habitacionais históricas do povo brasileiro. É assim que o educador e advogado popular, Jacques Alfonsin, recorda o PL 388 enviado no final do ano passado ao Legislativo gaúcho, ao observar que uma intervenção na área urbana que envolva a população – tanto no trato de sua dignidade e cidadania quanto na preservação de sua cultura e identidade - não pode acontecer sem uma audiência prévia com os moradores. Tudo isso pode ser encontrado na política urbana prevista pela Constituição brasileira. Para a regularização fundiária das comunidades que vivem no morro Santa Teresa, no entanto, o advogado faz um alerta, salientando que, embora a luta pela permanência da população nas seis vilas encontradas no morro possa contar com diversos dispositivos jurídicos, avanços que efetivem o direito de habitação dos moradores, que podem ainda correr o risco de realocação, só serão possíveis se essas leis forem incorporadas pela participação popular. Nesta entrevista, o professor considera positiva a nova bandeira erguida pela campanha do Santa Teresa, a criação de um parque ambiental naquela área, além da descentralização da Fase. “O meio ambiente é um bem de uso comum do povo”, resume ele, ao analisar também a vitória das comunidades, dos movimentos sociais, ambientalistas e sindicatos, quando o Executivo estadual retirou o PL 388. É nesse sentido que Alfonsin encontra ainda a grande significação desta campanha: “Quem ainda não acredita em democracia participativa, se tivesse presenciado o que aconteceu no morro Santa Teresa, mudaria de ideia”. Brasil de Fato – Pelo Estatuto da Cidade, há famílias do morro Santa Teresa com direito a morar na região. Pelas Constituições Federal e gaúcha, elas têm direito de permanecer no local. Além disso, há uma ação civil pública que exige a regularização fundiária e urbanística no Santa Teresa e uma Medida Provisória que assegura às famílias o direito de moradia. O senhor acredita que, mesmo com todos esses dispositivos jurídicos, ainda são altas as chances de a população ter que sair do morro? Jacques Alfonsin - Embora eu pudesse responder que, do ponto de vista estritamente jurídico, elas sejam até inexistentes, não há como garantir que a alienação ou a permuta da área não seja tentada outra vez, pois todos os direitos convergentes sobre este imóvel (moradia de milhares de famílias, preservação do meio ambiente, por exemplo) já existiam antes que o Executivo estadual encaminhasse o projeto que pedia autorização da Assembleia Legislativa para a sua alienação. Se uma nova tentativa for empreendida, contudo, a recente vitória do povo da região e seus apoiadores, contra o projeto
e entidades envolvidas na defesa do morro? Esse tripé corresponde a regularização fundiária, a criação do parque de preservação ambiental e a descentralização da Fase?
O meio ambiente, de acordo com o artigo 225 da Constituição Federal, é um bem de uso comum do povo, e o artigo 1º, parágrafo único da Constituição Federal, reconhece que todo o poder é dele que emana. Manifestação do movimento de moradores do Morro Santa Teresa contra a venda do terreno da Fase
primitivo, tem grande chance de se repetir, não só pelo fato de que as razões de oposição à pretensão do Executivo estão muito mais fortalecidas politicamente agora, mas também porque o apoio jurídico dessas razões já obteve reflexo significativo junto ao Poder Judiciário, fator relevante esse que será bem aproveitado, quando for considerado oportuno.
Quem ainda não acredita em democracia participativa, se tivesse presenciado o que aconteceu no Morro Santa Teresa, mudaria de ideia. O que o senhor acha, nos processos de realocação de comunidades, de se priorizar que a comunidade saia unida para não perder sua identidade? Existe alguma disposição sobre isso no direito? Aí residiu, quem sabe, o maior erro político-jurídico do projeto que foi encaminhado à Assembleia. A possibilidade de implementação de qualquer política pública de intervenção em áreas como a do Morro Santa Teresa, que afete, de alguma forma, a população que nelas exerça o seu direito humano fundamental de morar, não pode mais ser feita sem sua audiência prévia. Isso está expresso, entre outras bases legais, no artigo 2º do Estatuto da Cidade, lei 10257 de 2001, que tratam das diretrizes gerais da política urbana, e nos artigos 43 e 45 da mesma lei, que tratam da gestão democrática da cidade. São disposições legais que refletem conquistas populares de extraordinária significação em favor, especialmente, de famílias pobres, com quais sempre se lidou como se fossem coisas, sem o respeito devido à sua dignidade, cidadania, cultura e identidade, como a própria pergunta lembra. A correção que o Governo do Estado tentou fazer depois, na redação do projeto, quando se deu conta do erro, já tinha contra si uma resistência política de vulto fundada, justamente, na
consciência que o povo da região e seus apoiadores tomaram de que ele desrespeitara os direitos humanos e tal desrespeito fechava definitivamente a saída para qualquer diálogo ou negociação. Como acontece o processo de regularização fundiária de comunidades que ocuparam uma área urbanística? Direta ou indiretamente, quase todo o Estatuto da Cidade prevê maneiras dessa política pública alcançar efetividade, o mesmo podendose dizer da Medida Provisória 2220/2001, particularmente quando a regularização visa garantir o direito à moradia. A lei 11977, do ano de 2009, formalizando o programa federal “Minha Casa Minha Vida”, igualmente procura facilitar essa forma de ação pública, em benefício de populações carentes, inclusive naquilo que diz respeito ao cumprimento da lei dos registros públicos de imóveis. Não se pode dizer que um trabalho deste tipo seja fácil e rápido. Três coisas sobre ele, todavia, devem ser sublinhadas. A primeira, sem dúvida a mais importante, é que sem a participação do próprio povo residente na área, em parceria com o poder público, assumindo o protagonismo do que deve ser feito, haverá pouca chance de se obter sucesso num empreendimento deste tipo. A segunda, é que a inspiração do projeto de regularização não perca de vista o seu principal fim, ou seja, o de alcançar tranquilidade às famílias moradoras das áreas a serem reguladas; de que todo esse trabalho visa garantirlhes segurança de posse, e não
o patrocínio dessa ou daquela ideologia, desse ou daquele grupo de poder, partido, movimento, religião ou o que for. A terceira, a de que para esta garantia já existe instrumentação jurídica capaz de sustentá-la, coisa essa que não deve descuidar da técnica políticojurídica indispensável, sob pena de, em se querendo fazer tudo “de qualquer jeito”, chegar-se ao jeito nenhum.
Sobre o Ministério Público, aliás, tem-se de tomar cuidado com alguns dos seus integrantes. Esta instituição não é indivisível e monolítica como se proclama Entre as prioridades da campanha em defesa do morro está a criação de um grande parque ecológico, com acesso a toda a população. Além de preservar o restante da mata nativa do Santa Teresa, esse parque poderá criar postos de trabalho às comunidades das vilas. O Ministério Público pode intervir para a implantação desse parque de preservação ambiental? O meio ambiente, de acordo com o artigo 225 da Constituição Federal, é um bem de uso comum do povo, e o artigo
1º, parágrafo único da Constituição Federal, reconhece que todo o poder é dele que emana. Assim, o povo não precisa da tutela do Ministério Público para reivindicar esse superior destino para a área do Morro e pode tomar todas as providências que entender cabíveis para isso. Em vez de efeito negativo, o que eu vejo é uma elogiável proposta de se dar ao povo da cidade mais uma área de lazer e entretenimento, além de proteger melhor o privilegiado meio ambiente que ela abriga. Sobre o Ministério Público, aliás, tem-se de tomar cuidado com alguns dos seus integrantes. Essa instituição não é indivisível e monolítica como se proclama. Além de o seu Conselho Superior ter votado, em abril de 2007, a extinção do MST (!), dois de seus integrantes assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a ex-secretária estadual de educação do atual governo, que descredenciou as escolas itinerantes do mesmo Movimento. Aberrações jurídicas preconceituosas e inconstitucionais como estas, que violam flagrantemente direitos alheios, até de crianças que estão em idade escolar, não comprometem somente o bom nome da instituição. Elas geram no povo um sentimento mais do que justificado de desconfiança e suspeição. O que o senhor pode mencionar sobre este segundo momento da campanha “O Morro é Nosso”, especialmente sobre a proposta de pensar o Santa Teresa em um tripé fundamental que englobe os anseios de todas as comunidades
É um momento de extraordinária significação para todo o processo político de mobilização do povo da região e dos movimentos populares, sociais, que o apoiam. Deve ser celebrado com muita ênfase, pois o Poder Executivo do Estado não retirou de pauta da Assembleia Legislativa o projeto que enviara porque tinha outras prioridades. Ele retirou porque teve de ceder ao clamor público que se levantou, na cidade, contra o tal projeto, por pressão política de várias fontes populares de poder. As associações de moradores da área, em defesa do seu direito de morar ali, o Sindicato dos funcionários da Fase, as ONGs que defendem o meio ambiente, os segmentos diversos de partidos políticos, as audiências públicas convocadas por Comissões do Legislativo, demonstraram não só um sonoro repúdio da pretensão, como provaram existirem outras alternativas para resolver o problema de descentralização da Fase. Quem ainda não acredita em democracia participativa, se tivesse presenciado o que aconteceu no Morro Santa Teresa, mudaria de ideia. A defesa dos três direitos humanos fundamentais que sustentam, implícita ou explicitamente, o tripé referido na pergunta, moradia, meio ambiente e melhor tratamento socioeducativo aos internos da Fase, continua em plena vigília contra qualquer recaída governamental que tente reencaminhar a alienação do morro Santa Teresa. Reprodução
Eduardo Seidl
Quem é
Para a comunidade, criação de parque ambiental é uma das alternativas
Jacques Távora Alfonsin é mestre em direito pela Unisinos, educador e advogado popular, especialista em regularização fundiária e reforma agrária. Ele atua como assessor jurídico de movimentos populares rurais e urbanos. Além disso, é procurador aposentado do Rio Grande do Sul, membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e um dos fundadores da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renaap).
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brasil Marlene Bergamo/Folhapress
Movimentos com Dilma para evitar o retrocesso ELEIÇÕES Via Campesina, Central Única dos Trabalhadores e Consulta Popular apoiam petista no segundo turno; UNE e Conlutas decidem nos próximos dias Luís Brasilino da Redação A REALIZAÇÃO do segundo turno das eleições presidenciais pressiona as forças de esquerda brasileiras a escolher, mais uma vez, entre uma candidatura do PSDB e outra do PT. Até a votação do dia 3, a maioria dos movimentos sociais preferia manter a autonomia em relação aos partidos e trabalhar o processo eleitoral em torno de uma plataforma propositiva. Entretanto, a perspectiva de retorno dos tucanos ao governo federal já fez algumas organizações, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Consulta Popular, anunciarem apoio à petista Dilma Rousseff. Já os movimentos que fazem parte da Via Campesina Brasil ainda mantêm a política de “impedir a vitória de José Serra (PSDB)” – o que, neste momento, é praticamente o mesmo que endossar a campanha do PT. Outras entidades, como a Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas) e a União Nacional dos Estudantes (UNE), marcaram a decisão para os próximos dias. A defesa do voto nulo, o apoio a Dilma e a manutenção da autonomia são os caminhos possíveis. A CUT, na verdade, havia decidido pela candidatura petista ainda no primeiro turno. Artur Henrique, pre-
sidente da central, entende a vitória de Serra como um retrocesso. “Não queremos a volta daqueles que destruíram o Estado brasileiro, criminalizaram o movimento social e desrespeitaram os trabalhadores com falta de diálogo e de negociação, como foi no governo Serra no estado de São Paulo e como foi o governo Fernando Henrique Cardoso durante os seus oito anos”, avisa.
Para Artur Henrique, governo Lula impulsionou modelo de desenvolvimento com inclusão social Henrique também defende a continuidade do processo de mudanças iniciado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). De acordo com ele, o atual governo impulsionou um modelo de desenvolvimento com inclusão social, distribuição de renda e respeito ao meio ambiente. Riscos Já Gilberto Cervinski, da Via Campesina Brasil e da coordenação nacional do Movimentos dos Atingidos por Barragens (MAB), ressalta
Dilma cumprimenta Serra durante debate organizado pela TV Globo
que – ainda que tenham “divergências e críticas” ao governo Lula – Serra não representa os interesses dos trabalhadores. Ele também remete ao mandato Fernando Henrique que, segundo ele, significou precarização do trabalho, perda de soberania e entrega do patrimônio nacional para grandes transnacionais. “[A vitória tucana] representaria um processo de retirada dos direitos dos trabalhadores, sobretudo num período de crise”, completa. Ricardo Gebrim, da coordenação nacional da Consulta Popular, explica que a opção por não fechar a indicação do voto, no primeiro turno, não significava falta de posição. Segundo ele, a organização baseou-se no entendimento de que a militância trabalharia pela derrota de Serra ao escolher as alternativas do conjunto da esquerda, em quais, de acordo com ele, se encontravam Dilma, Plinio Arruda Sampaio (Psol), Ivan Pinheiro (PCB), José Maria de Almeida (PSTU), Marina Silva (PV) e Rui Costa Pimenta (PCO). Com a chegada do segundo turno, ele constata que – “embora tenhamos diferenças com a política do Lula” – a candidatura Dilma “se
conformou, neste pleito, como a única capaz de derrotar o tucanato”.
