Reprodução
Política
Rumos da integração sul-americana Entrevista exclusiva com o jornalista Pablo Stefanoni
Pág. 9
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Circulação Nacional Ano 8 • Número 409
São Paulo, de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011
R$ 2,80 www.brasildefato.com.br
Nunca antes... Nunca antes na história do Brasil, um operário foi eleito à presidência da República e nenhum teve tanta popularidade. Mas nunca antes a esquerda foi tão desapontada nas suas expectativas de mudanças. Os oito anos de Lula rendem um rico debate, repleto de divergências, que pode ser conferido, a partir desta edição, no Brasil de Fato. Págs. 2, 4, 5 e 6
Entrevista
Regular a mídia, desde abajo Pág. 10 Israel
O estigma de ser mulher Pág. 11 Tucuruí
Progresso seletivo Pág. 8
ISSN 1978-5134
Altamiro Borges
Anita Leocadia Prestes
Leandro Konder
Tucanos privatizam saúde
Legado revolucionário
A natureza humana
Na véspera do Natal, a bancada governista da Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou o projeto de lei que permite às chamadas Organizações Sociais (OSs) a venda de 25% dos serviços do Sistema Único de Saúde. Pág. 3
Luiz Carlos Prestes nasceu em 3 de janeiro de 1898, em Porto Alegre, e faleceu em 7 de março de 1990, no Rio de Janeiro. Desde muito jovem, revelou indignação com as injustiças sociais e a miséria de nosso povo. Pág. 7
Nas atuais condições, podemos – provocadoramente – dizer que os revolucionários não conseguiram, em geral, revolucionar a sociedade, como pretendiam. Mas o jogo ainda não terminou para o time da Utopia Futebol Clube. Pág. 8
2
de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011
editorial
Nunca antes na história deste país NUNCA ANTES NA história deste país, um presidente da República terminou o seu mandato com índices de 87% de popularidade e 80% de aprovação do seu governo, como alcançou o presidente Lula. Não há muito o que comemorar, se for analisado que, desde a chegada da colonização europeia, em 1500, foram poucos e curtos os períodos de governos democráticos em nosso país. Governos ditatoriais e a máxima da República oligárquica (1889 1930), “questão social é caso de polícia”, prevaleceu nos 510 anos de desenvolvimento capitalista nas terras brasileiras. Foram cinco séculos de políticas econômicas voltadas para atender os interesses do mercado externo, enriquecer uma pequena minoria da população e relegar a maioria a viver na pobreza e excluída das decisões políticas do país. Tornou-se indissociável, aqui, desenvolvimento econômico com o aumento da desigualdade social e a repressão popular. Bastou ao governo Lula adotar uma política econômica que, mesmo timidamente, contemplasse os interesses da população e uma política externa que sinalizasse em direção da soberania nacional, juntamente com seu carisma pessoal, para ser aclamado como “o cara” pela opinião pública nacional e internacional.
debate
De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o número de pessoas que viviam na extrema pobreza caiu de 30,4 milhões (2003) para 17 milhões em 2009. Um feito reconhecidamente notável em tão curto espaço de tempo. No entanto, ao considerar que essa multidão apenas deixou de estar na faixa das pessoas que ganham menos de um dólar diário – o que caracteriza a faixa da extrema pobreza – veremos o quão pouco foram beneficiados com a atual política econômica. Não há nada a comemorar, também, ao saber que 8,5% da população brasileira, cerca de 17 milhões de pessoas, sobrevivem com menos de um dólar diário. Erradicar a pobreza exigirá do próximo governo políticas mais ousadas, que promovam reformas estruturais que assegurem desenvolvimento econômico e a distribuição da renda e da riqueza produzida no país. Ao ritmo do governo que encerrou o mandato em 2010, iremos demorar de 15 a 20 anos para o Brasil ficar no nível de desigualdade social de países como Turquia e Tunísia, com uma renda familiar per capita de 100 reais. Um ritmo inaceitavelmente lento para um país que pretende, na próxima década, estar entre as cinco maiores economias mundiais.
É tempo de organizar e elevar a consciência política da população brasileira
Já há um acirrado debate se está ocorrendo ou não um processo de desindustrialização do país. Há argumentos tanto para os que defendem a existência desse fenômeno quanto para os que divergem dessa análise. No entanto, é inegável que há uma perda da participação da indústria na formação do PIB do país. Enquanto, em 1985, a produção da indústria de transformação respondia com 36% do PIB, em 2008 essa participação caiu para 16%. Certamente um dos motivos dessa queda se deve à adoção de políticas econô-
micas que priorizam a exportação de matérias primas ao invés de promover o desenvolvimento das cadeias produtivas de maior valor agregado, que gerem empregos e promovam os desenvolvimentos regionais do país. Até quando a economia do país ficará a reboque dos interesses do agronegócio, que beneficia uma ínfima minoria da população, que está voltada para os interesses do mercado externo, provoca êxodo rural, emprega pouca pessoas no campo e promove verdadeiros desastres ambientais? Há pouco o que comemorar ao olharmos o baixo nível das campanhas eleitorais – a deste ano é exemplar – e das atuações, depois de eleitos, dos parlamentos e governos. Programas apresentados em períodos eleitorais (quando apresentados!) são completamente ignorados pelos governantes eleitos, acentuando a prática dos embusteiros que ocupam cargos políticos. Urge uma reforma política que vá além dos conchavos e acordos que acomodam os interesses, às vezes escusos e muitas vezes espúrios, das siglas partidárias. Uma reforma política que vise a criar condições para o povo fazer história no país e não restringir-se a ser um mero expectador dos acontecimentos políticos. Desafio que exige promover, nas palavras
crônica
Igor Fuser
do presidente do Ipea, Márcio Pochmann, uma profunda reforma agrária, uma efetiva reforma tributária em que os ricos paguem mais impostos e uma ampla reforma social que permita aos pobres serem beneficiados, de fato, com a universalização com qualidade da educação, saúde habitação e transportes. Há desafios gigantescos para o próximo governo que se inicia em 2011. Maiores ainda são os desafios das esquerdas e das forças populares, engajadas nas transformações políticas e econômicas e identificadas com os ideais socialistas. Caberão a elas superar o divisionismo existente, se fazer entender pela população e apresentar propostas políticas que conciliem a necessidade de obter vitórias imediatas com o processo de acúmulo de forças para as transformações revolucionárias. É tempo de organizar e elevar a consciência política da população brasileira. Caso contrário, continuaremos, nos próximos quatro anos, assistindo a quem apresenta as propostas mais radicais, vendo o surgimento de novos líderes “sebastianistas-socialistas” nas próximas eleições e continuaremos nos submetendo aos caprichos da imprensa burguesa para ocupar espaços em seus jornais e fomentar divisões entre nós mesmos.
Marcelo Barros
Gama
O encanto e os riscos do Ano Novo
O Wikileaks, a mídia e o MST OS JORNAIS brasileiros divulgaram, no começo de dezembro, referências ao MST feitas em telegramas sigilosos enviados nos últimos anos por diplomatas estadunidenses no Brasil aos seus superiores em Washington e revelados pelo site Wikileaks. Algumas reflexões podem ser feitas a partir da leitura desse material. 1. A imprensa empresarial brasileira manteve nesse episódio sua habitual postura de hostilidade sistemática ao MST, apresentado sempre por um viés negativo e sem direito a apresentar o seu ponto de vista. Para os jornais das grandes famílias que controlam a informação no país, como os Marinho e os Frias, o acesso a vazamentos da correspondência diplomática representou a chance de lançar um novo ataque à imagem do MST, sob o disfarce da objetividade jornalística. Afinal, para todos os efeitos, não seriam eles, os jornalistas, os responsáveis pelo conteúdo veiculado, e sim os autores dos telegramas. Desrespeitou-se, assim, mais uma vez, um princípio elementar da ética jornalística, que obriga os veículos de comunicação a conceder espaço a todas as partes envolvidas sempre que estão em jogo acusações ou temas controvertidos. Uma postura jornalística honesta, voltada para a busca da verdade, exigiria que O Globo, a Folha e o Estadão mobilizassem seus repórteres para investigar as acusações que diplomatas dos EUA, no Brasil, transmitiram aos seus superiores. Em certos casos, nem seria necessário deslocar um repórter até o local dos fatos. Nem mesmo dar um telefonema ou sequer pesquisar os arquivos. Qualquer jornalista minimamente informado sobre os conflitos agrários está careca de saber que os assentados no Pontal do Paranapanema, mencionados em um dos telegramas, não possuem qualquer vínculo com o MST. Ou seja, os jornais que escreveram sobre o assunto estão perfeitamente informados de que o grupo ao qual um diplomata estadunidense atribui o aluguel de lotes de assentamento para o agronegócio não é o MST. O diplomata está enganado ou agiu de má fé. E os jornais foram desonestos ao omitirem essa informação essencial.
O diplomata está enganado ou agiu de má fé. E os jornais foram desonestos ao omitirem essa informação essencial Esse é apenas um exemplo, revelador da postura antiética da imprensa em todo o episódio. Se os vazamentos do Wikileaks mencionassem algum grande empresário brasileiro, ele seria, evidentemente, consultado pela imprensa, antes da publicação, e sua versão ganharia grande destaque. Já com o MST, os jornais deixam de lado qualquer consideração ética. 2. A cobertura da mídia ignora o que os telegramas revelam de mais relevante: a preocupação das autoridades estadunidenses com os movimentos sociais no Brasil (e, por extensão, na América Latina como um todo). Os diplomatas gringos se comportam, no Brasil do século 21, do mesmo modo que os agentes coloniais do finado Império Britânico, sempre alertas perante o menor sinal de rebeldia dos “nativos” nos territórios sob o seu domínio. Nas referidas mensagens, os funcionários se mostram muitos incomodados com a força dos movimentos sociais e tratam de avaliar seus avanços e recuos, ainda que, muitas vezes, de forma equivocada. O “abril vermelho”, em especial, provoca uma reação de medo entre os agentes de Washington. Talvez por causa da cor... A pergunta é: por que tanta preocupação do império estadunidense com questões que, supostamente, deveriam interessar apenas aos brasileiros? 3. O fato é que o imperialismo estadunidense é, sim, uma parte envolvida nos conflitos agrários no Brasil. Essa constatação emerge, irrefutável, no telegrama que trata da ocupação
de uma fazenda registrada em nome de proprietários estadunidenses em Unaí, Minas Gerais, em 2005. Pouco importa o tamanho da propriedade (70 mil hectares, segundo o embaixador, ou 44 mil, segundo o Incra). O fundamental é que está em curso uma ocupação silenciosa do território rural brasileiro por empresas estrangeiras. Milhões de hectares de terra fértil – segundo alguns cálculos, 3% do território nacional – já estão em mãos de estrangeiros. O empenho do embaixador John Danilovich no caso de Unaí sinaliza a importância desse tema. 4. Em todas as referências a atores sociais brasileiros, os telegramas deixam muito claro o alinhamento dos EUA com os interesses mais conservadores – os grandes fazendeiros, os grandes empresários dos municípios onde se instalam assentamentos, os juízes mais predispostos a assinarem as ordens de reintegração de posse. 5. Por fim, o material veiculado pelo Wikileaks fornece pistas sobre o alcance da atuação da embaixada e dos órgãos consulares dos EUA como órgãos de coleta de informações políticas. Evidentemente, essas informações fazem parte do dia-a-dia da atividade diplomática em qualquer lugar no mundo. Mas a história do século 20 mostra que, quando se trata dos EUA, a diplomacia muitas vezes funciona apenas como uma fachada para a espionagem e a interferência em assuntos internos de outros países. Aqui mesmo, no Brasil, fomos vítimas dessa postura com o envolvimento de agentes dos EUA (inclusive diplomatas) nos preparativos do golpe militar de 1964. À luz desses antecedentes, notícias como a de que o consulado estadunidense em São Paulo enviou um “assessor econômico” ao interior paulista para investigar a situação dos assentamentos de sem-terra constituem motivos de preocupação. Será essa a conduta correta de um diplomata estrangeiro em um país soberano? Igor Fuser é professor da Faculdade Cásper Líbero, doutorando em Ciência Política na USP e membro do conselho editorial do Brasil de Fato.
