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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 8 • Número 400

São Paulo, de 28 de outubro a 3 de novembro de 2010

Tuma, mais um torturador que morre sem punição O senador Romeu Tuma morreu aos 79 anos. Ele foi chefe do Dops, principal órgão de tortura durante o regime militar, e, depois, iniciou carreira política com a bandeira da segurança. Ex-presos políticos e organizações de direitos humanos condenam a carreira de Tuma e lamentam o fato de ele não ter respondido aos crimes de tortura em vida. Pág. 6

R$ 2,80 www.brasildefato.com.br

Mesmo com críticas, maioria da esquerda opta por Dilma A necessidade de derrotar o tucano José Serra (PSDB) forçou a maioria das organizações mais progressistas do país a declarar o apoio à candidatura de Dilma Rousseff (PT). Mesmo que, para uns, petistas e tucanos representem a disputa entre dois tipos de gestão capitalista, para a maior parte da esquerda o embate

entre PT e PSDB mostra o antagonismo entre dois projetos de nação. Enquanto isso, a neutralidade oficial de Marina Silva e do Partido Verde (PV), de não apoiar nem Dilma, nem Serra, esconde o abismo programático entre a ex-candidata e a maioria dos quadros do partido, que apoiam José Serra. Págs. 2, 4 e 5 Reprodução

Em defesa do petróleo, 5 mil pessoas vão às ruas no Rio

EUA querem aumentar sua “ajuda” militar em Honduras O presidente hondurenho de fato, Porfirio Lobo, recebeu a visita do funcionário do Departamento de Estado dos EUA David T. Johnson, com o objetivo de criar as condições para estender a Honduras o que hoje se conhece, no México, por Iniciativa Mérida. Para as organizações da resistência, a iniciativa é preocupante e pode aumentar a escalada de repressão política, o controle das forças de segurança do Estado pelo crime organizado e um aumento do papel dos militares no governo civil, a exemplo da Colômbia. Pág. 10

Morte de jovem e a estrutura sindical na Argentina Mariano Ferreyra, de 23 anos, militante do Partido Operário, foi assassinado no dia 20 de outubro durante uma manifestação, na Grande Buenos Aires, realizada por trabalhadores terceirizados da companhia de trens. A suspeita do crime recai sobre um grupo de choque da burocracia sindical da União Ferroviária. Outros três militantes foram feridos à bala, sendo que uma está em estado grave. Para Carlos Abel Suárez, o acontecimento permite discutir a presença de “uma casta corrupta que é dona do sindicato com o beneplácito e o apoio de todos os ministros do Trabalho há décadas”. Pág. 11

Policias se preparam para dispersar manifestação na Place Bellcour, na cidade francesa de Lyon

Na França, jovens se unem aos operários nas ruas “Não queremos que nossos pais morram trabalhando, e não queremos secar debaixo do sol buscando ca-

sa e trabalho”, diz um rapaz de 19 anos que se juntou aos protestos contra a reforma previdenciária aprovada

recentemente no Congresso francês. Ele é um dos muitos jovens que, de forma massiva, empenhada, pací-

fica e organizada, uniram-se aos operários para dar um “não” à França dos privilégios reservados. Pág. 12

ReprodSantiago Armas/Presidencia de la República del Ecuadorução

“Vamos radicalizar a revolução”

Um sinal de alerta foi aceso em meio à disputa eleitoral. Em resposta, cinco mil pessoas percorreram o centro da cidade do Rio de Janeiro em protesto contra o retrocesso de um governo tucano na área energética. A caminhada “Em defesa do emprego, dos direitos, do patrimônio público e da soberania nacional” – a princípio, organizada para defender essas bandeiras na área energética – terminou se transformando num ato de repúdio à candidatura de José Serra (PSDB). Pelo menos duas mil pessoas, de outras cidades do estado, vieram de ônibus à capital fluminense para participar do ato. Pág. 3

Militância, jornalismo e literatura em Rodolfo Walsh Pouco conhecido do público brasileiro, Rodolfo Walsh é considerado um dos melhores escritores e jornalistas da Argentina. Walsh, cujo livro Operação massacre, de 1957, acaba de ser traduzido para o português, era militante político, posição que assumiu também por meio da escrita. Montonero, o jornalista é um dos milhares de desaparecidos políticos da última ditadura argentina. Pág. 8

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ISSN 1978-5134

Vladimir Platonow/ABr

Cidades no limite Pág. 7


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de 28 de outubro a 3 de novembro de 2010

editorial

A história não tem rascunhos

ESTAMOS DIANTE da maior eleição de nossa história. A quinta eleição presidencial consecutiva, 21 anos depois do inesquecível embate de 1989. Esse período é o maior da história política brasileira, com liberdades democráticas e votação direta para o executivo e legislativo; comparável apenas com o brevíssimo período entre as duas ditaduras do Estado Novo e da resultante do golpe militar entre 1964 e 1985. Golpe militar e período ditatorial seguem sendo o grande trauma não superado em nossa história. Os embates, polêmicas, acusações e personagens, que reaparecem neste segundo turno, seguem nos lembrando que os fantasmas do passado continuam ativos e dispostos a impedir qualquer mudança, por menor que seja, e que afete seus interesses. Assim como em 1989, na campanha de Collor contra Lula, retomam o tema do aborto e todo um arsenal de calúnias para semear o ódio e o medo. Neste momento, são chamados os velhos atores sinistros que cumprem o papel de apavorar. Ressurgem antigos personagens, como a turma da Tradição Família e Propriedade (TFP), Oppus Dei e toda a gama de fundamentalistas, acompanhados de generais de pijama, ruralistas e analistas de plantão. Novamente, a grande mídia atua como o verdadeiro partido político da direita e usa toda a sua força para propagar o medo. Nada mais simbólico do que a capa da revista Veja

debate

– com o monstruoso polvo vermelho que vai nos engolir. Com isto, se esvai a pouca credibilidade desses veículos de comunicação. A batalha ideológica faz parte da luta política. Embora numa correlação de forças distinta daquela histórica campanha de 1989, e empunhando um programa muito mais rebaixado, a candidatura Dilma enfrenta todas as baterias da grande mídia, especialmente das quatro grandes famílias que controlam os principais veículos de comunicação do país. Novamente, a polarização divide a sociedade. Lideranças religiosas se posicionam no campo conservador ou progressista; artistas, dirigentes populares, não escapam da polarização. Novamente, constatamos que enquanto os primeiros turnos das eleições são frios, distantes dos grandes debates e resumidos a shows e disputa de espaço na grande mídia, os segundos turnos forçam o confronto de ideias, propostas, visões do Brasil e do mundo, e de projetos políticos. Assim como nas eleições presidenciais passadas, o tema das privatizações é retomado, obrigando a candidatura da direita a fazer todos os malabarismos para contorná-lo. Vacilar neste momento é um grave equívoco. Abster-se ou esconder-

se no voto nulo, para depois invocar a falta de responsabilidade quando os previsíveis limites de um governo Dilma surgirem, é um senso de oportunidade que não condiz com um lutador do povo. As forças políticas que sustentam a candidatura Serra – desde a bancada ruralista até os ávidos negociantes das privatizações – são as mesmas que protagonizaram o desmonte do Estado brasileiro e toda a ofensiva neoliberal durante o período Fernando Henrique Cardoso. Recordemos que FHC saudou a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) como “bem-vinda” em seu discurso na II Cúpula das Américas em Quebec. E seu ministro Celso Lafer, notabilizado por tirar os sapatos quando visitava os EUA, demitiu o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães da diretoria do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri) por criticar a Alca. Além disso, aceitou passivamente a destituição do embaixador José Mauricio Bustani da direção da Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq) para preparar os pretextos da invasão ao Iraque. Logo após o atentado de 11 de setembro, Lafer convocou uma reunião do órgão de consulta da OEA, invocando o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar), manifestando que

o Brasil poderia participar de ações militares contra o terrorismo. Também firmaram acordo para ceder a Base de Alcântara aos EUA, que fortaleceram os ataques e o boicote a Cuba. Tudo isso apenas para refletirmos sobre os impactos internacionais. Não se trata de alimentar ilusões sobre as possibilidades de um governo Dilma. A provável conjuntura nacional e internacional dos próximos anos será muito mais complexa e exigirá muito mais, tanto do governo Dilma, quanto das forças populares. E a proposta política do PT já não é mais o seu histórico Programa Democrático Popular que empolgou a campanha de 1989. Sabemos que a construção de um projeto popular exige um programa de mudanças estruturais e que isso depende da organização de nosso povo e sua capacidade de construir a força social. A questão colocada pela história é outra. Derrotar o inimigo é sempre uma tarefa central na luta popular. A luta de classes é um fator objetivo do processo. Do inimigo podemos esperar tudo, menos complacência. Basta ver a capacidade das forças reacionárias em aglutinar-se em torno da candidatura Serra para compreender porque a maioria da classe trabalhadora não vacila em posicionar-se.

crônica

Roberta Traspadini

Equivocar-se na identificação do inimigo é um erro que costuma custar muito caro, pois determina a capacidade de construir alianças e onde concentrar forças. Como ensina a velha sabedoria chinesa, “quem não sabe contra quem luta, jamais poderá vencer”. Alguns poderão esconder-se no voto nulo, esperando ansiosos que os anunciados limites de um governo Dilma lhes massageie a consciência impoluta. Pouco importa o movimento dos representantes do latifúndio, grandes meios de comunicação, igrejas conservadoras e aparatos de “inteligência” estrangeiros. Pouco lhes importam a defesa dos países que constroem a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) e, principalmente, ignoram a consciência da classe trabalhadora que se posiciona de forma clara. Somente a história poderá nominar esta postura. E a história não admite rascunhos. Nossa luta é pela construção de um projeto popular para o Brasil. Estamos apenas diante de mais um desafio. Sabemos que as eleições não são a batalha final. Por isso, seguiremos numa luta prolongada, apostando na unidade de todas as forças populares em torno de um programa que altere a estrutura de poder em nosso país. Viveremos junto com o povo esse processo e não tememos a cooptação. Acreditamos no povo brasileiro e enfrentaremos mais essa batalha, confiantes em derrotar nossos inimigos.

Luiz Ricardo Leitão

Um basta aos reacionários

O mundo é surpreendente

O MOMENTO atual é de intensa mobilização contra a campanha tucana em todo o país. É importante que assim seja. Caso contrário, corremos o risco de não aproveitar essa oportunidade histórica para ler, incidir, dialogar entre nós classe trabalhadora, sobre o que vemos e porque vemos a disputa da forma que vemos. O significado de uma vitória tucana será catastrófico não só para o país, mas para o todo o território latino. Todo projeto tem uma concepção de mundo que relata sua forma e seu conteúdo de poder. Vejamos as bases conceituais dos tucanos.

3. As tarefas desse momento O que está em jogo não é a medida socialista ou capitalista da disputa, e sim a forma como se vê a ampliação da soberania brasileira e o conteúdo de sua relação com o continente, a partir dos dois projetos que se colocam em disputa. São tempos difíceis. Tempos de um posicionamento que pode parecer contraditório, mas que evidencia, na correlação de força desse momento, os pesos sobre a classe trabalhadora de uma opção reacionária para os próximos quatro anos. Nossa principal tarefa é debater, com a parcela da sociedade que nos interessa, o que perderemos caso se consolide uma vitória reacionária tucana. Para isto, é importante que nossos materiais de agitação, propaganda e nossos instrumentos de diálogo com a sociedade estejam a serviço desta intencionalidade de classe. A edição especial do Brasil de Fato e as cartas dos movimentos sociais do campo nos dão estes elementos. A tarefa apenas começou. O mais importante vem depois, com uma vitória do PT. Aí o debate será de outra natureza: organizar, reivindicar, exigir, construir, cobrar um rumo diferente para a política de governo. A tarefa maior está para além do poder institucional. Teremos que retomar abertamente a reconstrução da unidade da esquerda, com o objetivo de construirmos e disputarmos o poder com base em um projeto popular, que realmente nos represente como trabalhadores brasileiros e latino-americanos.

OS ÂNIMOS se acirram em Bruzundanga, às vésperas do segundo turno eleitoral. Alguns episódios se assemelham a uma ópera bufa, mas as personagens, obviamente, não são os mesmos velhos avarentos, os servos trapaceiros ou os jovens fidalgos apaixonados por camponesas que povoavam as obras de Rossini (O barbeiro de Sevilha), Donizetti (O elixir do amor) e demais mestres da Commedia dell’arte italiana. Outros soam como farsas burlescas – sem exibir, decerto, o engenho de um Gil Vicente, porém repletos de seres caricatos e artificiais, que os magos da política pós-moderna criam nas salas refrigeradas. Estamos, afinal, em pleno século 21. É grave a crise do capital, e o Império de Tio Sam continua atordoado com a fragilidade de sua economia, que, nas últimas duas décadas, flutua à deriva em um mar de bolhas e colapsos financeiros, refém de um colossal endividamento e dos créditos fictícios com que a banca estadunidense tratou de travestir o caos. Para adiar a bancarrota, o receituário neoliberal, ditado pelo Consenso de Washington, pregou a franca abertura comercial e o “livre” fluxo de capitais, instaurando um processo de ampla privatização das empresas públicas e ingresso ostensivo de divisas estrangeiras nas economias nacionais (modelo que Collor, FHC & Cia. adotaram sem nenhum pejo nestas plagas). “Façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço”: rejeitada por vários países, inclusive aqui na América Latina, a fórmula ianque nunca foi aplicada em sua própria casa; e os EUA, agora, pretendem limitar o superávit da China e da Alemanha, além de sugerir intervenção chinesa em sua política cambial. Resultado? A inquietude não para de crescer no chamado “mundo globalizado”, e as hidras do fascismo, que sempre prosperam em etapas de crise mais aguda, já erguem suas cabeças nas nações mais poderosas, ansiosas por espraiarem-se também nas franjas do III Mundo. Que o digam os mais recentes incidentes em solo francês, onde Sarkozy enfrenta enorme resistência popular à sua reforma previdenciária e o debate migratório; que com a deportação massiva de ciganos, tem se tornado cada dia mais tenso. A intolerância étnica e racial é a contraface inevitável da recessão: os grupos ultranacionalistas e neonazistas estão cada vez mais ativos na Europa, fomentando conflitos e agressões, como ocorreu há pouco em Gênova, onde o jogo Itália e Sérvia foi suspenso logo ao início por causa dos hooligans sérvios, que queimaram bandeiras da Albânia, aos gritos de “Morte aos Shiptar” (termo pejorativo conferido aos albaneses), em represália à declaração de independência de Kosovo, que Belgrado jamais reconheceu. Embora a própria Itália do grotesco capo Berlusconi seja expressão cabal do fascismo político e midiático que a sociedade espetacular abriga, ela é apenas a ponta de um iceberg. O mundo é largo e surpreendente: o desespero do capital fomenta um crescente clima de confronto ideológico, como atesta o Prêmio Nobel da Paz dado ao dissidente chinês, assim como o de Literatura, concedido a Mario Vargas Llosa, notável escritor peruano que há muito se tornou um porta-voz da direita latina. (Em Princeton, onde leciona, Llosa proferiu, em setembro, uma raivosa palestra contrarrevolucionária, em que não hesitou em classificar todo o pensamento crítico pós-1968 como uma inútil “masturbação”). Ao sul do rio Grande, por sua vez, a tensão se manifesta sob outras formas na querida Pátria Grande. Há movimentos sutis em curso: a direita se rearticula em plano continental (vejam o encontro de “líderes empresariais” na Colômbia e o evento global privê em Foz do Iguaçu, a que FHC compareceu com um bando de acólitos) e trata de estigmatizar as vozes dissonantes sob o selo de “populistas” e “autoritárias”, açulando reações contra Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa. O êxito de tais investidas, é claro, dependerá do grau de organização e mobilização popular existente em cada país. No Brasil, em face de distintos fatores (desde a cooptação do movimento social na era Lula até a ausência de uma sólida alternativa à esquerda), as ideias estão à míngua. Na atual campanha, o fundamentalismo religioso e o moralismo udenista prevaleceram; e a discussão sobre um projeto (radical ou não) de transformação estrutural do país foi abduzida pelos marqueteiros. Para nosso consolo, porém, a criatividade do povo ainda não se atrofiou: se você não suporta mais o cinismo dos pastores e aiatolás tucanos, basta acessar a internet e acertar a sua bolinha de papel na careca do Serra. Não é uma rima, nem uma solução, mas serve para lembrar que, neste largo e imprevisível mundo, mais vasta é a nossa rebeldia e imaginação.

