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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 8 • Número 398

São Paulo, de 14 a 20 de outubro de 2010

Na Colômbia, perseguição a uma senadora de oposição Em entrevista, a senadora colombiana Piedad Córdoba afirma estar sofrendo perseguição política. Ela teve seu mandato recentemente cassado pela Justiça do país por supostamente colaborar com as Farc. Pág. 9

Em meio a contradições, trabalhadores da Copel lutam

R$ 2,80 www.brasildefato.com.br

Serra e setores religiosos fazem campanha fascista A carta “Apelo aos Brasileiros”, assinada por bispos paulistas, conclama fiéis católicos a não votarem em Dilma Rousseff (PT), acusando-a de se posicionar contra temas caros a católicos e evangélicos, como a questão do aborto e do casamento homossexual. A campanha de José Serra (PSDB) se aproveita dessa

onda conservadora e assume o slogan de “José é do Bem”. Segundo dom Demétrio Valentini, bispo de Jales (SP), existe neste episódio “uma clara posição ideológica, traduzida em opção política reacionária”. O sociólogo Rudá Ricci acredita que o segundo turno revela a “face de um Brasil fascista”. Págs. 2 e 3 Miguel Manzano/CC

Europa em crise caminha para o “totalitarismo neoliberal”

A Copel é uma das poucas empresas que permaneceram com controle estatal após a avalanche neoliberal. No cenário de crescimento econômico da empresa (R$ 359,7 milhões no primeiro semestre de 2010), os trabalhadores se articulam para obter melhorias salariais. Pág. 5

Manifestação durante a greve geral de 29 de setembro na Espanha

“A Europa está entrando na era do totalitarismo neoliberal”. Esse é o alerta do economista Michael Hudson, professor e investigador da Universidade de Missouri (EUA). Em artigo, ele analisa o papel autoritário do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia – organismos da União Europeia – nas medidas de austeridade que vêm sendo aplicadas pelos países da zona do euro que enfrentam graves crises econômicas. Segundo ele, as propostas destes órgãos podem ser chamadas de “golpe de Estado financeiro”, que quebrará a Europa e destruirá seu mercado interno. Pág. 12

Rodolfo Stuckert/SEFOT/SECOM

Divulgação

Um retrato das escolas rurais no Brasil

Governo Dilma teria maioria no Congresso

PT tem maior bancada As eleições para o Legislativo foram vencidas pelos partidos da base aliada do governo Lula. Os opositores

do governo sofreram derrotas expressivas, e o PT alcançou a maior bancada na Câmara Federal. Pág. 4

Ao todo, o Brasil possui mais de 80 mil escolas de educação básica localizadas em áreas rurais. O quadro geral é de desolação. Estabelecimentos abandonados que, distantes e com poucos recursos, muitas vezes, acabam contribuindo com o êxodo rural. Ao mesmo tempo, existem iniciativas, como as instituições geridas pelo MST, que procuram estimular o ensino de qualidade, favorecendo a permanência dos jovens no campo e a formação contextualizada. O Brasil de Fato publica matéria produzida pela Revista Poli com um retrato das escolas rurais no país. A reportagem visitou estabelecimentos em três regiões do Rio de Janeiro e traz os relatos de alunos, professores, pesquisadores e do poder público. Págs. 6 e 7 ISSN 1978-5134

Algo de negro Grupo Folias exibe espetáculo que discute com comunidades quilombolas e assentamentos o conceito de “cordialidade” da obra de Sérgio Buarque de Holanda Pág. 8

Dado Galdieri

Imagens de uma Bolívia que luta Págs. 10 e 11


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editorial NO INÍCIO do processo eleitoral deste ano, um conjunto de forças populares e movimentos sociais decidiram empenhar esforços para eleger o maior número possível de parlamentares e governadores identificados com as bandeiras da classe trabalhadora. E, nesse cenário, sobre o pleito presidencial, a unidade se deu em torno da luta para evitar um retrocesso ao país. Ou seja, não permitir a vitória da proposta neoliberal, representada pela candidatura do tucano José Serra. Assim, passado o primeiro turno, realizado no dia 3 de outubro, é importante fazer uma avaliação do que significou esse processo. Até porque a expectativa era de vitória da candidata Dilma Rousseff no primeiro turno. Importantes avanços São boas as renovações que ocorreram nas assembleias estaduais, na Câmera dos Deputados, no Senado Federal, na eleição e reeleição de governadores progressistas. Nesse sentido, destacamos a vitória do povo gaúcho, que derrotou o mandato tucano de Yeda Crusius. Candidata à reeleição ao governo do Rio Grande do Sul, Yeda se notabilizou pelo controle da mídia, criminalização dos movimentos sociais e repressão à luta dos trabalhadores. Campanha presidencial É importante ressaltar que, nesta campanha presidencial, os graves

debate

É preciso derrotar Serra problemas do povo ficaram ausente do processo. Evidenciou-se que a falta de debates em torno de projetos políticos e dos problemas principais que afetam a população brasileira. Assim, a campanha de Dilma Rousseff buscou apenas divulgar o desenvolvimento econômico e as políticas sociais do governo Lula e apoiar-se na popularidade do atual presidente. Com essa estratégia, obteve quase 47% dos votos, mas insuficientes para vencer no primeiro turno. A candidatura do demotucano José Serra surpreendeu não por sua identificação com as políticas neoliberais, e sim pelo baixo nível de sua campanha. Foi agressivo, tentou interferir em julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF), espalhou mentiras e acusações infundadas. Independente de qualquer outro resultado, a biografia do candidato já é a maior derrotada nestas eleições. Já as candidaturas identificadas com os partidos de esquerda, que utilizaram o espaço eleitoral para defender os interesses da classe trabalhadora, infelizmente tiveram uma votação baixa. Outro elemento importante neste atual quadro é o descenso social de duas décadas em nosso país. A

fragmentação das organizações da classe trabalhadora e a fragilidade da política de comunicação com a sociedade também influíram no resultado eleitoral. Assim, as eleições deste ano demonstraram o poder nefasto e antidemocrático da mídia. Mas, por outro lado, potencializaram uma rede de comunicadores independentes, comprometidos com a liberdade de expressão e que enfrentaram o monopólio dos meios de comunicação. São avanços importantes rumo à democratização da informação e pelo controle social sobre meios de comunicação em nosso país. Segundo turno No dia 31, o povo brasileiro terá de fazer sua escolha. De um lado, o demotucano José Serra. E, como já dissemos aqui neste espaço, atrás da candidatura Serra estão as forças do capital mais atrasadas e subservientes ao império estadunidense, os grandes bancos, a grande indústria paulista, o latifúndio atrasado de Kátia Abreu e o agronegócio “moderno” do etanol. Seu programa é um só: a volta do mercado, benefícios para as empresas e a repressão para conter as demandas sociais. Seria a prioridade no programa dos

crônica

Jung Mo Sung

Eleição, aborto e a infantilização da religião

acima dos “mandamentos de Deus”. Desta forma não se reconhece a autonomia relativa do campo político, a dificuldade de se passar do princípio ético abstrato (do tipo “defenda a vida”) para as políticas sociais concretas, e muito menos se aceita a pluralidade de religiões com valores diversos e propostas de ação divergentes e conflitantes. Esta é a razão pela qual esses grupos não entendem e nem aceitam a resposta dada por Dilma de que ela, pessoalmente, é contra o aborto, mas que ela vai tratar esse tema como um problema de saúde pública. Para ouvidos daqueles que creem que não há ou não deve haver separação entre a saúde pública (o campo da política social) e a opção religiosa pessoal do governante, a resposta da Dilma soa como eu não sou contra o aborto, que logo é traduzido na sua mente como “eu sou a favor do aborto”. E se ela é a favor do aborto, ela é contra a vida e, portanto, ela é do “mal”. Enquanto que, por oposição, o outro candidato seria do “bem”. Reduzir toda a complexidade da “defesa da vida” – a que um(a) presidente deve estar comprometido(a) – à manutenção da criminalização do aborto (que é o que está discutido de fato neste debate sobre ser a favor ou contra o aborto) é uma simplificação mais do que exagerada. Simplificação

Evitar o retrocesso Por isso, frente a esse cenário, as forças populares e os movimentos sociais da Via Campesina declaram seu apoio e compromisso de lutar para eleger a candidata Dilma Rousseff. E o Brasil de Fato soma-se a estas organizações no sentido de derrotar o demotucano Serra e tudo o que sua candidatura representa. Ou seja, é preciso derrotar a candidatura Serra, pois ela representa as forças direitistas e fascistas do país. Mas alertamos. É importante seguir organizando o povo para que lute por seus direitos e mudanças sociais profundas, mantendo a autonomia frente aos governos.

Luiz Ricardo Leitão

Mais além das urnas Gama

POR QUE bispos, padres e grupo religiosos que sempre defenderam a separação radical entre a religião e política, que sempre criticaram a discussão política no âmbito da Igreja ou até mesmo a relação “fé e política”, estão fazendo, até mesmo nas missas, campanha aberta contra Dilma? Uma primeira resposta poderia ser: hipocrisia. Respostas moralistas podem satisfazer o “juiz moralista” que todos nós carregamos no mais profundo do nosso ser, mas não são boas para nos ajudar a entender o que está acontecendo. Esta campanha contra a candidatura da Dilma, e com isso o apoio explícito ou implícito à candidatura do Serra, está sendo feita de várias formas, mas com um elemento comum: os católicos e os “crentes” não devem votar nela porque ela seria a favor do aborto e, por isso, contra a vida. Alguns agregam também a acusação de que, se ela for eleita, as TVs católicas e evangélicas seriam proibidas de veicular os programas religiosos ou obrigadas a diminuir o seu tempo de duração. É a velha acusação de que “comunistas” são contra a religião. Estas duas acusações são expressas e justificadas através de lógicas religiosas, e não a partir da “racionalidade leiga” que deve caracterizar a discussão sobre a política hoje. Estes grupos não admitem a distinção entre a religião e a política, ou melhor, não admitem a “autonomia relativa” do campo político e de outros campos – como o econômico – que se emanciparam da esfera religiosa no mundo moderno. Por isso, eram e são contra “fé e política” ou o debate sobre a política no campo religioso, pois esses debates são feitos normalmente a partir do princípio da autonomia relativa da política. Isto é, a discussão sobre questões políticas são feitas com argumentos de racionalidade sóciopolítica e não submetidos ao discurso meramente religioso. Para estes grupos (é preciso reconhecer que ocorre também em outros grupos político-religiosos), os valores religiosos (do seu grupo) devem ser aplicados diretamente a todos os campos da vida pessoal e social. E, em casos graves como aborto, ser impostos sobre toda a sociedade através das leis do Estado. Nestes casos, não seria misturar a religião com a política, mas seria a “defesa” dos mandamentos e valores religiosos; ou colocar a política a serviço dos valores religiosos (nessa discussão apresentados como “a serviço da vida”). Pois, nada estaria

PPPs já aplicado em São Paulo: privatizações, pedágios e presídios. De outro lado, a candidatura de Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT). Também como já dissemos, a candidatura Dilma representa continuidade do governo Lula e tem forças sociais entre a burguesia (temerosa da reação das massas), setores da classe média que melhoraram de vida e amplos setores da classe trabalhadora. Praticamente todas as forças populares organizadas têm sua base social apoiando a candidata petista. Assim, o conjunto das forças populares e movimentos sociais, que mantêm o compromisso de defesa das bandeiras de lutas da classe trabalhadora e da construção de um país democrático, socialmente justo e soberano, defendem a candidatura de Dilma. Mas manterá a autonomia de luta independente do governo eleito. Infelizmente, os avanços do governo Lula em direção às bandeiras democrático-populares foram insuficientes, em que pese o acerto de sua política externa. Também preocupa constatar que, no arco de alianças da candidatura de Dilma Rousseff, há forças políticas que se contrapõem a essas demandas sociais.

Porém, fica uma certeza: José Serra, por sua campanha, pelo seu governo em São Paulo e pelos oito anos de governo FHC, tornou-se inimigo da classe trabalhadora e das nossas bandeiras de lutas. Pelo caráter antidemocrático e antipopular dos partidos que compõem sua aliança e por sua personalidade autoritária, uma possível vitória sua significará um retrocesso para os movimentos sociais e populares em nosso país. Além disso, uma eventual vitória do demotucano será um retrocesso para as conquistas democráticas em nosso continente e representará uma maior subordinação aos interesses do império estadunidense.

que deixa fora do debate, por ex., toda a discussão sobre políticas econômicas e sociais que afetam a vida e a morte de milhões de pessoas. Mas é compreensível quando os cristãos têm muita dificuldade em perceber quais são os caminhos concretos e possíveis para viver a sua fé, na sociedade, perceber em que a sua fé pode fazer diferença na vida social. Diante de tanta complexidade, a tentação mais fácil é simplificar o máximo para separar “os do bem” de “os do mal”. Essa simplificação me lembra a pergunta que os meus filhos, quando muito pequenos, me faziam ao assistir um filme: “pai, ele é do bem?” Se sim, eles torciam por aquele que “é do bem” contra o “do mal”. Essa necessidade de separar os do bem e os do mal faz parte da condição mais primária do ser humano. O problema é que reduzir toda a complexidade da luta em favor da vida ao tema de ser favor ou contra à manutenção da criminalização do aborto é infantilizar a discussão política e, o que é pior, é infantilizar a própria religião que professa. (Adital:www.adital.com.br) Jung Mo Sung é coordenador de Pós-Graduação em Ciências da Religião, da Universidade Metodista de São Paulo. É autor, em co-autoria com Hugo Assmann, de Deus em nós: o reinado que acontece na luta em favor dos pobres.

