Ricardo Reprodução Stuckert/PR
Um século de luta negra Entrevista com Abdias do Nascimento Págs. 4 e 5
Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 8 • Número 403
São Paulo, de 18 a 24 de novembro de 2010
R$ 2,80 www.brasildefato.com.br Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr
Prefeitura de SP ataca Lei de Fomento ao teatro e à dança Por meio de um decreto, a Prefeitura de São Paulo pode pôr em risco uma das leis mais avançadas do Brasil em termos de financiamento de produções teatrais e de dança. Os trabalhadores da arte se mobilizam e prometem lutar para defender a Lei de Fomento contra mais um ataque. Pág. 6
Uma vitória dos atingidos por barragens O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou em outubro decreto que estabelece critérios de cadastro socioeconômico das pessoas atingidas por construções de represas e hidrelétricas em todo o país. Esta era uma reivindicação antiga do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Pág. 7
A construção do preconceito Os últimos casos de intolerância contra nordestinos, como o da estudante de direito Mayara Petruso, mostram como determinados setores da sociedade brasileira, especialmente em São Paulo, agem para proteger e manter a estrutura social da qual fazem parte. Pág. 8
Saaráuis na mira da repressão marroquina
Reprodução
Guilherme Delgado
Dezenove mortos, 159 desaparecidos e 723 feridos é a contagem, até agora, do despejo, realizado pelas forças de repressão do Marrocos, de um acampamento no Saara Ocidental, país ocupado há 35 anos. Os acampados exigiam melhores condições de vida e igualdade de oportunidades. Pág. 12
Pressão pelas “reformas” Já se iniciou a temporada de pressões sobre a presidenta Dilma, tendo em vista as iniciativas de reformas estruturais nas políticas econômica e social, que supostamente o novo governo promoveria no primeiro ano. Pág. 7
Silvio Mieli
O baú sem fundos “Que é roubar um banco em comparação com fundar um banco?”, perguntava Bertold Brecht. A questão persiste desde a aurora do capitalismo financeiro (…) até aterrissar no recente escândalo do banco PanAmericano. Pág. 3
ISSN 1978-5134
A tragédia estrutural haitiana
Beto Almeida
Regulamentação da mídia O ministro da Secretaria de Comunicação Social Franklin Martins afirmou que todo o ruído dos grandes empresários para associar a ideia de regulamentação da comunicação à prática da censura “não passa de um truque”. Pág. 3
Págs. 9 e 10
Jose Lirauze/ABI
O “socialismo” militar boliviano
Pág. 10
e cultura latino-americana Pág. 8
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de 18 a 24 de novembro de 2010
editorial
Nossa política e nossas tarefas OU OS PARTIDOS de esquerda, as organizações e movimentos dos trabalhadores e de todos os explorados e oprimidos se colocam a tarefa de aprofundamento e ampliação de suas bases – de modo independente e autônomo – e se lançam numa grande disputa política e ideológica da sociedade, ou estaremos fadados a sucumbir ao fascismo. Em termos da disputa ideológica, sua urgência ficou patente nas últimas eleições presidenciais: de repente, como se ressurgissem das suas catacumbas, as forças mais sinistras do nosso país foram alçadas ao proscênio pelas mãos do candidato derrotado: não satisfeito com o DEM, esse senhor legitimou o Comando de Caça aos Comunistas (CCC); a Tradição, Família e Propriedade (TFP); o Integralismo, e tantas outras sociedades de celerados. A grande mídia comercial, por sua vez, naturalizou essa questão, reforçando assim a legitimidade conferida por seu candidato a tais grupos. O nosso silêncio, por sua vez, será uma conivência, um reforço à banalização desse gravíssimo precedente. Sobre a independência e autonomia das organizações e movimentos dos trabalhadores, dois passos são imprescindíveis para nos livrarmos da herança fascistizante (e, portanto,
debate
populista) da ditadura do Estado Novo: o fim absoluto da carta e do imposto sindical; e a organização dos trabalhadores em seus locais de trabalho e de moradia, ao invés da organização em torno das sedes dos sindicatos e/ou de guias geniais dos povos, como pretendeu Getúlio Vargas, e em consequência do que pagamos muito caro no golpe de 1964: ocupadas as sedes dos sindicatos, e presos ou perseguidos seus dirigentes, em menos de 48 horas a classe trabalhadora e o povo estavam absolutamente desorganizados e, portanto, incapazes de resistir, independentemente de qual fosse a orientação dos partidos que hegemonizavam a política nacional-desenvolvimentista em curso durante o governo do presidente João Goulart. Já no que diz respeito aos partidos políticos de esquerda, cabe incorporar em suas políticas o enunciado nos dois parágrafos anteriores; orientar seus militantes para o trabalho de organização dos trabalhadores e de todos os explorados e oprimidos, dando prioridade àqueles ligados diretamente à produção, seja nas cidades ou no campo; e por fim, discutir, elaborar e disputar na sociedade um programa político claro para enfrentar a atual situação. Um programa que tenha como preocupação a unificação das forças de
O nosso silêncio, por sua vez, será uma conivência, um reforço à banalização desse gravíssimo precedente
esquerda e da classe trabalhadora e do povo. Um programa que tenha como estratégia, o entendimento de que o avanço das nossas conquistas não se dará tendo como palco central (menos ainda exclusivo) as instituições do Estado, mas que depende de combinar essas lutas institucionais com as lutas das organizações e movimentos populares. Sobretudo sem esquecer em nenhum momento que o terreno onde podemos crescer e ser mais fortes; são exatamente as ruas, avenidas e praças.
Frei Betto Gama
O quadro internacional que se esboça nos é desfavorável, e já é mais que evidente que as grandes potências econômicas e políticas vergam-se cada vez mais, do ponto de vista político e ideológico, para a ultradireita, na mesma velocidade e medida em que, a crise inaugurada há alguns anos começa a explodir mais dura em diversos países, como Grécia, Espanha, Portugal e França. Em breve, um novo surto dessa crise se manifestará intensamente nos EUA, e não se tem ainda ideia de sua dimensão e da violência com que poderá nos atingir – sobretudo que hoje somos donos de duas das mais importantes reservas petrolíferas. As guerras são apenas a política feita através das armas, com a qual as maiores potências procuram resolver seus problemas às custas dos povos, inclusive os seus. Analistas de todas as procedências têm advertido sobre essa crise e sobre a política belicista da Casa Branca, tão intensa hoje quanto o foi sob George W. Bush. De acordo com o economista cubano Osvaldo Martinez, em seu artigo “Crise econômica global, guerra econômica e gasto militar”, “A estrutura do orçamento dos EUA e a lógica de sua política econômica, com Bush e Obama, é a de uma economia de guerra na qual o gasto
crônica
militar exacerba o deficit fiscal, mas permite o funcionamento de um ‘equilíbrio do terror financeiro’, repassa imensos lucros ao complexo militar industrial e mantém uma chantagem global baseada na força militar”. (CubaDebate, LA Habana, 16 de novembro de 2010) Some-se a isto, a situação interna do país, onde as contradições de classes se aguçam. Apenas para ilustrar essa questão, transcrevemos um trecho do que nos diz Bill Quigley, Diretor do Centro para os Direitos Constitucionais e professor de direito na Universidade de Loyola de New Orleans, em seu artigo “EUA: concentração de renda e aumento da pobreza como reflexos de suas políticas elitistas”: “A disparidade de renda nos EUA é hoje tão ruim como era antes da Grande Depressão, no final da década de 1920. Entre 1979 e 2006, a camada formada pelo 1% mais rico mais que dobrou sua porção no total das rendas, passando de 10% para 23%. Sua renda anual média foi superior a 1,3 milhões de dólares. Nos últimos 25 anos, mais de 90% do total de crescimento das rendas nos EUA foi para os 10% mais ricos, deixando apenas 9% para as outras faixas de renda que formam os demais 90% da população”.
Marcelo Barros
União e consciência negra
Governo Dilma e o Brasil real FINDAS AS ELEIÇÕES e vitoriosa Dilma Rousseff, é hora de descer do palanque e encarar o Brasil real. Há muito a ser feito. Os dados abaixo são todos oficiais. Em que pese os avanços sociais do governo Lula, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – PNAD 2009 -, IBGE, divulgada a 8 de setembro, a renda média do brasileiro, calculada em R$ 1.106 em 2009, foi 2,2% inferior à de 2008. Embora o rendimento real médio do trabalho tenha se elevado de R$ 1.082 (2008) para R$ 1.106 (2009) – alta de 2,2% –, esta variação ainda é inferior à da década de 1990, quando subiu, entre 1995 e 1998, de R$ 1.113 para R$ 1.121. Em 2009, a renda per capita dos 10% mais pobres cresceu apenas 1,5%, enquanto a média nacional foi de 2,4%. Em 2009, trabalhavam no Brasil 101,1 milhões de pessoas. Metade na economia informal, sem carteira assinada. Comparado com o ano anterior, houve aumento do emprego com carteira assinada: de 58,8% (2008) para 59,6% (2009). Porém, o desemprego teve alta de 18,5%. Em 2008, o índice foi de 7,1 milhões de desempregados. Em 2009, 8,4 milhões, acréscimo de 1,3 milhão de pessoas fora do mercado de trabalho. O número de crianças no mercado de trabalho mereceu a significativa redução de 1 milhão. Em 2009, encontravam-se no mercado de trabalho 4,25 milhões de brasileiros entre 5 e 17 anos de idade. Comparado a 2008, menos 202 mil crianças e adolescentes. Embora no Nordeste tenha ocorrido um pequeno aumento entre jovens de 14 a 15 anos. O índice de analfabetos de 2009 ainda é alto: 8,9% da população. Reduziu-se o número de analfabetos com mais de 15 anos de idade: de 10% da população (2008) passou para 9,7% (2009). E um em cada cinco brasileiros é analfabeto funcional, incapaz de redigir uma carta sem graves erros de concordância e sintaxe, e também sem condições de interpretar um texto.
As mazelas do Brasil têm razões estruturais. Nenhum governo, desde o fim da ditadura, em 1985, ousou promover reformas como a agrária, a tributária, a política, nem dos sistemas de saúde e educação
Com o governo Lula, o Brasil avançou na redução da pobreza e da desigualdade social. Cerca de 20 milhões de pessoas deixaram a extrema miséria. Porém, houve queda, nos últimos anos, do ritmo de aumento da renda dos 10% mais pobres. Em 2009, encontravam-se em extrema pobreza 8,4% dos brasileiros (15,96 milhões de pessoas), numa população de 190 milhões. No ano anterior a 2009, a pobreza extrema caiu 0,4%. De 2007 a 2008, havia decrescido 1,5%, três vezes mais. Portanto, o ritmo de desempobrecimento dos brasileiros foi reduzido. É verdade que, graças à facilidade de crédito (o volume chegou a R$ 1 trilhão) e à crise financeira mundial, que obrigou muitos exportadores a destinarem seus produtos ao mercado interno, houve significativo aumento do consumo de bens duráveis: máquinas de lavar roupa, televisores, microcom-
putadores, celulares e aparelhos de DVD. Hoje, 72% das moradias possuem tais equipamentos. O curioso é esta contradição: 59,1% dos domicílios brasileiros não dispõem de rede de esgoto, o que equivale a 34,6 milhões de moradias. No governo Lula, aumentou o número de casas com abastecimento de água, coleta de lixo e energia elétrica. Mas recuou o índice das que são servidas por rede de esgoto (saneamento): de 59,3% (2008) caiu para 59,1% (2009). À falta de saneamentos são atribuídos 68% dos casos de enfermidades. Após sete anos de queda, a taxa de fecundidade voltou a subir no Brasil. Passou de 1,89 filho por mulher (2008) para 1,94 (2009). O Brasil tende a um perfil populacional acentuadamente de idosos. Em 2009, 11,3% dos brasileiros tinham 60 anos de idade ou mais. Isso significa aumento do custo da Previdência (que é um dos mecanismos de distribuição de renda) e da saúde pública. Quem se deu muito bem na gestão Lula foram os bancos. Os lucros dos três maiores – Banco do Brasil, Itaú e Bradesco – somam R$ 167 bilhões na era Lula, alta de 420% comparada à era FHC (quando o lucro foi de R$ 32,262 bilhões). As mazelas do Brasil têm razões estruturais. Nenhum governo, desde o fim da ditadura, em 1985, ousou promover reformas como a agrária, a tributária, a política, nem dos sistemas de saúde e educação. Enquanto não se mexer nessas estruturas e serviços, o país estará, como diz Jesus, pondo remendo novo em pano velho. Espera-se que Dilma Rousseff mexa na estrutura da casa brasileira, sobretudo na fundiária e na tributária. A primeira, para dar fim à imensidão de terras ociosas, à miséria e ao êxodo rural. A segunda, para que o peso maior dos impostos não continue recaindo sobre os mais pobres. Frei Betto é escritor, autor de A mosca azul – reflexão sobre o poder (Rocco), entre outros livros.