Roberta Traspadini é economista, educadora popular e integrante da organização Consulta Popular/ES.

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de Lima Barreto: o rebelde imprescindível.

1. O projeto de nação do PSDB O projeto de nação do PSDB, cujos principais intelectuais orgânicos são Fernando Henrique Cardoso e José Serra, é o de modernização atrelada ao que de mais avançado há no capitalismo em sua fase imperialista. Para estes ideólogos, uma nação moderna é aquela conectada aos avanços técnico científicos promovidos pelos capitais protagonistas, independentemente da nacionalidade destes capitais. Suas teses são forjadas na concepção da existência de uma burguesia nacional conservadora, que atrofia o pacto federalista, para o desenvolvimento capitalista. Logo, necessita ser estimulada, movimentada, ou destruída pela concorrência com os grandes capitais investidores internacionais, sejam produtivos ou financeiros. Defendem que a única forma de avançar no capitalismo imperialista é implantar ação governamental que viabilize aquisições, fusões, privatizações, desestatizações, quebra de regulações e políticas macroeconômicas que impeçam a livre movimentação do capital (inter)nacional. Para estes sujeitos, a era global se caracteriza como a de livre mobilidade do capital, que deve ser vista como uma oportunidade histórica para as economias retardatárias no processo de desenvolvimento capitalista. 2. A execução do poder Na prática do poder, esta tese evidencia a relevância para o capital internacional de um Estado parceiro, aberto às coligações produtivas e infraestruturais no processo de inovação tecnológica puxado pelas grandes corporações. Com o aval do partido e de seus representantes eleitos, esse capital moderno ocupa o que é do Estado e governa a sociedade e os territórios, pela constituição federal soberanos, a partir da busca pela valorização de

seu negócio para além das fronteiras nacionais. Este capital moderno, cujas sedes das principais empresas estão nos EUA, tem projetado, nos últimos 40 anos para América Latina, um novo momento de apropriação dos recursos naturais, energéticos e das riquezas criativas da população, no que podemos caracterizar a renovada fase das veias abertas da América Latina. A meta principal é a apropriação privada dos estadunidenses e seus pares, de tudo o que pertence ao Estado Nacional latino-americano e mundial, como guardião republicano dos interesses das sociedades que ocupam. Estamos falando de um novo estágio da guerra, em que a leitura da correlação de forças, no continente, nos exige com urgência frear qualquer proposta de apropriação imediata do roubo dos territórios e vidas por parte dos capitais imperialistas, com a chancela do Estado nacional brasileiro. Uma vitória de Serra representa um avanço sem precedentes no continente latino-americano daquilo que o PSDB, via sua adesão consensual a Washington, não conseguiu realizar por completo nos dez anos de mando direto – oito anos de FHC como presidente e dois anos dele como ministro do governo Itamar Franco. A prévia eleitoral de uma possível vitória de Serra evidencia o aberto processo de conflitos, de guerra, criminalização dos movimentos, e sujeitos, logo, a ampliação de um processo de perseguição e de construção, no imaginário coletivo da sociedade brasileira sobre os criminosos, dos crimes e o tipo de criminalidade. Estamos falando da opção política concreta que os EUA esperam para assumir a ofensiva sobre o continente a partir da conquista do Estado brasileiro no próximo governo, as-

sim como fazem com Chile, Colômbia e México, citando os governos coligados mais avançados nos pactos capitalistas imperialistas atuais.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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No Rio, trabalhadores vão às ruas em defesa do patrimônio público Nando Neves

PETRÓLEO Cinco mil pessoas percorrem o centro da cidade em protesto contra o retrocesso de um eventual governo Serra na área energética Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) O CENTRO do Rio de Janeiro foi novamente ocupado por trabalhadores. Na avenida Rio Branco, dez mil pés marchavam, em sintonia, no dia 21 de outubro. A euforia que se notava nos rostos, nos discursos inflamados, deve-se basicamente a uma preocupação comum: na disputa à Presidência da República, um dos projetos colocados ameaça consideravelmente a exploração do petróleo brasileiro. A caminhada “Em defesa do emprego, dos direitos, do patrimônio público e da soberania nacional” – a princípio organizada para defender estas bandeiras na área energética – terminou se transformando num ato de repúdio à candidatura de José Serra (PSDB), e, por consequência, de apoio a Dilma Rousseff (PT). Entre os cinco mil manifestantes, havia estudantes secundaristas e universitários, petroleiros, metalúrgicos, bancários, trabalhadores da construção civil, da indústria naval, e militantes dos mais variados movimentos sociais.

O objetivo é conversar com a população, fazendo campanha contra a candidatura Serra, e pelo monopólio estatal do Petróleo Entre as organizações populares, dois discursos distintos convergiam em um ponto. Havia tanto os que consideram o atual governo federal um aliado de sua categoria quanto aqueles que não se sentiam representados por essa gestão, mas que consideram um eventual governo Serra um mal muito maior. A diversidade de posições deu certa sintonia à dinâmica do ato. Sônia Latge, por exemplo, da direção da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), faz avaliação positiva. “No governo Lula existe um protagonismo da classe trabalhadora. Quando a gente percebe a política do salário mínimo, quando a gente discute o aumento do número de concursos públicos, a gente vê o ‘Luz Para Todos’, tudo isso foi gestado entre os trabalhadores. Na época do Collor e do Fernando Henrique, quando a privatização grassava, a gente via a destruição da indústria e da economia nacional. É fundamental que estejamos na rua. Este ato é a explosão do apoio da classe trabalhadora”. Responsabilidade

Pelo menos duas mil pessoas vieram de outras cidades do Estado, de ônibus, apenas para participar do ato. Categorias como a de trabalhadores de estaleiros e os chamados mata-mosquitos, que combatem a dengue, foram

cessão profunda”, disse Darby Igayara, da coordenação da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Zé Carlos, secretário-geral da Força, sinalizou na mesma direção: “o movimento, hoje, percebe um aumento no número de registros de carteiras assinadas no Brasil e chances mais frequentes de primeiro emprego. Não é por acaso que estamos apoiando a candidatura do governo”, disse. Centrais de oposição ao governo, pela esquerda, não aderiram maciçamente ao ato. De seus militantes presentes, muitos questionaram a demora em se organizar o ato. “Por que não houve algo assim no primeiro turno? Acharam que já estava ganho?”, disse um manifestante. Acampamento

Manifestação na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, em defesa da soberania nacional

“A direita não pode voltar ao poder, porque é uma ameaça à própria sociedade. Eles levaram o país quase à falência” responsáveis por mobilizações muito expressivas. Serra, enquanto ministro da Saúde de FHC, foi responsável pela demissão massiva da categoria, que resultou, no verão seguinte, em epidemia de dengue no Rio de Janeiro. O ressentimento da categoria com ele é antigo, a ponto de serem os principais envolvidos na confusão recente, na Zona Oeste, em que Serra foi atingido na cabeça por uma bolinha de papel, dirigindo-se ao hospital. Emanuel Cancela, do Sindicato dos Petroleiros (Sindipetro-RJ), deixa claro a motivação dos manifestantes. “Apesar de não estarmos fazendo campanha explícita para ninguém, a gente deixa muito claro que um dos candidatos foi responsável, por exemplo, pela tentativa de privatização da Petrobras durante o governo FHC. Ele ajudou a quebrar o monopólio do petróleo e a pulverizar as ações da empresa. Eles também desnacionalizaram a indústria naval e praticamente fecharam os estaleiros brasileiros. Não por acaso, vários trabalhadores de estaleiros estão aqui. Nós temos que fazer todos os esforços para que essas pessoas não voltem ao poder”. Abraço simbólico

A caminhada saiu da Candelária, percorrendo a avenida Rio Branco até a avenida Chile, terminando o ato em frente à Petrobras. Os militantes abraçaram, simbolicamente, a empresa, como se tornou tradicional em atos em defesa do monopólio estatal do petróleo. A avenida Rio Branco teve duas faixas fechadas pela Polícia Militar. O Centro do Teatro do Oprimido (CTO), tradicional apoiador da política cultural do governo Lula, levou às ruas uma grande imagem de Dilma, reproduzindo os bonecos do carnaval pernambucano. Coros de estudantes ecoavam entre os manifestantes. Agrupamentos de militantes de entidades como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) assemelhavam-se a alas dos desfiles de escola de samba. Um panfleto com adesão de centenas de professores de universidades federais à candidatura de Dilma era distribuído. Também o abaixoassinado de artistas e intelectuais em apoio à candidatura Dilma era difundido.

Ato histórico

Luiz Antônio de Moraes, coordenador da Federação Única dos Petroleiros (FUP), considerou o ato uma vitória. “Depois que o principal assessor energético de Serra, David Zylbersztajn, que presidiu a Agência Nacional do Petróleo (ANP), disse que pretendia privatizar o présal, o povo saiu às ruas. Não

queremos retrocesso no nosso país. Por isso, este já é um ato histórico, com presença de um amplo leque do movimento social brasileiro. Praticamente, todas as centrais sindicais estão aqui”, disse. “Serra foi ministro do Planejamento, quando se fez o maior programa de privatizações do planeta. Não foi uma simples ‘privataria’. Foi a entrega do patrimônio público brasileiro. Basta citar o exemplo da Vale, ‘vendida’ por R$ 3 bilhões e que hoje vale 40 vezes mais”, completou. Moraes também lembrou a misteriosa reunião, no início da semana, de Fernando Henrique com repre-

sentantes de transnacionais em Foz do Iguaçu. A cidade é conhecida, internacionalmente, pelo frágil controle do fluxo de dinheiro. Acredita-se que acordos lesivos ao patrimônio brasileiros possam ter sido estabelecidos, conforme um eventual governo Serra. Entre as centrais sindicais que aderiram ao ato, estavam a CTB, CUT, Força Sindical e UGT. “Nesse momento, a sociedade tem que estar mobilizada para inviabilizar o retrocesso. A direita não pode voltar ao poder, porque é uma ameaça à própria sociedade. Eles levaram o país quase à falência, a uma re-

Dezenas de pessoas também montaram barraca no espaço entre a Petrobras e o BNDES, onde prometem dormir até o final do período eleitoral. São oriundas de distintos movimentos sociais que, após uma ligeira subida de Serra nas pesquisas, decidiram organizar o acampamento. O objetivo é conversar com a população, fazendo campanha contra a candidatura Serra e pelo monopólio estatal do Petróleo. No material de trabalho, também se notava adesivos e panfletos da campanha “Serra não”, capitaneada por aqueles que não se entusiasmam com a candidatura Dilma, mas consideram um governo Serra um mal maior. O ato teve também a participação do senador eleito Lindberg Farias (PT), o deputado estadual, eleito a federal, Alessandro Molon (PT) e o deputado federal reeleito Luiz Sérgio (PT). A ministra da Secretaria de Políticas Públicas, Nilcéa Freire, também esteve presente.

A indústria que reemergiu Petrobras

Sucateado durante os oito anos de FHC, setor naval recupera o tamanho e o prestígio do período anterior. Trabalhadores de estaleiros apoiam, com entusiasmo, a candidata da situação do Rio de Janeiro (RJ) Em meio aos manifestantes do ato “Em defesa do emprego, dos direitos, do patrimônio público e da soberania nacional”, uma turma chamava a atenção. Vestida de macacões, com nomes distintos de estaleiros nas costas, ocupava parte considerável da caminhada. São os trabalhadores da indústria naval. O setor é considerado um dos que mais se modificou da era Fernando Henrique Cardoso (FHC) para o período Lula. FHC teria sucateado a indústria, com a demissão de milhares de trabalhadores, posteriormente resgatados. Entre o governo tucano (1994 e 2002), muitas empresas tiveram que sobreviver de serviços de reparos de navios. Algumas delas fo-

Cerimônia de lançamento do navio João Cândido

ram extintas. O país ficou 13 anos sem construir um navio petroleiro de grande porte até recentemente – quando o governo federal lançou o enorme João Cândido, capaz de transportar metade da produção diária da Petrobras. Recuperação do setor

A construção de navios, plataformas e barcos de apoio representa aproximadamente 80% do negócio da indústria naval. Dos graneleiros aos transportadores de contêineres, o setor tem atualmente uma lista de 100 embarcações a construir. Em 2010, os estaleiros brasileiros devem lucrar cerca de R$ 5,5 bilhões. Dilma Rousseff tem defendido que o número de empregados do segmento foi de doi mil durante o governo FHC, para 45 mil atualmente, número

equivalente ao do governo Itamar Franco. Um dos motivos da diferença ocorreu em 2004, quando foi criado o Programa de Modernização e Expansão da Frota da Transpetro (Promef). O restabelecimento da indústria naval teria sido gestado quando Dilma ainda era ministra das Minas e Energia, acumulando a função de presidente do Conselho de Administração da Petrobras. O governo federal teria estimulado a descentralização dos estaleiros e investido com veemência no segmento. Ironia tucana

“Nós queremos dar continuidade ao que o governo fez pelo nosso setor. Lula gerou emprego pra muita gente. Na época de FHC, muitas fábricas fecharam, e muita gente ficou desempregada.