FINDO o 1º turno da tão decantada “festa” da democracia em Bruzundanga, ecoa na nebulosa e intempestiva “opinião pública” a velha cantilena sobre a inépcia eleitoral de nosso povo. Desta vez, a ira dos iluminados se volta contra o sucesso do candidato-palhaço Tiririca, cuja cifra absurda de votos (mais de 1,3 milhão) despertou não só o pasmo, mas a inveja de muitos patrícios, desde alguns parlamentares em visível final de carreira até intelectuais orgânicos de diversas filiações. Um tucano (ou seria raposa?) paulista, saudoso do PSDB “histórico e ideológico” (!!!), chegou a declarar que “hoje as ideias não interessam mais: quem não tem dinheiro, rádio ou apoio de bispo e pastor não se elege em SP” Não faltou quem evocasse o episódio do rinoceronte Cacareco, o ‘vereador’ mais votado à Câmara Municipal de São Paulo em 1959, cuja candidatura, diga-se de passagem, foi lançada por um jornalista do Estadão, como um protesto contra “o baixo nível” dos postulantes à gaiola dourada de Sampa. Cá mesmo, no Rio, província sempre afeita às lides zoológicas, tivemos o famoso Macaco Tião, que, apadrinhado pela turma do Casseta & Planeta, ainda nos tempos do voto por escrito, em 1988, recebeu mais de 400 mil votos dos cariocas e mereceu até menção no Guinness Book, por ser “o chimpanzé mais votado do mundo.” Quem pensa que esse “voto animal” é privilégio dos milhões de “analfabetos políticos” do nosso III Mundo está redondamente enganado. Gente muito chique, do fechado clube do G-7, também expressa seu desencanto em relação à velha fórmula do Iluminismo de Kant, Montesquieu & Cia. Ltda. (Ressalte-se, aliás, que mesmo entre os franceses nunca houve unanimidade acerca do modelo a ser adotado e que, se dependesse dos jacobinos, por exemplo, a democracia seria bem mais participativa do que veio a ser nas Repúblicas do Velho e Novo Mundo.) Vejam, a título de ilustração, o que ocorreu na Alemanha, onde o humorista Hape Kerkeling criou um personagem puramente ficcional, chamado Horst Schlämmer, capaz de atrair o voto de 18% dos eleitores germânicos, ou seja, quase o dobro da porcentagem de votos que o Macaco Tião obteve para a vereança carioca (9,5%). Hape promoveu uma campanha bastante sarcástica, ao estilo do fanfarrão britânico Sacha Baron Cohen (diretor-ator de Borat e Bruno), com referências óbvias a grandes produtos do marketing político internacional, entre eles o “bom mulato” Obama. O slogan do político virtual alemão, por exemplo, era a frase Yes, Weekend! (Sim, fim de semana!), uma paródia escrachada do famoso bordão Yes, we can!, que ajudou a eleger o atual síndico ianque. De fato, a insatisfação com o modelito é a mesma em vários hemisférios, não importa a latitude, nem o meridiano. Contudo, mais além das urnas e das telinhas, o que nos cabe indagar é por que a inquietude persiste com tamanha amplitude entre nós. Não obstante a confusão de um eleitorado que anseia obstinadamente para superar o próprio analfabetismo político, o que se nota é uma tremenda expectativa de mudança em parcelas cada vez maiores da população. O clamor por uma educação de qualidade, em especial, tornou-se tão evidente que todos os partidos foram obrigados a inseri-lo em sua agenda. O sinal das urnas é claro: a mera política de compensação social não basta para atender o desejo de progresso material e intelectual das classes populares, cujos direitos mais elementares lhes têm sido negados por séculos pelas elites. O Tiririca, amigos, é apenas uma face de nossa complexa numismática. Basta lembrar quantos caciques execráveis da política tupiniquim foram varridos do Congresso graças às eleições do último dia 3. De uma só tacada, saíram os tucanos Tasso Jereissati e Arthur Virgílio, o demohipopótamo Heráclito Fortes e o senador Marco Maciel, que, desde os anos de chumbo da ditadura, é figurinha carimbada de Brasília. Isso sem falar das derrotas memoráveis de Cesar Maia e Jarbas Vasconcelos, rechaçados fragorosamente por cariocas e pernambucanos. Há ainda outras reflexões a fazer, sobretudo para nós, que continuamos à gauche, mas só nos unimos na cadeia. A candidatura de Plinio não decolou, porém os 180.000 votos dados aqui no Rio a Marcelo Freixo (Psol) mostram que há espaço de sobra para quem deseja combater o bom combate, enfrentando de forma clara e contundente os inimigos do povo. De resto, vamos passo a passo. Por ora, para não dizer que não falei do 2º turno, tratemos de enterrar o Serra, emprestando um voto para Dilma... Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de Lima Barreto: o rebelde imprescindível.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias de Moura • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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brasil

Fascismo “do bem” abortou a democracia Genaro Joner/Folhapress

ELEIÇÕES Para cientista social, Igreja Católica paulista se pôs a serviço da “casa grande” Eduardo Sales de Lima da Redação “ELA É a favor de matar criancinhas”. A frase é de Mônica Serra, mulher de José Serra (PSDB), proferida no dia 14 de setembro, no município de Nova Iguaçu (RJ), durante a campanha tucana. O flagra sobre a mulher de Serra tentando convencer um eleitor evangélico a não votar em Dilma revelava qual caminho “abençoado” os tucanos iriam percorrer. Junto à atitude de Mônica, mais boatarias e mensagens fundamentalistas de cristãos teriam tido um papel preponderante para que houvesse o segundo turno das eleições presidenciais, segundo analistas. Na internet, correios eletrônicos carregavam conteúdos que ligavam a imagem de Dilma e seu vice, Michel Temer (PMDB), ao “demônio”. Num ataque paralelo, e mais sério, bispos católicos do estado de São Paulo “apelaram” para que seus fiéis não votassem no Partido dos Trabalhadores. O título do texto que a Regional Sul 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) recomendou, há cerca de dois meses, que suas paróquias distribuíssem aos seus fiéis é “Apelo aos Brasileiros”. A carta acusa o PT de ser parceiro do “imperialismo demográfico representado por fundações estadunidenses” e de “apoiar o aborto”. “Trata-se de uma reação fascista e altamente hipócrita; é lamentável que este debate [sobre o aborto] seja proibido pela Igreja [Católica] aqui no Brasil; assim, é muito fácil mentir sobre esse assunto”, destaca Sônia Coelho, da Sempreviva Organização Feminista (SOF). O discurso conservador e direitista, segundo ela, não veio à tona porque tais grupos conservadores estejam preocupados com a vida, mas sim porque querem voltar ao poder. De acordo com Sônia, essa chantagem em pleno período eleitoral impossibilita ainda mais a discussão sobre temas como o aborto, o que prejudica sobretudo as mulheres pobres e negras. Ela lembra ainda que é no Congresso Nacional, com os senadores e deputados federais, onde deveria ocorrer o debate mais consistente para a aprovar ou não descriminalização, antes que chegue à sanção da presidência.

“Trata-se de uma reação fascista e altamente hipócrita; é lamentável que este debate [sobre o aborto] seja proibido pela Igreja [Católica] aqui no Brasil; assim, é muito fácil mentir sobre esse assunto” O cientista social Marcelo Netto Rodrigues segue a mesma linha de raciocínio de Sônia; e acrescenta que os “temas-tabus”, que a seu ver não são o cerne do cristianismo, mas são carregados de um forte apelo emocional, que passa pelo “senso-comum” das pessoas, foram trazidos propositalmente para a arena política, justamente por pro-

“Serra é do bem”: Campanha tucana surfa nas ondas do fundamentalismo cristão

porcionarem à direita a chance de tratá-los de maneira rasa e “demoníaca”. “Ao sermos perguntados para qual time de futebol torcemos, nos vemos obrigados a dar uma resposta rápida e imutável, afinal estamos no país do futebol – e ai de quem virar a casaca. O mesmo se passa com temas como aborto e casamento gay, por exemplo. Somos encurralados a nos posicionarmos imediatamente, sem muita discussão”, salienta Rodrigues. O analista político Rudá Ricci, por seu lado, enxerga o desencadeamento de um sério problema: a simbiose entre política e religião. “Temos um Estado laico, republicano; pautar o Estado com uma agenda religiosa é nos aproximar da lógica muçulmana”, explica. Ele vai além e acredita que a ida das eleições presidenciais para o segundo turno revelou essa “face de um Brasil fascista”, em consonância com o que afirmou a feminista Sônia Coelho. Isso porque, para ele, o segundo turno teria sido motivado, entre outras razões, por uma onda religiosa contra a candidatura petista, que teria optado por Marina Silva. “O fascismo não acolhe a diferença, ele simplesmente exclui tudo o que não é espelho”, afirma. Do ponto de vista teológico, para Ricci, a situação se torna ainda mais estranha, porque define que a espécie humana é dividida entre o “povo de igreja” e o “povo que sobra”. “Não há absolutamente nada democrático nesta pregação fundamentalista; é o atraso, o reacionarismo”, pondera. Senzala má Para Marcelo Netto Rodrigues, a estratégia de Serra não poderia ser outra: “Serra é do bem”. “Mesmo que ultrapassada e batida, surtiu efeito”, afirma. Ele lembra que no último debate na TV Globo, “vimos uma Dilma obrigada a ter de seguir as palavras de Marina agradecendo a Deus por estar ali”. Isso ilustra quais serão os limites do debate no segundo turno. Como vaticina Ricci, ele vai se “endireitar”. A direita, agora, é do “bem”, mas nunca deixará de representar a “casa grande”. As reações fascistas surgem, historicamente, segundo Rodrigues, como uma explosão de águas que ficaram contidas por anos represados por uma barragem que finalmente estoura. “Oito anos de Lula, para os que ainda querem manter, de fato, um Brasil dividido entre a casa grande e a senzala, foram uma tortura. Não falo so-

Reprodução

A fé instrumentalizada pelos bispos paulistas Entidades cristãs rechaçam postura de religiosos Reprodução

da Redação

Cartaz difamatório contra Dilma

bre os banqueiros que ‘nunca antes na história deste país’ lucraram tanto, nem de Eike Batista, que revelou ter dado dinheiro para ambas as campanhas, de Serra e Dilma. O tipo de fascismo atual é conduzido por pessoas que acreditavam fazer parte da ‘elite’”, salienta. Para ele, o fascismo, desencadeado sobretudo pela Igreja Católica paulista, ilustra o desespero de algumas pessoas com a ineficácia crescente dos seus símbolos de distinção de classe, e que aos poucos não podem mais intimidar as classes populares com o clássico “você sabe com quem está falando?”.

“O fascismo não acolhe a diferença, ele simplesmente exclui tudo o que não é espelho” Tema central A própria candidatura de Dilma Rousseff (PT) percebeu a importância que tomou a tática usada pelos conservadores. “Foi uma campanha perversa, com inverdades sobre o que penso, o que digo. Vamos fazer um movimento no sentido de esclarecer com muita tranquilidade nossas posições... A gente percebeu tarde, mas percebeu”, disse Dilma. Entretanto, como afirmou o jornalista Altamiro Borges, em artigo publicado na última edição do Brasil de Fato, “este não é o principal tema da campanha, nem sequer para os movimentos feministas mais lúcidos. Devese evitar a armadilha imposta pela direita. O que está em debate, na sucessão, é o futuro do Brasil”.