“[A vitória tucana] representaria um processo de retirada dos direitos dos trabalhadores”, diz Cervinski, da Via Campesina “Não podemos nos esconder em análises que simplesmente igualam as duas candidaturas e, segundo as quais, o resultado já está dado. Isso é um erro político e, num possível governo tucano – oxalá isso não se realize –, teremos impactos profundos na correlação de forças nacional e internacional, com consequências graves para as lutas sociais, mobilizações e a organização do povo. São questões que devemos considerar sob o risco de uma postura irresponsável com o povo brasileiro”, alerta Gebrim.
A definir Ainda que não tenham fechado posição no segundo turno, a tendência é que UNE e Conlutas tomem caminhos distintos. É o que levam a crer lideranças das entidades ouvidas pela reportagem. Luis Felipe Maciel, diretor jurídico da organização estudantil, acredita que o segundo turno será uma oportunidade para debater dois projetos políticos distintos. “FHC privatizou as universidades, diminuiu o acesso dos estudantes à universidade pública. E temos uma avaliação positiva destes últimos oito anos. Foi um período em que o acesso à universidade pública foi ampliado, e o Programa Universidade para Todos [ProUni] colocou mais de 700 mil jovens no ensino superior. Mas a UNE vai se posicionar no sentido do debate de ideias, não necessariamente no apoio a um candidato ou outro”, informa. A postura no segundo turno será decidida em reunião da direção nos dias 9 e 10. José Maria de Almeida, da coordenação nacional da Conlutas, conta que a central decidirá sobre o segundo turno num encontro entre os dias 15 e 17. A postura da entidade pode vir a refletir a posição
do PSTU, partido pelo qual Zé Maria saiu candidato a presidente. “Nós achamos que é legítima a preocupação que vai haver em setores amplos da classe trabalhadora, de que é necessário votar contra a direita no segundo turno, mas, na nossa opinião, a direita está representada nas duas candidaturas”, dispara.
“Programa Universidade para Todos [ProUni] colocou mais de 700 mil jovens no ensino superior”, comemora diretor da UNE O sindicalista lembra que tanto Serra quanto Dilma têm o apoio de banqueiros e de grandes empresários e que, na sua opinião, o programa econômico de ambos está voltado a atender esses interesses. “Então, não temos como votar em uma ou outra candidatura: nós [do PSTU] vamos votar nulo”, conclui.
Segundo turno, a vez da política? Especialistas divergem sobre as perspectivas de politização das eleições 2010 da Redação O debate político foi morno no primeiro turno das eleições 2010. A percepção de que os principais candidatos evitaram polêmicas e não aprofundaram a discussão de projetos é geral. Nas eleições de 2006, o cenário era o mesmo até o início do segundo turno. Com o afunilamento da corrida presidencial, a campanha do presidente Lula (PT), que tentava a reeleição, partiu para a ofensiva contra o candidato Geraldo Alckmin (PSDB). Os petistas jogaram luz no processo de privatização conduzido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e despertaram uma discussão sobre o papel do Estado. A estratégia culminou com a cena em que Alckmin vestiu uma jaqueta com logos de estatais na tentativa de se livrar do rótulo de privatista. A esperança de Milton Viário, presidente da Federação dos Metalúrgicos do Rio Grande do Sul, é de que o mesmo possa acontecer agora. “[Em 2006,] foi muito bom ter tido um segundo turno, porque aprofundou a dis-
cussão entre os projetos e clareou mais a diferença entre Lula e Alckmin”, recorda-se. Porém, Ricardo Gebrim, da coordenação nacional da Consulta Popular, acredita que o segundo turno será pautado pela direita e que “não podemos cair no engodo de nos animar, já que o quadro sugere uma maior pressão dos setores conservadores sobre a candidatura Dilma Rousseff”.
Sanson acredita que o último debate ideológico de fundo entre PT e PSDB foi justamente aquele de 2006, envolvendo Alckmin. “De lá para cá, o debate em torno de programas foi substituído pelo lulismo. Agora, a disputa que se trava é para ver quem reúne melhores atributos para continuar o lulismo. Registre-se que até Serra dese-
Para Rudá Ricci, campanhas tentarão conquistar o eleitor fundamentalista de direita
“Não podemos cair no engodo de nos animar”, alerta Ricardo Gebrim Ele aposta que a candidatura de José Serra, estacionada na casa dos 30%, adotará uma linha de desgaste, construindo factoides e possíveis escândalos midiáticos. “Vão pautar temas que semeiam contradição no bloco de apoio a Dilma (como o caso do aborto) e isso não politizará, pelo contrário”, prevê. A visão pessimista é compartilhada por Rudá Ricci, sociólogo e autor do livro Lulismo (editora Contraponto/ Fundação Astrojildo Pereira). Para ele, o segundo turno será menos politizado – “isto é mais possível” – que o primeiro. “Isso porque se trata de capturar justamente o eleitor fundamentalista de direita. Aquele marcado por uma re-
ligiosidade privada, centrada no sucesso pessoal, temerosa e não solidária, que segue cegamente seus líderes religiosos”, aponta. Para José Maria de Almeida, candidato do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) à Presidência, a despolitização se dará essencialmente pela ausência de diferenças entre os programas econômicos de petistas e tucanos. “Não há espaço para questionamento político. O Serra vai questionar o programa econômico que a Dilma tem implantado no governo, se é o mesmo programa que o PSDB implantou, e vice versa?”, provoca.
Depende do PT Wladimir Pomar, analista político e escritor que discorda de Zé Maria quanto à igualdade dos modelos econômicos petista e tucano, acredita que a chave para politizar o processo está justamente na capacidade da campanha Dilma de expor o que a diferencia da coligação PSDB-DEM. “Espero que [os petistas] encarem de frente os problemas com quais o povão ainda se defronta. Deixem de lado essa história de que a maioria do povo já é ‘classe média’ e vejam que, se a maioria melhorou de situação com a política do governo Lula, seu padrão e suas condi-
ções de vida ainda estão longe de um patamar de classe média, em termos de renda, educação, saúde, saneamento, acesso a bens culturais e a outros confortos que caracterizam as camadas médias”, avalia Pomar. Já para César Sanson, pesquisador do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores (Cepat) e doutor em sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), a intensificação do debate político, no segundo turno, é inevitável. Ele aposta que o momento vá forçar o PT a redefinir sua estratégia e politizar o debate, “mostrando a essência neoliberal dos tucanos”.
ja dar continuidade ao legado de Lula. Quem não se recorda do esforço dos marqueteiros do PSDB em ‘colar’ a imagem de Serra à Lula? Cabe ao PT recuperar o conteúdo ideológico do debate. Por outro lado, a politização do segundo turno também será provocada pelo movimento social. As diferenças entre Dilma e Serra, nesta área, são significativas. O PSDB tem um histórico de criminalização do movimento social e interessa aos movimentos sociais trazer à tona esse fato”, destaca. (LB, com colaboração de Eduardo Sales de Lima)
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brasil Wilson Dias/ABr
E o projeto de país? ELEIÇÕES Udenismo e posicionamento midiáticos ocupam lugar do debate de projetos no primeiro turno Eduardo Sales de Lima da Redação NO PRIMEIRO turno das eleições, a mídia agiu como partido e conseguiu desestabilizar a candidatura de Dilma Rousseff à presidência da República. Inesperadamente, os 19,33% de Marina Silva desvelaram outros fatores que contribuíram para a ocorrência do segundo turno. A ausência de debates mais programáticos e aprofundados, além de uma onda conservadora sobre um suposto posicionamento de Dilma pró-aborto, também contribuíram para a ascensão de Marina e a queda de candidatura petista. Para César Sanson, pesquisador do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores (Cepat) e doutor em sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), tanto
o caso Erenice Guerra e, anteriormente, o do sigilo da Receita Federal configuraramse como fatores que reforçaram o esvaziamento do debate político, na medida em que, amplificados pela grande imprensa, direcionaram o debate para uma agenda udenista.
“A grande mídia prima por despolitizar as questões políticas sagradas dos oligopólios privados nos quais se insere” Esse tal “udenismo midiático”, para Sanson, ocupou o lugar da apresentação dos projetos políticos, por culpa dos próprios partidos majoritários na disputa eleitoral, o PT e o PSDB. O Partido dos Trabalhadores acabou sendo o mais prejudicado, pelo seu caráter menos elitista.“O PT apostou todas as sua fichas nas conquistas e avanços do governo Lula, prometendo que Dilma seria a ‘fase dois’ do governo Lula; Serra, por sua vez, cor-
Eleitor se prepara para votar em Porto Alegre
reu atrás da agenda neodesenvolvimentista do PT, prometendo que fará ainda melhor. Ficamos num debate por demais gerencista e tecnicista do país”, argumenta. Vigilância Sem apresentações clarificadas e aprofundadas sobre projetos para o Brasil, por parte das candidaturas à pre-
sidência, ficou a cargo da vigilância e do posicionamento midiáticos o estabelecimento das pautas e os parâmetros do próprio debate eleitoral. “A grande mídia prima por despolitizar as questões políticas sagradas dos oligopólios privados nos quais se insere”, afirma o sociólogo e professor da Universidade Federal de Rondônia, Luiz Fernan-
do Novoa Garzon. Isso porque, segundo ele, como “historicamente se estabeleceram à base da corrupção, espoliação e da fraude, nossas classes dominantes não permitem questionamento ao direito absoluto de propriedade, muito menos o questionamento do direito de maquiarem suas práticas”. (Colaborou Luís Brasilino)
Para entender Udenismo: Filosofia da União Democrática Nacional (UDN), partido criado em 1945 e extinto em 1965. O udenismo caracterizou-se pelo conservadorismo, defesa do liberalismo clássico, apego ao moralismo e o rechaço a “populismos”.
Esquerda partidária conquista 1% dos eleitores
Letargia vermelha reforça “onda verde” Valter Campanato/ABr
Para analista político, crescimento de Marina Silva revelou “face fascista” do Brasil
Sergio Koei
Modelo da esquerda programática esgotou-se, acredita o sociólogo César Sanson
da Redação da Redação A candidata à presidência da República Marina Silva, do Partido Verde (PV), fechou sua participação nas eleições com expressivos 19,33% dos votos válidos. Quer dizer, 19.636.359 dos brasileiros gostariam de vê-la como a nova presidente do Brasil. Para o sociólogo Luiz Fernando Novoa Garzon, o efeito Marina representa, sob um ponto de vista, a busca de alternativas frente a candidaturas “prémoldadas”, “quase coreografadas”, de José Serra e Dilma Rousseff, formando o que chama de “efeito paradoxal”: “À revelia de Marina, e de seu grupo político imediato, deu-se uma politização espontânea especialmente junto à fração mais jovem, metropolitana e escolarizada do eleitorado, nessa ordem”. Já o sociólogo Rudá Ricci afirma que a votação de Marina é o voto evangélico fundamentalista. “Ela conquistou três segmentos em especial: jovens, mulheres indecisas e evangélicos. De longe, o grupo social mais coeso e que vota em bloco é o dos evangélicos”, pontua. Para ele, o segundo turno caminhará para a direita, porque os dois candidatos tentarão capturar este segmento de eleitores. Ele lembra que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sugere que, em cinco anos, metade da população brasileira que se declara religiosa será evangélica. “Não foi uma onda verde, mas uma onda conservadora, antipluralista e republicana. O Brasil revelou sua face fascista”, polemiza.
A candidata Marina Silva, depois de votar no primeiro turno
Conveniente Sob outro ponto de vista, o sociólogo Luiz Fernando Novoa Garzon acredita que a mídia “redescobriu a candidata, percebendo sua força eleitoral em um momento em que Serra atingira seu teto máximo, mesmo no pico das denúncias contra a Casa Civil”. Mas a campanha de Dilma não a levou sério, segundo ele.
“Não foi uma onda verde, mas uma onda conservadora, antipluralista e republicana. O Brasil revelou sua face fascista” De acordo com Ricardo Gebrim, da coordenação nacional do movimento Consulta Popular, o voto acumulado por Marina, embora tenha arrebanhado um conjunto de setores sensíveis ao discurso ambiental e a um processo de desenvolvimento que seja sustentável, também foi um voto que sinalizou um protesto e um descontentamento de uma parcela que se sente frustrada pelo fato de o governo Lu-
la não ter avançado e implementado aquelas medidas históricas do programa democrático e popular do PT. “O voto da Marina canaliza este conjunto de eleitores, embora com um discurso bastante ambíguo e incerto”, afirma. O analista político Wladimir Pomar segue uma opinião semelhante e afirma que a partir do momento em que Marina passou a concentrar seu fogo e ataques ao governo com temas como reforma tributária, proteção ambiental, jornada de trabalho, segurança e liberdade de comunicação, isto também a fez conquistar parte do eleitorado de esquerda e a carrear apoios de candidatos de outros partidos deste espectro político. Para ele, essa parte do eleitorado somada representou mais de 15% das intenções de voto, e ao desprezar o trato de tais temas, a campanha Dilma foi surpreendida. “Outros fatores podem ter contribuído, mas creio que este foi o motivo central”, destaca. Assim, de acordo com Pomar, a campanha de Dilma, erroneamente, quis evitar o debate, o qual, para ele, deveria ter sido seu forte. Isso deu chance para Marina aparecer como a única candidata com programa e com disposição de debater os problemas políticos, o que acabou levando as eleições para um segundo turno. (ESL e LB)
A esquerda saiu completamente derrotada das urnas. Esta é a análise do sociólogo e autor do livro Lulismo, Rudá Ricci. “Obviamente que estamos perdendo a batalha pela hegemonia cultural no Brasil. O Brasil Potência é um país mais consumista, menos solidário, mais egoísta e conservador”, explica. Segundo ele, “nossa representação de esquerda, nas eleições, foi risível. No máximo, fez graça”, afirma. Por falar em graça, a título de curiosidade, o candidato a deputado federal eleito pelos paulistas, o palhaço Tiririca, ou Francisco Everardo Oliveira Silva, atingiu 1.353.820 votos, ou 6,35% dos votos válidos no estado de São Paulo. Enquanto isso, os quatro candidatos à presidência da república mais à esquerda, como Plinio Arruda Sampaio, do Psol, Ivan Pinheiro, do PCB, José Maria, do PSTU, e Rui Costa Pimenta, do PCO, alcançaram, juntos, 1.022. 820 de votos dos brasileiros, cerca de 1% dos votos totais. Para o analista político e escritor Wladimir Pomar, isso mostra o quanto estes partidos estão fora de sintonia com a atual realidade brasileira. “O pior é que eles sequer aproveitaram a campanha eleitoral para fazer propaganda das propostas supostamente estratégicas que têm em mente para o país. Por um lado, giraram em torno de propostas economicistas e reformistas. Por outro, denominavam-nas de revolucionárias”, analisa. Rudá Ricci consegue ser mais mordaz e critica como fundamentalistas as propostas de tais candidatos. “Imagino que os autores clássicos da literatura de esquerda teriam vergonha se assistissem às propagandas de televisão”, dispara.