O Serra quer trazer a mesma ‘turma’ de volta. A gente está aqui pra dizer que não queremos que isso aconteça”, defendeu, na manifestação, Leonil Roque da Silva, supervisor do Estaleiro Mauá, o mais antigo do país. Em 2002, quando Serra enfrentava Lula na campanha presidencial, o tucano ironizou o programa petista de investimento na indústria naval. Na ocasião, Serra afirmava que os navios brasileiros não seriam de boa qualidade, por serem produzidos com tecnologia nacional. Dilma tentou trazer o tema para debate, em algumas de suas participações televisivas. Mas a mídia estava mais atenta aos supostos escândalos e a temas como aborto e “casamento gay”. O Rio de Janeiro é uma das cidadeschave da indústria naval no Brasil. (LU)


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“Derrotar a direita”, eis o consenso ELEIÇÕES Forças da esquerda brasileira divergem quanto ao apoio explícito à candidatura de Dilma Rousseff (PT) no segundo turno Marcello Casal Jr./ABr

Eduardo Sales de Lima da Redação GROSSO MODO, a disputa entre petistas e tucanos representa, para alguns analistas, o antagonismo entre dois projetos de nação. Para outros, são duas faces de uma mesma moeda. O posicionamento das forças de esquerda, nesse segundo turno, reflete um pouco dessas diferentes visões. A Via Campesina optou por encampar a candidatura de Dilma. O Psol – Partido Socialismo e Liberdade – defendeu um “não à Serra”. O PCB – Partido Comunista Brasileiro – se definiu pelo apoio crítico à Dilma. O PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado – posicionou-se pelo voto nulo. A Via Campesina Brasil, que inclui organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), declararam, mais que o voto a Dilma no segundo turno, o apoio de sua militância no corpo a corpo com a população. “Serra representa, em nível latino-americano, um aliado do imperialismo e um inimigo de todas as forças populares”, afirma o integrante da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Luiz Dalla Costa.

“Serra representa, em nível latinoamericano, um aliado do imperialismo e um inimigo de todas as forças populares”

“Não acho que Dilma e Serra sejam iguais. Limão e lima não são iguais, mas ambas são frutas ácidas” “Sabemos que Dilma não vai defender a implantação do socialismo no Brasil e nem achamos que o socialismo vai ser implantado já. Nessa circunstância, agora, vamos votar e ajudar a eleger a Dilma”, defende Dalla Costa. Apesar do apoio eventual, o coordenador do MAB ressalta que, após o pleito presidencial, a luta dos movimentos sociais continuará na defesa dos trabalhadores urbanos, dos atingidos por barragens e dos sem-terra, independente do governo. Somando o apoio à Dilma, João Batista Lemos, secretário sindical nacional do Partido Comunista do Brasil (PC do B), acredita que o “voto nulo da esquerda é o que a direita gosta” e que uma derrota petista, neste segundo turno, mesmo com todas as contradições que acompanharam o governo Lula, representaria um retrocesso

A candidata do PT, Dilma Rousseff, participa de ato em defesa do meio ambiente

Marina em meio ao “jogo verde” Neutralidade, no segundo turno, tem sido apenas superficial da Redação Marina Silva se disse neutra, assim como o Partido Verde (PV), para o segundo turno. Tal consonância, à primeira vista, pode esconder o que algumas personalidades políticas compreendem como um abismo programático entre a ex-candidata à presidência e a maioria dos quadros do partido. A ex-candidata à presidência da república pelo PV cresceu surpreendentemente dias antes das eleições no primeiro turno, obtendo voto de 19,6 milhões de eleitores por todo o Brasil. Para Roberto Malvezzi, assessor da CPT, muita gente, seja à direita ou à

nos avanços democráticos e sociais muito grande. Para Marcelo Freixo (Psol), deputado estadual reeleito no Rio de Janeiro, o voto crítico à Dilma Roussef significa um voto específico de segundo turno. “O segundo turno não é o seu projeto [do Psol] que está em pauta; no segundo turno você vota num projeto menos prejudicial à sociedade que o outro e, depois, é fazer oposição ao vencedor”, explica Freixo.

esquerda, subestimou os votos concedidos a Marina, atribuindo seu crescimento a votos conservadores e evangélicos. O voto em Marina, segundo Malvezzi, refletiu mais que isso; representou o descontentamento de muitos brasileiros em relação ao desrespeito ao meio ambiente, sobretudo no que se refere a grandes obras como a Transposição do Rio São Francisco e o projeto de construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu. “O governo Lula avalia mal a questão ambiental. Serra, então, nem sei se avalia”, afirma. Pois bem. Marina conquistou maior legitimidade, com os 19,33% dos votos válidos no primeiro turno, e seu apoio se tornou objeto de desejo, tanto do lado petista quanto dos tucanos. Poucos dias após a realização do primeiro turno, um de seus principais assessores, Pedro Ivo Batista, acenou fortemente com a possibilidade de

Marina apoiar a candidatura de Dilma Rousseff. “O PT, por enquanto, de forma correta, procurou e tem buscado fazer uma conversa mais programática. Isso é positivo”, declarou à Radioagência Notícias do Planalto. Mas o apoio não ocorreu. Marina e seu partido declararam “independência” e liberaram seus militantes. “Imagino que os conflitos dentro do governo Lula enfrentados por Marina foram monstruosos. Ela não teria saído dali por razões desimportantes. Então, há que se considerar a decisão dela numa perspectiva de história, não só agora, no segundo turno. Ela tem consciência de que trouxe ao Brasil uma variante que outros jamais trariam. Marina sabe que o futuro passa por essa dimensão (ambiental) e quer preservar sua independência para cobrar de quem quer que chegue ao poder”, afirma Roberto Malvezzi. Mas não é assim que vê o deputado estadu-

al reeleito no Rio de Janeiro, Marcelo Freixo (Psol). Para ele, a atitude de Marina Silva foi “equivocada”. “Acho que ela, como figura pública, tinha que se posicionar. Não existe a tecla independência. A pessoa que é pública não pode não se posicionar; eu acho ruim”, critica. Para João Batista Lemos, do PC do B, a atitude da candidata derrotada à presidência da república contribuiu para o que chama de “diversionismo” dentro do contexto eleitoral. Segundo ele, tanto no primeiro quanto no segundo turno, a atuação da candidata de Marina tem confundido a luta política no país. “Primeiro, ela serviu à ofensiva midiática, porque teve sua candidatura insuflada pela direita para Serra ir ao segundo turno. Agora, no segundo turno, sua neutralidade se insere nesse processo pessoal dela; porque seria muito mais coerente ela indicar o voto na Dilma”, defende.

Tucanos verdes? O comportamento dos “verdes” no segundo turno desvela um entrave programático para o próprio partido e para Marina Silva no futuro. Isso porque a neutralidade oficial de Marina e do partido não foram seguida por seus quadros, uma mistura de tendências ideológicas representada tanto por um punhado de figuras mais progressistas, como o próprio Pedro Ivo Batista, ex-militante petista e coordenador da Rede Ecossocialista, como por um considerável contingente de quadros próximos a governos do PSDB, como Fernando Gabeira, apoiador público à candidatura de José Serra no Rio de Janeiro. “O PV se aliou ao PSDB em vários estados. Agora, se o PV vai negociar cargos, caso ganhe ou José Serra ou Dilma, isso o tempo vai dizer”, lembra deputado estadual fluminense Marcelo Freixo (Psol) “A Marina, que tem a ilusão de construir um outro projeto político, manteve a independência; mas não é o caso do partido. Na grande maioria, os quadros do PV, nos Esta-

“Iguais” Diferentemente, pensa o PSTU, que defende o voto nulo no segundo turno. “Não existe um ‘mal menor’ nesse segundo turno. Votar em Dilma ou Serra vai fortalecer um deles para atacar com mais força os direitos dos trabalhadores”, pontua o texto de Eduardo Almeida Neto da Direção Nacional do PSTU e editor do jornal Opinião Socialista. Segundo ele, “cada voto dado em Dilma ou Serra é uma força a mais que eles terão para aplicar uma nova reforma da Previdência”. “Não acho que Dilma e Serra sejam iguais. Limão e lima não são iguais, mas ambas são frutas ácidas”, pontua o membro da direção nacional do PSTU, doutor em história social pela USP, Valério Arcary, que salienta categoricamente que não votará em nenhum dos dois. Ele vai além. Para Arcary, é necessário que a esquerda, “que se denomina anticapitalista”, afirme sua posição de que não vai participar de um possível governo Dilma e não deve, “por razões óbvias, nem teóricas”, fazer parte de um governo que quer manter o capitalismo. “Não há nenhuma perspectiva de que seja um governo com alguma postura anticapitalista, mas sim um governo de gestão do capitalismo”, afirma. Criticando posturas como a do PSTU, em entrevista recente ao site IHU – Instituto Humanitas Unisinos –, o analista político Wladimir Pomar apontou para o fato de que “há muito tempo a esquerda e setores progressistas brasileiros sofrem da síndrome de confundir inimigos e amigos” e que, com o passar dos anos de governo petista, os entendimentos políticos tendem a se tornar mais complexos.

dos, estão aderindo à candidatura Serra. O PV real, que está nos governos estaduais, se posiciona majoritariamente a favor de Serra”, destaca Valério Arcary. Roberto Malvezzi, da coordenação nacional da CPT, acredita que o PV “não é um partido com cara definida”. “Conheço pessoas muito boas que estão ali pela causa ambiental há muitos anos. Mas sei também que há ali um jogo de vaidades muito grande”, afirma Malvezzi. Segundo ele, o partido de Marina pode ter medido a questão do apoio no segundo turno “do ponto de vista eleitoreiro e de acumulação de força política”, mas Marina não.“Com todos seus paradoxos, que eu mesmo comento sempre, tem uma ética, tem valores, dignidade, e quer ver triunfar, nesse país, o bom senso e um novo paradigma de civilização”, elogia. Ao mesmo tempo, Malvezzi é reticente em relação aos possíveis objetivos de Marina: “Não sei se vai conseguir, às vezes ela está muito fechada em um pequeno grupo de assessores”. (ESL)


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Nem segundo turno politizou o debate Jorge Araújo/Folhapress

ELEIÇÕES Segundo analista, campanha foi a de nível mais baixo desde fim da ditadura

O “escândalo” da bolinha de papel arremessada em Serra ocupou o espaço dos programas eleitorais do PT e do PSDB

Renato Godoy de Toledo da Redação AS ELEIÇÕES de 2010 foram marcadas pela forte presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o primeiro mandatário a fazer campanha para seu sucessor, vista sua alta popularidade. Mas a presença de Lula não foi a única marca dessa campanha: a sucessão de denúncias e escândalos também deu a tônica do debate. Em conluio com a grande imprensa, os escândalos do governo Lula foram martelados diariamente na campanha de José Serra. Analistas apontam que esse fator, aliado ao crescimento de Marina Silva, foram fundamentais para levar a disputa para o segundo turno. Quando se imaginava que o reinício da campanha pudesse colocar em voga as diferenças políticas entre as duas candidaturas, a nova etapa iniciou-se com temas retrógrados, pondo em dúvida a religiosidade de Dilma e a questão do aborto. No primeiro debate, na Rede Bandeirantes, a candidata petista começou a bater em uma tecla que trouxe um pouco de politização aos debates, as privatizações da era Fernando Henrique Cardoso. Serra logo sentiu a investida da campanha petista e passou a desmentir as afirmações de

mais a luta pelos direitos civis em nosso país. Os candidatos se rebaixaram ainda mais para conquistar lideranças fundamentalistas. Não abriram o debate. Apenas recuaram”, aponta Rudá.

Dilma Rousseff, Celso Freitas e José Serra durante debate realizado pela Rede Record no dia 26 de outubro

“Para piorar, os temas do ultraconservadorismo, que emergiram no final do primeiro turno, abalaram ainda mais a luta pelos direitos civis em nosso país” que iria privatizar o pré-sal e a Petrobras. Falou até em “reestatizar” empresas que hoje estariam sobre controle privado de aliados do governo. Em um segundo debate, na Rede TV!, os escândalos apareceram apenas nas perguntas dos jornalistas. Os candidatos se concentraram nos temas em que tinham desempenho mais bem avaliado pelas pesquisas qualitativas dos seus marqueteiros. Dilma fazia as

comparações entre os governos Lula e FHC, enquanto Serra exaltava sua experiência e tentava colar na petista o rótulo de “antipaulista”. Aborto e religiosidade saíram de cena, exceto nos “graças a Deus” proferidos por ambos. Bolinha de papel No entanto, a melhora do nível da campanha não se consolidou. O “escândalo” da bolinha de papel arremessada

em Serra ocupou o espaço dos programas eleitorais do PT e do PSDB. O Jornal Nacional consultou o perito Ricardo Molina, da Unicamp, para negar a versão do PT – de que o tucano fora atingido apenas por uma bolinha de papel. Serra também foi atingido por algo semelhante a um rolo de fita, teria desvendado o perito. Para o sociólogo Rudá Ricci, o pleito de 2010 ficará marcado como o de pior nível político, desde a redemocratização do país. “Foi, de longe, a pior campanha presidencial desde o fim do regime militar. Uma campanha rebaixada, personalizada, despolitizada. O resumo da ópera é a falta de programas de governo, pela primeira vez na história dessa disputa. A causa é

a falência do sistema partidário brasileiro: ele não consegue mais representar os anseios da população. Representam os anseios dos financiadores que, muitas vezes, chocam-se com os desejos populares. O que faz uma campanha ficar totalmente à mercê dos malabarismos de marqueteiros”, analisa. Como se não bastasse o rebaixamento do debate político, a campanha ainda será lembrada por ter reintroduzido temas do “submundo” da política no debate eleitoral, como a criminalização do aborto e a fé religiosa dos candidatos como pré-requisito para governar o país. “Para piorar, os temas do ultraconservadorismo, que emergiram no final do primeiro turno, abalaram ainda

Fator Lula Desde a redemocratização do país, um governo terminar o mandato na casa dos 80% de aprovação é um fato inédito. Lula foi o principal cabo eleitoral da candidata do PT e recebeu críticas de adversários e multas da Justiça por isso. As últimas pesquisas, anteriores ao fechamento desta edição, em 26 de outubro, apontavam que Lula conseguia transferir seus votos a Dilma. Porém, entre aqueles que consideravam seu governo como “bom”, os votos eram divididos entre os dois candidatos. Para o sociólogo Rudá Ricci, essa situação é reflexo da má formação política do Estado brasileiro – assunto, aliás, que não foi discutido durante o certame. “Sempre houve [“presidente cabo-eleitoral”], mas não tão declaradamente. A alta popularidade e o poder cada vez mais centralizado no governo federal acabam propiciando essa distorção”, explica.


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A morte de mais um torturador impune

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Consumo induzido

Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

ROMEU TUMA Ex-presos políticos lembram o triste e criminoso legado deixado pelo ex-delegado do Dops

Terra limitada

O Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo divulgou os resultados do plebiscito popular sobre o limite da propriedade rural, realizado de 1º a 12 de setembro: votaram 519.623 pessoas, em 23 Estados, sendo que 95,5% responderam sim para a fixação de limite máximo de propriedade da terra. O fórum vai encaminhar ao Congresso Nacional, até o final do ano, projeto de emenda constitucional para definir esse limite.