NO BRASIL, ESTA semana começa pela recordação do dia em que foi implantada a República (15 de novembro) e se encerra com o dia consagrado à União e Consciência Negra. Segundo historiadores recentes, no Brasil, a mudança da Monarquia para a República aconteceu quase por engano ou por acaso. Não era a opção profunda do Marechal Deodoro e de seus companheiros. E não significou uma verdadeira transformação da forma de exercer o poder que continuou com as elites (Cf. Fábio Konder Comparato em Caros Amigos, nov. 2010). O segundo fato recordado nesta semana ocorreu em 20 de novembro de 1696. Neste dia, Zumbi dos Palmares, líder da resistência negra contra a escravidão, foi martirizado. Atualmente, em várias cidades, este dia é feriado e conclui uma semana de comemorações culturais. Uma criança perguntou à mãe se união tem cor e o que significa “consciência negra”. A unidade das raças e a igualdade entre os seres humanos supõe que cada cultura e cada povo tenha consciência de sua dignidade. Chama-se “consciência negra” o fato das pessoas afro-descendentes assumirem sua identidade cultural, conscientes do imenso valor de sua cultura, para contribuir com as outras na riqueza intercultural do Brasil. A comemoração anual da memória do Zumbi é importante em um Brasil que ainda mantém uma herança de forte desigualdade social. Em inúmeros casos, na realidade brasileira, ser negro é quase sinônimo de ser pobre e ter menos acesso à escolaridade e ás condições sociais de outros brasileiros. José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, afirma: “A cor negra da pele de homens e mulheres, assim como sua raça e cultura própria, foram motivos de crueldade humana e de barbárie que mancharam e continuam manchando a dignidade da humanidade” (Carta Capital, 12/11/2008, p. 60).
Uma das mais profundas riquezas das culturas afro-descendentes é a espiritualidade viva e bela das comunidades negras Por isso, são sempre importantes e oportunos os programas que fomentam a igualdade de condições e a integração social de negros e brancos. Conforme a Constituição Brasileira, devem ser respeitadas e valorizadas as comunidades remanescentes de Quilombos. São grupos que, desde os tempos da escravidão, reúnem negros, seus aliados e descendentes, em uma comunidade com cultura e valores próprios. Eles devem ter direito à terra coletiva e merecem das autoridades públicas a proteção e o apoio necessários. Estas comunidades estão organizadas em quase todos os Estados e somam mais de dois mil grupos e comunidades. Algumas delas mantêm elementos de idioma, de danças e costumes ancestrais que são de uma riqueza incalculável para todo o Brasil. Uma das mais profundas riquezas das culturas afro-descendentes é a espiritualidade viva e bela das comunidades negras. A Mãe África permanece viva e atuante na memória religiosa dos seus filhos e filhas. Para ser escravas nos diversos países da América, foram sequestradas pessoas de diferentes áreas do continente africano. Para evitar rebeliões, os senhores separavam os escravos vindos do mesmo clã ou região. Misturavam etnias. Proibiam que falassem as suas línguas e praticassem as suas religiões. Mesmo impedidos de saber onde estavam outros membros de sua família, também sequestrados, os afro-descendentes conseguiram manter as línguas, contar a seus filhos as histórias dos seus antepassados, guardar as canções da Mãe-África e reconstituir muitas expressões culturais e religiosas. Só podiam cultuar à noite, enquanto os brancos dormiam. Como objetos de culto, só possuíam seus corpos, suas vozes e os terreiros das senzalas, seus templos. Foram obrigados a adaptar antigos costumes da África às novas condições de clima, ao pouco tempo livre de que dispunham e à sua extrema pobreza. Fundiram costumes religiosos, adaptaram mitos e elaboraram oralmente uma explicação religiosa do mundo e da sua história. Esta teologia narrativa deu origem a religiões novas como o Candomblé, o Batuque, o Tambor de Minas, a Santeria cubana e o Vodu haitiano. Durante séculos, de geração em geração, se transmitiram ritos, cânticos e histórias ancestrais. Nós somos chamados a continuar este caminho de reverência amorosa e delicadeza no diálogo e na colaboração com as outras religiões e culturas. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 30 livros, entre os quais Dom Helder, profeta para os nossos dias, Goiás, Ed. Rede da Paz, 2006.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
de 18 a 24 de novembro de 2010
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frases soltas Antonio Cruz/ABr
NOVO GOVERNO – O deputado federal Antônio Palocci chega para encontro com a equipe de transição de governo, reunida em Brasília no dia 16 de novembro
Silvio Mieli
O baú sem fundos “QUE É ROUBAR um banco em comparação com fundar um banco?”, perguntava o dramaturgo alemão Bertold Brecht. A questão persiste desde a aurora do capitalismo financeiro, passando pela crise do sistema imobiliário nos EUA, até aterrissar no recente escândalo do banco PanAmericano, do apresentador Silvio Santos. Silvio Santos é um típico megaempresário brasileiro: explorou os mais pobres de todas as formas imagináveis; teve herdeiros; escreveu (ou mandou escrever) um livro; plantou árvores; bajulou o último governo militar a ponto de conseguir uma emissora de televisão. E, para completar, fundou o tal banco PanAmericano, que causou um prejuízo superior a R$ 2,5 bilhões por causa de uma fraude contábil. Como amealhou parte do seu capital? Depois de pagarem as suadas prestações do carnê do Baú e desperdiçarem seus domingos diante do programa Silvio Santos, centenas de milhares de pessoas trocavam as suas “poupanças forçadas” por um escorredor de macarrão ou um ralador de queijo nas lojas Tamakavy, do mesmo empresário.
No clássico A noite da madrinha, que procurava entender o papel dos programas de auditório, o sociólogo Sergio Miceli defende a tese de que o sucesso da televisão no Brasil deve-se a uma difusão restrita do sistema de ensino. Nesse contexto, o veículo funcionaria como mostruário de bens materiais e artigos de consumo, mas também como uma vitrine ideológica, de opiniões, atitudes, condutas e valores. As novelas e os programas de auditório atuariam como agentes pedagógicos do sistema. Um casamento perverso entre as injustiças econômico-financeiras e as mazelas do sistema de comunicação no Brasil. O rombo no banco PanAmericano deveria estimular não só a implantação de severos mecanismos de regulação dos bancos, como também de um controle efetivo dos meios de comunicação no Brasil, para que possamos nos livrar preventivamente da investida ilimitada de outras figuras de sorrisos marotos. Em tempo: o megaempresário Eike Batista ainda não fundou um banco, nem tem um canal de comunicação…
A classe de área de mais de mil hectares no Mato Grosso do Sul obteve financiamento de mais de R$ 1 bilhão e gerou um valor de produção de R$ 524 milhões. A pequena unidade de produção, com menos de 50 hectares, acessou R$ 2,4 milhões e gerou um valor de produção de R$ 42,9 milhões. Isso quer dizer que as áreas menores que 50 hectares multiplicaram por 20 o valor do financiamento. E a grande propriedade dividiu por dois o valor do financiamento Rosemeire Aparecida de Almeida, professora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, em entrevista à RadioagênciaNP, na qual afirma que a suposta “produtividade do agronegócio” é um mito, 15 de novembro
5 milhões de pessoas usam, todo dia, transporte ferroviário na Alemanha. No Brasil, apenas 4.100 passageiros! O Brasil dispõe de apenas duas linhas ferroviárias para passageiros: Maranhão-Pará e Minas-Espírito Santo. As duas, privadas: da Vale @freibetto, via Twitter, 13 de novembro
Beto Almeida
Tirania da mídia AO ABRIR O SEMINÁRIO Internacional “Comunicação Eletrônica e Convergência de Mídias”, o ministro Franklin Martins afirmou que todo o ruído dos grandes empresários para associar a ideia de regulamentação da comunicação à prática da censura “não passa de um truque”. Visa impedir o debate para manter tudo como está, desregulamentado, ou seja, sob controle absoluto de apenas alguns poucos grupos empresariais. A iniciativa do governo de trazer a experiência de regulação da mídia de países que nada têm de esquerdistas como Portugal, Inglaterra, França, EUA, Canadá, Espanha e Argentina, começa por derrubar um dos truques usados pelos conservadores para identificar, falsamente, regulamentação com ameaça à liberdade de imprensa: países referência construíram modelos de regulação, ampliaram a concorrência, a pluralidade e a diversidade de atores sociais na mídia. É rigorosamente falso afirmar, como fazem os magnatas da comunicação e suas marionetes, que a regulação pretendida por Lula não existe em nenhum lugar do mundo. Existe sim, vem até sendo aperfeiçoada mediante avanços tecnológicos. No Brasil, a legislação é obsoleta, de 1962, quando não havia o vídeo-tape, TV em cores ou celular. E o que há de novo no Brasil, o capítulo da Comunicação Social da Constituição
de 1988, não foi regulamentado, bloqueado pelos magnatas da mídia. Registre-se que a regulamentação nos países centrais do capitalismo não impediu que seus modelos de comunicação dessem sustentação, em muitos casos, às políticas de intervencionismo militar, de neoliberalismo ensandecido, de privataria e rapina contra as economias periféricas do mundo. A novidade está no caso argentino. A lei do audiovisual nasceu de baixo para cima, com meses de debates abertos, audiências públicas. E há, ainda, uma interessante semelhança com o artigo 223 da Constituição Brasileira, ainda não regulamentado. A comunicação na terra de Maradona foi dividida em três segmentos: empresarial, estatal e público, no qual até universidades e centrais sindicais passarão a ter TV. Além de ter sido quebrado o monopólio privado do papel de imprensa. No Brasil, os constituintes foram sábios e colocaram no artigo 223 que a comunicação social deve ser complementar entre os sistemas público, privado e estatal. O coronelismo midiático acha que o espectro é propriedade privada dele. E não cumpre a Constituição. É preciso pôr em prática o sábio desejo dos constituintes. É hora de regulamentar!
comentários do leitor Qualidade
Agradeço a gentileza da remessa de exemplar do Brasil de Fato e felicito pela qualidade da publicação. Com as expressões do nosso apreço,
Maurício Azêdo – Presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Rio de Janeiro (RJ).
