Reprodução
Líbia
Kadafi e suas contradições De liderança anti-imperialista à arquicorrupto e repressor
Págs. 9, 10 e 11
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Circulação Nacional Ano 9 • Número 418
São Paulo, de 3 a 9 de março de 2011
R$ 2,80 www.brasildefato.com.br Fotomontagem com desenho de Jean-Baptiste Debret
Extra, Walmart e Carrefour
Racismo nos supermercados Denúncias de racismo e tortura cometidos contra consumidores negros nas três maiores redes de supermercado do país, Extra, Walmart e Carrefour, expõem heranças das quais o Brasil ainda não se livrou: a escravidão e a ditadura civil-militar. Pág. 4
Privatizadas, ferrovias patinam no Brasil
Pág. 6
Assassinos de índio são condenados parcialmente
ISSN 1978-5134
Pág. 5
Lygia Prestes
Miguel Urbano Rodrigues
Leandro Konder
Leocadia, a mãe coragem
O que a mídia esconde
Os ditadores
Para o Dia Internacional da Mulher, trazemos o exemplo de Leocadia Prestes que, aos 60 anos de idade, aderiu, conscientemente, às ideias marxistas e deixou um legado de luta. Pág. 7
Kadafi, ao contrário de Ben Ali e de Mubarak, assumiu uma posição antiimperialista quando tomou o poder em 1969. Aboliu uma monarquia fantoche e praticou uma política de independência. Pág. 11
Hegel previu que um contraste entre as duas Américas resultaria numa guerra entre ambas. Mesmo sem a guerra, os Estados Unidos assumiram agressões militares a seus vizinhos do sul. Pág. 3
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de 3 a 9 de março de 2011
editorial
Desembaraçar o novelo QUANDO OLHAMOS em nossa volta, nos deparamos com milhares de questões a serem resolvidas no curto ou até curtíssimo prazo. Elas parecem emergir dos poros das paredes, do concreto, do asfalto e calçadas, do chão de terra batida, das paredes de adobe e do sapé, das naves que cruzam os ares – que muitas vezes não são aviões de carreira ou mansas e inócuas enteléquias produzidas por alguns e adestradas por outros (em prejuízo do trabalho dos primeiros) nas academias. E, de repente, os militantes esbaforidos correm para todos os lados, engajando-se num intenso ativismo, abraçando uma imensa quantidade de causas e tarefas, das quais, muitas vezes, saem de mãos vazias – potencializando apenas cansaço e algum desânimo. Apenas o “nível ideológico” e/ou os “estímulos ideológicos” não são, nunca foram, e nunca serão suficientes para garantir indefinidamente o pique da militância. É fundamental, além da identificação do inimigo principal a ser combatido (o que antecede tudo), a capacidade de estabelecermos prioridades, objetivos e metas claras. Ou seja, é necessária uma política clara e que não emane apenas de princípios gerais, ou de leis tendenciais,
nem sempre universalizáveis, entoadas como palavras-de-ordem. Nesse quadro, também as denúncias pouco ajudam – no máximo, produzem efeitos catárticos, o prazer de liberação de altas doses de adrenalina seguido de prostração. Pranto. Riso. Orgasmo. Para os movimentos populares reivindicatórios, essa dispersão pode parecer mais fácil de combater e ser contornada, pela reiteração do específico. No entanto, isso também não é verdade. Ainda aí, as novas conjunturas exigem discussões de caminhos consonantes com cada nova realidade política, com cada novo alinhamento e correlação de forças que se inaugure, para a conquista de suas reivindicações. Conseguimos um razoável entendimento das diversas conjunturas e até temos sabido eleger prioridades e nos movimentarmos com alguma desenvoltura ao longo dos anos, apesar da falta de uma análise de classes consistente da nossa sociedade – carência que carregamos há mais de três décadas. No entanto, hoje, falta-nos clareza até mesmo sobre a conjuntura (nacional e internacional) em que estamos enfiados até o pescoço: a dispersão da militância é o retrato mais
É fundamental, além da identificação do inimigo principal a ser combatido (o que antecede tudo), a capacidade de estabelecermos prioridades, objetivos e metas claras fiel da nossa dispersão de ideias e propostas políticas, da nossa incapacidade de estabelecer prioridades, de apontar um Norte, sobretudo quando nos partidos políticos o espectro de esquerda mergulha a cada dia mais profunda e exclusivamente na disputa institucional. Vivemos e agimos como se estivéssemos frente a um grande nove-
lo de linha totalmente embaraçado, cuja ponta – que nos permitiria reorganizar a linha – houvesse desaparecido sem que tivéssemos percebido e não nos incomodasse essa situação, uma vez que nos ocupamos com trechos diversos do emaranhado: Alca; democratização da comunicação; transposição do São Francisco; anistia e punição dos responsáveis pelos crimes da ditadura; o agronegócio; a luta pelo passe livre; as agitações e mudanças no Norte da África e Oriente Médio; reforma agrária; Mercosul; a questão indígena; enchentes nas cidades; a presença da presidenta Dilma no aniversário de 90 anos da Folha de S. Paulo; o problema do solo urbano e da habitação; as estripulias e contorcionismo político do prefeito Gilberto Kassab; o imposto sindical; os desastres ambientais; as disputas de aparelho em torno da ministra Ana de Hollanda, da Cultura; redução da jornada de trabalho; direitos humanos; etc. etc. etc., tudo ao mesmo tempo, tudo igualmente urgente e importante – e, onde e quando tudo é igualmente importante, nada é importante. Ou seja, estamos incapazes de definir coletivamente um eixo em torno do qual gravitem todas essas lu-
tas (e outras), onde elas ao mesmo tempo desaguem e se alimentem, emprestem e, sobretudo, ganhem um sentido maior, abandonando o caráter fragmentado que vêm assumindo e passem a constituir um só corpo, uma só força. Caso não atentarmos para isso, e se nenhum outro assunto momentoso conseguir ser pautado pela grande mídia comercial, corremos o sério risco de passarmos um ano “morto” e, somente em 2012, desaguarmos todos, mergulharmos de cabeça e atrelarmos todo o nosso fazer e toda a nossa discussão ao que vier ser pautado pelas eleições municipais. Aliás, esse não seria o problema, se tivéssemos essa clareza e nos preparássemos desde hoje com alternativas e projetos (com estratégias e táticas) nesse sentido. Do contrário, iremos a reboque do que nos oferecerem. Outra importante pauta é a discussão da reforma política – com a qual podemos ter muito a ganhar ou muito a perder, dependendo de termos propostas e políticas capazes de garanti-las. É grave a pouca repercussão que o assunto tem entre a militância. Depois, não dará para correr atrás dos prejuízos. Não se chora o leite derramado.
opinião Argemiro Pertence
crônica
O petróleo e o Oriente Médio
A vida, essa estranha!
O CONSUMO de energia está associado ao desenvolvimento das sociedades. Energia resulta em industrialização, transportes e bem estar, segundo os padrões hoje aceitos. O petróleo e o gás natural são responsáveis, atualmente, por 63% da energia que nosso mundo consome, sendo que 60% do petróleo e 40% do gás natural do mundo se concentram no subsolo do Oriente Médio, onde se situa a maior parte dos países membros da Opep. Os maiores produtores de petróleo no Oriente Médio dispõem, em geral, de uma empresa controlada pelo Estado, mas fazem concessões a empresas privadas ocidentais de grande porte para a execução da exploração e produção dos hidrocarbonetos em seu subsolo. Um dado que salta aos olhos mais atentos é a distância entre o custo de produção e o preço de mercado do petróleo. Nos países do Oriente Médio, onde os custos de capital já foram inteiramente amortizados, os campos produtores são de grande porte e de baixa profundidade, estima-se que esse custo não ultrapasse seis dólares por barril. É difícil para qualquer um de nós admitir que uma mercadoria, cujo custo de produção seja de seis dólares, chegue ao mercado por mais de 100 dólares (uma diferença de mais de 1.600%) como atualmente ocorre. A menos que haja má-fé e a formação de um cartel. Nesse caso, há as duas coisas. A Opep é um cartel e a má-fé vem das empresas ocidentais que atuam nos países-membros da organização e que se locupletam da situação para aumentar seus ganhos. Qualquer pessoa informada destes números fica revoltada. Outro grande problema é que, na maioria dos paísesmembros da Opep, no Oriente Médio, prevalecem ditaduras cruéis ou monarquias fechadas, ao estilo dos governos feudais que existiram na Europa até o século 17. Em sistemas desse formato, a população comum não tem vez, vivendo de migalhas que eventualmente são concedidas pela Casa Real ou pelo ditador. O grosso da riqueza obtida com o petróleo é canalizado para os reis ou ditadores e suas famílias, que o transfere para paraísos fiscais. Também este contraste social é fruto dos negócios feitos com o petróleo. Outra questão-chave que não pode passar despercebida é que o preço do petróleo cotado em bolsas ocidentais é função da estabilidade política e social na região. A atual escalada de preços, fazendo-os subir, em menos de um mês, de 85 dólares por barril para quase 120 dólares por barril – ou mais de 40% – é consequência da insurgência dos povos da área contra governos totalitários, especialmente na Tunísia, Egito, Irã, Bahrein, Líbia e Arábia Saudita. Embora haja, evidentemente, uma componente popular nas rebeliões, é
impossível negar que a alta dos preços por elas produzida seja vista com bons olhos pelas grandes corporações ocidentais do petróleo, norte-americanas e europeias, que atuam na região. Um pouco de história da região mostra que a agitação na área é benéfica para as corporações: até 1967, o preço de um barril de petróleo mal ultrapassava dois dólares. Após a Guerra dos Seis Dias, naquele ano, o preço do barril saltou para três dólares por barril, ou um aumento de 50%. Ao final da Guerra do Yom Kippur, em 1973, o preço chegou a 12 dólares – uma elevação de 300%. Em 1979, com a paralisação da produção de petróleo no Irã, por força da Revolução Islâmica que provocou a queda do Xá, o preço do petróleo novamente mais que triplicou, alcançando a marca dos 40 dólares por barril. Embora os efeitos dessa instabilidade recaiam sobre a população, para as grandes empresas de petróleo, quanto mais instabilidade na região melhor. Apesar de os aumentos no preço do petróleo e nos de seus derivados reduzirem seu consumo em escala mundial, a instabilidade faz crescer a demanda por outro tipo de bens – os armamentos que vão equipar as forças de defesa dos países da região. A simples presença de Israel e o alinhamento das grandes potências ocidentais (EUA e Europa Ocidental) com ele já é motivo de grande tensão na área. Desse modo, ganham dois setores do capitalismo: as grandes empresas de petróleo e as grandes empresas produtoras de armamentos e outros instrumentos de agressão e destruição. Como se pode ver, é um jogo muito sujo, mesmo que não se mencione a sujeira gerada pela queima dos derivados de petróleo no nosso dia-a-dia. A tensão crescente no Oriente Médio eleva o preço do petróleo, mas, em compensação, torna necessária a compra de aviões de caça, mísseis, blindados e outros armamentos por parte dos paí-
Gama
ses da região. Certamente, esse mecanismo de mão-dupla torna equilibrada a balança de trocas entre os dois lados e conserva o nível de tensão na área, sendo que uma realimenta a outra. Finalmente, não se pode esquecer o papel dos bancos, hoje onipresentes em cada quadrante de nosso globo. Todos sabemos que bancos não produzem nada, apenas mais riqueza para os que já são ricos. No caso do petróleo, os bancos entram no chamado mercado spot, que atende a demanda em períodos de alta dos preços ou de pequenos compradores. Através de seus hedge funds – fundos especulativos – os bancos fecham contratos de compra com empresas produtoras, das quais, em geral, são acionistas privilegiados e os revendem no mercado a termo (futuro) com uma boa parcela de ágio. Entre a compra e a venda, os bancos fazem um leilão do volume ou de partes desse mesmo volume. Ainda antes da definição do vencedor do certame, um navio-petroleiro já zarpou para uma entrega ainda não efetivamente contratada. Se nesse período surgir quem pague mais, o navio altera seu curso para atender a última posição. Essas mudanças ocorrem até que um preço satisfatório seja alcançado e remunere o banco segundo critérios altamente especulativos. De tudo o que foi aqui exposto, percebe-se que o que menos interessa nesses negócios são as pessoas e seus direitos. Acima destes estão os ganhos das famílias reais, dos ditadores, das corporações e até mesmo dos bancos. Os labirintos dos negócios do petróleo são muito mais escuros, escusos e sujos que os de qualquer máfia. Não há razão para esperar que esse quadro seja alterado antes do fim do uso comercial do petróleo e de seus derivados. Argemiro Pertence é engenheiro e foi vice-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet).
Elaine Tavares
OUTRO DIA UM AMIGO me saiu com essa: “não há gente triste na internet”. E eu fiquei a pensar... Pois não é? As mensagens no twitter ou no facebook são sempre de alegria e dão sinais de que tudo está bem. A cerveja no fim da tarde, os amigos, o vinho, a pizza, os bichos, o sol, os sonhos, enfim... Tudo remete a coisas boas e felicidades. Mas então por que na vida real as coisas e as pessoas parecem viver em escombros? Estarão estes seres querendo criar um espelho irreal para mudar o real? Ou estarão tentando enganar a si mesmos com uma felicidade de plástico? Não sei! ... Eu é que não consigo embarcar neste universo de alegrias. Vejo tudo tão sombrio! Há pessoas que circulam em volta de mim que já não conseguem enxergar beleza na vida. “A impressão é de que quando a gente era jovem conseguia suportar melhor os golpes. Agora, parece não haver esperanças...” Outras tentam desesperadamente encontrar um porto seguro onde ancorar suas promessas de amor. Outras não conseguem viver dentro de um mundo que se faz vazio, outras se emaranham num tempo em que parece não haver devir. Olho para os lados e o que vejo são almas em ruínas, tentando alcançar alguma margem, ainda que não saibam qual. O sólido se desmanchando no ar... Seria o espírito do tempo? Estes tempos pós-tudo, sem sonhos ou utopias? Seria a certeza da mortalidade que se aproxima e se faz cada dia mais real, conforme vamos nos aproximando do crepúsculo? Será a perda efetiva da probabilidade de um mundo melhor? Ou a triste certeza de que o niilismo venceu e não há saídas para o último homem?