EM TODAS AS CULTURAS e nas mais diversas religiões, as pessoas sentem uma profunda e misteriosa atração pelas novidades. Tudo o que é novo suscita admiração e desperta interesse. Isso revela uma vocação para se renovar permanentemente e é característica do ser humano. Na natureza, há animais capazes de pressentir se vai chover ou estiar. Ao despontar da madrugada, o galo canta. Ao mudar das horas, o jumento relincha. No entanto, somente o ser humano é capaz de contar o tempo. Só a humanidade faz história e, assim, faz do futuro (aquilo que há de vir) possibilidade do novo. Há pessoas que pensam: “o tempo resolve”. Infelizmente, isso não é verdade. A passagem do tempo não acarreta por si mesma e mecanicamente uma evolução para melhor. A mera mudança de tempo traz envelhecimento e não novidade ou solução. O que faz o tempo ser fecundo de algo novo é o amor. Celebrar o Ano Novo tem este significado: colher as sementes de bondade espalhadas na terra durante o ano passado e garantir que sejam semeados novos brotos de paz e justiça. Desde os tempos antigos, muitas comunidades costumam festejar a mudança de ano com um banho regenerador que simboliza renovação interior. Por isso, até hoje, multidões se aglomeram nas praias para saudar o novo ano. Em outras culturas, as pessoas vestem roupas novas para simbolizar que assumem posturas novas de vida. Há também regiões do mundo nas quais o ano novo é celebrado com refeições cultuais. Existem alimentos específicos do ano novo, como, por exemplo, em alguns países da Europa, saborear ostras. Estas vêm fechadas e se abrem, assim como o mistério do tempo que, na noite do 1º de janeiro, pode iniciar uma época nova para quem a acolhe.
O que faz o tempo ser fecundo de algo novo é o amor Todos estes costumes e ritos são válidos, desde que não vivamos o Ano Novo apenas como um dia que o calendário traz e, assim como chega, em breve, terá passado. As Igrejas cristãs costumam falar em “ano da graça de 2011”. É um modo de dizer que o importante do tempo não é a contagem quantitativa, mas a sua densidade. A regra beneditina ensina aos monges que o tempo nos é dado como “um prazo a mais para a nossa conversão”. Paulo escreveu à comunidade cristã de Roma que “a escuridão da noite quase passou e o dia está chegando. Devemos, então, ser como pessoas que despertam na madrugada e organizam suas vidas não como quem vive na escuridão da noite e sim à luz do dia (Rm 13, 13). Viver à luz do sol é um modo de dizer que temos de ser lúcidos (o próprio termo lucidez vem de luz), aprimorar o espírito crítico e refinar a consciência para saborear a vida como algo sempre novo e que nos leva à comunhão com os outros e com a natureza. Neste primeiro dia do ano, o Brasil assistirá a posse da nova presidente da República e dos governos estaduais, renovados ou reeleitos. Dificilmente o poder reforma profundamente a si próprio. Sem dúvida, as transformações sociais e políticas mais substanciais virão não dos governos e sim da sociedade civil e dos movimentos do povo organizado. Uma das promessas de campanha da presidente eleita é valorizar as organizações da sociedade civil e aprimorar as regras para a participação de todos na política. Justamente, o que nos faz esperar um bom governo é este respeito e mesmo apreço pela sociedade civil. Graças a Deus, nunca mais voltaremos aos governos que criminalizavam os movimentos populares, como aconteceu na época da ditadura militar e mesmo nos primeiros governos civis que vieram depois. A todos, feliz Ano Novo. Marcelo Barros é monge beneditino e escritor. Tem 37 livros publicados, entre os quais O Amor fecunda o Universo (Ecologia e Espiritualidade) com coautoria de Frei Betto. Ed Agir, 2009.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011
3
frases soltas
instantâneo Jadson Marques/Folhapress
Para mim, a grande diferença é que não há mais tiroteios. Nosso morro já era relativamente tranquilo. Só tinha tiroteio mesmo quando a polícia entrava para fazer operação. Na verdade, os bandidos não incomodavam muito a gente. Então, não sinto grande diferença. Além disso, ainda tem muitos usuários de crack que circulam por aqui Moradora do Morro da Providência (RJ), que não quis se identificar, em entrevista à Agência Brasil
ATOLADO – Bombeiros do quartel de Campo Grande são acionados para resgatar um cavalo que caiu dentro de um córrego próximo à Estrada do Cabuçu (RJ)
Assim como outros países, como o Brasil, a Bolívia reconhece o Estado palestino, sua independência, sua soberania Evo Morales, presidente da Bolívia, em coletiva de imprensa na sede do governo
Altamiro Borges
O erro será corrigido
Tucanos privatizam a saúde em São Paulo NA VÉSPERA DO FERIADO de Natal – usando velhos métodos do rolo-compressor – a bancada governista da Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou, dia 21 de dezembro, por 55 votos a 18, o projeto de lei 45/10, que permite às chamadas Organizações Sociais (OS) a venda de 25% dos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). Incluíram até os leitos hospitalares, para os planos privados de saúde e os hospitais particulares. Votaram contra as bancadas do PT e do PsoL um deputado do PDT e outro do PR. O projeto expressa os piores instintos privatistas dos neoliberais. Ele repassa os recursos públicos do SUS para os gulosos tubarões capitalistas da saúde. E representa mais um passo no rumo da privatização do setor. A invenção das tais OS, entidades de fachada que não têm nada de social, foi a primeira medida demotucana no rumo da mercantilização deste serviço essencial à sociedade. Atualmente, boa parte dos hospitais públicos de São Paulo já está sob comando das OS.
Pedro Novais, deputado federal (PMDB-MA) e futuro ministro do Turismo no governo de Dilma Rousseff, ao justificar a inclusão de uma nota fiscal R$ 2.156,00 do Motel Caribe na prestação de contas da verba indenizatória de junho Janine Moraes/Agência Câmara
Esse processo acelerado de privatização, que agora será agravado com a venda de até 25% dos serviços do SUS, tem degradado o atendimento à população. Como afirma o deputado estadual Adriano Diogo (PT), integrante da Comissão de Higiene e Saúde da Assembleia Legislativa, “a nova lei das OS reduzirá mais o já precário atendimento hospitalar da população pobre. É a expansão da quarteirização dos serviços públicos de saúde no Estado de São Paulo”. A mídia burguesa, a maior parte dela sediada na capital paulista e que mama nas tetas dos governos tucanos, que há mais de 16 anos mandam em São Paulo, deu pouco destaque a esse golpe de enorme gravidade. O assunto não foi manchete nos jornalões e revistonas conservadores e nem mereceu comentários dos “colunistas” das TVs. Não é para menos que a mídia apoiou de forma escancarada o “vampiro” José Serra. Caso fosse eleito, ele poderia tentar implantar o projeto de privatização da saúde em todo o Brasil – para alegria dos neoliberais. O deputado Pedro Novais (PMDB-MA)
Camila Marins
Memórias póstumas de final de ano AVANÇAMOS. Definitivamente, avançamos. Embora distantes de uma reforma agrária, inúmeros projetos de agricultura familiar, bem como políticas direcionadas para o campo foram implementadas. Fez-se a luz no campo, programas de educação foram regulamentados, a lei de assistência técnica gratuita foi efetivada. Mas ainda há dificuldades para crédito pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), além de falta de acesso à saúde, a transporte público e afins. Direitos básicos não reconhecidos. Trabalhadores rurais ainda sofrem. São criminalizados pela mídia. São discriminados. Elegemos a primeira mulher presidenta do país, diante de um cenário conservador imposto pela mídia. Aborto, distorção da luta contra a ditadura militar e até orientação sexual entraram no debate “político” (que de político não teve nada). Assistimos ao rebaixamento claro da direita, sem agenda política e agindo com a conivência dos donos dos grandes veículos de comunicação. Eu, que não sou PT, fui às ruas, fiz cam-
panha pela eleição de Dilma. Afinal, não poderia ver meu país (S)cerrado por mais privatizações. O governo Lula tomou a postura corajosa de apoiar Manuel Zelaya, presidente de Honduras, durante o golpe de Estado. Estreitamos relações com nossos irmãos latinoamericanos. No entanto, acompanhamos um retrocesso histórico: o envio de tropas militares brasileiras ao Haiti. Vergonhoso! Foi criado o Conselho Nacional de Combate à Discriminação, denominado Conselho Nacional LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais). Mas ainda não aprovamos o projeto de lei 122/06, que propõe a criminalização da homofobia. Realizamos a I Conferência Nacional de Comunicação. Contudo, poucas famílias ainda detêm o monopólio dos meios de comunicação, não há controle social e o movimento de rádios comunitárias é cada vez mais massacrado e criminalizado. Crítica e autocrítica são fundamentais na construção de um projeto de uma nação com soberania, justiça e solidariedade.
comentários do leitor “Obrigado, Lula”, de Frei Betto As verdadeiras transformações sociais não vêm de um governante, qualquer que seja, vêm das bases, das pessoas. O máximo que um governo pode fazer é facilitar, apoiar ou acompanhar esse movimento. Logo, devemos pensar: qual cenário político favorece a organização dos movimentos que produzem as verdadeiras conquistas sociais? Sabemos que a condução do poder político no Brasil é um campo de disputa onde, na correlação de forças, nós, movimentos sociais e pessoas engajadas em realmente mudar as coisas, temos uma força muito pequena se comparada ao capital financeiro, por exemplo. Se nos colocamos radicalmente contra o governo, deixamos o campo livre para aqueles que estão lá todos os dias, fazendo lobby, pressionando, subornando. Infelizmente temos que fazer o esforço de tentar enxergar aquilo que pelo menos parece ser bom pra ver se tiramos mais dali.
Vejo que o Frei Betto mais do que enaltecer “o governo” dá uma cutucada, até com uma certa ironia, elogiando para criticar, agradecendo para cobrar, como quem diz “e aí, companheiro, muito bem, e agora qual vai ser?”
Eduardo Simas, por correio eletrônico
Elogio
Parabéns a toda equipe do Brasil de Fato pelo ótimo trabalho que vem desenvolvendo. Rene Vicente dos Santos, por correio eletrônico
Aumento dos deputados
Entra mandato sai mandato e nos deparamos com esses absurdos de legislatura em causa própria, escândalos, enfim. Aos companheiros do Psol, que nunca nos decepcionam, uma sugestão: depositar a diferença em um fundo partidário para que na próxima eleição possamos aparecer de forma mais “vendedora”, através de uma campanha publicitária vencedora e consigamos
aumentar a “bancada da moralidade”. Mais nada pode ser feito no momento além de fiscalizar, fiscalizar, fiscalizar...
•
Gustavo Bueno, por correio eletrônico
Não me impressiona o fato de o Psol ter votado contra o aumento, pois isso não adianta nada, o PT também, quando não estava no poder, tinha o mesmo discurso, no entanto, quando chegou no poder nunca fez nada nessa direção. O argumento de que o dinheiro é usado para campanhas e fundo partidário, marketing etc., desse modo o partido entrou no mesmo jogo. Enfim, nós brasileiros precisamos fazer alguma coisa, como uma grande passeata contra esses abusos. O resto é balela. Maura Bohn Pires, por correio eletrônico
Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico comentariosdoleitor@brasildefato.com.br
A repartição dos bens, sob tal premissa, deve acontecer na proporção da contribuição pessoal, direta e efetiva de cada um dos integrantes da dita sociedade Vasco Della Giustina, desembargador que, ao analisar recursos no Rio Grande do Sul, reconheceu que em uniões homoafetivas, os bens devem ser partilhados conforme esforço de cada um
Podemos sim discutir questões do Ecad, mas não subordiná-lo ao governo Ana de Hollanda, futura ministra da Cultura, ao comentar que não há possibilidade de submeter o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) ao Ministério
Entendo que as pessoas que estão lendo os documentos podem ter interpretações distintas, mas na ata já chamamos a atenção para os riscos que se apresentaram nos cenários prospectivos Carlos Hamilton Araújo, diretor de Política Econômica do Banco Central, ao comentar que os riscos de inflação para 2011 aumentaram
6
de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011
brasil MAB
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Luta coletiva Após 20 anos de lutas, a comunidade do quilombo de Cangume, no Vale do Ribeira (SP), conseguiu, dia 16 de dezembro, o reconhecimento oficial dos 725 hectares de terras trabalhados coletivamente pelos moradores, já que o quilombo, de 1970 a 1990, havia perdido as terras em lotes individuais e ficado reduzido a 37 hectares. Agora o patrimônio está nas mãos da associação dos moradores. Ação criminosa Conhecida mundialmente por produzir agrotóxicos cancerígenos, a Monsanto não apenas impõe o cultivo de suas sementes transgênicas e despeja toneladas de seu veneno químico nas lavouras brasileiras, como está fazendo lobby junto ao Ministério da Saúde para que seja aumentada a quantidade legal de glifosato (agrotóxico) na água destinada ao consumo humano, de 500 para 900 microgramas por litro. Só falta agora comercializar o antídoto!