Patrícia Benvenuti da Redação A MORTE DO senador Romeu Tuma (PTB-SP), no dia 26 de outubro, trouxe à tona manifestações de pesar de vários políticos, que lamentaram a perda. Para organizações de direitos humanos, no entanto, ele passa para a história como mais um torturador da ditadura civil-militar (1964-1985) que ficou impune no Brasil. Tuma faleceu aos 79 anos, no hospital Sírio-Libanês em São Paulo (SP), depois de 56 dias de internação. De acordo com nota divulgada pela instituição, a morte se deu em “decorrência de falência de múltiplos órgãos”. Mesmo doente, ele concorreu à reeleição no dia 3 de outubro, quando obteve 3,97 milhões de votos, ficando em quinto lugar na lista de senadores. Seu lugar será ocupado por Alfredo Cotait (DEMSP), seu primeiro suplente, atual secretário de Relações Internacionais da Prefeitura de São Paulo.

Estatuto reduzido

Após sete anos de tramitação no Congresso Nacional, finalmente entrou em vigor, no dia 20 de outubro, o Estatuto da Igualdade Racial, que só foi aprovado depois de ter sido devidamente esvaziado. O texto final perdeu força, deixou de ser determinante como estava na versão original, e também deixou de fora a questão das cotas. Resta saber se servirá realmente para defender e afirmar os direitos dos negros no Brasil!

Assalto – 1

Todas as casas que têm TV, na Inglaterra, pagam uma taxa anual de R$ 390 para sustentar a BBC, que é o melhor canal público do mundo, e receber todos os sinais de TV disponíveis no país. Aqui no Brasil, existem alguns poucos canais na TV aberta, já que a maioria dos canais é monopolizada pela TV paga (cabo e satélite), que costuma cobrar de R$100 a R$ 170 por mês dos assinantes. É o assalto da concessão televisiva!

A partir de 1969, começou a trabalhar com o delegado Sérgio Paranhos Fleury – considerado um dos maiores torturadores do regime civil-militar – no Dops, que passou a dirigir em 1975

Assalto – 2

O senador Romeu Tuma

Carreira A vida política de Tuma começou em 1994, quando foi eleito senador pelo Partido Liberal (PL). Em 2000, foi candidato à Prefeitura de São Paulo, quando terminou em quarto lugar. Nas eleições de 2002, foi eleito para um novo mandato de senador, com vigência até 2011. Sua atuação mais destacada, no entanto, ocorreu como policial, carreira que iniciou aos 20 anos de idade quando se tornou investigador por concurso público. Em 1967, passou a ser delegado de polícia, depois de se graduar em direito. Nesse período, alcançou o posto de diretor de Polícia Especializada, na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. A partir de 1969, começou a trabalhar com o delegado Sérgio Paranhos Fleury – considerado um dos maiores torturadores do regime civil-militar – no Serviço de Inteligência do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Dops), que passou a dirigir em 1975. Apesar do cargo que ocupou, Tuma afirmava desconhecer a existência de práticas de tortura na unidade. Da mesma forma, garantia ignorar detalhes sobre desaparecimentos e assassinatos. Repressão A “inocência” de Tuma, no entanto, é rebatida por ex-presos políticos, que recordam bem de sua atuação enquanto diretor do Dops. O integrante do Fórum dos ExPresos e Perseguidos Políticos de São Paulo, Ivan Seixas, lembra que a sala ocupada por Tuma, no prédio do Dops, se localizava um andar acima de onde ocorriam os interrogatórios e as torturas. “Não tinha isolamento acústico. Nós [presos] ouvíamos as torturas durante noite e dia”. Só esse detalhe, segundo Seixas, seria suficiente para provar o conhecimento de Tuma sobre a situação. No entanto, ele lembra que existe uma série de documentos

Antes do dia das crianças, em 1º de outubro, o Instituto Alana identificou – em 10 horas de programação de cinco canais de TV paga e dois canais de TV aberta (SBT e Globo) – um total de 1.100 inserções comerciais de publicidade dirigida para as crianças, em especial para a promoção e venda de brinquedos. O Instituto Alana defende a proibição legal e expressa de qualquer comunicação mercadológica dirigida às crianças.

que comprovam a participação de Tuma na orientação dos interrogatórios. “[Tuma] Não era um funcionário qualquer, era o orientador. E ele também era frequentador assíduo do DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna], que era outro centro de tortura”. O escritor e jornalista Alipio Freire, também ex-preso político, reitera o envolvimento de Tuma nas torturas. “O Dops foi o centro da repressão até a criação da Oban [Operação Bandeirante]. Ele sabia de sobra o que aconteceu no Brasil”, afirma.

“É lamentável que ele tenha se tornado uma figura de circulação mais do que permitida, mas, também, querida, por um governo democrático” Fraude Já a integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, Suzana Lisboa, acusa Tuma de omitir informações sobre crimes cometidos durante sua gestão no Dops. Como exemplo, a militante utiliza o caso de seu marido, Luiz Eurico Tejera Lisboa. Preso em 1972, ele constou na lista de desaparecidos até 1979, quando seu corpo foi encontrado no cemitério de Perus, em São Paulo, sob o nome falso de Nelson Bueno. O inquérito sobre sua morte, que “apareceu” depois da descoberta do seu corpo e com o falso nome, indicava que Luiz Eurico teria cometido suicídio em uma pensão do bairro da Liberdade no cen-

tro de São Paulo. O inquérito, entretanto, apresentava uma série de falhas, o que possibilitou a reabertura do caso. Questionado por um juiz, que solicitou ao Dops informações sobre Lisboa, Tuma afirmou que não havia registros em nome de Nelson Bueno. Em 1991, porém, quando Suzana teve acesso aos arquivos do Dops, ela encontrou uma lista de 1978, endereçada a Tuma, onde constava o nome de Luiz Eurico e a informação de que havia morrido em setembro de 1972. “Tuma mentiu sobre meu marido, dizendo que não tinha informações sobre ele”. Para Suzana, ao não responder por seus crimes, Tuma leva consigo segredos e informações valiosas sobre mortos e desaparecidos. “Ele fazia de conta que não tinha envolvimento [com a ditadura]. Ele conseguiu ficar impune e leva, com ele, um pedaço da nossa história e dados sobre nossos desaparecidos políticos”. Polícia Federal Em março de 1983, com a extinção do Dops, Tuma assumiu o cargo de superintendente regional da Polícia Federal em São Paulo, para onde levou os arquivos do órgão que comandava. O objetivo, segundo Suzana, era “evitar que a esquerda ou que nós [familiares e organizações de direitos humanos] tivéssemos acesso”. Mais tarde, Tuma passou a ser acusado, com mais força, de alterar os arquivos do Dops e omitir uma série de documentos importantes para a elucidação de crimes. As fraudes teriam ocorrido quando o ex-presidente Fernando Collor de Mello se propôs a entregar, ao governo de São Paulo, os arquivos do Dops. Dom Paulo Evaristo Arns, na época, afirmou ter recebido denúncias de que os arquivos estariam sendo esvaziados, o que motivou uma vigília de vítimas da repressão e familiares em frente à sede da Polícia Federal na capital paulista.

Segundo Suzana, não há como calcular a extensão do material retirado, mas arquivos inteiros referentes a “colaboradores” e à “Guerrilha do Araguaia” estavam vazios. Mesmo assim, reitera a militante, sobraram documentos que provam a participação de Tuma nos crimes. Crítica Apesar de seu histórico, o ex-delegado e senador cultivava boas relações com o governo federal e com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em 1980, quando Lula e outros sindicalistas estavam presos no Dops, depois de uma intervenção federal no Sindicato dos Metalúrgicos, Tuma liberou o atual mandatário para ir ao velório e enterro de sua mãe, Eurídice Ferreira Mello, dona Lindu. Na época, Lula chegou a afirmar que recebia um bom tratamento na prisão. Sobre a morte de Tuma, Lula afirmou, em nota, que o senador merece o reconhecimento dos brasileiros, pois “dedicou grande parte da vida à causa pública, atuando de forma coerente com a visão que tinha do mundo”. Para Suzana, é inaceitável a postura de Lula em relação a Tuma. “Lamento que o presidente Lula o defenda. Acho que é uma relação que não deveria ficar, em memória de milhares de presos”. Freire, da mesma forma, critica o trânsito de Tuma junto ao governo. “Ele se tornou uma pessoa ‘inocente’ depois [da ditadura]. É lamentável que ele tenha se tornado uma figura de circulação mais do que permitida, mas, também, querida, por um governo democrático”.

Para entender Operação Bandeirante: Centro de informações, investigações e de torturas, montado pelo Exército, em 1969, a fim de coordenar e integrar as ações dos órgãos de combate aos grupos armados de esquerda que lutavam contra o regime civil-militar no Brasil.

Estudo realizado pela ONU, em 78 países considerados “emergentes”, concluiu que o Brasil tem a mais alta tarifa de telefone celular: o pacote médio mensal custa R$ 200, mais do que o dobro da média cobrada nos outros países. Vale lembrar que a telefonia brasileira foi privatizada nos anos 1990 e é totalmente controlada por quatro grupos estrangeiros, que cobram o que bem entendem. É o assalto da concessão telefônica!

Risco iminente

De acordo com o Banco Central e o Serasa, o volume de dívidas dos cidadãos brasileiros corresponde a 40% da renda total, sendo que o comprometimento médio para pagamento mensal é de 24% da renda; no mês de agosto, 6,2% dos devedores, pessoas físicas, foram considerados inadimplentes – não saldaram os débitos dois meses seguidos. O estímulo ao consumo sem aumento efetivo da renda pode provocar a explosão da inadimplência.

Democratização

Por iniciativa do professor Ayoub Hanna Ayoub e de alunos do Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina, foi inaugurado oficialmente, no dia 21 de outubro, o Observatório de Mídia da UEL, que vai fazer o acompanhamento sistemático e crítico dos jornais, revistas e das emissoras de rádio e de TV na região norte do Paraná. É mais um passo na luta pela democratização da comunicação.

Valores globais

Estudo realizado pelo Centro de Pesquisas do Varejo, em 40 países, constatou que o Brasil é o segundo país em volume de prejuízos causados por furto em lojas. Em primeiro, ficou a Índia. Aqui, o estudo analisou 37 redes varejistas de vários setores e 29.132 lojas espalhadas pelo país. Do total de prejuízos, 32,8% foram atribuídos a furtos por clientes e 43,4% a furtos por funcionários. O Brasil foi o único país a registrar aumento nos prejuízos de 2009 para 2010.

Morte anunciada

O índio pataxó José de Jesus Silva, de 37 anos, foi assassinado no sábado, dia 23 de outubro, no município de Pau Brasil no sul da Bahia. Ele foi baleado nas costas, no caminho de uma das fazendas ocupadas pelos índios, em terras que a Funai reconhece como território indígena. Os pataxó acusam os fazendeiros da região pelo assassinato, já que eles querem se apropriar das terras indígenas. A Funai continua lenta!


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brasil Vladimir Platonow/ABr

Com o lixo no limite ADMINISTRAÇÃO O descaso levou os aterros das capitais brasileiras chegarem ao seu limite. Em Curitiba, gestão de Beto Richa (PSDB) aprofundou o problema Pedro Carrano, de Curitiba (PR) A ADMINISTRAÇÃO municipal de Curitiba conseguiu desarmar a sua principal bomba-relógio. Pelo menos por enquanto: isso porque o aterro sanitário do bairro da Caximba, periferia de Curitiba, que recebe o lixo da capital e de outras 16 cidades do entorno, está há dez anos no limite, com a sua capacidade esgotada, o que leva a protestos da população local. A Justiça havia fixado o mês de novembro como o limite para que o consórcio capitaneado pela Prefeitura encontrasse um novo local. O jogo foi levado até os quarenta e cinco. A gestão de Beto Richa (PSDB), recém-eleito governador do Paraná no primeiro turno, durante anos propagandeou um novo modelo de usina, chamado Sistema Integrado de Processamento e Aproveitamento de Resíduos (Sipar), uma unidade industrial para processar os mesmos resíduos sólidos que hoje vão para Caximba. A prefeitura defende que o Sipar evitaria a poluição do solo e de recursos hídricos, como acontece no modelo de aterro sanitário. Porém, a justiça do Paraná, ao ver irregularidades na concorrência bilionária do Sipar, anulou a licitação no dia 9 de fevereiro de 2010. O resultado foi este longo impasse. Em cima da hora, dois terrenos que servirão para abrigar o lixo, até então proibidos, foram liberados na Grande Curitiba. O atual território do aterro está localizado na bacia hidrográfica do rio Iguaçu. Mas as alternativas não destoam muito do cenário atual: o aterro segue centralizado em região de recursos hídricos. Apesar da resistência de entidades, leis locais que proibiam a instalação do novo modelo de usina foram derrubadas. Agora o Instituto Ambiental do Paraná (IAP) emitiu licença para duas áreas na região metropolitana de Curitiba. Uma provisória e outra emergencial, ambas localizadas no mesmo bioma do Iguaçu. Em Mandirituba, o grupo Cavo (pertencente à mega-construtora Camargo Corrêa) teve liberado um terreno. Já o município de Fazenda Rio Grande terá um aterro para receber o lixo de modo provisório, localizado há um quilômetro do rio Iguaçu, gerenciado pelo grupo empresarial Estre.

A distância entre a creche comunitária do bairro da Caximba e o pé do aterro sanitário da Prefeitura é de apenas 130 metros O problema do lixo é um drama vivido por outras capitais brasileiras, onde os aterros estão saturados, embora não sejam preocupação programática das campanhas eleitorais. A transferência para um novo local encontra obstáculos, devido a fatores jurídicos, sociais e ambientais. “Implantar um aterro novo é difícil, caro, demanda

Apesar de saturados em várias cidades brasileiras, os aterros não figuraram entre os temas das campanhas

O problema do lixo é um drama vivido por outras capitais brasileiras, onde os aterros estão saturados, embora não sejam preocupação programática das campanhas eleitorais uma área grande, com lençol freático profundo para evitar uma possível contaminação por chorume. Exige ventos favoráveis e sistema viários”, reflete o jornalista Washington Novaes em entrevista realizada para o Sindicato dos Engenheiros do Paraná (Senge-PR). As marcas deixadas pela vida e sobrevida de um aterro sanitário são profundas. Na Caximba, calcula-se que serão 28 anos de acompanhamento dos impactos.

Problemas estendem-se da saúde dos moradores até o incômodo odor permanente no ar. A camada impermeabilizante não impede que uma quantidade do chorume escorra para afluentes do rio Iguaçu. O rio apresenta alto índice de toxidade. A distância entre a creche comunitária do bairro da Caximba e o pé do aterro sanitário da Prefeitura é de apenas 130 metros. O acúmulo de gás metano, no seu interior, sem a vazão adequada, é prenún-

cio de um acidente. De acordo com moradores, as chaminés de queima e liberação do gás já não eram vistas acesas, o que gerava um acúmulo perigoso de materiais tóxicos. Lixo e interesses

Liderado por Beto Richa, quando prefeito da capital, o Consórcio Intermunicipal para Gestão de Resíduos Sólidos Urbanos (Conresol) formatou a proposta e promoveu a licitação do modelo de usina do Sipar. Cinco grupos consorciados, envolvendo 15 empresas privadas, entraram na disputa bilionária. O Tribunal de Contas invalidou a licitação do novo modelo de aterro sanitário, devido a questões como a não definição de um local para a implantação do novo modelo e o preço do Imposto Sobre Serviços (ISS).