Há pessoas que circulam em volta de mim que já não conseguem enxergar beleza na vida Não sei, mas tal como já apontou Nietzsche, creio que nos faz falta a meninice, essa coisa boa e tola de pular amarelinha, girar peão, jogar cinco marias, brincar de queimada e de escolher-fita, diabo-rengo, batatinha frita, um, dois três. Creio que precisamos dar mais cambalhotas, fazer castelos na areia, dar muita risada, pisar nas poças de água. Temos de reencontrar a alegria, a despeito de tudo. O riso servindo como um pirilimpimpim mágico, desfazendo as brumas. Outro dia vi na televisão uma reportagem sobre uma pesquisa que se faz há 15 anos nos colégios públicos. Ela revela que as crianças estão mais gordas, mais tristes, com menos energia. E por quê? Porque não existem mais campinhos onde jogar bola, porque não se brinca mais na rua, não se corre, não se gasta energia. As crianças vão para a escola de ônibus ou de carro, comem doritos, jogam vídeo game e falam ao celular. Na hora do recreio, não pulam nem suam para não estragar o “modelito”. São pequenos adultos sem vibração, prováveis almas em escombros logo ali adiante. Eu, que chego aos 50, diante das ruínas, começo a perceber que é hora de voltar a brincar. Chegar à casa mais cedo, correr com o cachorro, fazer peraltices, suar em bicas, tomar água pura. Meus cântaros se esgotam e eu preciso viver o dia. Sim, há de lutar pela tarifa zero, pela educação, pela vida digna, pela universidade, pela paz no mundo. Mas também há de virar cambalhotas e gargalhar. Porque não quero, na noite da vida, observar a minha e outras tantas almas em escombros. Quero ser capaz do riso, e que ele seja uma lamparina, ainda que bruxuleante, a indicar que, mesmo em meio às sombras, pode-se encontrar a beleza. Tal como ensinam os navajos, a beleza aí está, em cima, embaixo, nos lados, em frente... Viver é caminhar na beleza. Mas a vida, essa estranha, insiste em nos desviar! Elaine Tavares é jornalista.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
de 3 a 9 de março de 2011
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Leandro Konder
instantâneo
Os ditadores É CONHECIDA A HISTÓRIA da chamada colonização. Nos Estados Unidos, ela foi feita por ingleses protestantes que planejavam enriquecer. Na América do Sul, especialmente no Brasil, proliferaram aventureiros portugueses e espanhóis, em busca de ouro, com o objetivo de enriquecer e retornar à Europa o mais rapidamente possível. O filósofo alemão Hegel previu que um contraste entre as duas Américas resultaria, inevitavelmente, numa guerra entre ambas. Mesmo sem a guerra (o filósofo se enganou), os Estados Unidos assumiram agressões militares a seus vizinhos do sul. Ao longo de décadas e de séculos, os estado-unidenses impuseram seus critérios aos sul-americanos. E a imposição se deu por meio de setores das classes dominantes, que se reuniram organizadamente para exercer o poder de cima para baixo: os ditadores “modernos”. No mesmo período, Garcia Marques publicou o Outono do patriarca; Augusto Roas Bastos publicou Eu, o supremo; e Alejo Carpentier publicou O recurso do método. Todos por volta de 1975. Esses ditadores criados pelos três escritores nos ajudavam a compreender porque os personagens dos romancistas eram tão abomináveis. E mentiam e matavam sem qualquer escrúpulo. Mas não eram burros. Não lhes faltava cultura. O leitor, ao lê-los, podia ter dúvida quanto à competência dessa galeria dos ditadores. O ditador paraguaio de Roas Bastos ameaçava punir severamente seu chefe de polícia se não identificasse e prendesse imediatamente quem, de madrugada, havia afixado, no portão da catedral, um manifesto contra o governo (isto é, ele mesmo). O patriarca de Garcia Marques zela pelo cumprimento de suas ordens: para liquidar um bando de crianças que sabiam como o governo roubava na Loteria, mandou colocá-las em um navio e fazê-lo explodir e afundar. O coronel incumbido de matar as crianças cumpre a ordem recebida, mas também se mata, fazendo explodir uma banana de dinamite enfiada em seu próprio corpo.
Roberto Malvezzi (Gogó)
A cobra trocou de casca O RECEITUÁRIO FINANCEIRO do Brasil segue os padrões de sempre, isto é, empurrar o peso sobre as costas do povo e alimentar os especuladores. A votação do salário mínimo, sob silêncio das pastorais sociais, movimentos sociais e ação tímida das centrais sindicais, mostra a que situação paradoxal chegamos neste país, sobretudo na era Lula e, agora, no início da de Dilma. O senador do DEM, Agripino Maia – em seu discurso no Senado – parecia o Vicentinho de antigamente – disse que poupamos a merreca de 4 bilhões de reais no mínimo para pagar 190 bilhões de juros da dívida pública. Joelmir Beting já disse que o custo é maior, de 240 bilhões. O Jubileu Sul afirma que, entre juros e amortizações, o custo das dívidas supera 300 bilhões de reais por ano. Claro que a economia brasileira pode bancar o custo astronômico da dívida pública, que saltou de cerca de 700 bilhões na era FHC para 1,7 trilhões na era Lula. O Brasil tem capacidade de pagamento, desde que sacrifique setores essenciais, inclusive a justiça social
e a dimensão humanitária, para empanturrar os especuladores. Porém para a saúde, educação e previdência esse desmantelo é fatal. Continuamos jogando dinheiro pelo ralo nos grandes investimentos mal concebidos ou abandonados, nos juros da dívida pública, na corrupção sistêmica, mas não temos mesmo dinheiro para um mínimo decente. Quanto ao governo, Guido Mantega, em recente entrevista, acha normal que os juros subam, que exportemos matérias primas, que as transnacionais enviem lucros astronômicos ao exterior, daí para frente. Por isso, é mais que oportuna a retomada do Jubileu Sul do debate sobre a dívida pública brasileira. Vamos ver se temas como este ainda geram alguma união nas esquerdas, ou se mais uma vez vamos jogar o lixo para debaixo do tapete, somente para salvaguardar um bom relacionamento com o governo de plantão. Essa tem sido a prática dos últimos anos. Quanto à política econômica em andamento, não há dúvida que a cobra trocou de casca, mas não perdeu o veneno.
Vito Giannotti
Dilma na Globo e Rede TV NO MÊS DA MULHER, uma mulher presidenta do país, lutadora contra a ditadura, trabalhadora, digna, feminista em sua prática de vida, vai aparecer no canal que nega toda sua vida. Dilma no programa Mais Você é um tapa na cara em relação à luta da mulher, à luta contra a ditadura e à Conferência de Comunicação que mobilizou milhares de comunicadores no ano passado. O programa da Ana Maria Braga é a negação da libertação da mulher. A negação do 8 de Março. Reafirma a cada segundo a ideia de que lugar de mulher é na cozinha, fazendo omeletes, aprendendo a preparar novos quitutes ou enfeitinhos da casa para o macho que está por aí se lixando pelas comidinhas e enfeitinhos caseiros das sagradas esposas. A aula de mulherzinha alienada, idiotizada que a Braga dá a cada dia é de chorar. O mesmo pode-se dizer da visão de mulher que é afirmada, reafirmada e confirmada em cada minuto dos divertidos programas da Rede TV. Mas este é um assunto que demoraria muito. O mais político vai na cara de quem luta pela democratização das comunicações em nosso país. Na-
da contra responder a uma entrevista à Globo ou outro canal. O problema é que a ida ao templo dos inimigos da Conferência Nacional de Comunicação de 2009 é jogar água no fogo aceso no coração de milhares de ativistas e lutadores por uma comunicação a serviço do povo, a serviço dos trabalhadores e das classes populares. No Brasil, há extrema necessidade de um novo marco regulatório nas comunicações. As chamadas concessões públicas de rádio e TV nada têm de público, são sesmarias doadas aos donatários da Globo, SBT, Record, Bandeirantes e por aí vai. O Brasil precisa de controle público sobre estas chamadas concessões. Precisa de canais de televisão públicos, canais nas mãos dos trabalhadores, em cada estado. Mas, a tudo isso, a Globo da Braga responde dizendo que isso é intervenção, censura, ditadura. Dilma ir fazer omelete naquele programa é legitimar a fala da Globo. Daí o esquecimento de que os trabalhadores precisam ter suas TVs, suas rádios, e não só comunitárias, mas grandes rádios iguais às da Globo é um passo. Aos movimentos sociais cabe lembrá-la disso nas praças e nas ruas.
Mesmo sem a guerra, os Estados Unidos assumiram agressões militares a seus vizinhos do sul O ditador justificou o castigo dizendo: “Há ordens que não podem ser acatadas. No entanto, também não podem deixar de ser cumpridas”. O ditador, que é o principal personagem de O recurso do método, criado por Alejo Carpentier, lê muito. Não tem nenhuma vergonha de repetir ideias liberais e mesmo pensamentos libertários. Confessa-se admirador de um dos seus assessores, que era considerado de “esquerda”. Citava sempre Bakunin, Kropotkin e Proudhon. Em seu cinismo drástico e em sua brutalidade assumida, os ditadores dos três escritores lembrados (há outros) rivalizavam com o estilo doentio que os tiranos mostravam no início do século 20 na vida real. Nas atuais condições, a classe dominante cobra de seus líderes políticos que eles sejam pragmáticos e não se exponham, com demasiada facilidade, ao ódio popular ou ao sarcasmo da classe média.
“Há ordens que não podem ser acatadas. No entanto, também não podem deixar de ser cumpridas” Mudou a situação histórico-política. Isso não significa que as velhas formas de autoritarismo, prepotência, crueldade e intimidação não existam mais. Ao contrário, elas ainda são fortíssimas. Os hábitos que pautam a vida cultural, as fantasias e os critérios usuais das pessoas, os sentimentos formados diante da televisão, os compromissos com a preservação dos princípios democráticos (mesmo quando são proclamados hipocritamente), tudo isso contribui para que a burguesia fale de valores a serem preservados e reivindique para ela certa respeitabilidade não merecida. A ficção não se limita a refletir a realidade: ela a recria. Os ditadores na literatura chegam a ser tão monstruosos como os da vida real. Um pouco da Colômbia, bem como um pouco de Cuba e do Paraguai, só passaram a existir depois que os escritores, sobre os quais acabamos de falar, escreveram seus romances brilhantes e expuseram seus criminosos ditadores. Leandro Konder escreve semanalmente neste espaço.
comentários do leitor McDonald’s – 1
Se há um orgulho que minha Pouso Alegre (sul de MG) carrega diante do planeta é o de o McDonald’s não ter dado certo por aqui. Ficou um tempo e faliu na década passada. Ainda preferimos as nossas barraquinhas de pastel de farinha de milho e trailers de lanches da madrugada, tudo feito pelos próprios donos de seus microempreendimentos, sem exploração.
Claudinei Braz, por correio eletrônico
McDonald’s – 2
Há muito tempo venho criticando a posição deste jornal, que cada dia mais se alinha ao governo. Todavia, hoje gostaria de saudar a matéria sobre o McDonald’s.
José Soares de Souza Neto, por correio eletrônico
McDonald’s – 3
O McDonald’s é uma empresa criminosa. O que paga aos seus funcionários é revoltante. Na maioria jovens, em primeiro emprego, que não conhecem seus direitos. E ainda
escravizam os funcionários. Vale dizer que aquilo que vendem não é alimento para humanos. Produtos de qualidade duvidosa, de baixíssimos valores nutricionais, que acarretam doenças cardiovasculares, obesidade e sabe-se lá o que mais, pois são produtos de origem transgênica. É bom lembrar que a velha mídia, na TV, é aliada de primeira hora da lanchonete para Frankenstein. As novelas da Globo, principalmente a Malhação, para jovens, fazem merchandising de “alimentos” fast food ao melhor estilo McDonald’s. Crianças de classe média e alta, brancas, comendo a comida de Frankenstein é imagem comum nas novelinhas. Inclusive, muitos adolescentes na novela trabalham em lanchonetes, ao melhor estilo da cultura americana em decadência. Ricardo Oliveira, por correio eletrônico
McDonald’s – 4
O McDonald’s não é a única empresa a cometer os delitos do trabalho. Outras corporações fazem uso desenfreado de métodos para
aumentar os rendimentos e a taxa de mais-valia obtida nesta exploração. Não estranhe que sempre tem vagas para o Mac, pois é a forma que eles acharam para diminuir os salários ao nível do ridículo. Como o público alvo são os jovens que moram com seus pais, justificamse os abusos. Mateus Avila Isidoro, por correio eletrônico
McDonald’s – 5
Sou estudante de nutrição da Unesp. Já tinha inúmeros argumentos sobre a qualidade nutricional dos produtos desta empresa, agora tenho argumentos políticos contra essa corporação.
Massa Simidu, por correio eletrônico
McDonald’s – 6
Já estava na hora mesmo de alguém abrir os olhos e denunciar esta exploração... parabéns!
truindo inteiras nações sob a máscara da defesa da democracia. Democracia? Para quem? Continuamos à merce da febre intermitente do destino manifesto, com os aplausos da mídia hegemônica, até quando?
