Edição 412 - de 20 a 26 de janeiro de 2011

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Reprodução

Causas e efeitos da tragédia Circulação Nacional

Págs. 2, 7 e 8

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 9 • Número 412

R$ 2,80

São Paulo, de 20 a 26 de janeiro de 2011

www.brasildefato.com.br

Para onde vai

Tatiana Merlino

Cuba?

Os cubanos veem em seu horizonte as maiores mudanças desde a Revolução de 1959. O VI Congresso do Partido Comunista, que será realizado em abril, deve oficializar concessões ao livre mercado e reduzir o Estado. Mas especialistas afirmam que o socialismo continua na ilha. Págs. 10 e 11

Conjuntura

O mercado avança suas fronteiras Pág. 4 Gestão pública

Privatização ameaça a saúde Pág. 5

ISSN 1978-5134

Guilherme C. Delgado

João Brant

Leandro Konder

Alimentos e inflação

Agruras da banda larga

Peixinhos

A conjuntura econômica revela pressão inflacionária oriunda dos mercados agrícolas – ênfase nas carnes, cereais, grãos e açúcar, setores em relação aos quais o Brasil ocupa posição de protagonista no comércio internacional. Pág. 8

O Brasil é um dos países em que o serviço de internet em banda larga é mais caro, tanto em valores absolutos como, se considerado, o poder aquisitivo da população. E a velocidade ofertada é mentirosa. Pág. 3

Trinta anos atrás, o poeta Ferreira Gullar me contou uma historinha que jamais esqueci. O protagonista era um comerciante português que resolveu comprar uns peixinhos coloridos que viu em Lisboa. Pág. 3


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de 20 a 26 de janeiro de 2011

editorial

As causas de tantos desastres ambientais SOFREMOS MAIS uma tragédia. Mais de 600 pessoas perderam a vida nos municípios serranos do Rio de Janeiro. Outras dezenas pagaram com a vida em São Paulo, Minas Gerais... A televisão e os meios de comunicação da burguesia estão cumprindo seu papel: transformaram a desgraça alheia num espetáculo diuturno, em que se assiste a tudo, menos o mais importante, que é debater sobre o por que está acontecendo tudo isso. Para a televisão não interessa debater as causas. Seu objetivo não é resolver os problemas sociais, é apenas aumentar a audiência. E aumentando a audiência, sobem os pontos para as tarifas da publicidade que cobram das empresas. Para a classe dominante, a burguesia brasileira e seus representantes no Estado brasileiro, tampouco interessa debater quais as causas destes desastres ambientais. Eles sabem que um debate mais reflexivo, sério e profundo certamente chegaria até eles como os principais responsáveis e causadores dessas tragédias. Assim, a população brasileira vai vivendo de espetáculo em espetáculo, como uma verdadeira novela. Ou melhor, de tragédia em tragédia. Mas novela é ficção, representação, teatro. E o que está acontecendo não

opinião

é teatro. Na vida real, milhares de famílias perdem suas casas e tudo o que construíram. Centenas perdem seus entes queridos. Mas quem se importa com isso? As elites dizem: “o povo logo esquece as desgraças...” e a vida se normaliza. Quem ainda se lembra de quantos morreram na região sul do estado do Rio no ano passado? Quantos se lembram das 13 cidades pobres do sul de Pernambuco e norte de Alagoas que foram soterradas no ano passado? Quantos ainda se lembram que ainda há centenas de desabrigados, na região de Blumenau (SC), dos desastres de dois anos? Felizmente têm aparecido análises sérias, de estudiosos e especialistas ambientais, que nos levam a entender e a explicar onde estão as verdadeiras causas desses “desastres naturais”, provocados pela ação humana e que têm-se repetido sistematicamente no território brasileiro. Destas avaliações, podemos enumerar as principais: 1. Houve uma agressão permanente no Bioma da Amazônia e do Cerrado, destruindo a vegetação nativa e introduzindo a monocultura e a pecuária. Isso alterou o regime de chuvas e criou uma verdadeira estrada que traz chuvas torrenciais do Norte para o Sudeste. 2. Houve uma agressão ao não se respeitar o meio ambiente ao redor

A televisão e os meios de comunicação da burguesia estão cumprindo seu papel: transformaram a desgraça alheia num espetáculo

das cidades, e não há mais áreas de proteção nos cumes das montanhas, nas encostas e margens dos rios. De maneira que, quando aumentam as chuvas, elas se projetam diretamente sobre as moradias e a infraestrutura social existente. 3. Houve uma impermeabilização das cidades, em função do automóvel, para ele andar mais rápido. Tudo é asfaltado. E quando chove, a velocidade das águas aumenta de forma abrupta, em tempo e volume.

4. Há uma especulação imobiliária permanente, que quer apenas lucro, empurrando os pobres para ladeiras, encostas, margens de rios, córregos e manguezais. 5. O modelo de produção agrícola do agronegócio introduziu o monocultivo extensivo, sobretudo com pasto, cana e soja, que desequilibraram o meio ambiente. Destruindo toda a biodiversidade vegetal e animal. Este desequilíbrio provoca alteração no regime de chuvas, na sua intensidade e concentração em determinadas regiões. Ou seja, chuvas torrenciais, concentradas em volume e em determinados dias. Isso é provocado pelo tipo de agricultura, que devastou o equilíbrio que havia na biodiversidade natural. Daí que a agricultura familiar, que pratica agroecologia e agrofloresta é fundamental para o equilíbrio do regime de chuvas, de clima e temperaturas em todo o território nacional, inclusive nas cidades. 6. As cidades brasileiras estão se organizando apenas em função do transporte individual, do automóvel, que apenas dá lucro para meia dúzias de transnacionais instaladas no país. Então se investem volumosos recursos em obras de vias públicas, fazem-se pontes, túneis, viadutos, soterram-se córregos etc. Tudo isso altera o equilí-

crônica

Wladimir Pomar

brio que havia nos territórios hoje urbanizados. 7. A população urbana perdeu o hábito de ter jardins, hortas familiares e defender mais áreas verdes nas cidades, que ainda poderiam amenizar o volume das chuvas e o equilíbrio das temperaturas. Elas também são induzidas a impermeabilizar os arredores de suas casas. 8. Nenhum governante ou agência estatal se preocupa com medidas preventivas, que pudem avisar e deslocar as populações para lugares seguros, como se faz na maioria dos países. Basta lembrar que, há dois anos, Cuba sofreu um ciclone de proporções imagináveis, que arrasou o território. Mas eles tiveram apenas três mortos em todo país. Porque, antes, deslocaram milhões de pessoas para abrigos, e o Estado os deu proteção. O fato é que tudo isto faz parte de um modelo capitalista de organizar a vida social apenas para o lucro, que representa o desastre, a desgraça e o alto custo de vidas humanas cada vez maior. Portanto, enquanto a sociedade e os governantes não se conscientizarem, assumirem suas responsabilidades e tomarem medidas concretas para enfrentar as verdadeiras causas, teremos, infelizmente, a repetição periódica de tragédias ambientais e sociais.

Silvio Tendler

Valter Campanato/ABr

Cine Belas Artes: luta ou saudades do futuro Em “A cidade invisível”, Ítalo Calvino descreve a memória das cidades e a importância da paisagem urbana (re)conhecida por seus habitantes. As ruas, becos e postes familiares — e como objetos de memória integrados à vida das sociedades locais.

Tragédia e irresponsabilidade EM SEU DISCURSO no Congresso, a presidenta Dilma acentuou seu compromisso de que o Brasil é e será campeão mundial de energia limpa e um país que sempre saberá crescer de forma saudável e equilibrada. Continuará desenvolvendo as fontes renováveis de energia, a exemplo do etanol, fontes hídricas, biomassa, eólica e solar. E não esqueceu de acentuar que o Brasil continuará também priorizando a preservação das reservas naturais e de suas imensas florestas, atuando nos fóruns multilaterais para defender o equilíbrio ambiental do planeta, não condicionando tais ações ao sucesso e ao cumprimento, por terceiros, de acordos internacionais. É evidente que a presidenta não podia se alongar nos problemas que o Brasil enfrenta na área ambiental, apesar das vantagens que apresenta nesse terreno. Problemas que estão relacionados, em enorme proporção, a uma urbanização descontrolada, em virtude da pobreza e da miséria ainda predominantes e, também, de uma especulação imobiliária totalmente irracional, diante das quais muitos poderes públicos estaduais e municipais são coniventes ou inoperantes. Se fizermos um levantamento histórico do processo de ocupação do solo no Brasil, tanto nas áreas rurais, quanto nas zonas urbanas, não é difícil notar a acumulação de fatores anunciantes de tragédias. Por um lado, os pobres, na busca de espaços para morar, são obrigados a encarapitar-se, com suas moradias precárias, em áreas de alto risco. Por outro lado, as camadas médias e os ricos, muitas vezes, associam-se aos especuladores imobiliários, que impõem a eles e aos governos construções e mais construções, sem espaços urbanos permeáveis e verdes,

Já que as mudanças climáticas dificilmente podem ser controladas pelos seres humanos, podemse prevenir as tragédias humanas compensáveis por construções de vista linda e clima agradável também em espaços de risco. Se aliarmos a este processo o atraso, também histórico, na construção de sistemas municipais e estaduais de monitoramento e enfrentamento de calamidades naturais, apesar de todas as teorias existentes sobre os efeitos das mudanças climáticas, teremos um quadro geral de irresponsabilidade histórica e tragédias previsíveis, cujos sinais já vêm-se multiplicando pelo menos há mais de 20 anos atrás. As quedas de encostas e as enchentes, arrastando pessoas, casas e outros bens, na região serrana do Rio de Janeiro, em Minas, São Paulo e outros estados e cidades brasileiras neste verão, são apenas o prelúdio trágico do que nos espera se as mudanças climáticas se incentivarem, como preveem muitos cientistas, e se as medidas corretivas forem apenas tópicas, como ter equipamentos para monitoramento mais preciso dos fenômenos climáticos e locais para a reunião de pessoas em situação de risco. Se o Brasil quiser realmente crescer de forma saudável e equilibra-

da, priorizar a preservação das reservas naturais e de suas imensas florestas, defender o equilíbrio ambiental, como sugere a presidenta, será necessário que o governo enfrente com novo rigor a questão do uso do solo urbano e rural, colocando em sua pauta tanto a revisão mais profunda do código florestal como a necessidade de avançar na consecução de reformas urbanas, tanto em relação ao uso do solo como nos modelos de edificação. Além de não permitir mais a derrubada de florestas sem compensações ambientais seguras, não é mais possível que se permita a derrubada de matas ciliares, nem a existência de milhares de hectares sem faixas florestais contínuas. Também não é mais admissível deixar que praças ou espaços florestados urbanos sejam substituídos por construções; e que novas construções estejam agarradas às demais, sem espaços de ventilação e sem áreas verdes. Nem que sejam autorizadas construções em encostas que apresentem geologia insegura. Já que teremos pela frente eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, talvez tenha chegado o momento de reformar algumas cidades com um novo conceito de urbanização, em que o uso do solo seja regulamentado, o verde passe a ter papel predominante e os prédios sejam poupadores de energia e pouco poluentes. Os exemplos e as técnicas já existem, tanto no exterior como no próprio Brasil. Assim, já que as mudanças climáticas dificilmente podem ser controladas pelos seres humanos, mesmo que a emissão de gases de efeito estufa seja reduzida, podemse prevenir as tragédias humanas, abandonando a irresponsabilidade histórica e preparando-se melhor para as calamidades naturais. Wladimir Pomar é escritor e analista político.

UMA CONCEPÇÃO e uma vivência bem distintas. Na minha cidade, o Rio de Janeiro, assisti ao massacre de minha memória de cinéfilo. A noção de progresso, submetida à força do capital, sempre fala mais alto e o valor de um prédio mede-se mais pela taxa dos impostos urbanos do que pelas lembranças que traz do seu uso. Meus cinemas de infância e juventude em Copacabana — Metro, ArtPalácio, Copacabana, Caruso — viraram loja de departamentos, sapataria, academia de ginástica e banco, respectivamente. O Alvorada sumiu na poeira da cidade. Outros usos tiveram o Ricamar, que se transformou em centro cultural da prefeitura, e o Riviera, que virou boate gay. O Rian, vítima de um incêndio suspeito, tornou-se um mega hotel. Do cinema, ficou a imagem do público dançando rock durante as sessões em que era projetado “Balanço das horas”. Os jovens da “geração da Lambreta”, da “Juventude Transviada”, iam terminar a festa nas areias de Copacabana embalados pela música de Bill Halley e seus cometas. As gatinhas dos anos ‘50 hoje passeiam com seus netinhos pela praia e não se reconhecem no portentoso hotel. Apenas a lembrança de uma juventude bem vivida.