Ivan Pinheiro, Zé Maria e Rui Pimenta no debate do Brasil de Fato
Desconstrução De acordo com César Sanson, pesquisador do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores (Cepat) e doutor em sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), é preciso compreender que o resultado eleitoral reflete não somente os erros programáticos da esquerda partidária, mas também que os partidos mais à esquerda são vítimas históricas da desconstrução dos setores midiáticos e conservadores brasileiros. “Os setores de direita demonizaram a esquerda e sua agenda revolucionária, principalmente no período pré e durante o golpe de 1964. Essa caracterização se faz presente no imaginário popular e chega até os dias de hoje”, explica. José Maria de Almeida, que foi candidato à presidência pelo PSTU, critica o comportamento dos grandes meios de comunicação, precisamente no atual período eleitoral. Ele destaca que a exclusão das candidaturas de esquerda dos debates, entrevistas e noticiários reduziu o espaço para as propostas do que chama de esquerda socialista e contribuiu para que a votação fosse muito reduzida. “O que acabou sendo também a votação do resto da esquerda socialista”, conclui. A avaliação das campanhas da “esquerda socialista”, segundo ele, não pode ser feita somente a partir do número de votos que obteve, mas, sobretudo, a partir de um viés político. “Era fundamental que a esquerda socialista se apresentasse, fizesse um balanço do governo Lula, apresentasse uma alternativa socialista para o país, e isso foi feito”, defende.
Renovação Para elucidar o fracasso eleitoral do que denomina esquerda programática, o sociólogo César Sanson destaca a inexistência de base operária, camponesa e popular dentro destes partidos. “Esses mesmos setores não se veem reconhecidos no discurso radicalizado destes partidos. Essa esquerda faz um discurso ‘arrasa-quarteirão’, em que tudo se configura em tragédia, e não reconhece avanços, mesmo que parciais. O que falam soa para os setores populares como algo um tanto irrealizável e pouco viável”, critica. “O povo precisa perceber, no seu dia a dia, na sua vida, como a política faz parte da vida. Entre estratégia e tática, o grande dilema dessa esquerda, e da esquerda social, é compreender a tática”, acrescenta Milton Viário, presidente da Federação dos Metalúrgicos do Rio Grande do Sul. Por fim, sinais de esgotamento. “O voto massivo no palhaço [Tiririca] e a impermeabilidade do eleitorado à discussão político-programática trazida pelos partidos de esquerda revelam não só o esgotamento dos canais representativos, mas, também, dos expedientes utilizados pelas organizações de esquerda para desmascará-los”, conclui o sociólogo e professor da Universidade Federal de Rondônia, Luiz Fernando Novoa Garzon. Entretanto, ele considera que ainda existe um rico legado do movimento operário, camponês, popular e cultural, no Brasil, para inspirar a reinvenção de nossas formas de luta, no campo social e institucional. (ESL, com a colaboração de LB)
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brasil STF
O poder autoritário DEMOCRATIZAÇÃO Entidades apontam a dimensão que o Supremo Tribunal Federal (STF) ganhou na vida política do país; no entanto, ainda não existe mecanismo de participação popular junto ao Poder Judiciário Pedro Carrano de Curitiba (PR) DOIS ASPECTOS chamaram a atenção no julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a aplicação da Lei da Ficha Limpa nas eleições deste ano. O primeiro é que o empate de cinco votos a cinco, estabelecido na sessão do dia 24 de setembro, só foi possível porque uma das onze vagas desta instância ainda não foi preenchida desde a aposentaria do ministro Eros Grau em agosto. O segundo elemento é de cunho político. Assim como a Ficha Limpa, temas como a regulamentação de terras quilombolas, a Lei de Anistia, a demarcação das áreas indígenas, a obrigatoriedade do diploma de jornalistas, entre outros, são definidos nesta instância do Poder Judiciário, em qual se tratam temas ligados à Constituição. Nesse contexto de debate político, no Judiciário, a sociedade não tem mecanismo de eleição ou fiscalização – como acontece no caso do Executivo e do Legislativo. Juristas de renome, como Dalmo de Abreu Dallari, lembram que o STF exerce uma espécie de poder político. E entidades sociais acrescentam que há uma politização evidente do Judiciário. No sentido inverso, ocorre uma “judicialização da política”, processo em que uma série de disputas, das lutas sociais às sindicais, atravessando também ações do Legislativo e do Executivo, acabam se desenrolando no espaço do Judiciário. Esta dimensão está comprovada em fatos políticos recentes. Às vésperas das eleições presidenciais, o jornal Folha de S.Paulo denunciou, no dia 30 de setembro, que o candidato José Serra (PSDB) ligou para Gilmar Mendes, ministro do STF, durante o julgamento de ação do PT contra a obrigatoriedade de o eleitor portar dois documentos na hora do voto. O magistrado pediu vistas do processo, supostamente para retardar o fim do julgamento que terminaria com decisão, em tese, favorável à candidatura de Dilma Rousseff (PT). Diante da repercussão negativa, Mendes retomou o julgamento, no dia seguinte, que terminou com a vitória da ação petista por oito votos a dois. A situação levou a ONG Justiça Global e outras organizações de direitos humanos a encaminhar uma denúncia para as Nações Unidas, devido às suspeitas de falta de independência do juiz. O STF é uma corte acionada quando a constitucionalida-
de de algum tema é questionada, por meio, por exemplo, de uma ação direta de inconstitucionalidade. “O STF faz o controle da constitucionalidade, decide sobre questões constitucionais ou inconstitucionais”, caracteriza Antonio Sergio Escrivão Filho, da Organização de Direitos Humanos Terra de Direitos.
“Nesse contexto de debate político, no Judiciário, a sociedade não tem mecanismo de eleição ou fiscalização” O Judiciário não define a própria pauta e abrange um processo de totalidade. No entanto, fica claro que algumas delas ganham mais evidência, como foi comum no embate entre o ministro Gilmar Mendes e os movimentos sociais nos últimos anos. A Confederação Nacional dos Agricultores (CNA), entidade representativa do agronegócio monocultor, é campeã de reclamações e já buscou levantar a inconstitucionalidade de normas que garantem os direitos no tema dos quilombolas e também do trabalho escravo. O Supremo atualmente é um espaço que concentra nomes como o de Gilmar Mendes, indicado por FHC em 2002, advogado geral da União durante o governo tucano. O ministro Marco Aurélio Mello foi indicado pelo próprio primo, o ex-presidente Fernando Collor, ainda em 1990. Até o momento, o governo Lula indicou nove ministros para o cargo, sendo que alguns já deixaram a corte. Agora se abre o debate para uma nova indicação, ainda alheia à decisão popular. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve definir a vaga no Supremo após o período eleitoral. Nomes de juristas renomados estão sendo levantados, sendo que alguns deles são próximos de setores progressistas. O processo de nomeação dos ministros do Supremo possui duas etapas. A primeira é a indicação pelo presidente da República. Na sequência, o indicado é sabatinado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, que, em seguida, realiza votação em plenário. Com 41 votos favoráveis, o indicaAbr
Os ministros Gilmar Mendes e Cesar Peluzo
do assume o posto no STF. “É preciso ter claro que é o ministro quem vai votar temas fundamentais para a nação, tais como a lei de Cotas, a função social da terra e outros assuntos de matéria constitucional”, comenta Escrivão Filho. Direitos humanos O cargo de ministro do STF dura até o magistrado atingir os setenta anos, sendo que alguns ministros chegam a permanecer três décadas na função. A indicação é eminentemente política. Os indicados não precisam ser juízes de carreira. Atualmente, apenas Cesar Peluzo, que ocupa o cargo de presidente do STF, foi juiz de carreira. As duas exigências necessárias são ter notável saber jurídico e reputação ilibada. Entretanto, como aponta Escrivão Filho, os critérios poderiam ser outros. “Centenas de juristas estão nessa condição no país. O critério deveria ser o compromisso com os direitos humanos e a atuação nesta área”, aponta. Neste cenário, entidades da sociedade civil levantam a necessidade de participação maior da população no STF. Um dos objetivos é realizar uma audiência pública em Brasília (DF) para debater o tema. “Por que se interessar mais? Porque o STF e o Judiciário, como um todo, passam a interferir nas questões sociais. Precisamos produzir esta informação e trabalhar no sentido de observar os mecanismos no Poder Judiciário”, comenta Escrivão Filho. Na avaliação de Kenarik Boujikian Felippe, secretária da Associação Juízes para a Democracia e juíza de direito da 16ª Vara Criminal de São Paulo, é necessário um espaço anterior à indicação feita pelo presidente da República, para que a sociedade se mani-
Para entidades sociais, há uma politização evidente do judiciário
feste. “Tendo em vista o papel do Poder Judiciário, de dizer a última palavra sobre a Constituição, o que significa, em última instância, que tem a obrigação de dizer a vontade estabelecida pelo povo, há uma necessidade gritante de maior intervenção da sociedade e, nessa medida, há que se repensar a sua estrutura, competência, seleção, mandato etc.”, aponta. A ferramenta para tal participação popular pode, de acordo com Kenarik, ser definida pelo presidente da República, e cita a Argentina como um exemplo neste sentido. “O presidente pode instituir, por decreto, um mecanismo para que isso ocorra, especialmente a manifestação no que diz respeito às aptidões, idoneidade, trajetória e compromisso com os direitos humanos e valores democráticos do pretendente ao cargo. Este mecanismo teria a grande vantagem de dar transparência ao sistema de escolha dos mi-
nistros, que é algo que falta no nosso sistema”, defende.
o movimento desencadeado desde 2004 apresenta aspectos claramente neoliberais. “O papel do Poder Judiciário, do juiz, é de ser o garantidor dos direitos. Esta é que é a sua função constitucional, mas ele não esta fora da estrutura de poder que rege o país. É preciso lembrar que o Banco Mundial, no documento 319, ‘O setor judiciário na América Latina e no Caribe – Elementos para reforma’, apontava a necessidade de um Judiciário que atendesse os donos do poder: o desenvolvimento econômico do setor privado e a melhor garantia do direito de propriedade. Este documento apresenta algumas formas para obtenção destes objetivos, como as súmulas com efeito vinculante, ações de inconstitucionalidade centradas, com redução do controle de constitucionalidade nas primeiras instâncias, concentração de poder nas cúpulas do Judiciário, com ação para a disciplina interna”, enumera. (PC)
Orientação O STF tem a função de julgar a constitucionalidade de determinado tema. Com a promulgação da Constituição de 1988, é pautada a questão do controle de constitucionalidade das leis e atos de governos, e o judiciário passa a interferir nas questões políticas – apesar de ter inovado pouco em matéria de sua relação com a sociedade. Entidades apontam uma modernização em curso, no processo de reforma do Judiciário, iniciada em 2004, a partir de orientação neoliberal do Banco Mundial (datada anteriormente do ano de 1996). No entanto, para muitos trata-se de um processo já terminado, enquanto entidades apontam que o processo está em curso. Na avaliação de Kenarik Boujikian Felippe, secretária executiva da Associação de Juízes para a Democracia,
Mecanismos de participação e seus limites Arquivo Brasil de Fato
Movimentos sociais criam mecanismos para analisar o Judiciário de Curitiba (PR) Existem alguns espaços de democracia, na relação entre povo e direito; criados desde o campo popular, pelas entidades, no sentido de exercer pressão. É o caso dos tribunais populares e também a experiência do Tribunal de Justiça do Espírito Santo de monitoramento do Judiciário via orçamento participativo. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), surgido em 2004, enquanto órgão do Poder Judiciário Administrativo e de controle do Judiciário, hoje resulta em um espaço cuja corregedoria invalidou cinco mil títulos de grilagem no Pará. “Com isso, a Advocacia Geral da União poderia entrar com reintegração de posse”, comenta Antonio Sergio Escrivão Filho, da Organização de Direitos Humanos Terra de Direitos. Na avaliação de Aton Fon Filho, advogado da Rede Nacional de Advogados Populares (Renap), a contradição do CNJ está na sua formação, fundamentalmente composta por magistrados, o que muitas vezes pode levar os trabalhadores a lutar em espaços que não são próprios. Com a possibilidade de participação de entidades
Aton Fon Filho, advogado da Renap
da sociedade, o Fórum de Assuntos Fundiários é um espaço que surge como mecanismo com competência para tratar de conflitos agrários, urbanos e correlatos, inclusive na esfera criminal, além das áreas de meio ambiente e registros públicos, lidando também com questões de desapropriações e reintegrações de posse relacionadas a conflitos coletivos. Em encontro recente, realizado em Belém (PA), houve o convite à participação desde Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, até a participação de Guilherme Cassel, ministro do Desenvolvimento Agrário, que, no evento, mencionou conflitos no campo e a responsabilidade de o Estado brasileiro cumprir a função social e regularização fundiária.
