Dafne Melo
Luciano Arruga
Desaparecido em tempos de democracia
Pág. 9
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Circulação Nacional Ano 9 • Número 414
São Paulo, de 3 a 9 de fevereiro de 2011
R$ 2,80 www.brasildefato.com.br Messay/CC
Mundo árabe
Só faltava uma faísca
Os povos árabes estão rompendo décadas de silêncio, em protestos contra a opressão política e o caos social criados, segundo eles, por regimes autocráticos apoiados pelas potências ocidentais. Págs. 10 e 11
Subdesenvolvimento
Vale devasta bairro maranhense Pág. 4 Entrevista – Oswaldo Sevá
Território, a prioridade das corporações Págs. 6 e 7
ISSN 1978-5134
Beto Almeida
Silvio Mieli
Leandro Konder
Wikileaks e vetos imperiais
Pirâmide invertida
A ideologia
Dois telegramas divulgados pelo Wikileaks revelam que os EUA organizam vetos e boicotes a pelos menos duas atividades estratégicas brasileiras, visando impedir o desenvolvimento nacional soberano e independente. O primeiro fala do veto estadunidense ao Programa Espacial Brasileiro. O embaixador dos EUA comunicou que “os EUA não apoiam o programa nativo de veículos para o lançamento do Brasil”. Pág. 3
O cartunista Latuff desenhou Moubarak desplugando o mundo do Egito, representado por um mapa de onde saía a tomada de um modem ligado ao Globo. Só que do mapa surgia um braço forte que desplugava o presidente do Egito. O Egito e sua cultura já conheceram vários tipos de redes sociais. Só que agora falamos de um país com 67% da população abaixo dos 30 anos e 90% de jovens desempregados. Pág. 3
A ideologia, como sabemos, é uma distorção no conhecimento do outro. Minha mente, conforme sustentam pensadores dogmáticos, não distorce nenhuma apreensão da realidade. Nós, neste valente semanário, reunimos e transformamos realidades empíricas que precisamos usar contra as mentiras contadas pelos nossos inimigos. Evitamos, porém, alimentar a ilusão de que vamos convencê-los. Pág. 3
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de 3 a 9 de fevereiro de 2011
editorial
Napolitano e Berlusconi, Brasília não é Addis Abeba FINDA A GUERRA fria, “o perigo comunista” já não mais funcionava como instrumento de submissão dos povos aos EUA. Logo, porém, fabricou-se um novo flagelo: o “terrorismo internacional”, cujo lançamento envolveu grande pirotecnia. No dia 11 de setembro de 2001, o mundo amanheceu sob o impacto da derrubada das Torres Gêmeas, o que permitiu, já no mês seguinte, a invasão do Afeganistão; do Iraque, em 2003; as atuais ameaças ao Irã e uma série infindável de desmandos dos EUA mundo afora. Toda a diplomacia desenvolvida pela chefe do Departamento de Estado, Condoleezza Rice, e hoje levada adiante pela senhora Hillary Clinton, tem como alicerce e jogo de cena “o combate ao terrorismo”. São considerados terroristas todos os que se oponham às regras do grande capital. Em nosso país, os desdobramentos mais visíveis dessa política são a criminalização e massacre dos movimentos sociais, dos pobres, em geral, e a ofensiva contra aqueles que resistiram ao golpe de 1964 e ao regime por ele implantado, antes que os liberais – na segunda metade dos anos 1970 – resolvessem desmontar a ditadura que eles próprios haviam construído. Sim, somos todos “terroristas”.
opinião
Sobre Cesare Battisti
Em termos legais, as acusações contra Battisti e o pedido de sua extradição já tiveram sua improcedência suficientemente comprovada. Battisti não cometeu os atos pelos quais Roma tenta condena-lo e execrá-lo enquanto exemplo para todo o povo italiano e o mundo. Está mais que certo, também, que nos anos 1960-1970 a Itália não era sequer uma democracia, conforme entende e diz propor oficialmente o establishment capitalista – exceto se quisermos criar ad hoc o estatuto das “democracias excepcionais”, ou da “democracias emergenciais”. No entanto, Battisti não é um inocente. É fundamental ficar claro. Battisti era sujeito de um projeto político que – com erros e/ou acertos – se batia contra as injustiças sociais e no qual a igualdade entre os homens não se subordinava à liberdade. Toda sociedade, em que a liberdade se construa às custas da negação da igualdade, será sempre uma sociedade em que a exploração e opressão dos mais fracos pelos mais fortes serão os alicerces da sua legalidade. Ou seja, do nosso ponto de vista, mais que ilegal, é ilegítima a entrega de Battisti à Itália dos senhores Giorgio Napolitano e Silvio Berlusconi que, hoje, incapazes de invadir
Battisti não é apenas Battisti. E só não enxerga quem não quer
Addis Abeba, como o fizeram seus ancestrais políticos em 1935, tentam sitiar Brasília. As condenações de Cesare Battisti, Alfred Dreyfus (1894), Mata Hari (1917), Ethel e Julius Rosenberg (1951) pertencem todas a uma mesma estirpe de crimes: a criação de bodes expiatórios (seguida de “punição exemplar”) que justifiquem os fracassos das políticas da direita. Os resultados perseguidos e induzidos são sempre as nacional-patriotagens, as ondas de xenofobia, de fascismos etc. Battisti não é apenas Battisti. Sua condenação e extradição, mais que necessidade do neofascismo italiano, será marco da ascensão da ultra-
direita em todo o mundo, espetáculo capaz de unificar e fazer crescer essa ultradireita que emerge dos escombros do neoliberalismo. Extraditar Battisti ou não lhe conceder sua condição plena de asilado (com direito, portanto, à garantia da sua segurança), será mais um modo de legitimar todo esse vergarse radicalmente para a direita que experimentamos hoje e que nos traz sempre à lembrança os anos 1930. A xenofobia varre a Europa e os EUA, assumindo expressões aparentemente diferenciadas. Seja através da aprovação pelo Parlamento italiano de rondas de cidadãos (milícias paramilitares) para denunciar e sequestrar estrangeiros com entrada ou permanência ilegal no país e entrega-los em seguida à polícia; seja pelas medidas decididas na França, que permitem (ordenam e consumam) a expulsão dos ciganos; ou o muro construído pelos EUA em sua fronteira com o México. Em Portugal, Espanha, Grécia – como na Itália e em toda a Europa Meridional e EUA –, a progressiva perda de postos de trabalho e de direitos sociais dos assalariados tem como contrapartida o ódio aos imigrados. Mas não apenas de xenofobia se alimenta o neofascismo. Há poucos anos, o Congresso dos EUA “flexibi-
lizaram” o conceito de tortura e passaram a indicar seu uso em “determinadas circunstâncias”. Nas eleições suecas de 2010, pela primeira vez desde 1945, a ultradireita elegeu representação no Parlamento e, na Holanda, a mesma ultradireita ameaça formar maioria entre os parlamentares. A Itália, no entanto, segue na vanguarda. O Parlamento de Roma fez o senhor Silvio Berlusconi primeiro-ministro, provando que a Liga Norte, famosa pela sua origem fascista, mas hoje considerada de centro-direita (!), retoma seu antigo prestígio e rumo. Na América Latina, apesar da euforia que despertam governos de centro-esquerda, o Haiti permanece ocupado há quatro anos; o golpe contra o presidente Manuel Zelaya, de Honduras, foi absorvido e naturalizado pela comunidade internacional, do mesmo modo que a não distante invasão do território do Equador por tropas do narco-estado colombiano; as tentativas de golpes contra os governos da Venezuela, Bolívia, Paraguai em anos recentes e, este ano, no Equador. Também a nova política de militarização da Zona do Canal, no Panamá, é “natural”. Battisti não é apenas Battisti. E só não enxerga quem não quer.
artigo
Miguel Urbano Rodrigues
Rogério Almeida
Official White House Photo/Chuck Kennedy
Tensão no Oeste do Pará
Obama e o messianismo imperialista O DISCURSO DE Obama sobre o Estado da União desencadeou na Europa uma torrente de elogios. Portugal não foi exceção. Nos canais de televisão, nas rádios e nos jornais, os analistas da burguesia reagiram com entusiasmo à fala do presidente dos EUA. Identificam em Barack Obama o estadista providencial que ao leme da Casa Branca vai salvar a humanidade. Registram que foi interrompido 75 vezes pelos aplausos dos congressistas e que o esboço da sua nova estratégia impressionou favoravelmente a oposição. É compreensível a satisfação dos republicanos que dispõem agora de maioria na Câmara dos Representantes. E também os elogios dos magnatas de Wall Street e das grandes empresas. O discurso de Obama assinalou uma acentuada guinada à direita da sua política. O balanço e as promessas do presidente justificam o temor de que na segunda metade do seu mandato não somente renuncie aos projetos sociais de matiz humanista que geraram esperança em milhões de estadunidenses como favoreça mais ostensivamente o capital financeiro e radicalize uma politica externa marcada pela agressividade e a ambição de hegemonia planetária. Despojado da sua retórica populista, o que sobra do discurso presidencial – um exercício de hipocrisia – de uma hora sobre o Estado da União? Cito alguns itens importantes: Propõe-se a manter a “liderança que fez dos EUA não somente um ponto no mapa, mas a luz do mundo”. Euforia porque “a bolsa se recuperou com fervor e os lucros das grandes empresas são mais elevados”. O desejo de “fazer dos EUA o melhor lugar do mundo para negócios”. Muita preocupação por a China ter construído “o mais rápido computador do mundo” e fabricar “comboios mais rápidos” do que os estadunidenses. Temor do desenvolvimento econômico da Índia e da China. Intenção de reduzir os impostos pagos pelas grandes empresas.
O conceito dos EUA como “luz do mundo” retoma o mito da nação predestinada, a única capaz de salvar a humanidade
Escalada de agressões no mundo
O conceito dos EUA como “luz do mundo” retoma o mito da nação predestinada, a única capaz de salvar a humanidade. Obama, na síntese do que se fez e não fez no terreno da política internacional clarifica bem esse conceito ao manifestar orgulho pela missão cumprida no Iraque “onde quase 100 mil dos nossos homens e mulheres saíram com a cabeça alta”. Omitiu obviamente que dezenas de milhares de soldados estadunidenses continuam a ocupar aquele país saqueado e vandalizado. Aliás, no mesmo dia em que pronunciava o seu discurso, mais de 50 iraquianos morriam em Bagdad em consequência da explosão de uma bomba. Nas vésperas morreram outros tantos. Imagens da pax americana. Orgulho idêntico expressa pelo rumo das coisas no Afeganistão, uma das prioridades da sua política externa, país agredido onde um exército de mais de 100 mil soldados e mercenários estadunidenses (apoiado por 60 mil da Nato) travam uma guerra genocida responsável pela morte de dezenas de milhares de civis afegãos. É de satisfação igualmente o sentimento do presidente por “termos revitalizado
a Nato e aumentado a nossa cooperação em tudo, desde o antiterrorismo à defesa antimíssil”. Traduzido para linguagem comum, que não distorça a realidade, Obama alegra-se pelo novo conceito estratégico da Nato lhe permitir atuar em escala planetária onde e quando Washington quiser. Militarizar o espaço sob hegemonia estadunidense é para ele outro objectivo que encara como projeto merecedor da gratidão dos seus compatriotas. Não falou das sete novas bases que os EUA vão instalar na Colômbia nem da presença da IV Frota da US NAVY em águas sul-americanas, repudiada pelos povos da região. Anunciou para março deste ano viagens ao Brasil, Chile e El Salvador para “forjar novas alianças em todo o continente americano”, mas não esclareceu que tipo de alianças, expressando, porém, satisfação pelos acordos bilaterais assinados com o Panamá e a Colômbia, dois países semicolonizados pelos EUA. A leitura do discurso sobre o Estado da União confirma que o presidente Obama dará continuidade a uma política externa menos ruidosa, mas não menos perigosa para a humanidade do que a de George Bush. Falta sublinhar que muitos minutos do seu discurso retórico e grandiloquente foram dedicados à evocação de êxitos individuais de desconhecidos jovens estadunidenses que apontou como exemplos da superioridade do american way of life. O fecho não destoa do espírito messiânico da mensagem. Inspirado pelos pais da Pátria, Barack Obama, invocando o seu exemplo, afirma a sua convicção de que é “graças à nossa gente que o nosso futuro está cheio de esperança”. E conclui: “Obrigado, que Deus os abençoe e que Deus abençoe os Estados Unidos da América”. Estranha é a concepção do divino perfilhada pelo presidente dos EUA, glorificado pela grande burguesia europeia. Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e escritor português.
Os grandes projetos e as tragédias que a instalação deles acarreta no interior da Amazônia têm ajudado a colocar na pauta nacional e internacional municípios como Anapu, Juruti, Nova Olinda, Jacareacanga e Castelo dos Sonhos, localizados no oeste do Pará. A disputa pelo território e as riquezas existentes possuem um xadrez nítido: grandes corporações e madeireiros versus comunidades consideradas tradicionais. A execução de Dorothy Stang, em fevereiro de 2005, alertou sobre a delicada situação desta parte da Amazônia. A região tem abrigado a tensão entre madeireiros e as populações locais desde o início do século 21. Além da execução da missionária estadunidense, foram assassinados os dirigentes sindicais Alfeu Federicci (Dema) e Bartolomeu dos Santos (Brasília). Tem-se ainda o registro de uma chacina. Além de cidades como Anapu e Nova Olinda, a situação de conflito tem se acirrado no município de Juruti. É nele que a mega corporação estadunidense, do setor de alumínio, Alcoa, explora uma mina de bauxita, matéria-prima para a produção de alumínio. Além da tensão entre a Alcoa e os quilombolas que lá residem, existem situações de risco pela exploração ilegal de madeira. Em janeiro, já ocorreu uma execução de trabalhador rural. O dirigente sindical Gerdeonor Pereira dos Santos denuncia novas ameaças de morte.