“Colocaram a carroça na frente dos bois. Emitiram um único EIA-Rima para três áreas diferentes, em Mandirituba, Fazenda Rio Grande e Curitiba. Para que ocorra qualquer processo de licitação, eu defino uma área; a partir disto, todo um planejamento de logística. A própria Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) moveu uma ação contra o processo de licitação. Definiram a licitação e não tinham área definida”, denuncia Ionara Marcondes, da ONG Ação Ambiental, das cidades de Mandirituba e Fazenda Rio Grande. Mais que isso: o menor preço ofertado na licitação não havia vencido. O vencedor foi, à época, o consorcio Recipar – Soluções ambientais, formado por quatro empresas. Na outra ponta, o

Consórcio Paraná Ambiental havia sido desclassificado pelo baixo valor do serviço. Entre os seus integrantes, estava o grupo J. Malucelli – que também participa da construção do mega-projeto de Belo Monte no rio Xingu. A gama de entidades, veículos de mídia, grupos e políticos envolvidos no debate pelo destino do aterro, pode ter raiz na disputa entre os grupos econômicos na licitação. O modelo de consórcios intermunicipais é uma característica da gestão de resíduos sólidos no Brasil. Nas metrópoles com grande densidade demográfica, quando o aterro é centralizado na capital, acaba recebendo resíduos de toda região. Brasília, por exemplo, recebe o lixo de até 13 cidades do entorno. Curitiba, o de 16. As críticas ao modelo do Sipar e às alternativas apresentadas até então pela Prefeitura de Curitiba se devem ao modelo privado de lucro sobre tonelada de lixo coletado. Em meio ao embargo destes grupos, o outro grupo de interesse contemplado com a medida é a Estre, que já possui área livre disponível na cidade vizinha de Fazenda Rio Grande para receber as 2.400 toneladas diárias de Curitiba e sua região metropolitana. Na corrida por fora, a Estre não participou do leilão da nova usina e já construía o seu empreendimento. Os movimentos sociais e entidades questionam a velocidade com que o Instituto Ambiental do Paraná (IAP), órgão do governo do Estado, forneceu a licença para a Estre na Fazenda Rio Grande. “São Áreas de Preservação Ambiental (APA), ao redor de nascentes, 80% nestas condições, várzeas, águas e córregos. A região está totalmente dentro da água”, compara Ionara Marcondes, da Ação Ambiental. No primeiro semestre, uma ocupação realizada pelo movimento popular da cidade, na luta por moradia e contra o aterro, teve seu acampamento queimado por capangas. A empresa Estre negou o envolvimento com o acontecimento.

Comunidades urbanas são vítimas da instalação de aterros Hoje as metrópoles com mais de um milhão de habitantes estão no centro do problema Pedro Carrano

de Curitiba (PR) Enchentes, no Rio de Janeiro, incidem em antigas áreas de aterro sanitário. Na Zona Leste e ABC de São Paulo, milhões de toneladas de lixo desabaram no aterro São João Batista em 2007. O montante possuía a altura de um edifício de 40 andares, com 500 mil metros quadrados de diâmetro. Com o desabamento, uma nuvem de poluição pairou sobre a região. A falta de um projeto para o setor de resíduos sólidos é evidente no Brasil, onde as populações das periferias das cidades acabam deparando-se com o problema no seu dia-a-dia. Os aterros sanitários das capitais do país estão com capacidade esgotada. Novas áreas demandam infraestrutura, além de gerarem grande desgaste político com os moradores e com o bioma e mananciais. As metrópoles com mais de um milhão de habitantes estão no centro do problema; no entanto, cidades menores também já sofrem. Em sua coluna, o jornalista e especialista na questão ambiental, Washington Novaes, já destacou que uma entre três cidades do interior de São Paulo, com mais de 100 mil habitantes, está com o aterro esgotado; 20% dos aterros paulistas (42 lixões) são irregulares; e que, segundo levantamento do IBGE (2002), mais de 50%

definida como hospedeira do modelo de aterro da prefeitura. A Cavo, pertencente ao grupo “transnacional-brasileiro” Camargo Corrêa, possui um terreno na cidade. A câmara de vereadores e prefeitura local não tiveram êxito na primeira tentativa de aprovação do aterro, devido à Lei Municipal que não permitia a implantação no município.

Em 2000, somente 2,8% das cidades tinham programas de reciclagem, de acordo com o IBGE Moradores das periferias das cidades já convivem com o problema

das 230 mil toneladas de resíduos domiciliares e comerciais, recolhidas a cada dia no país, vão para lixões a céu aberto. Em 2000, somente 2,8% das cidades tinham programas de reciclagem, de acordo com o IBGE. Dados de 2002 apontaram um cenário desolador: 59% dos municípios destinavam seus resíduos para lixões, 17% para aterros controlados e somente 13% para aterros sanitários. Os números evoluíram, mas dentro de um

quadro que continua preocupante, uma vez que a pesquisa atinge dez anos e aumenta a velocidade da produção voltada para o descarte das mercadorias. É a chamada “obsolescência programada” dos produtos presente na indústria. O que acentua o acúmulo de lixo, desperdício de energia e recursos que poderiam ser melhor aproveitados. Interesses atropelados

No Paraná, a bucólica cidade de Mandirituba foi

Uma consulta popular foi organizada. As principais críticas ao aterro são os impactos causados pelo empreendimento, incompatível com a região industrial de Mandirituba. A área não está disponível para atividade de altíssimo impacto, como é o caso da gestão de resíduos sólidos. O uso e ocupação estão destinados a indústrias de pequeno impacto ambiental. O empreendimento torna certo o deslocamento de colonos e agricultores locais.

De acordo com Ionara Marcondes, da ONG Ação Ambiental, “90% da população de Mandirituba é contrária à implantação do aterro. Ao mesmo tempo, ela quer dar a solução para os resíduos. Alcançaríamos um menor volume de lixo se a coleta realmente fosse seletiva, com unidade entre o orgânico, que se composta, e o reciclável, que pode ser vendido. Mas não se pode coletar misturado”, propõe. O modelo apontado como alternativo tem um experimento na cidade de Bituruna (PR), com o experimento de pequenas unidades de reciclagem, para cerca de 50 mil moradores, gerenciada pelos trabalhadores carrinheiros, que teriam, na unidade, contrato formal de trabalho. Em Bituruna, a usina municipal contrata 21 funcionários com salário fixo, com três refeições diárias. São ex-carrinheiros que passam a trabalhar ali. A coleta é feita na cidade de maneira seletiva, com um caminhão da cooperativa. “Eles têm carteira assinada, plano de saúde e salário de R$ 800”, confirma Ionara Marcondes, da ONG Ação Ambiental. Em contraposição, as críticas ao modelo apontam o não aproveitamento da totalidade dos carrinheiros de uma região. Os debates, no Paraná, têm sido intensos desde 2009 na imprensa, em audiências públicas e atividades puxadas pelo Ministério Público. (PC)


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cultura

Rodolfo Walsh e o

jornalismo militante

LITERATURA Operação Massacre, recém-lançado em português, é também a história da transformação do seu autor

“NÃO ME deixem sozinho, filhos da puta”. Através da persiana do seu quarto, o jornalista ouvia a súplica do soldado agonizante. Dessa vez, a violência se apresentava bem em frente de sua casa, transformada em trincheira dos confrontos. Quem mandou morar em frente a um quartel? Um golpe de Estado surpreendeu Rodolfo Walsh, naquela noite de 9 de junho de 1956, enquanto ele jogava xadrez. O levante pretendia restaurar o governo legalmente eleito do general Juan Domingo Perón, derrubado no ano anterior. Na manhã seguinte, a ditadura militar derrota os rebeldes e fuzila seus líderes. O jornalista, 30 anos, tradutor e autor de novelas policiais, inveterado jogador de xadrez, casado, duas filhas pequenas, procurou esquecer o acontecido e continuar sua pacata vidinha. “Perón não me interessa, a revolução não me interessa. Posso voltar ao jogo de xadrez? Posso. Ao xadrez e à literatura fantástica que leio; aos contos policiais que escrevo; ao romance ‘sério’ que planejo para daqui a uns anos, e mais algumas outras coisas que faço para ganhar a vida e que chamo jornalismo, embora não seja”.

Uns meses depois, um amigo lhe desliza uma informação: “Tem um fuzilado que vive” Nariz na porta Uns meses depois, um amigo lhe desliza uma informação: “Tem um fuzilado que vive”. Naquela noite de 9 para dez de junho, um par de horas antes da decretação da lei marcial, a polícia provincial levou treze homens para um lixão e os fuzilou. O jornalista decide investigar. Os seus motivos? “Não sei o que me atrai em toda essa história difusa, distante, cheia de improbabilidades”. Quer dar um furo jornalístico, depois lembrará. Ou talvez recorde a voz do soldado morto, naquela noite, sem que tivesse feito nada para ajudá-lo. Ou porque sente vergonha, como depois confessará, ao se encontrar com Livraga, “o fuzilado que vive”, quando este desabotoa a camisa para mostrar a marca da bala. O fato é que se apressa a escrever, temendo que alguém saia na frente dele. Mas, depois, percorre os jornais de circulação nacional e dá com o nariz na porta. Termina publicando numa folha sindical que ficava pendurada nos quiosques. Os fuzilados daquela noite não tinham qualquer relação com o levante. Tornaram-se suspeitos de rebelião apenas por serem trabalhadores (e peronistas). Mas aquele putsch pegou quase de surpresa a todos. Quem mais sabia dele era o próprio governo. Dois oficiais legalistas do Exército e alguns civis reuniram uma espécie de “armada Brancaleone”. Os sindicatos tinham sido arrancados das mãos dos trabalhadores, e estes estavam completamente desorganizados. Os treze fuzilados de 9 de junho, longe dos acontecimentos políticos, estavam reunidos na casa de um vizi-

nho, num subúrbio de Buenos Aires, apenas para ouvir a transmissão radiofônica de uma luta de box.

rede popular de informação, investigou outro crime, a morte de um sindicalista pelego, que revelava toda uma trama que associava dirigentes sindicais, empresários e o aparelho repressivo do Estado. Essa investigação e sua divulgação contribuíram para a formação de uma corrente socialista no movimento sindical. Na central dos trabalhadores, redigiu, em 1973, o Programa da CGT: fundamentais para derrubar a ditadura e erigir um governo popular. Nesse contexto, entrou para a organização Montoneros, onde se ocupou do setor de comunicação, de inteligência e contrainteligência. Na noite de 24 de março de 1977, um ano exato depois do golpe de Estado e uns poucos meses depois da morte da sua filha mais velha, também jornalista e militante, num enfrentamento com as Forças Armadas, Walsh escreveu uma carta e um conto. Ele já vinha questionando a crescente orientação militarista e o abandono do trabalho de base pela direção dos Montoneros. Começou a produzir cartas que assinava pessoalmente e colocava nas caixas de correio. Já não podia falar em nome de um coletivo, falava em nome próprio e assumia o risco. No conto que escreveu naquela noite, Juan se iba por el río, um gaúcho atravessava o rio da Prata a cavalo durante uma maré baixa excepcional. O relato acaba com Juan no meio do leito e a maré subindo.

Reprodução

Silvia Adoue

Aproximou-se das testemunhas, visitou suas casas, viu de perto a vida que os trabalhadores peronistas levavam Repercussão O governo reconhece os fuzilamentos dos líderes, que ocorreram após a promulgação da lei marcial, mas nada diz do outro massacre: o do lixão. A folha sindical começa a circular com as poucas informações reunidas. Timidamente, outras testemunhas vão se aproximando. A grande imprensa é obrigada a se pronunciar. E o governo, através dela. O fuzilamento foi ilegal. Estava fora, inclusive, da própria legalidade do governo militar, pois o massacre aconteceu antes da decretação da lei marcial. O jornalista é ameaçado. Abandonando sua vida pacata, esconde-se num subúrbio, consegue um documento falso e passa a andar com uma arma de pequeno calibre. À primeira matéria, soma-se outra e mais outra. Cada nova folha sindical é esperada nos quiosques, como um novo capítulo da novela, pelos trabalhadores que, naquela noite, também tinham ouvido a transmissão da luta de box e, agora, pensam que aquilo que aconteceu com os treze bem podia ter acontecido também com eles. A “novela” vai crescendo. Em março de 1957, um editor se atreve a publicar a reportagem de investigação, num livro que o jornalista e escritor Rodolfo Walsh chama de Operação Massacre. O texto é, ao mesmo tempo, uma descrição dos acontecimentos, um diário de investigação, uma peça de acusação do crime de Estado e o relato da conversão do jornalista. Walsh disse: “Operação Massacre mudou minha vida. Escrevendo-a, compreendi que, além das minhas perplexidades íntimas, existia um ameaçante mundo exterior”. Ritmo vertiginoso Na primeira parte – “Os personagens” –, um retrato de cada um dos treze fuzilados, alonga-se no seu cotidiano de trabalhadores suburbanos, na jornada de 9 de junho, até o momento em que se reúnem, na noite, em torno do aparelho de rádio. Quando chega à segunda parte – “Fatos” –, o texto passa a ter um ritmo vertiginoso, com frases curtas e em tempo presente. A escrita é “ofegante”. O ponto de vista é aquele dos fuzilados. Na hora do massacre, um subtítulo anuncia: “Tempo se detém”. A experiência é vivida como uma alucinação, perde-se a noção do tempo, que é, justamente, a prova do crime de Estado. A terceira parte – “Evidências” – é o relato da batalha das versões. O crime de Estado é duplo: assassina e oculta o assassinato. A tarefa do jornalista-detetive é construir a história com os relatos fragmentados dos sobreviventes e das testemunhas, desmontando as sucessivas versões oficiais. Rodolfo Walsh havia comemorado o golpe que derrubou Perón e, como a maioria dos

A partir do alto, Perón, Walsh e Videla

intelectuais da época, detestava os peronistas. Havia escrito dois artigos a favor da ditadura militar. Mas ouviu o soldado que não morreu gritando, como ele esperava, “Viva a pátria!”. Morreu defendendo, obrigado, as posições do governo. Alguma coisa não encaixava, e o jornalista queria entender. Aproximou-se das testemunhas, visitou suas casas, viu de perto a vida que os trabalhadores peronistas levavam. Não eram “heróis” de cinema. Como o próprio Walsh, eram homens e mulheres que se atreviam a denunciar a ditadura. Operação Massacre, a investigação e a escrita, é também a história da transformação do seu autor. Militância Walsh tornou-se um jornalista e escritor militan-

te. Abandonou o gênero policial para se dedicar à investigação de crimes de Estado, como o assassinato de um advogado, ponta visível de uma guerra interna das Forças Armadas pelo controle dos grandes jornais. Mas nunca abandonou a literatura ficcional. Continuou escrevendo, mesmo não publicando. Para ele, a literatura ficcional era um espaço de experimentação e reflexão, um método de conhecimento. Os seus achados formais migraram da ficção para o jornalismo e vice-versa, na procura para encontrar o tom justo, o ritmo necessário, a palavra mais adequada para dar conta da realidade, para provocar um efeito de leitura. A literatura é, dizia ele, “um avanço laborioso através da própria estupidez”.