Ação contra o Capital Aton Fon Filho, advogado da Renap, pondera que a Constituição de 1988 foi aprovada em um começo de debilidade do movimento sindical e popular. As necessidades dos trabalhadores passaram a ser cobradas do Estado, não mais do Capital, que, dessa forma, elevou a exploração sobre o Trabalho. A política passou a ter a intermediação do Direito. Neste sentido, o setor jurídico ganha dimensão grande na atuação do movimento popular e sindical, o que hoje é constatado durante uma ocupação de terra, imóvel urbano ou na convocação de uma greve. Fon cita os mecanismos jurídicos criados para limitar a esfera de ação de uma greve. “As lutas passaram a ser em face do Estado, pedindo políticas públicas, não se ti-
nha força para lutar. Em outra conjuntura, a exigência de aumento de salário se dava para dar conta de demandas como aluguel, transporte e educação. O recuo do movimento político trouxe a intermediação das ONGS”, analisa. Na análise de Fon, o Judiciário tem sido uma das frações que mais se posicionou contra bandeiras progressistas no último período, a partir da apresentação do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Dessa forma, coloca-se ao lado de setores militares, mídia e Igreja no combate a bandeiras progressistas. “O Judiciário é um núcleo funcional que não está sujeito a controle popular, assim como a polícia, o Ministério Público. E esse núcleo vem desempenhando papel político atualmente”, afirma. (PC)
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brasil
Um voto para os direitos humanos no Supremo
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Sem proteção
José Cruz/ABr
ENTREVISTA Para jurista Rui Portanova, o século vinte foi o do Executivo. E o século vinte e um será o século do Poder Judiciário
Reação operária
Os trabalhadores de vários países europeus realizaram greves e manifestações, no dia 29 de setembro, contra a redução de gastos sociais e de direitos trabalhistas. Na Espanha, a greve geral atingiu até 70% de algumas categorias profissionais, paralisou transportes públicos e afetou o funcionamento dos aeroportos. A onda de protestos é uma reação ao agravamento da crise econômica e ao aumento do desemprego.
Pedro Carrano de Curitiba (PR) O ADVOGADO Rui Portanova defende que o Judiciário é um espaço em que temas importantes vêm sendo pautados. No que se refere a questões caras aos movimentos sociais, como a função social da propriedade, avalia que é necessária uma mudança de mentalidade, o que deve se dar no momento em que mais ações são pautadas neste espaço. Nome que se apresenta como postulante a uma vaga do Supremo Tribunal de Justiça, Portanova adverte que um juiz deve trabalhar todas as causas da sociedade, das pequenas às grandes questões, e não pode se ater a temas específicos. Porém, a experiência do jurista em trinta anos de atuação está voltada a temáticas ligadas aos direitos humanos ,em geral, e defesa dos movimentos sociais. Particularmente, do movimento negro, mulheres, GLBT, sem terra, idosos e meio ambiente. Brasil de Fato – Qual papel cumpre o STF hoje na sociedade brasileira? Rui Portanova – Tem-se dito que o século 19 foi o século do Parlamento. O século vinte foi o século do Executivo. E o século vinte e um será o século do Poder Judiciário. A sociedade, cada vez mais, tem descoberto no Judiciário o local de luta de seus pleitos contra o Legislativo. No mesmo passo, o Judiciário tem sido chamado, cada vez mais, para efetivação de direitos não efetivados pelo Executivo. Assim, o STF, como instância Constitucional, guarda, na sabedoria e ponderação de seus Ministros, o papel fundamental de implementar, nos limite de seu Poder, os avanços constitucionais. Vejo como absolutamente democrática e necessária a participação do Judiciário em temas políticos, quando são atravessados por questões jurídicas. Tanto a sociedade tem o direito de contar com seu Poder Judiciário para dizer o Direito, como o Judiciário não pode deixar de dar resposta jurídica, por mais políticos que sejam os temas.
Tenho os chamados Movimentos Sociais como uma conquista da sociedade brasileira organizada Houve uma inclinação conservadora do Judiciário, nesses últimos anos, posicionando-se como uma das frações mais conservadoras do Estado brasileiro. O senhor avalia como correta esta análise feita por uma série de entidades do campo social? Deixa eu refletir um pouco sobre a pergunta. Ela fala sobre “inclinação conservadora”. E talvez buscasse dizer “inclinação à direita”. Vejam: é difícil falar do Judiciário, como um todo, quando temos tantos juízes e Tribunais espelhados em suas especialidades por toda nossa territorialidade. Seja como for, tenho visto algumas decisões relevantes, que, por certo, estariam muito bem alinhadas a uma ideia daquilo que imagino possa ser uma visão progres-
O Ministério da Previdência Social informa que pelo menos um terço da população economicamente ativa – 28 milhões de brasileiros de 16 a 60 anos – recebe de um salário mínimo para baixo (menos de R$ 510,00), está excluída de qualquer benefício trabalhista e do sistema público de aposentadoria. São os trabalhadores que estão fora do mercado formal e não conseguem nem mesmo pagar a contribuição da previdência.
Onda grevista
Supremo Tribunal Federal durante o julgamento sobre a validade da Lei da Ficha Limpa
sista (ou à esquerda) do Direito. Lembro, por exemplo, a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre adoção por casal homossexual. Enfim, no Direito e no Judiciário, como na sociedade em geral, há temas e temáticas mais ou menos ideológicos que desatam a necessidade de se fazer luta jurídico-ideológica. E nesse campo, o da ideologia, parece mais adequado falar em “avanços” e “ocupação de espaços” do que de vitórias e derrotas. Ou inclinações. Qual a sua opinião sobre a criminalização dos movimentos sociais do campo e da cidade? Tenho os chamados Movimentos Sociais como uma conquista da sociedade brasileira organizada. Há sempre de se guardar o maior respeito a segmentos sociais que se organizam e fazem uma luta tão organizada, como contínua na busca de reconhecimento e efetividade de Direitos. E essa luta é feita tanto no “campo político”, quanto no “campo jurídico”. A criminalização dos movimentos sociais do campo e da cidade, muitas vezes, é uma forma de reação do espectro conservador da sociedade brasileira. Quais são os assuntos prioritários a ser trabalhados pelo STF e sob qual viés deve ser abordado? Tanto quanto tenho sentido, o STF tem arbitrado com sabedoria os assuntos prioritários a serem trabalhados. Vale a pena não perder de vista que quando se fala do trabalho do STF, tanto a colocação de temas em pauta de julgamento como as audiências públicas, assim também como o aguardo de oportunidade, podem ser considerados como “assuntos trabalhados” por um Tribunal da importância do Supremo. Na atual composição de nossa Corte Maior, tenho visto o empenho de juristas – tão eminentes como sensíveis – aos pleitos sociais. Não tenho conhecimento de todas as matérias que ainda estão pendentes de julgamento no STF. Seja como for, não gostaria de deixar sem resposta a pergunta sobre prioridade. Uma ideia que me parece absolutamente atual para estágio da democracia brasileira é a discussão sobre cotas para negros. Tomo como rumo desta resposta o discurso de Kennedy quando do incidente no Estado do Alabama, tal como aparece no documentário Crise, do Diretor Roberto Drew. Do ponto de vista jurídico, temos que “Os direitos de cada homem diminuem, quando os direitos de um homem são ameaçados”. Do ponto de vista social temos que passados pouco mais de 100 anos “Os escravos e mesmo assim seus herdeiros e netos ainda não estão totalmente livres. Eles ainda não estão livres das algemas da injustiça. Eles ainda não estão libertos da opressão social e econômica”. Enfim, aqui, como
nos Estados Unidos, a fala de Kennedy é pertinente: “Esta nação, por todas as suas esperanças e motivos de orgulho, não estará totalmente livre até que seus cidadãos estejam livres”.
É inegável que o Brasil vive um movimento para que, cada vez mais, se dê relevância e formas de atuação ao que se costuma chamar de Poder Social E quanto ao limite da propriedade da terra? Penso que a pergunta comporta, pelo menos, duas formas de abordagem que podem se complementar. A primeira, o limite perguntado pode ser o “territorial” (ninguém pode ser proprietário de mais de 500 hectares, por exemplo). A segunda, o limite pode ser “funcional”, tal como já previsto pela Constituição Federal (função social da propriedade). O atual sistema jurídico não prevê o limite territorial. Logo, seria indispensável uma mudança Constitucional para tanto. Já o limite funcional é expressa e claramente previsto na Constituição, a ponto de se poder dizer que a função social integra o conceito de propriedade. A complementaridade que referi no início da resposta, diz respeito a uma questão de oportunidade: na medida em que não se tem efetividade na aplicação da regra constitucional da função social da propriedade – e isso leva à injustiça social – mais se mostra indispensável que o sistema legal crie limitações territoriais. Como o senhor vê a questão da democratização da comunicação? É inegável que o Brasil vive um movimento para que, cada vez mais, se dê relevância e formas de atuação ao que se costuma chamar de Poder Social. Ou seja, a sociedade como um todo deve ter meios de participação efetiva no centro do Poder e dos acontecimentos relevantes, que formam e informam a sociedade. Neste passo, sem que se pense em censura, a comunicação não pode ficar completamente imune a uma ideia de se buscar cada vez mais a democratização das comunicações. Não perco de vista que, naquilo que é mais relevante, até agora, os meios de comunicações se conformam juridicamente como concessões do Estado. Como tal, ao mesmo tempo que se quer um Estado democrático, também se quer concessões democráticas e utilização democrática do poder concedido. Lembro que, com
a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Poder Judiciário foi desafiado a colocar seus procedimentos administrativos em julgamento sob o ponto de vista da ética e da transparência. Isso em nada afetou a imparcialidade do Poder Julgador. Penso que, também no campo de comunicação, tem que se encontrar meios de, pelo menos, fazer um debate, sério e sem preconceito, sobre a ética, dignidade e democratização da informação. De que maneira a população deveria ter acesso aos conteúdos do que é decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF)? Ao primeiro, de dentro do Judiciário, é absolutamente relevante que se incentive um certo abrandamento na linguagem técnicajurídica. Por mais que alguns termos estejam já integrados – como uma sombra – ao pensamento do juiz, é necessário um esforço para que, pelo menos, as partes interessadas entendam nossa fundamentação e nossas motivações. Ao depois, pelo menos quando de julgamentos relevantes, penso que seria importante a possibilidade de transmissão via rádio AM e FM, bem como por canal aberto de televisão das sessões de julgamento.
Uma ideia que me parece absolutamente atual para estágio da democracia brasileira é a discussão sobre cotas para negros O que é necessário para que questões previstas na Constituição de 1988, como a Função Social da Propriedade, possam ser viabilizadas? Este é um dos temas que mais desata o que chamo de “motivações ideológicas da sentença”. Assim como as “Cotas para negros”, o tema “propriedade privada” divide todos os juristas (e assim também os juízes) na sua forma de ver o mundo. Com isso em mente, é lícito dizer que, em muitos temas só a lei não basta. Para além de, eventualmente, mudar a lei, tem que mudar a mentalidade. No que diz respieto à função social da propriedade, temos lei. Mais do isso, temos um dispositivo constitucional. Contudo, a viabilização do conteúdo da lei (ou seja, a concretização da lei ao fato social) pela via do Judiciário, só pode vir com uma ação judicial. Quanto mais ações judiciais o Judiciário tiver que julgar a respeito, mais peculiaridades de casos levarão os juízes a formar juízos e conformar o conceito.
Depois de algumas greves vitoriosas dos metalúrgicos, na região de Campinas e no ABC paulista, os bancários também entraram em greve para defender reajuste salarial de 11%. Os bancos, que tiveram crescimento médio de 26% no último ano, ofereceram inicialmente apenas 4,29% de reajuste. Tudo indica que outras categorias profissionais também vão sair da apatia nos próximos meses. Quem fica parado é poste!
Faturamento
O capitalismo não tem limite na sua sede de lucro: segundo o periódico científico British Medical Journal, os laboratórios farmacêuticos Boehringer e Pfizer forjaram pesquisas em hospitais dos Estados Unidos para inventar doenças a partir da falta de desejo sexual das mulheres. Com base nas pesquisas, lançaram medicamentos para combater essas “doenças” sem que se saiba da eficácia de tais medicamentos. Pura enganação!
Brasil real – 1
Acampados na frente da prefeitura de Belo Horizonte (MG), mais de 400 moradores das comunidades Dandara, Camilo Torres, Irmã Dorothy e Torres Gêmeas, foram violentamente aterrorizados pela Polícia Militar, que retirou as lonas sob quais estavam abrigados e deixou todos – incluindo crianças e idosos – debaixo de chuva. Os acampados queriam apenas negociar o cancelamento do despejo de suas comunidades.