Não cabe aí um pensamento de resistência? Das minhas memórias de cineasta, as perdas mais dolorosas foram o Caruso, no Rio de Janeiro, onde lancei Os anos JK e batemos em bilheteria Mulher nota dez (com a Bo Derek). E agora me entristece a notícia que o cine Belas Artes, em São Paulo, vai virar “outra coisa”. Os herdeiros do falecido dono do prédio querem retomá-lo. Lembro-me daqueles dias também ali, das filas virando curva na esquina, do público aplaudindo de pé, primeiro Os anos JK, em seguida Jango, filmes que contavam a saga da luta por democracia. Havia uma cumplicidade entre cinema e história, espectadores e cidadãos. Era tudo a mesma coisa. Os amigos telefonavam de São Paulo — não havia internet, nem correios eletrônicos ou e-mails — e contavam emocionados as notícias dos filmes aplaudidos de pé no final da sessão. De um tal político que foi assistir, se reconheceu na tela e saiu emocionado, ou de tal outro que saiu indignado com a “parcialidade” da obra. A última sessão que participei como cineasta foi ano passado, em 2010, com Utopia e barbárie, promovida por defensores públicos. Significativamente, o filme é a minha tentativa de contar um pouco a história das nossas lutas históricas. O Cine Belas Artes parece que vai acabar, os jornais trazem notícias que sugerem um fato consumado. Dão conta da indiferença do prefeito e dos cidadãos diante do ocaso de um dos últimos cinemas de rua (que faz do espetáculo algo bem diferente do “cinema de shopping”). Entretanto, como um bom e teimoso sonhador, desses que, com Thiago de Mello, pretendem ainda e sempre cavalgar os sonhos, insisto em me perguntar: – Devemos assistir, nostálgicos, à destruição do sonho futuro de um mundo mais humano para a cidade e para as nossas vidas? Não cabe aí um pensamento de resistência? Numa ação que, plenamente possível, repousa nas organizações sociais de uma cidade que fermenta e transpira, por mais frios que sejam os gestores públicos, no calor de suas vespertinas ou notívagas agitações culturais? Na possibilidade de uma ação que movimentaria a vida cultural daquela que já foi mais que jocosamente a paulicéia desvairada? Podemos acreditar? Silvio Tendler é cineasta, diretor de Os anos JK, Jango e Utopia & barbárie, entre outros documentários. Colaborou Luiz Carlos Antero. (Portal Vermelho)

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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instantâneo Eduardo Anizelli/Folhapress

Leandro Konder

Peixinhos

REPRESSÃO – A PM de São Paulo reprime manifestantes que protestavam contra o reajuste das passagens dos ônibus municipais autorizado pelo prefeito Gilberto Kassab (DEM)

João Brant

Agruras da banda larga TODOS SABEM QUE a internet banda larga no Brasil é cara, lenta e para poucos. Apenas 27% das residências estão conectadas à banda larga, isso considerando como “largas” conexões a partir de 256 kbps. O Brasil é um dos países em que o serviço é mais caro, tanto em termos de valores absolutos como, se considerado, em termos de poder aquisitivo da população. E a velocidade ofertada é mentirosa, como denunciam as próprias letras miúdas do contrato – as empresas só garantem 10% da velocidade contratada. Se pensarmos que a internet viabiliza o acesso a diversos serviços, amplia o acesso ao mercado de trabalho e fortalece a diversidade informativa e cultural, o problema é grave. Concorrência quase não existe; na maioria dos casos, o serviço é prestado só pela operadora de telefonia fixa. Na longa distância, o quadro é ainda pior. Algumas prefeituras tentam oferecer serviço gratuito para a população, mas se veem frente ao controle da rede de longa distância por operadoras privadas monopolistas, que cobram quanto querem.

Para enfrentar este quadro, o governo desenhou um Plano Nacional de Banda Larga. A principal ação prevista é a reativação da Telebrás, que passa a coordenar o uso das redes de fibra ótica de várias empresas da administração indireta (Eletronorte, Chesf, Petrobras etc.). Ela vai ofertar capacidade de tráfego de longa distância para provedores locais. A expectativa é que essa ação gere competição e abra espaço para milhares de pequenos provedores prestarem o serviço diretamente. Mas e naquelas cidades em que não há provedores interessados ou não há oferta adequada? A Telebrás diz que nestes casos, e só nesses, vai oferecer o serviço diretamente ao cidadão. Não deveria ser assim. Onde o custo de implementação é mais baixo e há mais usuários dispostos a pagar, a Telebrás não entra. Onde vai ter de investir milhões para se instalar e há um mercado pouco lucrativo, ela entra para cobrir as “falhas de mercado”. É uma concessão injustificável. Banda larga deve ser um serviço público universal, barato e de qualidade para garantir o direito fundamental dos cidadãos à comunicação.

Igor Fuser

A Tunísia era uma ditadura! QUANDO EU INGRESSEI como redator na editoria de assuntos internacionais da Folha de S.Paulo, um colega veterano me ensinou como se fazia para definir quais, entre as centenas de notícias que recebíamos diariamente, seriam merecedoras de destaque no jornal do dia seguinte. “É só olhar os telegramas das agências e ver o que elas acham mais importante”, sentenciou. Pragmático, ele adotava esse método como um meio seguro de evitar que o noticiário da Folha destoasse dos jornais concorrentes, os quais, por sua vez, se comportavam do mesmo modo. Na realidade, portanto, quem pautava a cobertura internacional da imprensa brasileira era um restrito grupo de três agência noticiosas – Reuters, Associated Press e United Press International, todas afinadíssimas com as prioridades geopolíticas dos Estados Unidos. Passadas mais de duas décadas, a cobertura internacional da mídia brasileira ainda se orienta por diretrizes estrangeiras. A única diferença é que agora as agências enfrentam a competição de outros fornecedores de informação, como a CNN e os serviços de empresas como a BBC e o New York Times, oferecidos pela internet. Mas o conteúdo é o mesmo. Quem confia nessa agenda está condenado a uma visão parcial e distorcida, uma ignorância que só se revela quando ocorrem “surpresas” como a rebelião popular que derrubou o governo da Tunísia. De repente, o mundo tomou conhecimento de que a Tunísia – um país totalmente integrado à ordem neoliberal e um dos destinos favoritos dos turistas europeus – era governada há

23 anos por um ditador corrupto, odiado pelo seu povo. Como é que ninguém sabia disso? A mídia silenciou sobre o despotismo na Tunísia porque se tratava de um regime servil aos interesses políticos e econômicos dos EUA. O ditador Ben Ali nunca foi repreendido por violações aos direitos humanos e, mesmo quando ordenou que suas forças repressivas abrissem fogo contra manifestantes desarmados, matando dezenas de jovens, o presidente estadunidense Barack Obama e sua secretária de Estado, Hillary Clinton, permaneceram em silêncio. Não abriram a boca nem mesmo para tentar conter o massacre. Só se manifestaram depois que Ben Ali fugiu do país, como um rato, carregando na bagagem mais de uma tonelada de ouro. O caso da Tunísia não é o único na região. No vizinho Egito, outro regime vassalo dos EUA, Hosni Mubarak governa ditatorialmente desde 1981. Suas prisões estão lotadas de opositores políticos e as eleições ocorrem em meio à fraude e à violência, o que garante ao governo quase todas as cadeiras parlamentares. Mas o que importa, para o “Ocidente”, é o apoio da ditadura egípcia às posições estadunidenses no Oriente Médio, em especial sua conivência com o expansionismo israelense. Por isso, a ausência de democracia em países como a Tunísia e o Egito nunca recebe a atenção da mídia convencional, ao contrário da condenação sistemática de regimes autoritários não-alinhados com os EUA, como o Irã e o Zimbábue. É sempre assim: dois pesos, duas medidas.

comentários do leitor Direita nos EUA

Transporte em SP

Em uma analogia com os partidos políticos do Brasil da ditadura militar, os EUA têm os partidos do “sim” e do “sim, senhor”. Entendendo como “senhor” os interesses que de fato governam os EUA. A vitória do “sim” (Obama) significa mais um período de dissimulações, discursos messiânicos, apelos pelo carisma e, de fato, as mesmas políticas do turma do “sim, senhor”. A vitória do “sim, senhor” (Palin) coloca de forma escancarada o que são os EUA e, assim sendo, contribuem para uma maior conscientização das pessoas ao redor do mundo. Foi com a selvageria de Bush, e não com a simpatia de Clinton (que cometeu tantas atrocidades quanto Bush), que os protestos e propostas de distanciamento ao EUA se intensificaram.

Sem contar que nosso ilustre prefeito não anda nem de carro no nosso trânsito também maravilhoso! Tem um pequeno helicóptero à disposição, conforme matéria da própria Veja! Orgulho de ser brasileiro e mostrar ao resto do mundo que podemos pagar os mais altos impostos e tributos e ainda sorrir! Sem dúvida o Brasil é o país mais rico do mundo! (Ou pelo menos deveria ser, né?)

Ricardo Oliveira, por correio eletrônico

Tiago Oliveira, por correio eletrônico

Chuvas As notícias parecem repetirem-se, e ano a ano trazem a certeza de que devemos mudar rapidamente as condições pelas quais são encaminhadas para periferia as populações de baixa renda, de migrantes de todo Brasil e dos trabalha-

dores rurais, não aproveitados no campo, vítimas de uma rápida e feroz modernização. Não podemos deixar mais que o laissez-faire ou a doutrina do cada um por si prevaleça e dê o tom ao acesso à moradia, educação, saúde e segurança, sempre sem conforto e com grandes riscos em precárias moradias da periferia. Tragédias no Rio de Janeiro (2011), em São Paulo (2010), Florianópolis (2008) e outras tantas pelo Brasil, mostram que devemos cuidar preventivamente do uso do solo e cuidar de aplicar regras que limitem a instalação de novos moradores em locais críticos dos centros urbanos. Marcio Automare, por correio eletrônico

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico comentariosdoleitor@brasildefato.com.br

TRINTA ANOS ATRÁS, o poeta Ferreira Gullar me contou uma historinha que jamais esqueci. O protagonista do relato era um comerciante português que havia enriquecido no Brasil. De repente, não se sabe por que, o homem resolveu comprar uns peixinhos coloridos que viu em Lisboa. Trouxe-os para o Rio. Porém as condições da viagem, naquela época, eram precárias. Instalados num grande recipiente de vidro, os peixes não suportaram a longa viagem e morreram todos. Sem admitir sua derrota, o português tomou providências que deveriam garantir sua importação: alugou um navio e contratou uma equipe de especialistas para assegurar a sobrevida dos peixes. Durante a viagem, contudo, os peixinhos morreram. O português, então, tornou a alugar a piscina do navio, onde colocou os peixinhos e acrescentou à sua carga um vigoroso tubarão. Em seguida, reiniciou a viagem que deveria durar vários dias. Terminou no Rio de Janeiro. O comerciante luso verificou que metade dos peixinhos tinha sido comida pelo tubarão. A outra metade, entretanto, defrontada com a morte iminente, sobreviveu. Outra historinha que eu gostaria de contar aqui é a do escritor Franz Kafka e que também fala de animais. Kafka coloca como narrador da história um cavalo que participou de uma batalha entre seres humanos e comenta a guerra de que participou. Ele constata que teria muito a perder se fosse o vencedor, pois estaria sendo olhado com inveja mesquinha por parte dos demais participantes. Os animais e seus jóqueis corriam risco de vida e, quando se via o resultado, eles lamentavam fazer tanto esforço por uma experiência humanamente tão pobre.