Homem rema em rua de cidade atingida pela barragem de Acauã na Paraíba
Estado retoma setor energético, mas modelo continua o mesmo LULA OITO ANOS Depois da era das privatizações, governo assume planejamento do setor elétrico; porém produção tem como foco as grandes indústrias eletrointensivas Alexania Rossato de São Paulo (SP) O AVANÇO do capitalismo sobre o território e os recursos naturais estratégicos, como forma de sair da crise econômica deflagrada em setembro de 2008, tem se materializado no Brasil também com o aumento da construção de usinas hidrelétricas. As obras na Amazônia, considerada a nova fronteira energética, nunca foram tão disputadas e desejadas pelos senhores da energia e questionadas pelo povo. Na avaliação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), comparado aos governos anteriores, o presidente Lula não promoveu mudanças estruturais no modelo energético. “O problema central é o atual modelo, que continua gerando energia para servir a indústria eletrointensiva e busca garantir as mais altas taxas de lucro em todas as áreas que compreende o setor elétrico. Transforma a energia em vários negócios, controlados por corporações transnacionais. O Lula ou não quis, ou teve medo de romper com esse modelo”, diz Gilberto Cervinski, da coordenação nacional do MAB.
“O setor elétrico brasileiro é uma galinha dos ovos de ouro, não há empresa que não queira vir explorar a geração, transmissão e distribuição de energia elétrica no Brasil” A retomada do planejamento estatal do setor pelo governo Lula, depois de ter sido abandonado por FHC, segue nesse rumo e aponta para a construção de muitas novas barragens. Aprovado no final de novembro de 2010 pelo Ministério de Minas e Energia, o Plano Decenal de Expansão de Energia 2019 exibe um aumento no consumo de energia que corresponde a uma taxa anual média de crescimento de 5,4%. A oferta de energia elétrica passará de 539,9 terawatt/hora em 2010 para aproximadamente 830 terawatt/hora em 2019, segundo informações do próprio MME. Esse montante desperta o interesse de empresas transnacionais do mundo todo, já que o Brasil oferece financiamento público através do BNDES, rios abundantes, mão de obra disponível e consumo garantido, seja pelos consumidores residenciais, seja pelo comércio ou pela indústria. “O setor elétrico brasileiro é uma galinha dos ovos de ouro, não há empresa que não queira vir explorar a geração, transmissão e distribuição de energia elétrica no Brasil; as riquezas naturais e as garantias dadas pelo Estado são infinitamente mais atraentes, se compararmos com outros países”, declara Cervinski. Segundo informações das próprias empresas, os lucros apontados pelos balanços trimestrais estão batendo recordes:
a CPFL Energia ampliou seu lucro em 33,8%; a Light quase dobrou no trimestre; a Eletrobrás 76,2%, a Tractebel ampliou em 13,4% e a Eletropaulo elevou seu lucro em 22,7%. Esses valores podem ser ampliados no próximo período, pois cerca de 20% da geração, 74% da transmissão e 33% da distribuição têm seus contratos de concessão de energia elétrica vencendo a partir de 2012. Quase 100% dessas concessões hoje são estatais e as renovações envolvem valores equivalentes a R$ 30 bilhões ao ano. As empresas privadas do setor elétrico estão pressionando para que o governo leiloe as usinas e as linhas de transmissão, já os movimentos sociais estão propondo reverter para o controle estatal o que está sob controle privado, a renovação das concessões estatais com manutenção do seu controle acionário, além da criação de uma política de aplicação dos recursos para programas sociais. Entraves na política social Desde que a maior parte do setor elétrico foi privatizado no início dos anos 1990, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a política de tratamento social dos atingidos por barragens tornou-se mais restrita e violenta. A pressão por direitos por parte dos atingidos, que antes era dirigida às estatais do setor elétrico, passou a ser feita às empresas transnacionais que, na maioria das vezes, negam as reivindicações, deslegitimam a organização e usam da força policial para desmobilização. Durante o governo Lula, esse quadro não se alterou, e muitos atingidos por barragens foram inclusive presos, como aconteceu no Pará, em Santa Catarina e em Rondônia, com a deportação dos bolivianos que participavam dos protestos contra as usinas do rio Madeira. Uma das críticas feita pelo MAB é com relação à atuação do MME no tratamento das questões sociais, e dos órgãos ambientais, sobre os licenciamentos. Em todas as situações, o Ministério procurou combater as conquistas dos atingidos, tal como aconteceu com o Relatório da Comissão Especial sobre as violações dos direitos humanos em barragens. A mesma coisa pode ser vista nos órgãos ambientais, com um fracionamento que permitiu licenciamentos irregulares e com a aplicação de condicionantes que ficam só no papel; como é o caso de Belo Monte, cujas condicionantes não estão sendo aplicadas e as licenças estão prestes a serem emitidas. O relacionamento irregular com os atingidos por barragens nos oito anos de governo não propiciou avanços significativos, de mudanças estruturais na condição de vida dos mesmos. Segundo a avaliação do MAB, as políticas foram focalizadas, atendendo pontualmente as reivindicações. “Na nossa avaliação, a condução das políticas de Estado para os atingidos foi inexpressiva, pois não alterou as condições de vida para melhor, apenas tem concedido alguns programas, extremamente burocratizados na sua execução. A política de reassentamentos não avançou em praticamente nada e temos que brigar por mais cestas básicas por famílias ao ano, isso é uma
vergonha para quem sempre sobreviveu do plantio e da colheita. Enquanto isso, o BNDES financia a construção de barragens por todo o país, como aconteceu com a usina de Jirau [no rio Madeira], cujo financiamento de R$ 7,2 bilhões foi a maior linha de financiamento dada a uma empresa”, critica Cervinski.
O relacionamento irregular com os atingidos por barragens nos oito anos de governo não propiciou avanços significativos, de mudanças estruturais na condição de vida dos mesmos Avanços Mas nem tudo foram pedras nestes oito anos. Pela primeira vez, o MAB foi recebido por um presidente da República. Desde que, em 2009, Lula manifestou a vontade de pagar a dívida histórica do Estado com os atingidos por barragens, ele já se reuniu duas vezes com o movimento, em fevereiro e em outubro de 2010. No último encontro, Lula assinou o decreto que estabelece critérios de cadastro socioeconômico às pessoas atingidas pelas barragens em todo o país, um instrumento de identificação e qualificação das pessoas atingidas nas áreas das barragens. O decreto é um passo muito grande para que as famílias que são atingidas por barragens sejam identificadas, já que, até agora, não existia marco legal para isso e, segundo o MAB, é um dos motivos para que 70% das famílias não sejam reconhecidas. Esse decreto é resultado da luta histórica dos atingidos e é parte das recomendações do relatório aprovado pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Cddph), no final de novembro. Elaborado durante quatro anos pela comissão especial instituída pelo Cddph, o relatório concluiu “que o padrão vigente de implantação de barragens tem propiciado, de maneira recorrente, graves violações de direitos humanos, cujas consequências acabam por acentuar as já graves desigualdades sociais, traduzindo-se em situações de miséria e desestruturação social, familiar e individual”. A Comissão identificou, nos sete casos analisados, um conjunto de 16 direitos humanos sistematicamente violados, dentre os quais, merecem destaque o direito à informação e à participação; direito ao trabalho e a um padrão digno de vida; direito à moradia adequada; direito à melhoria contínua das condições de vida e direito à plena reparação das perdas. Entre os principais fatores, apontados pelo relatório, que causam as violações de direitos humanos na implantação de barragens, estão a precariedade e insuficiência dos estudos ambientais realizados pelos governos federal e estaduais, e a definição restritiva e limitada do conceito de atingido adotados pelas empresas. A comissão recomendou a adoção de mais de 100 medidas para garantir e preservar os direitos humanos dos atingidos por barragens e evitar novas violações.
Disparidade Em dezembro, a Câmara dos Deputados aprovou, com o voto de 96% dos parlamentares, o aumento salarial dos próprios deputados e senadores (62%), dos ministros (149%) e do presidente da República (130%). Apenas 35 deputados – de diversos partidos – votaram contra o novo “trem da alegria”. Enquanto isso, as várias categorias de trabalhadores penam para conquistar reajustes salariais entre 5% e 10%. É outro mundo! Direitos civis Manifesto divulgado dia 21 de dezembro, assinado por várias entidades de defesa dos direitos humanos do Rio de Janeiro, denuncia a violência policial-militar nas favelas do Alemão e da Vila Cruzeiro, como os “casos concretos de tortura, ameaça de morte, invasão de domicílio, injúria, corrupção, roubo, extorsão e humilhação.” Afirma que não se sabe até hoje quantas pessoas foram mortas na operação de ocupação das favelas. Deficit comercial A se manter a atual política cambial, com real valorizado e dólar desvalorizado, o que tem favorecido as importações e prejudicado as exportações, o Banco Central estima que o deficit na balança comercial atinja 64 bilhões de dólares em 2011, ou 2,87% do PIB, um pouco superior ao rombo de 2010, que chegou a 2,4% do PIB nos últimos 12 meses. Esse é um dos pepinos deixados para o próximo governo. Empurra-empurra Na verdade, a lista de problemas adiados ou empurrados com a barriga para o governo Dilma Rousseff aumenta a cada dia: além das reformas política, fiscal, agrária e trabalhista, dá para elencar a jornada de 40 horas semanais, o fator previdenciário, a regulação da comunicação social, a Comissão da Verdade para os crimes da ditadura militar, a descriminalização das drogas e do aborto etc. Que não fiquem para futuros governos! Maior disputa Como de praxe, na montagem do governo Dilma Rousseff partidos e correntes do PT disputaram acirradamente os ministérios, secretarias e principais cargos de primeiro e segundo escalões. O que deu maior agitação na mídia e nos grupos de pressão foi o Ministério da Cultura, que era ocupado por Juca Ferreira, vinculado ao PV de Gilberto Gil, e foi entregue para Ana Buarque de Holanda, apoiada por correntes petistas. Haverá mudanças? Desatino oficial Em nota distribuída dia 21 de dezembro, o Movimento Xingu Vivo para Sempre chama o cronograma do PAC de “despautério”, na medida em que prevê o início das obras da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, para 15 de janeiro. De acordo com a nota, os “atropelos sistemáticos dos preceitos constitucionais” colocam em risco “a soberania e a democracia do país”. O movimento promete resistir por “todos os meios possíveis”. Jogada espetacular A Presidência da República sancionou dia 21 de dezembro a Lei 12.350, que autoriza a isenção de impostos, a partir de 1° de janeiro de 2011, para a Federação Internacional de Futebol (Fifa), para organização da Copa das Confederações (2013) e para a Copa do Mundo de 2014. A entidade, que é privada e fatura uma fortuna com o futebol, deixará de recolher aos cofres públicos o imposto de importação, Cofins, PIS-Pasep e outros. Grande mamata!