O cenário sinaliza que a região pode experimentar o que o sudeste do estado passou na década de 1980 Na comunidade de Galiléia, trabalhadores realizaram um “empate”. A prática começou no Acre, como forma dos seringueiros enfrentarem a exploração ilegal de madeira. Na comunidade de Galiléia, em Juruti Velho, moradores retiveram um caminhão com toras de madeira. O local abriga o Projeto de Assentamento Extrativista (PAE). A Associação das Comunidades de Juruti Velho (Arcojuve) já encaminhou documento para a superintendência regional do Incra de Santarém, Ministério Público Estadual e Polícia Federal informando sobre a situação. O futuro para a região não parece muito promissor. Ela integra um dos eixos de integração do governo federal. Há projetos de construção de um conjunto de hidrelétricas no rio Tapajós, projeto de uma hidrovia e o asfaltamento da BR 163. Sem falar na exploração de outras áreas para a mineração. E a concessão de exploração de reservas florestais para a iniciativa privada. O cenário sinaliza que a região pode experimentar o que o sudeste do estado passou na década de 1980, o que a imortalizou como a mais violenta na disputa pela terra do país. (Com informações de Isabel Cristina – Juruti Velho – oeste do Pará) Rogério Almeida é jornalista, colaborador da rede Fórum Carajás, articulista do IBASE e Ecodebate.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
de 3 a 9 de fevereiro de 2011
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instantâneo
Leandro Konder
A ideologia A IDEOLOGIA, como sabemos, é uma distorção no conhecimento do outro. Minha mente, conforme sustentam pensadores dogmáticos, não distorce nenhuma apreensão da realidade. O que eu vejo é o que todo mundo devia estar vendo. O que eu ouço é o que os outros deviam estar ouvindo. Não preciso mudar nada no meu conhecimento da realidade. Os antigos romanos criaram a palavra alter, que em português passou a significar outro. Se formos fiéis à história dessa palavra, veremos que o termo original já nos diz com clareza que só podemos conhecer de fato o outro, alterando-o. Quer dizer: para entender o que é diferente, é necessário ir ao outro. Viver a aventura de se modificar. Nós, neste valente semanário, que é o Brasil de Fato, reunimos e transformamos realidades empíricas que precisamos usar contra as mentiras contadas pelos nossos inimigos. Evitamos, porém, alimentar a ilusão de que vamos convencê-los.
Silvio Mieli
Pirâmide invertida O CARTUNISTA Carlos Latuff, sempre muito inspirado, desenhou o presidente Hosni Moubarak desplugando o mundo do Egito, representado por um mapa de onde saía a tomada de um modem ligado ao Globo. Só que do mapa surgia um braço forte que, por sua vez, desplugava o presidente do Egito. O Egito e sua cultura milenar já conheceram vários tipos de redes sociais. O império dos faraós e seus escribas; as passagens de Homero, Alexandre, César, Marco Antônio, Augusto, Pitágoras, Napoleão; a influência muçulmana; as configurações desenhadas pelo nefasto colonialismo britânico e pela delicada situação geopolítica com Israel. Só que agora estamos falando de um país com 67% da população abaixo dos 30 anos e 90% de jovens desempregados. É dentro desse contexto que Ahmad Maher organizou, na primavera de 2008, um grupo de discussões na internet para apoiar a paralisação dos trabalhadores da cidade industrial de El-Mahalla ElKubra. O coletivo pediu a todos que no dia 6 de abril, data da greve, usassem a cor preta e ficassem em casa em apoio aos grevistas. Facebook, Twitter, Flickr, blogs e outros recursos entraram em ação para cobrir a
greve, denunciar os abusos da polícia e proteger juridicamente os ameaçados. Movimentos como o do “6 de abril” foram potencializados pelo levante tunisino. E por mais que os seus fundadores digam o contrário, as chamadas “redes sociais” não nasceram para instigar sublevações. Facebook, Twitter foram subvertidos pela base da pirâmide social egípcia para este fim. O resultado é um movimento profundamente marcado pelo anarquismo digital: a internet ajudou a encher as ruas, que por sua vez se auto-organizam sem lideranças e hierarquias palpáveis (ainda que forças político/religiosas queiram instrumentalizá-las). A própria população cerca a biblioteca de Alexandria e o museu do Cairo para protegê-los de saques. Diante deste novo cenário ciberpolítico, censurar os egípcios seria como impedir a troca de arquivos mp3. As pirâmides estão de cabeça para baixo. E Guy Debord, um dos artífices de maio de 1968, estava certo quando dizia que é um momento belíssimo aquele no qual se dá vida a um assalto contra a ordem do mundo. Desde o seu início, quase imperceptível, já sabemos que dentro em breve, o que quer que aconteça, nada será como antes.
Beto Almeida
Wikilieaks e vetos imperiais DOIS TELEGRAMAS divulgados recentemente pelo Wikileaks revelam que os EUA organizam vetos e boicotes a pelos menos duas atividades estratégicas brasileiras, visando impedir o desenvolvimento nacional soberano e independente. O primeiro telegrama fala do veto estadunidense ao Programa Espacial Brasileiro. O embaixador dos EUA comunicou ao embaixador da Ucrânia, no Brasil, que “os EUA não apoiam o programa nativo de veículos para o lançamento do Brasil”. A ingerência e o veto alcançam a Ucrânia, que possui uma empresa estatal binacional com o Brasil, a Alcântara Cyclone Space. Aliás, sempre alvo da imprensa colonizada, que defende os interesses da metrópole visando o não desenvolvimento tecnológico da periferia. Querem que o seleto e fechado clube de potências espaciais permaneça impermeável ao desenvolvimento da ciência espacial pelo mundo afora. Com a eleição de Lula, o Acordo de Salvaguardas entre Brasil-Eua (TSA), firmado por FHC, foi engavetado, após ter sido rejeitado no Parlamento por afrontar a soberania nacional. A parceria com a Ucrânia é uma das maneiras encontradas para encurtar o caminho para o desenvolvimento espacial brasileiro. O outro telegrama divulgado pelo Wikileaks reve-
la uma posição também de veto dos EUA ao progresso do Programa Nuclear Brasileiro. Um físico cearense, Dalton Girão, do Instituto Militar de Engenharia, do Exército, despertou a ira estadunidense por ter publicado em livro o resultado de suas simulações de experiências nucleares que, praticamente, se equivalem a mais importante bomba atômica dos EUA, a W87. Tamanha é a precisão do físico que os gringos logo suspeitaram de espionagem. Deram ordens para o recolhimento do livro (censura!) e ainda extrapolaram afirmando que terroristas poderiam ter acesso às fórmulas de Girão. Como se não estivesse gravado para sempre na memória da humanidade o maior atentado terrorista conhecido, a incineração da população de Hiroxima e Nagazaki. Sabemos quem são os terroristas. Os militares brasileiros resistiram ao recolhimento do livro. Mais que isto, há resistência oficial, louvável, à assinatura do Acordo Aditivo ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP). Ele permite inspeções a qualquer tempo, sem aviso, a instalações militares brasileiras. Tal como o TSA, o TNP foi assinado por FHC. É significativo o avanço trazido pela política externa brasileira a partir de Lula. Os telegramas do Wikileaks o demonstram.
comentários do leitor Casseta & Planeta
Regulação da comunicação
Cesare Battisti
Decepcionante o ensaio sobre o Casseta & Planeta, na coluna de Leandro Konder (edição 408), com todo respeito à sua notória competência. Não consegue analisar quase nada em relação ao tipo de humor e sua repercussão na sociedade. O grupo teve muitos bons momentos e grandes saques de criatividade, criação de personagens emblemáticos, mas nunca deixou de reproduzir o preconceito, o machismo, a homofobia etc. em seus quadros. A nota mais triste foi o esculacho aos nordestinos na reeleição de Lula, em 2006, quando eu deixei de assistir ao programa. O quadro criado pelos fofos era tão desqualificador e preconceituoso como as manifestações tão criticadas da infeliz Mayara.
A entrevista com os pesquisadores Sivaldo Pereira e Ramenia Vieira da Cunha, do Intervozes (edição 407), vem ratificar a sensatez daqueles que percebem a necessidade urgente de dar um jeito na mídia brasileira, sem que tal signifique a volta à lei da mordaça. O nível de qualidade dos nossos meios de comunicação tem caído vertiginosamente. Tudo com o escopo de aumentar a tiragem ou o Ibope. A preocupação primeira dos meios de comunicação deveria ser o bem-comum. Afinal, há vários modos de se veicular uma mesma realidade. Matérias como essa nos dão a certeza de que, de fato, há muita gente “acordada” neste Brasil.
E mais uma vez o STF, encabeçado por Cezar Peluso, se revela ultradireitista e golpista com o caso Battisti, como se não fosse suficiente a decisão tomada em abril de 2010 de absolver, por 7 votos a 2, os crimes de lesa-humanidade cometidos pelos assassinos e torturadores do regime militar há algumas décadas. Tais decisões comprovam explicitamente que, mesmo após 26 anos do término da ditadura, as forças reacionárias e os militares exercem grande domínio sobre nossa sociedade, especialmente no subserviente STF, que deixa impune monstros e persegue comunistas.
Mariângela Portela da Silva, por correio eletrônico
Maria Inês Prado, São João da Boa Vista (SP), por correio eletrônico
Lucas Freiria, por correio eletrônico
Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico comentariosdoleitor@brasildefato.com.br
Nós, neste valente semanário, que é o Brasil de Fato, reunimos e transformamos realidade Não sei da existência de nenhum banqueiro, de nenhum latifundiário, de nenhum milionário, que se ponha realmente à disposição dos grandes movimentos sociais. Eles alegarão que estão sempre sob a pressão plebeia, cercados por adversários implacáveis; dirão que, se não se defenderem, com energia acabarão tendo seus bens confiscados e, eventualmente, suas vidas tolhidas. A força de Marx está no fato de ele ter mostrado como a história humana tem se realizado através das duas coisas: de um lado, o desenvolvimento econômico, o avanço tecnológico, o “progresso”. De outro, a divisão que os privilegiados mantêm a qualquer custo, reprimindo os movimentos dos de “baixo”. Nesse segundo sentido, a educação que a burguesia organizou e proporciona ao povo ensina os trabalhadores a repetir velhos preconceitos e acaba desmoralizando a própria ideologia. Nas discussões a respeito das inevitáveis distorções ideológicas, aparecem sempre alguns “mussolinis” que proclamam desavergonhadamente o assassinato da verdade pela ideologia. Para proteger o caroço de verdade que a ideologia possui (ao lado da mentira), a esquerda teve o mérito de inspirar um poeta/cantor brasileiro – Cazuza – que reivindicou para ele e seus camaradas a liberdade de possuir sua própria ideologia (Ideologia, eu quero uma pra viver...). Em Marx, a atitude em face da ideologia é afrontosamente negativa. O poeta Cazuza, entretanto, dispõem-se a enfrentar a confusão ideológica dos seus inimigos (e, se for o caso, também de alguns amigos). Marx e Cazuza se dão conta, por diferentes caminhos, do uso da distorção ideológica e tratam de combatê-la. Para o filósofo alemão, ideologia é uma categoria que diminui muito a credibilidade do conceito. Marx sustenta que a chave da ideologia está no fato de que a burguesia explora o trabalhador, deixando oculta a chamada mais-valia.
Sem autocrítica, é impossível aprofundar nossas ideias a respeito da ideologia. Sem a ideologia, tendemos a atrofiar e empobrecer nossa relação conosco mesmos Cazuza é menos “radical”. Seu canto o mostra plenamente inserido na realidade, mas sem se comprometer com as categorias do pensamento teórico-político. Seus heróis “morreram de overdose” e seus inimigos estão no poder. Por isso, ele canta: “ideologia, eu quero uma pra viver”. Atualmente, o que se vê é a presença do pensamento conservador pragmático que desfaz as críticas que lhe são feitas em nome de critérios exclusivamente utilitários e deixa de lado a análise crítica dos fenômenos ideológicos. Para a superação da ideologia, é imprescindível abrir espaço no pensamento para a autocrítica. Não uma lenga-lenga que finge ser autocrítica, contudo é apenas o autoelogio de intelectuais a serviço da burguesia. Sem autocrítica, é impossível aprofundar nossas ideias a respeito da ideologia. Sem a ideologia, tendemos a atrofiar e empobrecer nossa relação conosco mesmos. Temos manifestado falhas e deficiências no nosso trabalho teórico. O que nos consola é o fato de a burguesia não ter resolvido nenhum dos problemas que ela vem enfrentando nas últimas décadas. Leandro Konder escreve semanalmente neste espaço.
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brasil Antonio Soffientini
Um lugar do mundo onde se vê o ar que se respira
Bairro do Piquiá de Baixo, em Acailândia, convive com a poluição gerada pela Vale
SUBDESENVOLVIMENTO Bairro do Piquiá de Baixo, em Açailândia, sofre com a poluição gerada pela Vale e por siderúrgicas Márcio Zonta de Açailândia (MA) “PERIGO! ÁREA contaminada!”. Esse era um dos escritos em faixas que marcaram o protesto dos moradores do bairro do Piquiá de Baixo, nas últimas semanas de 2010, na simpática cidade de Açailândia (MA). A manifestação é contra a contaminação das siderúrgicas responsáveis pela produção de ferro-gusa e pelos trens de carga da Vale, que carregam inseticidas e fertilizantes, poluindo rios, contaminando o solo e deixando a qualidade do ar irrespirável para os habitantes.
“Estamos com uma bomba em cima da nossa cabeça, a Vale de um lado, e as siderúrgicas de outro” A história do Piquiá de Baixo, localizado às margens da BR 222 (km 14,5) e surgido em 1970, começou a mudar com o grande projeto dos Carajás, implantado na década de 1980, na construção de um grande polo siderúrgico instalado de
um lado e a Estrada de Ferro de Carajás do outro. “Estamos com uma bomba em cima da nossa cabeça, a Vale de um lado, e as siderúrgicas de outro”, assim desenha a geografia da comunidade o senhor Willian Pereira de Melo, residente há 30 anos no local. Aliás, são cinco siderúrgicas: Fergumar, Gusa Nordeste, Pindaré, Simasa e Viena. Hoje, as 300 famílias da comunidade lutam para serem removidas para outra área. Responsabilidade que foi dividida entre a Vale, Prefeitura Municipal, Ministério Público Estadual e governos estadual e federal. Cada um entrou com uma função, mas a que mais chama a atenção é a da Vale, ficando, dentre outras atribuições, com a incumbência de ceder seus técnicos para realizarem um projeto que busque dinheiro público para resolver o caso. “A mineradora quer angariar dinheiro do Estado, depois de ser, junto às siderúrgicas, responsável pela destruição da região”, reclama o advogado da Justiça nos Trilhos, Danilo Chammas. Algo que revolta o senhor Melo, pela demora no processo.“Eu creio que a Vale não precisa de dinheiro público para nos tirar daqui. Com seus recursos próprios, tem condições sem depender de ninguém”, explanou, indignado, na assembleia pública ocorrida dias antes das festas natalinas, na igreja da comunidade, enquanto um funcionário da área de responsabilidade social da Fundação Vale cochilava nas primeiras fileiras. Destruição
Enquanto o impasse não se resolve, estudos já confirmam que é impossível manter as famílias na região. Segundo a engenheira de recursos hídricos e ciências ambientais, do Centro de Defesa da
Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia (CDVDH), Mariana de la Fuente Gómez, nas amostras de água, do solo e das plantas estudadas durante seis meses por sua equipe, os resultados são escandalosos e demonstram a destruição do meio ambiente. “São índices de poluição que só tinha visto em livros. Tem a quantidade de ferro, de poluentes metálicos no ar, que causam doenças crônicas, uma água vermelha por causa de ferro, num ecossistema totalmente degradado, onde as pessoas lavam roupa, se banham, pescam”, critica. Gómez se assustou certos dias quando o pHmetro, que mede o ph da água, ficava “louco com o alto índice de poluição. Sem contar os resíduos desprezados pelas siderúrgicas nos arredores ou dentro da própria comunidade, o que já queimou dez crianças nos últimos tempos”.