Novo projeto
Caralho!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Nosso jornal tá mais bonito. Passamos dos 60%. Agora dá para elogiar a cara do nosso jornal. Achei muito, muito bom mesmo. Vamos em frente. Só faltam 40%. Parabéns a todos os que contribuíram. Abraços,
Vito Giannotti, do Rio de Janeiro (RJ)
Sugestão de pauta
Acho interessante o Brasil de Fato abordar a recente polêmica sobre o parecer do Conselho Nacional de Educação (do MEC) ao livro Caçadas de Pe-
drinho (Monteiro Lobato) que sugeriu nota explicativa contextualizando a obra por causa de alguns termos de conotação racista. O assunto, na opinião de muitos integrantes do movimento negro, não teve o tratamento adequado pela grande mídia, o debate ficou muito aquém da importância e complexidade do assunto.
Carlos Alessandro, de São Paulo (SP)
Copa do Mundo 2014
Como bem diz a reportagem, a FIFA é corrupta e corruptível, basta tomar como exemplo a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) que assegura seus interesses com patrocínios, especulação e participação nas transferências de atletas ao exterior, movimentando milhões de reais sem nenhum tipo de fiscalização por parte do Estado; e quando há CPI, acaba sendo engavetada para não desestabilizar os interesses em torno do futebol. E se
há questionamentos por parte de jornalistas (como o Juca Kfouri), é simplesmente processado. João Havelange, declarou em entrevista que Ricardo Teixeira deixará seu posto na CBF em 2014 para presidir a FIFA. Se com a CBF faz das transmissões de jogos um verdadeiro monopólio e ao bel prazer, de acordo com interesses da Globo, imagine o que não faria se presidisse a FIFA?
Ricardo de Oliveira Teixeira Barros – por correio eletrônico
Educar para o socialismo
É preciso educar as crianças, os jovens e os adultos para o socialismo; vigiar sem perseguir a imprensa burguesa; fazer uma reforma agraria e urbana séria...Não é prioridade o esporte, mas também não é descartável... Mas a grande prioridade é a educação de todos para o socialismo! Cristiano Dias – por correio eletrônico
Lendo as absurdas argumentações da professora Janaina Paschoal ‘Em defesa da estudante Mayara’, lembrei que grandes pesquisadores do racismo e preconceito no Brasil, como Roger Bastide e Florestan Fernandes, denunciaram a lógica da inversão. (...) Se não fossem os negros, os nordestinos, os pobres, as prostitutas, os homossexuais; se Lula não fosse presidente, a estudante Mayara não teria cometido o destempério de pedir o assassinato de ninguém e tampouco teria sido demonizada. Coitadinha dela! Heloísa Fernandes, professora associada de Sociologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, em protesto contra o artigo publicado pelo jornal Folha de S.Paulo, 14 de novembro
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de 18 a 24 de novembro de 2010
cultura
Prefeitura de SP faz novo ataque à Lei de Fomento
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
TEATRO Companhias afirmam que decreto editado em fevereiro burocratiza acesso à dotação orçamentária e cerceia produção artística Reprodução
Dafne Melo da Redação CONSIDERADA A LEI mais avançada em termos de fomento à produção teatral no Brasil, fruto de anos de luta de grupos de teatro da cidade de São Paulo e modelo para a reivindicação de outros grupos de teatro pelo Brasil, a Lei de Fomento ao Teatro e Dança está novamente sob ataque. Dessa vez, a gestão de Gilberto Kassab (DEM) editou um decreto (51.300, de fevereiro de 2010) que, de acordo com os trabalhadores ligados à Cooperativa Paulista de Teatro (CPT) entrevistados pelo Brasil de Fato, burocratizam e dificultam o acesso dos grupos de teatro e dança às verbas destinadas ao programa, ferindo a lei aprovada em 2001, durante a gestão de Marta Suplicy (PT). O decreto muda a relação contratual entre a Cooperativa Paulista de Teatro – que representa juridicamente os grupos beneficiados – e a Prefeitura, estabelecendo um convênio. De acordo com um manifesto assinado pelo Movimento de Teatro de Grupo de São Paulo e pela Mobilização Dança, em novembro, o decreto, “dentre seus ditados, aumenta a carga tributária dos projetos fomentados e converte os trabalhos prestados em convênios. Estas mudanças enquadram os grupos de dança e teatro em um mar fiscal burocrático que padroniza e estrangula seu pleno desenvolvimento. O decreto cria prerrogativas capazes de aniquilar os fomentos, ou, no mínimo, distorcer suas características até tornaremse irreconhecíveis”. Mudanças Para Luciano Carvalho, do grupo teatral Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, o decreto não leva em conta que o processo continuado de pesquisa e produção teatral, como define a Lei de Fomento, não pode ser burocratizado e padronizado, sob risco de prejudicar a liberdade e autonomia dos grupos, um dos melhores aspectos da lei. Um dos pontos criticados pelos grupos é a forma como passaria a ser feita a prestação de contas. Tudo terá que ser definido, detalhadamente, antes, e por meio de um método contábil que engessaria o processo criativo. Os núcleos teatrais realizam a prestação de contas de todos projetos contemplados, mas em outros moldes. Luciano explica, por exemplo, que não se pode definir previamente tudo o que vai ser utilizado numa peça. “Se no meio do processo você decide que não quer usar mais maquiagem, mas máscaras, para citar um exemplo, esse decreto dificulta esse tipo simples de mudança. O Fomento beneficia grupos de pesquisa artística e o caráter peculiar desse tipo de pesquisa deve ser levado em conta”, defende.
Mídia mulher Com o apoio do Instituto Patrícia Galvão, Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher e Secretaria de Políticas para as Mulheres, será realizado no Rio de Janeiro, de 2 a 4 de dezembro, o Seminário Mídia e Mulheres no Poder. A programação e mais informações podem ser obtidas na Agência Patrícia Galvão, mulheremidia7@uol.com.br e fone (11) 3262-2452. A luta das mulheres tem tudo para ganhar força em 2011!
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Membros da Cooperativa Paulista de Teatro participam de audiência pública
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do recolhimento para o INSS é o que os grupos de teatro e dança de São Paulo teriam que pagar de acordo com o novo decreto da Prefeitura
Outro problema grave é que o decreto dá margem para que a verba destinada à lei seja disputada pela própria Prefeitura e outros tipos de organizações sociais. Na prática, isso significa retirar a verba dos grupos de teatro e dança para projetos culturais do município ou para outros grupos escolhidos pela Prefeitura, por meio de um edital. “Eles querem controlar esse dinheiro e isso descaracteriza a lei”, afirma Luciano, para quem a motivação da Prefeitura é política e não meramente jurídica. Osvaldo Pinheiro, da Companhia Estável de Teatro, reitera: “As ameaças são no sentido de burocratizar mais esse processo para dificultar o acesso dos grupos de teatro e dança a essa verba”. Mobilização Outra mudança contestada pelos grupos é que há o aumento da carga tributária sobre os projetos selecionados, uma outra forma de reter a verba do Fomento. Hoje, os grupos são responsáveis por pagar 11% do recolhimento para o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).
Com o novo decreto, a nova tributação seria de 20%. Sua edição, assim como outras medidas, em anos anteriores, que tentavam modificar a lei, gerou uma forte reação de trabalhadores ligados ao teatro e à dança, muitos de grupos tradicionais, que têm desenvolvido trabalhos de forma contínua, por meio da Lei de Fomento. Osvaldo Pinheiro conta que há assembleias semanais e que as últimas vêm contando com mais de 200 pessoas.
“Estas mudanças enquadram os grupos de dança e teatro em um mar fiscal burocrático que padroniza e estrangula seu pleno desenvolvimento” No dia 10 de novembro, mais de 300 pessoas de 85 grupos de teatro e dança foram à Câmara Municipal de São Paulo para uma audiência da Comissão de Administração Pública da Câmara com os secretários Carlos Augusto Calil (Cultura) e Cláudio Lembo (Negócios Jurídicos, ex-governador de SP). Ambos fizeram um discurso conciliador, afirmando que a Prefeitura não tem interesse em interferir na Lei de Fomento. Um grupo de trabalho, integrado por Lembo, Calil, pelo procurador-geral do município de São Paulo e por representantes dos movimentos de teatro e dança, foi estabelecido para detalhar e discutir os danos do decreto à lei. “Nessa audiência, o Lembo cogitou a possibilidade de que a Lei de Fomento fique de fora desse decreto”, conta Luciano Carvalho.
Lei não é perfeita, mas seu balanço é bastante positivo Legislação ajuda a democratizar a arte e dá autonomia e liberdade de criação a grupos artísticos da Redação Em todo Brasil, a cidade de São Paulo é reconhecida por abrigar um forte movimento teatral, contando com grupos que procuram produzir na contramão da lógica empresarial. A explicação para isso não está nas características inerentes a uma metrópole, mas sim na luta dos grupos teatrais. A Lei Municipal de Fomento ao Teatro, aprovada em 2001 e em vigor desde o ano seguinte, é fruto de uma reivindicação histórica de trabalhadores da arte, articulados em diferentes grupos, como o Movimento Arte Contra a Barbárie. “A ideia da Lei do Fomento é financiar
Velha arenga Nem bem assentou a poeira da eleição presidencial e a grande imprensa burguesa já reiniciou o seu trabalho preferido, que é pautar o governo conforme os interesses do capital. Entre os vários temas do momento, inclusive a composição do ministério e a participação privada no pré-sal, os alvos preferidos são o “deficit da Previdência” e o “alto custo da máquina pública”. Está na cara que o ataque está dirigido contra os direitos sociais.