brasil
de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011
7
Reprodução
Luiz Carlos Prestes, legado revolucionário! MEMÓRIA Em seu 113º aniversário de nascimento, preservemos seu legado revolucionário! Anita Leocadia Prestes LUIZ CARLOS PRESTES nasceu em 3 de janeiro de 1898, em Porto Alegre (RS), e faleceu em 7 de março de 1990, no Rio de Janeiro, aos 92 anos de idade. Desde muito jovem, Prestes revelou indignação com as injustiças sociais e a miséria de nosso povo, mostrando-se preocupado com a busca de soluções efetivas para a situação deplorável em que se encontrava a população brasileira, principalmente os trabalhadores do campo, com os quais tivera contato durante a Marcha da Coluna (1924-27), que ficaria conhecida como a Coluna Prestes. Muito antes de tornar-se comunista, Prestes já era um revolucionário. Sua adesão aos ideais comunistas e ao movimento comunista apenas veio comprovar e confirmar sua vocação revolucionária, seu compromisso definitivo com a luta pela emancipação econômica, social e política do povo brasileiro. Como revolucionário, Prestes foi um patriota – um homem que dedicou sua vida à luta por um Brasil melhor, por um Brasil onde não mais existissem a fome, a miséria, o analfabetismo, as doenças, a mortalidade infantil e as demais chagas que continuam a infelicitar nosso país. Comunista convicto A descoberta da teoria marxista e a adesão ao comunismo representaram, para Prestes, o encontro com uma perspectiva, que lhe pareceu factível, de realização dos anseios revolucionários por ele até então alimentados, principalmente durante a Marcha da Coluna. A luta à qual resolvera dedicar sua vida encontrava, dessa forma, um embasamento teórico e um instrumento para ser levada adiante – o Partido Comunista. O Cavaleiro da Esperança, uma vez convencido da justeza dos novos ideais que abraçara, tornava-se também um comunis-
ta convicto e disposto a enfrentar toda sorte de sacrifícios na luta pelos objetivos traçados. No processo de aproximação ao PCB, Prestes rompeu publicamente com seus antigos companheiros – os jovens militares rebeldes conhecidos como os “tenentes” –, posicionando-se abertamente a favor do programa da “revolução agrária e antiimperialista” defendido pelos comunistas brasileiros. Seu Manifesto de Maio de 1930 consagra o início de uma nova fase na vida do Cavaleiro da Esperança. A partir daquele momento, Prestes deixava definitivamente para trás os antigos compromissos com o liberalismo dos “tenentes” e enveredava pela via da luta pelos ideais comunistas que passariam a nortear toda sua vida. Pela primeira vez na história do Brasil, uma liderança de grande projeção nacional, a personalidade de maior destaque no movimento tenentista – na qual apostavam suas cartas as elites oligárquicas oposicionistas, na expectativa de que o Cavaleiro da Esperança pusesse seu cabedal político a serviço dos seus objetivos, aceitando participar do poder para melhor servi-las – recusa tal poder, rompendo com os políticos das classes dominantes para juntar-se aos explorados e oprimidos, para colocar-se do lado oposto da grande trincheira aberta pelo conflito entre as classes dominantes e as dominadas, entre exploradores e explorados. Prestes tomava o partido dos oprimidos, abandonando as hostes das elites comprometidas com os donos do poder, não vacilando jamais diante dos grandes sacrifícios que tal opção lhe acarretaria. Caminho da luta Tratava-se de um fato inédito, jamais visto no Brasil. Luiz Carlos Prestes, capitão do Exército, que se tornara general da Coluna Invicta, que fora reconhecido como liderança máxima das forças oposicionistas ao esquema de poder vi-
O líder comunista Luiz Carlos Prestes
gente no Brasil até 1930, talhado, portanto, para transformar-se no líder da “revolução” das elites oligárquicas, numa liderança política confiável dessas elites, usava seu prestígio para indicar ao povo brasileiro um outro caminho – o caminho da luta pela reforma agrária radical e pela emancipação nacional do domínio imperialista, o caminho da revolução social e da luta pelo socialismo. Como foi sempre coerente consigo mesmo e com os ideais revolucionários a que dedicou sua vida, sem jamais se dobrar diante de interesses menores ou de caráter pessoal, Prestes despertou o ódio dos donos do poder, que se esforçariam por criar uma História Oficial deturpadora tanto de sua trajetória política quanto da história brasileira contemporânea. Exemplo para os jovens Mesmo após seu falecimento, Prestes continua a incomodar os donos do poder, o que se verifica pelo fato de sua vida e suas atitudes não deixarem de serem atacadas e/ou deturpadas, com insistência aparentemente surpreendente, uma vez que se trata de uma liderança do passado, que não mais está disputando qualquer espaço político. Num país em que praticamente inexiste uma memória histórica, em que os donos do poder sempre tiveram força suficiente para
impedir que essa memória histórica fosse cultivada, presenciamos um esforço sutil, mas constante, desenvolvido através de modernos e possantes meios de comunicação, de dificultar às novas gerações o conhecimento da vida e da luta de homens como Luiz Carlos Prestes, cujo passado pode servir de exemplo para os jovens de hoje. Luiz Carlos Prestes dedicou 70 anos de sua vida à luta por um futuro de justiça social e liberdade para o povo brasileiro. Luiz Carlos Prestes foi um revolucionário, um comunista e um internacionalista, que jamais vacilou na luta pelos ideais socialistas e pela vitória da revolução socialista no Brasil e em nosso continente latino-americano. Prestes foi um defensor consequente dos países socialistas, tendo à frente a URSS. Esteve sempre solidário com as Revoluções Cubana e Nicaraguense. O legado revolucionário de Luiz Carlos Prestes deve ser preservado e desenvolvido pelas novas gerações de brasileiros e latino-americanos. Este é o objetivo principal do Instituto Luiz Carlos Prestes (www.ilcp.org.br) recentemente criado no Rio de Janeiro. Anita Leocádia Prestes é professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes.
8
de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011
brasil
A natureza humana e os privilégios O QUE É DE FATO a natureza humana? Afinal, ela existe ou não existe? Em que medida ela pode ser modificada? Se fosse feita uma pesquisa capaz de observar, empiricamente, milhões de pessoas, os pesquisadores achariam alguma coisa em comum presente em todos os indivíduos, os que ainda existem e os que já existiram? Assim como os homens têm dois olhos, dois braços, duas pernas, nem por isso podemos dizer que, se uma infeliz intervenção cirúrgica amputar uma de suas mãos, o indivíduo poderá até ter se transformado no Capitão Gancho, inimigo mortal de Peter Pan, mas não terá perdido aquilo que se convencionou chamar de “natureza humana”. Por outro lado, é evidente que se um ser tiver somente uma perna, nem por isso terá deixado de pertencer à natureza humana. No plano psicológico, o problema se complica ainda mais. Quando a alma interfere no corpo, esse poder de interferência é que a torna completamente real.
Ao serem descobertos pelos navegadores europeus, estes se perguntavam qual poderia ter sido a origem dos povos nativos; e acreditavam que eles vinham da Índia (por isso foram chamados índios). Os europeus sabiam que deviam dispor de uma escala de valores para se orientar. Mas o impacto da conquista causou estragos consideráveis tanto no espírito dos índios como no espírito dos colonizadores. Os valores não são, em geral, criados pelos indivíduos: são inventados pela comunidade. Mas a conquista e a colonização foram feitas por gente que destruía as comunidades indígenas. Ao longo de várias gerações, os espanhóis e os portugueses exploraram e oprimiram os índios e os negros. Assumiam, com desenvoltura, o racismo que lhes convinha. Pouco a pouco, foram se sofisticando, fizeram um aprendizado de hipocrisia. Aprenderam com seus correligionários ingleses e franceses a fazer concessões à retórica liberal. Condenaram (da boca para fora) procedimentos sórdidos, aos quais recorriam na prática.
Leandro Konder
Nossos antepassados insistiram há mais de um século na afirmação de que a sociedade brasileira não precisava fazer mudanças, porque já as havia feito. Não carecia de reformas, porque já era uma república que estava sendo reformada pelo progresso. República, como o nome indica, era a res publica, a coisa pública. Nossos teóricos inventaram coisa melhor: quando a “coisa pública” dava lucros imponentes, era tratada como “coisa privada” e seus proventos eram desviados para o bolso dos muito ricos, sob a alegação de que, já tendo roubado muito, eles roubariam menos do que os outros. O maior orgulho dos donos do país é a sinceridade com que eles argumentam: “Somos muito francos. Sabemos que o mito de um regime democrático-igualitário tem feito muito mal à humanidade”. E acrescentam: “Os homens são por natureza desiguais. Então a distribuição da riqueza só pode, sensatamente, respeitar e consagrar a desigualdade”. O filósofo Antonio Gramsci,
Nas atuais condições, podemos, provocadoramente, dizer que os revolucionários não conseguiram, em geral, revolucionar a sociedade, como pretendiam. Mas o jogo ainda não terminou para o time da Utopia Futebol Clube
italiano, dizia que, para entender o pensamento político de uma criatura, o que se pode fazer de mais razoável é perguntar a ela se acredita que em algum tempo, no futuro, vamos edificar uma sociedade na qual não existirão nem mandantes, nem mandados. Se, porém, a criatura for pessimista e declarar que “vai ser sempre assim”, e insistir em aceitar resignadamente o privilégio dos que exercem o poder, então ela estará contribuindo para que o privilégio se perpetue. Hoje, o privilégio não só perdura como pisa com firmeza sobre um terreno sólido e amplo, que nós, democratas, socialistas, infelizmente conhecemos mal. Lembro que Marx, no século 19, escreveu: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo; trata-se, porém, de transformá-lo”. Nas atuais condições, podemos – provocadoramente – dizer que os revolucionários não conseguiram, em geral, revolucionar a sociedade, como pretendiam. Mas o jogo ainda não terminou para o time da Utopia Futebol Clube.
Progresso econômico em Tucuruí ignora indígenas Arquivo Eletrobras Eletronorte
ENERGIA Comemoradas pelos setores empresariais e governamentais, as eclusas não sanarão os problemas do povo assuriní gerados pela usina Márcio Zonta de Tucuruí (PA) NO DIA 30 de novembro, o presidente Lula esteve no município de Tucuruí (PA), para inaugurar as duas eclusas da usina hidrelétrica de Tucuruí no rio Tocantins. Na cerimônia festiva, membros da Eletronorte e da Eletrobrás revelaram as cifras do investimento, R$ 1,66 bilhão. Também apontaram os benefícios das eclusas feitas para corrigir um desnível causado pela construção da própria usina. Com a recuperação da navegabilidade entre os rios Tocantins e Araguaia, a via fluvial ligará, agora, o porto de Belém à região do Alto Araguaia em Mato Grosso, numa extensão de aproximadamente dois mil quilômetros. Será possível o transporte, em larga escala, de recursos minerais e agropecuários entre as regiões Centro-oeste e Norte do Brasil. Segundo a Eletronorte e a Eletrobrás, as eclusas de Tucuruí têm capacidade para dar passagem a 40 milhões de toneladas de cargas por ano, a maior entre todas as eclusas existentes no mundo. A possibilidade da chegada das embarcações ao porto da Vila do Conde, na capital paraense, foi comemorada entre os presentes na inauguração, por ser uma localização estratégica de exportação para os mercados estadunidense, europeu e também para o extremo oriente. A construção agradou ao representante da Federação Nacional das Empresas de Navegação Marítima, Fluvial, Lacustre e de Tráfego Portuário (Fenavega), o empresário Eduardo Carvalho, que esteve presente na cerimônia, entre tantos outros interessados no empreendimento. “A demanda de transporte atual, de cinco milhões de toneladas, deve subir para 50 milhões nos próximos cinco anos”, celebrou. Em seu discurso, o presidente Lula tentou conter a euforia empresarial e democratizar os benefícios da obra: “essa eclusa só terá sentido se ela significar a melhoria da qualidade de vida de mulheres e homens que moram neste país, neste estado e nesta região”.