Brasil real – 2
Desabrigados pelas chuvas de abril, na região metropolitana do Rio de Janeiro, realizaram manifestação no dia 1º de outubro na praia de Icaraí, em Niterói, para protestar contra o descaso das autoridades. Sete mil pessoas estão sem receber o aluguel social; centenas de crianças não conseguiram retornar às escolas; o governo autorizou a construção de apenas 180 casas. A maior parte sobrevive com a ajuda da comunidade.
Coluna Prestes
Depois que o governo russo anunciou que vai entregar ao Brasil documentos inéditos do ex-líder comunista Luiz Carlos Prestes, do período em que esteve exilado na antiga União Soviética, dois grupos se movimentam para cuidar de tais documentos: um defende que sejam entregues ao Arquivo Nacional; outro reivindica que fiquem com o Instituto Luiz Carlos Prestes. O importante é que estejam acessíveis ao público.
Potência mundial
Em seminário organizado pelo Conselho Nacional de Justiça, em Brasília, o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário, Luciano Losekann, informou que o Brasil possui 494.598 presos – a terceira maior população carcerária do mundo, depois dos Estados Unidos e da China. O número de presos aumentou 37% nos últimos cinco anos; 22% do total têm a ver com o tráfico de drogas.
Belo monstro
Representantes dos movimentos indígenas e sociais de Altamira, no Pará, entregaram, no dia 1º de outubro, ao Tribunal Regional Federal de Brasília, carta aberta de protesto contra o adiamento das oitivas das comunidades atingidas pela hidrelétrica de Belo Monte. Eles reclamam que a ação civil pública impetrada em 2006, na qual denunciam o descumprimento da lei, não foi julgada até hoje. Os protestos continuam!
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esporte Fotos: Mauricio Scerni
Jogadores perfilados: mais de 300 jogos nas areias de Copacabana
Uma copa para inclusão CRÔNICA As areias de Copacabana foram palco do 8º Campeonato Mundial de Futebol Social, com representantes de 48 países Elitza Bachvarova EM UM CLIMA de disputa eleitoral, com grupos ativistas de diversos matizes circulando no calçadão da praia, aconteceu, nas areias de Copacabana, um evento que marcou o calendário deste ano com um olhar amoroso, no tocante ao flagelo que assola, desde sempre, a humanidade: a miséria social. Entre os dias 19 e 26 de setembro, o Campeonato Mundial de Futebol Social - 8º Homeless World Cup, trouxe, de 48 países, representantes de moradores de rua, descendentes indígenas, ex-dependentes químicos, povos em situação de risco e de países em estado de guerra. A Copa dos Excluídos foi realizada em um canto da praia onde mais de 300 jogos foram disputados. Embora cheia de vida e movimento, com o barulho das vuvuzelas e o agitar alegre das 48 bandeiras nacionais, passou despercebida da grande mídia. Grandes veículos de comunicação, em algum momento de sua grade, a divulgaram sem alarde. Contidos. Mas relatos como o de Acyro Willy, a menina goleira da equipe de futebol de jovens adolescentes de Ugan-
da, foram marcantes. Embora seus olhos brilhassem com entusiasmo por poder jogar no Brasil, “a Meca do futebol”, Willy falou com tristeza das muitas dificuldades que teve de superar, pelo fato de ser uma menina e de ser capaz de praticar seu esporte favorito contra o preconceito num ambiente de acentuada cultura machista. Obstáculos de comunicação do jovem magrinho do Camboja, tentando contato de improviso com um repórter, que não falava sua língua, mostrava um lado curioso que era recorrente nessas tentativas de aproximação. Ansioso por certificar-se de que os nomes de seus companheiros fossem devidamente transcritos, mostrava-se impossível a compreensão pela via comum da linguagem falada, exceto pela linguagem da boa vontade, dos sorrisos e apertos de mão. A maioria dos participantes conheceu o status de pária, pessoalmente, ou através da experiência dos seus vizinhos mais próximos. A história de Renato Jorgevaldo da Silva, não foge à regra. “Zezinho”, como gosta de ser chamado, filho de mãe estadunidense e de pai brasileiro, do Cea-
rá, nasceu em um pequeno barraco na “maior favela da América do Sul”, como anunciou, em inglês, com orgulho o perfeito. Em homenagem à Favela da Rocinha, fez tatuagens no corpo todo, retratando suas casas e vielas, numa atitude de comprometimento com a comunidade. Ele havia lutado muitas batalhas em sua vida e conseguiu superar as desvantagens da sua humilde origem, se tornar capaz de ajudar aos outros, disposto a trabalhar pela inclusão social de jovens pobres de sua amada Rocinha.
“Desde quando surgiu, em 2003, a proposta do evento é maximizar a função social do esporte para transformar vidas de pessoas em diferentes situações de exclusão” Encontravam-se pessoas de todos os lugares, como o caso de Marcus, um membro do time de futebol austríaco, que num momento seu, aven-
tureiro e irresponsável, entrou para a Legião Estrangeira Francesa. Experiência que prefere esquecer. Sua pátria, não viu com bons olhos suas experiência de mercenário sob uma bandeira francesa e, simplesmente, o destituiu de sua cidadania. Foi declarado “apátrida”. Tal como aconteceu com os emigrados russos, pós-revolução de 1917, para os quais foram emitidos o Passaporte Jansen e, aos moldes dos palestinos de hoje, em sua terra natal e nos campos de refugiados, foi-lhe concedido um documento burocrático, grotesco e desumano, chamado “passaporte de apátrida”, que permitiu a ele viajar ao Brasil. Muitas outras histórias humanas precisam ser contadas e lembradas. “Cada atleta traz consigo uma parte do sofrimento que atinge o seu país”, conta o repórter, irmão Henrique Peregrino, do Jornal Aurora da Rua de Salvador. “Os meninos do Camboja moram num orfanato e desconhecem o aconchego de um lar; as garotas de Uganda carregam a problemática de suas comunidades que são rivais; os integrantes da equipe da França são pessoas em situação de rua, acolhidas em albergues; o time da Palestina é formado por rapazes refugiados que moram nos campos do Líbano. Mas, este é o lugar onde o espírito competitivo não reina supremo”. Como se pode ver pelas palavras de Elias, goleiro do time
da Grécia: “Nós somos os verdadeiros ganhadores da Taça. Nós perdemos todos os jogos, mas somos os vencedores porque estamos felizes, estamos vivendo o melhor dos tempos!”. Apesar de marginalizados, nenhum dos participantes foi mera vítima – todos tinham subido acima dos seus infortúnios e aceitaram “o convite para a festa”, por aqueles que ajudam a manter a chama da solidariedade, longe de ser extinta. E, do alto, no cimo de sua rocha íngreme do Corcovado, o Cristo Redentor vigia seu povo de braços abertos, como a esperar, pacientemente, a condescendência humana e a comunhão dos povos. Regras e premiações Desde quando surgiu, em 2003, a proposta do evento é maximizar a função social do esporte para transformar vidas de pessoas em diferentes situações de exclusão e risco social. Juntos, eles formam um time que luta pelo mesmo objetivo: “virar o jogo”, encontrar seu espaço e ser valorizado. Para a competição manter o espírito solidário, as regras também acompanham o ritmo do futebol social. Ca-
da equipe é formada por oito jogadores, mas só quatro entram em campo, alternando-se entre si para que todos participem do jogo. Se houver falta, cartão azul para o jogador, que ficará dois minutos fora da partida, podendo ser substituído por um reserva. No final do campeonato, todos ganham medalhas e há diversas premiações, inclusive, o troféu “Fair Play” para o time mais disciplinado, com o menor número de cartões azuis. Mas, tratandose de futebol solidário, ganhar torna-se o de menos. O importante mesmo é participar, interagir, fazer do esporte uma porta para o mundo, um caminho de inclusão; seja despertando habilidades escondidas, elevando a autoestima, ou fazendo amigos e conhecendo outras culturas. Segundo dados do torneio, mais de 70% dos participantes conseguiram mudar para melhor suas vidas. Em tempo: O Brasil é o Grande Campeão da Rio 2010 Homeless World Cup. Os times feminino e masculino levam a taça mundial do Torneio. Derrotando na final México e Chile respectivamente. (Colaboraram Vanessa Ive, Maria Lúcia Barbosa e Maria Regina Scerni Barbosa)
A partir da esquerda, Zezinho da Rocinha, Elias, goleiro da Grécia, e a jovem goleira de Uganda, Aciro Milly
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américa latina Reprodução
As águas contaminadas do rio Huanuni no departamento de Oruro
Casos denunciados pelos movimentos indígenas e camponeses da Bolívia Lliquimuni Localização: Esta região compreende territórios de seis municípios do departamento de La Paz, localizados dentro da amazônia boliviana, e fazem fronteira com o departamento de Beni. Atividade: Extração de petróleo pela YPFB (Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos) e Petroandina. Problema: O povo mosetén reclama o direito à verdadeira consulta e acusa as empresas de dividir as comunidades, contaminar a água, destruir florestas e perfurar mais poços que o previsto inicialmente.
Corocoro Localização: cerca de 120 quilômetros a sudoeste da capital La Paz. Atividade: Projeto hidrometalúrgico para extração de cobre por Korea Resources Corporation (Kores). Problema: A Conamaq denuncia o desvio de cursos de água – que deixou sem esse bem natural algumas comunidades –, a falta de qualquer tipo de consulta e a não apresentação de um estudo de impactos ambientais.
San Cristóbal
A luta pelo direito à consulta BOLÍVIA Diante do protagonismo de Evo Morales na luta contra a crise ambiental no cenário internacional, movimentos intensificam pressão para mudanças no próprio país Vinicius Mansur correspondente em La Paz (Bolívia) DURANTE a Conferência Mundial dos Povos sobre Mudanças Climáticas, realizada em abril deste ano na cidade boliviana de Cochabamba, as organizações sociais já haviam deixado visível sua insatisfação com o tratamento dado pelo governo da Bolívia às questões ligadas ao meio ambiente em seu próprio país, especialmente no que diz respeito ao direito a serem ouvidas. Na ocasião, movimentos sociais como o Conselho Nacional de Ayllus e Markas do Qullasuyu (Conamaq) e a Confederação dos Povos Indígenas do Oriente Boliviano (Cidob) organizaram a chamada Mesa 18, paralela ao evento, para debater os impactos ambientais de diversos empreendimentos e obras de infraestrutura em solo boliviano (veja quadro nesta página). No dia 28 de setembro, Cidob, Conamaq e a Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB) promoveram mais um encontro para tentar reverter a situação. As organizações estão levando adiante a formulação de propostas para uma nova Lei de Hidrocarbonetos, Lei da Mãe Terra e Lei Marco de Consulta. Legislação O dirigente da Conamaq, Tata Rafael Quispe, destacou que os direitos dos povos indígenas já estão respaldados por uma longa normativa internacional, iniciada pelo Convênio 107 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1957. Em 1989, foi aprovado o Convênio 169, ratificado pela Bolívia em 1991, e, em 2008, foi aprovada a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas pela Organização das Nações Unidas (ONU), já sob o governo de Evo Morales. Segundo Quispe, a própria legislação boliviana já protege os povos indígenas, mas a lei não vem sendo aplicada:
“A Constituição, em seu artigo 30, fala dos direitos indígenas. O direito à consulta está no parágrafo 15. No artigo 352 é indicado que a exploração dos recursos naturais deve ter consulta prévia [aos povos indígenas afetados pelo empreendimento]. O artigo 403 diz que se deve manter a integridade territorial. Atendose a todos esses antecedentes, o governo do irmão presidente violou vários direitos”. Quispe lamentou que Morales tenha feito toda uma campanha para que a água seja declarada um direito humano pela ONU, enquanto em Corocoro, no norte do departamento de La Paz, comunidades aimaras – representadas pela Conamaq – estejam sem água por conta da mineração.
Segundo Quispe, a própria legislação boliviana já protege os povos indígenas, mas a lei não vem sendo aplicada Direito de consulta O principal alvo de insatisfação dos movimentos sociais é a falta de atenção com a que o governo vem tratando o direito à consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas e camponeses. De acordo com o dirigente da CSUTCB, Cristian Domingues, o problema reside no fato de apenas as explorações de hidrocarbonetos – petróleo e gás natural – serem regulamentadas nesse sentido. “Para a mineração, manejo de florestas, construção de estradas e hidrelétricas não há regulamentação. O direito de consulta serve para que estes projetos tenham nosso conKris Krüg/CC
Mesa 18, evento paralelo à conferência sobre mudanças climáticas
sentimento. Se esses projetos conviveram com a gente todos os dias, e não há consentimento, significa que cometeram um delito, que nos abusaram, que violaram nossos direitos. Se planejarmos juntos, é possível. Não somos contra o desenvolvimento, mas pela regulamentação”. A falta de planejamento foi exemplificada por Domingues com os títulos de terra dados para camponeses pelo governo, através de reforma agrária, no departamento de Beni. Porém, algumas terras estão na região de Cachuela Esperanza, onde está prevista a construção de uma hidrelétrica, que integra o Complexo do Rio Madeira – projeto previsto na IIRSA (Iniciativa pela Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana). “No dia 2 de agosto, recebi o título para estar nesta zona; mas para que me deram títulos se vão inundar?”, indagou. A exploração de hidrocarbonetos é mais comum no oriente do país; e, segundo o dirigente Nelson Bartolo, da Assembleia do Povo Guarani (APG), organização que integra a Cidob, os processos de consulta vêm evoluindo, mas com muita dificuldade. “De acordo com o regulamento, o primeiro momento da consulta deveria ser realizado antes da aprovação da medida legislativa, ou administrativa, e da aprovação de planos, obras, programas, projetos, licitações, autorizações, contratações e convocações do setor. Mas esse momento, para nós, não existe. Participamos do segundo momento, previamente à elaboração de estudos”. O governo O diretor de Gestão Socioambiental do Ministério de Hidrocarbonetos e Energia, Omar Quiroga, destaca que o processo de consultas acontece desde 2007, sendo que 15 consultas já foram concluídas, quatro estão em andamento e, até 2011, estão previstas outras oito. “Tivemos problemas, mas a única forma de avançar é entender a lógica das organizações indígenas-originárias-camponesas de ver a realidade, os recursos naturais, a natureza. É a geração de confiança que te faz avançar”, pondera. O diretor enfatizou que as consultas se restringem às explorações de hidrocarbonetos por um limite legal: “Não podemos fazer em outras áreas porque temos uma lei pesada contra corrupção, que cai em cima de ações que não têm um regulamento que a respalde. E isto só há para os hidrocarbonetos”, justifica.