de Marabá (PA) Com a efetivação da S11D, projeto de mineração da Vale que pode ser comparado a um novo complexo de Carajás, o aumento do escoamento de minério e da exportação evidenciam um modo de exaurir os recursos naturais no país, que vai contra a soberana nacional, na opinião do membro do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Frederico Drumond Martins. “A Vale tem uma visão apenas de acionista, de otimizar, vender cada vez mais quantidades e quantidades do que ela extrai do solo brasileiro. Sabemos a importância econômica que tem o minério de ferro para o país, no entanto, não temos nenhuma reserva, só vendemos”, analisa Martins. O escritor Rui Nogueira, autor de Servos da moeda (Editora Nação do Sol, 2001), explicita o que já vem ocorrendo em outros países, que se aproveitam da forma de atuar da Vale no Brasil. “O minério de ferro de Carajás, com teor de mais de 60%, é exportado pelo preço do minério com 30% de teor – a sete dólares a tonelada –, com total isenção de impostos. Navios gigantescos estão transferindo enorme quantidade de minérios para depósitos criados nos EUA e no Japão, estocando reservas estratégicas, que são nossas”, denuncia. Na China não é diferente, além do minério, ela estoca petróleo e alimentos. Disputa
O maior empresário brasileiro contemporâneo, Eike Batista, também se articula para entrar na exploração mineral, “brigando contra o monopólio da Vale no mercado, que praticamente domina a cadeia produtiva de minério com a mineradora, fer-
Preocupação
“Parece proposital que os médicos da região não registrem as mortes por consequência da poluição do ar que provoca enfisema pulmonar” Morte
Para a engenheira, num ambiente assim, dificilmente se vive, por isso as mortes por doenças respiratórias são uma constante, embora o Estado esconda. “Parece proposital que os médicos da região não registrem as mortes por consequência da poluição do ar que provoca enfisema pulmonar. Não encontrei assinatura de médicos em relatórios, não tem nos atestados de óbitos que tive acesso e nem a médica que entrei em
Soberania brasileira ameaçada Segundo escritor, EUA e Japão construíram depósitos para estocar minério de ferro exportado do Brasil pela Vale
contato, responsável pelo posto de saúde local, me prestou esclarecimentos contundentes”, revela Gómez. Soraia, uma jovem de 26 anos, casada há cinco, tem o sonho de ser mãe, algo que quase conseguiu por duas vezes, não fosse a interrupção por abortos espontâneos. “Fui ao médico e a solução que me deu foi eu mudar do Piquiá de Baixo, se quisesse ser mãe, mas não tenho condições de sair daqui assim, meu marido trabalha na siderúrgica Viana e ganha muito pouco”. Gómez explica que o alto índice de aborto na região é “pela quantidade de enxofre no ar”.
rovia, siderúrgica e seu porto”, segundo informação do Instituto Brasileiro do Aço (IABR). Algo que futuramente acirrará ainda mais a briga pelo minério e por terras, conforme noticiou, em seu blog Independência Sul Americana, o jornalista Cezar Fonseca. “A China busca garantir seu abastecimento na África e na América do Sul. Amplia-se a vontade dos chineses de não apenas lançar mão das importações. Buscam, também, controle da produção dessas matérias-primas”, escreve. Nesse sentido, “um grupo empresarial chinês já detém 250 mil hectares de terras agricultáveis ao longo da fronteira do Piauí com o Maranhão”, alerta Fonseca. De fato, a Vale já está tendo dificuldade, pois obstáculos como câmbio, aumento das importações, guerra tributária e excesso de estoques no exterior podem atrapalhar os planos de implantação de suas siderúrgicas pelo país afora, algo que lhe garantiria ainda mais poder, conforme análise do IABR.
“A Vale tem uma visão apenas de acionista, de otimizar, vender cada vez mais quantidades e quantidades do que ela extrai do solo brasileiro” Assim, “prevalecerá a briga dos mercados pelo nosso minério, exaurindo-o, apenas na busca pelo lucro, deixando à própria sorte nossa soberania”, reflete o sociólogo e engenheiro agrônomo, Raimundo Gomes da Cruz Neto, presidente do Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (Cepasp). Já o jornalista Lucio Flavio Pinto, editor do Jornal Pessoal no Pará, que vem acompanhando a atuação da Vale em território paraense, vai além e faz uma previsão: “Nada é repartido com o Estado no qual essa riqueza está, mas está sendo transferida para o outro lado do oceano em velocidade que corresponde a uma verdadeira sangria desatada. Mais três décadas e só nos restará chorar no fundo do buraco em que ficaremos”. (MZ)
Diante de todas as mazelas sofridas pelo povo do Piquiá de Baixo, o que se constata é que as siderúrgicas e a Vale pouco se importam com a comunidade. “A Vale não poderia nunca cortar um povoado carregando produtos tóxicos. Já as siderúrgicas, eu as visitei por dentro, me deparei com controles nulos, medidores de poluição desligados ou instalados, mas não funcionando direito”, revolta-se a engenheira. Para Chammas, o que elas têm deixado “é apenas sujeira, destruição e morte. O Piquiá de Baixo representa bem o descaso com a questão dos direitos humanos, pois já estão aí há mais de 20 anos e não se vê projetos ou atividades desenvolvidos para a comunidade, além do trabalho precarizado imposto aos seus funcionários”, protesta. Sem muita esperança de sair rapidamente do bairro, José Pedro, professor, morador há mais de 15 anos, diz que, se depender da Vale e das siderúrgicas, a comunidade continuará a ser o “único lugar do mundo onde se vê o ar que se respira”.
Civilização da mineração de Arari (MA) O Vale Alfabetizar atendeu, de 2003 a 2009, cerca de 120 mil pessoas com mais de 15 anos no Pará, Maranhão, Sergipe, Minas Gerais e Espírito Santo. O TeleSol Vale, continuidade do programa de alfabetização da mineradora, certificou 355 alunos em Açailândia e 212 em Alto Alegre do Pindaré, em dezembro de 2010, com o objetivo de aperfeiçoar a fala e a escrita dos participantes, além de tratar temas cotidianos, como saúde e qualidade de vida, segundo informações da empresa. Recentemente foi inaugurada a Estação Conhecimento Vale em Arari (MA) para atender crianças e adolescentes entre 6 e 18 anos. Com capacidade para mil alunos, disponibilizará áreas de esporte e cursos profissionalizantes e de empreendedorismo. No Pará, foi recém inaugurado a Estação Conhecimento de Parauapebas, sendo a segunda no Estado, já que funciona uma unidade desde 2008, na cidade de Tucumã. Marabá, Barbacena e Curionópolis serão as próximas cidades a serem contempladas com o programa. Interesse
Diante de tantos programas voltados à educação propostos pela Fundação Vale, há de se desconfiar de algo, segundo o sociólogo Raimundo Gomes da Cruz Neto, presidente do Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (Cepasp). “É só observar que todos esses programas são realizados nas comunidades nas quais a Vale tem seus negócios”. Em 2009, de acordo com relatório anual da empresa, o investimento em ações de responsabilidade socioambiental foi de 781 milhões de dólares. Investimento contestado pelo professor de agronomia Fernando Micheloti, da Universidade Federal do Pará (UFPA). “A Vale tem seu próprio fundo de responsabilidade social para atuar nas comunidades com seus projetos, que não resolvem os problemas, mas lhe servem muito bem de propaganda”. Cruz Neto observa que “é explícita a tentativa de formar uma civilização da mineração em seu entorno, que torne as pessoas acríticas ao seu projeto e aos problemas gerados, por isso prepara os conteúdos dos cursos e escolhe seus locais de implantação”. Seria necessário que o fundo formado pela Vale fosse gerido por outros atores da sociedade, reclama Micheloti. “Teria quer ser um fundo controlado pelas comunidades, movimentos sociais e entidades públicas, averiguando suas reais necessidades”. (MZ)
nacional
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Leilão de petróleo, tragédia anunciada Marcello Casal Jr/ABr
PRIVATIZAÇÃO Já no dia de sua posse, ministro Edison Lobão anuncia a realização de leilões do petróleo para muito breve. Sociedade civil organiza a resistência
“Não podemos permitir que haja leilão. O governo dá todos os sinais de que quer transformar o Brasil em exportador de petróleo”
Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) BASTARAM QUATRO dias de governo para que os boatos negativos se confirmassem. Nos bastidores, desde a eleição de Dilma Rousseff (PT) à Presidência, já se comentava sobre a possibilidade de retomada, em breve, dos leilões de petróleo. No dia 4 de janeiro, o ministro das Minas e Energia, Edison Lobão (PMDB-MA), confirmou as suspeitas. Os leilões de áreas de exploração de petróleo e gás no pré-sal seriam realizados, segundo ele, já no segundo semestre deste ano. Enquanto leilões de campos de petróleo em terra sob regime de concessão seriam realizados, de acordo com o ministro, já no primeiro semestre. O anúncio foi feito durante a solenidade que marcava sua posse no Ministério, na qual Lobão também se mostrou otimista quanto a avanços na construção da polêmica usina hidrelétrica de Belo Monte. A possibilidade de retomada dos leilões de petróleo, contudo, não surgiu sem protesto de lideranças sindicais e estudantis. “Não podemos permitir que haja leilão. O governo dá todos os sinais de que quer transformar o Brasil em exportador de petróleo. Vamos continuar sendo exportadores de matéria-prima para o primeiro mundo? Não podemos. Temos que produzir de acordo com as necessidades internas do país e criar fontes alternativas de energia. Temos que reduzir a importância do hidrocarboneto na matriz energética mundial”, protesta Emanuel Cancela, da direção do Sindicato dos Petroleiros (Sindipetro-RJ). Segundo ele, percebe-se uma sintonia nos discursos de Dilma, Lobão e José Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobras. Os três estariam apontando na direção da continuidade dos leilões e da exploração massiva do petróleo brasileiro para exportação. “Para mim não foi nenhuma surpresa. Isso já estava apontado nas entrelinhas do que vinha sendo discutido. Vão
da Casa Branca, a exploração do petróleo nacional certamente entrará em pauta – embora os agrocombustíveis devam ganhar projeção no diálogo. Já se esboça, no Rio de Janeiro, a iniciativa de organizar um grande ato de protesto durante a visita do presidente estadunidense.
Resistência
800 pessoas participaram de ato no Rio de Janeiro contra os leilões do petróleo
dilapidar o estoque de recursos do Brasil. Muitas das concessões dos governos Lula e Fernando Henrique ainda estão em curso ou ainda vão ser iniciadas. O novo modelo aprovado [de partilha] não é bom, embora seja melhor do que o anterior. Continuam priorizando a entrega dos recursos, enquanto nenhuma das re-
Ao tomar posse, Edison Lobão cumprimenta vice-presidente Michel Temer
formas estruturais está sendo privilegiada. É triste”, lamenta Ildo Sauer, ex-diretor de Gás e Energia da Petrobras e um dos diretores do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP). Alguns dos sindicalistas têm lembrado que um dos setores que mais se mobilizou pela eleição de Dilma foi o dos petroleiros. Há forte preocupação no movimento com relação à vinda do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ao Brasil. Anunciada para março, a visita certamente terá como objetivo tratar de questões estratégicas – incluindo o pré-sal brasileiro. Entre os assuntos anunciados para a conversa com a presidenta Dilma, figura “a energia limpa, o crescimento global, a assistência ao Haiti e os esforços para o desenvolvimento”. Nesse debate, anunciado por um representante
No dia 17 de janeiro, pôde-se ter uma noção precisa de que a resistência aos leilões esboça se estruturar. Foi realizado um ato no Rio de Janeiro com mais de 800 pessoas, organizado por estudantes vinculados à oposição da União Nacional dos Estudantes (UNE). A manifestação aconteceu ao final do 13º Congresso Nacional de Entidades de Base da UNE (Coneb), como decorrência de reuniões e debates entre os estudantes e sindicalistas. Entoando gritos ensaiados como “Leilão! Leilão! É privatização!”, e portando cartazes e faixas improvisados, os jovens se dirigiram ao edifício da BR Distribuidora no bairro do Maracanã. Além dos protestos antileilão, também manifestaram o apoio às vítimas das chuvas na região serrana do Rio e reivindicaram a aplicação de 50% do Fundo Social do pré-sal na Educação. As principais lideranças foram unânimes em afirmar que essa era apenas a primeira iniciativa de resistência. O objetivo é ampliar, por todo o Brasil, a oposição aos leilões do petróleo brasileiro. Para isso, já no início de fevereiro se realizará no Rio uma plenária estadual de planejamento da atuação do movimento social. Na pauta, não apenas a construção de unidade em torno da resistência, como também a realização de um curso de formação e a organização de uma nova plenária nacional da campanha “O Petróleo Tem Que Ser Nosso”. “Foi um erro das entidades ter pré-estabelecido essa plenária para março. Agora, a luta está colocada, e precisaríamos já estar nos organizando”, afirma Cancela. “A Petrobras tem emitido documentos afirmando que nos transformaremos em grandes exportadores, como se isso fosse bom”, lamenta.