Façam a propaganda que quiserem, os escritores de talento não se reduzirão a meros agitadores ordinários Após a vitória, o exército ocupou o bosque e a pequena fortaleza em que o campeão (o coronel inimigo) se instalara. Com sinceridade, o cavalo achava estranhas aquelas criaturas que brigavam e corriam risco de morte para mudar a situação de modo que tudo permanecesse como estava. Ao ver o comandante vitorioso instalado no calabouço (por motivo de segurança), o cavalo perdedor achava muita graça. Ler é uma aventura mais rica do que parece. Cada leitor, ao interpretar o que está lendo, por mais prudente que seja, promove uma adequação de aspectos do texto lido ao panorama em que se encontra no plano do pensamento e da ação. A sensibilidade do autor busca sempre a percepção do bom leitor. Cada um de vocês faça a experiência. Sem rituais ou fanatismos, vocês verão que os dois contos acolhidos neste jornal dão conta de que uma imagem, uma síntese pode mudar no leitor algo da sua maneira de ver o mundo. As lições que o século 20 nos deu tiveram momentos brilhantes, mas os autores cometeram erros graves. A literatura é uma expressão criada por artistas muito diferentes uns dos outros, porém todos legítimos. Façam a propaganda que quiserem, os escritores de talento não se reduzirão a meros agitadores ordinários. E também – pressupondo o talento, os “dinossauros” da direita devem ser reconhecidos (e devidamente criticados) na política cultural. Os contos de Kafka e Ferreira Gullar são ilustrações magníficas da possibilidade de que um escritor talentoso, com motivação literária peculiar, é capaz de ir mais fundo do que um conservador na compreensão dessas criaturas que nós chamamos o gênero humano. Nós, da esquerda, somos desafiados cotidianamente por adversários cuja escassez de escrúpulos precisamos combater. Enfrentamos situações mais dolorosas e menos asseadas do que as da direita. É normal que tenhamos cometido erros, mas temos consciência de que, em comparação com o conservadorismo, teremos agido menos como delinquentes do que as figuras cheias de empáfia que nos atropelam.

Nós, da esquerda, somos desafiados cotidianamente por adversários cuja escassez de escrúpulos precisamos combater Não é preciso o papel em branco, chamando os leitores e provocando a polêmica com os conservadores. Os dois contos que deram início a esta reflexão feita a partir de Ferreira Gullar e Franz Kafka demonstram que o ponto de partida de uma obra literária não existe na forma de uma semente, que brotará de qualquer maneira; como tudo na realidade humana, a literatura depende também de trabalho. Leandro Konder escreve semanalmente neste espaço.


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brasil

“A luta é contra a financeirização de tudo” ENTREVISTA Na linha de frente das principais lutas latino-americanas, a economista Sandra Quintela discute desde a construção da Companhia Siderúrgica do Atlântico à dívida pública; do Haiti à crise ambiental mundial Divulgação

Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) NO RIO DE JANEIRO, megaprojetos de desenvolvimento estão sendo instalados a um alto custo socioambiental. O Brasil sofre com um modelo atrasado de desenvolvimento e com o crescimento galopante de sua dívida pública. Na América Latina, povos inteiros enfrentam as mais distintas dores. Assuntos diversos? Sandra Quintela, recentemente nomeada coordenadora regional da Rede Jubileu Sul, uma articulação de movimentos e ONGs de países do Sul, prova que não. Nesta entrevista, ela fala dos resultados da missão de entidades à região de Sepetiba para investigar os danos socioambientais da Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA). Aborda também o drama vivido pelo Haiti, as causas da dívida pública brasileira e as estratégias equivocadas de enfrentamento à crise socioeconômica global. Brasil de Fato – Depois da missão que foi à CSA, da repercussão que houve, está havendo avanço?

Sandra Quintela – A missão foi um passo importante no envolvimento de outras organizações que conheciam a luta, mas não a realidade concreta. A Defensoria Pública acaba de ir até lá. Um grupo de pescadores de lá foi até Anchieta (ES), em solidariedade aos impactos da CSU [Companhia Siderúrgica do Ubu]. A Fiocruz está fazendo um seminário interno para envolver toda a instituição. Isso tudo é consequência da missão. Os dados que nós colhemos também serão mais um instrumento para dar visibilidade. Nós sabemos a realidade da região: grupos milicianos, associações controladas por eles, a empresa usando uma tática cruel de cooptação (promovem cursos de meio ambiente para formar a cabeça de professores, contratam gente para dialogar com a comunidade, criam telefone 0800). Eles vão na contramão de tudo o que está sendo discutido hoje, que é a economia de baixo carbono. O capital está se renovando, criando novas fronteiras de acumulação, com esse argumento do “capital verde”. E a gente, aqui, importando um modelo que a Europa não quer mais.

“O capital está se renovando, criando novas fronteiras de acumulação, com esse argumento do ‘capital verde’” A gente vinha acompanhando esses problemas há quatro anos, e existia um bloqueio midiático. Agora, parece que começou a sair bastante na imprensa. Isso pode reforçar a luta?

Claro! Quanto mais as pessoas estiverem informadas, mais isso pode criar uma massa crítica. Os intelectuais orgânicos do Rio de Janeiro, e os artistas, deveriam estar mais envolvidos. Porque é o Rio de Janeiro que está em jogo. De um lado, constrói-se um polo siderúrgicoportuário-mineiro, e do outro lado um polo petroquímico. E a cidade no meio. Mas, pelo que você está dizendo, na Academia também não é muito fácil o diálogo.

Não. É uma cegueira. É como se o Rio de Janeiro não se pensasse. A Academia aqui está pensando a Amazônia, o Nordeste, o mundo, e há poucos setores pensando o próprio Rio de Janeiro. E essa é a cidade, entre as grandes metrópoles, onde está mais em disputa o projeto do capital. Porque a gente está transformando-a, há algum tempo, em uma cidadeproduto, uma cidade para ser vendida. O mundo nos conhece primeiro a partir do Rio de Janeiro. É um produto comercializado lá fora.

Vista aérea da CSA: indústrias intensivas em impacto socioambientais são deslocadas para a periferia do capital

la periódica. Então, o capital visa acumular o máximo. Nesses dez anos do século 21, explorou-se mais carvão mineral do que nos últimos séculos. Na Europa, eles agem diferente. Não têm mais planta lá – instalam aqui. É fácil ser consciente assim, deixando a parte suja para a gente. Na CSA, eles tiraram o emprego de oito mil pescadores e vão deixar dezenas ou centenas de trabalhadores com problemas de saúde. Isso tudo acontecendo com forte suporte financeiro do BNDES. Foi preciso capitalizar o BNDES criando títulos da dívida pública brasileira – e ele foi capitalizado em mais de R$ 180 bilhões. O governo toma emprestado no mercado internacional a uma taxa de juros altíssima, de 8% a 10%, e passa ao BNDES, que vai emprestar a uma taxa de 1% a 2% para a Vale, a Gerdau, a MMX etc. É uma lógica saqueadora – de recursos naturais, de força vital e de dinheiro público. As empresas beneficiadas – Odebrecht, Camargo Correa, Andrade Gutierrez – são uma caixa preta. Quem controla? São mesmo brasileiras? Tenho as minhas dúvidas. A gente vem trabalhando isso há mais de dez anos, a Rede Jubileu Sul. Buscamos provar que nós, do sul, somos os grandes credores da dívida social e histórica. Veja a lógica. O BNDES se capitaliza com títulos da dívida pública brasileira, e isso a gente vai pagar, porque quase 40% do Orçamento da União são para isso. É um escândalo. E não se fala disso. Os grandes temas do nosso projeto de país estão silenciados. E a dívida é o que financia esse modelo de desenvolvimento, que é uma via de mão dupla. Você se endivida para financiar esse modelo, e ele se mantém porque você tem que pagar a dívida. Você foi escolhida coordenadora regional da Rede Jubileu Sul. Em que isso muda a sua atuação?

Agora eu tenho que estar mais vinculada a temáticas regionais. Em Cancún [onde se realizou a COP-16, encontro da ONU sobre mudanças climáticas], eu preparei toda a articulação com as redes regionais. Nós temos na região um grande patrimônio, que foi a campanha continental contra a Alca [Área de Livre Comércio das Américas]. Até 2005, era o maior espaço de articulação do continente. Hoje, muitas das organizações que fizeram a campanha continuam articula-

das, seja na Aliança Social Continental, na Rede Jubileu Sul, no Grito dos Excluídos, na Marcha das Mulheres, na Via Campesina. A gente está sem uma agenda programática, uma bandeira de luta comum, que a Alca era. Acho que a luta comum agora é contra a financeirização de tudo o que se relaciona com a destruição do planeta.

“As empresas beneficiadas – Odebrecht, Camargo Correa, Andrade Gutierrez – são uma caixa preta. Quem controla? São mesmo brasileiras?” Você está querendo dizer que a solução que se está propondo para o aquecimento global é a quantificação financeira de tudo?

É. Vou explicar. A crise que a gente vive na verdade é social, não é do capital. Porque o capital sempre se renova. Com a crise, de uma hora para outra surgiram trilhões. Até hoje não se sabe quanto. Fala-se em valores de 7 trilhões a 18 trilhões de dólares. De onde esse dinheiro saiu? Do Estado. A Grécia faliu. Portugal e Espanha estão falindo. Esses países tinham um modo de vida que foi absolutamente transformado, para se inserir na economia unificada europeia. Estão pagando a conta agora, com ajuste social, de uma sociedade que conheceu o Estado de bem estar social. Essa guerra cambial entre China, EUA e Europa pode se transformar numa disputa muito mais grave. Mas ninguém quer discutir isso. Estão dando o mesmo remédio que deixou o paciente enfermo. No entanto, eles estão criando outros mecanismos de desenvolvimento “limpo”. Por exemplo, a Alemanha se comprometeu a reduzir, pelo Protocolo de Kyoto, 5% de suas emissões de carbono. Se reduzir de 8% a 10%, ela tem o crédito para comercializar no mercado internacional os títulos do mercado de carbono. Se ela transfere uma planta para o Brasil – a CSA por exemplo –, ela pode negociar os títulos da poluição que deixou de fazer na Alemanha. Eles estão querendo quantificar até o pólen da abelha. Vai virar título. É mais dinheiro num mercado que já está transbordando de dinheiro fictício. Emiliano Sosa

E está acontecendo no estado todo. Tem também, por exemplo, o Porto do Açu.

Tem o Porto do Açu no norte, onde também haverá uma siderúrgica para exportação. Completa-se uma cadeia. A CSA aqui, a siderúrgica do Açu e a CSU no Espírito Santo. Estamos com as três instaladas na costa, e todas se alimentando do minério de ferro de Minas Gerais. Vão se tornar Vazios Gerais. Eu queria que você falasse um pouco do modelo de desenvolvimento representado por esses projetos.

O Brasil é o único país do mundo que reúne terras, água e luz disponíveis em grande quantidade. A riqueza mineral também é enorme – temos toda a tabe-

Queria que você falasse um pouco de seu envolvimento com o Haiti.

Um ano após o terremoto, haitianos continuam convivendo com os destroços

Nós, da Rede Jubilei Sul, começamos a trabalhar o Haiti em julho de 2004. O país foi primeiramente ocupado por Canadá, EUA e França, e depois veio a Minustah. Em 2005, fizemos a primeira missão ao Haiti. Já fizemos relatórios, vídeos, continuamos denunciando, para não deixar o Haiti ser esquecido. Algumas organizações silenciam por cumplicidade, por não querer se opor ao governo. Mas agora tem um dado novo. A população no Haiti está se revoltando contra a Minustah. Não aguentam mais. Quem vai ao Haiti diz que parece que o terremoto foi ontem. Os destroços permanecem. O Estado lá está completamente desmantelado. Três dias depois do terremoto, George W. Bush e Bill Clinton foram nomeados os grandes patronos do fundo para a reconstrução do Haiti. Isso não pode ser sério. Hoje, grandes ONGs disputam territórios. Os acampamentos são controlados por ONGs que não dialogam nem se interconectam. Está comprovado que essa bactéria, que trouxe a epidemia de cólera, foi trazida da Ásia. A gente está propondo um seminário, para o ano que vem, sobre os seis anos da Minustah. Nossa avaliação é negativa – não existem logros reais. Já foram gastos mais de 4 bilhões de dólares só para manter a Minustah.

“Eles estão querendo quantificar até o pólen da abelha. Vai virar título. É mais dinheiro num mercado que já está transbordando de dinheiro fictício” Não existe também nenhuma projeção de fim à ocupação?

Quando eles ocuparam, o Colin Powel era secretário de Estado dos EUA. Ele falou que aquilo era para vários anos. A ONU disse que debatia a retirada, mas quando aconteceu o terremoto, decidiram que não podiam mais sair. A gente tem uma dívida histórica com o Haiti. Estamos vendo um país ser usado como laboratório de políticas de repressão, de criminalização da pobreza e de táticas de guerrilha urbana. Você já me contou que, através da Rede Jubileu Sul, tinha acesso a informações preciosas e que impressionava como ninguém comentava nada nos meios de comunicação.