O esforço dos movimentos, agora, será reunir forças em torno da formulação de projetos de lei que assegurem a consulta. Segundo Quispe, é necessária uma Lei Marco de Consultas, que incida sobre todas as formas de exploração de recursos naturais, que garanta a consulta antes de qualquer medida exploratória, mesmo as administrativas, que reconheça e respeite as formas de organizações já existentes e que preveja o monitoramento socioambiental – para o controle social pós-licitação.
O esforço dos movimentos, agora, será reunir forças em torno da formulação de projetos de lei que assegurem a consulta “O direito à consulta não é poder de veto, mas tampouco é só fazer uma oficina, por um café, um almoço. Nós queremos debater o que é o consentimento. Além disso, tem que se adequar à realidade de cada povo, respeitar as instituições que cada um tem, porque não somos todos iguais”, sentenciou. Outro elemento fundamental para Quispe é que a elaboração das novas leis saia das organizações sociais. “As propostas não têm que sair do gabinete, mas das organizações sociais. Não queremos que as leis sejam feitas por eles, e adequadas por nós, mas ao contrário. Este processo [governo Evo] é de todos; construímos com muita dificuldade e não estamos contra ele. Não é possível que o governo nos dê as costas”. No dia 12 de outubro, as organizações camponesas e indígenas farão uma marcha nacional para entregar aos poderes Legislativo e Executivo o projeto da Lei Mãe Terra. “Desceremos de El Alto [cidade vizinha à La Paz] até a Praça Murillo [onde estão o Congresso Nacional e o Palácio Presidencial em La Paz]. O dia 12 é uma data nefasta para nós, porque é o dia em que os espanhóis chegaram e romperam nossa cultura. Queremos, agora, respeitar a Mãe Terra, porque ela é tudo, temos que protegê-la, cuidar dela e até venerá-la”, relatou.
Localização: sudoeste do departamento de Potosí, cerca de 500 quilômetros da cidade de La Paz. Atividade: Projeto hidrometalúrgico para extração de prata pela empresa japonesa Sumitomo. Problema: A atividade tem causado o esgotamento das fontes subterrâneas de água da região.
Mutún Localização: Província German Busch, do departamento de Santa Cruz. Vizinho do Maciço de Urucum, em Corumbá, Mato Grosso do Sul. Atividade: Extração de ferro pela empresa indiana Jindal Steel Bolivia (JSB) Problema: Movimentos indígenas reivindicam uma “verdadeira consulta” e alertam para os riscos de contaminação da água e do solo.
Tipnis Localização: Comunidade indígena dentro do Parque Nacional Isiboro-Sécure. O parque está dentro da província Moxos (no departamento de Beni) e da província Chapare (no departamento de Cochabamba). Atividade: Construção, pela empreiteira brasileira OAS, da estrada Villa Tunari-San Ignacio de Moxos, que ligará os departamentos de Beni e Cochabamba. 300 quilômetros dela passam por dentro do parque. Atividade ainda não iniciada. Problema: Divisão de territórios dos povos moxeños, yuracarés e chimanes, danos à reserva ecológica e à biodiversidade.
Rios Huanuni, Desdaguadero, Poopó e Cañadón Antequera; Lagos Uru Uru e Poopó. Localização: departamento de Oruro. Atividade: Mineração pela estatal boliviana Empresa Mineira Huanuni. Problema: Todas estas fontes de água foram contaminadas por vazamento de resíduos.
Agüaragüe Sur “A” Localização: região dentro do Parque Nacional Agüaragüe, da província Gran Chaco, no departamento de Tarija. Atividade: exploração de petróleo pela YPFB Petroandina Problema: Povo guarani reclama seu direito à consulta.
Charagua Norte Localização: Município da província Cordillera no departamento de Santa Cruz. Atividade: Exploração de gás natural pela empresa boliviana Transierra S.A. Problema: Povo guarani critica o processo de consulta.
Cachuela Esperanza Localização: Rio Beni, a 90 quilômetros da cidade de Riberalta, no departamento de Beni. Atividade: Construção de hidrelétrica, que compõe o complexo hidrelétrico do Rio Madeira, parte da IIRSA. Ainda não foi licitado. Problema: Perda de biodiversidade, impactos sobre curso de rios, críticas ao viés exportador do projeto e desalojamento da população. Reprodução
Cachuela Esperanza ameaçada por construção de hidrelétrica
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américa latina Presidencia de la Republica del Ecuador
Balançou, mas não caiu EQUADOR Rechaço à lei de serviços públicos, que afetaria policiais, serviu de pretexto para tentativa de golpe contra o presidente Rafael Correa, dizem especialistas Dafne Melo da Redação CRISE institucional, uma simples derrota ou tentativa de golpe de Estado? Essa é uma das perguntas que surgem em relação à rebelião realizada por policiais equatorianos no dia 30 de setembro, que deixou pelo menos oito mortos e 274 feridos, incluindo o presidente Rafael Correa e o chanceler Ricardo Patiño. Para o sociólogo argentino Atilio Borón, é necessário rechaçar os eufemismos em relação ao ocorrido. Citando Arturo Valenzuela, secretário-adjunto de Estado para a América Latina do governo de Barack Obama, que classificou o ocorrido de “um ato de indisciplina policial”, o sociólogo pergunta: “[Valenzuela] caracterizaria desse modo se o equivalente à Polícia Nacional, nos EUA, tivesse agredido fisicamente a Barack Obama, o machucando? Se o tivessem sequestrado e mantido em reclusão por doze horas, em um hospital, até que um comando especial do Exército o liberasse depois de um intenso tiroteio? Seguramente que
não, mas como se trata de um mandatário latino-americano, o que lá seria intolerável, aqui aparece como uma travessura de escolares”. Nildo Ouriques, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde é pesquisador do Instituto de Estudos Latino-Americanos (Iela), também acredita que houve tentativa de golpe e que tal feito não seria descabido na conjuntura do país. “Os EUA não veem com bons olhos o governo do Equador e, ao mesmo tempo, há setores da direita que se beneficiariam com sua saída”, afirma. Borón é mais enfático: “Não foi um pequeno grupo isolado dentro da polícia que tentou dar um golpe, mas um conjunto de atores sociais e políticos a serviço da oligarquia local e do imperialismo, que jamais vai perdoar Correa por retirar as bases estadunidenses de Manta, de auditar a dívida externa e de entrar na Alba [Alternativa Bolivariana para as Américas], dentre outros fatores”.
O ex-ministro afirma, porém, que ainda é cedo para determinar se houve alguma participação direta dos Estados Unidos Premeditado
O economista Alberto Acosta, ex-ministro de Minas e Energia e ex-presidente da Assembleia Constituinte, cargos ocupados no governo de
Manifestação de apoio ao presidente equatoriano realizada em Quito, capital do país
Rafael Correa, acredita que é necessário mais informação para se ter certeza do que ocorreu. Entretanto, afirma que, analisando o desencadear dos acontecimentos, a rebelião foi certamente organizada e premeditada. Além disso, independentemente das reais intenções dos policiais, a revolta assumiu caráter golpista a partir do momento em que “foi aproveitada e exacerbada por uma direita golpista que se opõe ao governo”. O ex-ministro lista os indícios que mostram o grau de organização dos policiais. “Podia-se ver que a rebelião policial havia sido preparada com antecipação. Foram vários os quartéis, em todo o país, nos quais, simultaneamente, se amotinaram os policiais. Também em vários recintos militares, como o Ministério da Defesa, soldados protestaram. Dois aeroportos chave foram bloqueados: Quito y Latacunga; lá, os soldados tinham cartazes claramente elaborados
com antecedência. A Assembleia Nacional foi fechada pela polícia e os parlamentares da base do governo eram impedidos de entrar quando tentavam organizar uma resposta de defesa à democracia a partir do poder legislativo; enquanto isso, os parlamentares do Partido Sociedade Patriótica, do ex-coronel e presidente Lucio Gutiérrez [destituído em 2005, após revolta popular], entravam tranquilamente”, relata. Apoio popular
Correa culpou justamente Gutiérrez, exilado em Brasília, por articular a tentativa de golpe. De acordo com Acosta, é sabido que o partido de Lucio é formado por um bom número de ex-policiais e ex-militares. “Junto aos sublevados ativos, registrou-se a presença de vários policiais e militares da reserva”, completa. Para Nildo Ouriques, uma das medidas mais urgentes que Rafael Correa deve tomar
é expulsar e punir os policiais envolvidos na sublevação. O comandante e chefe da polícia equatoriana, Freddy Martínez, pediu demissão do cargo, e Correa já anunciou uma “depuração” na Polícia Nacional. De acordo com Acosta, a medida tem justificativa, já que boa parte deste setor está ligada aos Estados Unidos, devido ao fato de que governos anteriores permitiram que várias unidades da polícia fossem financiadas e controladas diretamente pela embaixada estadunidense, situação que se manteve até pouco tempo. “São muitos os oficiais desse setor da força pública e das Forças armadas que receberam instruções em escolas militares dos EUA”. O ex-ministro afirma, porém, que ainda é cedo para determinar se houve alguma participação direta dos Estados Unidos. A secretária de Estado Hillary Clinton se pronunciou
Presidencia de la Republica del Ecuador
Movimentos sociais rechaçam o golpe, mas exigem mais diálogo do governo Para organizações e analistas, Correa precisa refazer o pacto com setores que apoiaram sua eleição para que processo não seja derrotado pela direita da Redação O governo de Rafael Correa é visto, de forma geral, como um dos mais progressistas da América Latina, junto com o de Hugo Chávez na Venezuela, e o de Evo Morales na Bolívia. Porém, para parte dos movimentos sociais equatorianos e alguns analistas, Correa tem se distanciado cada vez mais de uma postura de fato progressista e transformadora, que pôde ser vista em diversos momentos, como a adesão à Alba, a auditoria da dívida externa – feito pioneiro da América Latina –, a não renovação do acordo militar com os EUA na base de Manta, e a postura enérgica diante dos ataques colombianos, em seu território, em março de 2008. “É possível e necessário que Rafael Correa refaça um pacto com os setores que o apoiaram. Ele precisa voltar à raízes da revolução cidadã”, avalia Nildo Ouriques, professor da UFSC e pesquisador do Instituto de Estudos Latino-Americanos (Iela). Segundo o economista Alberto Acosta, ex-mi-
nistro de Minas e Energia e ex-presidente da Assembleia Constituinte, ambos os cargos ocupados, no governo de Rafael Correa, parte do que ocorreu dia 30 de setembro é explicável pela “prepotência do governo, que começa a cobrar a conta”. Na sua opinião “o presidente e seu governo não sabem dialogar. Não respeitam as posições contrárias. Muitas vezes, as atropelam. Impõem leis, inclusive sem respeitar parlamentares de sua própria bancada. Foram tomadas decisões políticas que vão contra a Constituição de 2008 apoiada por Correa. Há vários problemas simultâneos”, analisa Acosta, que aponta descontentamentos em diversos setores do funcionalismo público, professores, estudantes, mineradores artesanais, camponeses, sindicalistas e indígenas. Indígenas
Uma das principais organizações sociais do país, a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), em nota oficial, condenou a tentativa de golpe, mas fez fortes críticas ao governo de Correa. “Um processo de transformação, por mais fraco que seja, corre o risco de ser derrotado ou de se juntar à direita, nova ou velha, se não estabelecer alianças com os setores sociais populares organizados e se aprofundar progressivamente”, diz a nota. A Conaie agregou que o motim do dia 30 mostra diversas contradições do atual governo. Primeiro, que “o governo tem se dedicado exclusivamente a atacar e deslegitimar os setores organizados do movimento indí-
somente um dia após os ataques, condenando a sublevação, a essa altura, já frustrada. Nas primeiras horas, ainda quando Correa estava detido dentro do hospital, diversos líderes condenaram a ação da polícia, desde os mais óbvios, como Venezuela, Bolívia, Argentina e Brasil, até Colômbia e França. Para Atilio Borón, este foi um dos principais motivos pelo qual as forças policiais se viram obrigadas a recuar. O sociólogo também credita o recuo à mobilização popular. Outros analistas, porém, apontam que não houve manifestações massivas. O professor universitário Leonardo Ogaz, em artigo, afirma que “as mobilizações em defesa do governo foram significativas, mas não foram massivas como poderia se esperar e tiveram um claro traço populista”. (Colaborou Igor Ojeda, da Redação; com informações da Agência Latino Americana de Informação – Alai)
gena e sindicatos, enquanto não debilitou minimamente as estruturas de poder da direita, sequer dentro dos aparatos do Estado”.