grupos, com investimento público, que tenham uma pesquisa continuada, seja em comunidades ou bairros. São grupos que já possuem uma trajetória e têm esse compromisso de fazer essa pesquisa continuada”, explica Osvaldo Pinheiro, da Cia. Estável de Teatro. A lei destina uma verba fixa, a ser corrigida anualmente pela inflação, ao fomento de projetos de pesquisa e produção teatral da cidade de São Paulo. Todos os anos, 30 projetos são contemplados, dois terços deles no primeiro semestre de cada ano. Os projetos têm duração máxima de dois anos e devem prestar contas ao final. Em 2002, o valor da verba foi de cerca de R$ 6 milhões. Hoje, com as correções, chega a R$ 14 milhões. Para efeitos comparativos, o governo federal oferece anualmente mais de R$ 3 bilhões, em forma de renúncia fiscal, aos empresários que queiram investir em ações culturais via Lei Rouanet. Democratização Ao contrário desta, porém, que permite que o dinheiro público seja usado para financiar megaprojetos culturais nos grandes centros urbanos, a preços caros e para um público das classes altas, a Lei de Fomento permite maior democratização,
aumentando a quantidade, a qualidade e a distribuição territorial da arte na cidade. Como a dotação é fixa, dá mais autonomia e liberdade necessária aos grupos de arte, justamente o que incomoda o poder público que, em outras ocasiões, tentou cortar a dotação fixa e burocratizar a lei. “A Lei de Fomento foi criada de uma forma que ela se autorregulamente. Não precisa de edital, de decreto, de nada”, defende Osvaldo. Luciano afirma que graças à lei, que deve, inclusive, ser ampliada, muitos grupos de teatro que atuam na periferia, antes invisíveis, passaram a ter visibilidade e apoio para tocar seus projetos. “Sua potência é reconhecida por amigos e inimigos”, aponta o ator, que afirma que boa parte dos grupos beneficiados, hoje, atuam em bairros da periferia de São Paulo, alguns com grupos excluídos, como albergues, ocupações etc. “A Lei de Fomento é um avanço que traz uma forma diferente de como as políticas públicas podem e devem prover a produção artística e cultural. Nós conseguimos, com menos dinheiro, ter mais penetração social do que os megaprojetos midiáticos travestidos de projeto artísticos e financiados via Lei Rouanet”, defende Luciano. (DM)
Antitortura Termina dia 24 de novembro o prazo de inscrição para o processo de seleção do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, que terá seis membros eleitos pelo Comitê Estadual, com mandatos até 2012 e 2014, conforme a Lei 5778, de 30 de junho de 2010, iniciativa do mandato do deputado estadual Marcelo Freixo. É mais uma tentativa para denunciar o terrorismo de Estado no Brasil. Antimuralha Vários meios de comunicação brasileiros participaram, dias 12 e 13, da maratona internacional de mídia organizada para denunciar o muro construído pelo estado de Israel para isolar as cidades palestinas da Cisjordânia. Com 700 quilômetros de extensão, equivalente à distância entre São Paulo e Florianópolis, o muro é mais um marco do autoritarismo e da intolerância do governo israelita contra os povos do Oriente Médio. Desrespeito – 1 De janeiro até outubro, o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor registrou mais de um milhão de reclamações contra serviços e produtos. O campeão de reclamações é o sistema financeiro (bancos e cartões de crédito), seguido da indústria (automóveis e eletrodomésticos). Empresas privadas concessionárias de serviços públicos – especialmente de telefonia – continuam desafiando o Código de Defesa do Consumidor. Desrespeito – 2 Os movimentos sociais e ambientalistas do Mato Grosso denunciam a mais recente investida do agronegócio contra os povos indígenas e os recursos naturais daquele Estado: a Assembleia Legislativa aprovou o substitutivo 3 do Zoneamento Socioeconômico e Ecológico, que reduz as áreas de reservas e permite o plantio da cana em qualquer área do Estado, inclusive no cerrado, floresta amazônica e Pantanal. É o fim da picada! Opportunity O jornalista Raimundo Rodrigues Pereira lança, dia 26, na Livraria Argumento, no Rio de Janeiro, seu livro O escândalo Daniel Dantas – duas investigações, no qual aponta falhas na condução da Operação Satiagraha, da Polícia Federal, quando se descobriu que o Banco Opportunity havia criado 83 empresas de fachada, remeteu milhões de dólares para o exterior sem o devido registro e operava uma verdadeira “lavanderia”. A conferir. Baú golpista O golpe do Banco PanAmericano, do Grupo Silvio Santos, encobriu um desvio de R$ 2,5 bilhões, enganou a fiscalização do Banco Central e as auditorias das empresas privadas. Além disso, colocou a Caixa Econômica Federal na condição de sócia-laranja, já que o banco estatal comprou 36% da golpista, em 2009, com o golpe em pleno andamento. E ainda tem gente que acha o sistema financeiro superseguro! Classe média As primeiras investigações sobre as fraudes no Banco PanAmericano indicam que, entre outras manobras, os dirigentes da instituição tentaram encobrir a elevada inadimplência nas linhas de crédito ao consumidor, em especial no financiamento de veículos. Se isso aconteceu mesmo com o PanAmericano, pode acontecer com outros bancos. Parece que a “nova classe média” não é tão consistente como se pensava!
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Pressão por “reformas” JÁ SE INICIOU de maneira tácita ou explícita a temporada de pressões sobre a presidenta Dilma, tendo em vista as iniciativas de reformas estruturais nas políticas econômica e social que, supostamente, o novo governo promoveria no primeiro ano. O argumento implícito é sedutor – há uma base parlamentar expressiva, suficiente para aprovar até emendas constitucionais, e o primeiro ano de governo costuma ser, como manda a tradição parlamentar, de “estado de graça” para o presidente recém-eleito. Sob o pressuposto da oportunidade política e da necessidade de reformas no sistema tributário e no sistema previdenciário brasileiro, começa-se a pautar o novo governo com uma reforma ampla e autodeclarada neutra em termos distributivos (Projeto de Reforma Tributária do final do governo Lula – PEC 233-2008), cujos desdobramentos de desoneração da Contribuição Previdenciária e do estabelecimento de teto de gasto na Seguridade Social, conduziria implicitamente a uma opção de desmonte ou arquivamento do experimento distributivo mais exitoso da Constituição de 1988. A falta de debate político na sucessão presidencial sobre política tribu-
tária levou a muitos consensos enganosos – um deles é o da desoneração ampla geral e irrestrita, preâmbulo de uma redução da carga fiscal, a que se acrescentariam medidas de simplificação e uniformização tributária em todo território nacional, fim da “guerra fiscal” etc. Esse arrazoado, que contém meias verdades, continua firmemente repetido em algumas falas da presidenta eleita, sem qualquer menção à função redistributiva que o sistema tributário precisaria exercer em uma sociedade desigual como a brasileira. O primeiro reparo à tese da desoneração geral, começando pela contribuição patronal à Previdência, proposta que já está lá na PEC 233-2008, é de dupla mão: 1– A desoneração geral é equivocada porque desconsidera o fato de que há grupos sociais altamente tributados (consumidores e trabalhadores), enquanto outros – pessoas jurídicas e pessoas físicas com altos rendimentos, gozam de verdadeiros privilégios fiscais que os desoneram fortemente; 2 – O Regime Geral de Previdência Social nos últimos dez anos incorporou mais de 20 milhões de segurados – ativos e deverá prosseguir no ritmo atual (a incorporação de segurados – contribuintes
no biênio 2006-2008 foi da ordem 3 milhões ao ano) no próximo quadriênio, fato que deve lhe implicar um certo ciclo de crescimento das despesas com benefícios no próximo quinquênio mais forte que a evolução da arrecadação. Não há evidência de que sobrem, mas, ao contrário, de que faltem recursos a médio prazo para este sistema, que lida com mais de 60% da População Economicamente Ativa e paga um benefício médio aos inativos inferior a dois salários mínimos. A pressão por reforma tributária ampla e neutra é também uma armadilha, que em geral costuma consumir muito capital político aos governos que se iniciam. Não costumam vingar quando implicam em grandes mudanças constitucionais. Ademais, as questões distributivas (em prol da equidade), que essas iniciativas de reforma sequer cogitam, não dependem de mudanças constitucionais, mas de leis ordinárias e regulamentos administrativos. Não se deve concluir dessa observação inicial que a agenda de reformas na política social e, particularmente, no sistema tributário sejam desnecessárias ou puramente residuais. Ao contrário, para dar sequência e sustentação ao experimento de cresci-
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Guilherme C. Delgado
A conversão dessas demandas difusas em projeto político concreto de mudança no padrão de tributação ainda levará tempo para para ser assimilada politicamente pelo Executivo e Congresso recém-eleitos
Cadastramento para atingidos por barragens
mento econômico com maior igualdade social, é fundamental contar com um sistema tributário adequado para cumprir o papel redistributivo na captura dos recursos, coerente com a distribuição dos benefícios monetários e em espécie que a política social executa dentro das regras do chamado Estado Social. Outra coisa que precisa ficar clara à continuidade do experimento de crescimento com distribuição da renda é que esse estilo de desenvolvimento exigirá, provavelmente por mais uma década, elevação e não congelamento ou redução dos gastos sociais vinculados a direitos básicos. Isto ocorrerá por pressão para inclusão dos grupo sociais ainda não contemplados pela linha dos direitos básico (Saúde, Educação, Previdência, Habitação e Reforma Agrária), como também pela pressão dos que já são atendidos de forma marginal ou precária. Esse conjunto de pressões previsíveis não se coaduna com o sistema tributário atual. Mas a conversão dessas demandas difusas em projeto político concreto de mudança no padrão de tributação ainda levará tempo para para ser assimilada politicamente pelo Executivo e Congresso recém-eleitos.
José Cruz/ABr
CONQUISTA O presidente Lula assina decreto que estabelece critérios de cadastro socioeconômico às pessoas atingidas por barragens em todo o país Alexania Rossato de São Paulo (SP) É DIFÍCIL CONTABILIZAR a profundidade e a gravidade que os impactos da construção de barragens causam na vida dos atingidos. Para quem vai perder a terra onde sempre viveu ou as condições de trabalho, como no caso dos atingidos pela Usina Hidrelétrica de Estreito, o desamparo parece não ser indenizável. A obra está sendo construída sob o Rio Tocantins pelas empresas Suez-Tractebel, Vale, Alcoa e Camargo Corrêa, entre os Estados do Maranhão e Tocantins. Será concluída ainda este ano, mas o consórcio só indenizou duas mil famílias, ainda assim com valores insuficientes. Outras 1.200 famílias ribeirinhas de pescadores, quebradeiras de coco, barqueiros e outros, que tiveram suas atividades de subsistência impactadas, não foram compensadas. O caso das famílias atingidas pela usina de Estreito se repete pelo país afora. Mas essa realidade deve mudar a partir do decreto nº 7.342, de 26 de outubro, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O decreto estabelece critérios de cadastro socioeconômico às pessoas atingidas por barragens em todo o país, como um instrumento de identificação, qualificação e registro público da população atingida, monitorado e fiscalizado pelo Comitê Interministerial – formado por representantes dos Ministérios de Minas e Energia, Meio Ambiente, Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Desenvolvimento Agrário, Pesca e Aquicultura e Secretaria-Geral da Presidência da República. Reivindicação
Esta é uma reivindicação antiga do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), já que no Brasil não havia uma legislação que assegurasse os direitos dessa população, tampouco um órgão público encarregado de realizar as indenizações e reassentamentos. Para Joceli Andrioli, da coordenação nacional do MAB, o decreto é um avanço, pois define legalmente quem deve ser cadastrado, ou seja, quem são os atingidos e, por sua vez, quem deverá ser indenizado. “Isto saiu do arbítrio das empresas”, declarou. Até hoje, a definição de quem é considerado atingido e a forma de indenização eram decisões tomadas pelas empresas construtoras da barragem. Tal situação exclui a maioria das pessoas afetadas, pois considera apenas o conceito territorial patrimonialista de atingido. Segundo o professor Carlos Vainer, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, via de regra, com o conceito territorial, os impactos abaixo da barragem não eram considerados, e as populações
que viviam nessa região não eram reconhecidas como atingidas, já que as áreas não eram alagadas. Por outro lado, pelo conceito patrimonialista, apenas era reconhecido como atingido quem possuía o título da terra. “Muitas vezes só se reconheciam como efetivamente atingidos os detentores de propriedade, indenizando-se a propriedade e, em caso de ocupantes ou posseiros, apenas suas benfeitorias (e não a posse), o que significava, quase sempre, a inviabilização de sua reprodução enquanto produtor. Não se considerava a perda dos meios de vida, mas a indenização da propriedade”, disse. Avanços
O professor Vainer, que há anos faz pesquisas com atingidos por barragens, aponta uma série de avanços do decreto no que diz respeito ao reconhecimento
de categorias de trabalhadores que dependem do rio ou do seu entorno para sobrevivência, como, por exemplo, os pescadores e comerciantes. “O decreto é explícito quanto à perda da capacidade pesqueira. Ora, é sabido que comunidades ribeirinhas muitas vezes dependem, seja para sua alimentação, seja para a pesca comercial, do potencial pesqueiro. Também reconhece o direito à reparação a todos os que, de alguma maneira, dependem do rio ou da comunidade para sobreviver, como o barqueiro que faz a travessia ou o proprietário de um pequeno comércio que vendia para uma comunidade que vai ser deslocada. Outro exemplo: o proprietário de um caminhão que recolhia o leite de um conjunto de estabelecimentos na região inundada: seu caminhão continua intacto, mas sua atividade foi comprometida”, avalia.