A convite de Jorge Ricardo Masetti, um dos homens de confiança de Ernesto Guevara, Walsh foi a Cuba para se integrar à recém-fundada agência de notícias Prensa Latina. Sem querer, num plantão da agência, descobriu uma mensagem cifrada, que chegou por engano, para a máquina de telex. Com a ajuda de um pequeno manual, conseguiu decifrá-la: continha informações sobre a invasão à Baía dos Porcos. De alguma maneira, continuou fazendo tarefas de inteligência e contrainteligência. Comunicação popular Voltou para Argentina, onde dirigiu o semanário CGT, da central combativa dos trabalhadores, com correspondentes em todos os locais de trabalho. Já à frente de uma

Para ele, a literatura ficcional era um espaço de experimentação e reflexão, um método de conhecimento Profecia A carta era um balanço do primeiro ano do governo militar. Não coincidia com a avaliação de Montoneros. Walsh via a repressão como parte de uma estratégia para desmontar a economia nacional e submeter as forças produtivas aos interesses imperialistas. Era um diagnóstico precoce do que aconteceria ao longo dos anos seguintes. Termina o texto “sem a esperança de ser escutado, com a certeza de ser perseguido”. No dia seguinte, foi emboscado na rua. Respondeu com uma arma de pequeno calibre, que mais servia para evitar que o aprisionassem vivo. Seu corpo e os seus escritos inéditos desapareceram. As cartas pessoais procuravam recuperar aquilo que ele tinha experimentado com Operação Massacre: queria se dirigir não aos heróis de cinemas, mas aos homens e às mulheres comuns que ousassem um gesto de liberdade. Operação Massacre acaba de ser publicada em português. A sua leitura é uma oportunidade para que nos apropriemos dos procedimentos de investigação de Walsh e da sua escrita de alta eficiência literária e militante. Silvia Adoue é argentina radicada no Brasil, mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo, doutora em literatura latinoamericana pela FFLCH-USP e professora da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF).


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américa latina

“Todos os quadros de inteligência trabalhavam para a CIA” Santiago Armas/Presidencia de la República del Ecuador

EQUADOR Em entrevista, o presidente Rafael Correa conta, em detalhes, como foi a tentativa de golpe levada a cabo em 30 de setembro Blanche Petrich de Quito (Equador) O PRESIDENTE Rafael Correa chega com um pouco de atraso a seu escritório no Palácio de Carondelet, onde havia marcado com o La Jornada, porque tinha ido visitar, num hospital infantil, um menino de 11 anos que, no dia 30 de setembro, entre o caos e a violência desatada, recebeu um disparo de bala expansiva na perna. O menino sofreu duas paradas cardíacas, mas, finalmente, quase um mês depois dos acontecimentos, se restabelece satisfatoriamente. Durante a entrevista, Correa se expressa, algumas vezes, com uma franqueza pouco comum em chefes de Estado: “estamos cegos, zerados em matéria de inteligência para a segurança interna”. Mostra-se indignado com os setores que participaram da conspiração, incluído as organizações indígenas que, diz ele, agora fazem política em aliança com a oposição de direita. É cauteloso antes de avalizar a lealdade das Forças Armadas a seu governo: “se portaram profissionalmente. Não todos, mas em geral. Lá também há infiltração”. Leia, a seguir, a entrevista: Depois do golpe contra Manuel Zelaya, em Honduras, o senhor declarou: “eu sou o próximo”. Quais sinais o senhor via na ocasião? Rafael Correa – Desde o primeiro dia de meu governo, vivemos uma conspiração permanente, como todos os governos da mudança na América Latina. Que casualidade que fomos nós – Venezuela, em 2002; Bolívia, em 2008; Honduras, em 2009; e Equador, em 2010 – que sofremos tentativas de golpe. A possibilidade de que isso seja casualidade é nula. Por quê? Porque estamos mudando as coisas.

“Desde o primeiro dia de meu governo, vivemos uma conspiração permanente, como todos os governos da mudança na América Latina” Surpreende a forma com que o senhor reconhece que as estruturas de inteligência foram penetradas pela CIA. É que isso é verdade. Quando cheguei ao governo, sinceramente, por minha origem acadêmica, esse tema não era sequer prioridade. Foi meu grande erro. O que me devolveu à realidade? O dia 1° de março de 2008, quando tivemos evidências de que as instâncias de segurança do Estado equatoriano tomaram conhecimento, com antecipação, do ataque colombiano a Angostura e não nos informaram. Avisaram a Embaixada dos Estados Unidos. Então, nos demos conta de que essas unidades recebiam recursos dos EUA. Formou-se uma comissão, que passou a investigar, e, entre suas recomendações, está o desmantelamento destas instâncias. Temos evidências de que seu chefe, o coronel Mario Pazmiño, era

funcionário da CIA. Quando o despedi, e decidimos que iríamos nomear a diretoria da unidade, a Embaixada dos EUA decidiu levar embora os equipamentos que havia doado. Mas os diretores não lhes deram apenas os equipamentos, suas caminhonetes, seus computadores, mas, também, a informação dos computadores! Veja que servilismo dessa gente. Qual o tamanho do estrago que foi feito na segurança interna? Ficamos zerados. Todos os quadros de inteligência trabalhavam para a CIA. Tivemos que buscar quadros alternativos, algo que não se forma da noite para o dia. Em 2009, conseguimos aprovar a lei do sistema nacional de inteligência. Essa debilidade foi o que se manifestou no dia 30 de setembro? Claro. Houve traição de certos setores de inteligência da polícia. E das Forças Armadas? Também. O Partido Sociedad Patriótica esteve envolvido. Sua origem é militar. Há núcleos duros que, segundo consta no informe da Comissão da Verdade, atentaram contra os direitos humanos e se sentem identificados com esses partidos. Você confia na lealdade das Forças Armadas? Bem, eles se portaram profissionalmente. Não todos. Em geral, eles têm uma gratidão por este governo, já que duplicamos seus salários e os equipamos. Quando chegamos, os encontramos em um estado de impotência. Apenas sete mil policiais, de 42 mil, tinham armas. Compramos patrulhas, munições, equipamentos de telecomunicações. O mesmo aconteceu na Força Aérea. No princípio, não tínhamos praticamente nada, nem helicópteros. Agora, já temos 14 Super Tucanos. Mas há grupos duros, com vinculação política, que não se interessam nem pela Força Aérea, nem pela democracia, e sim por manter seus privilégios e condutas repressivas. Quais os mecanismos que a cidadania possui para se defender de conspirações desse tipo? Nisso, Hugo Chávez e Evo Morales levam vantagem sobre nós. Chávez tem uma formação militar, conhece isso e transformou o imenso capital político que tem em estruturas organizadas. Evo vem dos movimentos sociais, de uma longa luta, tem o apoio de todas essas bases. No Equador, o projeto da Alianza País [partido governista] é uma reação da cidadania diante de tanto desastre e saques. E, sinceramente, não sou especialista em questões militares ou policiais. O desafio da revolução cidadã é transformar o apoio popular que temos em estruturas mobilizadas como a melhor maneira de dissuadir essas tentativas. O senhor vem da academia, mas pela mão de um movimento popular. O Equador, nos anos de 1990, foi pioneiro na participação do movimento indígena. Essa já não é a base de seu governo? Temos o apoio de muitos movimentos sociais, mas cuidado: tem-se usado muito o nome de movimento social. Agora, qualquer coisa é mo-

O presidente Rafael Correa concede entrevista no Palácio de Carondelet, sede do governo equatoriano

“Há grupos duros, com vinculação política, que não se interessam nem pela Força Aérea, nem pela democracia, e sim por manter seus privilégios e condutas repressivas” vimento social, quando muitos de seus dirigentes são, na verdade, políticos fracassados que perderam as eleições e fazem política a partir de suas estruturas, para impor sua agenda. Há um movimento social e indígena que está com o status quo, com a direita. Deve-se separar o joio do trigo. A senhora tem razão quando diz que o despertar do movimento indígena do Equador, nos anos 1990, foi o movimento social mais importante da América Latina. E nós estamos com eles. Mas essa pureza inicial tem sido muito distorcida. Esse movimento fez um partido político, o Pachakutik. Sua diretoria está tomada por certos líderes que votam com a direita; e, no dia 30 de setembro, pediam a renúncia do presidente. É uma pena enorme. A Conaie e o Pachakutik perderam totalmente o norte. O primeiro pronunciamento do Conaie foi de rechaço ao golpe. Depois se retrataram. Os assembleístas do Pachakutik estiveram e estão com os golpistas. Há alguns dias, Lourdes Tibán [uma das assembleístas do movimento] usou expressões muito grosseiras. Disse que se o presidente tivesse morrido, não seria por ser corajoso, e sim por ser imbecil. Seu irmão, por acaso, é policial e está preso. O senhor descarta um reencontro com esses setores? Não. Estou aberto a isso. Mas atenção: movimento indígena como processo histórico de emancipação, nisso estamos totalmente de acordo. Nosso governo é dos indígenas. Nas eleições passadas,

nossa maior votação foi na província de Embaburo, que tem a maior população indígena do país. Com os dirigentes da Conaie, com sua miopia, com as barbaridades que disseram – me chamaram de genocida, xenófobo, etnocida –, com eles, vai ser muito difícil. O senhor fala da penetração da CIA, mas não do governo estadunidense. Qual foi seu papel neste episódio? Como governo, eu acredito que os EUA, desta vez, não intervieram. Não excluímos a participação de certos setores que atuam, inclusive, contra o presidente Barack Obama. Não tenho nenhuma prova, mas não excluo a possibilidade de que interviram de algum modo. Quem eu excluo, pela confiança que tenho neles, é Hillary Clinton e o presidente Obama. Então sua relação com Obama é de confiança? Ele me ligou duas vezes depois do dia 30 de setembro. Muito cortês, preocupado pelo que se dizia em certas publicações. Assegurou-me que não teve nada a ver. Respondi que ele não tinha que me dar explicações. É uma boa pessoa, mas não conseguiu mudar a inércia de grande parte do aparato político dos EUA. A versão de que, no dia 30 de setembro, não houve uma tentativa de golpe encontrou muito eco. O que se pretende com a negação das evidências? A ignorância da direita e de certos meios de comunicação é tal, que nem sequer conhecem que uma das categorias básicas de sociologia política latino-americano diz que

qualquer levante de força pública já é considerado um golpe de Estado. O que houve foi uma agenda política posta em marcha, desde o momento em que eu cheguei ao Regimento Quito, e cercaram a caravana presidencial. Lá estava o lugar-tenente do coronel Lucio Gutiérrez [ex-presidente golpista e derrocado ao mesmo tempo, fundador do partido opositor Sociedad Patriótica], Fidel Araujo, com colete à prova de balas, dirigindo a operação [Araujo foi detido sem direito a fiança no dia 5 de outubro]. Em suas declarações, ele disse que estava lá porque havia ido visitar sua mamãezinha, que estava perto. Por que esta estratégia? Porque tentam nos desacreditar. Negam a tentativa de assassinato e que estive sequestrado. Aí estão as provas, os mortos, os registros das telecomunicações das rádio-patrulhas com a ordem “matem o Correa”. Em um protesto policial por melhorias salariais, você tenta tomar as antenas de televisão, a televisão oficial, você fecha o aeroporto? Acho que, com essas mentiras, estão caindo no ridículo. Enfim. Estes dias, a propósito do plano B, o do magnicídio, há quem tenha lembrado o livro La hoguera bárbara, sobre o brutal assassinato, há um século, de Eloy Alfaro. Não vou me comparar a Eloy Alfaro, o único que fez uma verdadeira revolução neste país e que, para nós, é uma inspiração. Mas isso que aconteceu no dia 30 de setembro teve, sim, muito de bárbaro. Vim de uma visita a um menino que, a três quarteirões daqui, foi ferido neste dia. Esses desalmados deram 17 tiros numa ambulância, feriram o motorista e o assistente; e, nisso, uma bala atravessou a perna do menor. O que passou pela sua cabeça? Achou realmente que poderia morrer?

Sim, claro. Não em um, mas em vários momentos. Agora sei que, quando me levavam ao hospital, entre os gases e os sublevados que me batiam, o diretor do Hospital da Polícia [César Carrión] mandou pôr cadeados para que não pudéssemos entrar. Minha equipe de segurança teve que rastrear a área, foi por outro lado, tirou os cadeados e abriram as portas. Depois, o diretor declarou à CNN que eu não estava sequestrado, mas que havia sido perfeitamente atendido. A verdade é que quando nos levaram para a sala de emergência, não nos deixaram sair. Tivemos que nos refugiar no terceiro andar, com a pouca segurança que havia naquele momento, e fechar a porta. Quiseram-na derrubar. Estivemos o tempo todo encurralados, até que chegou uma unidade de elite para nos dar resguardo. Houve três ou quatro momentos em que senti a morte muito próxima. Um deles foi quando esses selvagens batiam na porta do terceiro andar, para nos buscar. Não vinham dar um oi, não é? E, depois... [Correa se detém por alguns segundos, dá um grande suspiro. É notório que está revivendo momentos de grande intensidade. Repõe-se instantaneamente e continua] Depois veio meu segurança e diz que havia interceptado comunicações com a ordem de me matar, que já estavam vindo, que franco-atiradores estavam subindo. Ouvia-se o tiroteio. A única coisa que fiz foi rezar um pai-nosso e deitar no chão do cômodo onde estava. Outro momento foi durante o resgate. Balas por todos os lados. Chegaram a resgatar-me em uma cadeira de rodas... tenho 25 pontos no joelho da última operação. Não se podia sair pela porta principal. Tiveram que me esconder por uns dez minutos em um quartinho de limpeza, escuro. Deram a ordem de sair por trás, e lá também atiraram em nós. Sentíamos a morte muito próxima, mas houve muita serenidade. Desculpe a pergunta, mas, o que sentiu? Mais que medo, uma indignação enorme com a traição. E tristeza. Se eu morresse, deixaria este processo na metade, deixaria minha família, meus filhos. Houve cinco mortes e dezenas de feridos do meu lado. É um verdadeiro milagre que eu esteja vivo, porque... como atiraram em nós! Politicamente, como o senhor se sente agora? Quais são as perspectivas de seu projeto? Dizem que, no dia 30 de setembro, houve uma vitória, porque aumentou nosso índice de popularidade. Mas eu me sinto um perdedor. Renunciaria a esses pontos de popularidade se pudesse fazer voltar à vida esses jovens que morreram nesse dia infeliz. Um dos homens de minha escolta está em um hospital nos EUA. Deus queira que não fique paraplégico. Todos perdemos. É hora de mudar, de frear a revolução, ou, pelo contrário, de radicalizar algumas medidas? Claro que radicalizar. Mudar o que, se temos mais apoio do que nunca? Não podemos claudicar diante de balas assassinas. Seria trair os que morreram nesse dia, essa cidadania heroica que saiu desarmada a defender a democracia. Reconciliar com criminosos é impossível, isso seria permitir a impunidade. Vamos continuar. Mais ainda: radicalizaremos a revolução. (La Jornada) Tradução: Igor Ojeda


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américa latina

Estados Unidos querem aumentar presença militar em Honduras Reprodução

MILITARIZAÇÃO Funcionário do Departamento de Estado estadunidense viaja ao país centro-americano para implementar espécie de Plano Colômbia Annie Bird NOS DIAS 22 e 23 de outubro, David T. Johnson, secretário de Estado Adjunto do Escritório de Assuntos Internacionais de Narcóticos e Aplicação da Justiça, visitou Honduras para se reunir com o presidente de fato Pepe Lobo e o ministro da Segurança de fato Óscar Álvarez. Segundo um comunicado da assessoria de imprensa do Departamento de Estado dos EUA, Johnson, Lobo e Álvarez convocarão o Grupo de Trabalho Estados Unidos -Honduras para a implementação da Iniciativa Mérida/ Carsi. Esta iniciativa financia, equipa e treina as forças policiais e militares no México, América Central, República Dominicana e Haiti para o combate ao tráfico de drogas. É extremamente preocupante que os Estados Unidos comecem a promover a formação das primeiras estruturas institucionalizadas para apoiar a iniciativa Mérida/ Carsi na América Central, precisamente em Honduras, onde a escalada da repressão política, o controle das forças de segurança do Estado pelo crime organizado e um aumento dramático do papel dos militares, no governo civil, fizeram com que as organizações de direitos humanos exigissem o fim da ajuda por parte do governo estadunidense para o Exército e a Polícia de Honduras. Foi esse exatamente o pedido feito, ainda na semana passada, por uma delegação de organizações de direitos humanos hondurenhas, em reunião com o Conselho Nacional de Segurança da Casa Branca e membros do Congresso estadunidense.