Uma das principais organizações sociais do país, a Conaie, em nota oficial, condenou a tentativa de golpe, mas fez fortes críticas ao governo de Correa
Policiais revoltos: golpismo premeditado
Lei de serviço público elimina benefícios de policiais e militares da Redação
Segundo, que a crise foi motivada pelo caráter autoritário do governo, avesso ao diálogo. Terceiro, que a forma como esse governo tem reprimido as mobilizações sociais contrárias à ação das transnacionais alimenta os setores conservadores. Os mais velhos pedem a saída de Correa e a instauração de uma nova ditadura; os mais novos, dentro e fora do governo, utilizam a conjuntura instável para justificar suas alianças com setores reacionários. Para Alberto Acosta, “se o governo continuar com essa postura pouco democrática, fechando o dialogo com organizações sociais e criminalizando os setores populares, temo que estes acontecimentos possam se repetir”. (DM, com a colaboração de IO)
O motivo alegado pelos policiais para realizar a rebelião do dia 30 de setembro foi a edição de uma Lei de Serviços Públicos, que, em um de seus artigos, elimina abonos salariais, cestas de Natal e outros benefícios, somente direcionados aos efetivos policiais e militares, discriminando o resto dos funcionários deste setor. De acordo com o governo, a lei tem como objetivo organizar os salários do funcionalismo público. Policiais e militares ganhavam mais que outros setores, e a lei teria a função de dar homogeneidade aos benefícios trabalhistas. A administração federal afirma, entretanto, que todos os adicionais recebidos pelas forças de segurança foram incorporados ao salário e, por isso, foram eliminadas.
“O grave é que, na realidade, segundo o governo, policiais e militares sairiam beneficiados porque se, por um lado, as bonificações foram tiradas, o salário aumentou substancialmente” Antes, recebiam 907 dólares mensais e, agora, receberão 2.448 dólares. Aumento salarial
O economista Alberto Acosta, ex-ministro de Minas e Energia e ex-presidente da Assembleia Constituinte, cargos ocupados no governo de Rafael Correa, confirma a informação. “O grave é que, na realidade, segundo o governo, policiais e militares sairiam beneficiados porque se, por um lado, as bonificações foram tiradas, o salário aumentou substancialmente”. Para muitos, as forças policiais utilizaram a medida apenas co-
mo desculpa, espalhando falsas informações sobre a lei. No dia 4 de outubro, Correa, reafirmou o aumento dos policiais. Por outro lado, descartou o uso da “morte cruzada”, que vinha anunciando poucos dias antes da tentativa de golpe. O recurso, previsto na Constituição de 2008, permite que o presidente da República destitua a Assembleia Nacional e também sua função, chamando novo pleito. Correa não governa com maioria na Assembleia: conta com 54 parlamentares dos 124 cargos existentes. (DM, com a colaboração de IO e com informações da Telesur)
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américa latina Presidencia de la República del Ecuador
O Equador diante de um divisor de águas ANÁLISE No balanço sobre o ocorrido, um ponto a se destacar é que o levante desvelou a fragilidade do regime e do processo político que ele incentiva Osvaldo León Anunciada como uma greve contra algumas medidas contempladas na Lei Orgânica do Serviço Público, a insubordinação do corpo policial acantonado no Regimento Quito nº 1, ocorrida no dia 30 de setembro, foi, pouco a pouco, desdobrando-se em uma sincronização de ações com conotações desestabilizadoras que deram fôlego à hipótese de golpe de Estado. Em poucas horas, havia-se configurado um complexo panorama: o presidente Rafael Correa retido em uma instalação policial; a Assembleia Nacional controlada pela guarda de policiais encarregados de sua segurança; a ação de força deste mesmo contingente se estendendo a outras cidades; o fechamento do aeroporto da capital por parte de setores da Força Aérea e outros fatos mais orientados a apresentar uma situação de “ingovernabilidade” como pretexto para se pedir a renúncia de Correa.
De fato, não faltaram atores políticos que, no Parlamento, se anteciparam a apresentar demandas neste sentido. Ainda que com atraso, o pronunciamento do Comando Conjunto das Forças Armadas em respaldo ao ordenamento democrático e, por tanto, ao regime estabelecido, foi um fator chave para frear o curso do levante. A questão é que, mais uma vez, o corpo castrense se converteu em ator político. Precipitações Diante de um acontecimento ainda em desenvolvimento, é sempre difícil chegar a uma caracterização precisa. Isso não impede que se assinalem as constantes que se cruzam e que, nesse caso, indicam que se trata de precipitações. Em primeiro lugar, porque desde que Correa chegou ao governo, vem se armando contra ele um movimento conspirativo (com apoios internacionais, certamente) que, pela intensidade conjunturalmente adquirida, acabou por sair de seu contro-
le com a precipitação de fatos que, no final, significaram um mergulho no vazio. Não menos precipitada foi a decisão de Correa de ir ao foco do conflito. O fato de que tenha saído relativamente ileso (questão que o regime está buscando capitalizar politicamente) não oculta que realmente não se mediram as consequências. No mesmo sentido, este é um ponto utilizado pela oposição para jogar a Correa as responsabilidades sobre o curso que a insurreição tomou.
Foi evidente a demora em reagir de maneira articulada por parte do governo e de seu movimento político No balanço sobre o ocorrido, um ponto a se destacar é que o levante desvelou a fragilidade do regime e do processo político que ele incentiva. Foi evidente a demora em reagir de maneira articulada por parte do governo e de seu mo-
Marcha de apoio ao presidente Rafael Correa
vimento político. Aspecto que foi suprido pela mobilização espontânea de partidários de Correa e de setores populares organizados que, paulatinamente, foram ganhando presença e força – com a particularidade de que uma boa parte destes últimos agiu reconhecendo que o processo democrático e as conquistas alcançadas estavam em perigo, mas sem deixar de assinalar seus questionamento ao governo. Relações complexas Cabe anotar que as relações do governo Correa com os movimentos sociais vêm se tornando cada vez mais complexas. Em boa parte, porque a opção por uma lógica tecnocrática deixa o fator “participação cidadã” no plano da retórica; e, em outras, por diferenças realmente conceituais de projeto (como o tema extrativista, em relação a organizações indígenas). Mas há um fato circunstancial que se encarregou
de complicar as coisas: por disposição da nova Constituição, a Assembleia Nacional está obrigada a aprovar um conjunto de leis consideradas chave. De fato, o tempo estipulado já se esgotou, o que fez com que o organismo adotasse uma extensão de tempo que significou que as leis a ser aprovadas se encavalassem.
A primeira semana de outubro se anunciava tensa, porque esses diversos mal-estares coincidiriam em uma mobilização conjunta
Setores específicos têm objeções em relação a cada uma delas. Independentemente de serem justas ou não, o fato é que, ao coincidir no tempo, tais setores vêm se reforçando mutuamente em suas ações de protestos. Tanto que a primeira semana de outubro se anunciava tensa, porque esses diversos malestares coincidiriam em uma mobilização conjunta. A precipitação dos fatos de 30 de setembro parece ter mudado os tempos e cenários. Neste ponto, o regime se encontra diante de um divisor de águas: a rearticulação de alianças estratégicas com os movimentos populares para aprofundar o processo de mudanças ou o acômodo com os setores de poder para que não aconteçam mais ondas desestabilizadoras. Osvaldo León é jornalista equatoriano e coordenador da Agência Latino-Americana de Informação (Alai)
INTERNACIONAL
Bem-vindos ao Terceiro Mundo! Miguel Manzano/CC
ESPANHA A crise financeira global, iniciada em 2008, afetou fortemente o país, que vive hoje uma situação delicada, bastante conhecida pelas nações do sul Breno Bringel e Janaina Stronzake “CRISE. Desemprego. Miséria. Demissões. Recorte salarial. Fim dos planos sociais. Violência. Ajuste. Sujeição ao FMI. Êxitos esportivos: os países mais pobres do mundo cumprimentam os espanhóis. Bem-vindos ao Terceiro Mundo!”. Essa foi a particular homenagem da revista de humor argentina Barcelona, que dedicou uma capa com essa manchete logo depois da vitória espanhola na Copa do Mundo de 2010. A anedota desnuda uma grave situação: a crise financeira global iniciada em 2008 afetou fortemente a Espanha, que vive hoje uma situação delicada, bastante conhecida pelos países do sul. A particularidade da crise, na Espanha, consiste em ter se encontrado com um processo simultâneo de profunda precarização das relações de trabalho, privatização dos setores públicos e um esgotamento da indústria imobiliária especulativa que freou o ciclo de crescimento insustentável anterior. Nos últimos dois anos, sucederam-se os recortes sociais, os salários dos funcionários públicos foram reduzidos e, a cada dia, a lista de desempregados aumenta, chegando já a mais de quatro milhões de pessoas, que representam 20% da população ativa. A solução do governo espanhol para sair da crise? Continuar protegendo o sistema financeiro, ao mesmo tempo em que propõe uma reforma trabalhista que flexibiliza a relação patrão-empregado, reduzindo os custos de demissão e facilitando a vida
dos empresários. Mas as boas intenções do “socialista” Zapatero não param por aí: ele quer também aprovar uma reforma do sistema de pensões, com o objetivo de aumentar a idade da aposentadoria de 65 a 67 anos. Como foi a greve As reformas trabalhista e do sistema de pensões foram o estopim para que as duas centrais sindicais majoritárias na Espanha (Comissões Operárias – CCOO – e União Geral dos Trabalhadores – UGT) convocassem, para 29 de setembro, uma greve geral. Apesar das várias tentativas dos meios de comunicação de criminalizar a mobilização e minimizar a importância da greve, aproximadamente dez milhões de trabalhadoras e trabalhadores pararam por um dia. Perto da meia noite do dia 28, a mobilização começou com festa. O cantor e compositor José María Alfaya animou a concentração, na praça Santa Ana, no centro de Madri. Outros artistas se somaram e declararam que os 21 teatros da capital espanhola estariam em greve, bem como quaisquer gravações de filmes ou séries. No campo das expressões culturais, a taxa de desemprego chega a 65%. “Nossa democracia está em perigo”, disse o ator Alberto San Juan. “Precisamos protestar pelo conjunto da situação que estamos vivendo, não só contra essa reforma trabalhista”. Também na virada do dia 28 para o dia 29, piquetes pararam a vida noturna de várias localidades, começando a criar o clima de mobilização para a jornada do dia seguin-
“Não ao congelamento de pensões”, avisa faixa carregada durante a greve geral na Espanha
“Precisamos protestar contra o conjunto da situação que estamos vivendo, não só contra essa reforma trabalhista” te, que começou cedo. Nas grandes cidades, o principal objetivo foi parar o transporte público, a indústria e os mercados de abastecimento. O êxito foi notório. A capital amanheceu sem ônibus, sem transmissão televisiva local e com os grandes mercados fechados. Durante o dia, piquetes cortaram a Gran Vía, a principal avenida da cidade, e uma manifestação massiva culminou o dia. Em Barcelona, houve um alto índice de adesão à greve e fortes enfrentamentos entre a polícia e os manifestantes, que acabaram com mais de 40 pessoas presas. Em Sevilha, Vigo, Gijón e Valência, os trabalhadores e trabalhadoras mantiveram os serviços mínimos essenciais, mas também fizeram importantes mobilizações. O apoio à greve variou muito de acordo com os setores. Foi aderida em massa por setores como a metalurgia, a indústria e a agricultura. Os portos praticamente pararam em todo o país, e vários voos foram cancelados. No outro extremo,
nas administrações públicas e no setor do comércio, o grau de adesão foi menor. Greve ou greves... Mas talvez um dos dados mais destacáveis seja que não foram somente os trabalhadores e trabalhadoras com emprego e salário que pararam, e que a “greve oficial” convocada pelos sindicatos majoritários não foi a única forma de expressão da greve geral. Houve muitas formas de protesto e ação direta, como ocupações de imóveis, manifestações descentralizadas em bairros, bicicletadas, piquetes festivos e performances, que demonstraram tanto sua oposição às reformas (e de forma mais profunda, às políticas neoliberais que lhe dão origem e sustento) como à posição dos sindicatos que convocaram a greve, distantes dos interesses das classes trabalhadoras e muito próximos ao discurso e jogo da política institucional. Com esse pano de fundo, o grupo dos chamados “precários” (que incluem desempregados, estagiários, aque-
les sem contratos ou com contratos precários e de curta duração, trabalhadores autônomos e estrangeiros, entre outros) encontrou uma forma de se manifestar com criatividade e democracia. Foi aberto um blog (www.cualestuhuelga.net) para várias formas de expressões: os sindicatos mais críticos e os movimentos sociais aproveitaram a conjuntura para lançar um discurso de ruptura, com propostas para uma saída social à crise. Também interessante foi a crítica ao machismo dos sindicatos: feministas levantaram suas bandeiras contra o patriarcado, acusando a “greve oficial” de machista e excluidora das mulheres. Em Madri, dentro dos protestos conduzidos por coletivos de base, foram organizadas cirandas infantis e almoços coletivos, para garantir que as mulheres também pudessem estar nas ações. Esperanças “Que os ricos paguem a crise” tem sido o lema dos movimentos sociais na Espanha. Mas, até agora, quem vêm pagando suas consequências são os trabalhadores e trabalhadoras. Nem a greve geral parece ter sido suficiente para que o presidente Zapatero retificasse o rumo da “euro-
peização” de seu governo, antes considerado “progressista” por causa de algumas políticas sociais que, de forma contraditória, estão sendo totalmente sacrificadas agora. O controle da União Europeia e das organizações internacionais é estrito nos países da zona do euro, como pôde ser visto meses atrás, quando eclodiu a crise na Grécia, e como está acontecendo também na Espanha. Por outro lado, o aumento da xenofobia, homofobia e racismo é preocupante. Na Espanha, imigrantes são detidos pela cor da pele; e, nas eleições recentes da Holanda e da Suécia, a extrema direita ganhou espaço no governo. Tudo isso num contexto de defesa intransigente a um modelo determinado de democracia (cada vez mais cansada e caduca) que querem exportar a todo o mundo. Há esperanças. A greve geral mostrou que há uma vontade de rearticular a luta social na Espanha, ainda que os desafios sejam enormes, tanto internamente – devido ao alto grau de fragmentação existente entre os atores sociais, as particularidades autonômicas e uma grande apatia – como no panorama externo, em que é imprescindível unificar as lutas na Europa, aproveitando o alto fluxo de mobilização existente principalmente na França e na Grécia. O êxito dessa empreitada dependerá, em grande medida, da capacidade da classe trabalhadora de sublimar a frustração em mobilização e estreitar as articulações que permitam uma resistência regional capaz de incidir não só nas políticas nacionais, mas também nas europeias. Mais que tudo, de ir além de reformas do capitalismo decadente e construir um projeto revolucionário, um projeto socialista. Breno Bringel e Janaina Stronzake são colaboradores do Brasil de Fato em Madri (Espanha)
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internacional Reprodução
POBREZA Relatório do Ministério da Agricultura do país mostra que em 2008 quase 50 milhões de estadunidenses passaram fome e que o problema está piorando Yuri Martins Fontes de São Paulo (SP) EMBORA as cenas de pobreza que estamos habituados a ver provenham em geral da África, Ásia ou rincões da América Latina, a realidade é que ela, em maior ou menor grau, está presente também nas nações mais ricas – como qualquer observador (não necessariamente muito atento) pode verificar, e mesmo nas capitais europeias. Com a atual crise econômica que vem balançando as instituições capitalistas mais fortes, a globalização da pobreza e da fome se alastra, e se faz mais visível. Segundo o último relatório (de 2009) do Ministério da Agricultura dos EUA (USDA), 49,1 milhões de pessoas (14,6% dos lares) passaram fome no país em 2008, ano marcado pela recessão e por aumentos de preços dos alimentos. Ou seja, a população estadunidense faminta é maior do que toda a população argentina. A pesquisa, realizada pelo Programa de Investigações acerca da Assistência Alimentar e Nutrição, esclarece ainda que a fome atingiu “pessoas que pertencem a algum núcleo familiar”, o que denota que as estimativas devem ser ainda mais graves do que o verificado, dada a omissão dos casos de pessoas e famílias sem teto. Durante apenas um ano, o número de famintos aumentou quase um terço – tomando como base o relatório de 2007, que apontava 11,1% das famílias passando fome “ao menos em algum período do ano”. Há, ainda, o agravante de que, nos lares em que vivem crianças, a cifra de famintos sobe para 22,5%. O número de crianças que vivem em estado de “insegurança alimentar” aumentou, no último ano, de 13 para 17 milhões.