“A demanda de transporte atual, de cinco milhões de toneladas, deve subir para 50 milhões nos próximos cinco anos” Outro lado
Mas, a julgar pela ação que o Ministério Público Federal de Marabá iniciou contra a Eletronorte, em novembro, as palavras do presidente e a eclusa perdem o sentido democrático. Isso porque
As duas eclusas da usina hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, tiveram investimento de R$ 1,66 bilhão
o MPF alega que a empresa não tomou nenhuma providência para compensar e mitigar os danos causados ao povo indígena assuriní pela construção da usina encerrada em 1984. Segundo nota do MPF, divulgada dois dias após o lançamento das eclusas, “a terra indígena Trocará, dos assuriní, vem sofrendo desde então [a construção da hidrelétrica de Tucuruí] inúmeras invasões e outros impactos diretamente relacionados com a usina e com o aumento populacional decorrente do empreendimento”.
impacto na vida dos assuriní após o contato ocorrido em 1950”. As desculpas informadas pela empresa para a justiça, sobre o não cumprimento das ações mitigadoras e por não participar de novas reuniões com membros do MPF e os assuriní, foram, segundo Rabelo, “de ordem burocráticas”. “De quantos anos mais e quantas eleições por vir precisará a Eletronorte para se valer de pretextos e impor, continuamente, os males causados por suas ações à comunidade indígena assuriní?”, indaga o procurador.
“A saúde, a segurança alimentar e a integridade do povo assuriní entraram em colapso”
Análise
Um estudo realizado pela própria Eletronorte, em parceria com a Fundação Nacional do Índio (Funai), revela quais são os principais impactos sobre a etnia. “A saúde, a segurança alimentar e a integridade do povo assuriní entraram em colapso com a redução de peixes e caça, a multiplicação de doenças sexualmente transmissíveis, casos de alcoolismo, tabagismo, a substituição da língua nativa pelo português, constantes investidas de invasores e degradação ambiental de diversas ordens”, elenca. Para o procurador da República, Tiago Modesto Rabelo, que subscreve a ação, “não se tem nenhuma dúvida de que a construção da usina hidrelétrica de Tucuruí foi o empreendimento de maior
Diante do imbróglio gerado com o MPF ante a contenta do governo e dos setores empresariais interessados na usina hidrelétrica de Tucuruí, sobretudo das eclusas inauguradas recentemente, o professor de ciências sociais da Universidade Federal do Pará (UFPA), Cloves Barbosa, analisa vários aspectos. “De cara se vê que é um empreendimento governamental que favorece um setor da burguesia nacional, além de ser um estímulo para o agronegócio, tendo uma natureza concentradora de terra”, dispara. Segundo o professor, a inauguração das eclusas partiu do empenho de parte do empresariado brasileiro e de algumas transnacionais para elevar o escoamento do minério, dos grãos e da carne.“Já faz tempo que esses setores têm um grande interesse em aumentar suas exportações, faz tempo que eles pressionam o governo para isso”. Para Barbosa, outra situação fica evidenciada, nessa forma de exportação, de matéria prima, para os países centrais, possibilitada por essa nova via fluvial: “O
capitalismo precisa de periferia, de produzir desigualdades sociais e espaciais, pois os Estados Unidos e a Europa são as regiões onde moram os donos do capital e essa periferia é colocada a serviço dessa região central, isso é o refinamento do colonialismo, o que chamamos hoje de imperialismo”.
“O progresso capitalista sempre proporcionou o deslocamento de pessoas e na Amazônia não está sendo diferente” Por isso, para ele, a ação judicial do Ministério Público Federal contra a Eletronorte e suas ações, que prejudicam o povo assuriní, é de extrema importância, pois “a burguesia que comanda pouco se importa com outros setores sociais, podem ser índios, quilombolas, camponeses, esses viram os deslocados do progresso. O progresso capitalista sempre proporcionou o deslocamento de pessoas e na Amazônia não está sendo diferente”.
<PARA ENTENDER> Eclusa – Trata-se de um sistema de elevação de comboios hidroviários que elimina os desníveis e possibilita a navegação entre rios com alturas desiguais. As de Tucuruí têm 210 metros de largura e 33 metros de comprimento cada e são ligadas por um canal intermediário de 5,5 km.
américa latina
de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011
9
“O Brasil é ao mesmo tempo imperialismo e motor imprescindível para a integração” Ricardo Stuckert/PR
ENTREVISTA O economista e diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique, Pablo Stefanoni, faz um balanço da política sul-americana Elena Apilánez e Vinicius Mansur de La Paz (Bolívia) PASSADOS MAIS de dez anos da ascensão de presidentes de esquerda na América do Sul, o economista Pablo Stefanoni, diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique, é cético com relação às transformações trazidas por eles ao continente e relativiza a existência de governos de esquerda “radicais” e “moderados”. Traçando um panorama da conjuntura política do continente, o ex-assessor de comunicação do governo Evo Morales prevê sérias limitações para o crescimento da Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas) e muitas possibilidades para a Unasul (União das Nações Sul-Americanas). Na entrevista a seguir, Stefanoni analisa, ainda, a política na Argentina pós-Kirchner, destaca o surgimento de uma direita reciclada na Colômbia e no Chile e debate o papel do Brasil na região.
Chefes de Estado e de governo participantes da 4ª Cúpula da Unasul em Georgetown, Guiana
tram que a privada não diminui em relação à estatal. E ainda há dificuldades enormes, para além da vontade do governo, de se pensar uma agenda pós-petroleira. Nisso, coincidem todos. O rentismo [referência à dependência da economia venezuelana da renda do petróleo que exporta] não distribui exatamente a riqueza, porque capta uma renda do mercado internacional e gera uma cultura não do trabalho, mas de como agarrarem-se essas fatias. É bom que se democratize [a renda], mas, depois, o problema sério é pensar um modelo produtivo. O problema venezuelano, hoje, talvez não seja tanto como transitar ao socialismo, mas a essa agenda, ainda que seja a médio prazo, porque não é fácil. Não é que o Chávez não tem vontade: inclusive, ele levou o Instituto de Tecnologia Industrial da Argentina para o país.
Brasil de Fato – Como você avalia a categorização dos governos sulamericanos entre esquerda radical, com Bolívia, Venezuela e Equador, e esquerda moderada, liderados por Brasil e Argentina?
Pablo Stefanoni – Esse esquema tem aspectos reais, mas há que relativizá-los. Primeiro, a radicalidade assumida, muitas vezes, não se dá porque os movimentos sejam particularmente mais radicais, e sim porque a trajetória institucional e política foi diferente. Os três países considerados de esquerda radical tiveram a implosão do sistema partidário com forte mobilização popular, e era normal que houvesse uma grande demanda por refundação do país, do sistema político. No caso de Uruguai, Brasil e, sobretudo, Chile, a esquerda ganha em um contexto de desmobilização. Além disso, há continuidade institucional e o sistema de partidos continua o mesmo. Em segundo lugar, essa esquerda radical necessita da outra esquerda. Nos momentos-chave, Lula apoiou a Venezuela, como na greve petroleira, na crise da Bolívia houve um apoio importante da Unasul etc. Por isso se valorizava a vitória de Dilma Rousseff [nos países da América Latina governados pela esquerda], mais do que qualquer debate interno, com a ideia de manter a correlação de forças. Em terceiro lugar, esse esquema supõe que uma esquerda é socialista e outra não, mas vendo as políticas públicas concretas, nenhuma é socialista. Nem Venezuela nem Bolívia estão avançando rumo a um projeto pós-capitalista. Claro, há diferenças no trato com os EUA, no papel que joga o Estado, mas, vendo o que de fato mudou, o socialismo ainda é bastante retórico. E há muitas coincidências, por exemplo: a legitimidade do Evo não é tão distinta da do Lula. Uma mescla de autoidentificação popular com um líder que surgiu de baixo e políticas sociais. Inclusive, o Bolsa Família é mais radical, por sua abrangência, do que a política de bolsas da Bolívia, que é mais fragmentada.
“Os conselhos comunais [na Venezuela] se ocupam de questões bastante locais e vinculadas à falta do Estado nos bairros”
“No caso de Uruguai, Brasil e, sobretudo, Chile, a esquerda ganha em um contexto de desmobilização” O senhor não acha que a Venezuela, por exemplo, se diferencia dos outros com suas nacionalizações e políticas públicas que caminham para a transição ao socialismo?
Há tentativas, testes, mas com muitos problemas de eficácia. Promove-se cooperativas, conselhos comunais. Claramente, há um nível de participação popular maior do que havia antes de Chávez. Entretanto os balanços sobre a geração de uma participação de baixo são complexos. Os conselhos comunais se ocupam de questões bastante locais e vinculadas à falta de Estado nos bairros. Começaram a falar menos de política nacional e aceitar os antichavistas nos conselhos, sempre e quando houver um pacto de não falar muito de política. Há também os conselhos em bairros de classe média alta de Caracas, que são antichavistas, mas que usaram essa fórmula. Quanto à economia, os números mos-
O senhor vê uma disputa pela liderança do continente?
Houve uma luta entre Brasil e Argentina, mas a Argentina perdeu. A Venezuela não tem condições, porque o Brasil já não joga em nível sul-americano, mas mundial, inclusive associado ao Bric [Brasil, Rússia, Índia e China]. Ninguém está pensando em competir com o Brasil, que aposta num rumo claro e complexo. O Brasil mescla um “imperialismo” com o papel de motor imprescindível para a integração regional. O Lula viaja com 200 empresários e, quando concede algum crédito, este país tem que contratar uma empresa brasileira. O Brasil é como um monstro ao lado de um monte de economias pequenas, que não têm visão muito clara sobre o que fazer com o Brasil. Há uma atitude de denunciar, como fizeram na Bolívia com a Petrobras, com a Odebrecht no Equador, ou a relação complicada com Itaipu, no Paraguai, mas, depois, chega o Marco Aurélio Garcia [assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais na gestão Lula] e tudo se ajeita.
Qual futuro o senhor vê para a Unasul e a Alba?
A Alba não avançou, porque uma integração ideológica é mais complexa, depende de que os governos continuem. A Unasul não depende tanto dos governos coincidirem em tudo. A Bolívia não tem muitas relações com a Nicarágua ou Honduras. Ou seja, não está muito claro qual é o papel da Alba além do alinhamento político. É interessante que esses países possam jogar um certo papel juntos, mas a Alba não deve ser uma alternativa para outras vias de integração. A Unasul avançou bem mais rápido e existe essa coisa de que onde entra o Brasil se avança em nível diplomático, não? Quando o Brasil disse não à Alca, acabou a Alca.
Qual o impacto da morte de Néstor Kirchner para a política argentina?
A oposição fazia mais oposição ao Kirchner, que era uma espécie de copresi-
dente, do que à própria Cristina. Kirchner era o grande disciplinador do peronismo e isso era muito necessário às vezes. Cristina era a presidente da nação, e ele do peronismo. Então, temos que ver como ela vai operar isso. Pelas características meio necrófilas, a morte dele fortaleceu Cristina, pois recuperaram toda a figura de Kirchner, com a tentativa de torná-lo um mito, alguém que morreu em combate contra um monte de inimigos, corporações... o velório foi bem político. Ele recuperou todo um discurso e mística dos anos 1970, aproveitando que foi militante da juventude peronista, reativou uma parte de sua biografia muito distante. Porque, na verdade, Kirchner, nos anos 1990, apoiou basicamente o programa neoliberal. Na ditadura, ele era advogado que comprava casas de arremate, aproveitando uma lei de indexação feita pelo governo militar, e é nessa época que aconteceu sua acumulação. Ele tinha um patrimônio declarado de 14 milhões de dólares. Morreu à frente nas pesquisas para as próximas eleições para presidente, com boa possibilidade de ganhar no primeiro turno. Kirchner não pensava a política como utopias, pensava o poder em seu sentido duro, construir dependências, interesses, redes. Então, há que se ver se Cristina consegue manter esse efeito gerado pela morte do marido. Tampouco há bons candidatos da oposição, além de haver uma parte dos votantes que se tornam “antiantikirchneristas”, ou seja, um rechaço à oposição sem ser kirchneristas. É o que acontece com tantos governos populares, cujas oposições são inapresentáveis. E isso dá vida a Cristina.