Mariza Bertoli, por correio eletrônico
Queda do império
O que parecia impossível para alguns passa a ser a cada dia parte da realidade. Enquanto a crise econômica se prolonga, os norte-americanos veem seu poder e influência escapando entre os dedos. Não à toa o presidente Obama vem visitar o Brasil, a fim de trazer de volta o apoio brasileiro principalmente na pauta econômica. O fim do ciclo de dominação estado-unidense está chegando ao fim, e o que virá a seguir? Paulo Souza, por correio eletrônico
Evelise Toporoski, por correio eletrônico
Obama e o messianismo imperialista
Parabéns Miguel Urbano! Análise contundente do fundamentalismo que está des-
Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico comentariosdoleitor@brasildefato.com.br
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brasil Fotomontagem com desenho de Jean-Baptiste Debret
Supermercado ou pelourinho? PRECONCEITO Possíveis casos de racismo e tortura no Extra, Walmart e Carrefour expõem os resquícios do escravismo e da ditadura civil-militar no Brasil Jorge Américo e Eduardo Sales de Lima da Redação “POR QUE O NEGRO, quando entra no mercado, passa a ser monitorado? Por que, inconscientemente até, o funcionário de segurança dessas lojas passa a ‘copiá-lo’? Porque, na cabeça dele, o negro é o suspeito padrão”. É o que defende o advogado Dojival Vieira, em entrevista à Radioagência NP. Ele acompanha três casos de pessoas que teriam sofrido tortura física e/ou psicológica em decorrência de racismo nas três maiores redes de supermercado do Brasil: Carrefour, Walmart e Extra (pertencente ao grupo Pão de Açúcar). Dois destes casos aconteceram no início deste ano. Em Osasco (SP), no dia 16 de fevereiro, a dona de casa Clécia Maria da Silva, de 56 anos, foi parar no hospital depois de ter sido acusada de furto por seguranças da rede Walmart. Um segurança revistou sua bolsa. A cliente portava o cupom fiscal que comprovava o pagamento das mercadorias que levava. Segundo a médica que atendeu a dona de casa, ela teve uma crise de hipertensão e ficou próxima de sofrer um acidente vascular cerebral (AVC). O segurança teria dito que “isso acontece mesmo com os pretos”, segundo relato da cliente à Dojival, que acompanha o caso. A ocorrência foi registrada como calúnia no 9º Distrito Policial de Osasco no dia 18 de fevereiro. Outro caso, tão grave quanto. Um garoto de 11 anos relatou ter sido levado a uma “salinha” nos fundos do hipermercado Extra da Marginal do Tietê, na cidade de São Paulo, e confirmou ter sido agredido por seguranças no dia 10 de janeiro. O garoto teria sido abordado após passar no caixa com biscoitos, salgadinhos e refrigerantes e se encaminhava para a saída da loja. Estes dois casos não são inéditos. Em 2009, no estacionamento do Carrefour de Osasco, o vigilante Januário Alves de Santana foi apontado como suspeito de roubar seu próprio carro. Na sequência, sofreu torturas por quase 30 minutos, com socos, pontapés e uma tentativa de esganadura que lhe provocou fratura no maxilar, provocando a destruição da sua prótese dentária. A existência dessas “salinhas de tortura”, evidenciadas no caso do garoto abordado no Extra e do vigia agredido no Carrefour, põe os supermercados em condição análoga às masmorras. Isso de acordo com Hédio Silva Jr., ex-
secretário de Justiça do Estado de São Paulo.“São crimes hediondos. São salas de interrogatórios, espécies de masmorras contemporâneas em que as pessoas são isoladas do público e submetidas a toda sorte de constrangimento. Ao acentuar o papel da vigilância, com isso não estou diminuindo ou relativizando a responsabilidade que a empresa que contrata o serviço, que são os supermercados, possui”, elucida. Pelo menos no caso de 2009 ocorreu uma decisão inédita do Poder Público. No início de fevereiro, a polícia de São Paulo indiciou seis seguranças da rede de supermercados Carrefour pelo crime de tortura motivada por preconceito racial. Mas há muito pela frente. A partir de agora, de acordo com Dojival Vieira, caberá ao MP oferecer a denúncia e à Justiça aceitá-la, instaurar o processo, passar os indiciados a réus e condenálos de acordo com a lei. Segundo Douglas Belchior, integrante do conselho geral da Uneafro-Brasil, o ineditismo desse indiciamento por crime de tortura motivado por preconceito racial ainda expõe a vagarosidade no tratamento de crimes dessa lógica dentro das instâncias de poder. Punir e vigiar
Juntas, essas três maiores redes varejistas do país lucraram R$ 71,5 bilhões em 2009. Só o Walmart possui 400 lojas no Brasil. Em 2010, as unidades da empresa espalhadas pelo mundo faturaram quase 410 bilhões de dólares. Mesmo com o lucro, parece não haver preocupação em relação a investimentos na capacitação de seus seguranças. “As empresas de segurança transportaram, para as relações de consumo, práticas que não são próprias, não são compatíveis com o Estado democrático de direito. E as empresas que as contratam – os supermercados e shoppings – não tiveram até agora a preocupação de investir na capacitação e no treinamento desses funcionários”, pondera Dojival.
“Qual é a lógica que essas empresas impuseram? Todos são culpados até que se prove a inocência” Segundo ele, essas empresas contratadas subverteram o princípio constitucional, base de qualquer Estado democrático de direito. “Qual é a lógica que essas empresas impuseram? Todos são culpados até que se prove a inocência”, explica. Hélio Silva vai mais a fundo e enlaça a falta de treinamento desses profissionais de segurança que trabalham nessas redes de supermercado com a herança cultural brasileira. “Se eles não têm treinamento, é mais ou menos óbvio que ele vai reproduzir no trabalho dele os conceitos que ele aprendeu socialmente. Por isso, além de educação escolar, como um todo, a formação desses profissionais tem que ter um conteúdo que o prepare para não reproduzir no seu tra-
balho os conceitos aprendidos socialmente”, defende. Segundo ele, o Brasil tem um certo atavismo cultural muito vinculado a esse tipo de prática cruel e que muitas instituições têm dificuldades para romper com essa mentalidade.
“Todos sabemos que boa parte dessas empresas são propriedade de militares que serviram na ditadura” Como ressalta Dojival, esses prováveis casos de racismo ilustram os efeitos perversos de dois tipos de “herança” de quais o país ainda não se livrou: o escravismo e a cultura do “prende e arrebenta” do período ditatorial. “Todos sabemos que boa parte dessas empresas
são propriedade de militares que serviram na ditadura e importam para as relações de consumo as práticas desse período, que no caso dos negros, fica agravada pelo fato de ser o suspeito padrão, exatamente pela condição de sub-cidadão que ele ocupa desde o período escravista”, salienta Dojival. O Brasil de Fato entrou em contato com as assessorias de imprensa das três redes de supermercado, Extra, Walmart e Carrefour, mas não obteve nenhum tipo de posicionamento relacionado aos supostos casos de racismo e tortura, tampouco acerca dos nomes das empresas de segurança que prestam serviço nas lojas. O jornal também tentou contato com Januário Alves de Santana, mas ele firmou um acordo extra-judicial no qual não pode expor qualquer tipo de informação sobre o caso, com fim de que o inquérito não seja prejudicado.
Pesadelo na “salinha” Garoto foi ameaçado de levar chicotadas no hipermercado Extra da Redação Um garoto negro de 11 anos, que mora num Conjunto Habitacional na zona leste da cidade de São Paulo, prestou depoimento no dia 15, na 10ª DP da Penha, e confirmou agressão e os maus tratos recebidos por parte de seguranças do hipermercado Extra da Marginal do Tietê. O menino, de acordo com a Agência de Notícias Afropress, relatou que foi levado para um quartinho, obrigado a baixar a bermuda, levantar a blusa e ameaçado de levar chicotadas para provar que não estava furtando mercadorias, conforme comprovou com a apresentação do cupom fiscal emitido pela operadora do caixa, conforme conta advogado Dojival Vieira que o acompanha. O garoto reconheceu um dos seguranças do hipermercado: Marcos Hoshimizu Ojeda. Segundo o garoto, Marcos foi o primeiro a abordá-lo quando, depois de passar no caixa com as mercadorias (biscoitos, salgadinhos e refrigerantes), se encaminhava para a saída da loja. Porém, o menino teria afirmado que não foi Marcos que o chamou de “negrinho sujo”, “negrinho fedido”, e o ameaçou com três chicotadas, já no quartinho – para onde também foram levados dois outros meninos, ambos negros – de respectivamente 13 e 14 anos, acusados pelos seguranças de furto de mercadorias. Segundo o menino, as ameaças teriam partido de outros dois seguranças, em especial, de um terceiro, encarregados de fazer a revista. Após avisarem que não estavam brincando, teriam agredido com tapas nos genitais, dois tapas e um soco no peito dos adolescentes.
O segurança, que “batia ameaçadoramente com um cano de papelão na mesa”, segundo o garoto, também “ameaçou dar facadas na barriga, com uma faca, cuja descrição disse ser de cabo azul como as de cozinha”. Os quatro seguranças que depuseram até aqui negam as agressões. De acordo com Douglas Belchior, do conselho geral Uneafro-Brasil, o caso do garoto, se confirmado, demonstra como os agentes de segurança privados se sentem legitimados pelo próprio Poder Público. “Se o próprio Estado, com sua polícia oficial, agride, desrespeita, espanca, tortura e assassina, por que as polícias particulares, como é o caso dos supermercados, não vão fazer o mesmo? Quer dizer, vão fazer muito pior, porque eles estão endossados. Inclusive, grande parte desses profissionais que fazem esse trabalho são oficiais do Estado nos seus dias de folga”, denuncia.
O garoto reconheceu um dos seguranças do hipermercado: Marcos Hoshimizu Ojeda
OEA
O caso chegou à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), por iniciativa da Comissão de Direitos Humanos da OAB de São Paulo. Foi aberta também uma Comissão Processante pela Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, que, baseada na Lei Estadual 14.187, de 19 de julho de 2010, pode punir com advertência, multa e até a cassação da licença de funcionamento do estabelecimento acusado de práticas racistas. (JA e ESL)
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Condenados, mas não por homicídio Peter Mulligan/CC
JUSTIÇA Não foi desta vez que um “branco” foi condenado por matar um indígena; acusados pela morte do cacique Marcos Verón são punidos por tortura, sequestro e quadrilha Cristiano Navarro da Reportagem NÃO FOI DESTA vez que o Mato Groso do Sul, estado com maior índice de violência contra povos indígenas, viu a condenação de um “branco” por assassinato de uma liderança. No dia 25, os jurados decidiram absolver Carlos Roberto dos Santos, acusado pelo homicídio duplamente qualificado, por motivo torpe e meio cruel, do cacique guarani-kaiowá Marcos Verón de 73 anos. Além de Santos, Estevão Romero e Jorge Cristaldo Insabralde eram réus no processo que apura os crimes contra as famílias que retomaram à terra indígena Takuara, que hoje é ocupada pela Fazenda Brasília do Sul em Juti (MS). Ao todo, o Ministério Público Federal denunciou 28 pessoas por envolvimento no crime que ocorreu em janeiro de 2003. Apesar de Santos ter sido absolvido da acusação de homicídio, os três funcionários da fazenda foram condenados a 12 anos e três meses de prisão por seis sequestros, tortura e formação de quadrilha armada. A pena foi determinada pela juíza da 1ª Vara Criminal Federal de São Paulo, Paula Mantovani. Estevão Romero foi condenado também a mais seis meses em regime aberto por fraude processual. Todos os réus já passaram quatro anos e oito meses
Julgamento resultou em liberdade para os réus que estavam presos
sob pena de prisão preventiva. Mas como ainda podem recorrer da sentença, eles deixaram o tribunal em liberdade.
Todos os réus já passaram quatro anos e oito meses sob pena de prisão preventiva. Mas como ainda podem recorrer da sentença, eles deixaram o tribunal em liberdade O procurador do Ministério Público Federal, Luiz Carlos Gonçalves, que fez parte da acusação, considerou o resultado como uma vitória parcial. “A vitória completa seria a condenação dos réus também pelos homicídios e tentativas de homicídios”. Considerando as outras sentenças, o procurador obser-
va que “a mensagem que fica é a de que a comunidade indígena tem direitos e que a violência é intolerável”. Nos cinco dias de júri, uma comissão com 21 indígenas saiu de suas aldeias para acompanhar o julgamento. Ao final do júri, o professor Ládio Verón, filho do cacique Verón e vítima da sessão de torturas feitas pelos condenados, resumiu o sentimento dos familiares. “A gente fica sem saber. Eles foram condenados, mas não vão ficar presos. Meu pai foi morto, e oito anos depois não tem um assassino e nem o mandante”. A defesa dos acusados comemorou o resultado, já que a pena aplicada é apenas uma fração da penalidade que poderia ser imputada. Em nota, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão que apoia a luta guarani-kaiowá, manifestou indignação com o resultado. “A decisão que acolheu parcialmente as alegações do Ministério Público Federal, mas que não reconheceu a prática do crime de homicídio levado a cabo contra o cacique e a tentativa de homicídio contra seus familiares, e o fato dos acusados poderem recorrer da sentença em liberdade trazem relevante indignação e preocupação desta entidade pela impunidade do fato e as consequências desse precedente”. A transferência
O processo ainda foi desmembrado em outras duas partes, quando serão julgados o dono da fazenda, Jacinto Honório da Silva Filho, como réu mandante do assassinato, e Nivaldo Alves Oliveira, réu foragido acusado de dar o golpe final fatal em Verón. O Tribunal de Júri foi transferido para São Paulo por decisão do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região em 2009. A Justiça entendeu que, devido ao forte clima de racismo contra os guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul, haveria suspeita de parcialidade dos jurados no caso.
Como manifestação dessa parcialidade, o MPF citou as manifestações do juiz estadual contra os indígenas e contra o procurador da República do caso. As manifestações ocorreram em 2009 na Assembleia Legislativa sul-mato-grossense. No parlamento, o juiz condenou os acampamentos indígenas e relativizou a morte das lideranças. Inúmeras opiniões desfavoráveis aos índios em diversos jornais do estado também foram juntadas ao processo, para mostrar que um júri federal realizado em qualquer subseção judiciária do estado teria viés contrário aos índios.