A Regional Sul 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) recomendou que suas paróquias distribuíssem aos seus fiéis o “Apelo aos Brasileiros”, para que não votassem no PT. O panfleto distribuído por religiosos, no dia da eleição, é assinado pelos bispos dom Nelson Westrupp, de Santo André (SP), dom Benedito Beni dos Santos, de Lorena (SP), e dom Airton José dos Santos, de Mogi das Cruzes (SP). A ação contou com forte apoio do bispo de Guarulhos (SP), dom Luiz Gonzaga Bergonzini. Como lembrou Maria Inês Nassif, em reportagem do Valor Econômico, este tipo de prática é expressamente proibida pela legislação eleitoral brasileira. Isso porque o artigo 37, da Lei n° 9.504, proíbe esse tipo de manifestação em bens de uso comum. O parágrafo 4°, do referido artigo, inclui os templos religiosos nesta categoria. Além de ser um crime eleitoral, o episódio vem causando um profundo desconforto dentro da Igreja Católica brasileira. O bispo de Jales (SP), dom Demétrio Valentini, afirma em artigo que, nesta campanha eleitoral, está havendo uma “dupla falácia”. A primeira é que, segundo ele, se invoca a autoridade da CNBB para posições que não são da entidade, nem contam com o apoio dela, mas se apresentam como se fossem manifestações oficiais da CNBB. “Em segundo lugar, invoca-se uma causa de valor indiscutível e fundamental, como é a questão da vida, e se faz desta causa um instrumento para acusar de abortistas os adversários políticos, que assim passam a ser condenados como se estivessem contra a vida e a favor do aborto”, afirma. Para ele, existe nese episódio “uma clara posição ideológica, traduzida em opção política reacionária”. “Nunca relacionam o aborto com as políticas sociais que pre-

cisam ser empreendidas em favor da vida”, afirma; e acusa, “votam, sem constrangimento, no sistema que produz a morte, e se declaram em favor da vida”. De acordo com o cientista político Marcelo Netto Rodrigues, a atitude destes setores da Igreja Católica tiveram um intento claro: o de “ludibriar” o fiel comum que desconhece a subdivisão da entidade em várias regionais, dando a entender que essa era a posição oficial da Igreja. “Isso não faz parte do jogo democrático. Isso é fraude, ‘propaganda enganosa’”, afirma. Inquisição Em nota, a Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), órgão vinculado à própria CNBB, critica a atitude da Regional Sul 1 e alerta que “continua sendo instrumentalizada eleitoralmente a nota da presidência [...], fato que consideramos lamentável, porque tem levado muitos católicos a se afastarem de nossas comunidades e paróquias”. No texto, a CBJP reforça ainda que a ati-

tude desses bispos “ferem a maturidade da democracia, desrespeitam o direito de livre decisão, confundindo os cristãos e comprometendo a comunhão eclesial”. A Aliança de Batistas do Brasil também declarou seu protesto contra o processo apelatório e discriminador que nos últimos dias tem associado o PT às forças da iniquidade. “Lamentamos a participação de líderes e igrejas cristãs nesses discursos e atitudes, que lembram muito a preparação das fogueiras da inquisição”, diz o texto. A direção nacional do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) também se posicionou para denunciar as práticas de setores de algumas igrejas que buscam forçar seus fiéis a não votar em certa candidatura por meio de informações manipuladas ou falsas. “Denunciamos que esse tipo de manipulação religiosa, do ponto de vista legal, é crime de preconceito e de incitação à intolerância; e do ponto de vista religioso, é atitude contrária ao Evangelho de Jesus Cristo”, conclui. (ESL)


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Dilma teria Congresso governista ELEIÇÕES Núcleo duro da oposição de direita sofre queda, e partidos de esquerda ampliam bancada Alan Marques/Folhapress

Renato Godoy de Toledo da Redação SE O ÊXITO dos tucanos em levar sua candidatura presidencial ao segundo turno frustrou a campanha petista, as vitórias, em diversas esferas do poder de aliados de um eventual governo Dilma Rousseff (PT), serviu de consolo. A coligação da candidata tem onze dos dezoito governadores eleitos em primeiro turno e conseguiu obter a maioria do Senado (54 cadeiras) e 402 deputados federais, de um total de 513. O resultado apresenta um aumento de 13% de “governismo” em relação a 2006. Em ambas as casas, Dilma teria maioria folgada e poderia obter êxito nas aprovações de leis e até em mudanças constitucionais que exigem dois terços do Legislativo. As mulheres obtiveram uma expressiva votação para o Executivo. Em seus quase oito anos de mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sofreu derrotas importantes no Congresso, como a eleição de Severino Cavalcanti à presidência da Câmara e a aprovação do fim da CPMF. Esses percalços não parecem prováveis em eventual governo Dilma. Na disputa interna, na coligação da candidata, o PT venceu o PMDB na Câmara. O partido da ex-ministra-chefe da Casa Civil elegeu a maior bancada da casa (89 deputados, contra 79 do PMDB) e, segundo a praxe, deve presidir a Câmara. No Senado, o PMDB continua com a maior bancada e deve continuar na presidência. Para o sociólogo Rudá Ricci, a maioria conquistada pelo governo nas câmaras e nos Estados pode significar o enfraquecimento dos municípios como agentes políticos. “Não muda apenas no cenário nacional, mas também nos estaduais. Quase todos os governadores eleitos terão um parlamento local muito favorável, o que aumenta o poder de mando deles e do presidente da República. O país aumenta o grau de centralidade política, e os municípios definham como entes federativos autônomos. Vai ficando claro que prefeito e vereador perdem aceleradamente seu poder de intervenção, já que dependem mais e mais de convênios com Estados e União”, explica.

“A nova maioria parlamentar eleita, de caráter centrista e pragmático, só se moverá se for empurrada por mobilizações populares”, opina Novoa Pragmático

Mas o “governismo”, fortalecido nestas eleições, não pode ser considerado algo estático. Bancadas fisiológicas como a do PR e do PMDB, que hoje apoiam Dilma, poderiam mudar de lado, em eventual governo de José Serra (PSDB), em troca de alguns cargos. “Essa base é pragmática, não programática. Se o Serra ganhar, boa parte dessa base que hoje compõe com Dilma, iria apoiar o novo governo. Com exceção de PT, PCdoB e PSB. Mas PMDB e PR iriam para a base aliada. O fiel da balança é o PMDB, que vai pender para quem ganhar. Mas podemos notar um enfraquecimento do PSDB e do DEM”, diz Ricci. Essa ala mais fisiológica da coligação encabeçada pela petista é representada por PMDB, PR, PRB, PSC, PTC

DB-AM), Heráclito Fortes (DEM-PI), Mão Santa (PSCPI), Marco Maciel (DEMPE) e Tasso Jereissati (PSDBCE) foram derrotados nas suas tentativas de renovar seus mandatos. Frustrado, Jereissati anunciou que esta foi sua última investida na carreira política. “Essa foi uma decisão dada primeiro pela população e depois por m im”, afirmou o tucano. Segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), os senadores “combativos” da direita que conseguiram se reeleger realizaram uma campanha em que não agrediam o presidente Lula. Este é o caso de Agripino Maia (DEM-RN) e Demóstenes Torres (DEM-GO). Além de perderem suas vagas, muitos desses representantes tiveram votações pífias. No Piauí, por exemplo, Mão Santa (PSC) obteve apenas 14,16% dos votos, ficando em terceiro, e Heráclito Fortes (DEM) ficou em quarto lugar, com 13,84%. Ruralistas ampliam

Na dança das cadeiras, os governistas levaram a melhor com o PT sendo, a partir de janeiro, o maior partido na Câmara do Deputados

Apesar de nomes da direita tradicional sumirem do mapa, o ruralismo continuará em alta no congresso. A bancada deve passar de 120 para 135 parlamentares e PTN. Esse bloco cresceu de 117 para 146 deputados na Câmara. A ampliação mais expressiva é a do PR, que passou de 25 para 41 deputados e deve cobrar uma fatura maior em eventual governo Dilma. Os partidos com tradição de esquerda da coligação (PT, PSDB, PCdoB e PDT) obtiveram um crescimento de 147 para 165. Para o sociólogo da Universidade Federal de Rondônia Luiz Fernando Novoa, a composição do Congresso pró-Dilma não representa uma perspectiva de transformação social. “O problema é a desqualificação crônica do debate e do processo legislativo no país. Essa maioria congressual só se efetiva, na prática, com o loteamento de cargos e recursos. Não há como imaginar transformações sociais, no Brasil, impulsionadas pelo parlamento, ainda mais por um Congresso como este, com representatividade ainda muito distorcida. As bancadas ruralista e empresariais, que são suprapartidárias, se reciclaram e continuarão demarcando seu poder de veto. Seria preciso antes uma profunda reforma política que coibisse o poder econômico e que incorporasse mecanismos de democracia participativa e direta. A nova maioria parlamentar eleita, de caráter centrista e pragmático, só se moverá se for empurrada por mobilizações populares”, opina. Somadas, Dilma e Marina Silva (PV) alcançaram 67% da preferência. No entanto, o Congresso parece continuar refratário às mulheres. Apenas 57 parlamentares foram eleitas (45 deputadas e 12 senadoras), menos de 10% do total de cadeiras. Ainda assim, a atuação da bancada feminina foi maior do que da legislatura atual, que conta com 55 representantes. Em sua segunda eleição geral, o Psol conseguiu manter o número de deputados. O deputado Ivan Valente (SP) teve uma vitória importante, tendo a maior votação de sua carreira. Chico Alencar (RJ) foi o segundo mais votado do Rio de Janeiro, atrás apenas de Anthony Garotinho (PR), que ainda pode ser cassado pelo Ficha Limpa. Sua vitória ampla proporcionou a eleição do seu correligionário, o ex-BBB Jean Willis.

No Senado, a ex-senadora Heloísa Helena não conseguiu voltar à casa, mas dois colegas de partido conseguiram: Randolfe Rodrigues (AP) e Marinor Brito (PA). Derrota da direita

O núcleo duro da oposição ao governo Lula, composto por PSDB, DEM e PPS, apresentou forte queda no Con-

gresso. Na Câmara Federal, o bloco passou de 153 cadeiras para 108, o que representa queda de 30%. Destacam-se a pífia atuação do Democratas (de 65 para 43) e do PPS (de 22 para 12). Esta última legenda vinha se apresentando como caminho para abrigar “neotucanos”, como a apresentadora Soninha Francine, e tentou puxar votos com o ex-comunista Roberto Freire, que mudou o domicílio para São Paulo (SP), onde ocupa cargos como conselheiro na prefeitura comandada pelo DEM, de Gilberto Kassab. A estratégia foi em vão: Freire se elegeu somente com a ajuda da votação de aliados. No Senado, casa em que Lula jogou mais peso, o nú-

cleo duro da oposição apresentou uma baixa mais acentuada. Passou de 34 para 19 cadeiras. O maior derrotado foi o DEM, que não chegou a ser “extirpado”, mais perdeu mais da metade de suas vagas. De 20 senadores, caiu para 8, sendo que apenas dois foram eleitos neste pleito. Porém, a derrota da oposição, no parlamento, não se deu apenas no aspecto quantitativo. Em termos “qualitativos”, ela foi ainda mais expressiva. A própria grande imprensa reconheceu, em tom de lamento, que os parlamentares mais “combativos” (nos termos de um comentarista da Globo News) perderam suas vagas. Os senadores Artur Virgílio (PS-

Apesar de nomes da direita tradicional sumirem do mapa, o ruralismo continuará em alta no congresso. A bancada deve passar de 120 para 135 parlamentares no Congresso. Além de reeleger expoentes como Ronaldo Caiado (DEM-GO) e Abelardo Lupion (DEM-PR), o agronegócio ganhou um importante aliado no Senado, o ex-governador do Mato Grosso Blairo Maggi (PR), o maior sojicultor do país. Outra bancada suprapartidária que ganhou força foi a evangélica. Contrário ao aborto – tema que ganhou força nas eleições –, o bloco religioso apresentou crescimento de 50% e contará com 63 deputados e 3 senadores. Segundo o Diap, a igreja com mais representantes no Congresso deve ser a Assembleia de Deus. (Colaborou Eduardo Sales de Lima)

Sem querer, 8 milhões podem ter anulado voto Confusão causada por Ficha Limpa gera desinformação e incerteza José Cruz ABr

da Redação A lei de iniciativa popular conhecida como Ficha Limpa contou com o apoio de grande parte da população. No entanto, sua aplicação até o momento tem servido mais para punir o eleitor do que para defendê-lo. Isso porque a “não decisão” do Supremo Tribunal Federal sobre a validade do projeto para o pleito de 2010 gerou um impasse que prejudicou a transparência do processo eleitoral. O STF adiou a decisão após um empate em 5 a 5. No dia 3 de outubro, cerca de 8 milhões de pessoas votaram em candidatos “fichas sujas” e seus votos foram “congelados”, considerados nulos até que haja uma decisão final. Por pouco, o STF não causou uma crise institucional no estado de São Paulo. Ao ver que a diferença entre Geraldo Alckmin (PSDB) e os demais candidatos era de apenas 0,6%, e que três candidaturas estavam com votos congelados, especulou-se que a eleição de Alckmin estaria sub judice, já que uma decisão judicial poderia levar a eleição para o segundo turno. Mas, depois, soube-se que os votos não eram suficientes para causar uma segunda etapa.