Avançar no pagamento da dívida social Para Joceli Andrioli, da coordenação nacional do MAB, o cadastramento é muito importante, mas por si só, não nos garante as conquistas de São Paulo (SP) Desde 2009, o presidente Lula tem se manifestado publicamente sobre a necessidade de pagar a dívida histórica do Estado com os atingidos por barragens. Em fevereiro deste ano, durante o primeiro encontro do presidente com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Lula reafirmou a necessidade de estabelecer normas para o reconhecimento das famílias como atingidas por barragens. O decreto avança neste sentido, mas não dá base legal de interferência sobre o passivo social referente às antigas barragens, já que será válido para barragens licenciadas a partir de janeiros de 2011. Mas segundo os coordenadores do movimento, sem dúvi-
da confere grande força moral e política à luta do MAB pelo reconhecimento e reparação da dívida social contraída com as populações atingidas nos últimos 40 anos.
“É a nossa organização que vai garantir a implementação e o avanço desta política” Fato histórico
Para Joceli Andrioli, da coordenação nacional do MAB, o decreto presidencial é um fato histórico e uma conquista dos atingidos; e o gesto de instituir uma forma de reconhecimento dos atingidos e de cadastrá-los é um esforço do governo reconhecido pelo MAB. “Temos que dar muitos passos ainda com relação ao passivo histórico que o Estado tem com os atingidos e não abrimos mão de nossa luta pela reparação de toda dívida social das barragens já construídas. O cadastramento é muito importante, mas por si só, não nos garante as conquistas. Temos consciência de que, da mesma forma como aconteceram em outras oportunidades, é a nossa organização que vai garantir a implementação e o avanço desta política”, declarou. (AR)
Lula assina decreto durante encontro com o MAB
Plataforma operária e camponesa da energia O documento é um conjunto de propostas dos movimentos sociais de São Paulo (SP) Durante a solenidade de assinatura do decreto, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) entregou para o presidente Lula a Plataforma Operária e Camponesa. O documento é um conjunto de propostas formuladas pelos movimentos sociais da Via Campesina, Federação Única dos Petroleiros (FUP), Federação Nacional dos Urbanitários (FNU) e por sindicatos de eletricitários, que apontam linhas para que a energia esteja, de fato, a serviço do povo brasileiro. Na oportunidade, Joceli Andrioli criticou a entrega do setor elétrico para as empresas privadas durante a onda de privatizações dos anos 1990. Segundo ele, é necessário retomar o setor elétrico sob controle do povo brasileiro, e essa é uma luta de toda a sociedade. Alerta “O MAB e os demais movimentos e organizações que elaboraram a plataforma estarão atentos para os compromissos do novo governo e esperam que, de agora em diante, os atingidos por barragens e a sociedade em geral tenham mais participação nas definições da política energética nacional”, complementou. (AR)
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Desconstruir o preconceito contra o nordestino RACISMO Para Luiza Erundina, é preciso “paciência histórica” para vencer esse mal arraigado em setores da sociedade brasileira Reprodução
Eduardo Sales de Lima da Redação A ESTUDANTE DE direito Mayara Petruso clamou, por meio de uma rede social na internet, por um assassinato em massa. “Nordestino não é gente, faça um favor a São Paulo, mate um nordestino afogado!”. A moça proferiu isso por conta da vitória de Dilma Rousseff (PT) nas eleições presidenciais, atribuindo sua vitória ao voto dos nordestinos. A atitude dela, entretanto, apenas traça uma caricatura histórica de alguns setores da sociedade brasileira, especialmente o sulista. É de muito que a infelicidade do preconceito encontra eco nas classes médias e elites do país. Um exemplo disso. Diogo Mainardi, no artigo “Com Dilma, o PT chega em quinto”, escrito para a revista Veja, esbaldouse da visão racista do jornalista carioca Euclides da Cunha (autor de Os sertões, morto em 1909) para criticar o povo brasileiro e nordestino. Diz o texto de Mainardi: “analisando a campanha de Canudos, Euclides da Cunha delineou perfeitamente o caráter nacional”. O articulista de extrema-direita, ao criticar a vitória de Dilma Rousseff e a continuidade do governo petista, capitaneado com relativo sucesso por um pernambucano, afirma que Euclides da Cunha compreende a mente e o comportamento dos brasileiros quando assemelha os seguidores de Antônio Conselheiro a “retardatários”, dotados de uma “moralidade rudimentar” e com uma série de “atributos que impediam a vida num meio mais adiantado e complexo”.
“Me chamavam de ‘nega preta’ e ‘nega encardida’; eu queria voltar para minha casa, na Bahia, e não ir mais para a escola” Construção
Como testemunha viva da história recente brasileira, o sociólogo pernambucano e professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) Chico de Oliveira, que trabalhou na Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) ao lado do economista Celso Furtado, cita um exemplo e elucida ainda mais o papel de figuras da elite brasileira e paulista na construção do preconceito em relação aos nordestinos. “Eu ouvi de Júlio de Mesquita Filho, na minha cara e na cara de Celso Furtado, há quarenta anos, num seminário promovido aqui em São Paulo, dizer que
Cena do Filme O Homem que Virou Suco, dirigido por João Batista de Andrade em 1981
os esforços para desenvolver e industrializar o Nordeste eram em vão, porque o nordestino não tinha mentalidade para a indústria”, conta. Tratava-se, segundo Chico, de uma afirmação, antes de tudo, racial. “Era um líder do jornal Estado de S. Paulo, e o pior é que o Estadão fez a cabeça de metade dos paulistas”, diz. De fato, anos após a infeliz manifestação de Júlio de Mesquita Filho, ou das ponderações de Euclides da Cunha em Os sertões, o preconceito contra o nordestino arraigou-se não apenas na elite, segundo comprova a recepcionista baiana Juciara Nascimento da Silva, de 25 anos, que vive no bairro do Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, há seis anos. Logo que chegou a São Paulo (SP), Juciara cursou o primeiro ano do ensino médio no Colégio Davi Aguiar Dias, no bairro onde mora. Ela revela que o fato de ser baiana e negra foi primordial para ser um dos alvos principais de gozação da turma. “Me chamavam de ‘nega preta’ e ‘nega encardida’; eu queria voltar para minha casa, na Bahia, e não ir mais para a escola”, conta. Como o preconceito é, sobretudo, ideológico, segundo nos afirma a ex-prefeita de São Paulo e atual deputada federal reeleita pelo PSB (SP), Luiza Erundina, nem sempre ele aparece de forma explícita. “As próprias piadas e certas rea-
ções jocosas, aparentemente inofensivas, são expressão desse preconceito arraigado e incorporado em nosso comportamento”, salienta Erundina. Segundo ela, que é paraibana, ninguém está isento disso: “até mesmo nós, eventualmente vítimas desse tipo de comportamento, nos pegamos tendo reações que o reafirma”, pontua. Desconstrução
Luiza Erundina pondera que os últimos atos de agressividade empenhados contra nordestinos – surgidos, sobretudo, no estado de São Paulo –, como o da estudante de direito, ocorrem em momentos mais “agudos” da história, de mudança. Ela lembra que o Brasil foi governado por oito anos por Lula, e, agora, terá como presidente uma mulher. Para a deputada, acontecimentos que fogem dos padrões provocam manifestações ideológicas, de intolerância contra o diferente – “do ponto de vista de raça, de gênero, de origem, de classe social” – que “ousa ocupar espaços historicamente ocupados por determinados segmentos da sociedade”. Veio, então, uma sacada, com o fim de reforçar a desconstrução do preconceito contra o nordestino. Segundo conta Erundina, ela nunca se sentiu diminuída ou humilhada por sofrer preconceito. Ao
contrário. “Fiz dessas questões das quais eu era vítima um pretexto para reforçar minha participação na luta contra o preconceito e a discriminação”, salienta. Para ela, “se ficarmos recolhidos, vitimizados ou diminuídos, estaremos contribuindo para a reprodução dessa cultura que precisa ser mudada. E cultura não se muda nem por lei, nem por vontade de um e de outro, mas é uma mudança de mentalidade de uma maioria de determinada sociedade”, explica a paraibana.
“Cultura não se muda nem por lei, nem por vontade de um e de outro, mas é uma mudança de mentalidade de uma maioria de determinada sociedade” A baiana Juciara engrossa o coro com a ex-prefeita e atesta que, quando retornar à sala de aula para completar o segundo e o terceiro anos do ensino médio, nenhum tipo de ato preconceituoso vai incomodá-la. O conselho da paraibana à baiana e a todos os brasileiros afeitos à tolerância é: “temos que ter paciência histórica, como dizia Paulo Freire, e não nos sentir diminuídos; temos que travar essa luta”.
Status, patrimonialismo e preconceito
Paraibana, primeira prefeita de São Paulo
Traços de formação de elite paulista revela parte da origem do preconceito contra o “diferente”
Luiza Erundina pede para que os nordestinos não se sintam vitimizados
da Redação De acordo com a antropóloga Bernadete Castro, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, as classes médias mais reacionárias do estado de São Paulo compreendem, em grande parte, as classes médias ascendentes e a terceira e quarta gerações de imigrantes europeus, como italianos e portugueses, por exemplo. Sobre as últimas, a antropóloga conta que são famílias oriundas de uma aristocracia rural que tiveram como herança o apossamento das terras e de riquezas durante o Brasil Colônia e o Império. “Antes, as terras não eram deles. Eles vão conseguindo formar um patrimônio muito grande a partir dessa possibilidade de se apossar das terras do reino e da Lei de Terras de 1850”, conta, fazendo referência à legislação que determinava que as terras brasileiras só poderiam ser ocupadas mediante sua compra, enquanto os que já as ocupavam teriam garantido o título de proprietários. Tal norma impossibilitaria a posse da terra aos ex-escravos, que não tinham como pagar por ela. De acordo com Bernadete, essas famílias tradicionais, se não têm terras, possuem grandes patrimônios imobiliários. Para ela, é a partir desse enfoque prote-
cionista e patrimonialista que essas classes médias desenvolvem suas visões sobre os outros imigrantes, os índios e os negros. “Vão desenvolver um preconceito contra os próprios imigrantes num primeiro momento, e depois, alimentados por um passado escravagista, emerge um racismo contra o índio e o negro. E o nordestino, como é o mestiço nisso tudo, sofrerá um preconceito pior ainda”,
Para Bernardete Castro, é a partir desse enfoque protecionista e patrimonialista que essas classes médias desenvolvem suas visões sobre os outros imigrantes, os índios e os negros explica Bernadete. Segundo ela, isso tudo desemboca numa xenofobia contra todos aqueles que não têm o mesmo status e a mesma presença na estrutura social brasileira que essas famílias. (ESL)
da Redação Luiza Erundina de Sousa é de Uiraúna, na Paraíba. Ele foi eleita a primeira prefeita de São Paulo (SP), pelo PT, em 1988. Atualmente, exerce o cargo de deputada federal pelo estado de São Paulo pelo PSB. “Eu sofri preconceitos e até hoje sofro, numa dimensão muito menor que há vinte anos, porque hoje eu não ameaço o poder machista, patriarcal de ninguém”, salienta. Segundo ela, o fato de ser nordestina foi apenas mais um elemento que potencializou reações preconceituosas logo após sua vitória nas eleições para a Prefeitura paulistana. “O que ajudou também foi o fato de eu ser mulher, de esquerda, com história de luta e de resistência à ditadura civil-militar e ao próprio machismo”, explica.