“A gente fica sem saber. Eles foram condenados, mas não vão ficar presos. Meu pai foi morto, e oito anos depois não tem um assassino e nem o mandante” O TRF levou em conta também que o julgamento poderia ser influenciado pelo poder econômico e social do proprietário da fazenda, Jacinto Honório da Silva Filho. O fazendeiro teria negociado com dois índios a mudança de seus depoimentos, no dia seguinte ao assassinato, inocentando os seguranças responsáveis pelo crime. Honório teria, ainda, tentado comprar o depoimento de um dos filhos do cacique assassinado, oferecendo-lhe bens materiais em troca da assinatura de um termo de depoimento já redigido. Este foi o terceiro caso de desaforamento interestadual do Brasil. Os dois primeiros ocorreram no julgamento do ex-deputado federal Hildebrando Pascoal. Dois de seus júris federais foram transferidos de Rio Branco (AC) para Brasília.
HABITAÇÃO
Comunidades se articulam contra despejos em São Paulo Terceira Jornada pela Moradia Digna alerta para a ameaça de megaprojetos, como a Copa do Mundo de 2014 Fernando Stankuns/CC
Patrícia Benvenuti da Reportagem DESPEJOS, ASSISTÊNCIA precária do poder público e falta de informação sobre o destino de comunidades inteiras. Em todo o país, crescem as reclamações sobre violações do direito à moradia alavancadas por megaprojetos com vistas à realização da Copa do Mundo, em 2014, e das Olimpíadas em 2016. Em São Paulo (SP), que será uma das sedes da Copa, a situação não é diferente, e o crescente número de despejos aumenta a preocupação de moradores e entidades. Para chamar a atenção sobre o assunto, movimentos sociais e organizações não governamentais promoveram, juntamente com a Defensoria Pública, a 3ª Jornada pela Moradia Digna. O evento ocorreu nos dias 26 e 27 de fevereiro, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) no Ipiranga, na capital paulista. Com o tema Megaprojetos e as Violações do Direito à Cidade, as atividades reuniram 1,5 mil pessoas para debater e construir alternativas às comunidades que estão ameaçadas por intervenções urbanísticas. “O objetivo [da Jornada] é desvelar o que está por trás desses megaprojetos e debater com a população, principalmente com aqueles que estão sendo atingidos”, afirma o integrante do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, Luiz Kohara.
“Sabe qual é o tempo de cada morador para debater um projeto na audiência pública? Três minutos” Já o integrante da Central dos Movimentos Populares (CMP), Benedito Roberto Barbosa, explica que o tema foi escolhido em função da quantidade de despejos que já estão acontecendo na cidade, justamente em áreas onde estão projetadas megaobras. “Nós estamos vendo que esses projetos, na verdade, estão sendo feitos para expulsar os mora-
micos. O principal problema, aponta, é a ausência de diálogo para ouvir as sugestões de quem vive ou trabalha na área. “Sabe qual é o tempo de cada morador para debater um projeto na audiência pública? Três minutos de fala. Como a gente vai ter um diálogo democrático, com participação, quando o morador tem três minutos para falar? Eles [prefeitura] estão impondo uma qualidade de vida para nós, e a gente quer participar disso”, defende. Problema mundial
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Ocupação de moradores sem-teto ao lado da Estação da Luz, centro de São Paulo
dores pobres, higienizar mais a cidade e atrair o capital imobiliário para essas regiões”, diz. Entre as intervenções consideradas mais problemáticas estão o Parque das Várzeas do Tietê, conhecido como parque linear, na zona leste da cidade; o projeto Nova Luz, no centro; as operações urbanas Água Espraiada e Água Branca, na zona sul e zona oeste; e a construção do Rodoanel, que atinge, entre outros locais, o bairro de Brasilândia, na zona norte, e o município de Mauá, na região metropolitana. A estimativa das organizações é de que entre 70 e 80 mil famílias sejam deslocadas em São Paulo em função de obras de urbanização. Só o parque linear e a Operação Urbana Águas Espraiadas devem acarretar, juntas, a expulsão de 25 mil famílias. Insegurança
Durante a Jornada, foram recorrentes as reclamações a respeito da falta de clareza sobre as obras. Um exemplo é o Projeto Nova Luz, que propõe a “revitalização” do centro da cidade. A presidente da Associação de Moradores e Amigos da Santa Ifigênia e da Luz (Amoaluz), Paula Ribas, explica que os moradores estão preocupados porque o
mil famílias podem ser deslocadas em São Paulo em função de obras de urbanização
projeto não dá garantias sobre a permanência das famílias na área. “Só há pinceladas e comentários muito abstratos e gerais sobre quem continuará na região, mas não há garantia. Nós estamos pedindo um cadastramento desde o ano passado, em setembro, e até agora não tivemos nenhuma resposta”, conta. Paula argumenta que os moradores são favoráveis às melhorias no centro, mas estão insatisfeitos com o atual plano apresentado pela prefeitura. O projeto, segundo ela, baseado em experiências europeias, não leva em conta a diversidade do bairro e seus problemas específicos, como o alto número de pessoas em situação de rua e dependentes quí-
O andamento dos projetos de urbanização para a Copa do Mundo também preocupa a relatora especial da Organização das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada, Raquel Rolnik. Segundo ela, a relatoria tem recebido uma série de denúncias a respeito de despejos e outras violações do direito à moradia nas cidades. “Com as obras, nós estamos produzindo mais sem-teto e mais gente sem casa do que se está conseguindo, a duras penas, construir como alternativa de moradia adequada para as pessoas”, afirma. Ela afirma que o mesmo processo está acontecendo em outras cidades-sede como Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e Fortaleza, mas ressalta que a situação não é exclusividade do Brasil, e sim de todos os locais do mundo que recebem eventos e atraem, assim, grande quantidade de capitais. “Não tem megaprojeto sem megaoperação de despejo. Isso está atingindo milhares de pessoas em todo o mundo”, destaca. A relatora também se diz preocupada com a falta de assistência relatada pelas famílias, que em geral recebem apenas a oferta de bolsas-aluguéis e cheques-despejo, o que é insuficiente para conseguir uma moradia em local adequado. “Tirar as pessoas de onde elas vivem e colocá-las a 50 quilômetros de distância, na não cidade, é alimentar a máquina de exclusão territorial e as ocupações em áreas de risco, porque é isso que vai acontecer”, prevê. Raquel prometeu ainda encaminhar as conclusões da Jornada para a ONU. No entanto, ela destaca que o mais importante é a organização em todos os níveis. “Se em cada uma das cidades pudermos organizar comitês e fazer uma luta nacional, nós poderemos influenciar nesses projetos”, pontua.
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brasil Patrícia Oliveira/CC
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Lucro fácil Produtora do antidepressivo Lexapro, sucesso de vendas nos Estados Unidos, a empresa Forest Laboratories acaba de comprar o laboratório Clinical Data, que desenvolveu o antidepressivo Viibryd, a ser lançado em breve no mercado. É que a patente do Lexapro será quebrada em 2012, e a Forest precisa urgentemente de outro medicamento para manter os altos lucros da empresa – enquanto a sociedade é entupida de antidepressivos. Aviões russos A novela da compra de 36 aviões de caça para a Força Aérea Brasileira, que está sendo protelada desde 2007, e que envolve a quantia de quatro bilhões de dólares, parece ter um ingrediente novo no enredo: além dos conhecidos concorrentes na licitação – Boeing, dos Estados Unidos; Dassault, da França; e Saab, da Suécia –, entrou na parada a Sukhoi, da Rússia, que oferece transferir tecnologia de produção do caça Su-35 ao Brasil. Será mesmo?
Ferrovias, um caminho abandonado Desestatização: idade da frota ficou maior e patrimônio foi transformado em ruínas
TRANSPORTES Setor, que seria alternativa à dependência das rodovias no Brasil, patina nas mãos de um monopólio Pedro Carrano de Curitiba (PR) ACIDENTES DE TRENS de cargas, descarrilamentos e até denúncias de trabalho escravo viraram rotina na vida das concessionárias que se apropriaram dos ramais ferroviários brasileiros desde a década de 1990. Naquela época, sob gestão do BNDES, houve a quebra do monopólio público. Desde então, as promessas de ampliação e modernização da malha ferroviária não se concretizaram. As principais empresas controladoras hoje são a Vale e a América Latina Logística (ALL). Como demonstra o especialista Paulo Sidnei Ferraz, a população é refém de um modelo de transportes dependente do modal rodoviário, que responde ao interesse econômico do frete rodoviário e mantém a lucratividade nas mãos de dois grupos privados nas ferrovias. Uma alteração desse quadro passaria pela retomada do monopólio público. Em entrevista ao Brasil de Fato, Ferraz, diretor do Sindicato dos Engenheiros do Paraná (Senge-PR), analisa que a matriz de transporte ferroviário e a navegação de cabotagem, no lugar do rodoviário, seriam saídas para o tema ambiental e para a diminuição da queima de combustível. Brasil de Fato – Quais empresas detêm o monopólio das ferrovias no Brasil e que prejuízo causam para a população?
Paulo Sidnei Ferraz – Transcorridos 14 anos da desestatização das ferrovias no Brasil, temos a desativação de vários ramais, ou seja, 40% da malha arrendada aos concessionários, que isolou tradicionais cooperativas assim como prejudicou médios e pequenos produtores. Outro problema sério é a falta de modernização e aumento real da frota de locomotivas, que impede a ampliação da oferta de transporte ferroviário, sendo apenas atendidos os clientes de maiores volumes. Então temos hoje um monopólio privado do transporte ferroviário no país, concentrado nas mãos da América Latina Logística (ALL) e da Vale, sendo parceiros de outros monopólios ou cartéis de controladores de grãos, minérios, cimento etc.
“Sendo uma concessão pública, os governos não deveriam permitir essa seletividade para os maiores grupos” Isso está casado com a condição da economia brasileira, que tem como um dos eixos a exportação de commodities?
O Brasil continua a ser um exportador de matérias-primas, por isso os principais corredores de transportes se destinam aos portos. Sem nenhum compromisso com o desenvolvimento do nosso país, as concessionárias otimizaram as frotas de vagões e locomotivas, concentrando-se nos maiores clientes. Com isso fecharam quase todas as estações, desativaram extensos ramais e isolaram tradicionais clientes dependentes da ferro-
via, focando só no atendimento dos fluxos de maior margem de lucro. Sendo uma concessão pública, os governos não deveriam permitir essa seletividade para os maiores grupos, afinal a ferrovia é indutora do desenvolvimento. O que significam os acidentes constantes e as denúncias sobre a ALL? É um sinal de decadência desse modelo privado?
A situação geral dos bens das ferrovias é a decadência do sistema, só a Agência Nacional de Transportes Terrestres [ANTT] não quer ver. As ações, tanto do Ministério Público Federal como da Polícia Federal, têm comprovado que o modelo de privatização implementado pelo BNDES, em 1996, foi um verdadeiro fiasco. Segundo dados da Confederação Nacional dos Transportes [CNT], a participação do modal ferroviário na matriz de transporte do Brasil deu marcha ré. Os fretes não baixaram [de preço] como previam os promotores da desestatização. Não houve modernização dos equipamentos de tração, muito pelo contrário, hoje a idade da frota é maior e o patrimônio está em ruínas.
“Não houve modernização dos equipamentos de tração, muito pelo contrário, hoje a idade da frota é maior e o patrimônio está em ruínas” Esse sucateamento foi patrocinado, na década de 1990, pelo BNDES. Quais foram os prejuízos que esse processo acarretou para a economia brasileira?
A premissa do BNDES dizia que não havia recursos públicos para alavancar o sistema ferroviário, com objetivo de mudar a matriz de transporte do país e baratear o custo dos fretes. Garantia que o setor privado tinha dinheiro para injetar o salto da modernização e ampliação da capacidade do sistema. Como esta fonte não jorrou, o banco estatal teve que aportar recursos públicos para alimentar as concessionárias, injetando bilhões em operações de aquisição de material ferroviário de resultados pífios. Para impedir o fiasco total do processo de desestatização, o Bndespar (carteira do BNDES acionária de várias empresas) acabou virando sócio da ALL e levou ainda os fundos de previdência de empresas públicas: Funcef, Prévi, Petros, Postalis, Sabesprevi, Forluz etc.
O modelo de modais ferroviário é uma alternativa de baixo consumo de energia e preservação do meio-ambiente, se comparado ao modelo de rodovias?
O serviço de transportes no Brasil é o responsável pela queima maior de combustíveis, motivo pelo qual interfere diretamente na busca de uma nova matriz energética para o país. E a nossa matriz de transporte concentra dois terços do volume total de cargas deslocadas por rodovias, que é o modal de maior impacto ambiental. Para transportar cada tonelada de carga por mil quilômetros, são consumidos, por hidrovia, cinco litros de combustíveis; por ferrovia, são dez litros; e por rodovia, 96 litros, ou seja, quase nove vezes por caminhão se comparado aos trens. Chamamos a atenção também para os custos socioambientais de transportes (inclui acidentes, poluição atmosférica e sonora, consumo de espaço e água). Para o transporte de 100 toneladas/quilômetro, por hidrovia, o custo é de 0,23 dólar; por ferro-
via, 0,74 dólar; e por rodovia, 3,20 dólares. Estes números mostram a opção errada ao se priorizar projetos rodoviários quando existem alternativas de soluções através de modais menos impactantes. Aqui no Paraná, enquanto devíamos estar construindo mil quilômetros de ferrovias e outros tantos de hidrovia, assim como estimulando a cabotagem (navegação realizada entre portos interiores), fala-se em investir mais de R$ 1 bilhão numa rodovia “Interportos”. Aliás, o título escolhido para a obra parece ter saído de algum gabinete parlamentar, pois é uma afronta à inteligência: a menor distância entre os portos é uma linha quase reta pelo mar e lá a aquavia já está pronta!
“Nossa matriz de transporte concentra dois terços do volume total de cargas deslocadas por rodovias, que é o modal de maior impacto ambiental” E qual o papel hoje das ferrovias dentro do atual sistema de transportes?