O empate em 5 a 5 do Ficha Limpa manteve o suspense do resultado eleitoral

Mais da metade do eleitorado do Pará anulou o voto para senador involuntariamente Já no Pará, o impasse continua. O segundo e o terceiro colocado ao Senado foram alvos do Ficha Limpa. Assim, mais da metade do eleitorado do Pará anulou o voto para senador involuntariamente. A Justiça pode

determinar uma nova eleição no Estado. “Isso espelha o que é nossa Justiça, ela não agiu de maneira diferente do que ela age normalmente. É um poder do qual não se sabe por onde passam as decisões. Is-

so cria uma confusão, uma desorientação. Parece que houve uma combinação para ter esse impasse e não decidir. Foi muito ruim para o processo eleitoral, muitos votaram desinformados. Isso tudo tinha que ser uma decisão anterior ao processo eleitoral. Claro que tiveram tempo. Há uma lei que determina que a prioridade, nestes casos, é o processo eleitoral”, comenta o cientista político do Inesc, José Antonio Moroni. (RGT)


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brasil

Trabalhadores lutam por reajuste na contraditória Copel PARANÁ Uma das principais empresas de energia do país, a Copel é o exemplo de gestão que sobrevive ao período neoliberal, porém carrega várias contradições do período Pedro Carrano de Curitiba (PR) DIRIGENTES de sete sindicatos, que envolvem eletricitários e engenheiros, realizaram a negociação do Acordo Coletivo de Trabalho (ACT), entre os dias 21 e 24 de setembro, com a Copel, empresa pública de energia do estado do Paraná. O Coletivo Sindical dos Empregados da Copel representa cerca de 3.500 trabalhadores de todo o estado. É uma das representações de trabalhadores dentre os vários setores da empresa. Do outro lado, o atual presidente da empresa, Ronald Ravedutti, quadro oriundo do grupo político do atual governador, Orlando Pessuti (PMDB), até o momento ofereceu aos trabalhadores apenas reajustes de acordo com o índice da inflação, além de benefícios pontuais. O lucro da Copel foi de R$ 359,7 milhões no primeiro semestre de 2010. A empresa, dividida em uma holding formada por três empresas com CNPJs diferentes (após os ataques da década de 1990, próprios da avalanche

Produção

neoliberal), ainda hoje possui a maior parte das ações ordinárias (com direito a voto) sob o controle do governo estadual (58,6%), sendo que o BNDES detém 26,4% dessas ações. As demais são negociadas nas bolsas de valores de Nova York e São Paulo. Entretanto, no bolo total das ações (incluindo as preferências, que dão direito somente ao lucro, não a voto), a fatia do mercado financeiro chega a 44,1%.

Neste cenário, os trabalhadores veem a possibilidade de conquista de melhores ganhos econômicos No debate sobre ganhos econômicos, até aqui, a principal reivindicação dos trabalhadores não foi atendida – que é o ganho real e não apenas a correção pela inflação – , na contramão do que foi concedido no setor elétrico nacional (2% de ganho real), e também noutras categorias no país. Neste caso, as greves recentes do setor de metalurgia, com ganhos na casa de 10%, tornaram-se referência para os trabalhadores. Em Curitiba, por exemplo, mesmo com aumento real, os metalúrgicos da Volvo fizeram paralisação para obter melhor ganho no vale-alimentação. De acordo com Cid Cordeiro, do Dieese, é um sintoma da atual conjuntura de aumento da lucratividade das empresas. E, neste cenário, os trabalha-

a Copel possui uma das menores tarifas de energia. Este argumento, porém, é o mesmo para manter sob arrocho o salário dos trabalhadores concursados. O Coletivo Sindical aponta que, pelo terceiro ano consecutivo, a empresa teve lucros acima da casa de R$ 1 bilhão.

A sociedade resistiu contra a privatização da empresa a partir de um movimento massivo Usina hidroelétrica da Companhia Paranaense de Energia

dores veem a possibilidade de conquista de melhores ganhos econômicos. A Copel é uma empresa pública, criada em 1954, que, em 2000, foi objeto de uma lei de privatização para a venda do seu controle acionário. Assim, tornou-se o símbolo da resistência popular durante a tentativa de privatização, empreendida pelo governo de Jaime Lerner (1994-2002, à época no PDT e depois no PFL). O cenário também foi antecedido pelo tradicional método dos cortes nos investimentos: o gasto com expansão da oferta de energia caiu de R$ 16 bilhões em 1987 para apenas R$ 3 bilhões no ano 2000 (segundo a revista Reflexos da Privatização, de 2010, do Sindicato dos Engenheiros do Paraná). Dois mecanismos comuns no período de privatizações: subavaliação da empresa e fluxo de caixa descontado.

A sociedade resistiu contra a privatização da empresa a partir de um movimento massivo, que aglutinou diferentes setores e isolou o grupo de Lerner naquele momento, o que o comprometeu eleitoralmente a partir de então. Foi o movimento que fundou a ferramenta da lei de iniciativo popular, quando coletou 137,7 mil assinaturas, 2% do eleitorado à época, em mais de 150 cidades do Paraná, primeira experiência levada a voto institucional. Nas ruas, os protestos, passados quase dez anos, ainda não foram retomados na mesma intensidade e gama de setores, do estudantil ao sindical. Mas, embora ainda sob controle público, a empresa passou de 93% de suas ações ordinárias (com direito a voto) sob controle do Estado para os atuais 58,6%, sem contar que teve setores específicos da sua estrutura privatizados, por meio da chamada

“operação desmonte”, levada a cabo em 2001. “De certa forma é sui generis o caso da Copel. Devido à relação entre população e empresa, é a maior do Estado. Sempre foi a menina dos olhos dos governos que passaram, e havia um respeito grande pelo próprio empregado da Copel nas cidades pequenas, na figura do plantonista da Copel. No momento em que o governo tenta tirar isto das mãos do povo e do Estado, as pessoas se opuseram”, analisa Ulisses Kaniak, diretor do Sindicato dos Engenheiros do Paraná (Senge-PR). Agora, a empresa está em fase de expansão e recuperação de lucratividade, com projetos em três Estados do país. A atual direção justifica o caráter público da empresa pela retenção da menor tarifa do país. Compara-se, nacionalmente, com a Cemig, de Minas Gerais, enquanto

mo tempo é fato comum comentários no blog (www.colet ivocopel.org.br) dos empregados favoráveis à privatização. A empresa, da sua parte, não se compromete com a garantia de estabilidade no emprego, o que ficou evidente nas negociações do acordo coletivo de trabalho (ACT). Bem como os ganhos de produtividade ficam restritos à armadilha da participação nos lucros e resultados (PLR), mecanismo de que, a partir do contexto de reestruturação produtiva, os empresários buscam criar uma ideia de “colaboração” entre patronato e trabalhadores. Outros elementos, como o adicional de risco no trabalho dos trabalhadores leituristas, são indexados de acordo com valores de mercado.

ria. Até aqui, há espaço para diálogo entre movimentos sociais e direção empresa. Entretanto, é preocupante a situação dos que podem ser afetadas pelos projetos no rio Chopim e Mauá, no interior do Estado, projetos conduzidos pela estatal.

Por um lado, é sensível para os copelianos o período de ataques sofridos durante o governo Lerner, época em que o quadro de funcionários chegou a 5.400 empregados, marcada também pelo arrocho salarial e precarização das condições de trabalho. Hoje, está em cerca de 8.900 funcionários. Sindicalistas entendem que, ao lado de aumentos pontuais em benefícios, a exemplo de vale-alimentação, entre outros, a questão do aumento do abono é oferecida como a isca para a empresa não discutir ganhos reais e reajuste de perdas salariais ocorridas desde a década de 1990. Uma vez que o abono toca na questão imediata e no endividamento da classe, é como uma saída com a água no pescoço. Empresários e gestores sabem disso. De acordo com o Dieese, a perda de massa salarial entre os anos de 1994 e 2009 equivale a 21 salários, sendo que o ganho com o abono alcança apenas 15 salários.

Política de expansão de Curitiba (PR) Em entrevistas recentes na mídia pública e também na corporativa, Ronald Ravedutti não podia ser mais otimista. O presidente da Copel elencou o balanço atual e as ações futuras da empresa. A lista inclui investimentos de peso em três regiões do país na área de geração. Projetos no interior do Paraná, caso da usina de Mauá. A empresa está com margem de manobra, confiante nos próprios números. Apesar de negar os investimentos diretos em apoio à reforma do estádio Arena da Baixada para Copa de 2014, Ravedutti disse que até lá serão investidos, na área de energia, até R$ 350 milhões, em Curitiba e na região metropolitana, como forma de garantir o aquecimento próprio do evento. É uma realidade que a Copel hoje é um player na geração de energia, nas palavras do próprio presidente. Seus investimentos vão do incentivo ao esporte até o gasto em segmentos como o das telecomunicações e fibra ótica. No dia 23 de agosto, a presidência da empresa reuniu-se com acionistas estrangeiros e tocou o sino da bolsa de Chicago. Na reta final da campanha ao governo do Estado, a Copel e, particularmente, os copelianos, estiveram no alvo dos candidatos para governador do Paraná. Osmar Dias esteve presente, na noite do dia 13, em reunião com representantes da Associação de Profissionais da Copel (APC). Em que pese serem contra os movimentos sociais (e até repressores), os irmãos Álvaro e Osmar colocaram-se, em 2001, no vasto rol de frações contrárias à privatização da empresa. Já Beto Richa, recém-elei-

to governador do Estado (que votou a favor da privatização quando deputado), enfocou a empresa e os copelianos em seu programa televisivo, criticando a gestão anterior, ainda que receoso de tocar no tema da privatização, porém falando no tema delicado da “eficiência” – de quem logo após a vitória anunciou um “choque de gestão” no Paraná.

Na reta final da campanha ao governo do Estado, a Copel e, particularmente, os copelianos, estiveram no alvo dos candidatos O período neoliberal e as tentativas de privatização deixam suas marcas na gestão da empresa e nas relações de trabalho. Hoje não há o imaginário “estatal” puro em contraposição ao privado. A Copel alega a baixa terceirização em comparação com outras empresas do setor elétrico, que, de acordo com ela, bate a casa dos 90% de terceirização. Por sua vez, o Coletivo Sindical aponta que as terceirizações representam de 65% a 70% hoje do quadro da empresa. Ao passo que a Copel divulga que os terceirizados representam 37,28% do quadro de funcionários. Reconhece o problema, mas não sinaliza mudança no quadro de trabalhadores. Os sindicalistas do Coletivo Copel apontaram problemas de capacitação na opera-

ção das subestações: a formação de apenas dois dias coloca a própria vida dos trabalhadores em risco, como denuncia Paulo Sérgio Rodrigues, de Londrina, coordenador do Coletivo Sindical, uma vez que o trabalhador foi treinado para eletricista e não para operar em uma subestação. “A coisa cresceu muito. Estamos ampliando o risco”, complementou Jimi Ferreira, do Sindicato dos Eletricitários de Ponta Grossa (Sinel). A empresa, por sua vez, em entrevista na mídia, sugere que 100% das subestações estão automatizadas, com inauguração de uma nova estação por mês. “Durante o processo de desmonte da companhia para a possível privatização, a administração promoveu o encolhimento do quadro de pessoal, para reduzir a folha de pagamento, cortou vantagens e benefícios, impediu reajustes salariais ao nível dos índices inflacionários, terceirizou serviços e atividades, fechou agências de atendimento ao cliente, entregou o atendimento de clientes para empresas franqueadas em alguns municípios, como se fora uma subconcessão de serviços e atendimentos aos consumidores, com trabalhadores terceirizados concorrendo com os empregados da Copel, mas sem as mesmas condições de trabalho e de segurança”, analisa Rene Mortari, ex-presidente do Coletivo Sindical dos Empregados da Copel. O que também persiste é o imaginário do período Lerner. Ainda que não associado diretamente, terá agora em Beto Richa um seguidor. Se para as direções sindicais é notório como um período de ataques e perdas, ao mes-

O período neoliberal e as tentativas de privatização deixam suas marcas na gestão da empresa e nas relações de trabalho Comparando com outras empresas sob total controle do mercado, novamente diferenças e contradições. No que toca a relação com o tema dos trabalhadores e agricultores atingidos por barragens, hoje, das 140 usinas hidrelétricas e barragens, no Paraná, a Copel participa apenas em cerca de dez usinas, uma delas como acionista majoritá-

Na mira da conjuntura De acordo com a análise de conjuntura do economista Cid Cordeiro (Dieese), este semestre é favorável aos ganhos econômicos das categorias em todo país. No caso da Copel, de acordo com Cordeiro, o aumento salarial é uma maneira de valorizar o profissional, numa conjuntura de rotatividade grande, em que empresas públicas como a Copel perdem funcionários para o mercado e para a iniciativa privada (o chamado turn over). Cordeiro apontou que as grandes empresas estão apontando aumentos no patamar de 3% a 5% acima da inflação. A maioria das negociações, desde 2004, tem conquistado ganhos reais ou, no mínimo, a reposição da inflação. Mesmo em 2009, a crise econômica acabou não tendo grande influência sobre as negociações, a maioria delas exitosas. De acordo com dados do Dieese (subseção do SengePR) no ano de 2009, a economia brasileira apresentou ligeira queda, com percentual de 0,2%. Porém, em 2010, os indicadores econômicos já demonstram a retomada da atividade. No primeiro trimestre de 2010, o produto interno bruto (PIB) subiu 9% em relação ao mesmo período de 2009. Embora indicadores conjunturais do segundo trimestre apontem a acomodação do ritmo de crescimento, ainda assim a estimativa pa-

ra o PIB de 2010 é de uma variação próxima a 7%, aponta o economista Fabiano Camargo, do Dieese. O resultado das negociações do Setor Elétrico em 2010 aponta que 89,5% das negociações (ou 17 negociações em um total de 19 analisadas até o momento) obtiveram ganhos reais em relação ao Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) do IBGE. Além disso, apenas duas negociações, ou 10,5% do total, não conseguiram repor a inflação. Os resultados das negociações com a Copel são, neste sentido, uma triste exceção nacional.