Contra a Fome, “somos orgulhosos de ser o país mais rico do mundo, e nos dá vergonha admitir que, por aqui, se passa fome. Os números demonstram que a procura por restaurantes populares aumentou em 20% em um ano, e 55% dos programas de emergência não têm comida suficiente para os necessitados. O governo gasta bilhões a cada ano em armas, equipamentos militares e para manter 100 mil soldados em uma guerra contra um suposto terrorismo, premia os corruptos de Wall Street com lucros astronômicos, enquanto grande parte de nosso povo não tem o que comer”, denuncia. Desigualdade social
A globalização da miséria se agrava também nos EUA Comunidade de sem tetos em St. Louis nos EUA
“Inquietante”
Dentre os estados que mais sofreram com a fome, estão o Mississipi (17,4%), o Texas (16,3%) e o Arkansas (15,9%), no centro-sul do país. Já as menores taxas foram dos estados do Centro-norte e Nordeste, como Dakota do Norte (6,9%) e Massachussets (8,3%). Dentre os grupos familiares com índices superiores à média nacional, estão aqueles “que têm crianças e são chefiados por mulher solteira” (37,2%), os de famílias afrodescendentes (25,5%) e latino-americanas (26,9%). Segundo constata o próprio relatório: “Esta é a maior taxa de ‘insegurança alimentar’ registrada no país desde 1995, quando o primeiro levantamento nacional de segurança alimentar foi realizado”. O informe foi qualificado de “inquietante” pelo presidente Barack Obama, especialmente porque as cifras mostram que milhares de “crianças passaram fome, o que é um perigo para o futuro do país: a capacidade de um menino crescer, aprender e realizar todo seu potencial, e, portanto, nossa futura competitividade como nação, depende de uma alimentação saudável e regular”. Já o secretário de Agricultura dos EUA, Tom Vilsack, afirmou que “este é um problema sério que não
deve ser tolerado”, atribuindo o agravamento da fome ao aumento do desemprego em 2008. É importante notar que as taxas de emprego caíram vertiginosamente em 2009, de modo que provavelmente as cifras do próximo relatório devem ser mais problemáticas.
49,1 milhões de pessoas (14,6% dos lares) passaram fome no país em 2008, ano marcado pela recessão e por aumentos de preços dos alimentos Os cálculos e classificações
Segundo explica o relatório, famílias são consideradas em situação de “insegurança alimentar” quando, “durante o ano, não conseguiram adquirir alimentos suficientes para satisfazer as necessidades de todos os seus membros, por motivo de insuficiência de di-
nheiro ou outros recursos”. A classificação de “insegurança alimentar” do USDA engloba as famílias ditas com “baixa segurança alimentar” e com “muito baixa segurança alimentar”. Em situação de “baixa segurança alimentar”, são consideradas as famílias que “foram obrigadas a interromper seus padrões de alimentação, ou reduzi-los, utilizando variadas estratégias de enfrentamento da situação, que vão desde a uma dieta menos variada [mais econômica], até a participação em programas de assistência alimentar, ou mesmo obtenção de alimentos junto a sua própria comunidade”. Nessa faixa, o relatório aponta que estão 8,9% das famílias (10,4 milhões de lares) – valor que supera significativamente os 7% de um ano antes (2007). Já a classificação de insegurança “muito baixa” é aplicada às famílias em quais “um ou mais membros tiveram sua alimentação interrompida e reduziram sua ingestão de alimentos em períodos do ano, porque não tinham dinheiro ou outros recursos para comprar comida”. Classificadas desse modo, em 2008, estiveram 5,7% (6,7 milhões) dos domicílios dos EUA – um aumento de 4,1% em relação ao ano anterior.
Eufemismo
O relatório informa ainda que, em suas versões anteriores, estas famílias foram descritas como tendo “insegurança alimentar com fome”. Para amenizar os impactos negativos desta pesquisa na opinião pública desde o início da crise, a palavra “fome” – que foi usada até o relatório de 2007 – passou a ser substituída pelo eufemismo “baixa segurança alimentar”. Segundo a organização Bread for the World, que se empenha no combate à fome nos EUA, “a ideia de remover a palavra fome de nossos informes oficiais é um enorme prejuízo aos milhões de habitantes do país que lutam diariamente para se alimentar. Não podemos esconder a realidade”. Segundo o relatório, “a causa fundamental da insegurança alimentar e da fome nos EUA é a pobreza, marcada pela falta de recursos adequados para atender a necessidades básicas como o alimento, a habitação e a assistência médica”. O presidente Obama, em declaração anterior à divulgação do documento, já havia colocado que “aumentaram no país as solicitações de vales-alimentação” – já prevendo a piora dos números. De acordo com Jim Wrengler, da organização Coalizão
Para James Macklin, voluntário da missão Bowery, que há 130 anos trabalha com assistência social em Nova York, os “necessitados” que ela atende hoje “não são somente os sem-teto, mas famílias inteiras”. Sua colega, a missionária dominicana Filomena Encarnación Acevedo, avalia: “Um em cada cinco garotos de Nova York vai para a cama com a barriga vazia ou não tendo comido o suficiente”. Já o “necessitado” Jaime Agosto, portorriquenho de 48 anos, conta sua própria situação: “Perdi meu emprego num armazém já faz um ano, tive que deixar meu apartamento e, aí, soube o que era passar fome. Hoje, me dão 200 pesos [dólares] em vales-alimentação, mas não é o suficiente; por isso, durmo no albergue do Bronx e, quando posso, venho comer o sopão da missão”. Segundo o relatório do USDA, 1,5 milhão de novaiorquinos vivem abaixo da linha de pobreza. Além disso, a desigualdade social nos EUA alcançou seu nível mais alto desde a crise de 1929. Conforme o estudo do pesquisador Jared Bernsteins, do Instituto de Política Econômica – a partir dos dados coletados pelo Departamento Orçamentário do Congresso dos EUA –, entre 1979 e 2005, a renda dos mais pobres subiu 1,3%, e a das classes-médias apenas 1%, enquanto que a dos mais ricos subiu estrondosos 200%. Esta é a situação objetiva que está fermentando entre o povo da maior potência econômica e militar da história, demonstrando a falência prática da teoria de que “se deve deixar o bolo crescer para depois dividi-lo”, como pregam os materialistas metafísicos, bem alimentados defensores do status quo.
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Cultura de excessos e desperdícios
zendas e sítios, até os setores de varejo, consumo e lixo. Jones constata que milhões de pessoas poderiam se alimentar se o “índice de perda fosse apenas parcialmente resolvido”. Seu relatório afirma que, nas residências dos EUA, “14% do que se compra em supermercados e padarias vão para o lixo”. Desta porcentagem, um sexto corresponde a alimentos “cuja embalagens nem chegaram a ser abertas” – o que ocorre devido à falta de informação quanto ao acondicionamento.
Nas residências dos EUA, “14% do que se compra em supermercados e padarias vão para o lixo” de São Paulo (SP) Como solução imediata de enfrentamento ao agravamento da fome nos Estados Unidos, diversas propostas assistencialistas têm surgido, como a da organização Alimentando os Estados Unidos, que propõe a criação de mais bancos de alimentos no país – organismos que arrecadam e dis-
tribuem comida em comunidades pobres. Hoje, eles atendem cerca de 25 milhões de pessoas por ano. Contudo, para o antropólogo Timothy Jones, do Centro de Pesquisas Aplicadas em Antropologia (Universidade do Arizona), o cerne da questão é outro: o grave problema dos EUA é a cultura do exagero e do desperdício. Segundo seus estudos e
medições (entre 1994 e 2004, com patrocínio do próprio USDA) publicados no Boletim de Produção Alimentar (Food Production Daily), “45% dos alimentos prontos para a colheita não chegam a ser comidos”. Para o lixo
Sua pesquisa investiga o que é desperdiçado desde as práticas rurais, em fa-
Jones talvez não perceba em sua pesquisa que tal redução de desperdício que ele prega não é interessante para o lucro das empresas alimentícias, e que, inclusive, uma possível conscientização popular poderia causar prejuízos aos empresários – o que, aliás, costuma ocorrer em todo caso similar a este. (YMF)
Revolução Verde para quem? de São Paulo (SP) Segundo relatório divulgado no final de 2009 pela FAO (órgão para a Alimentação e Agricultura da ONU), pela primeira vez, desde a chamada Revolução Verde (posta em prática entre 1960 e 1990), o número de famintos cresceu no mundo. Hoje, há 852 milhões de seres humanos subnutridos – 18 milhões a mais do que há cinco anos. Assim, fica mais longe a meta da Declaração de Roma (compromisso assinado por 185 países) de reduzir pela metade – com base em 1992 – a fome no mundo até 2015. Contudo, o relatório ainda deposita esperanças no exemplo de países periféricos, como o Brasil, a China e a Índia, que reduziram a fome em 25% desde que a “Meta do Milênio” foi fixada. O texto cita o programa Fome Zero brasileiro como um exemplo de ‘‘abordagem combinada’’, que une medidas urgentes contra a fome a políticas de redução da pobreza. “Modernização”
A chamada Revolução Verde foi uma campanha em prol da modernização da agricultura em países subdesenvolvidos. A produ-
tividade foi, de fato, aumentada – através do uso de sementes híbridas, fertilizantes e agrotóxicos. No entanto, aumentou vertiginosamente, também, a degradação ambiental, além de ter favorecido a concentração fundiária em detrimento da agricultura familiar de subsistência. Outro problema foi que as grandes corporações acabaram por acirrar o monopólio dos mercados de sementes e demais produtos básicos agrícolas. Assim, os celebrados “milagres” ocorridos, em especial no México e na Ásia (mas, também, no Brasil), ocultaram grandes prejuízos em biodiversidade agrícola, erosão e desgaste do solo, e poluição de rios, além do deslocamento forçado de milhões de camponeses – que vieram a formar favelas em grandes centros urbanos. A resultante final deste processo – mais uma contradição do avanço tecnológico desacompanhado do humano – vem agora a ser constatada pela própria “comunidade internacional”, mentora do projeto: em paralelo ao aumento da produção alimentícia, a Revolução Verde agravou a crise ambiental, a pobreza e a fome. (YMF)