“Há uma atitude de denunciar, como fizeram na Bolívia com a Petrobras, (...) mas, depois, chega o Marco Aurélio Garcia e tudo se ajeita”
çou a importar alimentos da Argentina e do Brasil. Mas ele ainda prometeu reforma agrária, devolvendo as terras que os paramilitares tomaram de camponeses. Não sei se o fará e não é que ele seja menos de direita, mas se adaptou mais a certas coisas.
“[Santos e Piñera] Deram início a uma direita muito mais hábil, pragmática, empresarial, menos conservadora em uma série de temas, inclusive morais” E com relação às Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia?
Existe uma possibilidade de que a Unasul contribua. De fato, as Farc pediram a Dilma que participe como mediadora, apelando um pouco para o seu passado guerrilheiro. O Brasil pode jogar um papel importante nisso, algo que era impensável há dez anos. Mas as Farc são o grande obstáculo para que a esquerda possa disputar algo na Colômbia.
E o Peru?
Aí não se sabe, porque [o presidente] Alan García está de saída e todos creem que o Apra [Alianza Popular Revolucionaria Americana, seu partido] também. Mas o Peru é um pouco surpreendente, porque há alguns dias a relação com a Bolívia era malíssima e, agora, o Peru está deportando os prófugos da Justiça boliviana. Aceitaram também fazer um acordo sobre o mar. E a esquerda ganhou as eleições da capital Lima, apesar de parecer um pouco desarticulada para desafios mais sólidos. Para as próximas eleições, há cinco candidatos que estão com aproximadamente 20% dos votos cada um e dizem que o Apra não ganharia um segundo turno. E olha que a economia do Peru está crescendo 10%. Reprodução
E quanto aos países que estão à direita?
[Os presidentes] Juan Manuel Santos, na Colômbia, e Sebastián Piñera, no Chile, surpreenderam um pouco, porque se mantiveram olhando para a América Latina mais do que se esperava. Deram início a uma direita muito mais hábil, pragmática, empresarial, menos conservadora em uma série de temas, inclusive morais. Uma direita parecida à nova direita europeia de [Nicolas] Sarkozi [presidente da França]. Não quero dizer que os conservadores não estão com Piñera, mas ele é liberal, não é pinochetista. Quando seu embaixador, na Argentina, defendeu Pinochet, ele o retirou 24 horas depois. Santos surpreendeu, porque se esperava que fosse uma mera continuidade de Álvaro Uribe [presidente que o antecedeu], mas ele mostrou mais flexibilidade, com a Venezuela, por exemplo. Há razões econômicas também, porque a Venezuela come-
QUEM É Pablo Stefanoni é economista e jornalista argentino radicado em La Paz desde 2003. Foi assessor de comunicação do governo Evo Morales. Atualmente, é diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique e faz doutorado sobre a história das ideias do indigenismo.
10
de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011
américa latina
“É preciso limitar as ações dos monopólios e democratizar a palavra” Presidencia de la República del Ecuador
ENTREVISTA Segundo fundador da TV Telesur, nova etapa da democracia latino-americana não pode vir sem a democratização da comunicação Eduardo Sales de Lima de Quito (Equador) O ESPECTRO de radiodifusão pertence a todos e o setor privado não é proprietário desse espaço comum; utiliza-o apenas por meio de concessão pública. Sempre foi assim. A questão é que, na América Latina, a população foi ensinada que as grandes tevês e rádios foram, desde seu início, grandes empresas com vocação para lucro sem obrigações legais junto ao cidadão. Pelo mundo afora, entretanto, os meios de comunicação precisam obedecer a leis rígidas, que impedem o monopólio comercial e ideológico desde há muitas décadas. A Ley de Medios da Argentina, aprovada em outubro de 2009, vem impulsionando ainda mais o debate. Na Venezuela, há um processo para a regulamentação da mídia no país, inclusive a internet e, no Uruguai, estão ocorrendo discussões para regulamentar o setor em 2011. O Brasil tem ampliado a discussão por meio de Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). O ex-ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Franklin Martins, preparou um anteprojeto que visa a regular o setor e pretende entregá-lo ao Legislativo. Para falar sobre essa nova onda latinoamericana, Aram Aharonian, fundador e principal idealizador conceitual da TV Telesur, destaca ao Brasil de Fato a necessidade do enfrentamento e da união entre os “de baixo”, pois é daí que surgirá, na visão dele, o balizamento para uma verdadeira democracia comunicacional; nunca a partir de cima. Ele participou do encontro entre jornalistas latino-americanos “Construindo uma agenda democrática em comunicação”, realizado na sede da Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais), em Quito, Equador, entre os dias 13 e 15 de dezembro de 2010. Brasil de Fato – Você acredita que se aproxima um novo período de grandes transformações relacionadas ao processo de democratização dos meios de comunicações na América Latina?
Aram Aharonian – Estão dadas todas as condições. Nosso período de resistência social vai terminando e ainda não estamos preparados psicologicamente; não assumimos que estamos numa etapa de construção em que é preciso mudar os paradigmas. Temos que acompanhar essa ação de construção de um novo paradigma no setor de comunicações com uma teoria sobre essa construção. Temos que criar uma base conceitual sobre a conjuntura atual das comunicações na América Latina. Estamos buscando-a. E creio que, na América, Latina se vive algo que o resto do mundo não vive. É uma etapa de conscientização da cidadania e do retorno do pensamento crítico para criar soluções próprias a problemas próprios e comuns, e cada país sozinho não pode fazer nada. Um fato muito singular que se dá nos últimos oito anos é que o Brasil deixou de estar separado da América Latina. O Brasil se sente parte. É verdade, no entanto, que com alguns vestígios de “irmão maior” ou de subimperialismo, mas com uma vocação de integração latino-americana, de necessidade de conhecer quem são seus vizinhos, de sentir-se parte do continente.
“Temos que acompanhar essa ação de construção de um novo paradigma no setor de comunicações com uma teoria sobre essa construção” Qual é o efeito prático dessa regulação do setor de comunicações na América Latina?
Democratização é a palavra principal, mas é a palavra que se amplia em direção a muitos outros temas. Creio que o principal é reivindicar o papel do Estado como o território de todas as atividades que dizem respeito à nação e, em segundo lugar, é preciso limitar as ações dos monopólios, impedir suas ações, e de-
Equipe de reportagem da TV Telesur entrevista o presidente equatoriano Rafael Correa
mocratizar a palavra; garantir que a palavra e a imagem se volte e chegue a todos cidadãos. Uma Ley de Medios é o início de um caminho, não é o final. É o final, sim, de uma resistência, e o início de uma construção de uma nova forma de comunicação. Uma comunicação democrática resultará numa democracia participativa.
“Uma Ley de Medios é (…) o final de uma resistência e o início de uma construção de uma nova forma de comunicação” Aprendemos no Brasil que a radiodifusão é antes de tudo um negócio. Sentimos desde sempre a força do poder privado e da desregulação nessa área. Em entrevista ao Brasil de Fato, dois dos principais comunicólogos brasileiros, Laurindo Leal Filho e Venício Artur Lima, contaram que em alguns países da Europa o processo de regulação do setor, sobretudo a partir dos anos 1930, levou mais em conta o caráter público dos meios de comunicação.
Primeiro, deve-se ter a dimensão de que os meios de comunicação são um serviço público. A globalização neoliberal, que está em crise, obviamente utiliza os meios de comunicação para fazer negócios. Entendo que o conceito de rentabilidade dentro desse âmbito de serviço social encontra certos problemas. Há problemas no Brasil, Argentina, México, em vários países em que há monopólios e oligopólios que controlam a palavra, criam um imaginário coletivo e condicionam as ações dos governos. Esses grupos não são eleitos por ninguém. São grupos econômicos, às vezes nacionais, às vezes internacionais, que temos que controlar. Cuidado. Não se trata somente de interesses comerciais. Há também interesses religiosos. E são também tão danosos quando tomam o monopólio da palavra para criar um imaginário coletivo que realmente atentam contra os interesses da grande maioria.
Existe uma raiz histórica comum a todos os países da América Latina quando falamos em monopólio dos grandes meios de comunicação?
Nos países grandes, há grandes monopólios, oligopólios; Clarín, na Argentina, a Televisa, no México, a Globo no Brasil. Mas a Globo tem a contraparte evangélica, que não é tão poderosa, mas também tem o seu poder. Temos ainda vários grupos de investimentos espanhóis. Na Colômbia e na Bolívia, há o grupo Planeta, o grupo Prisa; ou seja, são grupos espanhóis que também jogam para atender aos interesses de suas empresas. E são empresas que os governos neoliberais privatizaram para prestar serviço e que defendem esse Estado mínimo para que garantam seu lucro.
Você acredita que, no Brasil, haverá um processo de enfrentamento da sociedade organizada e da parte progressista do governo Dilma à grande mídia, como ocorreu e está ocorrendo na Argentina?
Não há outra forma. Jamais o grande capital concedeu algo. A única forma é a decisão política do governo de apoiar esse abajo que se move, apoiar a cidadania do povo e os movimentos sociais, que estão declarando um novo elo informativo entre eles e uma nova forma de democratizar a informação. Creio que o que falta é a decisão política dos governos de garantir as coisas, pesando suas forças. Creio que é uma batalha que se mostra e que o Brasil está preparado por baixo, com a enorme quantidade de assembleias realizadas por todos os cantos do país, apoiando a democratização da comunicação e com algumas declarações que são muito alentadoras de Franklin Martins, inclusive de Lula. Creio que é um momento de democracia. A democracia não pode vir de cima, de cima não se constrói nada. A única coisa que se constrói é um poço. Nós temos que construí-la a partir de baixo para que esse poço acabe, sendo uma decisão política de quem está prejudicado.
Paralelamente a todo esse movimento, a grande mídia latinoamericana acusa os governos de esquerda e centro-esquerda de atacarem a liberdade de expressão.
Essa frase se repete por todos os lados. Estão querendo confundir a liberdade de empresa com a liberdade de imprensa. Em nossos países, há muitos casos de libertinagem de imprensa, em que os grandes meios fazem campanhas contra os governos e contra a estabilidade do país. Que sigam dizendo o que querem, que o povo sabe do que se trata.
“Há problemas (...) em vários países em que há monopólios e oligopólios que controlam a palavra, criam um imaginário coletivo e condicionam as ações dos governos”
Europa, como no Reino Unido, Espanha e Sérvia?
Temos que olhar para nós mesmos. Faz 500 anos que copiamos modelos. E esses modelos são estrangeiros, e talvez, sejam muito bons. Mas é algo que tem a ver com a gente. Por exemplo, a Ley de Medios na Argentina tomou elementos dos Estados Unidos no que diz respeito à questão dos monopólios. É muito similar. Então, não se pode acusá-los de comunistas.
“O problema é ocultar essas ideias numa redoma de neutralidade e imparcialidade que não existe. Isso é falso” Dentro dos limites capitalistas.
Os limites da democracia burguesa formal. Estamos num sistema capitalista e nossos países estão formados, ainda, por governos burgueses. Não há governos revolucionários. Assim que pudermos avançar a outras etapas, avançaremos na comunicação. Cada etapa tem o seu tempo. O grande problema é que durante 500 anos tínhamos uma cultura de colonização cultural.
Essa colonização cultural era a situação mais grave?
Era o mais grave. Seguíamos pensando como os estrangeiros. Agora, estamos mudando isso, olhando com nossos próprios olhos e mostrando o que somos. Essa mescla cultural, étnica, essa coloquialidade... Essa discussão permanente de como temos que viver em nossos países é a construção de uma nova democracia. Não se pode ter uma nova democracia sem uma comunicação democrática. Há uma relação direta da democratização da comunicação com a construção da nova democracia. O futuro da nova democracia em nosso continente tem a ver, basicamente, com esse papel de poder de uma comunicação massiva. Se não democratizarmos a comunicação, não teremos essa democracia real em nossos países. Reprodução
Criticam também o excesso de ideologia.