“Eu sofri preconceitos e até hoje sofro, numa dimensão muito menor que há vinte anos, porque hoje eu não ameaço o poder machista, patriarcal de ninguém”
Ela conta que no primeiro ano do governo foi forçada, por orientação de equipe de segurança do gabinete da prefeitura, na época, a “evacuar”, ou seja, a não sair pela porta da frente da Prefeitura. Isso porque havia ameaças de atentados e de bombas contra ela, segundo conta. “Até que chegou o momento que eu disse: ‘vamos sair daqui pela frente, mesmo que estoure’; porque era a tentativa de inviabilizar o governo”, lembra. Fezes
A ex-prefeita de São Paulo revela que, apesar de nenhum ato mais violento têla atingido, em muitas ocasiões, sobretudo no primeiro ano do governo, recebia correspondências com fezes dentro delas. “Isso não foi uma ou duas vezes, foram diversas vezes. E dentro estava escrito: ‘Vá embora, nordestina nojenta’, ‘Por que você não vai fazer política na sua terra’?”. A ex-prefeita de São Paulo pondera, entretanto, que não se pode generalizar as coisas. “Dizer que é o paulista, o paulistano, que se comporta dessa forma intolerante não é certo. Até porque, no meu caso, nordestina, tive oportunidade há vinte anos de ser eleita justamente nessa cidade, caracterizada pela pluralidade étnica, cultural, uma diversidade muito grande, que também dá oportunidade aos que migram para cá”, conclui.
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Cólera, furacão e lucro Fotos: British Red Cross
HAITI A tônica da atuação da comunidade internacional parece ser a de combater as consequências das tragédias e fechar os olhos para suas causas Thalles Gomes de Maceió (AL) “PRECISAMOS absolutamente deste dinheiro o mais rápido possível para evitar que sejamos superados por esta epidemia. Todos os esforços de combate à doença podem se tornar inúteis a menos que a verba seja angariada”. Esse apelo categórico foi pronunciado em 12 de novembro por Elisabeth Byrs, porta-voz do Escritório para a Coordenação de Assuntos Humanitários da Organização das Nações Unidas (ONU). A quantia a que ela se refere é o montante de 163,9 milhões de dólares que, segundo a ONU, seria necessária para controlar a epidemia de cólera que se propaga no Haiti desde meados de outubro e que matou, até momento, mais de 900 pessoas, além de infectar outras 14 mil. As palavras de Byrs se somam à recente declaração do Departamento de Saúde da Flórida, estado estadunidense que possui mais de 240 mil migrantes de origem haitiana. A preocupação das autoridades sanitárias é com a possibilidade da epidemia se alastrar para outros países vizinhos, inclusive os EUA. Segundo a página oficial na internet do departamento, “a cólera não se espalha tão facilmente em países desenvolvidos como os EUA, mas queremos assegurar que não deixaremos situações de alto risco passarem despercebidas, como a cólera em alguém que manipule alimentos, ou focos isolados”. Controlar a epidemia e evitar a propagação da doença para fora das fronteiras haitianas é a preocupação atual da ONU e das ONGs estrangeiras presentes na ilha. De fato, essa parece ser a tônica da atuação da comunidade internacional no país: combater as consequências das tragédias e fechar os olhos para suas causas. Cólera
Cólera é uma infecção intestinal aguda causada por uma bactéria chamada vibrio cholerae, que se transmite pela ingestão de água ou alimentos contaminados, principalmente, por fezes de pessoas infectadas. Apesar de alcançar proporções epidêmicas em regiões empobrecidas da África e Ásia, até o início de outubro passado nenhum caso de cólera havia sido registrado em território haitiano, segundo informações de Claire-Lise Chaignat, chefe do grupo de controle global da cólera da Organização Mundial de Saúde (OMS). Não há ainda um consenso a respeito da origem da epidemia, que se tornou evidente a partir do dia 20 de outubro quando dezenas de pacientes começaram a morrer com febre alta e diarreia num hospital da cidade de Saint Marc, departamento de Lartibonite. A principal suspeita dos especialistas é a de que a enfermidade tenha vindo do estrangeiro e se difundido pelo país através da contaminação do rio Lartibonite. A Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) destacou, em comunicado oficial, “a dificuldade, inclusive a impossibilidade” de saber como a cólera chegou ao país, visto que foi comprovado que o microorganismo que causou a epidemia é igual ao encontrado na Ásia meridional. No entanto, entre a população haitiana, as suspeitas recaem justamente sobre os soldados da própria Minustah, especificamente um batalhão oriundo do Nepal, país asiático onde a cólera é endêmica. Localizado no município de Mirebalais, a poucos quilômetros de Saint Marc e às margens do rio Lartibonite, o atual contingente de soldados nepaleses chegou ao Haiti nos primeiros dias de outubro, depois de um novo surto de cólera ter atingido seu país de origem. Edmonde Suplice Beauzile, senadora do departamento haitiano de Plateau Central, solicitou uma investigação sobre a responsabilidade da Minustah na propagação da epidemia. Para Beauzile, os soldados nepaleses “contaminaram o rio, causando a morte de muitas pessoas. Pedimos à Minustah que solicite a um organismo independente a abertura de uma investigação”. Confirmada essa hipótese, a missão verá sua função de “estabilização do Haiti” novamente comprometida, justamente quando seu mandato foi renovado por mais um ano durante a última reunião do Conselho de Segurança da ONU, ocorrida em 15 de outubro. Ocupando o território haitiano desde 2004, quando foi criada sob o pretexto de que o Haiti representava “uma ameaça à paz e à seguran-
163,9
milhões de dólares é a quantia necessária, segundo a ONU, para controlar a epidemia de cólera no Haiti
ça da região” – sendo necessário, portanto, o envio de uma força militar de ocupação para conter as mobilizações populares depois da derrubada violenta do então presidente Jean Bertrand Aristide –, a Minustah passa, hoje, por uma de suas maiores crises de legitimidade. Durante os últimos seis anos, foram recorrentes as denúncias de tortura, estupro e assassinato. Além disso, passados dez meses desde o terremoto que abalou o país em 12 de janeiro de 2010, as tropas da ONU ainda não foram capazes de dar uma resposta eficaz às vitimas. Ruínas e acampamentos improvisados tomam as ruas da capital Porto Príncipe, mas não se vê nenhuma movimentação por parte das tropas militares para a retirada dos escombros e início da reconstrução de prédios e edifícios. E, por fim, a cólera.
Passados dez meses desde o terremoto que abalou o país em 12 de janeiro de 2010, as tropas da ONU ainda não foram capazes de dar uma resposta eficaz às vitimas Furacão
Com a aceleração da epidemia nos últimos dias, a previsão é de que “um total de até 200 mil pessoas deverão ter os sintomas da cólera, indo dos casos de leve diarreia até a desidratação mais grave”, informou a porta-voz da ONU, Elizabeth Byrs, que completa: “Espera-se que os casos surjam numa explosão de epidemias que ocorrerão subitamente em diferentes partes do país”. Na cidade de Gonaives, foram registradas ao menos 60 mortes por cólera.
Haitianos são socorridos em tenda improvisada pela Cruz Vermelha em Porto Príncipe
Na capital Porto Príncipe, onde mais de um milhão de desabrigados do terremoto vivem em acampamentos sem as condições mínimas de saneamento, 27 óbitos foram causados pela epidemia. “Porto Príncipe é uma imensa favela onde as condições são muito ruins em relação às instalações sanitárias e de água. São as condições perfeitas para uma propagação rápida da cólera”, afirmou Jon K. Andrus, subdiretor da Organização PanAmericana de Saúde (OPS). Para agravar ainda mais a situação, no dia 5 de novembro, o furacão Tomas alcançou o território haitiano, afetando, principalmente, as regiões noroeste e sul do país, deixando ao menos 21 mortos e cerca de 6 mil famílias desabrigadas. As chuvas e inundações causaram deslizamento de terra, bloqueando diversas estradas e inundando o rio Lartibonite, suspeito de ser o principal foco da epidemia de cólera. Os relatos são de que os estragos nas áreas agrícolas foram enormes, gerando perdas que podem chegar a 70% dos cultivos como banana, milho e feijão, que formam a base da alimentação local. De acordo com o historiador José Luis Patrola, que coordena a Brigada Dessalines de cooperação entre a Via Campesina Brasil e as organizações camponesas do Haiti, “os problemas causados pelo furacão terão maior efeito nos próximos dois meses, quando a falta de comida atingirá outra vez os camponeses pobres dessas duas regiões consideradas as mais isoladas e abandonadas do país”. (Leia a entrevista com Patrola na página 10) Este não é o primeiro furacão a assolar o território haitiano. Entre os meses de setembro e outubro de 2008, as passagens do furacão Gustav e da tempestade tropical Hanna deixaram mais de 500 mortos e milhares de desabrigados. Patrola ressalta que “cada ciclone ou furacão que costuma atingir a região do Caribe nessa temporada tem maior impacto sobre o Haiti, que vive um grave problema de desmatamento, acompanhado de técnicas agrícolas predatórias ao meio ambiente que levarão a um caos generalizado caso o problema não se resolva de maneira sólida e estrutural”. O desmatamento no Haiti já destruiu mais de 95% das matas originais, e a principal fonte de energia do país – utilizada por mais de dois terços da população – ainda é o carvão vegetal.
“Minustah equivale a cólera e miséria”, avisa cartaz em protesto na capital haitiana
Lucro
“Foi preciso mais uma catástrofe para evidenciar o problema e fazer com que o Estado e a ‘comunidade internacional’ abrissem os olhos para tamanha vulnerabilidade da população pobre. Esta epidemia deveria envergonhar aqueles que ‘ajudam’ o Haiti há muitos anos e que, mesmo assim, não mudaram o dado de que mais de 90% dos camponeses consomem água suja”, denuncia Patrola. De fato, a atual epidemia de cólera, os estragos do furacão Tomas e as milhares de mortes causadas pelo terremoto de 12 de janeiro são consequências dos graves problemas estruturais que levam a maioria da população haitiana a uma vulnerabilidade permanente. O Haiti é, hoje, a nação mais pobre do continente americano, com 56% da população abaixo da linha da pobreza e com uma expectativa de vida de 58,1 anos. No país, a miséria já existia antes de qualquer terremoto, furacão ou cólera.
“O Estado haitiano e a comunidade internacional deverão pensar o Haiti sob outra ótica que não a das permanentes tragédias que aqui ocorrem” Ao não lidar com os problemas estruturais, atuando para amenizar as consequências das tragédias ao invés de buscar combater suas causas, o Estado haitiano e a comunidade internacional transformam as catástrofes naturais e a miséria no Haiti numa fonte inesgotável de lucros. Aos 163,9 milhões de dólares demandados pela ONU para combater a atual epidemia de cólera, podemos somar os 126 milhões que a agência estadunidense Usaid está investindo no campo haitiano, os 9,9 bilhões de dólares para a reconstrução do país pós-terremoto prometidos por Bill Clinton e seus doadores, os 3,6 bilhões consumidos para manter as tropas da Minustah no país e os 7,5 milhões de dólares gastos mensalmente somente com o aluguel dos banheiros químicos para os desabrigados em Porto Príncipe. É essa atitude que explica a situação paradoxal de o Haiti ser o país mais pobre das Américas mesmo sendo o maior destinatário da ajuda internacional no mundo. 60% do PIB haitiano é oriundo de verbas estrangeiras que, assim como os furacões e ciclones, apenas “passam” pelo território haitiano, mantendo a infraestrutura e os altos salários dos funcionários da ONU e das milhares de ONGs, sem chegar às mãos da população e sem alterar as condições socioeconômicas do país. “O Estado haitiano e a comunidade internacional deverão pensar o Haiti sob outra ótica que não a das permanentes tragédias que aqui ocorrem”, aponta José Luis Patrola, que conclui: “Ou pensamos a ajuda ao Haiti desde um ponto de vista de resolver problemas estruturais ou viveremos grandes espetáculos midiáticos acompanhados de grande propaganda sobre doações para ajudas emergenciais. Por dois ou três anos em seguida, as catástrofes retornarão e veremos o mesmo espetáculo da tragédia se repetindo”.