A maioria das negociações, desde 2004, tem conquistado ganhos reais ou, no mínimo, a reposição da inflação O contexto favorável, de acordo com o Dieese, se dá em função da manutenção do ritmo de crescimento da economia, um ritmo que favorece o consumo de energia elétrica. No primeiro semestre deste ano, o mercado cativo de energia da Copel atingiu 10.661 GWH, com crescimento de 7,1%, com destaque para o segmento residencial, que teve crescimento de 5,74%. Já o segmento industrial apresentou elevação de 10,21%. (PC)


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Um retrato das escolas rurais no Brasil Raquel Torres

EDUCAÇÃO O Brasil de Fato publica, nesta edição, matéria produzida pela Revista Poli, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz, sobre o quadro das escolas de zonas rurais brasileiras. A reportagem visitou estabelecimentos de três regiões do estado do Rio de Janeiro e discute projetos e demandas do setor com movimentos sociais, trabalhadores, estudantes, pesquisadores e com o poder público Leila Leal e Raquel Júnia do Rio de Janeiro (RJ) O CENSO Escolar de 2009, elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC), aponta que existem, no Brasil, mais de 80 mil escolas de educação básica localizadas em áreas rurais. A situação estrutural destes estabelecimentos, a oferta dos variados níveis e modalidades de ensino, a elaboração de seus projetos político-pedagógicos, a formação e valorização dos profissionais que neles atuam, sua relação com crianças e jovens acampados e assentados da reforma agrária e muitos outros itens são tema de debates constantes entre pesquisadores, constam da pauta de reivindicações de movimentos sociais do campo e são objeto de políticas públicas elaboradas pelo Estado. Estas questões motivam, por exemplo, a organização de crianças e jovens do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os chamados sem terrinhas realizam encontros e atividades periodicamente para discutir as formas de luta pela terra e por uma educação de qualidade no campo. Neste ano, realizam sua Jornada Nacional na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Epsjv/ Fiocruz) no Rio de Janeiro. No contexto de discussão das pautas da Jornada, que acontece em outubro, esta reportagem da Revista Poli traça um panorama da situação das escolas rurais no Brasil. Dados nacionais, projetos de políticas públicas, pesquisas acadêmicas e reivindicações de movimentos sociais são complementados com a apresentação da realidade encontrada nas escolas rurais, acampamentos e assentamentos da reforma agrária dos municípios de Piraí, Nova Iguaçu, São Francisco de Itabapoana e Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, visitados pela reportagem.

No Brasil, cerca de 980 mil estudantes integram uma população assentada que ultrapassa 2,5 milhões de pessoas Cenário nacional Se os dados do Censo Escolar de 2009 apontam a existência de mais de 80 mil escolas localizadas em áreas rurais no Brasil, a Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pnera), realizada em 2004 pelo Inep e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), demonstra que apenas 8.679 atendem a alunos residentes em assentamentos – sejam elas localizadas nos próprios assentamentos ou em seu entorno. A mesma pesquisa, que é a que traz dados específicos mais recentes sobre a educação em assenta-

mentos, aponta que, no Brasil, cerca de 980 mil estudantes integram uma população assentada que ultrapassa 2,5 milhões de pessoas. Os dados também evidenciam as limitações da oferta dos diferentes níveis e modalidades de ensino nas escolas que atendem aos estudantes assentados: enquanto 84,1% delas oferecem o primeiro segmento do ensino fundamental, apenas 26,9% têm o segundo segmento e 4,3% o ensino médio. No que se refere à educação profissional, os índices são ainda mais baixos: 0,2% dessas escolas oferecem educação profissional na modalidade de formação inicial e continuada, e 0,3% a educação profissional de nível técnico.

Em muitos casos, fecham-se as escolas rurais com o argumento de que a demanda de alunos é pequena Outra questão que se destaca no cenário nacional das escolas rurais e que não se restringe à realidade dos acampamentos e assentamentos é o fechamento dos estabelecimentos de ensino. Em reportagem publicada na Agência Brasil em julho, Mônica Melina, coordenadora do curso de licenciatura em Educação do Campo da Universidade de Brasília, afirmou que, entre 2005 e 2007, foram fechadas 8 mil escolas rurais no Brasil. Armênio Schmidt, diretor de Educação para a Diversidade da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/ MEC), explica que dados como esse, também utilizados pela Secad, são obtidos através da leitura do Censo Escolar. “O Inep tem um código para cada escola, e através do Censo é possível averiguar se permanecem funcionando ou não. Mas nós não temos dados oficiais. E isto mereceria uma pesquisa sobre as razões do fechamento destas escolas, que são as mais variadas possíveis”, diz. Em muitos casos, fechamse as escolas rurais com o argumento de que a demanda de alunos é pequena. Entretanto, de acordo com o Sindicato dos Profissionais da Educação (Sepe) de Campos, uma das cidades em que o poder público municipal fechou escolas rurais, este argumento não pode ser válido. “Já consultamos o MEC diversas vezes sobre isso e não existe um número mínimo de alunos para que se mantenha uma escola”, diz Graciete Santana, diretora licenciada do sindicato. Como afirma a educadora Roseli Caldart, se a educação é um direito humano, o acesso a ela tem que ser facilitado. “Ter acesso à escola não pode ser uma coisa extraordinária, que precise mover céus e terras, andar quilômetros, usar transporte para alcançá-las. O acesso à escola tem que ser uma coisa ordinária na vida”, afirma.

Sem terrinhas em frente a uma escola do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

Reivindicações “Falta de estradas; não temos transporte escolar; não temos salas de aula; não temos material didático (lápis, caneta, papel, mesa, cadeira, bolas etc.); faltam atividades culturais e esportivas e está acontecendo fechamento de escolas nas nossas áreas”. Estes foram os principais problemas apontados na carta aprovada no XI Encontro Estadual dos Sem Terrinha do Rio de Janeiro, realizado em 2008. As resoluções do Encontro, que reuniu crianças de todos os acampamentos e assentamentos do estado coordenados pelo MST, expressam questões de abrangência nacional. O fechamento de escolas em áreas rurais, a falta de estrutura nos estabelecimentos de ensino, em seu entorno, e a carência de projetos político-pedagógicos elaborados a partir da realidade do campo são problemas apontados pelos movimentos sociais, trabalhadores da educação e reconhecidos pelos governos.

“Falta de estradas; não temos transporte escolar; não temos salas de aula; não temos material didático” Porém, segundo Armênio Schmidt, há um esforço de valorização das escolas do campo, que se materializa através de uma série de programas específicos: “Desde 2007, as escolas do campo recebem 50% a mais da verba do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), que destina um valor específico por aluno para as escolas da educação básica. E, neste ano, foi implementado o PDDE Campo, que destina R$ 12 mil às escolas do campo que oferecem o primeiro segmento do ensino fundamental e têm até 50 alunos. Ainda atuamos através do Plano de Ações Articuladas para, junto aos estados e municípios, evitar o fechamento das escolas do campo”, disse, destacando que a intenção da Secad é transformar esses programas específicos em uma Política Nacional de Educação do Campo, o que será feito através da publicação de um decreto nacional que deverá ocorrer ainda neste mês de setembro. Acompanhe, nesta e na página ao lado, a situação da educação nas zonas rurais do Norte Fluminense. Nas próximas edições, o Brasil de Fato publicará as matérias sobre Nova Iguaçu e Piraí, também visitadas pela reportagem.

Norte Fluminense: vizinhos, mas diferentes do Rio de Janeiro Depois de um grande engenho, dobra-se à direita; e depois de passar por um pequeno povoado, chega-se à estrada de terra. Pergunta-se a um e a outro onde é a localidade chamada Floresta e depois onde é Cajueiro, local em que se encontra o assentamento Zumbi 5. Em um descampado, avista-se uma pequena casa verde e branca em qual está escrito: “Escola MST”. Na porta, a diretora Leidemaria e às duas funcionárias, Marlene e Wilma, esperam a reportagem. A escola existe há nove anos e está localizada na zona rural do município de São Francisco do Itabapoana, ao norte fluminense. Estudam ali 23 crianças – com idades entre cinco e doze anos – filhos dos assentados do Zumbi 5 – um dos cinco assentamentos resultados da desapropriação das terras da antiga usina açucareira São João. A escola funciona em cinco cômodos: uma sala onde fica a direção, três salas de aula e uma cozinha, além de dois banheiros. Apesar de pequena, é bem organizada e bonita. “É preciso conhecer a realidade de cada escola, de cada região, eu não posso chegar de fora e colocar a minha visão”, comenta Leidemaria Pereira, que é professora da rede municipal de São Francisco do Itabapoana e está na escola desde que foi inaugurada.

Durante dois dias do último mês de julho, a reportagem pôde acompanhar um pouco das atividades da Escola MST e também como estudam as crianças e jovens dos assentamentos de áreas rurais próximas ao Zumbi 5. De acordo com o Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (Sepe) – Núcleo Campos, só em 2010, foram fechadas mais de doze escolas rurais em Campos dos Goytacazes. O Sepe denunciou o fato ao Ministério Público. “Fizemos algumas vistorias nas escolas e, na verdade, a demanda existe. Alguns alunos têm que se deslocar a uma distância muito grande para conseguir estudar. O município deixou de investir há muito tempo nestas escolas”, afirma Ângela Barbosa, diretora do Sindicato.

A Secretaria Municipal de Educação de Campos confirmou o fechamento de onze escolas A Secretaria Municipal de Educação de Campos confirmou o fechamento de onze escolas e, por meio da assessoria de imprensa, declarou: “As escolas foram desativadas por uma série de ra-

zões, tais como difícil acesso, não possuir transporte, falta de professores e orientadores pedagógicos, e prédio necessitando de reformas”. Ainda, de acordo com a secretaria, que todos os alunos foram transferidos para outras unidades de ensino da rede municipal; em dois dos casos, as novas escolas estão distantes de dois a três quilômetros das unidades desativadas. A Secretaria não informou a distância dos locais de moradia dos estudantes até as outras quatorze escolas para quais foram transferidos; mas, segundo o documento protocolado pelo Sepe junto ao Ministério Público, há situações em que crianças estão tendo que se deslocarem doze quilômetros. “Quando o município toma uma atitude como esta, dizendo que fechou porque as escolas estavam precárias, está assumindo uma desobediência à lei. É um desrespeito profundo à infância, porque é preciso trabalhar com sua cultura, favorecer ao máximo a permanência da criança, e não colocá-la no ônibus para uma hora de viagem até a escola. Quando o município faz isso, ele tenta cumprir a lei burlando os requisitos educacionais e da infância. Desta forma, se está quase condenando estes estudantes a uma evasão escolar”, questiona a pesquisadora Isabel Brasil, doutora em educação e diretora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Epsjv/Fiocruz). Raquel Torres

Escola Rural abandonada no assentamento Zumbi 4


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brasil Raquel Torres

Segundo a Secretaria Municipal de Educação de Campos, há 104 escolas rurais no município; destas, apenas vinte oferecem o primeiro e o segundo segmento do ensino fundamental. Em oitenta e uma delas, só há o primeiro segmento. “Este número não é suficiente, percebemos que a demanda é muito maior do que a oferta em todos os níveis. No caso da escola de segundo segmento, que também é atribuição do município, ela não está ali. Inclusive, existe muita demanda de Educação de Jovens e Adultos, porque os jovens não conseguem se deslocar para estudar em outros locais; e também, por se inserirem no mercado de trabalho, terminam evadindo. Só mais tarde, com 16, 17 anos, quando percebem que vão precisar de qualificação e começam a fazer outros projetos de vida, é que buscam a escola novamente, no Educação de Jovens e Adultos (EJA), e aí esbarram em outro problema, porque também não há escolas suficientes com EJA para atendê-los”, detalha a professora licenciada do Sepe, Graciete Santana. Ela lembra que o município de Campos tem o menor Índice de Educação Básica (Ideb) do estado do Rio. Multissérie no Zumbi 5

As aulas, na escola MST, começam às 7h30, com um café da manhã, e terminam às 11h30. Os estudantes também almoçam na escola. O corpo administrativo da instituição é composto por quatro pessoas: a diretora, duas merendeiras e mais uma professora. De acordo com Leidemaria, não existe evasão na unidade, e os alunos faltam pouco. A escola oferece educação infantil e as séries iniciais do ensino fundamental. Na primeira sala, estudam as crianças da educação infantil, e em outras duas se dividem os alunos do fundamental. A escola trabalha com multissérie, ou seja, alunos de séries diferentes em uma mesma turma. “No 2º ano, só temos dois alunos; no 3º ano, apenas um aluno; então, não tem como acabar com a multissérie”, diz. Para Roseli Caldart, do setor de educação do MST, o modelo multisseriado não é o ideal, mas, segundo ela, o movimento também não vê nas séries uma boa proposta para a educação. Ela explica que a educação por ciclos etários tem sido trabalhada com bons resultados em algumas escolas de assentamentos e escolas itinerantes.