Sim. No Panamá, no meio do ano, por exemplo, houve grandes mobilizações, com vários presos. Era contra um pacotaço de leis, com onze itens, em que se proibia greves e manifestações e se aumentava os impostos. No Brasil, não saiu nenhuma linha. Agora mesmo, cinco camponeses foram assassinados em Honduras, por grupos paramilitares. Honduras já não é mais assunto. Na Guatemala, proibiram a mineração a céu aberto, o que foi uma grande vitória. Em Trinidad e Tobago ganhou uma mulher de esquerda. E o exército boliviano se declarou, agora, anticapitalista. Não é pauta, infelizmente.


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A privatização mascarada da saúde Reprodução

GESTÃO PÚBLICA Chega ao STF uma ação direta de inconstitucionalidade contra as Organizações Sociais (OSs), entidades privadas que administram instituições públicas de saúde Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) A DÉCADA DE 1990 certamente foi marcada pelo auge do neoliberalismo. Em boa parte do Ocidente, especialmente na América Latina, projetos de esvaziamento do Estado foram colocados em curso. No Brasil, dos governos Collor a FHC, processos distintos de desestatização deixaram o Estado brasileiro em frangalhos. Por vezes, esses processos se deram de forma velada. Na saúde, onde as privatizações seriam mais impopulares, por se tratar de área social vital historicamente escanteada, surgiram maneiras sutis de se entregar sua gestão à iniciativa privada. A mais simbólica delas são as Organizações Sociais (OSs) – entidades “sem fins lucrativos” que atuam em áreas de interesse público. Já em 1998, dois partidos, o PT e o PDT, entraram na Justiça com uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) contra as OSs. Mais de uma década depois, o processo chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) e deve ser julgado em breve. O movimento social acompanha o andamento da Adin desde então. Atualmente, busca construir uma mobilização que promova certa pressão no STF para que considere inconstitucionais as OSs – justamente a partir do argumento de que representam uma forma disfarçada de privatização. Os fóruns populares de saúde – especialmente os dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Alagoas, Paraná, Rio Grande do Norte e do município de Londrina (PR) – deram início a uma campanha nacional. Na internet, foi lançado um abaixo-assinado contra as OSs, que já conta com 5,2 mil assinaturas. Há também uma carta com a assinatura de 313 entidades. As OSs surgiram com o argumento de que otimizariam a gestão da saúde, provocando a diminuição dos recursos destinados ao setor. Entretanto, os fóruns têm observado o contrário. As condições de trabalho estariam sendo precarizadas e a qualidade dos serviços de saúde oferecidos nos locais onde as OS são implementadas estaria diminuindo. Como, a partir da instauração do modelo, o motor das ações de gestão passa a ser o lucro, as entidades agem objetivando o acúmulo, não a qualidade do serviço. No início de dezembro, quatro representantes da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde reuniramse com o ministro Cézar Peluso, responsável pela análise da Adin. Foram relatados os inúmeros problemas causados pelas OSs. A comissão entregou ao ministro o abaixo-assinado, junto ao “Relatório Analítico de Prejuízos à Sociedade, aos Trabalhadores e ao Erário por parte das Organizações Sociais (OSs)”. O docu-

No Rio de Janeiro, trabalhadores da saúde fazem protesto em frente ao hospital Pedro II, que está sendo fechado

mento foi resultado de Seminário recente sobre os 20 anos do Sistema Único de Saúde (SUS), ocorrido em novembro no Rio de Janeiro, que reuniu 400 militantes do país inteiro. Relata irregularidades de desvio de dinheiro apuradas em quase todas as OSs do Brasil – dados que estão em investigação pelos Ministério Público Estadual e Federal. A Frente pretende entrar em contato com todos os ministros do STF – até porque os donos das OSs estão fazendo o mesmo, em defesa da tese de que, sem as OSs, o SUS se extingue.

Um dos principais problemas das OSs é a falta de transparência e de controle público, como determina o SUS

Obscuridade

Um dos principais problemas das OSs é a falta de transparência e de controle público, como determina o SUS. Pela legislação, não há nenhuma exigência de que as entidades privadas se submetam a alguma forma de controle por parte da sociedade, como ocorre em relação aos serviços públicos. As OSs têm um Conselho de Administração, sem caráter deliberativo. Outro problema é a ausência de concurso público para a contratação de novos profissionais. Quem passa a determinar qual será o profissional contratado é o dono da entidade. Os trabalhadores também ficam submetidos a uma eventual mudança, caso haja troca de governo – o que não ocorreria se fossem concursados. Cria-se também a dificuldade de existência de plano de carreira para os profissionais. No Rio de Janeiro, as OSs estão sendo implementadas na gerência dos Progra-

mas de Saúde da Família (PSF). Algumas entidades incumbidas de gerir os equipamentos de saúde têm problemas jurídicos, como processos por desvio de verbas. As unidades sob gestão das OSs têm recebido denúncias de má gestão e de problemas trabalhistas. Um dos principais argumentos para se utilizar o modelo, no Rio, foi o da falta de recursos para se aplicar com os servidores. Na Câmara Municipal, o vereador Paulo Pinheiro (PPS), médico de formação e militante histórico do setor, entrou com pedido de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as OSs. O Rio de Janeiro foi o primeiro a aprovar, em 2007, as Fundações Estatais de Direito Privado. No estado, hospitais importantes, como o Pedro II e o São Sebastião, estão sendo fechados. O modelo de saúde predominante no Rio de Janeiro são as Unidades de Pronto Atendimento (UPA). “Ele é questionável como modelo assistencial, pois não se articula com o sistema. Apenas encaminha para os hospitais os casos graves. A diferença de propostas com relação às UPAs está nas Unidades Mistas, criadas na Baixada Fluminense na década de 1980. Articulavam prevenção, promoção e cura. As unidades tinham consultas, pequenas emergências e encaminhavam para os hospitais apenas se necessário”, explica Maria Inês Bravo, professora da Faculdade de Serviço Social da UERJ, e uma das principais referências no setor. Ela também critica a militarização da saúde, a medida que a secretaria específica, no Rio, agora se chama Secretaria de Saúde e Defesa Civil. Em São Paulo, a lei 9.637/1998 – a mesma que resultou na Adin – tinha, ao menos, um atenuante. Ela estabelecia que apenas instituições de saúde novas poderiam ter o modelo de gestão convertido. Entretanto a lei foi modificada pelos deputados estaduais em

2009. Atualmente, hospitais antigos podem ser – e já estão sendo – administrados pelas Organizações Sociais. Segundo o Fórum de Saúde local, cerca de três em cada cinco serviços já estão sob gestão das entidades privadas em São Paulo, Estado administrado pelo PSDB há 16 anos. Os movimentos locais também denunciam que, no início da gestão, as entidades aplicam uma quantidade maior de recursos, para dar a imagem de boa gestão. Com o tempo, vão lentamente precarizando os serviços, e há casos de completo abandono.

Um dos principais argumentos para se utilizar o modelo, no Rio, foi o da falta de recursos para se aplicar com os servidores Na Academia, há os que argumentam que a utilização de entidades privadas em atividades públicas não é nova na área da saúde. O próprio SUS também seria servido por instituições privadas. O professor Ruben Mattos, do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), é dos que defendem a tese. Ele relata que o modelo do SUS foi desenhado durante a 8ª Conferência de Saúde. Para Ruben, o problema da instituição das OSs vai além da simples privatização. O modelo causaria, segundo ele, a fragmentação da prestação de serviço no setor. Outro problema seria a lógica produtivista que passa a ser a base da atividade na saúde. Isso seria um impedimento para as entidades gestoras das OSs buscarem o aprimoramento de sua atuação – através do crescimento e da inovação.

Muito além das OSs

Estados de calamidade pública

A privatização da saúde começa com as parcerias público-privadas, com as fundações

Em cada local do país, o modelo de privatização se altera

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%

dos brasileiros possuem plano de saúde privado

do Rio de Janeiro (RJ) A privatização da saúde, no Brasil, tem diversas facetas, para além das Organizações Sociais (OSs). Começa, historicamente, a partir de uma cultura de submissão a interesses de terceiros. Inicia com a abertura do setor para parcerias público-privadas e a criação das fundações estatais de direito privado. Por trás dessas fundações, sempre houve o interesse direto de investidores. Por isso, “barrar as OSs não significa só afastar a privatização do SUS, mas é um passo importante para impedir o avanço das fundações também”, explica Cristina Braga, do Fórum de Saúde do Rio de Janeiro. Há também outras formas de terceirização da gestão do setor, como as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips), existentes em alguns estados. No Brasil, cerca de 23% das pessoas têm planos de saúde privado. Os valores pagos nos planos excedem, e muito, o gasto público em saúde. Segundo as entidades de classe de combate a essa lógica, nem mesmo se pode defender a qualidade dos serviços prestados. Os que têm plano teriam acesso a serviços melhores, mas não necessariamente bons. As entidades denunciam também o que chamam de “finan-

ceirização da saúde”, que ocorre quando as empresas do setor lançam ações na Bolsa de Valores. Segundo elas, para garantir maior lucro às empresas privadas, é necessário que os equipamentos públicos estejam sucateados, papel exercido de bom grado pelos governos.

Os que têm plano teriam acesso a serviços melhores, mas não necessariamente bons A privatização da saúde também gera o problema da rotatividade no emprego. A flexibilização das relações de trabalho induz muitos trabalhadores a procurar outro emprego. A troca constante de profissionais reduz a qualidade do atendimento oferecido. O quadro se agrava com as constatações de que, 20 anos após a criação do SUS, ainda há brasileiros que não têm acesso a ele. O sistema não conseguiu ainda chegar a todos os lugares do país. Outra denúncia recorrente é a de cooptação de alguns dos componentes dos conselhos de saúde, que passam a agir em sintonia com os agentes da privatização. (LU)

do Rio de Janeiro (RJ) O quadro de privatização da saúde é diverso nos distintos locais do país. Em Curitiba (PR), acaba de ser aprovada a lei que cria as Fundações Estatais de Direito Privado para administrar setores públicos – entre eles a saúde. No estado, já havia Oscips e formas distintas de terceirização dos serviços. Os contratos de transferência de gestão teriam sido feitos sem nenhuma forma de controle social. Em Alagoas, a complementaridade do SUS é invertida. A rede privada abocanha, através de convênios de venda de serviços ao SUS – legalmente permitidos –, 60% dos recursos públicos. Dessa forma, o Estado privilegia as instituições privadas, enquanto 94% da população alagoana permanece sendo atendida pelo SUS. Governos locais estão tentando implantar as OSs no estado.

Em Alagoas, a complementaridade do SUS é invertida. A rede privada abocanha 60% dos recursos públicos

Em Natal (RN), R$ 6 milhões foram investidos na criação de Unidades de Pronto Atendimento (UPA). Os militantes do estado não se opõe às UPAs, mas preferiam o gasto com unidades básicas de saúde. No estado, tem avançado as terceirizações e a contratação de profissionais não concursados. No Rio de Janeiro, as OSs e Oscips foram aprovadas em 2009. As UPAs estão sendo transformadas em OSs. Está havendo a demissão de profissionais e baixa qualidade dos serviços oferecidos. O Rio de Janeiro tem a maior rede privada de saúde do país. A desvalorização do controle social e a cooptação de conselhos também estariam a pleno vapor no Estado. (LU)


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Vale inicia obras do novo Carajás

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Bruno Haspinger

MINERAÇÃO Junto ao crescimento da extração, estimado em 170 milhões de toneladas, vem degradação ambiental e distúrbios sociais

Brasil real O Ministério da Saúde divulgou nota informando que aumentaram de 10 para 16 os Estados “com risco muito alto de epidemia” de dengue agora no início de 2011; outros cinco Estados estão “com risco alto”. Ou seja, dos 27 Estados brasileiros, apenas Rondônia, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul não foram listados como área de risco da dengue. Por que será que a doença evoluiu tanto nos últimos anos?