O Anuário Estatístico do Geipot [órgão extinto do Ministério dos Transportes] apontava, em 1994, mais de 20% das cargas deslocando-se sobre os trilhos. Já o boletim estatístico da Confederação Nacional dos Transportes, de 2009, mostra que o modal ferroviário ainda está patinando na ordem dos 20%. Podemos concluir então que estamos estagnados depois da privatização, apesar da farta propaganda institucional de avanços no segmento.
“Na prática, apesar de o BNDES já ter presenteado as concessionárias com bilhões de reais, o que se sente é que caminhamos para o fim da linha” O modelo de rodovias, de acordo com a sua exposição, parece estar defasado, do ponto de vista da estrutura das pontes e dos veículos que rodam hoje em dia.
Apesar do clamor e dos alertas dos especialistas em transportes, continuamos priorizando as rodovias, jogando sobre essas obras veículos cada vez maiores e mais pesados. Não se respeita as condições originais para as quais essas estradas foram projetadas, para veículos mais leves e curtos. Permitir tráfego de caminhões de até nove eixos, com 60 toneladas de cargas, é um imenso risco de comprometer pontes, viadutos e a pavimentação. Enfim, estamos mal de ferrovias e sobrecarregando nossas rodovias, arriscando, assim, num período não muito longínquo, um colapso no sistema de escoamento da produção brasileira. Na prática, apesar de o BNDES já ter presenteado as concessionárias com bilhões de reais, o que se sente é que caminhamos para o fim da linha. Na verdade, quem cresceu foi o porte dos caminhões que já chegaram a nove eixos para suprir a falta de trens. Mesmo assim faltam caminhões para suprir a falta de oferta de vagões. Com essa pressão, sobe o frete rodoviário e o frete ferroviário vem a reboque. Aí as concessionárias dos serviços ferroviários garantem margens maiores sem precisar investir em novas frotas.
Quem é? Paulo Sidnei Ferraz é engenheiro civil, diretor do Sindicato dos Engenheiros do Paraná (Senge-PR), especialista em transportes e aposentado da Rede Ferroviária Federal S/A (RFSSA), onde atuou por 26 anos.
Belo Monte O juiz Ronaldo Desterro, da 9ª Vara Federal de Belém, no Pará, cassou, dia 25 de fevereiro, a licença de instalação parcial do canteiro de obras da usina hidrelétrica de Belo Monte. O juiz considerou que o próprio Ibama, que autorizou a licença, não cumpriu as pré-condições estabelecidas para a obra. É claro que a disputa judicial terá novos lances, mas não deixa de ser uma vitória dos povos do Xingu contra a obra faraônica. Luta explosiva Brasileiros retirados de Benghazi, na Líbia, onde estavam trabalhando especialmente para empreiteiras de obras, disseram que a população líbia mudou rapidamente de postura: saiu de uma situação de aparente apatia para uma explosão de luta feroz contra o governo de Muammar Gaddafi. Foi assim que enfrentaram soldados armados, tanques de guerra e tomaram os quartéis. O espírito revolucionário voltou no século 21! Ouro negro Economistas de todas as tendências chegaram a uma posição de consenso: se as rebeliões populares nos países árabes continuarem interferindo nos preços internacionais do petróleo, e o barril, que dia 28 de fevereiro estava em 112 dólares, subir para um patamar próximo dos 150 dólares, a crise econômica na Europa e nos Estados Unidos vai aumentar a estagnação, causar recessão e mudar o panorama nos países em crescimento. O petróleo ainda é o rei das crises! Desaparecidos Apesar da pressão da direita contra a apuração da verdade dos crimes do Estado durante a ditadura militar (1964-1985), o Ministério Público Militar, do Rio de Janeiro, decidiu investigar os casos de aproximadamente 40 desaparecidos, cujos corpos não foram localizados até hoje. O entendimento do ministério é que esses casos não estão abrangidos pela Lei da Anistia e nem estão prescritos. É preciso saber o que aconteceu com essas pessoas. Salada cultural De acordo com o cineasta Silvio Tendler, diretor de Utopia e barbárie e de vários filmes documentários de sucesso, a ministra da Cultura, Ana de Hollanda, está tendo dificuldade de se entender com o setor cultural porque grupos de ativistas, alijados na mudança do governo, estão jogando cascas de banana no seu caminho. Ou seja, o tiroteio no setor não passa de “fogo amigo” dos que querem mais “poder” no Minc. Equívoco danoso Privatizada no governo FHC, a antiga Companhia Vale do Rio Doce, atualmente denominada apenas de Vale, obteve, em 2010, um lucro líquido de R$ 30 bilhões, conforme balanço divulgado agora. Se ainda fosse uma empresa estatal, somente esse lucro cobriria a maior parte do corte orçamentário que o governo Dilma Rousseff pretende fazer este mês, que deve afetar a educação, a ciência e outras áreas sociais. Crime bárbaro O promotor e defensor dos direitos humanos Sebastião Bezerra Silva, residente em Paraíso, no Tocantins, foi torturado e barbaramente assassino no último fim de semana de fevereiro. Seu corpo foi encontrado no domingo, dia 27, e levado para o IML de Gurupi. Ele atuou em vários casos de violação dos direitos humanos, inclusive praticados por policiais militares. A coordenação da Comissão Justiça e Paz do Brasil manifestou indignação.
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Leocadia Prestes, a mãe coragem Reprodução
HOMENAGEM Para o Dia Internacional da Mulher, trazemos o exemplo desta mulher que, aos 60 anos de idade, aderiu, conscientemente, às ideias marxistas
Solidariedade incondicional ao filho A grande maioria dos admiradores do Cavaleiro da Esperança abandonaria a casa de Leocadia Prestes
Lygia Prestes LEOCADIA FELIZARDO Prestes nasceu no dia 11 de maio de 1874 em Porto Alegre (RS). Filha de família de posses, educada segundo os moldes tradicionais da época, Leocadia falava vários idiomas, era pianista, estudou pintura, canto, declamação. No entanto, ela gostaria de ser útil à sociedade e, ainda adolescente, manifestou o desejo de ser professora pública, o que não pôde ser concretizado devido aos preconceitos da época. A política e os problemas sociais muito lhe interessavam, sendo leitora apaixonada dos jornais da Corte, fato inusitado entre as jovens do seu tempo. Em 1896, casou-se com o capitão Antônio Pereira Prestes, engenheiro militar, ex-aluno de Benjamim Constant na Escola Militar do Rio de Janeiro, que havia participado, ainda cadete, da proclamação da República. Homem de vasta cultura, muito contribuiu para que Leocadia ampliasse seus conhecimentos, desenvolvesse o interesse pela política e pelas questões sociais. A morte prematura do marido deixoua em situação muito precária. Na época, a pensão de viúva de capitão do Exército não era suficiente para o sustento dos filhos. Deu aulas de idiomas e de música, trabalhou de modista, foi balconista e costurou para o Arsenal de Marinha. Finalmente, em 1915, conseguiu ser nomeada professora da Escola Pública, cargo que exerceu até 1930. Trabalhava à noite, nos cursos destinados a comerciárias, operárias e domésticas. Pela primeira vez em sua vida, Leocadia pôde ter contato com as camadas mais pobres da sociedade e isso aguçou sua revolta contra as injustiças sociais. Na educação dos filhos, sua grande preocupação foi sempre a de incutir-lhes o amor ao trabalho e o sentimento do dever cívico. Procurou mostrar-lhes os aspectos negativos da vida, ensinando-os a enfrentar com altivez a violência e as arbitrariedades dos poderosos e a jamais se curvar ante as injustiças. A árdua luta pela sobrevivência não fez diminuir seu interesse pelo que ocorria
Leocadia Felizardo Prestes: coragem e confiança
na sociedade e no mundo. Mesmo nos momentos mais difíceis, em sua casa podia faltar pão, mas nunca faltou pelo menos um jornal diário, para acompanhar os acontecimentos políticos, que discutia e comentava com os filhos.
Sua casa tornou-se a Meca das famílias dos demais revolucionários, que a procuravam em busca de alento e consolo Incentivo à luta
Em 1922, quando seu filho Luiz Carlos Prestes, já oficial do Exército, começa a participar da preparação do primeiro levante tenentista, ela lhe daria todo o apoio, incentivando-o a continuar a luta após a derrota do movimento. Em outubro de 1924, com o levante de Santo Ângelo (RS), liderado por Luiz Carlos Prestes, tinha início a grande mar-
cha através do Brasil que duraria até fevereiro de 1927. Foram anos muito duros para as famílias dos participantes da Coluna Prestes. As únicas notícias que recebiam eram as fornecidas pelo governo, sempre as piores possíveis: a Coluna teria sido dizimada, seus chefes exterminados. Mais de uma vez os jornais do Rio abriram manchetes sensacionalistas anunciando a morte de Prestes e de seus companheiros. Leocadia, mesmo sabendo que a vida de Prestes corria perigo, nunca perdeu a coragem e a confiança no filho. Jamais alguém a viu chorar. Sua firmeza impressionava a todos que a conheciam. Em pouco tempo, sua casa tornou-se a Meca das famílias dos demais revolucionários, que a procuravam em busca de alento e consolo. No início de 1927, com a suspensão da censura à imprensa, os feitos heroicos da Coluna tornaram-se conhecidos da opinião pública, comovendo o país. Luiz Carlos Prestes passou a ser considerado herói nacional – o Cavaleiro da Esperança – e Leocadia Prestes a Mãe de todos os brasileiros. Sua modesta casa de subúrbio fervilhava de amigos, admiradores e políticos de todos os matizes.
Adesão consciente às ideias marxistas Reprodução
Iniciava-se, então, para Leocadia, um período de grandes provações Em 1931, Luiz Carlos Prestes é convidado pelo governo soviético para trabalhar como engenheiro na URSS. Sua família não vacilaria em acompanhá-lo. Às pessoas que se surpreendiam com tal decisão, Leocadia dizia: “se meu filho seguiu este caminho, este é o caminho certo”. Contudo, seu primeiro contato com a sociedade socialista não seria fácil. Arrasada por duas guerras, a União Soviética atravessava enormes dificuldades. Faltava tudo. Para uma senhora de origem burguesa, a realidade soviética suscitava muitas dúvidas. Seu espírito de justiça ajudou-a, porém, a superar as incompreensões iniciais. Pouco a pouco, o entusiasmo do povo soviético a contagiaria. Aos 60 anos de idade, Leocadia aderia, conscientemente, às ideias marxistas. Em 1934, Luiz Carlos Prestes era aceito no Partido Comunista. No final do ano, ele partiria para o Brasil, para a luta clandestina contra a ameaça fascista. Iniciava-se, então, para Leocadia, um período de grandes provações. Se, por um lado, ela apoiava integralmente o caminho seguido pelo filho, por outro, só a ideia de perdê-lo a fazia sofrer intensamente. Leocadia sabia que se o filho fosse preso, provavelmente seria morto. Defesa dos presos políticos
Em 5 de março de 1936, Luiz Carlos Prestes era preso no Rio de Janeiro, junto com sua companheira Olga Benário. Graças à coragem de Olga, que o protegeu com seu corpo, não conseguiram matá-lo no ato da prisão. Mas sua vida corria perigo iminente. Leocadia aceita encabeçar campanha internacional em defesa da vida de Prestes e de todos os presos políticos no Brasil. Era sua primeira missão política. Tarefa difícil para uma senhora que havia sido, até então, apenas mãe de fa-
Em 1930, os “tenentes”, antigos companheiros de Prestes, em sua grande maioria, aderiram ao movimento armado que conduziu Getúlio Vargas ao poder. O Cavaleiro da Esperança, convidado, recusou-se a participar, considerando que se tratava de uma luta entre grupos oligárquicos, que não traria solução para os graves problemas do país. Luiz Carlos Prestes, em maio daquele ano, lançava manifesto pregando uma revolução popular, agrária e anti-imperialista, conforme a orientação do Partido Comunista. A repercussão desse documento na imprensa brasileira e junto à opinião pública seria de total repúdio às suas ideias “subversivas”. A grande maioria dos admiradores do Cavaleiro da Esperança abandonaria a casa de Leocadia Prestes. Em público, viravam-lhe as costas. Ela reagia com altivez, reiterando a sua solidariedade ao filho. Meses mais tarde, convencida de que ele não poderia retornar ao Brasil tão cedo, licenciou-se do emprego, liquidou a casa e, acompanhada das quatro filhas, partiu para a Argentina, para ficar ao lado do filho. Iniciava-se, então, um longo exílio do qual Leocadia jamais retornaria.
A grande maioria dos admiradores do Cavaleiro da Esperança abandonaria a casa de Leocadia Prestes Em Buenos Aires, onde a família se estabeleceu, a vida seria extremamente difícil. Com a crise dos anos de 1930, tornara-se impossível conseguir trabalho. Poucos dias após a chegada da família, Prestes foi preso e obrigado a asilar-se em Montevidéu. Com isso, perdeu o emprego. Leocadia permaneceu em Buenos Aires, com as filhas, lutando para sobreviverem. Nesse período, ela e as filhas se aproximam das ideias socialistas. (LP)
Enfermidade e morte no México Leocadia Prestes não teve a alegria de assistir à vitória final dos povos sobre o nazismo
Família sempre acompanhou Prestes
mília e professora de subúrbio. Acompanhada da filha Lygia, ainda em março de 1936, partiria de Moscou, dando início à campanha.