Há situações em que crianças estão tendo que se deslocarem doze quilômetros Leidemaria conta que, neste ano, a escola recebeu um material didático novo, do programa Escola Ativa do Ministério da Educação. Ela mostra os livros e elogia o material por estar mais próximo da realidade dos alunos. “O que víamos nos livros didáticos? Apartamentos, carros. Eles têm que conhecer os assuntos da cidade, mas do campo também. Alguns exemplos falam de hortas, cooperativas agrícolas”, observa. Para a diretora, é importante que os estudantes consigam estudar no campo, já que, na cidade, muitas vezes, existe uma visão distorcida da realidade rural. De acordo com Leidemaria, a ampliação da escola para atender as outras séries é um desejo das crianças e dos pais do assentamento. Ela acredita ser viável que a escola continue a oferta de ensino, desde que o prédio seja adequado, com melhores condições para receber os alunos – a estrutura atual já é bastante apertada. Entretanto, de acordo com a secretária municipal de educação de São Francisco do Itabapoana, Iara Nogueira, não existe a possibilidade de o segundo segmento

ser implementado no Zumbi 5. “É algo totalmente inviável, mesmo porque teríamos que ampliar a escola e manter dez professores para menos de trinta alunos. Aí, depois, o próprio aluno não vai querer ficar mais lá: é o que acontece nas outras localidades. Como o nosso município oferece transporte a todo o município, ele acaba indo para outras escolas”, diz. Isabel Brasil, no entanto, acredita que a relação é inversa: é a não oferta da continuidade dos estudos no campo que favorece o êxodo rural. “O jovem está saindo dali porque quer melhores condições de vida, inclusive escola, isto denuncia que não há uma política de fixação do jovem no campo, em que a questão da educação é central, bem como da cultura e geração de emprego”, alerta.

Isabel Brasil acredita que a relação é inversa: é a não oferta da continuidade dos estudos no campo que favorece o êxodo rural Sem escola no Zumbi 4

Enquanto no Zumbi 5 as crianças podem estudar dentro do próprio assentamento – pelo menos enquanto estão no primeiro segmento do ensino fundamental –, no Zumbi 4, a poucos quilômetros dali e onde vivem cerca de 136 famílias, existe uma escola abandonada. A Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro informou que a Escola Estadual Bartholomeu Lysandro oferecia, até 1996, o antigo primário (primeiro segmento do ensino fundamental) a 53 estudantes. Em 1997, a escola parou de funcionar, e os alunos foram matriculados em outras instituições. De acordo com os moradores do local, a escola atendia aos filhos dos trabalhadores da antiga usina São João. A assentada do Zumbi 4, Viviane Ramiro, lembra a história de uma moradora do local que foi aluna da instituição e precisa pegar o histórico para comprovar a conclusão do antigo primário, mas não consegue. “A justificativa para não reabrirem a escola é a de que há pouco aluno, mas não são tão poucos. O transporte escolar que leva para a cidade sempre dá problema, sem falar na qualidade do ensino lá que é terrível. Tem gente que está na 5ª série e não sabe escrever o nome”, reclama Viviane. De acordo com a Secretaria de Educação do estado do Rio, os históricos dos antigos estudantes da escola desativada foram levados para as instituições para onde foram transferidos. No caso dos alunos que não continuaram os estudos, os documentos podem estar na coordenadoria regional da educação localizada em Campos. Ainda segundo a Secretaria Estadual, reabrir a escola não

é uma prioridade, já que o primeiro segmento do ensino fundamental, que era oferecido antes do fechamento, desde a LDB, é considerado responsabilidade prioritária do município. Enquanto o poder público não cria condições para que a escola do Zumbi 4 funcione, os próprios assentados, com a ajuda da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Projeto Mova-Brasil, mantêm uma escola de Educação de Jovens e Adultos no período noturno: é a Escola Popular Zumbi dos Palmares. Para as aulas, é utilizada uma parte do antigo prédio abandonado da escola. A iluminação da sala é precária, o quadro foi doado pelo Cefet de Campos, alguns dos bancos pela CPT e a mesa pela própria comunidade. Em dias de aula e outras atividades, os bancos da igreja próxima também são emprestados para a escola.

Em dias de aula e outras atividades, os bancos da igreja próxima também são emprestados para a escola Viviane explica que o MovaBrasil, um projeto da Petrobrás de estímulo a habilidades de leitura e escrita, é responsável pelo pagamento dos professores e pelo material didático utilizado durante as aulas, das quais participam cerca de vinte alunos. Em outros turnos, também funcionam, na escola, oficinas de artesanato e um grupo de teatro. Thamires, Marcell, Natália e Jéssica, do coletivo de teatro, já têm duas peças de teatro montadas – uma que conta a história de Zumbi dos Palmares, que dá nome aos assentamentos, e outra sobre o itinerário dos cortadores de cana. Trata-se, segundo Isabel Brasil, de uma mobilização que preenche o vazio ocasionado pela falta de atenção

Escola Rural abandonada no assentamento Zumbi 4

do poder público. “O Estado deveria perceber que se trata de uma denúncia contra a ausência de políticas para o campo”. Marimbondos tomam conta

Do lado oposto da rodovia em que ficam os assentamentos da antiga usina São João (Zumbis 1, 2, 3, 4 e 5), uma estrada leva ao acampamento do MST Madre Cristina e ao assentamento Dandara. É neste caminho que fica a Escola Municipal Flor de Maio, pertencente ao município de São Francisco do Itabapoana. Segundo os trabalhadores rurais do acampamento e assentamentos próximos, a escola está fechada desde 2008. O mato já está grande o suficiente para cobrir quase toda a frente da escola. Os desenhos pintados e gravuras de papel, com letras e números afixados nas paredes, revelam que ali já houve atividade escolar não faz muito tempo; mas os marimbondos tomaram conta do prédio. São tantos que praticamente impedem a entrada no local. Os trabalhadores rurais contam que a escola foi furtada duas vezes, o que teria feito com que a prefeitura desistisse de manter as aulas no local. De acordo com a secretária de educação do município, Iara Nogueira, a escola já estava desativada quando a gestão atual assumiu o governo; e não há planos para reativá-la,

já que o número de estudantes próximos à escola é pequeno, e o transporte escolar os leva para outras localidades. Para ela, mais cedo ou mais tarde, o estudante terá mesmo que sair do campo. “Sabemos que ele um dia terá que sair desta escola. Principalmente o que identificamos é que os alunos não querem estudar nestas localidades, querem ter o convívio com outras pessoas, e hoje uma das grandes funções da escola é socializar”, argumenta. Viviane Ramiro, educadora da escola popular do Zumbi 4, alerta para o risco desse pensamento, que naturaliza o êxodo rural. “Às vezes, até a escola de dentro do assentamento não garante uma boa formação. Muitos professores dizem: ‘ah, vocês têm que estudar para saírem daqui’. Para muitos deles, ser desenvolvido é ser da área urbana”, critica. Para Roseli Caldart, o número de alunos também não pode ser um argumento para se fechar uma escola. “É evidente que há um prejuízo se há uma socialização pequena, com turmas de cinco, quatro alunos. Este não é o nosso ideal de educação, mas é preciso analisar isso de um ponto de vista maior: o que está acontecendo neste local para ter tão poucas crianças? O que temos discutido enquanto movimento é que a análise não pode ser estritamente econômica e administrativa. Há situações em Raquel Torres

que o fechamento da escola representa, do ponto de vista da comunidade, uma perda que é mais do que a questão da escola, que é uma perda de referência”, analisa.

Os marimbondos tomaram conta do prédio. São tantos que praticamente impedem a entrada no local Há cerca de trinta estudantes no acampamento Madre Cristina, no assentamento Dandara e nas redondezas. Ana Carolina Pereira, de 16 anos, está cursando o 3º ano do ensino médio em uma escola de São Francisco do Itabapoana. A estudante toma o ônibus escolar e faz baldeação em Floresta, povoado mais próximo do acampamento. De lá, segue para São Francisco. Na volta, Ana Carolina não pode se descuidar do tempo, porque corre o risco de não conseguir pegar o último transporte escolar que sai de Floresta em direção ao acampamento, às 12h15. “Já aconteceu de eu perder o ônibus e ter que vir andando: demorei umas quatro horas e meia”, conta a estudante. Ana Carolina relata que, na escola da cidade, os outros alunos são curiosos sobre a condição dela de acampada. “Ser sem terra não é vergonha. Às vezes algum colega diz: ‘ah, vocês estão invadindo’. Aí eu explico: ‘não, a gente está ocupando, é diferente’”. (LL e RJ) (Reportagem originalmente publicada na Revista Poli – saúde, educação e trabalho, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz)

Para entender Escola por ciclos etários – A

Enquanto os sem terrinha brincam e estudam em sua escola, as salas de aula do Estado seguem sem alunos

modalidade considera a idade das crianças, adolescentes e jovens no processo educacional. Desta forma, os estudantes não são divididos em séries ou segmentos, mas por idade, de acordo com as especificidades locais e também considerando as necessidades, interesses e desenvolvimento cognitivo desses estudantes.


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cultura Divulgação

Sobre a cordialidade TEATRO Grupo Folias leva para as ruas de comunidades quilombolas espetáculo que investiga questões raciais e a exclusão social Aldo Gama da Redação O FOLIAS está nas ruas. Mais precisamente, nas vias de comunidades quilombolas, encenando Algo de negro, espetáculo integrante do projeto Êxodus: O Homem Cordial (estudo que lança olhares diferentes sobre a cordialidade como característica sócio-cultural do povo brasileiro). Nunzio, Medeia, a mulher fera, Medida por medida e A dócil são as peças que completam o projeto que teve como ponto de partida o livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. “Queríamos investigar a cordialidade sob a perspectiva afrodescendente”, explica Carlos Francisco, o Carlão, diretor do espetáculo e um dos administradores do Folias. “Tomamos como ponto de partida o paradoxo da cordialidade que, ao mesmo tempo que impedia que o negro tivesse uma ação mais contundente, na construção de uma sociedade mais justa, permitia que ele se organizasse, perpetuando sua cultura”, completa. Mas Carlão avisa que Algo de negro não é um estudo feito exclusivamente a partir do ponto de vista racial. A investigação também tem como objeto camelôs e sem teto dos centros urbanos, “tentando ocupar as ruas, porque é o que lhes resta”, e os proprietários que buscam expulsá-los porque enfeiam o lugar. Dessa maneira, surgem personagens híbridos, meio moradores de rua, meio ambulantes, que ajudam a discutir a privatização do espaço público. “Este é um dos motivos do espetáculo acontecer na rua”, explica Carlão, “mesmo porque a maioria das manifestações culturais afrobrasileiras acontecem nas ruas, como o congado, o reisado, o carnaval...”, enumera.

“A maioria das manifestações culturais afrobrasileiras acontecem nas ruas, como o congado, o reisado, o carnaval...” Concepção e estrutura Vencedor de um edital da Fundação Cultural Palmares, Algo de negro estreou durante as comemorações dos 22 anos de criação da instituição, com a apresentação do espetáculo em Maceió (AL), em meados de agosto. O próximo passo foi colocar a peça na estrada, agendando viagens para comunidades quilombolas e assentamentos no estado de São Paulo. Desde a sua concepção, existia a intenção de representar o texto em outros lugares. Tanto que mobilidade foi uma da principais preocupações da produção, que precisa organizar um grupo de seis atores e um espetáculo de uma hora de duração. “Todos os espetáculos do Folias têm alguma limitação técnica, seja de estrutura cenográfica ou de equipamentos multimídia, o que é um elemento complicador, algo que dificulta ou impossibilita viagens”, conta. “Assim, em Algo de negro, fizemos uma coisa para a rua, pensando exatamente em ter uma estrutura simples, de fácil montagem”.

Esse planejamento foi posto à prova com a primeira apresentação, realizada dia 25 de setembro na comunidade de Cafundó, que fica na zona rural da cidade de Salto do Pirapora, interior paulista.

“Em Algo de negro, fizemos uma coisa para a rua, pensando exatamente em ter uma estrutura simples” Em Cafundó “No início da apresentação, houve um certo zum zum zum quando o guia, inspirado num guia de umbanda, o Zé Pelintra, entrou em cena”, lembra Carlão. “As pessoas ficaram sussurrando umas com as outras, mas quando ouviram o nome do personagem ficaram satisfeitas, porque confirmaram suas suspeitas”, explica, ao comentar a reação do público. Além dos moradores da comunidade, a plateia contou com o acréscimo dos participantes do 5º Encontro dos Quilombos, evento realizado pela Federação Quilombola e que coincidiu com a apresentação. Para o Folias, a “aceitação foi maravilhosa”, com o público acompanhando todas as canções com palmas. “Queremos levar para outros estados, mas dependemos de recursos”, avisa Carlão. Na rua Apesar de apresentado na rua, o espetáculo não prevê a participação do público, o que não impede que isso aconteça. Na estreia em Maceió, por exemplo, um homem caracterizado como palhaço entrou em uma das cenas, soprando bolhas de sabão. Completamente fora do contexto, a intervenção acabou por confundir os espectadores. “Apresentações em lugares públicos estão sujeitas a interferências”, lembra Carlão, “mas, por vezes, podem funcionar a favor do espetáculo”. Na apresentação em Cafundó, durante uma cena de batalha, alguns cães se reuniram em grupos opostos, rosnando e latindo uns para os outros, como se estivessem se preparando para briga. A animosidade terminou exatamente ao final da cena. “Se tivéssemos ensaiado não teria funcionado tão bem”, comenta Carlão.