Márcio Zonta de Canaã dos Carajás (PA) UM DOS MAIORES projetos de exploração mineral da Vale no mundo, o S11D, na Serra Sul de Carajás, será implantado até 2015 em Canaã dos Carajás (PA). O escoamento de minério passará de 110 milhões de toneladas por ano para 220 milhões de toneladas no primeiro ano da efetivação da mina, com previsão de crescimento para 280 milhões nos próximos cinco a dez anos. Sem debater o projeto por inteiro junto à sociedade e comunidades impactadas, a Vale já começa a expansão da Estrada de Ferro de Carajás nos municípios maranhenses de Itapecuru Mirim, Anajatuba, Alto Alegre do Pindaré, Nova Vida, Bom Jesus das Selvas, Açailândia, Cidelândia e na cidade paraense de Marabá. Ao todo deverão ser construídas 46 novas pontes, 5 viadutos ferroviários, 18 viadutos rodoviários e, no porto de Ponta da Madeira de São Luis, será feito mais um píer para os navios de carga. Para isso, a Vale almeja a remoção, ao longo da via férrea, de 1.168 pontos de “interferências” intituladas pela própria, tais como: cercas, casas, quintais, plantações e povoados inteiros. Fragmentação e silêncio Para Frederico Drumond Martins, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pela Floresta Nacional de Carajás, onde ocorrerá a exploração da S11D, “não interessa à Vale debater o projeto”. “Quanto mais a Vale o apresentar entre os movimentos populares, a população e as entidades que defendem o meio ambiente e são contra os distúrbio sociais causados pelo empreendimento, mais ela será questionada. Por isso, o debate fica muito restrito: ela apenas enfatiza os benefícios do projeto, mas não a problemática que vai gerar”, explica. Outro ponto para o qual Martins chama atenção é a maneira como a Vale vem conseguindo as licenças para iniciar as obras. “A empresa fragmenta a busca pelas liberações, pedindo separadamente as coisas em distintos órgãos, como se não fosse para o mesmo projeto. Um exemplo claro é o da ferrovia, que foi apresentada para o Ibama e o ICMBio”, denuncia. Assim, a Vale consegue com mais facilidade, rapidez e sem muita divulgação a liberação da obra. Isso porque, segundo Martins, “a aprovação órgão a órgão é mais rápida e o relacionamento fica mais fácil, é mais silencioso em relação aos impactos de seus projetos. É tudo o que ela quer: agir sem muito alarde com rápidas aprovações dos órgãos competentes”.

“A empresa fragmenta a busca pelas liberações, pedindo separadamente as coisas em distintos órgãos, como se não fosse para o mesmo projeto” As artimanhas da empresa não param por aí. Outro argumento utilizado, denunciado pelo advogado da entidade Justiça nos Trilhos, Danilo Chammas, é que a Vale apresenta a obra como se fosse realizada apenas na faixa de concessão de seu domínio. “Ela utiliza o parágrafo do Conselho Nacional do Meio Ambiente [Conam] 349 de 2004, que fala dos empreendimentos ferroviários considerados de pequeno porte, quando as obras estão dentro da faixa de domínio existente, sem remoção de população, intervenção de área de preservação permanente ou supressão de vegetação ou área de proteção ambiental”. Mas, segundo já apurado pela entidade, só em Marabá, pelo menos 200 famílias serão removidas, havendo derrubada de casas. “Portanto, o projeto extrapola a faixa concessionária e requer estudos”, cobra Chammas. Outro caso, que evidencia o desrespeito da mineradora às leis nacionais e internacionais, diz respeito à população quilombola das regiões do Maranhão

Inadimplência De acordo com o indicador Serasa Experian, a inadimplência do consumidor brasileiro cresceu 6,3% em 2010 em relação ao ano de 2009. A comparação apenas do mês de dezembro de 2010 e 2009 mostra um crescimento de 20,9%. Se a situação ficou assim no mês do 13º salário, imagine como poderá ficar nos meses de abril e maio – quando costuma aparecer a inadimplência das compras do final do ano.

Enganação Uma coisa não se pode negar: a publicidade governamental sobre a educação é muito boa, transmite preocupações reais com o investimento público na área, a necessidade de valorização dos professores, a importância do ensino para a construção de um Brasil mais democrático, mais justo e mais igualitário. Pena que o investimento na publicidade é sempre mais efetivo do que o investimento real na educação! Fantasma legal Um juiz da 3ª Vara da Fazenda Pública do Distrito Federal acaba de autorizar a existência de funcionários fantasmas no serviço público, ao afirmar que “no ordenamento jurídico pátrio não existe previsão legal ou constitucional que condicione a acumulação de cargos à determinada jornada de trabalho”. Isso significa que um funcionário público pode acumular dois ou três cargos públicos e 60, 70, 80 ou mais horas semanais. É o fim da picada! Estação de trem na região de Carajás: grande afluxo de pessoas sobrecarrega Poder Público

de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo. São 257 famílias que estão buscando a titulação do território, tendo o lobby e a oposição da Vale junto aos órgãos públicos contra, tentando a remoção. “A convenção da Organização Internacional do Trabalho [OIT] 169, sobre povos indígenas e tribais, onde se insere o quilombola, determina a consulta prévia às comunidades para todo tipo de obra que os impactarem, pois se eles disserem não à obra, elas não podem ocorrer. Contudo, a Vale menospreza isso”, explica Chammas. Ludibriar O modo de negociação da Vale junto às comunidades atingidas, quando não burla as leis, ou fragmenta os processos, busca via judiciais que prejudicam os moradores das regiões atingidas. Em Buruticupu, interior do Maranhão, membros da Justiça dos Trilhos detectaram que uma prática da Vale tem sido negociar individualmente com moradores contratos com cláusulas confidenciais. Segundo Chammas, isso significa que nada pode ser falado sobre o que foi acordado entre a mineradora e o morador, inclusive para vizinhos ou advogados. Essas cláusulas são problemáticas porque estipulam os preços das terras, sem deixar que as famílias procurem saber o quanto realmente teriam de direito com indenizações. Martins, do ICMBio, diz que, especialmente em Canaã dos Carajás, onde deverá ser o maior processo de impacto ambiental e social, a população não consegue ter dimensão da situação. “Geralmente essas comunidades não são politizadas e as cifras que são anunciadas na cidade mexem com os moradores, todos querem saber como vão ganhar com a implantação do projeto”, revela. Um exemplo são os lotes que muitos querem vender à mineradora. “Fica todo mundo querendo vender sua área para a Vale, sem perceber o impacto social que isso produz, já que essas famílias terão que ir para a cidade, que, graças ao mesmo projeto da Vale, não dará estrutura para sua sobrevivência digna, algo que eles tinham no campo”, elucida Martins. Consequências A implantação do projeto S11D já é considerada uma ameaça ao ecossistema da região. “A savana ferruginosa, típica do local, poderá desaparecer, assim como áreas de preservação permanente”, diz Martins. Além disso, o projeto tornará ainda mais agudos os problemas sociais do entorno, como educação, saúde, saneamento básico, onerando o governo. “Já sabemos que Canaã dos Carajás está no seu limite de abastecimento de água e energia, mas no projeto apresentado pela Vale a nós não consta investimentos na infraestrutura do município”, acusa Martins.

Para o membro do ICMBio, acontecerá com Canaã dos Carajás o que já prevalece em Parauapebas. “O município pensa a construção de uma escola para determinado número de alunos, mas quando termina o projeto, a quantidade já dobrou. O mesmo acontece com hospitais, transporte etc. A cidade não dá conta do planejamento com tantos projetos realizados pela Vale. Na hora de repartir os ganhos, a mineradora paga hoje R$ 20 milhões por mês à prefeitura de Parauapebas, frente um faturamento diário obtido por ela de 36 milhões de dólares”, compara Martins. A Vila Sanção, hoje com 17 anos, localizada entre os municípios de Marabá e Parauapebas, é um exemplo concreto dos distúrbios sociais e ambientais causados pelos empreendimentos da Vale, especificamente o projeto Salobo. “O posto policial está construído há mais de um ano, mas não podemos contar com a presença de policiais. Já estamos com problemas de abastecimento de água, que não suporta a atual demanda, e os casos de prostituição infantil se banalizaram por aqui”, pontua Maria do Socorro de Brito, vice-presidente da Associação dos Moradores e Produtores Rurais para o Desenvolvimento Sustentável da Vila Sanção e Região (Amprodesv). Mas, mesmo enfatizando em seus informes e propagandas que se preocupa com as comunidades onde atua, a Vale ainda não atendeu a diversas solicitações de Brito. “Já foram enviados vários ofícios para a mineradora, exigindo que sejam idealizadas e colocadas em prática políticas públicas voltadas para os jovens e adolescentes da Vila, mas até agora nada”, conta.

“A savana ferruginosa, típica do local, poderá desaparecer, assim como áreas de preservação permanente”

A prostituição, sobretudo a infantil, vem sendo a principal consequência dos projetos implantados pela mineradora, nas cidades que estão no corredor de Carajás. Para o também membro da Justiça nos Trilhos, Antonio Soffientini, a Vale sabe os problemas que causa: “aumento de prostituição, exploração de adolescentes e crianças, além da proliferação de doenças sexualmente transmissíveis”. “Tanto é que em Bom Jesus da Selva, município maranhense onde se instalará um canteiro de obras da duplicação da ferrovia, com a chegada de dois mil homens, a Vale planeja dar aula de educação sexual para os trabalhadores, na tentativa de minimizar os problemas, embora seja difícil”, elucida.

Serviço privado Órgão público federal, a Anatel defende com unhas e dentes os interesses das empresas privadas de telecomunicações e telefonia contra as reivindicações da população. Recentemente, a agência usou a Procuradoria Geral da República para derrubar leis estaduais que obrigam as empresas de TV a cabo a instalar gratuitamente até três pontos adicionais. Por isso prevalece a norma da própria Anatel, que permite cobrança de ponto extra. Viva a exploração! Opinião fatal O representante da OEA para o Haiti, Ricardo Seitenfus, foi afastado de suas funções depois de ter afirmado, em entrevista para o jornal suíço Les Temps, que “o Brasil não pode ser um guardião e ficar segurando as chaves do cemitério”. Para ele, o país precisa repensar sua participação nas forças militares da ONU que ocupam o Haiti, o problema não é de segurança internacional, mas político, social e econômico. Bingo! Tragédia anunciada A entrevista que a arquiteta Ermínia Maricato deu para a revista Caros Amigos, em maio de 2010, circulou recentemente em várias listas na Internet como algo profético sobre a tragédia ocorrida em várias partes do Brasil com as chuvas de janeiro. Ela já havia alertado sobre o caos urbano, a precariedade da moradia, a especulação imobiliária e as maracutaias dos programas habitacionais. Deu no que deu! Luta indígena De acordo com o Cimi, de 2003 a 2010, nos dois governos Lula, foram assassinados 437 indígenas, a maior parte em decorrência de conflitos por terras. No mesmo período foram homologados apenas 88 territórios indígenas, que ocupam uma área de 18 milhões de hectares. Nos oito anos do governo FHC, foram demarcadas 128 terras indígenas, com aproximadamente 32 milhões de hectares. Ainda há muito mais a ser feito pelos povos indígenas. Inacreditável Entidades de defesa dos direitos humanos e familiares de assassinados e desaparecidos políticos na ditadura militar estão indignados com as declarações da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), da Secretaria de Direitos Humanos, ao jornal O Estado de S. Paulo (16/01/2011), sobre o novo foco do ministério para crianças e adolescentes, e não mais no esclarecimento dos crimes da ditadura. Sem memória, sem verdade e muito menos sem justiça!


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Enchentes facilitam as remoções Chuvas, dor, ANÁLISE

CHUVAS Atualmente, mais de 30 projetos com medidas antienchentes estão parados no Congresso Nacional Valter Campanato/ABr

Governador Sérgio Cabral dá entrevista durante visita a Nova Friburgo

Jorge Américo de São Paulo (SP) CONSIDERADA a maior tragédia climática já ocorrida no Brasil, as enchentes deste início de ano já provocaram a morte de mais de 600 pessoas somente no Rio de Janeiro. No último ano, o estado já havia registrado 283 mortes nas mesmas condições. Após a liberação de verbas federais, as autoridades locais se comprometeram a investir na prevenção de novos acidentes, o que não ocorreu. Atualmente, mais de 30 projetos com medidas antienchentes estão parados no Congresso Nacional. A defensora pública do Estado do Rio de Janeiro, Maria Lucia de Pontes, considera que o problema não pode ser resolvido sem uma política habitacional que garanta, de fato, o direito à moradia segura. “Parece um pouco aquele discurso: ‘Estamos fazendo a regularização fundiária, estamos dando segurança à posse numa política de resposta a determinados tratados internacionais’. Mas, na prática, isso não é colocado. Exatamente porque não se quer dar segurança às mo-

radias das comunidades carentes. Se você fornecer segurança, você tem dificuldade de remover.” O governador Sérgio Cabral (PMDB) responsabilizou, além do excesso de chuva, as ocupações irregulares das encostas. Maria Lucia questiona as declarações.