Official White House Photo / Pete Souza
Capitalização da Petrobras causa maior desembolso da história do BNDES Banco de fomento gastou, em 2010, R$ 168 bilhões, sendo só R$ 24,7 bilhões com a capitalização Obama saúda deputados logo antes do discurso sobre o Estado da União
Obama volta a criticar privilégio do petróleo Presidente estadunidense reivindica fim do lobby ao setor energético, para investimento em energias renováveis do Rio de Janeiro (RJ) Uma declaração do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, sobre o setor energético, no final de janeiro, surpreendeu pela veemência. Ele criticou a subvenção às “energias do passado”, defendendo o investimento nas fontes energéticas “do amanhã”. Significativos, os subsídios às companhias de petróleo estadunidense deveriam, segundo ele, ser eliminados, para que se invista em novas energias, infraestrutura e educação. A tese foi defendida na visita do presidente ao Congresso, no discurso sobre o Estado da União. O surpreendente da declaração, que ganhou centralidade no discurso, foi ter sido feita em um momento em que Obama perdeu a maioria no parlamento. Em apenas seis anos, segundo relatório do Instituto Americano da Legislação Ambiental, o governo anterior, de George W. Bush, entregou ao setor nada menos do que 72 bilhões de dólares em formas distintas de ajudas públicas. As energias renováveis receberam apenas 29 bilhões de dólares – metade para financiar
os agrocombustíveis, cujos benefícios são duvidosos. A indústria dos combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás) investiu, apenas nas candidaturas ao Congresso em 2010, 18 bilhões de dólares. Desse total, 75% foram para candidatos do Partido Republicano. No ano anterior, já havia sido investida quantia semelhante. Em seus dois primeiros anos de governo, Obama tentou arduamente dar fim aos subsídios. No entanto, mesmo tendo, durante esse período, maioria nas duas casas parlamentares, ele não obteve sucesso. Agora, com o domínio significativo dos republicanos sobre uma das casas, torna-se ainda mais difícil obter resultados alentadores. A opinião pública estadunidense está, em sua maioria, do lado dessa posição. O derramamento de óleo no Golfo do México, em 2010, exerceu forte papel na consciência dos cidadãos dos EUA. No mesmo dia das declarações de Obama, uma das principais petrolíferas do país, a Conoco Phillips, anunciou a triplicação de seus lucros. As outras grandes corporações devem anunciar resultados semelhantes nos próximos dias. (LU)
do Rio de Janeiro (RJ) O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) apresentou, em 2010, o maior índice de desembolso da história. Aproximadamente R$ 168 bilhões foram gastos, em grande parte devido à capitalização da Petrobras. O valor é 22,6% maior do que o desembolso de 2009, de R$ 137 bilhões. O crescimento significativo da economia brasileira também teria sido uma das causas. Apenas a capitalização da Petrobras foi responsável por investimentos de R$ 24,7 bilhões do banco. O BNDES chegou ao final do ano com uma quantia ainda maior de empréstimos aprovados ainda não liberados. Cerca de R$ 201 bilhões se enquadram nessa categoria, enquanto outros R$ 231 bilhões estariam em processo final de análise. Todos estes valores são inéditos na história da instituição. A capitalização da Petrobras foi considerada um sucesso nos setores ligados ao governo. Segundo informações divulgadas pelo banco, para conseguir atingir esse patamar foi necessária uma ajuda do governo federal com recursos. Desde 2009, o BNDES vinha recebendo aportes de recursos da União, que chegaram a cerca de R$ 180 bilhões. Esse volume de investimento foi um dos pontos mais debatidos da campanha presidencial, especialmente durante o primeiro turno. A candidatura do PSDB apresentava críticas ao gasto governamental, considerado demasiado. Também houve críticas de candidatos da oposição de esquerda ao governo. Quando os valores de investimento do BNDES de 2009 foram di-
vulgados, o presidente do banco, Luciano Coutinho, previa uma queda de investimento no ano seguinte, equivalente, em sua previsão, a 8%. Para Coutinho, o desembolso do banco chegaria, no máximo, a R$ 126 bilhões, valor 33,6% menor do que viria alcançar (R$ 41 bilhões a mais). O banco também evita fazer previsão para o investimento neste ano, especialmente pela incerteza sobre a prorrogação do Programa de Sustentação e Investimento (PSI). Coutinho acredita, ainda, em uma possível diminuição.
Esse volume de investimento foi um dos pontos mais debatidos da campanha presidencial Segundo os mesmos dados, divulgados no final de janeiro pelo BNDES, se não houvesse a capitalização da Petrobras, o aumento no nível de investimento do banco seria de apenas 5%. Os números revelam que os setores da economia tiveram um desembolso muito próximo daquele de 2009 em termos percentuais. O setor industrial obteve 47% dos recursos destinados pelo banco, enquanto o de infraestrutura teve 31%. Comércio e serviços ficaram com 16%, em terceiro lugar. Somados, representam 94% dos recursos. Houve, entretanto, crescimento no empréstimo às micro e pequenas empresas. Enquanto, em 2009, tiveram investimento de R$ 24 bilhões (18% dos recursos), no ano seguinte alcançaram R$ 46 bilhões (27% do desembolso). Segundo o BNDES, mais importante do que o aumento dos recursos é a otimização do empréstimo. O desenvolvimento socioambiental seria uma das prioridades para 2011. (LU)
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brasil Lucivaldo Silva/Agência Pará
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Direita mobilizada Semelhante ao que está acontecendo com o italiano Cesare Battisti aqui no Brasil, a direita argentina também se movimenta para revogar o status de refugiado dado ao chileno Galvarino Aplabaza, ex-integrante da Frente Patriótica Manuel Rodríguez e acusado pelo assassinato do senador chileno Jaime Guzmán em 1991. Galvarino vive com a esposa na periferia de Buenos Aires há 12 anos e tem três filhos argentinos. Luxúria criminosa Finalmente a justiça decidiu intervir na mordomia do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira, que deu um golpe de R$ 2,5 bilhões com o Banco Santos, está com os bens bloqueados, mas continuava usufruindo a mansão de cinco andares no bairro do Morumbi em São Paulo. Ele foi despejado do imóvel por não pagar o aluguel e deixou para trás todos os bens pessoais, inclusive mais de 500 ternos. Vejam bem: mais de 500 ternos! Agenda capitalista De todas as reformas que o Brasil precisa, especialmente para aprofundar o sistema democrático e reduzir a desigualdade econômica e social, a que mais interessa e está mobilizando o empresariado é a reforma tributária, em especial a que o governo tucanamente chama de “desoneração da folha de pagamento” das empresas, que nada mais é do que redução de impostos e aumento das margens de lucro. Claro, isso deve sair logo! Para-raios O peemedebista tucano Nelson Jobim entrou para o governo Lula, em 2007, para preparar as Forças Armadas para a privatização aeroportuária e eventuais mudanças nos fornecedores de equipamentos militares. Atuou com a desenvoltura de quem tem as costas largas, brigou com vários colegas de ministério e foi um dos poucos mantidos no cargo. Pergunta básica: as políticas governamentais seriam diferentes sem Nelson Jobim? Extração máxima De acordo com a Agência Petroleira de Notícias, a campanha “O Petróleo Tem que Ser Nosso”, integrada por sindicatos, movimentos sociais e estudantis, iniciou mais uma etapa de mobilização para impedir que o governo realize novos leilões de privatização do petróleo nos próximos meses, conforme anúncio do ministro das Minas e Energia, Edison Lobão. Os Estados Unidos estão interessadíssimos na exportação do petróleo brasileiro. Alternativa Brasileiros que visitaram a Bolívia recentemente ficaram impressionados com a boa programação da Telesur, a emissora de TV criada anos atrás pelos governos da Venezuela, Argentina e Uruguai. Na época, o governo brasileiro preferiu ficar de fora dessa rede latino-americana, que agora faz excelente cobertura jornalística do continente, promove debates e integração cultural. Aqui, a Telesur continua sendo sabotada pelas empresas de comunicação. Luta desigual A juíza Fabíola Queiroz, da 1ª Vara Federal de Franca (SP), acaba de proibir a queima da palha da canade-açúcar sem a apresentação prévia do Estudo de Impacto Ambiental pelas usinas localizadas nos municípios de Franca, Cristais Paulista, Itirapuã, Jeriquara, Patrocínio Paulista, Pedregulho, Restinga, Ribeirão Corrente, Rifania e São José da Bela Vista. A medida é excelente para proteger a saúde da população. A aposta é saber quanto vai durar! Falso estágio Modismo neoliberal para a exploração de trabalhadores com baixa remuneração, a contratação de estagiários deixou de ser fiscalizada há vários anos pelos sindicatos e pelo Ministério do Trabalho. Agora, o Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul decidiu que o estágio, sem a devida supervisão universitária, deve ser considerado relação de trabalho com equivalência salarial aos dos outros trabalhadores. Está aí a dica para os sindicatos! Paraíso tropical O Banco Central informa que além de enviarem lucros de 26 bilhões de dólares, em 2010, as empresas estrangeiras que operam no Brasil também emprestaram 3,7 bilhões de dólares para suas matrizes, principalmente bancos, montadoras de veículos e empresas de telefonia. Isso explica porque os preços dos serviços e produtos dessas empresas aqui no Brasil são os mais altos do mundo. Quem paga a conta?
Indígenas protestam em audiência sobre a usina de Belo Monte
Conquistar territórios: a prioridade corporativa ENTREVISTA “Ofensiva do capital contra os povos indígenas e camponeses é global”, observa Oswaldo Sevá Spensy Pimentel e Joana Moncau da Cidade do México ENGENHEIRO E DOUTOR em geografia, o professor Oswaldo Sevá tem sido, nas universidades brasileiras, um dos principais aliados dos movimentos sociais em suas lutas contra os grandes projetos de “desenvolvimento”, como usinas hidrelétricas, minas e estradas. Trata-se de empreendimentos que ele, em seus cursos na Universidade de Campinas (Unicamp), chama de “conflitos atuais da acumulação primitiva”. A maior luta em que está envolvido atualmente é contra a megausina de Belo Monte, no rio Xingu, paraíso da bio e da sociodiversidade em plena Amazônia, agora ameaçado por esse projeto dos tempos da ditadura civil-militar que foi atualizado e desengavetado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Desde os anos 80, Sevá publica estudos críticos ao projeto, demonstrando suas falhas e inconsistências. Na entrevista a seguir, o professor mostra que o atual cenário de conflitos socioambientais tem, na realidade, uma amplitude global, representando um desafio para os movimentos sociais de todo o mundo. E adverte: “A ameaça também é muito grave quando os intelectuais e políticos considerados de esquerda rezam a cartilha do capital, repetem os mantras ideológicos do capitalismo e usam o seu capital político e cultural para amainar as críticas e flexibilizar os que pensam de modo autônomo, para isolar aqueles que simplesmente continuam resistindo à expropriação”. É possível perceber na atualidade uma ofensiva de alcance latino-americano desses projetos de exploração de recursos naturais em terras comunitárias (camponesas/ indígenas)?
Oswaldo Sevá – Sim, é uma ofensiva com grande preferência pelas américas Central e do Sul, mas que também assola várias regiões da África, da Ásia e da Oceania. Mas é uma ofensiva global, pois envolve agentes econômicos e políticos de muitos países, agentes que raciocinam e decidem com o “mapa mundi” aberto numa grande mesa ou numa grande tela digital. É uma ofensiva capitalista, e não podemos omitir nem esquecer esse nome, porque se trata de tentar superar mais uma das grandes crises estruturais do sistema capitalista. No caso, dizem os estudiosos como Harvey e Arrighi, é uma crise de super-acumulação, uma crise financeira, uma demonstração exuberante da famosa lei da “queda tendencial das taxas de lucro”. Por isso, os alvos preferenciais da ofensiva são as localidades e regiões com recursos naturais considerados estraté-
gicos. E aí se criam projetos de investimentos considerados capazes de gerar taxas de retorno altas – o que obviamente depende de custos econômicos e de custos sociais, e depende da possibilidade de concretizar, novamente, o “velho” mecanismo da acumulação primitiva, que nunca deixou de atuar. Os grandes oligopólios que controlam a eletricidade e os equipamentos elétricos, os minérios e a metalurgia, o agronegócio, o petróleo e o gás, a celulose e papel, estão há algumas décadas estudando minuciosamente as possibilidades de novas fontes desses materiais e energias e esquadrinhando com métodos sofisticados os novos territórios onde produzir tais mercadorias. Anunciam investimentos similares ao mesmo tempo em todos os lugares, por exemplo, hidrelétricas para barrar todos os rios ainda barráveis em muitos países, incluindo até mesmo alguns dos países mais antigos e mais ricos, como os europeus. Por exemplo, anunciam a abertura de novas minas de ferro, manganês, ou de níquel, cobre, zinco, cromo, mas principalmente minas de ouro, prata, platina e metais mais raros como o nióbio, em várias regiões do mundo ao mesmo tempo. O primeiro passo para conseguir concretizar cada um desses investimentos – ao contrário do que muitos argumentam, não é o financiamento, pois de algum modo sobra capacidade de investir no sistema global – é a conquista dos territórios. Que, em geral, já têm ocupantes, donos e usuários anteriores, em alguns casos, muito antigos, grupos humanos secularmente estabelecidos. Suas terras devem ser agora “liberadas” para barragens, novas minas ou grandes plantios de eucaliptos ou palmeiras ou soja, e estradas e ferrovias que os conectem ao mercado mundial. Aí, os moradores e os vizinhos desses locais escolhidos pelo grande capital devem ser expropriados e transformados em proletários, uma parte deles em assalariados, que somente conseguirão sobreviver no mercado e para o mercado. Essa é a ofensiva.
“O sistema capitalista sob ameaça retoma suas origens autoritárias, as empresas gastam cada vez mais com a segurança” Como classifica o grau dessa ameaça?
É muito grave, pois o sistema capitalista sob ameaça retoma suas origens autoritárias, as empresas gastam cada vez mais com a segurança do patrimônio, dos executivos e dos homens de campo, empregam cada vez mais intermediários da coação sobre os povos, informantes que na prática fazem contrainformação, rastreando os movimentos legítimos e libertários, agem por meio de capangas para rastrear e intimidar esses dissidentes e resistentes. O capital se apossa ainda mais dos postos de governo nas três esferas – Executiva, Legislativa e principalmente no Judiciário. Enquanto aumentar o poderio das grandes empresas, as duras conquistas democráticas serão corroídas e derrubadas, restando para a sociedade uma into-
xicação de propaganda institucional, as empresas se autovangloriando, alardeando “responsabilidade social”, “sustentabilidade”. As mesmas corporações que dependem da expropriação e da violência usam o dinheiro público, isenções de impostos para exercer o mecenato, patrocinar e usufruir da promoção de sua imagem nas atividades culturais, esportivas, musicais, cinematográficas etc.
“Pela Termodinâmica, a energia não se cria, não é ‘gerada’ como dizem os economistas, os políticos e jornalistas desinformados” Quais os casos mais graves, em sua avaliação?
Considerar situações sociais mais ou menos graves depende muito do acesso à informação sobre o que ocorre, o que é dificultado pela própria ofensiva comentada, e depende, claro de escalas de valor ético. Acho que são mais graves os casos em que as pessoas estão sendo desalojadas à força, em que os antigos moradores, sejam indígenas, ou afrodescendentes, ou simplesmente famílias rurais e até mesmo pequenos proprietários, são removidos contra a vontade e vão para a diáspora, para “reassentamentos” quase prisionais, vão para as novas favelas das cidades. São muito graves os casos em que o suprimento de água da população, ou o “Riego” secularmente compartilhado entre vizinhos, ficou ou vai ficar comprometido em quantidade e qualidade. É fatalmente o que se passa na região onde são abertas minas de ouro, pois a mineração e a concentração do metal usam muita água, secam os lençóis, contaminam o solo e o subsolo e destroem ou envenenam os cursos d’água, diminuindo ou acabando com a pesca. E são igualmente graves os casos em que haverá fome porque se perdeu a terra de plantio, ou a mata de colheita e caça, o rio onde se pesca.
Essa insistência dos governos em realizar grandes projetos hidrelétricos justifica-se na conjuntura atual de crise climática/econômica?