“Apresentações em lugares públicos estão sujeitas a interferências”, lembra Carlão, “mas, por vezes, podem funcionar a favor do espetáculo” Matriz musical Fundamental na condução da narrativa, a trilha sonora do espetáculo foi concebida a partir da matriz africana, como elemento da construção da cultura brasileira e de respeito à sua importância dentro do universo afro-brasileiro. Desta maneira, manifestações como o samba, mara-

Folias leva aos quilombos sua visão sobre as Raízes do Brasil

catu, congado são expressões carregadas de valores ancestrais, sendo um complemento espiritual genuinamente popular. O processo de criação das músicas envolveu experimentações com instrumentos percussivos realizadas durante o processo de elaboração da peça. Como resultado, a mistura de ritmos de outras culturas de origem afro-latino-americana evidenciou a riqueza e diversidade desses elementos que fazem parte de nosso cotidiano. Veja, a seguir, a letra de uma das músicas de Algo de negro.

O Grupo Folias O Folias é um grupo teatral em atividade desde 1997, tendo recebido uma série de prêmios, como o Shell, APCA e Molière. A sede do grupo, o Galpão do Folias, fica no bairro de Santa Cecília em São Paulo, e conta com uma equipe de aproximadamente 60 artistas. Depois da estreia em Maceió e da apresentação na comunidade quilombola de Cafundó, o Folias segue para as comunidades de Camburi e Caçandoquinha (Ubatuba), Brotas (Itatiba), Morro Seco (Iguape) e Pedro Cubas (Eldorado). O grupo aguarda ainda contato de outras comunidades que queiram recebê-los, por meio do telefone (11) 3361-2223. Em novembro, o espetáculo será apresentado nas ruas de São Paulo. (AG)

Temporal

(Selito SD)

Levantei o meu barraco Na encosta do morro Veio o temporal Levou tudo morro abaixo E cuspindo barro Gritei por socorro Sob o temporal Eta vidinha danada Essa da gente que é pobre Sofrida, desamparada Sem ouro, prata e nem cobre Sem guarida e sem morada Vai se virando como pode Sem guarida e sem morada Vai se virando como pode Levantei o meu barraco No vale, eu saí do morro Veio o temporal Encheu, transbordou o riacho E cuspindo barro Gritei por socorro Sob o temporal Eta vida desgraçada Da gente, que nada tem Sofrida, desamparada Sem um mísero vintém sem guarida e sem morada Só conta com Deus Mais ninguém

Trechos do espetáculo Eu serei o seu guia por essas estranhas terras de Bruzundangas. Sou considerado aqui, por quem entende do assunto, como o mais preparado guia deste pedaço, pois sou conhecedor dos lugares do passado, frequentador dos mistérios do presente e visionário dos amanhãs O terra, sina de pobre Cê num come do lixo que nem rato? Cê num dorme na rua? Se ele num é vida, nóis é o quê? Nóis também somo rato Maria! Arreda dessa solidão, Maria! Sem união não tem futuro não. Precisa de força! E para mudar as coisas daqui não adianta só gente não! Cê precisa de mais ajuda! Poxa, e cêis ainda falando mal do sujeito! Bora, Maria! Tem um lugar novo pra nóis morar! Somos livres escambeiros. Da labuta a céu aberto Sou da tradição de homens sem cabeça. Sem cabeça ficou Zumbi, Conselheiro, Lampião


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américa latina

Senadora Piedad Córdoba denuncia perseguição política Reprodução

COLÔMBIA Procuradoria Geral caça mandato de senadora da oposição, acusando-a de envolvimento com as Farc; Piedad já recorreu

Por quê?

Vou me reunir com paramilitares extraditados para ajudar seus familiares que estão ameaçados aqui. Fui à cadeia de Itagüí realizar uma tarefa parecida. Ninguém me pergunta por este outro lado em que também atuo, e ninguém quer entender que, quando se está buscando uma mediação, a linguagem é a do pacifismo e que deve-se usar conceitos políticos e não jurídicos.

Você recorreu da decisão de sua cassação. Acredita que o mesmo procurador pode reverter a decisão?

da Redação CONHECIDA por defender uma saída negociada entre governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), a senadora do Partido Liberal, Piedad Córdoba, teve seu mandato cassado pela Procuradoria Geral da Nação no dia 28 de setembro, sendo também impedida de se candidatar a qualquer cargo público pelos próximos 18 anos. ‘’Há uma campanha orquestrada contra a senadora [...] que vem desde o governo de Álvaro Uribe [2002 – 2010] e que faz parte de um crime de perseguição política contra a senadora no contexto de crimes de lesa humanidade”, defendeu seu advogado Luís Guillermo Pérez. A Procuradoria Geral a acusa de “colaborar e promover as Farc durante o período compreendido entre 15 de agosto e 20 de novembro de 2007, assim como em momentos anteriores e posteriores aos anos 2007, 2008 e 2010”. A Procuradoria afirma que tem provas de que a senadora trocou correios eletrônicos com Raúl Reyes, líder das Farc morto em março de 2008, em ação ocorrida dentro do território equatoriano. O governo colombiano afirma ter capturado o computador de Reyes na ocasião. Em entrevista ao jornal colombiano El Espectador, a senadora afirmou que nunca trocou e-mails com líderes das Farc, que o governo sabia de todas as negociações de que participou e que se comunicou em reuniões, nunca por correio eletrônico. Nessas negociações de 2007, junto com o presidente venezuelano Hugo Chávez, as Farc aceitaram liberar, de forma unilateral, seis reféns.

“Sentia que as conversas com eles não tinham como objetivo as libertações, mas conseguir informações através de mim” Piedad recorreu da decisão e pede para que seu processo seja julgado por outro promotor. “O atual procurador não me garante imparcialidade. Por isso peço um procurador nomeado especificamente para meu processo”, declarou. Os advogados da senadora apontam diversas irregularidades em todo o processo. Uma semana depois de dar a sentença, o próprio procurador, Alejandro Ordóñez, reconheceu, em uma entrevista publicada na revista Semana, que nos supostos computadores de Raúl Reyes não foram encontrados correios eletrônicos, mas apenas documentos de texto. “Nos documentos que se extraiu do disco rígido e das memórias, há muitas referências a ‘Teodora’, condinome que se pode aferir ser de Piedad Córdoba, deviso a coincidências”, afirmou o procurador, atestando a debilidade de sua decisão.

Não. Mas recorri para esgotar os recursos legais e por respeito às instituições que nem sequer creio, porque não são imparciais e porque estão a serviço dos interesses de poucos. E faço porque quero demonstrar que se deve lutar quando se tem certeza da própria inocência.

Por que não recusou o procurador já de início, por que o faz agora?

Porque não acreditei que ele pudesse chegar até onde chegou, apesar de que muita gente me dissesse o que ele tinha intenção de fazer, confiei na verdade. Houve uma reunião em que eu tive a oportunidade de apresentar uma tutela por incompetência contra ele e não quis, porque ainda que não compartilhe de suas ideias, inclusive dizendo que ia acabar comigo, pensei que atuaria de acordo com a lei.

“Meus filhos e minha família também têm sofrido intimidações e ataques. Temos pagado um preço muito alto” O Polo Democrático Alternativo, agremiação da esquerda, também condenou a cassação, por meio da senadora Gloria Inés Ramírez. “É amplamente conhecido pela opinião pública nacional e internacional que a senadora Piedad Córdoba tem desempenhado um papel decisivo para a libertação de várias pessoas sequestradas que se encontravam nas mãos das Farc, e que para adiantar os trâmites pertinentes foi autorizada expressamente em distintas ocasiões pelo governo nacional”, escreveu em nota. Para Piedad, a cassação é parte de uma campanha de perseguição política. Ela afirma que não infringiu nenhuma lei durante as negociações. “Meu ‘erro’ foi ter convicções diferentes, vivendo em uma época em que a dissidência ideológica se converteu em delito, porque as opiniões estão sendo criminalizadas. Aqui, o que existe é uma profunda discussão política disfarçada de justiça”. Leia, a seguir, trechos de sua entrevista publicada integralmente no Rebelión. Você nega ser “Teodora” ou “Teodora Bolívar” que troca e-mails amistosos com Raúl Reyes. Quais e quantas mensagens a Procuradoria reconhece como seus?

Piedad Córdoba Ruiz – Nenhum. Para ser mediadora frente à guerrilha, não tinha que mandar correios para ninguém. Fui, e todo mundo sabe publicamente, a uma reunião com Reyes. Tinha autorização do governo e estavam tão inteirados, na Casa de Nariño, que me ofereceram um helicóptero para ir ao encontro com Reyes. Como não considerei conveniente, não solicitei esse serviço. Eu trouxe um vídeo desta reunião para entregar a Luis Carlos Restrepo [ex-membro do governo Uribe]. Os e-mails que aparecem na sentença contêm informações verdeiras da negociação? Quem poderia conhecer esses detalhes?

Várias pessoas, entre elas funcionários do governo Uribe, porque eu mesma os informava. No início da investigação da Procuradoria, não dei importância para a história dos correios, porque estava totalmente tranquila; mas depois comecei a gravar. Na verdade, sempre foi mui-

to difícil o diálogo com Luis Carlos Restrepo [Comissário para a Paz no governo Uribe, responsável pelo conflito armado no país] e com outros funcionários do palácio, porque havia desconfiança. Sentia que as conversas com eles não tinham como objetivo as libertações, mas conseguir informações através de mim. Comecei a me sentir incomodada. E por que continuou mediando?

Para não abandonar a tarefa. Vou contar uma história: quando fui ver o presidente Hugo Chávez para dizer que Uribe havia autorizado a mediação, Chávez me perguntou: ‘Você tem alguma autorização por escrito?’ Disse que sim, mas que não havia levado, ainda que pudesse ser lido na página oficial do governo colombiano. Ele pediu ao chanceler [venezuelano] Nicolás Maduro, que estava com a gente, que a conseguisse. Quando Chávez começou a ler, disse: “Isso pode ser uma armadilha”. Mas, para voltar à pergunta, eu dava a Luis Carlos Restrepo relatórios bastante precisos sobre o que estava fazendo. O conteúdo dessas conversas coincide com os textos achados no computador de Reyes.

Isso quer dizer que Restrepo ou outros funcionários do palácio inventaram os correios e os plantaram no computador de Reyes?

Não posso afirmar isto, mas o que eu contava a eles aparece ali com todos os detalhes. Por exemplo, um dia contei a Restrepo que havíamos falado de uma constituinte em uma reunião e assim também disse em uma conversa nos Estados Unidos com Simón Trinidad [líder das Farc capturado em 2004 e preso nos EUA]. Dias depois, encontrei Restrepo, e ele me disse, alterado, que Uribe estava absolutamente furioso comigo porque eu queria colocar a Colômbia no nível da Venezuela, propondo una constituinte. Respondi, então, que o próprio presidente foi quem me havia dito para falar dessa opção com a guerrilha. Uribe lhe disse para propor às Farc uma constituinte?

Falou com toda a clareza em seu despacho da Presidência. Quando quiserem, posso afirmar na frente dele.

Você é uma das pessoas mais odiadas do país, junto com Ingrid Betancourt. A que se deve?

Piedad Córdoba aponta para as perseguições do Estado Colombiano

Qual foi a frase exatamente?

Disse: “Piedad, estou disposto a chegar a uma constituinte. Diga a eles”.

Alguém escutou, além de você?

Sim. Luis Carlos Restrepo e Bernardo Moreno [assessor de Uribe]. O mesmo aconteceu com minhas visitas a Simón Trinidad nos Estados Unidos: essas reuniões não foram clandestinas, porque eu não podia vê-los sem permissão do Departamento de Estado. Pois bem. Aí sai então Uribe dizendo publicamente que Trinidad e eu planejávamos um golpe por meio da constituinte. As visitas, na cadeia, sempre ocorreram em frente aos advogados de ofício de Trinidad, pagos pelo Departamento de Justiça; em frente a pessoas da DEA [Departamento de Controle de Drogas dos EUA], da CIA, [ Central de Inteligência] e com dois cônsules colombianos, um deles do Texas, enviado ao presídio pelo Uribe.

“Há uns 20 dias, 300 prefeitos haviam notificado cerca de 10 mil corpos não identificados” Muitos colombianos acreditam que você é a favor das Farc. O que você tem a dizer?