O governador Sérgio Cabral (PMDB) responsabilizou, além do excesso de chuva, as ocupações irregulares das encostas “Ainda que, nesse último evento no Rio de Janeiro, a incidência de vítimas na classe média e classe alta seja muito maior que na anterior, eles estão aproveitando para culpar e continuar com a estratégia de remoção. Até por conta dos grandes eventos que estão para acontecer no Rio de Janeiro, eles estão acelerando esse processo de remoção.” O órgão das Nações Unidas que atua na prevenção de desastres divulgou um comunicado no qual assegura que as mortes poderiam ter sido evitadas, caso as áreas de risco fossem monitoradas e os moradores alertados. (Radioagência NP)

morte e destruição Aroldo Cangussu

COM RECEIO DE SER repetitivo, mas encarando a realidade, sou obrigado a escrever aqui quase tudo que havia feito há exatamente um ano: 15 de janeiro de 2010. Mais uma vez as chuvas de verão provocam grandes perdas de vidas humanas e um enorme estrago material, principalmente nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Os programas de televisão não falam de outra coisa: desabamentos, inundações, pânico, terror e muito, muito sofrimento. Parece incrível que as autoridades não tomem providências para um fato absolutamente previsível. Ninguém mais é pego de surpresa. Todos sabem que as chuvas provocam um gigantesco estrago em regiões de risco sobejamente conhecido. Todo final e início de ano é a mesma coisa. Casas sendo soterradas, pessoas perdendo tudo, alagamentos, lixo boiando nas enxurradas e correntezas e as mesmas explicações de sempre: impermeabilização do solo, construções inadequadas em locais inadequados, acúmulo de sujeira, entupimentos de bueiros, desmatamento, ocupação desordenada do solo, deficiência do sistema de drenagem urbana e por aí vai. Mais uma vez quero colocar a minha indignação com a inépcia dos governantes, com a falta de planejamento administrativo, com o aproveitamento político da miséria e com o oportunismo dos maus dirigentes. Os prefeitos, por exemplo, só se preocupam com o Fundo de Participação dos Municípios (FPM), não constroem projetos sustentáveis e não procuram arrecadar os recursos que estão disponíveis em vários ministérios, mostrando total ignorância na arte moderna de administrar. Tratam a coisa pública como se fosse de sua propriedade e usam todo o tipo de picuinha para extrair para si os dividendos, como se estivessem em uma minúscula cidade do interior.

Novamente, vou defender a água e a natureza. Elas não têm culpa de nada. A água é o elemento vital da vida. Precisamos dela para a nossa própria sobrevivência neste planeta. Mas a água tem as suas peculiaridades. Ela acompanha a gravidade, passa por um ciclo perfeitamente determinado e precisa de toda uma sistematização para cumprir esse ciclo. Se desrespeitada, reage naturalmente, desconhecendo os obstáculos que a atividade humana coloca em seu caminho.

[Os prefeitos] tratam a coisa pública como se fosse de sua propriedade e usam todo o tipo de picuinha para extrair para si os dividendos A tragédia da região serrana do Rio de Janeiro é um exemplo do quanto poderia ser evitada a morte de centenas de pessoas. Trata-se de uma região incrustada na Mata Atlântica onde chove muito, bem acima da média das precipitações do restante da região sudeste. Além disso, possui um relevo bastante acidentado cuja única proteção são as árvores. Eliminando-as, não resta mais nada que impeça os desbarrancamentos. A equação ocupação de encostas + desmatamento dos morros + chuvas torrenciais = tragédia. Para resolvê-la não é necessário ser gênio em matemática, basta ser governante honesto e preocupado com a seriedade e o planejamento. (EcoDebate) Aroldo Cangussu, engenheiro, é ex-secretário de meio ambiente de Janaúba (MG).


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brasil

Pressão dos alimentos e inflação MAIS UMA VEZ a conjuntura econômica revela pressão inflacionária oriunda dos mercados agrícolas – ênfase nas carnes, cereais, grãos e açúcar, setores em relação aos quais o Brasil ocupa hoje posição de protagonista no comércio internacional. Fora esta uma situação puramente conjuntural, determinada por fatores climáticos, que normalmente tendem a gerar flutuações não planejadas nas safras agrícolas, o assunto mereceria apenas notas de rodapé, ou notícias no espaço dos fenômenos da natureza. Mas a questão, nos seus aspectos causais, não é tão trivial assim, repercute diretamente no custo de vida da população mais pobre e provavelmente será remediada pela política monetária, de uma maneira convencional e inadequada – com elevação da taxa interna de juros Selic. Observe-se que a conjuntura altista dos alimentos em 2010 (INPC cresce 6,47% e alimentos 10,42%) não é fato fortuito. Ocorreu também nas conjunturas de 2007/2008 e 2002/2003, cada qual com explicações conjunturais específicas mais

adiante comentadas, que são revertidas nas safras seguintes, mas que retornam sempre que melhoram os preços de exportação das commodities. As tensões inflacionárias sobre cereais, grãos, carnes, açúcar etc. são hoje globalizadas, mas, no Brasil, elas incidem com maior força, em razão da nossa notória dependência externa da exportação de commodities. É neste sentido, portanto, que se pode falar de fator estrutural que vincula tensões inflacionárias com o setor agrícola, diferentemente do diagnóstico estrutural da inflação do Plano Trienal de 1962 do Governo João Goulart. O fenômeno inflacionário, enquanto manifestação puramente empírica, se revela pela elevação de preços relativos de determinado conjunto de bens, com potencial de influenciar o nível geral de preços – como é o caso reiterado dos preços agrícolas em várias conjunturas recentes. Como tal, esse fenômeno ainda não é regular e sistemático de sorte a ensejar a construção de correlações empíricas. Mas revela, por

Guilherme C. Delgado

outro lado, tensões latentes nesses mercados globais, a que somos levados a internalizar, em geral de forma desfavorável, como nos revela a sequência de episódios recentes. Em 2002/2003 essas tensões tiveram clara conotação monetária (falta de liquidez externa) – a taxa de câmbio foi a quatro reais por dólar e com isto puxou para cima o preço em real das commodities. Em 2007/2008, já tínhamos uma conjuntura inversa do ponto de vista monetário internacional – excesso de liquidez (o dólar fica no entorno de R$ 2,00), combinada com forte pressão de demanda real e especulativa nos mercados organizados de produtos primários. A consequência para o Brasil também foi de pressão mais que proporcional dos preços dos alimentos, puxando o INPC para cima. Em 2010, continua o cenário externo de excesso de liquidez, com o dólar a R$ 1,70, mas com forte pressão externa sobre os preços das commodities. Em todo este período considerado – 2000/2002 a 2010 –, as exportações totais brasileiras pula-

Para todas essas conjunturas a autoridade monetária – o Banco Central – agiu da mesma forma: elevou a taxa interna de juros para conter a demanda doméstica, sem que com isto prevenisse a tensão estrutural

ram de uma média de 57,9 bilhões de dólares no início do período para 200 bilhões no final. No mesmo tempo, houve um forte aumento de participação dos produtos primários – de 44% da pauta de exportações (2000/2002) para cerca de 60% em 2010, considerados neste cálculo “Produtos Básico e Semi-manufaturados. A especialização primárioexportadora no comércio exterior, com forte participação de produtos alimentares da cesta básica, perseguiu, sem alcançar – a eliminação do deficit em conta corrente do Balanço de Pagamentos. Neste meio tempo, internalizou toda sorte de tensão inflacionária, de origem monetário-financeira ou dos mercados físicos dos mercados agrícolas mundiais. Para todas essas conjunturas a autoridade monetária – o Banco Central – agiu da mesma forma: elevou a taxa interna de juros para conter a demanda doméstica, sem que com isto prevenisse a tensão estrutural. E agora como agirá? Guilherme C. Delgado escreve uma vez por mês neste espaço.

Novo Código Florestal irá agravar ainda mais os desastres ambientais Valter Campanato/ABr

CHUVAS Mudanças na atual legislação propõem desconsiderar topos de morros como áreas de preservação permanente Danilo Augusto de São Paulo (SP) AS TRAGÉDIAS CAUSADAS pelas chuvas que atingem o Brasil podem aumentar se forem aprovadas as propostas de mudanças no Código Florestal. A afirmação é do engenheiro florestal e integrante da Via Campesina, Luiz Zarref. Entre os pontos polêmicos, o texto que propõe mudanças no atual Código, de autoria do deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB/SP), deixa de considerar topos de morros como áreas de preservação permanente. Esses locais foram os mais afetados por deslizamentos de terra no Rio de Janeiro.

Mudança no código florestal pode aumentar degradação do topo do morro, como em Nova Friburgo (RJ)

“O que aconteceu no Rio de Janeiro não é só por causa da degradação do topo do morro, de fato foi um nível de chuva muito alto”

O projeto de lei já foi aprovado em uma comissão especial e está pronto para ser votado pelo plenário da Câmara. Além de afetar a ocupação no topo dos morros, de acordo com Zarref, a proposta de redução de 30 para 15 metros das áreas de

preservação nas margens de rios provocará erosão, ampliando os alagamentos. “Sem essa área, rapidamente uma trompa d’água se forma. Isso porque a chuva cai em uma área que está desprotegida, fato que aumenta rapidamente o

nível do rio. Essas quantidades anormais de água crescem muito mais rapidamente do que quando se tem uma área protegida, como está no Código atual.” Ainda segundo Zarref, a tragédia que até o momento já vitimou mais de 600 pessoas no Rio é um reflexo da não preservação das áreas com vegetação. “O que aconteceu no Rio de Janeiro não é só por causa da degradação do topo do morro, de fato foi um nível de chuva muito alto. Porém, com certeza, foi agravado pela devastação, principalmente nas áreas de preservação permanente. A natureza que antes comportava até mesmo uma tempestade, hoje não comporta mais.” Zarref também enfatiza que mesmo com as áreas ocupadas irregularmente, há estudos que mostram que ainda existem soluções para o problema, sem a necessidade de remoção das famílias. “Em algumas áreas você pode fazer trabalhos de drenagem, galerias pluviais ou até mesmo recuperação florestal. Agora existem áreas de instabilidade geológicas que de fato vai ter que ser construído juntamente com a comunidade um reassentamento das famílias. Essas famílias foram empurradas historicamente para essas regiões. A maioria dessas pessoas são pobres. Então tem que haver uma solução que respeite esse processo histórico.” (Radioagência NP)

ANÁLISE

O preço de não escutar a natureza Leonardo Boff O CATACLISMA ambiental, social e humano que se abateu sobre as três cidades serranas do estado do Rio de Janeiro, Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, na segunda semana de janeiro, com centenas de mortos, destruição de regiões inteiras e um incomensurável sofrimento dos que perderam familiares, casas e todos os haveres, tem como causa mais imediata as chuvas torrenciais, próprias do verão, a configuração geofísica das montanhas, com pouca capa de solo sobre o qual cresce exuberante floresta subtropical, assentada sobre imensas rochas lisas que, por causa da infiltração das águas e o peso da vegetação, provocam frequentemente deslizamentos fatais. Culpam-se pessoas que ocuparam áreas de risco, incriminam-se políticos corruptos que distribuíram terrenos perigosos a pobres, critica-se o poder público que se mostrou leniente e não fez obras de prevenção, por não serem visíveis e não angariarem votos. Nisso tudo há muita verdade. Mas nisso não reside a causa principal dessa tragédia avassaladora. A causa principal deriva do modo como costumamos tratar a natureza. Ela é

generosa conosco, pois nos oferece tudo o que precisamos para viver. Mas nós, em contrapartida, a consideramos como um objeto qualquer, entregue ao nosso bel-prazer, sem nenhum sentido de responsabilidade pela sua preservação, nem lhe damos alguma retribuição. Ao contrário, tratamo-la com violência, depredamo-la, arrancando tudo o que podemos dela para nosso benefício. E ainda a transformamos numa imensa lixeira de nossos dejetos. Pior ainda: nós não conhecemos sua natureza e sua história. Somos analfabetos e ignorantes da história que se realizou nos nossos lugares no percurso de milhares e milhares de anos. Não nos preocupamos em conhecer a flora e a fauna, as montanhas, os rios, as paisagens, as pessoas significativas que aí viveram, artistas, poetas, governantes, sábios e construtores. Somos, em grande parte, ainda devedores do espírito científico moderno que identifica a realidade com seus aspectos meramente materiais e mecanicistas sem incluir nela a vida, a consciência e a comunhão íntima com as coisas que os poetas, músicos e artistas nos evocam em suas magníficas obras. O universo e a natureza possuem história. Ela está sendo contada pelas estre-

las, pela Terra, pelo afloramento e elevação das montanhas, pelos animais, pelas florestas e pelos rios. Nossa tarefa é saber escutar e interpretar as mensagens que eles nos mandam. Os povos originários sabiam captar cada movimento das nuvens, o sentido dos ventos e sabiam quando vinham ou não trombas d’água. Chico Mendes, com quem participei de

Os povos originários sabiam captar cada movimento das nuvens, o sentido dos ventos e sabiam quando vinham ou não trombas d’água longas penetrações na floresta amazônica do Acre, sabia interpretar cada ruído da selva, ler sinais da passagem de onças nas folhas do chão e, com o ouvido colado ao chão, sabia a direção em que ia a manada de perigosos porcos selvagens. Nós desaprendemos tudo isso. Com o recurso das ciências lemos a história inscrita nas camadas de cada ser. Mas esse conhecimento não entrou nos currículos escolares nem se transformou em cultura geral. Antes, virou técnica para dominar a natureza e acumular.