A Iniciativa Mérida promove uma coordenação interinstitucional e ações conjuntas de segurança nacional, particularmente entre a polícia e militares Iniciativa Mérida

Esse programa foi posto em prática por John Negroponte em 2008, quando ele ocupou o cargo de secretário de Estado Adjunto para o Hemisfério Ocidental. As iniciativas, na América Central, se deram durante uma viagem oficial de Negroponte à Guatemala, Honduras e El Salvador, em junho de 2008. Foi chamada de Carsi, sigla em inglês para Iniciativa Regional de Segurança para América Central; e, ainda, desdobrouse na Iniciativa de Segurança da Bacia do Caribe (CBSI), incluindo a República Dominicana e Haiti. Iniciativa Mérida, portanto, passou a designar apenas a parte do programa que atende o México. Os orçamentos

Ao centro, o estadunidense David Johnson e o presidente hondurenho Porfirio Lobo durante o encontro

Resta apontar que os militares de Honduras, El Salvador e Guatemala têm sido acusados, com muita frequência, de colaborar com o tráfico de drogas aprovados pelo Congresso estadunidense em 2008, 2009 e 2010 destinam um total de 258 milhões de dólares para América Central, 1,3 bilhões para México e 32 milhões para o Caribe. Os fundos destas iniciativas são coordenados pelo Departamento de Estado. O Escritório Internacional de Narcóticos e Aplicação da Justiça administra a maior parte deles, que são destinados para a conta do Controle Internacional de Narcóticos e Aplicação da lei (Incle). O Escritório de Assuntos do Hemisfério Ocidental administra tais fundos no marco do Fundo de Apoio Econômico, e os recursos destinados à conta de Financiamento Militar Estrangeiro são administrados através do Escritório de Assuntos Político-Militares. Entretanto, a implementação das atividades se leva a cabo com outras agências, tais como a Agência para o Desenvolvimento Internacional dos EUA , a Usaid, e o Departamento de Defesa dos EUA. Outras coordenações importantes são levadas a cabo por meio do Departamento de Segurança Nacional, do Departamento de Justiça, de Imigração e Aduanas, e da Agência para as Drogas (DEA), além do FBI, polícia federal estadunidense. A Iniciativa Mérida promove uma coordenação interinstitucional e ações conjuntas de segurança nacional, particularmente entre a polícia e militares. Os países da América Central têm lutado por mais de 20 anos para tirar as Forças Armadas das funções de segurança interna depois dos genocídios e sucessivas violações massivas dos direitos humanos cometidos por militares que agiam em conjunto com os Estados Unidos, principalmente durante a década de 1980. América Central

Os níveis de violência na Guatemala, Honduras e El Salvador têm aumentado nos últimos dez anos, a tal ponto que as estatísticas das Nações Unidas demonstram que os índices de assassinatos, hoje, são mais altos do que, inclusive, os de certos anos de conflito armado interno nas décadas de 1970 e 1980, o que os configura entre os maiores do mundo. O interessante é notar que

o governo sandinista, na década de 1980, desmantelou as forças de segurança corruptas na Nicarágua; e, atualmente, esse país possui uma taxa de homicídios mais baixa que a de Washington, D.C. Tal processo não ocorreu em outros países da América Central. Em El Salvador e Guatemala, foram construídas, em tese, novas forças policiais depois dos processos de paz; entretanto, muitos soldados foram simplesmente transferidos para a polícia civil; e estruturas paralelas, como os esquadrões da morte do Exército, foram imediatamente para dentro das novas forças policiais. Resta apontar que os militares de Honduras, El Salvador e Guatemala têm sido acusados, com muita frequência, de colaborar com o tráfico de drogas. No caso dos de Honduras e El Salvador, houve uma ampla colaboração com as forças dos “Contras” [contrarrevolucionários nicaraguenses que lutavam contra a Revolução Sandinista e recebiam apoio da CIA] e com o operativo ilegal de apoio operado da Casa Branca de Ronald Reagan, coordenado pelo tenente-coronel Oliver North desde a base aérea de Ilopango em El Salvador. Relatórios internos da Agência Central de Inteligência, um informe do Departamento de Justiça e um informe do Congresso, documentam que o cartel de Medellín, na Colômbia, deu dinheiro para os “Contras” em troca de que a CIA e outras autoridades estadunidenses dessem certa cobertura para suas atividades ilícitas. Embaixador dos EUA em Honduras naquele momento, John Negroponte foi um baluarte fundamental de apoio dos “Contras”. A década de 1980 assentou as bases para o crescimento do crime organizado na região e a criação dos mecanismos da impunidade que permitia sua prosperidade, incluindo a estruturação do sistema judicial na Constituição hondurenha vigente, aprovada durante um governo militar em 1982. Também é interessante observar que, na tentativa de golpe recente, no Equador, foi denunciado que as unidades da polícia antinarcóticos, que tomaram o controle dos aeroportos, haviam sido treinadas e manti-

nham estreitas relações com a Embaixada dos Estados Unidos. Funcionários em Honduras

Os embaixadores dos distintos países incluídos na Iniciativa Mérida, Carsi e CBSI, desempenham papel-chave nas suas definições e implementações. O atual embaixador em Honduras é o diplomático de carreira Hugo Llorens. A maioria dos hondurenhos acredita que Llorens teve um papel chave na consolidação do golpe de Estado, in-

cluindo o momento do golpe em si. Em 2002, durante o falido golpe de Estado na Venezuela, Llorens era o Diretor de Assuntos Andinos no Conselho de Segurança Nacional e assessor chave de George W. Bush sobre Colômbia, Venezuela, Bolívia, Peru e Equador. O ministro da Segurança em Honduras, Óscar Álvarez, tem sido acusado de cometer graves violações dos direitos humanos, incluindo massacres, quando era ainda ministro, entre 2002 e 2005, no go-

verno do então presidente Ricardo Maduro. Álvarez participou do primeiro ato oficial de Pepe Lobo como presidente de Honduras: a assinatura de um acordo de cooperação em segurança com o então presidente colombiano Álvaro Uribe. As forças colombianas de segurança, especialmente durante o governo Uribe, cometeram inúmeras violações dos direitos humanos, incluindo sequestros e assassinatos de jovens em bairros da periferia, transportando seus corpos para a selva, vestindo-os como membros da guerrilha e mostrandoos à imprensa para vender a imagem de que o governo estava vencendo o conflito armado interno da Colômbia, uma prática conhecida como os “falsos positivos”. O secretário David Johnson, que esteve em Honduras, foi nomeado para seu cargo atual em 2007, ainda durante a administração Bush. Serviu, também, à administração Clinton na Casa Branca, de 1995 a 1997, como portavoz do Conselho de Segurança Nacional. De 2002 a 2003, sob a administração Bush, durante as primeiras etapas da invasão dos EUA no Afeganistão, a Operação Liberdade Duradoura, o sr. Johnson desempenhou nada mais, nada menos, que a posição de Coordenador dos Estados Unidos para assuntos do Afeganistão. (Rights Action) Annie Bird é codiretora da Rights Action. Tradução: Dafne Melo


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américa latina

O assassinato de Mariano Ferreyra e seu significado político Reprodução

ARGENTINA A criminalidade de burocratas sindicais transformados em empresários ultrapassou, na Argentina, limites que os maiores mafiosos da história universal sequer sonhavam Carlos Abel Suárez UMA MARCHA de aproximadamente 60 mil pessoas pelas ruas de Buenos Aires repudiou, no dia 21 de outubro, o assassinato de Mariano Ferreyra, um jovem militante sindicalista de 23 anos. Outros milhares se manifestaram nas principais cidades da Argentina. Mariano entrou, no dia 20 de outubro, na longa lista de vítimas do terror estatal ou paraestatal que, durante mais de um século – com distintos graus de intensidade e frequência –, pretendeu silenciar o protesto social e o grito dos trabalhadores democraticamente autoorganizados e dos oprimidos. Elsa Rodríguez, uma lutadora social e política de 60 anos, encontra-se, também, entre a vida e a morte, com uma bala alojada no cérebro, consequência do mesmo ataque criminosos que ceifou a vida de Mariano Ferreyra. Tanto o governo quanto a oposição, e todos os meios de comunicação – pró-governo ou antigoverno –, superando milagrosamente diferenças conjunturais, pareceram concordar: Ferreyra havia sido morto como consequência de um enfrentamento entre “gangues sindicais”. Ou seja, reaparece a tese dos dois demônios. Idêntica mensagem se quis passar quando, não muito longe geograficamente de onde ocorreram os fatos de agora – na ponte Pueyrredón, no dia 26 de junho de 2001 –, a polícia fuzilou os jovens Maximiliano Kosteky e Darío Santillán. Precisamente, a participação naquela mobilização da ponte Pueyrredón e o impacto que lhe provocaram aquelas covardes execuções marcaram os primeiros passos de Mariano na luta social e política, segundo conta quem o conheceu.

Vários dirigentes sindicais, nos anos 1970, transformaramse em delatores; primeiro, a serviço do terrorismo da ultradireitista Triple A, depois, sob ordens dos grupos de tarefa da ditadura militar O discurso oficial, o mesmo da oposição, foi, na ocasião, como o de agora: “enfrentamento entre gangues”. E, agora, como daquela vez, não demorou para ser desbaratado o premeditado ideologema dos dois demônios a qual tende confluir as mensagens do poder do governo e as do poder da oposição. Pois a coisa está clara como água: de um lado, estão os que protestam e enfrentam as injustiças estabelecidas, que são muitos; do outro, os estabelecidos, que não são muitos nem se dão muito bem entre eles, mas que, pelo que parece, não perderam o instinto de se unirem quando se trata de calar a gritaria das vítimas e defender a “ordem” como puderem. Uma “ordem” manifestamente propícia aos vitimadores.

Como foram os fatos Existe um inveterado conflito, na linha da ex-ferroviária Roca, com os trabalhadores chamados “terceirizados”. Muitos, por exigir o fim dos contratos infames, foram despedidos; outros persistem em pedir sua incorporação ao trabalho formal. Não era a primeira vez que os “terceirizados” se dispunham, para tornar visíveis suas elementares exigências trabalhistas, a se manifestar nas estações ou montar piquetes nas ruas. Desta vez, quando tentavam fazer um novo protesto, foram repelidos por um grupo de choque da burocracia da União Ferroviária, uma casta corrupta que é dona do sindicato com o beneplácito e o apoio de todos os ministros do Trabalho há décadas. Tanto a polícia da província de Buenos Aires como a federal – com competência nas instalações ferroviárias – foram impávidas testemunhas dos acontecimentos. Quando os terceirizados se retiravam diante dessa investida, apareceram, segundo vários testemunhos, dois atiradores, que, não sem perícia, abriram fogo indiscriminadamente contra os manifestantes desarmados. Três deles foram atingidos: Mariano, na região hepática, Elsa Rodríguez, na cabeça, e outros dois, nas pernas. A burocracia sindical A morte de Mariano, um rapaz particularmente querido por quem o conhecia, um militante empenhado em entender e mudar para melhor o mundo, um aplicado estudante de História com formação de operário metalúrgico – agora, desempregado – e membro do Partido Obrero (de orientação trotskista), volta a colocar no centro do debate público um velho e decisivo problema político de nosso país. A cristalização de excrecências burocráticas na vida sindical ou política não é um fenômeno nem novo nem endêmico da Argentina. Mas o desenvolvimento da burocracia sindical argentina apresenta particularidades muito chamativas que tampouco cabe associar necessariamente, menos ainda, exclusivamente, ao peronismo de Perón. Foi o ditador Juan Carlos Onganía que, em meados dos anos 1960, provocou a primeira distorção, com a Lei de Associações Profissionais, uma disposição legal nascida do acordo com um setor dos velhos dirigentes para frear o ascenso de uma nova geração operária combativa. Tal norma preparou um caldo de cultivo para o nascimento de um novo tipo de burocrata sindical, desconhecido até então: o burocrata sindical convertido em empresário. A legislação e o modelo derivado dela persistem até hoje. Pela via aberta desse modo nos anos 1960, vários dirigentes sindicais, nos anos 1970, transformaram-se em delatores; primeiro, a serviço do terrorismo da ultradireitista Triple A, depois, sob ordens dos grupos de tarefa da ditadura militar. Quando tiveram que fazer declarações, no julgamento contra as juntas militares, não lembravam mais nada. Hoje, só alguns deles estão em atividade. Mas alguma memória deve haver. E é verdade que se deu uma mudança qualitativa em vários dirigentes gremiais durante o governo de Carlos Menem. Ainda existia, na ocasião, uma estrutura clássica que cruzava o caminho do

“Um crime contra a classe trabalhadora”, avisa manchete no jornal do Partido Operário