A insistência que você pergunta existe, mas não é dos governos, é por meio dos governos. Ou seja, é uma insistência que tem origem na grande dependência que têm alguns setores industriais em relação à eletricidade para uso em seus processos produtivos, é o caso do alumínio, do cobre, do níquel, dos metais em geral, da celulose e seus produtos, de alguns ramos da química, como cloro-soda. Mais do que isso, é a insistência das empresas desses setores em reduzir na sua planilha de custos o grande peso que tem a energia elétrica, e aí vão atrás de novas fontes que sejam “baratas”, ou seja, nas quais os custos fundiários, sociais, ambientais sejam reprimidos para baixo; e, principalmente, vão atrás de condições propícias à celebração de contratos lesivos aos países “anfitriões” desses projetos. Foi o que ocorreu há quase 30 anos com a eletricidade de Tucuruí no Brasil, e que está delineado agora com a eletricidade do rio Madeira.
brasil Trata-se, realmente, de “energia limpa”, como se costuma dizer?
Bem, sou professor na área de Energia há mais de 20 anos, me formei em Engenharia Mecânica. Posso responder de modo simples, fundamentado apenas na ciência da Termodinâmica, que é um ramo importante da Física, que estuda o calor e o frio, as máquinas que transformam as energias naturais em trabalho útil. Pela Termodinâmica, a energia não se cria, não é “gerada” como dizem os economistas, os políticos e jornalistas desinformados. A energia é apenas transformada de um tipo em outro, sucessivamente. O montante total se conserva e em cada transformação uma boa parte se perde, se degrada, não podendo ser novamente obtido o mesmo total de trabalho útil. Portanto, não existem energias “renováveis”.
“É uma tentativa obsessiva de dissimulação, uma espécie maligna de autodesconstrução: acusar os outros de fazerem aquilo que as próprias corporações fazem” De modo similar, existe a lei da conservação da massa e dos fluxos de massa, das vazões: tudo que entra num sistema tem que sair, de um modo ou de outro; se sair menos é porque se acumulou lá dentro, se sair mais é porque havia um estoque que foi usado. Portanto, não há como produzir nada de forma “limpa”; toda operação produtiva produz resíduos sólidos, líquidos ou gasosos. Mesmo uma hidrelétrica construída em cima de um solo estéril emitirá vapor d’água por causa da insolação e da evaporação e gases da fermentação da matéria orgânica trazida pelo rio. Se a represa de uma hidrelétrica tiver vegetação na área alagada, produzirá muitos gases de fermentação, do apodrecimen-
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to dessa vegetação, inclusive o gás metano, que é um dos gases que desequilibra o efeito-estufa natural do planeta. Insisto na resposta: não há nada renovável, nada limpo. E vou além: mesmo que tecnicamente fosse possível, esses valores nunca nortearam o capitalismo. Se assim fosse, nunca teriam existido na proporção de hoje os depósitos de lixo urbano, o lançamento de esgoto bruto nos rios e litorais, a poluição do ar, a contaminação do solo com resíduos perigosos.
construção: acusar os outros de fazerem aquilo que as próprias corporações fazem. Numericamente são, sim, minorias que moram nos territórios escolhidos para os projetos de investimento; mas os beneficiários não são a maioria do país, e sim as minorias mais ricas, os grandes proprietários, o sistema financeiro. Porque o sistema não desconcentra com esses investimentos e, sim, concentra terras, patrimônios, rendas, tudo.
Quais interesses estão, geralmente, ocultados aí?
“Mas não se pode negar que atuam também ONGs e missionários de igrejas que, de fato, fazem o jogo das multinacionais”
Transformar o interesse dos oligopólios e a luta deles pela sua permanência e crescimento em um valor geral, em interesses de toda a sociedade. A meta privada travestida em objetivo público. A não explicitação do vínculo íntimo entre os “políticos” e os “ empresários”, entre a Política e a Economia; e por aí vamos nesse período histórico que mais parece uma “Idade Média” obscurantista: Estado fica sob o foco o tempo todo, e as empresas estão “fora do alvo”... No caso brasileiro, a eletricidade, a mineração, a siderurgia, o petróleo, dentre outros, são os setores civis onde a ditadura militar continua, se aperfeiçoa, renova os quadros e a mentalidade dominadora, antidemocrática.
O discurso em favor desses empreendimentos (mineração/ energia/transportes) que afetam terras de populações camponesas/tradicionais em geral opõe um “interesse nacional” à resistência de uma “minoria que não pode prejudicar o desenvolvimento para uma maioria” – sem falar em recorrentes componentes xenófobos/conspiratórios que apelam a uma “suposta ameaça estrangeira”. Esse discurso se sustenta?
Isso tem a ver com o que eu dizia. É uma tentativa obsessiva de dissimulação, uma espécie maligna de autodes-
Conhecemos no Brasil esse tipo de discurso maligno: é o dos dirigentes da nossa Agência Nacional de Energia Elétrica, do nosso Ministério de Minas e Energia, da tropa de choque da “dam industry”. Ficam difundindo essa coisa de “investimento estruturante”, “estratégico”, falam em “segurança energética” – expressão que vem dos EUA, com sua dependência de petróleo importado. E daí preparam o terreno para uma desregulamentação total,para o licenciamento acelerado e garantido de qualquer obra, ou melhor ainda, para que se possa qualquer coisa sem licenciamento. O “componente xenófobo” que você menciona acho que é a hipocrisia ao extremo, uma manobra retórica inteligente a curto prazo, funciona para a opinião pública de tendência direitista e uma parte dos patriotas mesmo de esquerda. No caso da Amazônia brasileira, os territórios já estão sendo internacionalizados pelo capital e pelas Forças Armadas e de inteligência dos países mais fortes, que tudo monitoram. E também pelos biopiratas, pelos com-
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pradores de terras e de florestas. Mas não se pode negar que atuam também ONGs e missionários de igrejas que, de fato, fazem o jogo das multinacionais. Quais os cenários que se descortinam em relação ao quadro?
A situação futura será mais grave onde a população está hoje mais desinformada, desmobilizada, manipulada por coronéis à moda antiga, ou então, amedrontada por um passado de repressão. Mas a ameaça também é muito grave quando os intelectuais e políticos considerados de esquerda rezam a cartilha do capital, repetem os mantras ideológicos do capitalismo, e usam o seu capital político e cultural para amainar as críticas e flexibilizar os que pensam de modo autônomo, para isolar aqueles que simplesmente continuam resistindo à expropriação. Aí o Brasil da década de 2010 será um antiexemplo, o Brasil que foi presidido durante oito anos por um ex-sindicalista, eleito pela esquerda, embora não tenha feito um governo de esquerda, um país que agora elegeu presidente – apesar de uma grande soma de abstenção e voto nulo e branco – a “mãe do PAC”, a senhora-propaganda da “Aceleração do Crescimento”. É incrível o realismo da linguagem, pois nem se coloca mais o desenvolvimento como conceito-chave, e sim o crescimento. Crescer somente não basta, como se 3 ou 4 % ao ano não fosse já uma vitória num mundo em crise, isso tem que ser “acelerado”. A ideia da aceleração é exatamente o que o sistema busca desesperadamente – contrariar a queda da taxa de lucro, obter retornos, lucros extraordinários. Voltamos assim à primeira resposta: a ofensiva é para tentar desafogar o excesso de capital. Por causa da desigualdade, do dogma antidistribuição, da despesa crescente do próprio ato de comandar e preservar privilégios, o capital encontra cada vez mais impossibilidade de se realizar fechando o ciclo da acumulação. (Desinformémonos)
ARTIGO Reprodução
Um exemplo para os jovens de hoje OLGA BENARIO PRESTES A revolucionária, até o último dia de sua trágica existência, manteve-se firme perante o inimigo e solidária com as companheiras Anita Leocadia Prestes OLGA BENARIO Prestes nasceu em Munique (Alemanha) a 12 de fevereiro de 1908. Aos quinze anos de idade, sensibilizada pelos graves problemas sociais presentes na Alemanha dos anos de 1920, Olga viria a aproximar-se da Juventude Comunista, organização política em que passaria a militar ativamente. Aos 16 anos, apaixonada pelo jovem dirigente comunista Otto Braum, Olga sai da casa paterna e junto com o companheiro viaja para Berlim, onde ambos irão desenvolver intensa atividade política no bairro operário de Neukölln. Embora vivendo com nomes falsos, na clandestinidade, Olga e Otto acabam sendo presos em outubro de 1926. Ainda que Olga tenha ficado detida apenas dois meses, Otto permaneceu preso, acusado de “alta traição à pátria”. Em abril de 1928, Olga, à frente de um grupo de jovens comunistas, lidera assalto à prisão de Moabit para libertar Otto. A ação foi coroada de êxito total, pois além de o prisioneiro ter escapado da prisão de “segurança máxima”, Olga e seus camaradas conseguiram fugir incólumes. A cabeça de Olga é posta a prêmio pelas autoridades alemãs. Tarefa internacional
Por decisão do Partido Comunista, Olga e Otto viajaram clandestinamente para Moscou, onde a jovem comunista de apenas 20 anos se torna dirigente destacada da Internacional Comunista da Juventude. No final de 1934, já separada de Otto, Olga recebe a tarefa da Internacional Comunista de acompanhar Luiz Carlos Prestes em sua viagem de volta ao Brasil, zelando pela sua segurança, uma vez que o governo Vargas decretara sua prisão. Prestes e Olga
partiram de Moscou no final de dezembro de 1934, viajando com passaportes falsos, como marido e mulher, apesar de estarem se conhecendo naqueles dias. Durante a longa e acidentada viagem rumo ao Brasil, os dois se apaixonam, tornando-se efetivamente marido e mulher.
Olga, à frente de um grupo de jovens comunistas, lidera assalto à prisão de Moabit para libertar Otto Em março de 1935, Prestes é aclamado, no Rio de Janeiro, presidente de honra da Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma ampla frente única, cujo programa visava a luta contra o imperialismo, o latifúndio e a ameaça fascista, que pairava sobre o mundo e também sobre o Brasil. Prestes e Olga chegam ao Brasil em abril desse ano, passando a viver clandestinamente na cidade do Rio de Janeiro. O “Cavaleiro da Esperança” torna-se a principal liderança do movimento antifascista no Brasil e, assessorado o tempo todo por Olga, participa da preparação da insurreição armada contra o governo Vargas, a qual deveria estabelecer no país um governo Popular Nacional Revolucionário, representativo das forças sociais e políticas agrupadas na ANL.
Assassinada numa câmara de gás
Olga Benário Prestes, que completaria 103 anos no dia 12
uma breve passagem pela Polícia Central, foi levada para a Casa de Detenção, situada então à rua Frei Caneca, onde ficou detida junto às demais companheiras que haviam participado do movimento da ANL.
Ao despedir-se do marido e da filha, antes de ser levada para a morte, escreveu: ”Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo”; “até o último momento manter-me-ei firme e com vontade de viver”
Repressão e prisão
Com o insucesso dos levantes de novembro de 1935, desencadeia-se violenta repressão policial contra os comunistas e seus aliados. Em 5 de março de 1936, Prestes e Olga são presos no subúrbio carioca do Méier por ordem do famigerado capitão Filinto Muller, então chefe de polícia do governo Vargas. A ordem expedida aos agentes policiais era clara – a liquidação física de Luiz Carlos Prestes. No momento da prisão, Olga salvou-lhe a vida, interpondo-se entre ele e os policiais, impedindo o assassinato do líder revolucionário. Uma vez localizados e presos, Prestes e Olga foram violentamente separados. Ele, conduzido para o antigo quartel da Polícia Especial, no morro de Santo Antônio, no centro do Rio. Olga, após
dentes de os portuários franceses e espanhóis resgatarem prisioneiros deportados para a Alemanha, quando tais navios aportavam à Espanha ou à França. Após longa e pesada travessia, as duas prisioneiras foram conduzidas incomunicáveis para a prisão de mulheres de Barnimstrasse, em Berlim, onde Olga deu à luz sua filha Anita Leocadia, em novembro de 1936. Numa exígua cela dessa prisão, submetida a regime de rigoroso isolamento, Olga conseguiu criar a filha até a idade de 14 meses, graças à ajuda, em alimentos, roupas e dinheiro, que recebeu da mãe e da irmã de Prestes. Ambas se encontravam em Paris dirigindo a campanha internacional de solidariedade aos presos políticos no Brasil. Com a deportação de Olga, a campanha se ampliara em defesa da esposa de Prestes e de sua filha. Várias delegações estrangeiras foram à Alemanha pressionar a Gestapo, obtendo afinal a entrega da criança à avó paterna – Leocádia Prestes, mulher valente e decidida, a quem o grande poeta chileno Pablo Neruda dedicou o poema Dura Elegia, que se inicia com o verso : “Señora, hiciste grande, más grande, a nuestra América...”
Extradição
Prestes e Olga nunca mais se veriam. Em setembro de 1936, Olga, grávida de sete meses, era extraditada para a Alemanha hitlerista pelo governo de Getúlio Vargas. Junto com Elise Ewert, outra comunista e internacionalista alemã que participara da luta antifascista no Brasil, foi embarcada à força, na calada da noite, no navio cargueiro alemão “La Coruña”, viajando ilegalmente, sem culpa formada, sem julgamento nem defesa. O comandante do navio recebeu ordens expressas de cônsul alemão no Brasil para dirigir-se direto a Hamburgo, sem parar em nenhum outro porto estrangeiro, pois havia prece-
A campanha internacional, que atingiu vários continentes, não conseguiu, contudo, a libertação de Olga. Logo depois ela seria transferida para a prisão de Lichtenburg, situada a cem quilômetros ao sul de Berlim. Um ano mais tarde, Olga era confinada no campo de concentração de Ravensbruck, onde juntamente com milhares de outras prisioneiras seria submetida a trabalhos forçados para a indústria de guerra da Alemanha nazista. A situação de Olga seria particularmente penosa, pois carregava consigo duas pechas consideradas fatais – a de comunista e a de judia. Em abril de 1942, Olga era transferida, numa leva de prisioneiras marcadas para morrer, para o campo de concentração de Bernburg, onde seria assassinada numa câmara de gás.
O exemplo
Olga, segundo os depoimentos de todos que a conheceram e conviveram com ela, nunca vacilou diante das grandes provações que teve que enfrentar. Até o último dia de sua trágica existência, manteve-se firme perante o inimigo e solidária com as companheiras. Ao despedir-se do marido e da filha, antes de ser levada para a morte, escreveu: ”Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo”; “até o último momento manter-meei firme e com vontade de viver”. A vida e a luta de uma revolucionária como Olga, comunista e internacionalista, não foi em vão; seu heroísmo serve de exemplo e de inspiração para os jovens de hoje. Anita Leocádia Prestes é professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ e Presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes.
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cultura
Cantando a resistência
Fotos: Douglas Mansur
MÚSICA Celebração e resgate da cultura popular com poetas e cantadores de várias regiões do país no 1º Mutirão de Cantoria da Escola Nacional Florestan Fernandes do MST Danilo Augusto e Solange Engelmann de Guararema (SP) AO SOM DE VIOLA caipira, violão, tambor e outros instrumentos musicais, e entoando em coro a música Calix Bento, canção do folclore mineiro, músicos e poetas abriram o 1º Mutirão de Cantoria da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O evento, que é um encontro de celebração e resgate da cultura popular com poetas e cantadores de várias regiões do país, aconteceu em Guararema (SP), no auditório da ENFF, dia 28 de janeiro. O mutirão, que durou dez horas, contou com cerca de 20 apresentações de artistas que, através da sua arte, festejam a cultura popular brasileira. Os poetas e violeiros fizeram apresentações que foram da música sul-mato-grossense e gaúcha missioneira até as músicas e poesias do Pará.