Leocadia aceita encabeçar campanha internacional em defesa da vida de Prestes e de todos os presos políticos no Brasil Eram comícios, conferências de imprensa, visitas a jornais e sindicatos, a partidos políticos, parlamentos ou a chefes de governos. Viagens frequentes e demoradas. Um trabalho extenuante para uma pessoa de sua idade. Com a filha, Leocadia percorreu os principais países europeus, denunciando o terror desencadeado no Brasil, o perigo de morte para os presos políticos, pedindo solidariedade e apoio para sua luta. Em pouco tempo, a campanha se estendeu a outros continentes. Comitês de defe-
sa de Prestes foram criados nos Estados Unidos, na América Latina, na Austrália e na Nova Zelândia. Do mundo inteiro, o governo brasileiro era bombardeado com milhares de cartas, telegramas de protesto, manifestos de toda a sorte, exigindo a libertação de Prestes e de seus companheiros ou, ao menos, o respeito às suas vidas. Em fins de 1936, com a extradição de Olga Benário para a Alemanha nazista, a campanha se duplica. Surge um movimento paralelo, destinado a salvar a vida de Olga e do bebê que estava para nascer. Leocadia e sua filha vão a Genebra pedir a ajuda da Sociedade das Nações e da Cruz Vermelha Internacional. Graças às gestões, foi possível receber, já em 1937, algumas notícias de Olga e de Anita Leocadia, nascida na prisão em Berlim. Três vezes Leocadia Prestes foi com sua filha à Alemanha, enfrentar a Gestapo e exigir a libertação de Olga e da criança. Delegações de vários países também foram a Berlim com o mesmo objetivo. Malgrado todos os esforços, não foi possível salvar Olga. Apenas a libertação da pequena Anita Leocadia. Olga seria enviada a um campo de concentração e assassinada em abril de 1942. (LP)
Ante a iminência da guerra, Leocadia vê-se forçada a deixar a Europa. Com a filha e a neta, parte para o México, cujo presidente concedera-lhes asilo. No México, a campanha prosseguiria, já então limitada às Américas, pois o resto do mundo estava conflagrado pela guerra, situação que levaria Leocadia a perder o contato com Olga e com as outras filhas que haviam ficado em Moscou. Além da sorte do filho, na prisão, a preocupava a situação dos seus outros entes queridos, ameaçados pelas bombas nazistas. Mas a coragem e a fé na vitória final não a abandonariam jamais. Quando as hordas nazistas avançavam pela União Soviética, ela costumava dizer aos amigos: “Vocês não conhecem aquele povo! Quem passou tantas privações e sofrimentos para construir o socialismo em seu país não vai fraquejar agora. Eles são invencíveis!” Leocadia Prestes não teve a alegria de assistir à vitória final dos povos sobre o nazismo nem à libertação dos presos políticos, no Brasil, em 1945. Após longa enfermidade, veio a falecer no México, no dia 14 de junho de 1943. Sua morte comoveu o povo mexicano, que a admirava muito. Ao velório e ao enterro compareceram milhares de pessoas, inclusive numerosos estrangeiros, fugidos do nazismo e também asilados no México. À beira do seu túmulo, Pablo Neruda leu o poema “Dura elegia”, escrito especialmente para aquele momento, no qual ele definiria a importância da vida de Leocadia Prestes com as palavras: “Señora, hiciste grande, más grande, a nuestra América.” (Resumo deste texto: Anita Leocadia Prestes) (LP)
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cultura
Pedro e os lobos:
militar, guerrilheiro, militar ENTREVISTA Livro conta a trajetória de um guerrilheiro urbano contra o regime militar
No que diz respeito à revelação dos crimes do Estado que aconteceram na ditadura, como você acha que o livro pode contribuir com a memória desse período?
O livro é escrito em uma linguagem jornalística e meio estudantil. O públicoalvo é uma molecada na faixa dos 30, esse pessoal que não viveu esse período ou que, como eu, ficou nas trevas do período, sob a censura que eu cresci, não podendo falar. Acho que essa moçada tem muita carência. Tanto que agora na campanha da Dilma aconteceu uma coisa interessante. Na posse, ela convidou excompanheiros de cadeia e vi vários comentários de jovens dizendo que “se os caras foram presos é porque têm culpa”. Ou “por que ela está convidando ex-presidiários para participar da posse?”. “Se os caras foram presos é porque fizeram alguma coisa”. Aí você vê o grau de informação da juventude brasileira sobre esse período. E fizeram uma campanha incendiosa contra a Dilma, vinculando-a à guerrilha como se ela fosse assassina. Divulgaram na internet denúncias de que ela tinha assaltado bancos e participado de ações que ela não participou, que na verdade foi o Pedro e os companheiros dele que fizeram. Então, acho que o livro vem para ajudar a esclarecer essa falta de memória mesmo. Acho que faltava um livro com linguagem acessível para tratar desse assunto.
Michelle Amaral da Redação
Brasil de Fato – Como surgiu a ideia de contar a história da ditadura através da vida de Pedro Lobo? Como foi a escolha da personagem?
João Roberto Laque – Eu fui criado durante a ditadura, tenho 52 anos. Era muito novo e, por causa da ditadura, a gente não sabia nada do período. Quando entrei na universidade, me politizei. Em 1982, muito por acaso, encontrei o Pedro Lobo no escritório do [advogado] Eduardo Greenghalgh e do Hélio Flávio, no antigo prédio em que o PT foi fundado. Ele me contou em meia hora sua história da vida e eu achei fantástica. Falei: “Nossa! A história desse cara dá um livro”. Um cara que é sargento da Força Pública, vai para a guerrilha, é banido do Brasil e depois volta reintegrado à Força Pública de novo, como se nada tivesse acontecido. Ele está vivo, tem 80 anos hoje. A história dele me fascinou. Eu já era fascinado pela luta armada e encontrei o Pedro, que é um personagem único na história. Propus a ele o livro e ele não topou. Ele falou: “Não, outros companheiros já escreveram, deixa para lá”. Só 12 anos depois fui reencontrá-lo, ainda com a história quente na cabeça, e ele topou contar sua vida para eu escrever o livro.
“Então, logo o Pedro se torna um comunista. Ele vai sendo politizado dentro do quartel” O Pedro Lobo optou pela resistência à ditadura, pela luta armada. O que você acredita que o motivou a seguir por esse caminho?
O Pedro, você vê no começo do livro, passa por uma série de situações: vem de uma família paupérrima. Aos 18 anos, quase vira escravo em uma plantação de banana e vem para São Paulo trabalhar de servente de pedreiro. No decorrer da vida, vai vendo todas as contradições existentes entre quem tem o dinheiro e quem precisa viver da miséria dos salários da época. E é o contexto da guerra fria repercutindo aqui no Bra-
Gama
PEDRO LOBO nasceu em Natividade da Serra, interior de São Paulo, em 1931. Quando tinha 18 anos, decidiu tentar chegar ao Mato Grosso, mas acabou se instalando na capital paulista, onde trabalhou como servente de pedreiro e torneiro mecânico até 1955, ano em que ingressou na Polícia Militar. Dentro do quartel, o ex-pedreiro aproximou-se das ideias marxistas e filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro e, em 1964, foi expulso da corporação por meio do Ato Institucional I. Na década de 1960, Lobo participou de expropriações a bancos, ações políticas na capital paulista que visavam desestabilizar o governo civil-militar e foi um dos fundadores da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Em 1970, Lobo, ao lado de outros companheiros, foi banido do país. O militante passou pela Argélia, Cuba, Chile e Argentina até se instalar na Alemanha Oriental. Em 1980, beneficiado pela Anistia, ele retornou ao Brasil. E, no dia seguinte à sua chegada ao país, decidiu se apresentar ao Departamento Pessoal da Força Pública e, para sua surpresa, foi reintegrado, 16 anos após ter sido expulso da corporação. Narrando as aventuras e desventuras de um militar que se torna guerrilheiro e, depois da ditadura civil-militar, volta a ser militar, o jornalista João Roberto Laque retrata em Pedro e os lobos os anos de chumbo da história brasileira. O livro, lançado pela editora Ava Editorial, é resultado de sete anos de trabalho. Entre depoimentos e pesquisas no Arquivo Público do Estado de São Paulo, onde existem documentos do Departamento de Ordem e Política Social (Dops), e no Arquivo Edgard Leuenroth, em Campinas, onde está o arquivo do Supremo Tribunal Militar, o autor constrói de forma detalhada o período. Em entrevista ao Brasil de Fato, Laque fala sobre o livro, a personagem e seu envolvimento com ambos.
“São pessoas que trazem uma grande mágoa, uma marca muito profunda da tortura e do período, e não falam” Em países da América Latina, como Argentina e Chile, os torturadores têm sido levados ao banco dos réus e condenados. Nesse cenário, como você avalia a conduta do Brasil em relação a seus torturadores?
O militar que, por um ideal, transformou-se em guerrilheiro
sil. Então, logo o Pedro se torna um comunista. Ele vai sendo politizado dentro do quartel. O Partido Comunista tinha um trabalho muito forte de politização dentro dos quartéis. Então, o Pedro acaba sendo convertido ao comunismo dentro do quartel da Força Pública. E aí ele vai trabalhar com o Prestes e se torna um comunista de carteirinha. Só por volta de 1964 é que ele é expulso da polícia, exonerado sem direito nenhum pelo AI 1, e não vê outra saída. A saída é ir para o pau mesmo. Não tinham outras saídas, os amigos dele sendo presos e torturados, estavam morrendo. Ir para a luta armada era o norte que ele tinha. Quanto tempo durou o trabalho de produção do livro?
O livro começou como uma biografia, mas hoje não é mais. Hoje é um livro histórico que conta o período, a partir da ótica da guerrilha. Por cerca de três anos entrevistei o Pedro, fiz quinze entrevistas com ele, que mora em São José. Quando fechei o texto todo, vi que seria só mais uma biografia do Pedro Lobo. E, como tinha dado aula e os alunos de segundo grau tinham muita carência de informação sobre o período, resolvi usar a biografia que tinha como um fio condutor para contar a história, que ainda está sendo escrita e é uma coisa que ainda está quente, está fervilhando nas mãos de quem trabalha com ela. Nos dias atuais, temos ex-guerrilheiros aparecendo, ex-guerrilheira na presidência, tem ex-guerrilheiro contando agora a sua história, os cadáveres não foram encontrados ainda. Então, é uma história que ferve. Você vai escrevendo e, na medida em que escreve, tem que ir reescrevendo, porque vão surgindo novidades, vão surgindo revelações novas.
Como foi o trabalho de reunião dos dados para compor o livro?
Pois é, complicado. Na primeira fase, quando o livro seria só a biografia do Pedro, foi de entrevistas só com ele. Depois, seguidas entrevistas com companheiros dele. Alguns não falam, tive a maior dificuldade, viajei para o Rio Grande do
Sul para entrevistar um ex-companheiro que não falou. Um deles, que mora em Curitiba, mudou de telefone para não falar comigo. Tem um outro grande companheiro do Pedro, aqui em São Paulo, que não quis falar. São pessoas que trazem uma grande mágoa, uma marca muito profunda da tortura e do período, e não falam. Mas encontrei os que falavam, aí fui levantando histórias orais, que não haviam [sido registradas], porque o livro traz histórias de operações fracassadas que a historiografia oficial não aborda. Então, esse molho [de informações] tive que arrancar das pessoas que se dispuseram a falar. Contei com a muita boa vontade do ex-sargento Darci Rodrigues, companheiro do [Carlos] Lamarca, do José Nóbrega e de outros, como a Dulce Maia e outros companheiros do Pedro. Fiz pesquisa no arquivo do Estado, que tem muita coisa no arquivo do Dops, o inquérito do Pedro e tudo. E depois fiz mais pesquisa em Campinas, no [Centro de Pesquisa] Edgard Leuenroth, no arquivo do Supremo Tribunal Militar. E fui para o Rio [de Janeiro], para Belo Horizonte e Brasília. Foi um trabalho que durou sete anos no total.
“Nos dias atuais, temos ex-guerrilheiros aparecendo, ex-guerrilheira na presidência, tem ex-guerrilheiro contando agora a sua história” O livro traz uma riqueza de detalhes das ações, isso foi obtido através dos depoimentos?
Não. Uma parte apurei nos jornais do Arquivo do Estado. Lá eles digitalizaram o [jornal] Última Hora do Rio de Janeiro, tem todo o acervo. Passei meses revirando os jornais da hemeroteca do Arquivo do Estado para pegar os detalhes das ações e lendo os inquéritos. Li muitos inquéritos, alguns de cinco mil, três mil páginas. E biografias, também li mais de 60 livros.
É péssima, porque o Estado não pode anistiar a si mesmo. Quer dizer, os militares não podiam se autoanistiar. Anistia pressupõe perdão, você só pode perdoar um outro, não se autoperdoar. E como o Pedro mesmo diz, eles [os militantes] não torturaram ninguém, tudo que fizeram foi assumido depois, ou na tortura ou de outra forma. E a cara deles está aí, dizem quem são, e foram anistiados. Agora, os torturadores não mostraram a cara, a gente não sabe quem foram. A tortura é um crime de lesa-humanidade, é um crime de guerra cruel. Você não pode, com a desculpa de que você precisa passar um pano na história, deixar de condenar pessoas que cometeram crimes universais, crimes atrozes. E o Estado não tem o direito de ele mesmo se anistiar, isso é uma questão jurídica complicada.
“‘Se os caras foram presos é porque fizeram alguma coisa’. Aí você vê o grau de informação da juventude brasileira sobre esse período” Recentemente o Brasil foi condenado na Corte da OEA pelo desaparecimento de guerrilheiros do Araguaia. No entanto, o ministro Nelson Jobim disse que a decisão não afeta o Brasil. Tal postura representa um atraso do Brasil na busca pela justiça e memória?
Claro. Eu acho que isso é ser conivente com crime de lesa-humanidade. O Brasil está sendo conivente com uma “meia dúzia”, uma minoria, que barbarizou, que torturou em nome da lei, em nome do Estado, em nome da ordem, mas a serviço de uma ditadura. Torturou, barbarizou quem estava contra a ditadura, os inimigos não eram os guerrilheiros. O inimigo era o Estado militar que tomou o poder, derrubou um presidente legitimamente eleito e não elegeu outro. Chegou ao poder e ficou no poder. Esse era o inimigo da pátria. E esse inimigo da pátria se autoanistiou, quer dizer, esse é um negócio que, para mim, não tem a menor lógica.