Quando os terceirizados se retiravam diante dessa investida, apareceram (…) dois atiradores, que (…) abriram fogo indiscriminadamente contra os manifestantes desarmados processo de desmonte do Estado, das contrarreformas neoliberais, das privatizações e desregulações. Não era suficiente contar com as nefastas leis da Reforma do Estado e da Emergência Econômica, essas leis que a maioria de peronistas e radicais aceitaram sem dizer um pio, com a honrosa exceção de um pequeno grupo de resistentes. Embora a hiperinflação houvesse afundado os pobres na miséria, subsistiam ainda forças dispostas a se opor ao choque neoliberal. Para erradicá-la, a chave-mestra foi transformar os chefes dos principais dirigentes dos sindicatos em sócios do desmonte, em cúmplices ativos das privatizações e benefici-

ários diretos das desregulações. Era um negócio que tinha muito o que repartir. Empresários Os burocratas sindicais, até aquele momento, corrompidos, pode-se dizer, por sua atitude passiva, passaram ativamente a ser empreendedores, donos de supostas cooperativas ou pequenas e médias empresas cujo “negócio” consistia em “terceirizar” as tarefas e recontratar, a preço vil, os mesmos trabalhadores que, relativamente bem pagos e melhor formados, haviam sido despedidos das empresas públicas privatizadas ou concedidas. Também havia alguns dólares dessa festa para o setor

privado: joint-ventures com bancos e financeiras, nacionais e transnacionais, negociatas com a previdência social, com as ART (Seguradoras de Risco de Trabalho) e empreendimentos tão variados como dava a entender a fértil imaginação de alguns novos-empresários penetrados pela ambiciosa avidez de uma época sem escrúpulos. Empresas e empresinhas de tal espúria origem podem ser reconhecidas, hoje, nas ferrovias, no transporte em geral, no que restou da YPF, na Yacimientos Carboníferos, na frota petroleira do Estado, no setor telefônicos etc. Enfim, a lista é muito longa, mas todos os trabalhadores dessas empresas sabem quem são os donos e como chegaram a sê-lo. E se, entre tantos casos criminosos, tivéssemos que escolher uma pérola, deve-se dizer que nas ferrovias se encontra uma verdadeira joia. José Pedraza é um dos sócios concessionários do Belgrano Cargas, uma empresa que ajudou a destruir, razão pela qual ele continua recebendo Reprodução

suculentos subsídios: desde os tempos de Menem, e sem nenhuma interrupção. Outro de seus sócios, no controle da União Ferroviária, é o atual subsecretário de Transportes da Nação. Pedraza foi também processado por ilícitos de uma empresa na qual havia posto sua mulher como comandante. Nesse caso, como em outros, foi defendido por um gabinete jurídico do qual é sócio o atual procurador da Nação, Esteban Righi, chefe, por sua vez, de todos os promotores. Quase um costume do hoje funcionário kirchnerista: há algum tempo, ele foi defensor dos burocratas do Smata, acusados de haverem promovido, na época de Isabel Martínez de Perón, o desaparecimento forçado dos trabalhadores que formavam parte da Comissão Interna da Mercedes Benz. A criminalidade destes burocratas sindicais transformados em empresários ultrapassou, na Argentina, limites que os maiores mafiosos da história universal sequer sonhavam. Entre esses burocratas empresários e seus protetores, encontra-se o autor intelectual do assassinato de Mariano Ferreyra. O mundo da terceirização Mas há também outro assunto que essa morte traz à tona. A Argentina, depois de um crescimento econômico espetacular nos últimos anos, padece de uma calamitosa situação social e trabalhista. Ou seja, continua em pé, com alguns retoques mais ou menos cosméticos, a teoria neoliberal do derrame. Longos anos de ditadura e ajuste neoliberal trouxeram consigo a generalização do emprego precário, a pobreza abundante e a fragmentação extrema do mercado de trabalho. Houve alguma recuperação em relação ao momento de maior depressão em 2001. Admite-se que, em vários setores, o nível de 1968, anterior à longa crise nacional, havia se recuperado. Mas, ainda que admitindo os dados oficiais, constata-se que apenas um quarto dos jovens menores de 30 anos tem um emprego formal. E que os trabalhadores informais recebem um terço do salário de um formal. Essa é a origem da reclamação e da luta dos operários “terceirizados” da ex-linha Roca, uma causa justa pela qual morreu Mariano Ferreyra. A tese dos dois demônios A tese das gangues extremistas que se enfrentam sempre foi o primeiro reflexo do governo, deste e dos anteriores. É também a manchete principal dos meios de comunicação. Mas, neste caso, como em outros, tal tese se desmonta rapidamente com fatos tão evidentes como simples. E o esboço de “argumento” fica pulverizado na hora: uma dessas supostas “gangues” põe as balas; a outra se limita a pôr os mortos e os rastros de sangue. Também há o roteiro préestabelecido da suposta neutralidade da polícia ou das forças de segurança. A polícia não tem credibilidade nenhuma para investigar estes casos. Nem sequer quando morre um menino atacado por um “idiota” na porta de uma discoteca. Não é impossível que, em algum momento, as testemunhas superem o medo e resolvam dizer o que sabem diante de promotores e juízes probos. Enquanto isso, o crime contra Mariano Ferreyra ficará impune, sem levarmos em conta o tonto que encontrarem para botar a culpa. (SinPermiso) Carlos Abel Suárez é membro do Comitê de Redação da revista SinPermiso.

Marcha em Buenos Aires em repúdio ao assassinato de Mariano Ferreyra

Tradução: Igor Ojeda


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internacional Reprodução

Que vivam os estudantes Grupo de policiais se agrupam instantes antes de lançar bombas de gás lacrimogênio na direção de manifestantes reunidos em praça da cidade de Lyon na França

FRANÇA A irrupção do movimento jovem nos protestos contra a reforma previdenciária do governo de Sarkozy mudou a relação de forças no tabuleiro político francês Eduardo Febbro de Paris (França) UM CLAMOR jovem, solidário e espontâneo, paira sobre o céu de Paris. O riso e o canto. No coração da multidão que recorre ao Boulevard Arago, respira-se uma atmosfera de paz agitada, de irmandade instantânea, de carisma geracional. Não há violência, nem gestos obscenos, nem agressividade nessas vozes que pedem, em coro, “a aposentaria aos 60 anos”, em uma coalizão quase inédita de estudantes e ferroviários, empregados públicos e privados, professores e alunos do bacharelado, empregados administrativos e estivadores de portos, aposentados e desempregados. As bandeiras da Confederação Geral do Trabalho (CGT) e os balões do Partido Socialista tapam o horizonte. Paris ressuscitou uma forma de ação social que os tenebrosos analistas digitais diziam morta: massiva, constante, empenhada, pacífica e organizada segundo um regime distinto de outros protestos. Jean Michel emerge de um grupo de jovens que tiram sarro de Nicolas Sarkozy com slogans vivazes. “Não queremos que nossos pais morram trabalhando, e nós não queremos nos secar debaixo do sol buscando casa e trabalho”, disse o rapaz de 19 anos. Ao seu redor, os estudantes, em sua maioria secundaristas, gritam: “Os jovens, na palidez, os velhos, na miséria”. Aplausos e olhadas cúmplices. Atrás deles, avança um grupo de ferroviários. São corpulentos, têm as mãos e o rosto marcado pelo trabalho. Quatro deles, com braceletes vermelhos nos braços, observam atentamente os movimentos anormais da multidão. “Estamos aqui para enquadrar os violentos, para explicar que

na democracia não se bate”, diz André, um espalhafatoso membro da CGT. A juventude dança, a classe trabalhadora exulta. A sonhada convergência entre trabalhadores e estudantes se plasmou em duas semanas. Estilo renovado

Mas não responde ao sonho de um socialismo de museu, mas sim a um estilo renovado de se opor às medidas de um governo. A imprensa anglosaxônica descreveu as manifestações, que se instalaram na França no primeiro trimestre do ano, e que se prolongaram até hoje, como uma curiosidade arqueológica. “Acreditavam que, na economia imaterial, já não havia mais trabalhadores, nem mãos curtidas, nem estudantes na miséria, nem responsabilidade coletiva na hora de se defender diretos”, explica Arnauld, um estudante de segundo ano de química. “Somos a parte que os especialistas em estatísticas não levaram em conta”, agrega Michel, outro estudante do mesmo curso. “Aqui está a realidade analógica”, comenta, com sarcasmo. Ambos têm plena razão. A França sempre nos surpreende. Nessas ruas encharcadas de passos, não há ideologia, nem reivindicações metafóricas, nem pedidos impossíveis, senão uma concentrada oposição a uma reforma das aposentadorias, que a sociedade associa à injustiça, impulsionada por um Executivo que, para a grande maioria, governa para os privilegiados. Trata-se de um movimento de uma indisciplina prática, e, nisso, ele é plenamente moderno, e não “pré-histórico”, como sugerem os de-

tentores do pensamento “Power Point”. “Aqui, os meninos não estão alentando ou patrocinando nenhuma revolução. Só querem justiça, equidade e que os levem em conta”, afirma Roselyne, uma aposentada do correio francês que compareceu com sua filha. Michel descreve, em uma frase, as duas situações “insustentáveis” que os mobilizaram: “Há 25% de desemprego entre os jovens, e o governo quer fazer as pessoas trabalharem até os 70 anos. Uma loucura!”.

Não há violência, nem gestos obscenos, nem agressividade nessas vozes que pedem, em coro, “a aposentaria aos 60 anos” Sociedade injusta

Martine, uma garota de 24 anos, estudante de direito internacional, diz indignada: “A juventude tem sido sacrificada, não queremos essa sociedade em que só há lugar para os recomendados, privilegiados, ladrões, filhos de ricos. Queremos justiça, igualdade, possibilidades de progresso para todos”. De grupo em grupo, ao longo de quatro horas de marcha, pode-se fazer uma radiografia tão espontânea como precisa do desânimo da juventude diante de um Executivo que a ignora e um presidente

a quem os jovens tratam como ególatra: a reforma da aposentadoria, a política de imigração, o escândalo L’Oreal – que atinge em cheio o ministro do Trabalho, encarregado de levar adiante a reforma da aposentadoria –, o desemprego, o escudo fiscal impulsionado pelo governo – e mediante o qual os muito ricos recuperam muito dinheiro –, a ausência de política ecológica, os controles policiais constantes e, sobretudo, a falta de uma política “objetiva” orientada aos jovens, assim como uma sensação geral de que o sistema capitalista, tal como está gerenciado, só beneficia uma estreitíssima minoria. A polifonia de gerações dos protestos e o caráter sociocultural e socioprofissional misto lhes deram uma identidade cada vez mais peculiar à medida em que os jovens se somaram a eles nas últimas duas semanas. O levante das escolas foi facilitado pelo rumor de que o plano de reforma das aposentadorias irá criar um milhão de desempregados entre a juventude, pelas iniciativas ridículas de muitos diretores, que escreveram aos pais para que não permitissem que os garotos fossem se manifestar ou bloquear os colégios e, de modo geral, porque o poder político infantilizou o movimento jovem. “Nos tomaram por tontos irresponsáveis, por nenêns de jardim da infância, sem capacidade de compreensão”, diz, com certa ojeriza, Audrey, uma secundarista de 17 anos que anda com um adesivo que diz: “je lutte de classes” (um jogo de palavras que quer dizer: “faço a luta de classes”). Audrey AK/CC

Apoio dos franceses às greves ocorre desde o início de setembro

Rostos novos

Dominique Dupont, sindicalista da CGT, do grêmio dos estivadores portuários, observa os jovens que deslizam por baixo das bandeiras dos estivadores com melancólica admiração. “Fico emocionada. Tão jovens, tão frágeis, tão expostos à violência deste mundo asqueroso, e tão convencidos do que fazem, da razão pela qual estão aqui”.

“A juventude tem sido sacrificada, não queremos essa sociedade em que só há lugar para os recomendados, privilegiados, ladrões, filhos de ricos” Alguns dias mais tarde, na Universidade de Jussieu, os estudantes organizaram uma manifestação antes das férias. Michel, Aurelie, Jean Pierre, Stephane, todos caminhavam cantando “Sarko, você está fodido, a juventude está na rua”. Levavam um cartaz inspirado de um manifestante de Nantes, que dizia: “Sarko, cuidado com seu Rolex, a hora da revolução soou”. A França descobriu, em um abrir e fechar de olhos, a pertinência militante de sua juventude e alguns rostos novos. Como o de Viktor Colombani, 16 anos, dirigente da Unil (União Nacional de estudantes). Um garoto sensato, que fala de “solidariedade de intergerações” e da impossibilidade de aceitar “que se rompa o direito ao futuro”. Apesar da posição privilegiada da França, a juventude vive mal. Um desemprego enorme, dificuldades titânicas para se encontrar moradia, e um discurso de Estado no qual a juventude e seus problemas costumam ser convidados ocasionais. Os jovens ativos conhecem taxas de desemprego ao redor de 24%. A pobreza os encurrala em situações impensáveis para um país central. “Por isso, viemos com os sindicatos”, comenta Lucie, uma jovem recém-ingressada à Universidade. “Estamos fartos de cinismo, da arrogância do governo, das injustiças permanentes, de ver como lá em cima se viola a lei e aqui embaixo nos prendem por qualquer coisa”. Tantos jovens na rua vieram ressaltar a fragilidade do modelo social francês.

Sublevação mansa

Sindicatos e estudantes coincidiram em um ponto: o “não” à França dos privilégios reservados, ao custo de reformas carregadas pela maioria mais exposta. Essa “bronca” se cristalizou em uma espécie de sublevação mansa, muito bem organizada através da consciência coletiva. As greves não penalizaram os usuários, porque os sindicalistas entraram num acordo para que uns fossem aos protestos e outros garantissem um serviço mínimo. O mesmo se constatou nas seis manifestações e greves convocadas desde setembro. Alcançou entre dois a três milhões e meio de pessoas, duas vezes por semana. Catherine, uma empregada de uma empacotadora, conta: “Não podíamos ir todos ao mesmo tempo às manifestações. Cada dia de greve é um dia menos no salário, então, nos revezamos. Uma semana ia eu, a outra, uma colega”. O sociólogo Philippe Corcuff comentou, ao jornal Le Monde, que, neste movimento, “podese entrar e sair quando quiser. É um tipo de guerrilha social, duradoura e pacífica”. Também alegre, com mais humor que ódio, com mais criatividade que dor. Sem bandeiras de ruptura radicais, nem delírios messiânicos, a sociedade francesa elaborou uma bela mensagem coletiva tecida entre várias gerações, entre distintos grêmios, entre diferentes sensibilidades.

Os jovens ativos conhecem taxas de desemprego ao redor de 24%. A pobreza os encurrala em situações impensáveis para um país central Caroline, uma aguerrida militante do Novo Partido Anticapitalista (NPA), reconhece que este movimento não pode romper nem agredir porque, fundamentalmente, “o que viemos pedir é respeito, respeito ao ser humano, ao modelo que construímos, respeito à história e aos valores da França, à ecologia, respeito à igualdade, à dignidade”. (Página/12) Tradução: Eduardo Sales de Lima


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