Os poetas e violeiros fizeram apresentações que foram da música sul-mato-grossense e gaúcha missioneira até as músicas e poesias do Pará Estiveram presentes Zé Mulato e Cassiano, que representam a essência da música caipira no Brasil, Pereira da Viola, de Minas Gerais, entre vários grupos e cantadores. A escola de samba Unidos da Lona Preta, de São Paulo, participou apresentando o enredo do carnaval deste ano. Para Felinto Procópio, o Mineirinho, integrante do coletivo de cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o evento foi uma mostra de que a arte deve ser tratada como elemento central na formação da consciência. “Esse Mutirão fortalece o zelamento da cultura popular. É zelar pela musicalidade dos violeiros, dos poetas e, acima de tudo, zelar por nossa cantoria de resistência e luta. E este evento está cumprindo com uma das missões da Escola, que é ser formadora a partir da arte”. Para ele, outro detalhe importante é que esse mutirão é amplo. “Aqui cabe o violeiro, o sanfoneiro, o poeta e o cantador”, afirma. União para fortalecer
O cantador Levi Ramiro, 45, de Pirajuí (SP), que acompanha o MST desde a década de 1990 e participa do Encontro dos Violeiros, salienta que a parceria do Mutirão de Cantoria é fundamental para fortalecer tanto o MST como o movimento de violeiros no Brasil. “Como é um movimento de resistência, o MST acaba sendo um símbolo dela e ajuda a romper a aversão em relação à cultura popular e à música caipira, pois a viola caipira no Brasil também é um movimento de resistência” argumenta.
Músicos iniciam encontro com a canção Calix Bento, do folclore mineiro
Escola Nacional, o palco perfeito
Construída em forma de mutirão, a ENFF é apontada como o local perfeito para abrigar um evento que resgata a música caipira de Guararema (SP) “O nome ‘mutirão’ está relacionado à essência da ENFF, construída a partir de mutirões de solidariedade e trabalho voluntário. É através de um mutirão que cantadores e poetas também trazem presente a cantoria e poesia popular. Consolidando assim esse sonho de trazer presente a musicalidade a este espaço de formação”, explica Felinto Procópio, o Mineirinho, integrante do coletivo de cultura do MST, sobre o 1º Mutirão de Cantoria da Escola Nacional Florestan Fernandes, realizado em Guararema (SP). A maioria dos violeiros participa todos os anos do Encontro dos Violeiros, que acontecem em parceria entre o MST e a Associação Nacional de Violeiros (ANVB). Dessa forma, o Mutirão de Cantoria na ENFF é mais uma oportunidade para que esses músicos conheçam melhor o MST. Julio Santin, violeiro e médico que também se apresentou, faz uma relação entre a luta para se manter forte a cul-
Violeiros tocam suas composições no palco principal do encontro
tura caipira e a ENFF. Para ele, a escola e esse mutirão são frutos de resistência de trabalhadores e artistas populares de todo o Brasil. “É muito interessante. A escola e o próprio MST são forças de resistência. Olha só, a escola foi construída em um mutirão, com a força de trabalho dos trabalhadores rurais. E a viola, hoje, não deixa de ser um movimento de resistência também. Ela estava incipiente até um tempo atrás, mas, agora, começou a pegar força novamente. Estamos fazendo vários mutirões e encontros como este. Estamos lutando para manter viva a cultura caipira. Ou seja, um mutirão, nesta escola, é perfeito.” Para Geraldo Gastarim, da coordenação pedagógica da ENFF, a Escola
constrói coletivamente atividades que dão uma nova percepção da arte e cultura, que são elementos fundamentais para a formação. Para ele, a história mostra que o ser humano eleva seu conhecimento através da arte e que momentos culturais como o do Mutirão são fundamentais. Gastarim acredita que o mutirão é importante para integrar os músicos e artistas de todo o país. “O evento articula os artistas que também têm seus sentidos políticos de apoiar a luta e a causa da reforma agrária. Esse evento é um ato de resistência, rebeldia e formação por excelência. Isto aqui é um encontro e casamento da formação política com a luta e resistência da cultura popular”. (DA e SE)
“Os violeiros têm estilos diferentes e essa combinação formada por todos juntos cria uma coisa muito interessante, na perspectiva da própria viola. Isso mostra as possibilidades de linguagem que a viola pode apresentar” Na perspectiva de musicalidade da viola, Milton Araújo, outro violeiro que também se apresentou, afirma que o encontro de artistas de várias partes do Brasil evidencia a riqueza da cultura popular. Para ele, o mutirão tem identidade com a questão da terra, do camponês e cumpre um papel fundamental, que é formação a partir da arte. “É fantástico. Os violeiros têm estilos diferentes e essa combinação formada por todos juntos cria uma coisa muito interessante, na perspectiva da própria viola. Isso mostra as possibilidades de linguagem que a viola pode apresentar. Ela resgata, reforça e divulga a identidade do trabalhador do campo.”
Sob a coordenação de Mineirinho, (alto e à esquerda), músicos como Pereira da Viola, Zé Mulato e Cassiano, entre outros, animaram o público em Guararema
américa latina
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Desaparecimento de jovem expõe corrupção policial ARGENTINA Polícia da província de Buenos Aires é apontada como autora do crime contra Luciano Arruga ocorrido há dois anos Reprodução
Dafne Melo de La Matanza (Argentina) COMO QUALQUER adolescente da sua idade em uma sexta-feira à noite, naquele 30 de janeiro de 2009, Luciano Arruga, 16 anos, queria sair com os amigos. Um pouco mais cedo, havia pedido algum dinheiro para sua mãe, Mónica, que lhe deu o que tinha no bolso: 25 centavos. Luciano comprou uns cigarros soltos, foi à casa de uns amigos e depois ficou um pouco na rua com eles jogando conversa fora. Entre meia-noite e uma da manhã, Luciano voltou a sua casa, onde vivia com a mãe e dois irmãos menores, Mario e Mauro, que já dormiam. Pegou uma jaqueta branca, um boné e despediu-se de Mónica. “Olha lá por onde anda”, disse a mãe. “Relaxa, vou à casa da minha irmã”, respondeu o adolescente. Luciano caminhou dez quadras, mas a irmã mais velha, Vanesa Orieta, não estava. Na volta, de acordo com testemunhas, foi abordado por um carro da polícia estadual, a chamada “bonaerense” (força policial que atua nas regiões da província de Buenos Aires, com exceção da capital). As testemunhas afirmam que os policiais bateram no adolescente e, em seguida, o deixaram ir embora. Entretanto, seguiram-no e a quase uma quadra de sua casa, e outras testemunhas afirmam que viram um garoto de jaqueta branca ser forçado a entrar em um carro da polícia.
Outras testemunhas afirmam que viram um garoto de jaqueta branca ser forçado a entrar em um carro da polícia O cenário
Mônica conta que, por volta das três da madrugada, acordou de um sobressalto, com uma sensação ruim, como se estivesse se afogando. Foi ao quarto do filho, não o viu. Foi até a rua, passou pela casa dos amigos, mas não o encontrou. Voltou para casa, fumou um cigarro e tentou se tranqüilizar, dizendo a si mesma que o menino logo voltaria. Mas Luciano nunca voltou. A mãe conta que chegou a ir à delegacia naquela mesma madruga-
Manifestação na capital argentina Buenos Aires, em 2010, pede justiça para Luciano Arruga: segundo testemunhas, polícia provincial estaria por trás de seu desaparecimento
da, mas lhe informaram que seu filho não estava lá, que ninguém havia sido detido naquela noite e que o menino “deveria estar por aí com alguma menininha”. O sequestro e desaparição de Luciano ocorreu no bairro de Lomas del Mirador, no município da La Matanza, Grande Buenos Aires, um dos mais populosos de toda Argentina. Mais precisamente, o cenário foi o da favela 12 de Octubre, que ocupa pouco mais de um quarteirão dentro do bairro. Na região, as ameaças e abusos por parte da polícia contra os jovens fazem parte da rotina. E também faziam parte da vida de Luciano. “Sempre que eu via meu irmão, ele contava que a polícia o tinha ameaçado. Era algo habitual que infelizmente a gente tinha naturalizado porque sempre era assim”, conta Vanesa, irmã de Luciano. O jovem já havia apanhado e até mesmo levado à delegacia uma vez, acusado de roubar um celular, o que nunca se comprovou. “Quando
percebemos que ele estava desaparecido, suspeitamos logo de cara da polícia, porque sabíamos que ele era ameaçado sempre”, lembra a irmã.
Na região, as ameaças e abusos por parte da polícia contra os jovens fazem parte da rotina. E também faziam parte da vida de Luciano Convite para roubar
Os abusos da polícia contra Luciano haviam piorado após o jovem recusarse a roubar para a polícia. Sua irmã conta que, em setembro de 2008, Luciano havia lhe confidenciado que um policial lhe havia feito uma proposta para roubar e dividir os ganhos. Prometeu-lhe dar cobertura e armas, além da garantia de que
nada lhe aconteceria. “É uma prática comum nos bairros mais pobres da Grande Buenos Aires”, revela Vanesa. “Em pelo menos três bairros de La Matanza, nós temos certeza de que essa é uma prática recorrente e que muitos aceitam, inclusive porque têm medo de rejeitar o pedido da polícia”, afirma Pablo Pimentel, militante da Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos (APDH), uma das organizações que ajudam a família de Luciano no caso. Pimentel ainda afirma que o caso de Luciano não é o único, mas é paradigmático. “Nós temos 99% de certeza de que a polícia o torturou, espancou, matou e desapareceu com seu corpo”. Pimentel conta que os menores de idade são os preferidos da polícia para esse tipo de operação porque é mais fácil tirá-los da cadeia, caso algo saia mal. Além disso, pela inexperiência e pelo medo, acabam cedendo às investidas dos policiais. “Isso também acontece com tráfico de drogas”, diz Pimentel.
Suspeitos continuam atuando na polícia Investigações caminham lentamente; testemunhas que viram Luciano na delegacia são ignoradas e perseguidas de La Matanza (Argentina) Na madrugada de 31 de janeiro de 2009, dois presos na delegacia de polícia de Lomas del Mirador, bairro de La Matanza onde ocorreu o desaparecimento de Luciano Arruga, afirmaram ter visto o jovem bastante ferido e golpeado. Essas duas testemunhas não se conhecem, não estavam juntas e o viram em momentos diferentes; e os testemunhos são coerentes um com o outro”, explica Pablo Pimentel, militante da Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos (APDH). Um deles afirma que o rapaz estava todo ensanguentado, algemado e que chegou a dar a ele outra camisa e algo para comer. Os testemunhos dessas duas pessoas, considerados chave, foram ignorados pela Procuradoria, que afirma que as declarações seriam interessadas, no sentido de obter algum tipo de favorecimento. “É todo o contrário. Eles agora estão sendo perseguidos sistematicamente no sistema penitenciário por conta dessas declarações. Estão pagando por ter falado a verdade, nunca estarão tranquilos, e estão em regime de proteção especial, o que é complicado porque faz com que eles estejam isolados, sozinhos por muito tempo”, relata Pimentel. Outras pessoas que poderiam testemunhar no caso, como amigos e vizinhos, não o fazem, pois sabem que serão alvo de represália policial, o que também prejudica o andamento do processo.
Mais ameaças Não são somente as testemunhas que o viram na delegacia que sofrem perseguições. Amigos e familiares de Luciano, que tocam a luta pela punição dos culpados de seu desaparecimento, também sofrem ameaças, bem como integrantes de organizações que se envolveram com a causa. Para Pablo Pimentel, todo o caso revela como há setores da polícia da província de Buenos Aires que praticamente formam uma máfia. Os oito policiais que estavam em serviço naquela madrugada do dia 31 chegaram a ser afastados por um par de meses em 2009, mas logo foram reincorporados à polícia e hoje atuam em outras cidades da província de Buenos Aires.
“Há pesquisas que apontam que hoje há nove mil efetivos que foram policiais na ditadura. Então, é óbvio que há uma permanência” De acordo com estatísticas feitas pela Coordenadora Contra a Repressão Policial e Institucional (Correpi), no ano em que Arruga desapareceu houve um recorde do número de homicídios cometidos pela polícia: 252 vítimas. O número mais alto era o de 2001, ano marcado no país pelos diversos protestos sociais cuja repressão vitimou inclusive militantes sociais. Naquele ano, 241 pessoas foram assassinadas no país. Em 2010, o país manteve o faixa de homicídios cometidos pela polícia do ano anterior, sendo que quase metade deles ocorreu na província de Buenos Aires. Investigações A primeira investigação feita pela Procuradoria logo após o desaparecimento praticamente não existia pouco mais de um mês depois da denúncia. Foi quando a família de Luciano procurou a APDH,
e a investigação passou para outra procuradora, quando alguns avanços foram obtidos. Comprovou-se que Luciano esteve no destacamento, em um carro da polícia, e que duas viaturas, que deveriam estar fazendo rondas, estiveram paradas durante horas em um prédio municipal com muitas árvores, lugar onde, depois, outra perícia mostrou que o corpo de Luciano havia estado. A procuradora solicitou ao juiz que toma conta do processo, ainda em 2010, que a causa fosse levada a um tribunal federal e que fosse alterado o motivo de abertura do processo, hoje tido como um desaparecimento comum, e não um forçado. O juiz não acatou o pedido, alegando falta de provas. Desde então, pouco caminhou. Pablo Pimentel explica que neste ano a família, as organizações e advogados que acompanham o caso decidiram pedir uma investigação independente a uma
perita privada. “A ideia é ter uma perícia que apresente um panorama geral do caso, desde o início até agora. O que nós queremos é colocar os responsáveis pela desaparição de Luciano na cadeia”, afirma. Pimentel acredita que esse modus operandi da polícia bonaerense remonta à estrutura repressiva consolidada na última ditadura militar (1976-1983), que até hoje perpetua seus métodos e desmandos. “Há pesquisas que apontam que hoje há nove mil efetivos que foram policiais na ditadura. Então, é óbvio que há uma permanência”. Mas, apesar disso, Pimentel afirma que é necessário encontrar os responsáveis políticos de hoje, grupo no qual, em seu ponto de vista, também se encontra o atual governador da província, Daniel Scioli, que já ocupava essa função quando Luciano desapareceu. “A polícia não tem condução política e se sente à vontade para fazer o que quer”, finaliza. (DM)
Festival pede justiça por Luciano de La Matanza (Argentina) No dia 29 de janeiro, diversos movimentos sociais e organizações políticas juntaram-se na organização de um festival para marcar os dois anos do desaparecimento de Luciano Arruga. As atividades – entre shows de bandas locais e oficinas de arte – começaram às dez horas da manhã e somente terminaram por volta das onze da noite. Ao todo, cerca de três mil pessoas passaram no festival durante o dia, apesar do forte calor. Entre uma apresentação e outra, as organizações, amigos e familiares de Luciano fizeram fa-
las nas quais pediam pela “aparição com vida e castigo aos culpados”, resgatando um dos lemas mais conhecidos das Mães da Praça de Maio, organização que agrupa as mães dos desparecidos políticos durante a última ditadura militar argentina. O lugar do festival, na chamada “Ruta 3” (rodovia federal número 3) não foi escolhido por acaso: ao lado, estava a delegacia de Lomas del Mirador, onde acredita-se que Luciano foi torturado e detido ilegalmente. Durante a ditadura militar, o lugar funcionou como um centro clandestino de detenção das forças armadas, para onde eram levados militantes de organizações populares. (DM)
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internacional Nasser Houri
Faltava uma faísca REVOLTAS NO MUNDO ÁRABE Onda de protestos por justiça social e democracia que vem assombrando o planeta é apenas a explosão de uma longa luta até então silenciosa Eduardo Sales de Lima e Renato Godoy de Toledo da Redação OS POVOS ÁRABES chegaram a seu limite. Os protestos contra os respectivos governos extrapolaram a região do Magreb (norte da África) e ganharam proporção em boa parte do mundo árabe. Em vários países, multidões estão indo às ruas como resposta à opressão política, à falta de acesso à alimentação plena e ao desemprego cujos responsáveis, dizem, são os regimes autocráticos apoiados pelas potências ocidentais. Em recente artigo, o professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), Reginaldo Nasser, informa que um relatório do Banco Mundial publicado em 2009 mostrava que os países árabes importam cerca de 60% dos alimentos que consomem e já são os maiores importadores de cereais no mundo. Em relação ao desemprego, no caso do Egito, por exemplo, dois terços da popução é formada por jovens abaixo de 30 anos, dos quais 90% estão desempregados.