Se temos uma problema de ideologia, então não temos problema nenhum. Ou tudo será problema de ideologia. Estamos debatendo as ideias numa batalha permanente. O problema é ocultar essas ideias numa redoma de neutralidade e imparcialidade que não existe. Isso é falso. São falsos paradigmas que nos ensinaram. Não existe imparcialidade nos meios de comunicação. É um problema ideológico. Cada meio tem a sua linha editorial, marcada por seus interesses políticos, econômicos, comerciais, religiosos, que sejam.
QUEM É
Devemos nos inspirar em modelos já existentes de regulação de meios de comunicação, como os que existem em alguns países da
O uruguaio-venezuelano Aram Aharonian é jornalista, professor de pós-graduação, fundador da Telesur diretor da revista Questão e do Observatório Latino-Americano de Comunicação e Democracia (Olac).
internacional
de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011
11
As frágeis mulheres fortes de Israel ORIENTE MÉDIO Submissão religiosa, maus-tratos e desigualdades laborais complicam a existência de metade da população israelense Reprodução
Carmen Rengel de Jerusalém (Israel) “ÉS BENIGNO, Senhor eterno. Deus nosso. Rei do Mundo que não me fez mulher”. A cada manhã, numerosos judeus praticantes agradecem à Deus em sua reza de Adom Olam por haver-lhes salvado da escravidão, evitado que caíssem na idolatria e tê-los afastado do estigma de ser mulher, esses seres submetidos, cuja única função sobre a terra é engendrar novos filhos do povo escolhido. Nem todos os judeus recitam essa ladainha, nem todos creem de pés juntos que ser mulher é uma desonra. Não. Mas o certo é que, em Israel, a religião se mescla tanto com a vida que acaba por tornar-se lei. Ainda que formalmente não se tenha declarado um “Estado judeu”, Israel o é na prática, e são as mulheres as que mais sofrem essa realidade. Esse desenho da mulher israelense forte, firme, empreendedora, capaz de pilotar um caça, se esvai com outras qualificações, menos visíveis, mas igualmente reais: as da mulher insultada, aprisionada pela religião, minimizada por uma sociedade masculina. As frágeis mulheres fortes de Israel. Machismo e matrimônio
As mulheres, que são 51% da população do país (pouco mais de 3,5 milhões de pessoas), veem seus direitos vulnerados especialmente no campo da família. Arrastam a obrigação geral de se casarem por meio de um rito religioso, já que o matrimônio civil não é contemplado e, além disso, só se pode levar a cabo com o consentimento do rabino. Os problemas aumentam caso o casal queira separar-se. Gila Adahan, advogada de Jerusalém especializada em divórcios, explica que as separações se regem pelas leis do Talmud, dos séculos 4 e 5. “Só o homem pode conceder o divórcio, e tem que entregá-lo por escrito pessoalmente à mulher”. Essa cláusula dá lugar a um fenômeno denominado “mulheres ancoradas”, que não conseguem o divórcio se o marido não quiser ou, inclusive, se ele estiver fisicamente impedido e não puder assiná-lo com seu punho e letra. A solução, explica a especialista, passa por uma longa espera, já que a média para conseguir o divórcio em Israel é de dez anos, segundo ONGs, e de dois, segundo o governo. Existem mulheres que buscam outra solução: pagam a seus esposos para que as deixem separar. “Não é incomum que renunciem à moradia ou à manutenção dos filhos para tal. Chegam a um verdadeiro desespero”, completa.
Essa cláusula dá lugar a um fenômeno denominado “mulheres ancoradas”, que não conseguem o divórcio se o marido não quiser Critérios bizarros
Kaveh Shafran, porta-voz da associação Rabinos pelos Direitos Humanos, explica que as sinagogas tentam ajudar essas mulheres, convencendo os maridos a dar o braço a torcer. Os ameaçam com o “repúdio” da comunidade, com o impedimento de estudar o Torá, com o rebaixamento no organograma da sinagoga e até com denúncias às autoridades penais – em 2007, 80 homens cumpriam prisão depois de serem apontados por seus rabinos, informa a agência Efe. Às vezes, até pagam um detetive privado para ir atrás do marido fugido. Os rabinos se envolvem sempre que há uma “causa justificada” para o divórcio, mas aí reside outro dos inconvenientes: a extravagância desses critérios. Shafran explica que o Talmud não considera como “causa suficientemente argumentada” a infidelidade, a violência ou a ausência prolongada do lar. Por isso, se um homem ataca a punhaladas sua esposa, poderá ir à cadeia, mas não tem que conceder divórcio. Aceita-se como causa justificada o fato de o marido ter mau hálito ou não cumprir com suas obrigações na cama. “Um homem pode repudiar sua mulher se ela não cozinha bem, se encontra outra que o satisfaça mais ou se eles não têm filhos”, diz o rabino. A solteirice “é o maior mal para a mulher israelense”, afirma um dos rabinos mais conservadores do país, Ovadia Yosef, e nem de longe é uma solução: as solteiras estão condenadas ao ostracismo em sua comunidade. É preciso se casar, e logo (24,5 anos as judias, 20,5 as árabes) e ter muitas crias (três em média). Aqui não fica nem o consolo da Espanha antiga de tornar-se freira. Ao contrário: a mulher participa em pouquíssimos atos das cerimônias litúrgicas e apenas em um punhado de sinagogas mais abertas.
379 mulheres foram assassinadas em Israel nos últimos 20 anos
Em Jerusalem, mulheres rezam na parte reservadas a elas no Muro Ocidental
lonialismos e opressões. Em 15 anos, foram deportadas cinco mil mulheres”, afirma Ronen-Katz. A ONU calcula que cada traficante ganha por ano mais de 60 mil dólares por garota, cada uma comprada dee 7 e 25 mil dólares. Um bordel pequeno, com dez mulheres, pode gerar 250 mil dólares mensais. 70% das jovens são viciadas em drogas. Trabalho
Heranças da religião
Sigal Ronen-Katz, assessora legal da Israel Women’s Network (IWN, uma das principais organizações feministas do país), sustenta que a religião marca uma sociedade patriarcal que acaba por gerar maus-tratos. Sempre se difundiu a ideia da israelense valente, pioneira, combatente, criadora do Estado, pilar-mãe da sociedade, “mas, por trás disso, há pressões psicológicas e físicas muito fortes, especialmente no entorno religioso”. Segundo seus dados, 42% das mulheres ultraortodoxas apanham de seus maridos e 24% sofre violência sexual. Nos últimos 20 anos, 378 mulheres foram assassinadas por seus parceiros. A metade era formada por judias e árabes de idade madura que residiam em zonas radicalizadas.
Se um homem ataca a punhaladas sua esposa, poderá ir à cadeia, mas não tem que conceder divórcio Quase 36% delas eram estrangeiras, sendo que o número total desse segmento não supera um sexto da população total do país. 2010 foi o pior ano desde 2004, com 18 mortas, o dobro de 2009. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu informou, no Dia Mundial contra a Violência contra a Mulher (25 de novembro), que 200 mil israelenses e 600 mil crianças são vítimas de violência física ou emocional e, quando denunciam, levam em média cinco anos de calvário. Ele disse isso abaixando a cabeça diante das mulheres que reprovaram sua debilidade em relação aos agressores: há um ano, ele prometeu cinco milhões de shekel [moeda isaraelense] em ajudas e investimento em refúgios, mas ainda não liberou nada. As ligações para o serviço de assessoramento da IWN cresceram entre 30 e 50% no último ano. Entre as estrangeiras submetidas a maus-tratos, encontram-se, sobretudo, as russas e as etíopes, justamente as minorias mais presentes no mundo da prostituição. A Divisão para o Adiantamento da Mulher (DAW) sustenta que cerca de três mil mulheres estão submetidas à exploração sexual, apesar de que a religião deveria ser um freio para a maioria dos israelenses. Não é assim. “A prostituição é uma forma moderna de escravidão, inclusive neste país que nasceu fazendo iguais a homens e mulheres e já distante de co-
“As israelenses se movem em uma realidade masculina sob a falsa aparência de serem iguais”, escreveu, já em 1978, a feminista Lesley Hazleton. A situação não mudou muito, como revela a cada ano a comissão criada no parlamento israelense sobre a mulher. Ruhama Avraham Balila, deputada pelo Kadima e ex-ministra do Turismo, repassa os dados desolada. É uma das 23 mulheres de uma câmara com 120 parlamentares, que sempre oscila entre 7 e 10% de representação feminina, habitualmente de partidos de centro ou esquerda. Entre os dados que aponta, encontra-se o de as mulheres terem melhor formação que os homens, com dois pontos percentuais mais de tituladas em educação formal (22%) e nove pontos mais no ensino médio. 55,9% dos estudantes de formação superior são mulheres (a sétima melhor cifra do mundo), mas, apesar disso, o desemprego feminino é dois pontos superior ao masculino (de 6,1 a 8,3%). “É desesperador: somos um quarto do professorado universitário e a pressão familiar e religiosa afasta as meninas das carreiras técnicas. Por fim, somos maioria no de sempre: educação, trabalho social, enfermagem, secretariado… Onde estamos em economia ou defesa? Em nenhum lugar, não nos promovem, não nos veem como igual”, diz uma senhora que teve mais espaço na imprensa por ter sido eleita uma das políticas mais bonitas do mundo do que por seu trabalho.
Entre as estrangeiras submetidas a maus-tratos, encontram-se, sobretudo, as russas e as etíopes, justamente as minorias mais presentes no mundo da prostituição Nunca foi bem visto que mulheres tenham autonomia em seu emprego; assim, 91,4% das empregadas exercem funções de subordinação, contra 80% dos homens. Não chegam a 4,5% as que têm cargos executivos (sete pontos menos do que os homens) e, na política, passam de um terço apenas em prefeituras potentes como a da capital Tel Aviv. “Só houve nove prefeitas em nosso país”, denuncia Avraham. Na Corte Suprema, em 62 anos de Estado, só houve três mulheres. Nos últimos dias, a bri-
ga no Parlamento se centrou em fazer cumprir a lei de igualdade de salários, que chegam a diferenças de até 38%, e a abertura a todos os empregos, pois muitos estão vetados “por ser perniciosos para a saúde da mulher”, como os trabalhos noturnos. “Não nos deixam ser as judias fortes do Holocausto, ou as que saíram no filme Êxodo. Nos suavizaram no mau sentido. Temos pequenas coisas: um ano de licença maternidade, uma lei contra o assédio sexual muito potente, ajudas de escolarização… E, entretanto, ser mulher aqui é muito difícil”.