<QUEM É> João Roberto Laque é jornalista e historiador. Formou-se pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP).
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O controverso Muamar Kadafi Reprodução
LÍBIA Com posições anti-imperialistas importantes no século 20, presidente tem fim de carreira marcado por corrupção e personalismo Renato Godoy de Toledo da Redação O PRESIDENTE da Líbia, Muamar Kadafi, vive seus dias de Muhammed AlSahaf, ex-ministro da Informação do regime de Saddam Hussein no Iraque. Enquanto as tropas dos EUA invadiam o país e esmagavam as forças pró-Hussein em 2003, Sahat convocava diariamente a imprensa para informá-la acerca da iminente vitória militar do exército iraquiano. Kadafi parece querer repetir o fim tragicômico de Sahat – que depois tornouse um informante dos EUA. No poder desde 1969, o clã dos Kadafi parece ser o único reduto líbio a acreditar na continuidade do governo. Até o fechamento desta edição, o presidente permanecia em seu posto, mas com todo o país controlado pelas forças de oposição, tendo apenas a capital Trípoli sob seu comando.
Com a chegada de Kadafi ao poder, a Líbia nacionalizou o petróleo, empresas estrangeiras e setores estratégicos da produção Ao contrário do que ocorreu nos recentes levantes egípcios e tunisianos, o governo dos EUA prontamente demonstrou sua solidariedade à oposição líbia. Isso porque Kadafi, apesar de seu regime violento e corrupto, tem posições historicamente ligadas ao anti-imperialismo e à causa palestina na região. Oriundo de uma tribo de beduínos nômades, o atual presidente teve sua liderança forjada na luta contra o rei Idris, que impunha um regime monárquico baseado na miséria da população e na repressão aos movimentos sociais. Com a chegada de Kadafi ao poder, a Líbia nacionalizou o petróleo, empresas estrangeiras e setores estratégicos da produção. As medidas passaram surtir efeito, melhorando o nível de vida da população líbia, que passou a apoiar massivamente o novo governante. No plano internacional, a Líbia integrou-se ao grupo dos países não alinhados. Kadafi passou a centralizar o poder em sua figura e criou um modelo de socialismo baseado em suas teorias elencadas no Livro verde, cor que tomou toda a bandeira do país após a revolução. O professor de geopolítica da Fundação Santo André, Marcelo Buzetto, analisa o modelo político defendido por Ka-
O presidente líbio Muamar Kadafi
dafi no contexto do “nasserismo”, ideário inspirado na atuação do líder egípcio Gamal Abdel Nasser fundador de uma doutrina nacionalista árabe chamada de pan-arabismo. “A Líbia fez um verdadeiro esforço para construir um modelo próprio de socialismo africano, combinando algumas iniciativas com conteúdo e caráter democrático, popular e anti-imperialista, com ideias e princípios do nacionalismo árabe laico, principalmente do chamado ‘nasserismo’. Houve um esforço em construir uma estrutura de poder popular, através da participação ativa e organizada das massas nos comitês revolucionários e em vários outros organismos de poder nascidos de uma tentativa de auto-organização do povo”, analisa Buzetto.
“Dizer que a derrubada de Kadafi vai beneficiar os EUA na região não significa defender o regime do ditador” No entanto, o analista afirma que o processo não está mais em curso. “Creio que hoje temos a demonstração de que tal processo que despertou curiosidade e interesse pelas potencialidades e novidades que apresentava não está mais em desenvolvimento na Líbia”. Buzetto comenta que o conceito de jamahi-
riya (“Estado das massas”), criado por Kadafi, hoje é mais “um instrumento de propaganda e agitação do que uma realidade concreta”. Enfrentamento aos EUA
Ao engrossar o grupo dos países não alinhados, Kadafi tornou-se um expoente antiEUA no mundo. O auge desse enfrentamento deu-se nos anos 1980. Em 1986, os EUA realizaram um ataque aéreo a Trípoli e Benghazi, deixando 41 mortos, entre os quais uma filha adotiva de Kadafi. Dois anos depois, em 1988, o governo líbio participou de um atentado contra um avião da companhia estadounidense Pan Am, na Escócia, vitimando 270 pessoas. Começaram as sanções internacionais ao país africano, que passou a ficar mais isolado e apresentar recuos na política externa anti-imperialista. “Inicialmente, Kadafi proclamava-se solidário à causa palestina, depois deste atentado, começou a normalizar as relações com o ocidente. Foi um processo parecido com o do Egito, mas lá houve troca de dirigentes, enquanto na Líbia, manteve-se o mesmo. Houve uma abertura econômica e política que culminou no reconhecimento do Estado de Israel. O governo foi tornando-se uma espécie de ditadura familiar com um grau elevado de corrupção e apropriação privada da renda nacional. Assim, deu-se início a uma redistribuição regressiva da ren-
da, com uma pequena camada dirigente sendo beneficiada. Com o impacto da crise mundial, agora, o desmprego atingiu a 30% no país”, aponta o historiador da USP, Oswaldo Coggiola. Mesmo no setor mais rentável da Líbia, o petrolífero, foram feitas concessões a transnacionais no último período. A gigante British Petroleum opera no país e tem boas relações com o governo Kadafi. O governo líbio diminui o tom das suas críticas ao ocidente e, na ONU, assumiu a culpa pelo atentado contra o avião da Pan Am, pedindo desculpas. Em 2009, em um ato simbólico, Kadafi cumprimentou o presidente dos EUA Barack Obama na sede da ONU. Mesmo assim, a ONU afirma que pretende julgar Kadafi no Tribunal Penal Internacional após o desfecho ainda incerto dos acontecimentos na Líbia. Vitória imperialista
Para o historiador Oswaldo Coggiola, o desfecho para o levante líbio ainda é nebuloso. Porém fica claro que o imperialismo e os EUA tendem a lucrar com a situação no país. “Dizer que a derrubada de Kadafi vai beneficiar os EUA na região não significa defender o regime do ditador. Infelizmente, setores da esquerda mundial e brasileira têm defendido Kadafi. Defender alguém que usa armas de guerra contra sua própria população é um crime”, afirma.
País exerceu papel de dirigente do mundo árabe Reprodução
Kadafi protagonizou momentos de discordância com Arafat
A imprensa internacional tem qualificado Kadafi como um líder decadente com mania de grandeza e hábitos excêntricos. Algumas de suas atitudes, como andar cercado de seguranças femininas e de enfermeiras ucranianas, são apontadas como evidência de uma mente insana.
da Redação Desde que tomou o poder em 1969, o presidente líbio Muamar Kadafi teve um papel preponderante na organização dos países não alinhados, da África e do chamado Terceiro Mundo. Até meados dos anos 1980, a Líbia financiava e apoiava logisticamente movimentos de libertação nacional em países dominados por ditaduras ou pelo imperialismo. Kadafi desenvolveu uma relação estreita com o bloco socialista. A ruína deste, aliás, fez com que o dirigente líbio passasse a buscar um reposicionamento na geopolítica internacional, segundo a análise do professor de geopo-
A imprensa internacional tem qualificado Kadafi como um líder decadente com mania de grandeza e hábitos excêntricos lítica da Fundação Santo André, Marcelo Buzetto. “A impressão que temos é que desde os anos 1990 o governo líbio vem procurando se adaptar à nova situação geopolítica internacional, pois o fim da URSS e do Bloco Socialista enfraquece os movimentos anti-imperia-
Loucura?
“Podemos concordar ou não com ele, mas qualificá-lo como louco é rebaixar o nível do debate”
O líder palestino Yasser Arafat, morto em 2004
listas e de libertação nacional em todo o mundo. Novas contradições desenvolvem-se, e muitos partidos e governos que, na África, sempre se identificaram com o socialismo, ou iniciam ou intensificam um processo de decadência, degeneração, cooptação e abandono/distanciamento de seus princípios originários, tornando-se cada vez mais pragmáticos, fazendo enormes concessões do ponto de vista teórico, político e estratégico. Essa nova situação internacional afeta diretamente o continente africano, espaço privilegiado de atuação de Kadafi”, aponta. O presidente líbio protagonizou di-
versos momentos de divergência com a política adotada por Yasser Arafat, chegando até a romper com a Autoridade Nacional Palestina em 1994, em função das discordâncias relacionadas aos acordos com Israel. A Líbia suspende a permissão de trabalho de vários palestinos em seu território. “A derrota do povo palestino nas negociações gerou mais divisão no interior da resistência palestina e do próprio mundo árabe, com governos que se declaravam contra Israel firmando acordos com este país, seguindo o caminho da direção da OLP, controlada majoritariamente pela Fatah [partido de Arafat]”, diz.
De acordo com Marcelo Buzetto, esse tipo de análise recorrente serve apenas para rebaixar o debate sobre o que de fato vem ocorrendo na Líbia e nos países árabes em efervescência. “Kadafi vem cometendo inúmeros erros e injustiças, mas isso não se deve à loucura. Essa tentativa de desqualificar os adversários e inimigos é comum entre a grande mídia pró-imperialista e pró-sionista. A questão é política. Os psicólogos e psiquiatras podem até fazer a análise de seu comportamento, pois ele não é tão comum e previsível como muitos líderes de países ocidentais, mas o que faz me parece que é fruto de uma reflexão política, de princípios e ideias muito bem elaboradas, que o mantiveram no governo e controlando parte significativa do poder na Líbia por 41 anos. Podemos concordar ou não com ele, mas qualificá-lo como louco é rebaixar o nível do debate, desqualificar o debate e afastar a possibilidade de uma análise crítica do processo e do próprio Kadafi”, avalia. (RGT)
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áfrica
Negociação com o novo governo provisório ou guerra civil na Líbia? ANÁLISE Oposição tenta garantir comando do país, enquanto receitas de petróleo e gás alimentam movimentos separatistas Reprodução
Achille Lollo PARA TORNAR mais verdadeiros os combates na capital da Líbia, Trípoli, e mais sanguinária a repressão dos soldados fieis a Kadafi, no dia 20 de fevereiro, as televisões árabes Al Arabiya e Al Jazeera veicularam ao mundo inteiro duas informações: as valas comuns na praia de Trípoli e os bombardeios aéreos sobre as casas do bairro de Falashoun. Desta forma, no dia 23, todos os governos ocidentais condenaram o regime do presidente Kadafi, exigindo o fim dos combates e a entrega dos poderes aos comitês de insurretos de Benghazi e Trípoli. No dia 25, os teóricos dos “falcões do Pentágono”, Robert Kagan e, sobretudo, Paul Wolfowitz, sugeriram ao presidente Barack Obama que os EUA deviam aproveitar este clima de insegurança para promover com a Otan uma intervenção militar na Líbia, para impor uma zona de exclusão aérea (no-fly zone) no país, como aconteceu no norte e no sul do Iraque, para evitar que a aviação de Kadafi atacasse os insurgentes, inclusive com as armas químicas. Assim, enquanto a Força Aérea dos EUA garante o no-fly zone, as tropas da Otan deveriam realizar uma missão de ajuda humanitária em Benghazi e nos “territórios libertados”. Isso tudo, segundo Wolfowitz, vai permitir aos EUA redefinir a geopolítica na região do Magreb e, consequentemente, recolocar o Mar Mediterrâneo no epicentro de sua geoestratégia, que, depois da queda de Mubarak, no Egito, e de Ben Ali, na Tunísia, precisa, urgentemente, ser reformulada. O único problema para Obama, salienta Wolfowitz, é obter o voto de confiança para a intervenção por parte da maioria dos parlamentares do Partido Democrata. Por isso, no dia 26, Barack Obama optou por uma solução política, assinando, primeiro, o decreto com sanções unilaterais contra a Líbia e, depois, na presença dos aliados da Otan, declarou que “Kadafi deve ir embora, agora sua legitimidade está a zero”. Neste clima, a agencia estadunidense AP e a britânica BBC – sem citar as fontes – continuam enviando ao ar notícias que falam de inúmeros combates com os insurgentes que estariam derrotando as tropas fiéis ao presidente Kadafi, em Misurata e em Zawiyah, que está a apenas 50 quilômetros da capital.
Centenas de refugiados egípcios deixam a Líbia
No dia 27, operadores de TVs líbias e turcas, fotógrafos da Reuters e oito jornalistas italianos que haviam chegado há dois dias, foram a Zawiyah e não encontraram nenhum sinal de bombardeios ou tiroteios. Os mesmos relataram, da capital Trípoli, onde, dias 26 e 27, não houve combate, a não ser alguns tiroteios noturnos. É claro que a calma aparente de sábado e domingo demonstra que, nos próximos dias, certamente algo vai acontecer. Inclusive porque, desde a segunda-feira, dia 28, existem dois governos na Líbia: o de Kadafi, sediado em Trípoli e que admite controlar somente as regiões da parte ocidental (Tripolitania e Fezzan), e o governo provisório de Mustafá Mohamed Abud Ajleil, que confirmou manter o controle sobre a parte oriental da Líbia, em grande parte representada pela Cirenaica até a fronteira com o Egito.Na madrugada do dia 28, a TV Al Arabiya informou que, para dar mais representatividade política ao governo e, sobretudo, recompor a unidade das tribos que se rebelaram contra Kadafi, foi convidado ao governo provisório Abeb Al Fatah Yunis, que havia devolvido o cargo de ministro do interior e abandonado Kadafi. A presença do ex-ministro Yunis é muito importante porque, além de tentar sistematizar a organização do novo governo, pondo a funcionar os serviços públicos, ele vai tentar controlar os bandos armados dos diferentes comitês que surgiram em Benghazi e, principalmente, procurar fazer esquecer os projetos separatistas liderados pelos componentes tribais que pretendem criar uma “República da Cirenaica”, enquanto os integralistas (Mártires do Islã e Grupo Islâmico Militante) sonham com a criação na Cirenaica de dois emirados, o de Al Baida e o de Derna. Um separatismo tribal que – sustentado, também, por alguns grupos islâmicos radicais – está em crescimento por alimentar nas pessoas o sonho de controlar as receitas do petróleo e do gás. Se esse processo separatista não for corrigido pelo novo governo provisório, na Cirenaica podem surgir dois ou três novos Estados tribais que mantém estreitas relações com os grupos fundamentalistas, tal como aconteceu no Afeganistão e na Somália. Achille Lollo, jornalista italiano e editor do programa de TV Quadrante Informativo, escreve de Roma (Itália).