No caso das cidades serranas, é natural que haja chuvas torrenciais no verão. Sempre podem ocorrer desmoronamentos de encostas. Sabemos que já se instalou o aquecimento global que torna os eventos extremos mais frequentes e mais densos. Conhecemos os vales profundos e os riachos que correm neles. Mas não escutamos a mensagem que eles nos enviam que é “não construir casas nas encostas; não morar perto do rio e preservar zelosamente a mata ciliar”. O rio possui dois leitos: um normal, menor, pelo qual fluem as águas correntes; e outro maior que dá vazão às grandes águas das chuvas torrenciais. Nessa parte não se pode construir e morar. Estamos pagando alto preço pelo nosso descaso e pela dizimação da Mata Atlântica que equilibrava o regime das chuvas. O que se impõe agora é escutar a natureza e fazer obras preventivas que respeitem o modo de ser de cada encosta, de cada vale e de cada rio. Só controlamos a natureza na medida em que lhe obedecemos e soubermos escutar suas mensagens e ler seus sinais. Caso contrário teremos que contar com tragédias fatais evitáveis. Leonardo Boff é filósofo e teólogo.


internacional

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Jill Granberg

A esquerda, a “quinta coluna” de Israel ORIENTE MÉDIO Uma comissão do parlamento israelense investigará os grupos progressistas que denunciam a ação do exército nos territórios palestinos Carmen Rengel de Jerusalém (Palestina/Israel) “O QUE ESTE GOVERNO está fazendo ruborizaria até McCarthy”, afirma, furioso e ainda incrédulo, Gideon Levy. O jornalista do Haaretz, um dos mais prestigiosos de Israel, reconhecido por seu compromisso com os direitos humanos e seu empenho em contar as histórias do lado palestino, define sem rodeios o que sente diante da decisão do Parlamento israelense (Knesset), que aprovou, no dia 5, a criação de uma comissão especial para investigar as atividades de cidadãos e grupos locais de esquerda acusados por membros do governo de deslegitimar o Estado. A decisão, aprovada por 41 a 16, permitirá a investigação dos recursos empregados por ONGs e particulares para denunciar, por meio da internet ou de encontros internacionais, as atuações do Exército de Israel nos territórios ocupados. A ideia partiu do ministro das Relações Exteriores, o ultranacionalista Avigdor Lieberman, que insiste na necessidade de saber “quem paga essas pessoas para sujar a imagem de Israel e, inclusive, se são financiadas por terroristas”. A votação no parlamento deixou claro que o governo de Benjamin Netanyahu e seus sócios consideram que os esquerdistas são uma “quinta coluna venenosa” no coração do país, que “deslegitimam o trabalho necessário e correto” das Forças Armadas e que buscam “a desintegração de Israel e o desgaste de sua imagem internacional em favor de inimigos da pátria”.

Levy (...) sustenta que a esquerda está sendo acusada “em um julgamento onde só há advogados de acusação” e que esquerdista já é hoje “sinônimo de delinquente” “Caça às bruxas”

Levy, conhecedor do trabalho destas associações, e que levava meses alertando em suas colunas para o risco dessa “caça às bruxas”, sustenta que a esquerda está sendo acusada “em um julgamento onde só há advogados de acusação” e que esquerdista já é hoje “sinônimo de delinquente”. “Um colono que rouba a terra é um sionista; um direitista extremo e belicista é um patriota; um rabino que exalta ânimos é um líder espiritual; um racista que expulsa estrangeiros é um cidadão leal. Só um esquerdista é um traidor neste país”, conclui. Sua visão é compartilhada pelos porta-vozes da maioria das ONGs do país e, inclusive, pelos mais destacados intelectuais israelenses, que escreveram um comunicado em que sustentam que apoiar os direitos humanos, opor-se à ocupação na Palestina ou pedir que se indaguem

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“Pare a guerra, termine a ocupação!”, diz a faixa do Partido Comunista de Israel, durante manifestação em Tel Aviv

votos a favor e 16 contra foi o resultado da aprovação, no Parlamento de Israel, da criação de uma comissão para investigar organizações progressistas

crimes de guerra são “obrigações morais” de todo cidadão que tem amor por sua terra, enquanto que buscar seu silêncio é “destroçar a democracia e impor um regime fascista, onde não existe a liberdade de expressão e consciência”. Para Lieberman, impulsionador do processo, tudo é muito simples: “São eles quem estão mentindo sobre nossos soldados e que debilitam nossa imagem de única democracia do Oriente Médio. Não podemos consentir que um câncer se aninhe entre nós”. Lista negra

Mas que tipo de pessoas e entidades entram na lista negra? Já foram postos alguns nomes na mira: B’Tselem, Acri (The Association For Civil Rights in Israel) e Breaking the Silence são algumas das ONGs que serão revisadas com lupa. Estão marcadas. Alguns de seus membros ou colaboradores já estão cumprindo pena por suas atividades pacifistas. Levy lembra vários deles: El Nuri-Okbi, beduíno, lutador pelos direitos de seu povo, preso porque faltava um documento de seu negócio, e ao qual o juiz impôs uma sentença maior “por sua militância progressista”; Mossi Raz, ex-parlamentar, detido em uma calçada quando olhava (sequer participava) uma manifestação, espancado, algemado e levado à cadeia. Jonathan Pollak, da organização Anarquistas contra o Muro, na prisão por andar lentamente de bicicleta durante um protesto em Tel Aviv contra o bloqueio à Gaza. “Esse é o exemplo do dissidente perigoso, um garoto de esquerda, sim, que passeia de bicicleta sem incomodar ninguém e em silêncio. Neste ritmo, a prisão estará cheia de presos de consciência como ele. Teremos muitos Liu Xiaobo”, avisa Uri Avnery, jornalista, escritor, pacifista e deputado por dez anos, a consciência pura dos progressistas de Israel. Ele desmente que entidades como a Acri, com décadas de trabalho “documentado e sério”, sejam marionetes manejadas por interesses internacionais ou países inimigos de Israel. Ou que mintam deliberadamente, como sustenta Lieberman. Edo Medicles

Grupos denunciam o caráter terrorista de Israel são perseguidos pelo Parlamento do país

Campanha

O grave, na visão de Yael Toledano, socióloga radicada em Jerusalém, é que entre os cidadãos de Israel está se arraigando a ideia de que “a esquerda é o verdadeiro inimigo do povo”. É um processo paulatino, graças a pequenos comentários, constantes, que a desacreditam. “Uma análise detalhada dos discursos dá conta desta perseguição: fala-se de ‘extrema esquerda’, radicais e contestadores’, ‘traidores’, ‘incendiários’, ‘provocadores’. Isso confunde”, explica. Ela sustenta, ainda, que o governo trabalha para não publicitar casos que “constatem” a realidade das versões narradas por essas ONGs, seja a tortura de um soldado contra um palestino, seja a invasão de um terreno por um colono. “Por exemplo, sai em todos os meios quando ativistas que denunciam os disparos contra uma criança cisjordana vão a julgamento por supostamente mentirem sobre as circunstâncias do ataque. No entanto, não se mostram os militares que são submetidos a julgamento pelo mesmo caso. A imagem que fica é de algumas pessoas que geram desconfiança e descrédito contra uma instituição super-reverenciada, como as Forças Armadas de Israel.” Jessica Montell, diretora do B’Tselem, destaca que passará pelo processo “com o orgulho de quem sabe que a esquerda é o único grupo que continua conservando a moral neste país. Não sou um inimigo interno de minha nação, mas sim uma cidadã que luta contra a injustiça”.

Nuri-Okbi, beduíno, lutador pelos direitos de seu povo, preso porque faltava um documento de seu negócio, e ao qual o juiz impôs uma sentença maior “por sua militância progressista” Processo travado

Ela não teme a comissão do Knesset, porque já está há meses aguentando a perseguição. O que a desanima é que essa “demonização” oculte os primeiros passos “firmes” rumo ao “compromisso com a verdade e os direitos humanos” que o Exército estava dando. A saber: as Forças Armadas já estão investigando denúncias do B’Tselem sobre maus-tratos a presos, mortes de manifestantes em protestos contra o muro da Cisjordânia ou delitos de guerra durante os bombardeios de Gaza em janeiro de 2009. Se estavam sendo tecidas algumas colaborações, por que isso foi rompido de forma tão incisiva? Ilan Gehry, colaborador da Jewish Voice for Peace, tem uma explicação: para contentar os sócios de Netanyahu (ultranacionalistas e ultraortodoxos) e para acalmar certo setor do Exército depois da publicação de centenas de nomes de soldados que participaram na operação Chumbo Fundido [o ataque à Gaza] e que podiam ser acusados de crimes contra a humanidade. O NGO Monitor e o movimento estudantil Im Tirtzu, sionistas de centro-direita, têm-se encarregado de denunciar as associações progressistas, insistindo em que o B’Tselem e outras 15 organizações israelenses pressionaram o Conselho de Direitos Humanos da ONU para formar a Comissão Goldstone, que investigou a operação Chumbo Fundido, com a “clara intenção de criminalizar Israel e limpar os crimes de guerra do Hamas contra o Estado judeu. Recebem dinhei-

ro estrangeiro para nos pintar de atrasados, violentos e racistas. Isso é mentira. A esquerda tenta impor seus valores radicais e, por isso, temos direito de saber quem os financia e quem impulsiona essa campanha de ódio contra Israel”, fala Ronen Shoval, fundador do Im Tirtzu.

Jessica Montell, diretora do B’Tselem, destaca que passará pelo processo “com o orgulho de quem sabe que a esquerda é o único grupo que continua conservando a moral neste país Revés do governo

No entanto, o assessor jurídico do governo, Yehuda Wainstein, negou-se a abrir uma investigação de ofício contra estes grupos, como pediu-lhe Lieberman, por falta de provas que sustentassem qualquer acusação, como lembra a Efe. Além disso, a Promotoria-Geral aconselhou, em agosto, que a comissão de investigação parlamentar não fosse adiante. Mesmo assim, 16 entidades assinaram um documento em que afirmavam: “Adiante, interroguem. Não temos nada a esconder”. Shoval se esquiva desses precedentes e insiste em que de “grande parte” da esquerda vem “mentiras e hipocrisia”. Ele dá dois exemplos que afetam o B’Tselem. O primeiro, uma denúncia sobre algumas ovelhas de um pastor palestino queimadas por colonos. Segundo ele, isso nunca ocorreu: o pastor teria queimado alguns arbustos, provocou-se um incêndio e os animais morreram. Depois, o pastor teria contado outra história aos voluntários, que a difundiram. O segundo é uma denúncia de colonos jogando pedras em palestinos, que tem um vídeo como prova. “Faltava a primeira parte, na qual se vê que são os árabes os que começam a briga. Isso é seriedade e veracidade?”, pergunta. “Denunciaram esses casos e eram uma fraude.”