% 0 9 dos egípcios abaixo dos 30 anos estão desempregados
“Todos os levantes populares têm em comum o esgotamento da paciência e da espera que durou décadas, durante as quais os poderes locais se apropriaram das instituições às custas do bem-estar social em todos os sentidos” “Todos os levantes populares têm em comum o esgotamento da paciência e da espera que durou décadas, durante as quais os poderes locais se apropriaram das instituições às custas do bemestar social em todos os sentidos”, defende o egípcio Mohamed Habib, próreitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor do Icarabe (Instituto da Cultura Árabe).
“Não retorno”
O sociólogo José Farhat defende que está em jogo na região uma luta que até há pouco era estritamente silenciosa, à qual faltava um acontecimento, uma faísca. “Essa centelha veio na forma da imolação de protesto de um pobre desconhecido vendedor de rua chamado Mohamed Bouazizi, que, ao atear fogo em si mesmo, iniciou uma revolta em toda a Tunísia, que se estendeu para o Egito e, dali, seguirá o caminho do não retorno e se transformará na revolução de todo um povo árabe oprimido contra os seus algozes opressores e estúpidos, clientes do colonialismo selvagem impositor de seus interesses nas costas dos povos de todos os recantos”, dispara (leia a entrevista na íntegra com o sociólogo no endereço www.brasilde fato.com.br). Os primeiros protestos ocorreram em Argel, capital da Argélia, no início de janeiro, contra a elevação do custo de vida no país.
Protestos pela saída de Ben Ali, no centro de Túnis, capital da Tunísia
As grandes manifestações da Tunísia, mesmo reprimidas com crueldade pela ditadura de Zine el Abidine Ben Ali, tiveram êxito. Ali fugiu do país, mas a Justiça tunisiana emitiu uma ordem de detenção internacional contra o presidente deposto. Entretanto, as manifestações permanecem e pedem a saída de todos os ministros ligados ao ex-ditador. Até o fechamento desta edição (no dia 1°), 219 pessoas foram assassinadas no país, segundo a ONU. Onda de revoltas
O povo egípcio também decidiu desafiar o poder tirano de um regime corrupto e subserviente, de Hosni Mubarak, na presidência há três décadas, que se preparava para designar como seu sucessor o filho Gamal Mubarak. Como uma onda, os iemenitas tomaram as ruas de sua capital Sana. Em Marrocos, o rei impediu a subida do preço dos alimentos e de bens essenciais, temendo pelo futuro da monarquia feudal, mas de nada está adiantando. Lá, protestos por democracia estão sendo organizados via internet, assim como na Síria. Também há relatos de tensão na Arábia Saudita, em Omã e na Jordânia. O movimento que ocorre nestes países árabes não tem direção, nem organização partidária clara; são espontâneos. A organização vem ocorrendo principalmente por via das redes sociais da
internet. A maior parte dos manifestantes em todo o mundo árabe é formada por jovens, desde as classes pobres até as classes médias que foram empobrecidas nos últimos anos.
O movimento que ocorre nesses países árabes não tem direção, nem organização partidária clara; são espontâneos O sociólogo José Farhat reforça que a religião nada tem com as revoltas, como apontam alguns jornais do ocidente. “O islamismo foi trazido à baila como argumentação inválida dos neocolonizadores, os mesmos que inventaram o choque das civilizações e o perigo islâmico contra o Ocidente”, reitera. O que vai acontecer a partir de agora? “Se as revoltas puserem um fim a essas autocracias árabes, estaríamos vivendo uma autêntica revolução mundial, um giro decisivo na história de nossa concepção dos sistemas políticos mundiais”, afirmou o sociólogo e filósofo Sami Naïr, presidente do Instituto Magreb-Europa da Universidade de Paris VIII, em entrevista ao jornal argentino Página/12.
Opressão dos “fantoches” de Washington Nasser Houri
Regimes ditatoriais árabes há tempos são apoiados por potências imperialistas
dar conselhos ao primeiro-ministro designado”, lembra. Petróleo
da Redação Quase todos os países árabes oprimidos por regimes não democráticos são tutelados por Washington (EUA). Há análises, como a do sociólogo Sami Naïr, de que os Estados Unidos e outras potências, como Inglaterra e França, são atores que querem que os países árabes tenham estabilidade e, para isso, necessitam de regimes fortes, ditatoriais, porque o que importa a eles são duas coisas: em primeiro lugar, que essas pessoas não emigrem e, em segundo, que as fontes de recursos petrolíferos sejam garantidas. “Todos os países onde as revoltas já começaram e aqueles onde ela acontecerá, são dominados por ditadores e seus asseclas. Todos têm regimes apoiados por uma, outra ou todas as potências, ex ou atuais colonizadoras: Grã Bretanha, França, Espanha, e a União Europeia”, afirma o sociólogo José Farhat.
José Farhat acrescenta que os Estados Unidos apoiaram o regime de Ben Ali “desde o seu nascedouro e até quando não havia mais esperança” Em artigo, o economista canadense Michel Chossudovsky cita o exemplo da presença estadunidense no Egito. “No Egito, em 1991, foi imposto um devastador programa do Fundo Mone-
Polícia tunisiana disparou diversos tiros; dezenas de manifestantes foram mortos
tário Internacional (FMI) na época da Guerra do Golfo. Ele foi negociado em troca da anulação da multimilionária dívida militar do Egito com os Estados Unidos, bem como de sua participação na guerra”, escreve. A resultante disso, como lembra, foi a desregulamentação dos preços dos alimentos, a privatização geral e medidas de austeridade maciças que levaram ao empobrecimento da população egípcia e à desestabilização da sua economia. Silêncio das potências
No caso da Tunísia, como lembra o jornalista Igor Fuser, na sua coluna publicada na edição 412 do Brasil de Fato, o ditador Zine el Abidine Ben Ali nunca foi repreendido pelos estadunidenses por violações aos direitos humanos e, mesmo quando ordenou que
suas forças repressivas abrissem fogo contra manifestantes desarmados, matando dezenas de jovens, o presidente Barack Obama e sua secretária de Estado, Hillary Clinton, permaneceram em silêncio. “Não abriram a boca nem mesmo para tentar conter o massacre. Só se manifestaram depois que Ben Ali fugiu do país, como um rato, carregando na bagagem mais de uma tonelada de ouro”, pontuou Fuser. O sociólogo José Farhat acrescenta que os Estados Unidos apoiaram o regime de Ben Ali “desde o seu nascedouro e até quando não havia mais esperança”. “Só aí, cinicamente, os Estados Unidos, e , com maior desfaçatez ainda, seguidos pelo Estado sionista, pediram calma. A França não se fez esperar e recomendou moderação, e também se achou no direito, mesmo sem ser chamada, de
Segundo Farhat, todo o comportamento das referidas potências com relação aos países árabes tem o petróleo como “móvel” desse interesse. “A procura da exploração do petróleo ou do caminho para obtê-lo exige o conluio de governantes locais por elas (potências) colocados no poder; corruptos, lenientes e que relevam o interesse de seus povos às favas”, critica. Pobre em petróleo, a importância do Egito, por exemplo, reside no fato de possuir a passagem do transporte dessa matéria-prima através do canal de Suez, que liga a Europa ao Oriente Médio. “Além disso, é um país importante para os interesses internacionais, porque é capaz de influenciar os demais países árabes. Daí terem influenciado o Egito a assinar um acordo de paz com o Estado sionista, o gendarme colocado desde o tempo do Império Britânico, não somente para garantir o trânsito do petróleo, mas também para assegurar o caminho à Índia”, analisa Farhat.
Pobre em petróleo, a importância do Egito, por exemplo, reside no fato de possuir a passagem do transporte dessa matéria-prima através do canal de Suez, que liga a Europa ao Oriente Médio Por isso tudo, o economista canadense Michel Chossudovsky conclui em seu artigo que o movimento de protesto no Egito, por exemplo, deveria se atentar a alvos políticos, como a Embaixada dos Estados Unidos, a União Europeia, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. (ESL e RGT)
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O povo contra Mubarak
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Nasser Rouri
REVOLTAS NO MUNDO ÁRABE Convulsão social no Egito, aliado fundamental dos EUA, pode significar um desastre para a Casa Branca Eduardo Sales de Lima e Renato Godoy de Toledo da Redação A REVOLTA DO POVO egípcio contra o ditador Hosni Mubarak pode inaugurar um novo período de correlação de forças no mundo árabe e no Oriente Médio. Período daqueles marcados por algum tipo de ruptura e mudança significativa de peças no xadrez geopolítico. Tais momentos já foram vistos na região em 1979, com a Revolução Islâmica no Irã, a derrota militar do mundo árabe para Israel na Guerra dos Seis Dias em 1967, a invasão estadunidense ao Iraque, em 2003, e, no próprio Egito, com a revolução de Gamal Abdel Nasser em 1952. Se a chamada “Revolução de Jasmim” na Tunísia parecia um importante marco na luta contra ditaduras no mundo árabe, o desenrolar dos fatos na cidade do Cairo, principalmente, acabaram até ocultando o processo tunisiano, dada a tamanha importância do Egito na geopolítica mundial. País que controla o canal de Suez – que liga a Europa ao Oriente Médio – e, consequentemente, o fluxo de grande parte do petróleo mundial, o Egito tem se alinhado sistematicamente aos EUA desde que Mubarak assumiu o poder em 1981. O país norte-africano é um dos principais mediadores das relações conflituosas entre Israel e Palestina. Mesmo sendo árabe, o Egito não condena com veemência as ações israelenses contra o povo palestino, ao contrário do que fazem outras repúblicas influenciadas pelo islã, como a Síria. Para o egípcio radicado no Brasil, Mohamed Habib, pró-reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor do Icarabe (Instituto da Cultura Árabe), seu país de origem tem sido a porta de entrada do imperialismo na região. “Quando eles querem entender alguma crise no Oriente Médio, qual é a porta? O Egito. Foi na questão do Iraque em 1991 e 2003, no conflito Palestina-Israel etc.”, explica. Ciente da passividade da gestão Mubarak diante de suas violações, Israel foi uma das únicas repúblicas que saíram em defesa da permanência do ditador no poder, posição que nem a Casa Branca ousou assumir. O governo dos EUA, aliás, foi pressionado pela imprensa local a posicionar-se mais claramente em relação aos acontecimentos no Egito. A secretária de Estado Hillary Clinton se pronunciou favorável a uma transição democrática no país. Mas o porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs, não soube dizer ao certo porque os EUA defendem agora mudanças em um país que há 30 anos, segundo ele próprio, tem sido “um aliado importante”.
O desenrolar dos fatos na cidade do Cairo, principalmente, acabaram até ocultando o processo tunisiano, dada a tamanha importância do Egito na geopolítica mundial Laicos e religiosos
Parte da imprensa internacional e brasileira enxerga os acontecimentos no Egito como parte de uma escalada de violência promovida por fundamentalistas islâmicos. O que, segundo analistas do mundo árabe, não condiz com a realidade. O sociólogo José Farhat explica qual é a composição da maioria dos manifestantes no Egito. “Os ativistas da atualidade, que chegaram a ser chamados de ‘bin-ladens’ por seus adversários nos Estados Unidos e na Europa, não são islâmicos fundamentalistas usando a religião para adquirir poder. Os atuais ‘bin-ladens’, os motores da revolta, são os injustiçados, os khobzistas (‘pãozistas’, aqueles que têm fome), os mahrumin (os miseráveis – Les misèrables à la Victor Hugo), os eternos sem-emprego, privados de moradia, que veem a comida cada vez mais cara, que são vítimas da autocracia. São os marginaliza-
Polícia reprime manifestantes durante protesto no Cairo
dos de hoje na Argélia e Tunísia, amanhã no Egito, Palestina, Iêmen e Jordânia”, avalia. Há sim grupos importantes de islamitas nos protestos, como a Irmandade Muçulmana, mas este e demais grupos cerram fileiras lado a lado com movimentos sociais laicos. Outra versão que é combatida por especialistas é a de que os movimentos estariam sendo convocados apenas pela juventude de classe média do Egito, que tem acesso às redes sociais como o Twitter e o Facebook.