As mulheres árabes limpam Israel, basicamente. Ou dão aulas em colégios de sua mesma minoria. Ou cozinham. Trabalham por 47% menos do salário de uma israelense Minoria esquecida
A discriminação geral da mulher israelense se soma, no caso das árabes, ao fato de pertencerem a uma minoria esquecida. Fadwa Lemsine, 36 anos, empresária, se vê como uma vítima tripla, “por ser árabe em um Estado judeu, por suportar uma sociedade patriarcal que exala machismo e por não poder receber a qualificação necessária para escalar neste mundo de economia liberal”. Ela é uma exceção, parte desses escassos 3% de autônomas, sobrevivendo em sua loja de design de interiores. Segundo o Escritório Central de Estatística de Israel, só 18,6% das árabes trabalham, diante de 56% entre as judias. As mulheres árabes limpam Israel, basicamente. Ou dão aulas em colégios de sua mesma minoria. Ou cozinham. Trabalham por 47% menos do salário de uma israelense. Casam-se antes, têm mais filhos e, ainda que a palestina seja uma das comunidades mais progressistas do Oriente Médio, também carregam o rigor do Islã. “Eu estudei em um centro árabe, não tive subvenção alguma para abrir minha empresa, recebi pressões municipais para contratar judeus… Ainda assim, sou a primeira empresária da minha família, estou orgulhosa”, defende. Ela colabora em uma associação de mulheres e afirma que um quinto das mulheres de Israel vivem na pobreza e quase um terço não come todos os dias para que nada falte a sua família. “Essa é a tragédia, não temos poder, mas pobreza, e esse círculo vicioso não acaba”, lamenta. A crescente radicalização religiosa do país só complica as coisas. “Maus tempos, é sempre ruim nascer mulher nesta terra”. (Periodismo Humano) Tradução: Vinicius Mansur
12
de 30 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2011
áfrica
O milagroso homem da água MALÁUI Soldador de 50 anos trabalhou sozinho para fornecer o recurso a 25 mil pessoas de sua região Charles Mpaka/IPS
Charles Mpka de Blantyre (Maláui) HERMES CHIMOMBO, um soldador de 50 anos, é venerado no empobrecido distrito de Naotcha, no Maláui, país do sudeste africano. Armado com rudimentares ferramentas e paixão por aliviar o sofrimento humano, ele aproveitou um manancial de uma montanha para prover de água 25 mil pessoas. Voltemos para 1998. Numa noite qualquer, grupos de mulheres abrem passo com cautela ao longo de uma trilha sob a montanha Soche. Saem na escuridão para evitar as filas durante o dia. Levam baldes de água sobre suas cabeças e têm medo de ser atacadas por delinquentes ou hienas que perambulam pelas fronteiras do distrito rural de Chikwawa. “Esse era nosso pesadelo”, conta Sphiwe Adams, moradora do distrito de Naotcha há mais de 20 anos. A única fonte segura de água para beber, cozinhar e para uso doméstico era um manancial localizado no alto de uma encosta da montanha Soche, a 600 metros de onde a divisa do distrito se encontra com a floresta. A proprietária de imóveis Eluby Mkwanda recorda o que ocorria com aqueles que se mudavam para casas localizadas perto da divisa. “No primeiro dia das mulheres na montanha, podiase ver a ira em seus rostos. Não falavam com ninguém e gritavam com seus maridos por lhes terem levado para lá. Por isso, muitas dessas casas permanecem vazias”, diz.
“Eu havia levado as pessoas a acreditar que podíamos ter água. Não queria continuar vendo-os sofrer por outros sete anos” Crescimento populacional
Naotcha se encontra a cerca de 20 quilômetros do reservatório mais próximo da empresa estatal Junta de Água de Blantyre. O tanque foi construído em 1964 para servir aos assentamentos planejados que circundam Kanjedza e Zingwangwa. Mas a população da cidade de Blantyre cresceu de 113 mil habitantes em 1966 para 502 mil em 1998 – atualmente, estima-se que está em 670 mil. A crescente migração urbana, que começou a princípios de 1990, é a culpada
distrito. Chimombo estendeu a linha de distribuição principal em outro 1,5 quilômetro, até um segundo quiosque de duas torneiras. Ele estava abastecendo o distrito de água de forma gratuita. Mas seu negócio sofreu devido ao fato de que ele continuava a pôr dinheiro na execução do projeto. Em 2000, os moradores decidiram começar a pagar “como uma forma de agradecer a ele”. Hoje, eles compram águam por quatro centavos de dólar por 20 litros, um centavo a mais do que nos quiosques da Junta. Apropriação social
20
Mulheres e crianças enchem baldes com água em um dos quiosques de Blantyre
km
é a distância que separa o distrito de Naotcha do reservatório de água estatal mais próximo
pelo rápido crescimento das favelas. Em 40 anos, a Junta não fez nenhum grande investimento para expandir sua rede e assegurar um abastecimento continuado de água à população, disse seu porta-voz à IPS. Chimombo era o chefe do Comitê de Desenvolvimento da comunidade em 1998. O problema da água se converteu rapidamente em sua maior preocupação. Em 1999, ele buscou apoio do Malawi Social Action Fund (Masaf), um programa financiado pelo Banco Mundial, cujos responsáveis responderam que considerariam sua proposta, mas apenas para a seguinte rodada de projetos, dali a sete anos. “Senti a responsabilidade de salvar a situação”, diz Chibombo. “Eu havia levado as pessoas a acreditar que podíamos
ter água. Não queria continuar vendo-os sofrer por outros sete anos”. Na mesma semana, usando dinheiro de seu pequeno negócio de soldadura, comprou uma tubulação vertical, uma caixa d’água com capacidade para 100 litros, cimento e condutores elétricos de uso doméstico. Em apenas um dia de trabalho, colocou a caixa d’água na montanha e fez nela uma abertura para captar a água do manancial. Depois, soldou 20 metros da tubulação no extremo inferior do recipiente e estendeu tubulações de 700 metros até uma clareira na divisa do distrito.
O sistema de Chimombo expandiu-se a 20 quiosques alimentados por três fontes da montanha. Eles fornecem água durante as 24 horas do dia E a água fluiu. “Esse dia foi uma celebração. Aconteceu um milagre. Não acreditávamos nele, depois da recusa do Masaf, mas Chimombo seguiu adiante com os garotos de seu negócio”, recorda Eluby. Mas esse ponto de água ainda estava longe para muitos habitantes do
O sistema de Chimombo expandiu-se a 20 quiosques alimentados por três fontes da montanha. Eles fornecem água durante as 24 horas do dia. Seus três “reservatórios”, agora substituídos por cisternas de concreto, são limpos por dentro uma vez por mês, momento em que a água também é tratada com cloro fornecido pela Câmara Municipal de Blantyre. Como se negou a se apossar do projeto, Chimombo entregou a gestão de 16 quiosques a outras pessoas. Elas mantêm a rede e fiscalizam a venda de água em suas regiões. O dinheiro é delas. Dos quatro quiosques a seu cargo, Chimombo coleta cerca de 14 dólares diários de cada um. Uma ONG local, a Sustainable Rural Growth and Development Initiative, vinculou o grupo à Câmara Municipal para se capacitar em administração. Além disso, a entidade apoia a restauração da floresta, que foi objeto de degradação, e a expansão da rede a localidades próximas com baixa densidade de população. O diretor-executivo da ONG, Maynard Nyirenda, disse que a invenção de Chimombo ilustra como o Maláui pode explorar seus vastos recursos hídricos para eliminar os problemas de fornecimento. Ironicamente, sua inovação não alcança sua própria casa. Sua esposa caminha por cerca de 20 minutos até um dos quiosques de água. Ocasionalmente, eles conseguem pegar água da torneira da Junta de Água no seu pátio. Mas esses dias são muito raros, diz Chibombo. “Estou satisfeito porque isso que começou como algo pequeno beneficiou milhares de pessoas. Ainda existem moradores que pegam água de córregos poluídos, mas acho que isso mudará à medida em que o projeto cresça”. Para Sphiwe Adams, os moradores do distrito de Naotcha nunca poderão agradecer a Chimombo o suficiente. “Só Deus sabe como agradecer a ele”, diz, enquanto levanta seu balde em um dos quiosques. (IPS) Tradução: Igor Ojeda
AGRICULTURA
O Banco Mundial vestido de ovelha ANÁLISE O organismo financeiro leva a cabo há anos um dissimulado programa para a aquisição, mediante compras, de grandes extensões de terras no continente africano Hedelberto López Blanch O BANCO MUNDIAL (BM), que se caracterizou, juntamente com o Fundo Monetário Internacional (FMI), por impor às nações subdesenvolvidas políticas neoliberais leoninas, leva a cabo há anos um dissimulado programa para adquirir, mediante compras, grandes extensões de terras no continente africano. Como se não tivesse nada a ver com esse negócio, o BM informou recentemente que a compra de terrenos agrícolas no Sul em desenvolvimento, por parte de governos ricos e companhias estrangeiras, é um fenômeno que se intensificará nos anos que virão. O organismo explicou, em um documento, que em 2009 foram firmados acordos para a compra de 45 milhões de hectares e que em 2010 a cifra se ampliaria, pois companhias transnacionais e nações desenvolvidas buscam se estabelecer em outras regiões do planeta diante do temor de os preços dos produtos alimentícios e das matérias-primas continuarem aumentando e de a água se escassear. Dessa forma, poderão abastecer seus países de origem, e, ao mesmo tempo, obter abundantes lucros. Um estudo da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) e do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida) assegura que as compras de terras para pro-
duções agrícolas na África Sub-Saariana, por parte de investidores estrangeiros, tem aumentado consideravelmente. A investigação abarcou apenas as compras que passavam dos mil hectares em cada transação, efetuadas em cinco países desse continente. O resultado foi que a propriedade de 2,5 milhões de hectares havia sido passada desses Estados a outros governos estrangeiros que efrontam em seus países problemas de superpopulação e escassez de terra para a agricultura. Discurso falso
Embora estes cheguem com um discurso enaltecedor sobre os benefícios que seus projetos levarão para a população local – como a construção de estradas, sistemas de irrigação, criação de postos de trabalho – e digam que uma parte dos alimentos produzidos se destinará ao mercado africano, a realidade é outra.
Esse organismo favorece a compra de terras africanas por companhias estrangeiras para a produção de alimentos e a fabricação de biocombustíveis
Essa prática não é nova, pois foi utilizada há décadas em outros continentes. Por exemplo, depois da midiatizada “independência” de muitos países da América, o governo estadunidense e suas companhias se apossaram de extensos terrenos. A United Fruit Company, transnacional estadunidense fundada em Boston em 1899, se apossou de milhões de hectares de terra de vários países da América Latina, como Honduras, Colômbia, Costa Rica, Equador, Cuba etc. Mudou de nome em 1970, para United Brands, e, em 1990, para Chiquitica Brands, mas continuou estreitamente relacionada com a exploração indiscriminada dos trabalhadores, repressões contra qualquer demanda operária, golpes de Estado contra governos progressistas e saque das riquezas nacionais. Um de seus primeiros presidentes, Sam Zemurray, disse, a princípios do século 20, uma frase que reflete a verdadeira imagem da companhia: “em Honduras, é mais barato comprar um deputado do que uma mula”. Em Cuba, a United Fruit foi nacionalizada depois do triunfo da Revolução de 1959, e esse é um dos aspectos que custou à ilha padecer de um bloqueio econômico por mais de 50 anos por parte dos EUA. Papel do Banco Mundial
Em primeiro lugar, os maiores afetados são os pequenos agricultores que sustentam suas famílias com o monocultivo, que devem se mudar para outros locais (isso se conseguem encontrá-los ou se lhes permitem fazê-lo) ou migrar para as cidades, onde aceitam qualquer tipo de trabalho para tentar sobreviver nessas péssimas condições.
Na África, as independências dos países começaram no final da década de 1950 e início da de 1960, muito mais tarde do que na América. O fato de ser um continente distante e possuir um alto grau de subdesenvolvimento, deixado pelas antigas metrópoles, desalentaram, inicialmente, o investimento das transnacionais e países desenvolvidos. Estes, há alguns anos, diante
das riquezas dos subsolo africano (petróleo, diamantes, urânio etc.) e do aumento dos preços dos produtos alimentícios, entre outros fatores, estão se reassentando no continente. Nessa prática, o Banco Mundial desempenha um papel especial, como denunciou o Instituto Oakland, que apontou que esse organismo favorece a compra de terras africanas por companhias estrangeiras para a produção de alimentos e a fabricação de biocombustíveis. Esse centro de investigação estadunidense informou que as transações se efetuam por meio da Sociedade Financeira Internacional (SFI), filial do BM que impõe as políticas neoliberais do organismo para a monopolização das melhores terras de cultivo africano por parte de grupos estrangeiros. A SFI pressiona os Estados africanos para que modifiquem suas legislações de maneira a permitir a entrada de investimento estrangeiro sem restrições, e a lhes facilitar que façam o que desejarem nos terrenos adquiridos, assim como com as produções e os lucros obtidos. O Instituto Oakland expõe os casos de Serra Leoa e Libéria, que realizaram, em 2009, mais de vinte reformas legais a respeito. Há dois anos, outro informe da FAO advertia sobre o risco de um maior empobrecimento dos países africanos devido à compra de terra por empresas estrangeiras, prática que dissimuladamente o Banco Mundial impulsiona. Com muita razão, o presidente da FAO, o senegalês Jacques Diouf, catalogou essas ações como “um novo colonialismo”. (Portal Ajintem) Hedelberto López Blanch é jornalista cubano Tradução: Igor Ojeda