Pretexto

Jessica Montell se defende: erros pontuais existiram, reconhece, mas desde 1989 são “infinitamente maiores os acertos, os casos revelados reais e sanguinolentos”. “Não me orgulho das falhas, elas me levam a ser mais precisa e pedir um esforço extra a nossos voluntários e investigadores. Mas que não usem essas desculpas para nos silenciar. Tentam obstaculizar nosso trabalho, mas temos o apoio de governos de meio mundo por nossa seriedade no trabalho. Não nos pararão.” A comissão ainda não está criada, assim que, nestes dias, o debate está na imprensa e nas ruas, com manifestações contra a medida do governo que, na verdade, não chegam a contagiar mais do que os afetados e não atraem o grosso da população israelense. Antes de que esse grupo de investigação se constitua, deve-se definir quem o comporá e de quem irá se ocupar. Parece claro que um membro do partido de Lieberman, o Israel Beitenu, ganhará a presidência. E que a frente progressista na Câmara (Hadash, Meretz, Balad etc.) não poderá parar esse julgamento sumaríssimo contra a esquerda. No momento, do aeroporto Ben Gurion, de Tel Aviv, não é possível consultar nenhum sítio na internet dessas associações. Primeira tesourada. (Periodismo Humano) Tradução: Igor Ojeda




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áfrica

E de repente, a revolução TUNÍSIA Esse povo inesperado, intruso na lógica das revoluções, essa Tunísia de jasmins e luz de mel, agora de dignidade e combate, é o espelho no qual se olham os vizinhos, do Marrocos ao Iêmen, da Argélia ao Egito, irmãos de frustração, infelicidade e ira Fotos: Gwenael Piaser

Santiago Alba Rico EM 1999, DOIS CACHORROS se cruzam na fronteira. Um, argelino, magro, desfalecido, manco e roído pelas pulgas, tenta entrar na Tunísia; o outro, tunisiano, lustroso, bem alimentado, limpo, saudável, tenta, por sua vez, entrar na Argélia. O tunisiano está perplexo: “por que você quer entrar no meu país?”, pergunta. O argelino responde: “porque quero comer”. E imediatamente acrescenta, ainda mais perplexo que seu companheiro: “o que não entendo é por que você quer entrar na Argélia”. O tunisiano, então, responde: “porque quero... latir”. Em 1999, quando se contava essa piada nos meios intelectuais, a Tunísia estava amordaçada, mas, por outro lado, desfrutava – repetia-se – de uma situação econômica incomparavelmente melhor do que o resto do mundo árabe. Com um crescimento médio de 5% durante a década passada, o FMI apresentava o país como exemplo das vantagens de uma economia liberada das travas protecionistas. Em 2007, o Fórum Econômico Mundial para a África o declarava “o mais competitivo do continente”, mais do que a África do Sul. “Bonança”

“Kulu shai behi”, tudo vai bem, repetia a propaganda do regime em valas publicitárias, editoriais de imprensa e debates coreográficos na televisão. Enquanto o governo vendia até 204 empresas do robusto setor público criado por Habib Bourguiba, o ditador ilustrado e socialista, multiplicava-se o número de 4x4 nas ruas, construíam-se na capital Túnis bairros inteiros para os negócios e le loisir [lazer], e até 7 milhões de turistas chegavam todos os anos para desfrutar da cada vez mais sofisticada e sólida infraestrutura hoteleira do país. Em 2001, quando se abriu o primeiro Carrefour, símbolo e anúncio do ingresso na civilização, alguns podia ter a ilusão de que a Tunísia já era uma província da França. Era um país maravilhoso: a luz mais limpa e bonita do mundo, as melhores praias, o deserto mais hollywoodiano, as pessoas mais simpáticas.

“Kulu shai behi”, tudo vai bem, repetia a propaganda do regime em valas publicitárias, editoriais de imprensa e debates coreográficos na televisão Não se podia falar nem escrever, é verdade, mas, por outro lado, as pessoas engordavam e o islamismo retrocedia. A União Europeia (UE) e os EUA, mas também as agências de viagem e os meios de comunicação, contribuíam para alimentar a imagem de um país mais europeu que árabe, mais ocidental que muçulmano, mais rico que pobre, em transição à felicidade do mercado capitalista. Não se podia falar nem escrever, é verdade, e também é verdade que a Tunísia ocupava o segundo lugar no ranking mundial da censura informática, mas o esforço do governo merecia uma recompensa: o país organizou uma Copa da África, um Mundial de Handebol e, em 2005, uma insólita Cúpula da Informação, durante a qual se escondeu do mundo uma greve de fome de juízes e advogados e a detenção de jornalistas e blogueiros. Dois pesos...

O pouco que alguém tivesse se incomodado em raspar sob essa superfície bem envernizada teria revelado uma realidade bem distinta. Ninguém ou quase ninguém o fez. De janeiro a junho daquele ano, por exemplo, o jornal espanhol El País publicou 618 notícias relacionadas com Cuba, onde não acontecia nada, e 199 sobre a Tunísia, todas sobre o turismo ou o Mundial de Handebol; o El Mundo, nessas mesmas datas, registrou 5.162 entradas sobre Cuba, país onde não acontecia nada, e somente 658 sobre a Tunísia, quase todas sobre o mundial; e o ABC voltou 400 vezes seu olhar sobre Cuba, país onde não acontecia nada, enquanto só mencionava a Tunísia 99 vezes, 55 delas sobre o Mundial de Handebol. Em 10 de março deste mesmo ano, uma rápida busca no Google entregava 750 links sobre a distribuição, por parte do governo cubano, das famosas panelas para arroz, e apenas três (dois da Anistia Internacional) sobre a greve de fome e a tortura de presos na Tunísia. Mas o certo é que o Carrefour e os humvee [jipes blindados, comumente utilizado pelo exército estadunidense] – e a vida noturna em Gammarth [cidade tunisiana famosa por seus resorts] –

Manifestante segura a bandeira tunisiana: “a onda rompeu no centro de Túnis e alcançou seu objetivo

ocultavam não apenas a normal repressão exercida por Ben Ali desde 1987, ano do golpe palacial ou da Grande Mudança, como também o desaparecimento de uma classe média que havia começado a se formar nos anos 1960 e havia sobrevivido à crise do fim dos anos 1980. Deterioração econômica

Algumas poucas pessoas entravam no Carrefour e outros muitos saíam do país: até um milhão de jovens tunisianos – de uma população de 10 milhões – vivem fora, sobretudo, na França, Itália e Alemanha. Enquanto uma minoria deixava o francês pelo inglês e desprezava, claro, o dialeto tunisiano, a estrutura educativa herdada do regime anterior, relativamente eficiente, se degradava de tal modo que o último informe Pisa [Programa para Avaliação Estudantil Internacional, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)] relegava a Tunísia a um dos últimos dez lugares da lista. Enquanto 20 famílias desfrutavam do ócio nos Alpes ou em Paris, o desemprego aumentava, até alcançar 18%, 36% entre os mais jovens: entre os diplomados, passava de 0,7% em 1984 para 4% em 1997, para disparar a 20% em 2010. No espelho do Carrefour – em meio à publicidade atmosférica que convidava a um consumo inacessível –, os jovens dos banlieu [subúrbios] da capital e das regiões do centro e do sul do país pareciam se conformar com poder desfrutar desse reflexo. Quem se beneficiava deste crescimento benzido pelo FMI e instituições europeias? Basicamente uma só família, extensa e tentacular, que os despachos da embaixada estadunidense vazados pelo Wikileaks descrevem como um “clã mafioso”. Trata-se da família de Leyla Trabelsi, a segunda esposa do ditador, tão dona do país que muitos se referiam à Tunísia (la Tunisie) como La Trabelsie. Ben Ali e sua família política haviam se apoderado, mediante privatizações opacas, de toda a atividade econômica da nação, convertendo o Estado no instrumento de um capitalismo mafioso e primitivo ou, melhor, de um feudalismo parasitário do capitalismo internacional. A lista de setores saqueados pelo clã é inacreditável: sistema bancário, indústria, distribuição de automóveis, meios de comunicação, telefonia móvel, transportes, companhias aéreas, construção, cadeias de supermercados, ensino privado, pesca, bebidas alcoólicas e até o mer-

cado de roupa usada. Não se pode estranhar que, durante as revoltas desses dias, tantos comércios, empresas e bancos foram assaltados; tem-se falado em “vandalismo”, mas se tratava também de um vandalismo certeiro ou, em qualquer caso, de um vandalismo que, inclusive quando se desencadeava aleatoriamente, inevitavelmente acertava: seja onde for, atinge-se, sem dúvida, uma propriedade dos Trabelsi.

Quem se beneficiava deste crescimento benzido pelo FMI e instituições europeias? Basicamente uma só família, extensa e tentacular (…) Aviso

Nesse quadro de repressão e apropriação, seria preciso preparar o ouvido para escutar o barulho da maré ascendente. Poucos o fizeram, nem sequer quando, em janeiro de 2008, em Redeyef, perto de Gafsa, nas minas de fosfato, outro incidente menor – um protesto contra um ato de nepotismo – pôs toda a população em pé de guerra. Durante meses, as greves se prolongaram. Houve quatro mortes, duzentos detidos, julgamentos sumaríssimos com penas pavorosas. Enquanto Redeyef permaneceu sitiada pela polícia, apenas jornalistas e sindicalistas tunisianos tentaram romper o bloqueio policial e informativo. Na Europa, La Trabelsie continuava sendo bela, tranquila, segura para os negócios e para a geopolítica. Apenas um jornalista italiano, Gabriele del Grande, se atreveu a entrar clandestinamente no coração dos protestos e recolher informações antes de ser detido pela polícia e expulso do país. Sua reportagem começa assim: “Sindicalistas detidos e torturados. Manifestantes assassinados pela polícia. Jornalistas encarcerados e uma potente máquina de censura para evitar que o protesto se espalhe. Não é um tipo de história sobre o fascismo, mas sim a crônica dos últimos dez meses na Tunísia. Uma crônica que não deixa lugar a dúvidas sobre a natureza do regime de Zine al-Abidine Ben Ali – no governo desde 1987. Uma crônica que revela o lado obscuro de um país que recebe milhões de turistas todos os anos e do qual escapam milhares de emigrantes também todos os anos.”

Em um livro posterior, Il mare di mezzo, o jornalista descreve em detalhes a maquinaria do terror tunisiano, com as prisões secretas nas quais desapareciam não apenas os opositores nacionais como também os emigrantes argelinos, sequestrados no mar pelas patrulhas locais – policiais da Europa – para serem jogados, depois, no abismo. Ninguém disse nada. Era muito mais importante sustentar o ditador. Ben Ali e as potências ocidentais compartilhavam não apenas interesses econômicos e políticos como também o mesmo desprezo radical pelo povo tunisiano e seus padecimentos. Despertar

Mas, em 17 de dezembro do ano passado, uma faísca iluminou de repente o monstro e revelou, assim como explica o sociólogo Sadri Khiari, que “não há servidão voluntária, e sim somente a espera paciente pelo momento da eclosão”. O gesto de desespero de Mohamed Bouazizi, jovem trabalhador de informática reduzido a vendedor ambulante, pôs em marcha um povo do qual ninguém esperava nada, que os outros árabes desprezavam e que a Europa considerava dócil, covarde e adormecido pelo futebol e pelo Carrefour. Um ciclo lunar depois, em 14 de janeiro deste ano, depois de 100 mortos e dezenas de metástases rebeldes em todo o território, a onda rompeu no centro de Túnis e alcançou seu objetivo.

Um ciclo lunar depois (…) depois de 100 mortos e dezenas de metástases rebeldes em todo o território, a onda rompeu no centro de Túnis e alcançou seu objetivo Não se tratava mais de pão, trabalho ou youtube: “Ben Ali, assassino”, “Ben Ali, fora”. A última ofensiva policial, desmentindo as promessas que o ditador havia feito no dia anterior, provocou novamente numerosos mortos e feridos. Mas era muito bonito, muito bonito ver esses jovens – dos quais um mês antes ninguém esperava nada – voltarem às ruas e reterem as pessoas que fugiam para animá-las a regressar à batalha com as estrofes vibrantes do hino nacional: “namutu namutu wa yahi elwatan” (morreremos, morreremos, para que viva a pátria). Na última hora da tarde, apoiado até o final pela França, o ditador fugia à Arábia Saudita, deixando para trás milícias armadas com instruções para semear o caos. O perigo não passou, a luta continua. Mas, agora, há um povo que luta. “O 14 de janeiro é nosso 14 de julho”, repetem os tunisianos. Talvez seja o de todo mundo árabe. Jamais o povo havia derrocado um ditador; e esse povo inesperado, intruso na lógica das revoluções, essa Tunísia de jasmins e luz de mel, agora de dignidade e combate, é o espelho no qual se olham os vizinhos, do Marrocos ao Iêmen, da Argélia ao Egito, irmãos de frustração, infelicidade e ira. Não se devem encontrar as causas, sempre dadas, mas sim o minuto. E esse minuto é agora. (Gara) Santiago Alba Rico é escritor, ensaísta e filósofo espanhol.

A propaganda do regime repetia que tudo ia bem com o país

Tradução: Igor Ojeda.


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