“Inicialmente, os protestos foram convocados por estudantes de classe média contra a tortura policial. Mas os protestos ganharam a massa e foi ela quem fez a diferença (...)” “Inicialmente, os protestos foram convocados por estudantes de classe média contra a tortura policial. Mas os protestos ganharam a massa e foi ela quem fez a diferença. É uma revolta sobretudo dos despossuídos”, aponta Arlene Clemesha, professora de história da Universidade de São Paulo (USP). Clemesha afirma, no entanto, que de fato há um recrudescimento da religiosidade no Egito. Em sua última viagem ao país, no ano passado, a historiadora constatou em escolas e universidades que muitas mulheres optam espontaneamente por sentar nas últimas fileiras das salas de aula e que o uso de véu nas ruas está cada vez maior. Para a historiadora, esse é um fenômeno não apenas do Egito, mas de toda
a região do norte da África, e é uma maneira que os povos locais encontraram de reafirmar sua cultura diante das investidas contra sua soberania. Outro fator que teria levado a esse fortalecimento religioso foi o chamado “Efeito Golfo”. Nos últimos anos, muitos trabalhadores da região do norte da África foram trabalhar nos países do Golfo Pérsico, tradicionalmente com maior afinco religioso, e voltam seguindo mais fortemente os preceitos do islamismo. No entanto, Clemesha afirma que o processo em curso não é uma revolta religiosa. “O aumento da religiosidade pode ser importante no resultado deste processo, mas não é o que o tem fomentado. O processo está dissociado da religião. Os protestos no Egito estão acima de qualquer religião ou etnia”, analisa. Grupos clandestinos
De acordo com o historiador e arabista Lejeune Mirhan, muitos grupos postos na clandestinidade pela ditadura egípcia estão organizando o levante. Há inclusive partidos comunistas com bastante poder de influência entre os manifestantes, segundo Mirhan. Para o arabista, o “apoio” de Hillary Clinton às mudanças no Egito trata-se de um “oportunismo”, já que os EUA nunca fizeram nada nos últimos 30 anos para impedir as violações do regime egípcio. “Eles regaram a a ditadura do Egito com dois bilhões de dólares anuais, ou seja, 60 bilhões de dólares em 30 anos. O país tem sido o segundo maior beneficiário de ajudas financeiras dos EUA, atrás apenas de Israel”, explica Mirhan. A estratégia de Washington agora é elencar qual dos grupos insurgentes tenderia a um maior diálogo e buscar alçá-lo ao poder, com a eventual derro-
cada de Mubarak. Um Egito anti-EUA traria um cenário desfavorável à maior potência político-militar do planeta na região. Isso porque os EUA já contam com a “inimizade” de Irã e Síria. Ainda há incertezas sobre o Líbano, onde o bilionário Najib Mikati tornou-se premiê recentemente com o apoio do Hezbollah, grupo considerado terrorista pelos Estados Unidos.
A estratégia de Washington agora é elencar qual dos grupos insurgentes tenderia a um maior diálogo e buscar alçá-lo ao poder, com a eventual derrocada de Mubarak Nesse cenário, a “perda” do Egito pode ter consequências desastrosas para o país na região. O maior temor é de que a nação norte-africana se aproxime politicamente do Irã. Grupos como a Irmandade Islâmica, no entanto, não dão sinais de que pretendem um enfrentamento com os EUA. O grupo, fundado na década de 1920, tem feito trabalho de base constante no Egito e conta com simpatia de grande parte da população. O prêmio Nobel da Paz, Mohamed Elbaradei, é um opositor do regime que tem tido grande expressão nos protestos e projeção internacional. Elbaradei é apoiado pela Irmandade Muçulmana e tem uma posição moderada em relação aos EUA.
Muhammad Ghafari
Ditadura, sim Gestão de Mubarak acumula fraudes, nepotismo e repressão da Redação Após o assassinato do presidente Anwar Al Sadat em 1981, pela Jihad Islâmica Egípcia, o vice-presidente Hosni Mubarak assumiu o comando do Egito e, quase 30 anos depois, permanecia no posto até o fechamento desta edição (no dia 1°). Algumas fontes conservadoras trataram de aliviar a imagem de Hosni Mubarak. Um deles foi o vice-presidente dos EUA, Joe Biden, que afirmou não ser justo tratar o presidente egípcio como “ditador”.
“O segundo crime é oprimir movimentos sociais que tentam apresentar um outro projeto. É esse modelo que levou o Egito ao caos” Antes de todo o processo de revolta no Egito, Mubarak já falava em se reeleger no pleito marcado para setembro. Agora, afirma que desistiu da ideia. Mas especula-se que ele possa indicar seu filho
Hosni Mubarak recebe cumprimento de Barack Obama
para substituí-lo. Os processos eleitorais no Egito são marcado por fraudes e coação de eleitores por grupos armados apoiadores de Mubarak, que já chegou a patamares de “votação” acima dos 90%. Repressão
O egípcio Mohamed Habib, pró-reitor da Unicamp e e diretor do Icarabe, afirma que o governo do país norte-africano já trabalhava em uma candidatura de Gamal Mubarak. Informações extraoficiais davam conta de que Gamal, no entanto, teria fugido do país no dia 26 de janeiro. “O trabalho político preparatório para o lançamento de candi-
dato já está em curso. De um lado, o governo do Egito investe no filho de Mubarak. E, ao mesmo tempo, oprime qualquer tentativa de organização da sociedade civil de tentar investir em um outro candidato. Esses grupos que tentam criar um nova agenda, que pensam em outro candidato, estão sendo oprimidos e levados às prisões. Há um crime duplo. O primeiro crime é lançar a candidatura de um filho, isso já é nepotismo puro, com dinheiro público. O segundo crime é oprimir movimentos sociais que tentam apresentar um outro projeto. É esse modelo que levou o Egito ao caos”, explica. (ESL e RGT)
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internacional
O desafio de uma alternativa global FÓRUM SOCIAL MUNDIAL Na opinião do cientista político belga Eric Toussaint, um dos integrantes do Conselho Internacional do evento, edição de Dacar tende a ser melhor do que a do Quênia, em 2007, considerada a mais fracassada Reprodução
Sergio Ferrari de Genebra (Suíça) O FÓRUM SOCIAL Mundial (FSM) é quase o único marco de convergência dos movimentos sociais a nível planetário e, portanto, é fundamental continuar fortalecendo-o. Hipótese essencial de Eric Toussaint, historiador e cientista político belga e presidente do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM). Agudo analista do altermundialismo, conhecedor a partir de dentro do Fórum social Mundial, Toussaint participa desde sua criação do Conselho Internacional, órgão facilitador do evento. O CADTM, com ativa presença em numerosos países, particularmente em vários africanos, é um dos atores que dinamizam a preparação da próxima edição, que será realizada em Dacar, no Senegal, entre 6 e 11 de fevereiro. Como o senhor caracteriza o presente do Fórum Social Mundial?
Eric Toussaint – Acho que devemos reforçar o processo do FSM, pois ele é quase o único marco planetário ao qual convergem os movimentos sociais, ONGs, organizações políticas de esquerda e até governos progressistas. Não existe outro lugar orgânico de convergência. Não podemos esvaziar o FSM apesar das críticas que possamos ter a ele. Tampouco seria correto pensar em criar algo alternativo. Porque seria impulsionar uma proposta competidora e muito limitada. Hoje, o FSM é o que existe. Mas isso não quer dizer que não existam elementos preocupantes em sua evolução. Preocupantes em que sentido?
Há vários aspectos. Um deles é a decisão de uma maioria de dirigentes ou animadores do FSM de não querer avançar mais além de um Fórum, ou seja, de não querer modificar a Carta de Princípios a fim de permitir ao Fórum discutir planos de ação, plataformas, estratégias de ação. E de se situar no estrito marco da Carta de Princípios, que não permite, enquanto Fórum, adotar declarações finais e planos de ação. Um segundo aspecto: o êxito do FSM faz com que haja poderes públicos e fundações privadas que estão muito decididos a apoiá-lo significativamente. Assim, ocorre a tendência de se fazer eventos muito custosos, com orçamentos muito elevados, e isso me preocupa. Com o agravante de dois riscos bem presentes. Um é o de criar uma “indústria do FSM”, já que há Organizações Não Governamentais muito poderosas que estruturam grandes projetos em torno do FSM. Vivem disso. O outro risco é o do nascimento de uma espécie de “burocracia altermundialista”. É uma camada de dirigentes que, a partir de suas funções, obtêm certo poder e privilégios e se perpetuam desde há anos.
“Não podemos esvaziar o FSM apesar das críticas que possamos ter a ele. Tampouco seria correto pensar em criar algo alternativo. Porque seria impulsionar uma proposta competidora e muito limitada”
Militantes assistem à abertura do Fórum Social Mundial de Nairóbi no Quênia
nova reunião do Conselho Internacional, que se encontrou para ultimar detalhes do evento deste ano.
“O êxito do FSM faz com que haja poderes públicos e fundações privadas que estão muito decididos a apoiá-lo significativamente” Qual é o balanço desse seminário preparatório?
Exitoso, em termos de participação. Estiveram presentes muitos movimentos sociais de Senegal. Mais de 60, incluindo os grandes sindicatos rurais e urbanos, que são muitos. E representantes de movimentos de pescadores, agricultores, de bairro, de mulheres. Isso mostra uma boa dinâmica e se converte em um sinal realmente esperançoso. Existe um entusiasmo em relação ao apoio que o FSM pode ter nos bairros populares da capital senegalesa e de zonas afastadas e sobre a recepção da mensagem do FSM. Haverá atividades nos bairros durante os dias prévios e durante o próprio Fórum. Nós, enquanto CADTM, preparamos um espetáculo político-cultural de hip-hop, com grupos musicais reconhecidos, mas que se opõem a ser objetos de mercantilização. Interpretarão músicas inéditas, com um enfoque forte sobre a dívida, a soberania alimentar, os acordos desfavoráveis entre Senegal e Europa etc. A nível regional, o apoio decidido de setores da juventude é sentido como um fato importante. Chegará a Dacar uma caravana de ônibus que percorrerá centenas de quilômetros, proveniente da Nigéria – de onde saíram na terceira semana de janeiro – e que passará por Benin e Togo para depois ir a Burkina Faso. Lá, se encontrarão com outras delegações provenientes de Guiné-Conacri. A caravana, por
em Porto Alegre em 2005 e nas edições anteriores. Porém, objetivamente se dão condições para uma participação ampla do povo senegalês e dos movimentos sociais do país e da região. Veremos se esse espaço aberto, esse convite amplo e facilitado para as pessoas do lugar, vai provocar uma boa participação popular. Minha dúvida é: segundo as avaliações de colegas sindicalistas, que os movimentos sociais do Senegal atravessam hoje um de seus piores momentos dos últimos 20 anos no que diz respeito à capacidade de mobilização. Não é a melhor conjuntura, mas isso não depende só de certos movimentos, mas sim de condições políticas globais. Sem esquecermos outro elemento muito importante: o primeiro dia – e em dias anteriores – do FSM, colocará uma tônica particular sobre os 50 anos da independência da África, com atividades na ilha de Gorée, próxima a Dacar, de onde partiram mais de um milhão de escravos nos séculos 16, 17 e 18. Uma denúncia forte para o escravismo de ontem e para o sistema de hoje. Num nível simbólico e da memória coletiva, vai ser um momento importante, trazendo uma ponte entre passado e futuro… São os desafios de confrontar as crises mundiais nas distintas vertentes e momentos históricos.
fim, entrará em Senegal pela região de Kaolack. Esperamos várias centenas de participantes nessa iniciativa, mulheres, homens, e especialmente jovens. É uma proposta que impulsionamos juntamente com o Fórum Social Africano e redes como No Vox e Attac. O CADTM faz um papel de estimulador, mas não quer se apropriar de nada nem hegemonizar ou monopolizar. Buscamos uma real convergência. Organizaremos também um seminário sobre as lutas feministas nos dias 2, 3 e 4 de fevereiro, no Senegal, mas com a participação de representantes de todos os continentes. Esse tipo de iniciativas, inclusive se o próprio FSM de Dacar tiver resultados limitados, já ratificaria o valor da convocatória. É essencial fortalecer as dinâmicas sociais.
“Acho que o fundamental para o êxito de Dacar é fortalecer a presença dos movimentos sociais africanos e do resto do mundo” Tenta-se lançar uma dinâmica participativa na região?
Sim. A Nigéria está a cerca de 2.500 quilômetros de Dacar. Passar por esses diferentes países nos dá a possibilidade de tomar e fazer com que se tome conhecimento do processo do Fórum. Em cada parada importante serão feitos eventos para explicar o que será o FSM de Dacar. Por conta de tudo isso, eu diria que vivo um entusiasmo prudente.
“Os que se reúnem em Davos seguem momentaneamente com a capacidade de lançar ofensivas contra os ‘de baixo’”
Seria uma dinâmica diferente da que você considera como a edição fracassada de Nairóbi
É a esperança. Ainda que devamos ser cautelosos sobre os resultados de Dacar, já que um mês antes do FSM a população local não está nem informada sobre o evento, o que é muito diferente do que aconteceu em Belém em 2009 ou Cordelia Persen
Quais seriam os meios ou os “antídotos” políticos que permitiriam desbloquear essas tendências ou sinais preocupantes?
Felizmente, há elementos positivos. O Conselho Internacional propõe que se tome medidas para que não se repitam em Dacar os mesmos erros que se cometeram em 2007 em Nairóbi, no Quênia, que foi talvez a edição mais fracassada do FSM. Tenho um certo nível de confiança de que em Dacar não se produzirão esses erros, como o de outorgar o monopólio das comunicações, no espaço do FSM, a uma transnacional do setor e o de impor preços das entradas muito elevados, quase impossíveis de serem pagos pelos participantes locais. Acho que o fundamental para o êxito de Dacar é fortalecer a presença dos movimentos sociais africanos e do resto do mundo. Nesse sentido, sopra um vento positivo. Na primeira semana de novembro, organizamos na mesma capital do Senegal um encontro preparatório de movimentos sociais, a partir de um mandato que recebemos da Assembleia dos Movimentos Populares. Aconteceu justamente antes de uma
Senegalesas na Ilha de Goree, próxima a Dacar, de onde partiram mais de um milhão de escravos entre os séculos 16 e 18
Se, muitas vezes, fala-se de crises mundiais, de propostas hegemônicas dominantes, novamente o FSM de Dacar deverá observar também o que aconteceu em Davos, Suíça, durante o Fórum Econômico Mundial, que se realizou entre 26 e 30 de janeiro…
De fato. Vivemos uma crise do sistema onde tudo está interconectado. A crise é financeira, econômica, climática, alimentícia, migratória. Uma crise que toca a gestão mundial, porque não há nenhuma instituição mundial que goze de real credibilidade. O G20 não é mais legítimo do que o G8. E a ONU de forma alguma cumpre o papel previsto pela sua Carta. É verdade que esta crise é produto do avanço da desregulamentação, e, no entanto, está também ligada ao mesmo sistema. A mensagem do FSM deverá ser ainda mais clara do que quando nasceu há 10 anos. Deve salientar a necessidade de uma resistência global e também das alternativas para propor um sistema alternativo ao sistema capitalista patriarcal globalizado. Os que se reúnem em Davos seguem momentaneamente com a capacidade de lançar ofensivas contra os “de baixo”. Estes estão pouco a pouco superando a sua fragmentação – ainda que com dificuldades – para progredir em direção a oferecer uma alternativa global que é mais do que necessária. E penso que a solução não passa por reformar o atual sistema, mas sim ir contra ele mesmo. (Alai)