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“Foi preciso mais uma catástrofe para evidenciar o problema no Haiti” ENTREVISTA Para José Luis Patrola, membro da Brigada Dessalines de cooperação entre a Via Campesina Brasil e as organizações camponesas haitianas, surto de cólera no país comprova a vulnerabilidade estrutural de sua população Thalles Gomes de Maceió (AL) EM ENTREVISTA ao Brasil de Fato, o historiador José Luis Patrola, membro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e coordenador da Brigada Dessalines de cooperação entre a Via Campesina Brasil e as organizações camponesas haitianas, dá um panorama sobre a epidemia de cólera que atinge o Haiti e debate os problemas estruturais que contribuíram para o alastramento da doença. Brasil de Fato – Vivendo no departamento de Lartibonite, foco principal da atual epidemia de cólera no Haiti, como vocês, da Brigada da Via Campesina, analisam a situação dessa região? Há hospitais suficientes? A população camponesa está tendo acesso aos medicamentos?
José Luis Patrola – No interior da brigada, não chegamos a fazer um debate mais profundo a respeito da atual epidemia, pois estamos trabalhando em vários Estados do país. Tratamos apenas de seguir rígidas medidas de prevenção, já que não somos especializados na ajuda aos milhares de afetados. O Haiti sofre com vários problemas estruturais que levam a grande maioria da população a uma vulnerabilidade muito grande e permanente. Uma das vulnerabilidades é a qualidade da água consumida pela população pobre e a evidente falta de qualidade dos alimentos. O problema da qualidade da água consumida, em larga medida pelos camponeses, é o principal motivo do surto mortal da cólera que, segundo os últimos dados, já matou mais de 800 pessoas e registrou cerca de 11 mil hospitalizações. A grande maioria dos mortos e afetados pela cólera é formada por camponeses que consumiram a água contaminada na região de Lartibonite, local da principal base da Brigada da Via Campesina. Os hospitais da região estão lotados desde há um mês. A precariedade dos serviços de saúde e de informações a esse respeito evidencia outra
Reprodução
grande vulnerabilidade vivida pela população haitiana que depende, em larga medida, da ajuda internacional para assegurar medicamentos e materiais de prevenção. Qual a atuação do Estado haitiano para lidar com essa epidemia? E em relação aos outros agentes internacionais, como a Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, comandada pelo Brasil) e as ONGs, como se dá seu trabalho neste momento de crise?
Todo o sistema de saúde haitiano, incluindo o próprio ministério da área, há muito tempo se encontra muito fragilizado. E as estruturas existentes são limitadas para resolver os problemas rotineiros da população. Em caso de uma epidemia que está se generalizando, a dependência externa aumenta. Foi preciso mais uma catástrofe, que não sabemos para onde vai, para evidenciar o problema e fazer com que o estado e a “comunidade internacional” abrissem os olhos para tamanha vulnerabilidade da população pobre. Existem muitas ONGs sérias que realmente trabalham com o tema sob uma perspectiva estrutural. No entanto, o bombardeio internacional de informações sobre a epidemia deveria envergonhar aqueles que “ajudam” o Haiti há muitos anos e que, mesmo assim, não mudaram o dado de que mais de 90% dos camponeses consomem água suja. Significa que o Estado haitiano e a comunidade internacional deverão pensar o Haiti sob outra ótica que não a das permanentes tragédias que aqui ocorrem. Ou pensamos a ajuda ao Haiti desde um ponto de vista de resolver problemas estruturais ou viveremos grandes espetáculos midiáticos acompanhados de grande propaganda sobre doações para ajudas emergenciais. Por dois ou três anos seguidos, as catástrofes retornarão e veremos o mesmo espetáculo da tragédia se repetindo.
O furacão Tomas também assolou o Haiti na semana passada. Quais as informações que se têm sobre os
Esgoto a céu aberto em rua da capital do Haiti
danos causados?
O furacão Tomas afetou o sul e o noroeste do país. Trabalhamos em dois estados dessas duas regiões afetadas e os relatos são de que os estragos nas áreas agrícolas foram enormes, gerando perdas que podem chegar a 70% de cultivos como banana, milho e feijão, que formam a base da alimentação. Dessa maneira, os problemas causados pelo furacão terão maior efeito nos próximos dois meses, quando a falta de comida atingir outra vez os camponeses pobres dessas duas regiões consideradas as mais isoladas e abandonadas do país. Cada ciclone ou furacão que costuma atingir a região do Caribe nessa temporada tem maior impacto sobre o Haiti, que vive um grave problema de desmatamento acompanhado de técnicas agrícolas predatórias ao meio ambiente que levarão a um caos generalizado caso o problema não se resolva de maneira sólida e estrutural.
Mesmo diante de todos esses problemas, as eleições presidenciais e legislativas do dia 28 de novembro estão mantidas? Como está a disputa eleitoral? Há possibilidade de esvaziamento das urnas diante dessa crise?
As eleições estão confirmadas e elas
ocorrerão, a não ser que a epidemia da cólera se amplie de forma generalizada em níveis extremos e ultrapasse o atual estágio, que é muito grave. Devido ao terremoto de 12 de janeiro, nenhum cargo eletivo público estará completo ou de acordo com a Constituição a partir do final do ano. Então, as eleições são necessárias para minimamente organizar essa situação de desordem generalizada.
“O Haiti sofre com vários problemas estruturais que levam a grande maioria da população a uma vulnerabilidade muito grande e permanente” Qual o posicionamento dos movimentos sociais haitianos diante da conjuntura atual do país?
De maneira quase unânime, o movimento camponês organizado decidiu não participar efetivamente do processo eleitoral e a tendência é termos um pleito bastante insignificante, sem perspectivas de grandes alterações na política econômica e social do país e distante do debate sobre os problemas estruturais do país.
BOLÍVIA
“As Forças Armadas se inclinaram a uma posição muito identificada com o processo” ENTREVISTA De acordo com o sociólogo Eduardo Paz Rada, a declaração do comandante-geral do Exército de que a instituição é socialista e anti-imperialista é uma resposta à atenção recebida durante a gestão Evo Vinicius Mansur correspondente em La Paz (Bolívia) DURANTE AS comemorações do bicentenário do Exército da Bolívia, o comandante-geral da instituição, general Antonio Cueto Calderón, surpreendeu a todos ao qualificá-la como socialista e antiimperialista. Eduardo Paz Rada, diretor do curso de sociologia da Universidade Mayor de San Andrés (UMSA), a universidade pública de La Paz, analisa, em entrevista ao Brasil de Fato, o comportamento e as mudanças nas Forças Armadas (FA) nestes quase cinco anos de governo Evo Morales. Brasil de Fato – Como você vê a autodefinição do Exército boliviano como socialista, comunitária, anticapitalista e anti-imperialista?
Eduardo Paz Rada – O que está claro é que as Forças Armadas [FA], nos anos de governo Evo Morales, se inclinaram a uma posição muito identificada com o processo, com os movimentos populares. Elas praticamente coadjuvaram plenamente com as ações do governo, sobretudo em suas medidas contra a Usaid [órgão estadunidense de financiamento ao desenvolvimento], a embaixada dos EUA e a presença da DEA [Agência Antidrogas dos EUA, por sua sigla em inglês). Isso foi um marco histórico importante e de acompanhamento ao processo social. Entretanto, em relação à declaração específica, creio que é excessiva, excede o que a própria Constituição sinaliza. A nova Constituição não dá um salto tão vertiginoso, e o socialismo não é um discurso, é toda uma construção que tem outros ingredientes. A declaração parece
buscar a consolidação do atual Alto Comando Militar, até porque também há uma renovação nos quadros militares de tipo geracional. Muitas autoridades não se atreveriam a dizer que se vive um processo socialista, ainda que haja elementos que podem permitir impulsionar processos desse tipo. O que explica a lealdade das FA ao atual processo político?
Evo Morales deu a atenção que antes não se havia dado às FA. Durante todo o período neoliberal, elas foram maltratadas econômica e institucionalmente. Evo as reposicionou e aumentou consideravelmente o investimento. E, aí, há uma resposta a esse respaldo. As FA foram muito importantes nas nacionalizações mineiras e petroleiras, por exemplo. E, nesses cinco anos de governo, Morales, um espírito nacionalista, que é a característica genérica desse processo, se impregnou muito nas FA. Além disso, Morales tem um carisma especial na sua relação com as tropas, com a base dos militares, e acho que isso afiança sua relação com as FA. Já há uma identificação “pele à pele” desta base, que vem de setores populares, com o presidente. Além disso, o Evo foi muito hábil. Durante esses anos, ele visitou regularmente a maioria das unidades militares para tomar café da manhã, almoçar, dormir nos quartéis, junto com as bases militares. Além disso, existe a experiência de delegações de movimentos populares que puderam receber instruções militares nos quartéis em períodos curtos.
A experiência da esquerda com os militares, especialmente na América Latina, é muito traumática. Mesmo
diante de um histórico recente de fidelidade militar na Bolívia, as FA lhe parecem dignas de tamanha confiança?
Eu não descarto que nas FA existam setores organizados que sofrem a influência do que foi toda a estratégia dos EUA para a América Latina. Entretanto, acho que foram tomadas medidas, em relação a esses setores, que foram controlados internamente e que estão muito isolados nesse momento. Por outro lado, as FA bolivianas são diferentes em sua composição em comparação com Chile, Argentina ou Brasil, onde elas são institucionalmente muito consolidadas. Na Bolívia, elas são menos arraigadas a interesses de alguma oligarquia débil ou uma burguesia. Talvez esse elemento, o de não existir uma burguesia poderosa, torna débil a relação orgânica nesse sentido. Creio ser o processo político mesmo que está empurrando fortemente as FA a essa tomada de posição. O tema crucial é que elas não atuarão de maneira independente enquanto houver um movimento popular forte respaldando o Evo Morales. Provavelmente, caso se vá debilitando esse apoio – o que eu creio que está acontecendo, pois há um certo fracionamento do movimento popular, certas dúvidas em relação ao Evo Morales – as FA começarão a ter papéis mais protagonistas.
A proximidade do Executivo com as FA pode ser um perigo para a investigação de crimes cometidos pela ditadura militar?
Sem dúvida. Porque nas FA há um forte espírito institucional. Ainda que se tenha avançado muito nesse sentido, em alguns casos há um certo atraso dos che-
fes militares em dar mais informações, em abrir seus arquivos reservados. Isso porque muitos desses militares estiveram no período ditatorial e ainda estão em algum nível de mando ou têm alguma influência. Entretanto, acho que, com o passar do tempo, vão ter que abrir todos os arquivos e, assim, esclarecer os crimes. Por fim, o senhor destacaria alguma outra recente mudança importante nas FA bolivianas?