Tenho sofrido todo tipo de perseguição e minha casa já virou praticamente uma cadeia, pois não posso ir a lugar nenhum. Meus filhos e minha família também têm sofrido intimidações e ataques. Temos pagado um preço muito

alto. Mas que fique claro: apesar de tudo, não vou mudar de opinião, porque cada vez mais é evidente para mim que aqui temos que escolher entre a democracia e a guerra. Eu tomei, conscientemente, o caminho da paz, que é o mesmo da democracia. Essas são as minhas convicções e não vou mudar por conveniência ou para me livrar de problemas. Voltando à sentença, você acredita que cometeu algum erro em seus contatos com as Farc?

Meu “erro” foi ter convicções diferentes, vivendo em uma época em que a dissidência ideológica se converteu em delito, porque as opiniões estão sendo criminalizadas. Aqui, o que existe é uma profunda discussão política disfarçada de justiça. Se não fosse assim, não estaria passando por estas circunstâncias, e o Procurador não estaria dando toda a credibilidade a um mercenário estrangeiro para quem deram muito dinheiro para que falasse contra mim. Então, assumo que querem me lapidar, submeter-me ao escárnio e me colocar na prisão.

A crítica maior que se ouve, em relação a você, é a de que nunca afirmou que as Farc são terroristas...

E não vou dizer. As Farc executam ações que, dentro do Direito Internacional Humanitário, configuram atos de terrorismo, como o sequestro. Mas há de se admitir que também se viola o DIH quando agentes do governo desaparecem com pessoas ou as executam extrajudicialmente, como ocorre com os falsos positivos. Quero ver o DIH aplicado em todos os casos. Por isso ninguém me reconhece. Ninguém me pergunta por que vou com frequência aos Estados Unidos.

Ingrid pode dobrar a página depois de amanhã e converter-se na mais querida das colombianas. Já eu, que nunca me passou pela cabeça processar o Estado em milhões de dólares – apesar de toda perseguição que sofri no governo passado – não perdoaram jamais minha posição pacifista e de inimiga da guerra. Tenho consciência de classe e de país. Por isso não me arrependo do que fiz e falei; tampouco me canso, ainda que tenha pagado muito caro em matéria de tranquilidade e liberdade.

Quando afirmou, na Europa, que a Colômbia “era una vala comum”, o mundo foi abaixo. Não se arrependeu?

Não, de jeito nenhum. No marco de um fórum, convocado por vários eurodeputados, entre os quais havia um grupo significativo dos que vieram para a Colômbia verificar o caso das valas comuns de La Macarena, quis contextualizar o assunto. Falei do nível de degradação humanitária no país. E quando um dos europeus se referiu às valas, disse que realmente aqui se está vivendo um problema terrível e disse essa frase.

Quais são as evidências que permitem a senhora fazer essa afirmação?

O mapa oficial da Procuradoria sobre a localização das valas comuns que foram reveladas pelos paramilitares desmobilizados é contundente. Ali está reportada a descoberta de 2.867 valas; foram encontrados 3.488 corpos e foram entregues 1.002. A mesma Procuradoria solicitou aos prefeitos que dessem conta dos corpos não identificados que existissem em suas cidades. Há uns vinte dias, 300 prefeitos haviam notificado cerca de 10 mil corpos não identificados. O segundo dado irrefutável é o editorial do jornal El Tiempo do dia 21 de novembro de 2006. O título dizia: “No país das valas”. Quando eu digo, é um escândalo; quando diz El Tiempo, ninguém refuta. (Entrevista publicada no Rebelion)




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de 14 a 20 de outubro de 2010

internacional

O experimento neoliberal europeu CRISE ECONÔMICA Os governos da Europa têm que escolher entre promover cortes de salários ou sofrer chantagem financeira Miguel Manzano/CC

Michael Hudson A MAIORIA dos meios de comunicação descreveu assim os atos e greves do dia 29 de setembro em toda a Europa: trabalhadores do setor de transporte irritando passageiros com atrasos, e multidões provocando “incêndios”. Mas a história vai muito além de uma mera reação contra o desemprego e as condições econômicas recessivas. Na pauta, estão propostas para alterar drasticamente as leis e estruturas de como a sociedade europeia funcionará na próxima geração. Se as forças antitrabalho obtiverem sucesso, quebrarão a Europa e destruirão seu mercado interno. Esta é a gravidade a que se chegou o Golpe de Estado financeiro. E as coisas ficarão muito piores rapidamente. Como John Monks, presidente da Confederação Europeia de Sindicatos, afirma, “este é o começo da luta, não o fim”. A Espanha tem recebido a maior parte da atenção, graças à paralisação de 10 milhões de pessoas (metade de sua força de trabalho total). Promovendo sua primeira greve geral desde 2002, os trabalhadores espanhóis protestaram contra o fato de seu governo usar a crise bancária (decorrente de empréstimos imobiliários podres e capital de hipotecas negativo, não dos altos custos trabalhistas) como uma oportunidade para alterar as leis de maneira a permitir que empresas e o próprio governo possam despedir trabalhadores quando quiserem e, este último, reduzir suas pensões e o gasto público para poder pagar mais aos bancos.

Sindicatos estimam paralisação de 10 milhões de grevistas na Espanha

A meta é reduzir os salários em 30% ou mais – níveis de épocas de depressão econômicas –, na crença de que isto “deixará mais excedentes” disponíveis para se pagar os serviços da dívida

Guerra contra o trabalho

Os neoliberais controlam totalmente a burocracia e estão retomando o slogan de Margaret Thatcher, TINA: There is No Alternative Portugal está fazendo o mesmo, e parece que a Irlanda os copiará. Tudo isto em países cujos bancos foram os mais irresponsáveis credores. Os banqueiros querem reconstruir suas reservas de empréstimos às custas dos trabalhadores, igual ao programa do presidente Obama, mas sem os pretextos hipócritas.

O problema, no entanto, está em Bruxelas, capital da União Europeia. É por isso que os maiores protestos foram ali. No mesmo dia das manifestações, a neoliberal Comissão Europeia (CE) delineou uma guerra total contra o trabalho. Entre 50 e 100 mil trabalhadores se reuniram para protestar contra a proposta de alteração das leis sociais, a campanha mais antitrabalho desde 1930 – mais radical até que os planos de austeridade impostos no passado pelo FMI e Banco Mundial ao Terceiro Mundo. Os neoliberais controlam totalmente a burocracia, e estão retomando o slogan de Margaret Thatcher, TINA: There is No Alternative (Não há alternativa). Mas há, é claro. Nas pequenas economias bálticas, os partidos pró-trabalho deixaram claro que a alternativa para o encolhimento do Estado é simplesmente anular as dívidas, sair da zona do euro e quebrar os bancos. Deve-se escolher entre os bancos e os trabalhadores – e a Europa acabou de se

dar conta de que esta é verdadeiramente uma luta contra a morte econômica. A CE está usando a crise hipotecária – e a proibição a que os bancos centrais financiem os déficits orçamentários dos governos – como uma oportunidade de multar esses governos e, até, fazê-los falir, se eles não concordarem em reduzir os salários do setor público. Os governos estão sendo orientados a contrair empréstimo dos bancos, em vez de taxá-los para aumentarem a receita estatal, como essas instituições fizeram por 50 anos desde o fim da Segunda Guerra Mundial. E, se os governos não forem capazes de pagar os juros, eles devem encerrar seus programas sociais. E se tal medida fizer a economia encolher – e, portanto, também as receitas fiscais –, então, eles devem cortar ainda mais os gastos sociais. Ditadura

De Bruxelas à Letônia, os arquitetos neoliberais expressaram que a esperança é que o exemplo dos salários púSurat Lozowick/CC

blicos mais baixos se espalhe para o setor privado. A meta é reduzir os salários em 30% ou mais – níveis de épocas de depressão econômicas –, na crença de que isso “deixará mais excedentes” disponíveis para se pagar os serviços da dívida. De um lado, os governos imporão novos impostos sobre o consumo, enquanto, de outro, cortarão as pensões e os gastos públicos. A Europa está para se tornar uma república de bananas. Isso requer uma ditadura, e o Banco Central Europeu (BCE) assumiu esse poder. Ele é “independente” de controle político – algo celebrado como o “marco da democracia” pela nova oligarquia financeira. Mas como os diálogos de Platão explicaram: o que é a oligarquia senão o estágio político que se segue à democracia? Agora, nós podemos esperar a nova elite se fazer hereditária e se transformar em uma aristocracia total. “Junte-se à luta contra o trabalho, ou nós o destruiremos”, é o que a Comissão Europeia está dizendo aos governos. A Europa está entrando em na era do totalitarismo neoliberal. Isso era inevitável desde o ensaio chileno, após 1973. Afinal, não se pode ter “mercado livre” ao estilo neoliberal sem controle totalitário. Era disso que se tratavam as greves e manifestações de 29 de setembro. A luta de classes europeia está de volta, e para valer!

Os governos imporão novos impostos sobre o consumo, enquanto, de outro, cortarão as pensões e os gastos públicos Chantagem econômica

Da Letônia à Bélgica, as mobilizações refletem a gravidade da crise na Europa

É suicídio econômico, mas a União Europeia está endurecendo sua exigência de que os países da zona do euro mantenham seus déficits orçamentários abaixo dos 3% do PIB – e a dívida total abaixo dos 60% do PIB. Eles não podem aumentar impostos sobre a riqueza, apenas sobre o trabalho e o que este compre (via impostos sobre o consumo). Ao mesmo tempo, eles

devem cortar salários, pensões e gastos públicos, e encolher a economia. Quando uma solução econômica é assim destrutiva, só pode ser imposta por meio de chantagem econômica. No dia 29 de setembro, a União Europeia aprovou uma lei para multar em mais de 0,2% do PIB os governos que não “frearem” seus déficits orçamentários por meio de austeridade fiscal. Diferentemente dos bancos centrais do resto do mundo, o europeu está proibido de financiar os governos. Estes devem tomar dinheiro emprestado dos bancos, permitindo que essas instituições apliquem suas próprias taxas de juros, em vez de deixaram seus próprios bancos centrais os financiarem sem custo algum. Essa política econômica destrutiva foi testada no Báltico. Países como a Letônia foram usados como cobaias para se ver o quanto os trabalhadores podem ser esmagados antes de reagirem politicamente. A Letônia abriu caminho para as políticas neoliberais ao impôr impostos de 51% para os trabalhadores, enquanto o mercado imobiliário é taxado em apenas 1%. Os salários do setor público foram reduzidos em 30%. Trabalhadores entre 20 e 35 anos estão emigrando em massa. A expectativa de vida está encurtando. As taxas de enfermidades estão aumentando. O saque da Islândia por seus banqueiros veio primeiro, mas a grande novidade foi a Grécia. Quando esse país entrou na atual crise fiscal, as autoridades da União Europeia recomendaram que ele imitasse a Letônia. A teoria básica é que, na medida em que os integrantes da zona do euro não podem desvalorizar suas moedas, eles devem recorrer à “desvalorização interna”: cortes de salários, pensões e gastos sociais. Alternativas

Portanto, a Europa, para sair da recessão, está seguindo a política exatamente oposta à keynesiana. Está reduzindo salários para explicitamente “liberar” mais recursos para pagar as enormes dívidas que os europeus contraíram para comprar suas casas e pagar por educação, transporte e outros serviços públicos que foram privatizados. A Revolução Neoliberal busca conquistar, na Europa, o que vem sendo conquistado nos EUA desde 1979, quando os salários reais pararam

de crescer. A meta é dobrar a participação dos 1% mais ricos na partilha da riqueza. Isso significa empobrecer a população, minar o poder dos sindicatos e destruir o mercado interno como pré-condição para se culpar, por tudo isso, o “senhor Mercado”, supostas forças inexoráveis para além da política.

A Europa está entrando na era do totalitarismo neoliberal. (…) Afinal, não se pode ter “mercado livre”, ao estilo neoliberal, sem controle totalitário

Claro que não é “o mercado” que está promovendo essa austeridade economicamente destrutiva. O Saskanas Centrs [aliança política de centroesquerda da Letônia] mostra que existe um caminho muito mais fácil, para diminuir pela metade o custo do trabalho, do que reduzir os salários: simplesmente transferir a carga fiscal sobre o trabalho para o mercado imobiliário e monopólios (especialmente, a infraestrutura privatizada). Isso deixaria menos excedente econômico para ser capitalizado em empréstimos bancários e, consequentemente, reduziria o preço da moradia (o principal fator do alto custo de vida dos trabalhadores) e o dos serviços públicos. Sem dúvidas, muitas economias pós-soviéticas se verão obrigadas a se retirar da zona do euro para não ver uma fuga de trabalho e capital. Elas continuam sendo o exemplo extremo do experimento neoliberal de ver o quão profundamente um povo pode ter suas condições de vida deterioradas antes de se rebelar. (Global Research) Michael Hudson é professor e investigador de economia da Universidade de Missouri e presidente do Institute for the Study of Long-Term Economic Trends (Islet) Tradução: Igor Ojeda


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