São importantes as mensagens dadas sobre a vontade de se integrar a essa proposta de força militar latino-americana. Proposta que já foi falada em reuniões da Unasul [União das Nações Sul-Americanas] e da Alba [Alternativa Bolivariana para as Américas]. É muito importante, porque acho que seria a única maneira de gerar forças armadas latino-americanas, em correspondência com o processo de mudanças, e romper as relações orgânicas com os EUA. Sobretudo no momento em que se está em curso uma política de blocos em nível mundial, aqui isso pode ter uma importância especial, especialmente em temas como as bases militares estadunidenses que há em alguns países e o das Malvinas, que logo vai explodir. Há petróleo ali e a Inglaterra está interessada em intervir nisso. O governo argentino rechaçou, o brasileiro e o uruguaio também. Há versões de que a Inglaterra não está preparada para responder a uma tomada das Malvinas por parte da Argentina. E se a Argentina tem respaldo das FA de seus vizinhos, seria muito diferente do que ocorreu em 1982, quando a recuperação das Malvinas foi revertida pela Inglaterra, apoiada pelos Estados Unidos.
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áfrica
O regime marroquino arrasa a luta pela igualdade no Saara Ocidental DIREITOS HUMANOS A repressão ao acampamento de Agdaym Izik marcou o processo de conversações entre Marrocos, saarauís e a ONU fixado para o fim do mês nos EUA Reprodução
Héctor Rojo Letón de Madrid (Espanha) CINCO MARROQUINOS mortos, segundo o governo marroquino, e 19 saaráuis, segundo cifras oficiais da República Árabe Saaráui Democrática (Rasd), além de 159 pessoas desaparecidas e 723 feridas, é o resultado do despejo do acampamento Agdaym Izik, localizado nas redondezas da cidade de El Aaiún, por parte das Forças Armadas marroquinas, em 8 de novembro. Terminar de fazer essa contagem levará dias, já que os enfrentamentos voltaram depois dos enterros que se produziam na manhã de 9 de novembro na capital do Saara Ocidental. A cidade saaráui foi tomada depois do despejo do acampamento por militares, policiais e colonos armados marroquinos. Dessa forma, é muito difícil para a população saaráui saber, de forma certeira, o paradeiro de seus conhecidos, como narra ao Diagonal, desde El Aaiún, Silvia García, integrante do grupo de defesa dos direitos humanos Thawra. Desde meados de outubro, nas cercanias de El Aaiún, ocupado por Marrocos, havia se organizado um acampamento para protestar pelo fim da discriminação contra os saaráuis, a igualdade de oportunidades, o acesso a trabalho e moradia dignos, a liberdade de expressão e o respeito aos direitos humanos nos territórios ocupados por Marrocos desde 1975. Pela primeira vez, cerca de 20 mil pessoas realizavam um protesto contínuo de mais de 20 dias, desde que a Espanha abandonara o território, e, pela primeira vez, o direito à autodeterminação da população saaráui não primava sobre o resto das reclamações. “O que Rabat não entendeu na ocasião da primeira intifada, de 2005, e continua sem entender, é que não enfrenta mais um grupo político surgido do não cumprimento das promessas por parte da antiga potência colonial, e sim jovens nascidos já sob a administração marroquina que reivindicam o que deveria ser normal”, explicou à imprensa Antoni Segura, catedrático de História Contemporânea da Universitat de Barcelona. “Essa é uma nova forma de resistência e de reivindicação dos direitos dos recursos que o Marrocos rouba no Saara Ocidental. A população autóctone sabe que lhe estão tirando os benefícios de sua terra”, afirma Pepe Taboada, presidente da Coordenadora Estatal de Associações Solidárias com o Saara Ocidental (Ceas).
“Com o despejo do acampamento, o Marrocos pretendeu romper as negociações e nos acusar, caso não sentássemos a conversar, de sermos os responsáveis por tal rompimento” Visibilidade
A greve de fome da ativista pró-independência Aminetu Haidar no aeroporto de Lanzarote [Ilhas Canárias, Espanha] no fim de 2009, deu visibilidade à batalha pelos direitos da população saaráui nos territórios ocupados (leia sobre a greve de fome de Aminetu nas edições 352, 355 e 356 do Brasil de Fato). “Graças também à ajuda das novas tecnologias, porque as reivindicações e protestos saaráuis sempre existiram, assim como a repressão marroquina”, pontua Taboada. Enquanto isso, no deserto argelino, cerca de 150 mil pessoas vivem refugiadas em cinco acampamentos desde que o Marrocos tomou militarmente a antiga colônia espanhola em 1975. A Marcha Verde [nome dado à ofensiva militar do reino marroquino que ocupou o Saara Ocidental] cumpriu, nos primeiros dias de novembro, 35 anos. E, ainda que não se possa comparar, de novo a monarquia marroquina “deu à intervenção militar uma cobertura civil, para encobrir suas ações”, explicou ao Diagonal Bucharaya Beyún, o delegado da Frente Polisario [que reúne as forças independentistas saaarauís] no Estado espanhol. “Armaram a população civil, inclusive com uma espécie de facão, para que fossem os colonos os agressores da população saaráui. Tanto policiais como civis estão entrando nas casas e saqueando as lojas de saaráuis em El Aaiún”, narrava por telefone, durante a tarde de 8 de novembro, um saaráui que preferia não revelar sua identidade por temer a espionagem telefônica. Momentos depois, as autoridades marroquinas impunham um toque de recolher que esvaziava as
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saaráuis foram mortos pelas forças de repressão marroquinas em 8 de novembro, segundo cifras da República Árabe Saaráui Democrática
ruas da cidade saaráui, mas que não evitava os saques por parte da polícia e dos colonos. Negociações
Com a chegada da noite a El Aaiún, começaram as conversações informais que, para esse mesmo dia, estavam previstas em Nova York entre Marrocos, a Frente Polisario e a ONU, com a presença de representantes da Mauritânia e Argélia como convidados.
Protesto na Espanha: volta às armas estaria dentro da legalidade internacional
“Não esperamos nada das conversações. Com o despejo do acampamento, o Marrocos pretendeu romper as negociações e nos acusar, caso não sentássemos a conversar, de sermos os responsáveis por tal rompimento”, analisa Bucharaya Beyún. Essa intervenção violenta tentava impedir a discussão da agenda de trabalho que a comunidade internacional tem traçada, que terá seu principal encontro no dia 23 de novembro, denunciam os independentistas. Nesse dia, está previsto que Christopher Ross, representante da ONU para o Saara Ocidental, reúna-se com o Conselho de Segurança das Nações Unidas para informar os avanços na região. Entre os setores que apoiam a Frente Polisario, esperava-se um movimento positivo como resultado das duas últimas viagens de Ross à região e das atuais conversações informais. Ou seja, algo que desbloqueasse a postura marroquina, sustentada especialmente pela França, de não oferecer nada mais além do que a autonomia à população saaráui.
Enquanto isso, como em 1991, a Frente Polisario exige um referendo em que a anexação do Saara Ocidental ao Marrocos, o estatuto de autonomia dentro do reino marroquino ou a independência pudessem aparecer em igualdade de condições nas cédulas de uma consulta sobre a qual se chegou a um acordo após o cessar-fogo há quase duas décadas. Uma exigência respaldada pela legalidade internacional e várias resoluções das Nações Unidas. “Os saaráuis não queremos retomar a luta armada, mas, se for a única saída que tivermos, não nos restará outra opção do que nos preparar”, alertou o delegado do Polisario em Madrid, Espanha. Bucharaya lembra que a volta às armas estaria dentro da legalidade internacional, como forma de defesa diante da ocupação por parte de uma potência estrangeira, ainda que reconheça que existem muitas formas pacíficas de resistência, como demonstrou a população saaráui. (Diagonal) Tradução: Igor Ojeda
“Os saaráuis se defendiam com pedras e com o que encontravam pela frente” Uma das observadoras internacionais que estavam no acampamento Agdaym Izik relata o momento em que as forças marroquinas o destruíram de Madrid (Espanha)
Sem tempo para assimilar o vivido na manhã de 8 de novembro, a observadora de direitos humanos Silvia García, integrante da organização de direitos humanos Thawra, narra ao Diagonal como se produziu o despejo do acampamento Agdaym Izik nas cercanias de El Aaiún, capital do Saara Ocidental. “Perdi todos meus objetos pessoais e documentos. Mas isso não importa, a única coisa que importava era manter minha câmera, e isso consegui”, lembra. Como conseguiu escapar do assédio marroquino? Silvia García – Saí, acho, com o último grupo de mulheres que abandonava a área. Não víamos mais saaráuis atrás de nós. Éramos umas 50 mulheres acompanhadas de crianças e uma pessoa em cadeira de rodas. O problema não foi o caminho de Agdaym Izik a El Aaiún, cheio de efetivos policiais e militares que se riam de nós e nos insultavam. O problema era deixar para trás o massacre que havíamos vivido, além do saque marroquino. Como foi o momento do despejo pelas forças marroquinas? Às 5h30, nos acordaram, porque o alarme tinha disparado. Então, subi ao telhado da barraca para gravar. Uma hora de-
pois, chegou o helicóptero que avisava o início do despejo. Na nossa parte do acampamento, vimos centenas de carros de polícia. Depois, apareceram forças antidistúrbios totalmente equipadas, inclusive com coletes à prova de balas de plásticos que lhes faziam parecer robocops. Eu nunca havia visto policiais assim. Eles iniciaram o ataque com gases lacrimogêneos, que te queimam a cara, te deixam sem respiração e irritam os olhos. Depois de descer do telhado, fugimos até o centro do acampamento, perseguidos pela polícia. Os saaráuis se defendiam com pedras e com o que encontravam pela frente das agressões marroquinas. Então, topamos com outro grande contingente policial e militar. Em um determinado momento, fiquei sozinha e me refugiei na casa do pastor, um dos três edifícios de cimento que havia antes do acampamento. Lá, cerca de 50 mulheres, crianças e alguns garotos mais velhos tentavam impedir que a polícia derrubasse a porta e entrasse. Mas não conseguiram, e tiraram todas de lá, menos os meninos. Estávamos totalmente rodeadas por agentes armados com cassetetes, escudos e, inclusive, com metralhadoras. Tiravam os meninos um por um e, igual o que faziam com outro grupo que víamos ao longe, lhes algemavam e, no chão, os chutavam e golpeavam com os cassetetes. Depois, eles eram levados e ninguém voltava a saber deles. O mais terrível era a impunidade com que passeavam, jogavam
as barracas ao chão e arrasavam com tudo. Quando se foram, vimos dezenas de jipes conversíveis carregados de mantas, agasalhos e qualquer objeto de valor roubados. Quando fomos embora, tudo estava um lixão. Gravei como umas espécies de tratores arrastavam tudo e formavam um monte para, depois, atearem fogo. Ao chegarmos à estrada, tudo estava totalmente militarizado e víamos somente, desde longe, cortinas de fumaça, em Agdaym Izik e El Aaiún. E ao chegarem a El Aaiún, o que encontraram? Tudo estava cheio de pedras, barricadas, coisas incendiadas... Contaram-nos que haviam matado vários saaráuis. A resistência ao despejo do acampamento estava preparada? Estava tudo organizado por comitês: de saúde, limpeza, segurança... a intenção era resistir o maior tempo possível. Por exemplo, havia barracas de segurança entre o muro marroquino e o resto. Durante o despejo, eu estive sempre atrás dos saaráuis que nos defendiam, que lançavam pedras para reter os marroquinos. Mas, de repente, escutamos “vamos, vamos”, porque nos acossavam. Minha melfa [vestido tradicional saaráui] está cheia de sangue. Vi várias pessoas mortas, cabeças abertas, braços totalmente ensanguentados. Teve violência, muita selvageria e brutalidade. (HRL, do Diagonal)