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Os grupos de poder
Pessoas acompanham funeral de homem morto durante protestos na Líbia
Luta pelo poder A diferença entre Tunísia e Egito, onde a revolta partiu dos operários e dos jovens desempregados que reivindicavam pão e trabalho, e a Líbia são as tribos que se sublevaram para exigir uma divisão dos poderes mais equitativa, do momento que, nestes 42 anos, Kadafi havia desenhado a estrutura piramidal dos poderes do Estado segundo a importância e o grau de fidelidade dos 100 grupos tribais, que recebiam benefícios ou punições. Foi assim que o projeto político de Kadafi, depois do resfriamento da lógica revolucionaria da Grande Jamahiriya Árabe e Socialista e a gradual inserção no mundo globalizado, ficou, na prática, centralizado nas mãos dos seus familiares e das famílias dos 26 “líderes” políticos, militares e tribais que passaram a controlar o Estado com a criação de uma verdadeira “burguesia conservadora”. Uma burguesia formada com base nas divisões tribais, cuja atuação na sociedade Líbia se tornou cada vez mais contestada ao ponto de reduzir os princípios da democracia direta da Jamahiriya, enunciada no Livro verde de Kadafi, uma mera retórica. Portanto quando, em janeiro, explodem as revoltas nos outros países do Magreb, na Líbia houve apenas pequenas manifes-
tações em Trípoli, promovidas pelos blogueiros ligados aos grupos radicais islâmicos e a Frente de Salvação Patriótica da Líbia, uma organização de resistência no exílio, com sede em Roma e representações em quase todas as capitais europeias, graças ao financiamento oculto da CIA, através da Freedom House. A falta de diálogo e a imposição da linha dura por parte de Kadafi fizeram com que os chefes de mais de cinquenta tribos da Cirenaica proclamassem um dia de protesto em Benghazi e Tobruk contra o centralismo e a corrupção. Manifestações que se transformaram em autêntica sublevação insurrecional quando policiais e unidades do exército começaram a atirar contra os manifestantes para impedir o saque dos palácios do governo e da administração pública. O indiscriminado número de mortos e feridos legitimou a revolta que se generalizou em todo o território da Cirenaica e em algumas cidades da Tripolitania, onde, segundo ONGs, muitos trabalhadores imigrados negros, originários do Tchad e do Niger, foram executados por serem considerados, erroneamente, “milicianos” das unidades especiais da guarda presidencial. (AL)
O grande problema para Barack Obama e seus aliados da Otan é saber quem o Ocidente deve apoiar para evitar a fragmentação territorial da Líbia, que é um grande exportador petrolífero mundial, com uma receita de 24 bilhões de dólares. De fato, os EUA não podem contar com os generais do exército que – diferentemente do que aconteceu no Egito e na Tunísia – estão praticamente divididos e isso inviabiliza a implementação de uma transição pacífica a partir de um golpe de Estado, tal como foi no Egito. Além disso, o exército ainda é coordenado por um filho de Kadafi, Moutassim, que é chefe do Conselho Nacional para a Segurança, enquanto outro filho, Khamis, é o comandante da principal brigada motorizada formada por soldados profissionais.
Os Comitês Revolucionários, fiéis a Kadafi, não se dissolveram e permanecem mobilizados De fato, os 150 mil homens do exército líbio foram divididos em unidades com militares profissionais e outras com soldados. Além disso, existe outra divisão com unidades formadas por militares originários das tribos conflituosas com Kadafi e outras com militares cujas tribos são aliadas de Kadafi. Por exemplo, na Forca Aérea, há somente militares profissionais originários das tribos que apoiam Kadafi. Por isso, quando as tribos da Cirenaica se rebelaram, as unidades do exército com militares originários daquelas tribos logo se juntaram aos insurretos, sem porém provocar a queda da máquina militar de Kadafi no momento que as principais unidades estão centralizadas na Tripolitania e com militares tribalmente ligados ao regime. Em segundo lugar, os Comitês Revolucionários, fiéis a Kadafi, não se dissolveram e permanecem mobilizados, sobretudo na Tripolitania e no Fezzan, prontos a “defender Kadafi dos diabos barbu-
dos”, isto é os integralistas e seus aliados das tribos da Cirenaica. Segundo a TV Al Jazeera, na Líbia ocidental os comitês dispõem de uma “milícia” formada com mais de dez mil homens perfeitamente armados. Liderados por Baghdadi Ali al Mahmoudi, primeiro-ministro desde 2006, representam o grupo político conservador, fiel a Kadafi, ao Livro verde e são inimigos declarados dos integralistas e de tudo que se relaciona aos EUA e Israel. O segundo grupo político – que pode jogar um importante papel de negociação com o Ocidente e tentar uma ponte com o Conselho Nacional Líbio para evitar a separação do país – é representado pelo grupo dos “tecnocratas” liderado por Sukri Ghanem que, até 2006, foi primeiro-ministro para, depois, passar a dirigir a poderosa estatal petrolífera NOC Lybia (National Oil Company of Libya). O grupo dos tecnocratas é fisicamente minoritário. Porém, em nível político, é muito forte porque é uma elite que reúne todos os quadros dirigentes do setor industrial-energético e financeiro da Líbia e das filiais das transnacionais, com as quais mantém uma excelente relação. Alias, foi esse grupo que obrigou Kadafi a abandonar as posições radicais para renegociar com os países ocidentais a volta da Líbia ao mercado e o fim das sanções econômicas. O terceiro grupo é liderado por Seif al Islam, de 38 anos, filho “reformista” de Kadafi que, nos últimos seis anos, começou a construir uma oposição interna e a provocar mudanças no regime no que diz respeito aos direitos humanos e à informação. De fato, foram os jornais de Seif, o Oea e o Qurina, que iniciaram uma campanha contra a corrupção, recebendo o apoio de alguns membros do antigo Conselho da Revolução e de muitos Comitês Revolucionários. Não é causal que hoje Seif al Islam seja o único líder a falar de negociações para evitar a guerra civil, que pode explodir já nos próximos dias se os líderes do Conselho Nacional Líbio decidirem atacar Trípoli ou se os filhos de Kadafi, Mpuntassim e Khamis, optarem por generalizar a repressão para tentar reconquistar os territórios perdidos. (AL)
internacional
Líbia, o que a mídia esconde TRANSCORRIDAS DUAS semanas das primeiras manifestações em Benghazi e Tripoli, a campanha de desinformação sobre a Líbia semeia a confusão no mundo. Antes de mais uma certeza: as analogias com os acontecimentos da Tunísia e do Egito são descabidas. Estas rebeliões contribuíram, obviamente, para desencadear os protestos nas ruas do país vizinho de ambos, mas o processo líbio apresenta características peculiares, inseparáveis da estratégia conspirativa do imperialismo e daquilo que se pode definir como a metamorfose do líder. Muamar Kadafi, ao contrário de Ben Ali e de Hosni Mubarak, assumiu uma posição anti-imperialista quando tomou o poder em 1969. Aboliu uma monarquia fantoche e praticou durante décadas uma política de independência iniciada com a nacionalização do petróleo. As suas excentricidades e o fanatismo religioso não impediram uma estratégia que promoveu o desenvolvimento econômico e reduziu desigualdades sociais chocantes. A Líbia aliou-se a países e movimentos que combatiam o imperialismo e o sionismo. Kadafi fundou universidades e indústrias, uma agricultura florescente surgiu das areias do deserto, centenas de milhares de cida-
dãos tiveram pela primeira vez direito a alojamentos dignos. O bombardeamento de Tripoli e Benghazi, em 1986, pela USAF demonstrou que Regan, na Casa Branca, identificava no líder líbio um inimigo a abater. Ao país foram aplicadas sanções pesadas. A partir da II Guerra do Golfo, Kadafi deu uma guinada de 180 graus. Submeteu-se a exigências do FMI, privatizou dezenas de empresas e abriu o país às grandes petrolíferas internacionais. A corrupção e o nepotismo criaram raízes na Líbia. Washington passou a ver em Kadafi um dirigente dialogante. Foi recebido na Europa com honras especiais; assinou contratos fabulosos com os governos de Sarkozy, Berlusconi e Brown. Mas quando o aumento de preços nas grandes cidades líbias provocou uma onda de descontentamento, o imperialismo aproveitou a oportunidade. Concluiu que chegara o momento de se livrar de Kadafi, um líder sempre incômodo. As rebeliões da Tunísia e do Egito, os protestos no Bahrein e no Iémen, criaram condições muito favoráveis às primeiras manifestações na Líbia. Não foi por acaso que Benghasi surgiu como o polo da rebelião. É
na Cirenaica que operam as principais transnacionais petrolíferas; ali se localizam os terminais dos oleodutos e dos gasodutos. A brutal repressão desencadeada por Kadafi, após os primeiros protestos populares, contribuiu para que estes se ampliassem, sobretudo em Benghazi. Sabe-se hoje que nessas manifestações desempenhou um papel importante a chamada Frente Nacional para a Salvação da Líbia, organização financiada pela CIA. É esclarecedor que naquela cidade tenham surgido rapidamente nas ruas a antiga bandeira da monarquia e retratos do falecido rei Idris, o chefe tribal Senussi coroado pela Inglaterra após a expulsão dos italianos. Apareceu até um “príncipe” Senussi a dar entrevistas. A solidariedade dos grandes meios de comunicação dos EUA e da União Europeia com a rebelião do povo da Líbia é, porém, obviamente hipócrita. O Wall Street Journal, porta-voz da grande finança mundial, não hesitou em sugerir em editorial (23 de Fevereiro) que os EUA e a Europa deveriam ajudar os líbios a derrubar o regime de Kadafi. Obama, na expectativa, manteve silêncio sobre a Líbia durante seis dias; no sétimo, condenou a violência, pediu sanções. Seguiu-se a reunião de emergência do Conselho de
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Miguel Urbano Rodrigues
A solidariedade dos grandes meios de comunicação dos EUA e da União Europeia com a rebelião do povo da Líbia é, porém, obviamente hipócrita
Segurança da ONU e o esperado pacote de sanções. Alguns dirigentes progressistas latino americanos admitiram como iminente uma intervenção militar da OTAN. Uma hipótese improvável, porque tal iniciativa –perigosa e estúpida – produziria efeito negativo no mundo árabe, reforçando o sentimento anti-imperialista latente nas massas. E seria militarmente desnecessária, porque o regime líbio aparentemente agoniza. Kadafi, ao promover uma repressão violenta, recorrendo inclusive a mercenários tchadianos (estrangeiros que nem sequer falam árabe), contribuiu para ampliar a campanha dos grandes meios de comunicação internacionais que projeta como heróis os organizadores da rebelião enquanto ele é apresentado como um assassino e um paranoico. Os últimos discursos do líder líbio, irresponsáveis e agressivos, foram aliás habilmente utilizados pela mídia para o desacreditar e estimular a renúncia de ministros e diplomatas, distanciando Kadafi cada vez mais do povo que durante décadas o respeitou e admirou. Nestes dias, é imprevisível o amanhã da Líbia, o terceiro produtor de petróleo da África, um país cujas riquezas são já amplamente controladas pelo imperialismo.
As chamas das ruas nos combustíveis PETRÓLEO Para o restante do mundo, o legado triste do levante árabe pode ser o agravamento da crise econômica Nasser Nouri
Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) O LEVANTE DOS POVOS árabes nas ruas contra seus governos já seria histórico simplesmente por forçar seus países a um rearranjo político sem precedentes em tempos recentes. Já seria marcante se somente derrubasse ditaduras ou se apenas comprovasse o equívoco da política externa ocidental para a região. O que se tem visto, no entanto, é que as consequências vão para muito além disso. No campo econômico, talvez as mudanças futuras possam causar mais impacto à ordem mundial do que no político. Parte deste ímpeto já se pode sentir nas mudanças que a eventual escassez de petróleo árabe já provoca. A Líbia, por exemplo, integra a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), tem a oitava maior reserva do mundo e é o país onde os conflitos têm se demonstrado mais violentos. Mesmo no Iraque – invadido pelas forças estado-unidenses, em 2003, com o suposto objetivo de “implantar a democracia” – os intensos protestos já ameaçam a produção. Também há manifestações ocorrendo no Irã, segundo maior produtor da região. Se a crise chegar à Arábia Saudita, o maior exportador do planeta, o quadro econômico ganha um patamar de gravidade ímpar. Da Líbia, notícias desanimadoras têm sido divulgadas. Metade da produção do país, de 1,6 milhão de barris diários, já estaria paralisada. Por conta disso, o preço do petróleo tem aumentado, levando a eventuais elevações nas taxas de juros e possível queda no ritmo de crescimento dos países. As estatísticas comprovam que sempre que houve, na história, uma elevação abrupta do preço do produto, há, em seguida, forte retração do PIB global. O barril de petróleo já atingiu os patamares mais altos desde o anúncio da crise socioeconômica mundial, iniciada em 2008. O recor-
Se a crise chegar à Arábia Saudita, o maior exportador do planeta, o quadro econômico ganha um patamar de gravidade ímpar
de daquele momento, de 148 dólares o barril, pode ser batido em breve. Há estimativas de que o preço possa chegar até a 220 dólares. Nove petrolíferas já suspenderam quase todas as suas operações na Líbia – BP, Repsol, Eni, Total, Statoil, Wintershall, RWE, OMV e Royal Dutch Shell. A Eni, italiana, fechou o gasoduto que abastecia seu país. A Europa é a região mais afetada pela escassez de petróleo líbio.
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petrolíferas já suspenderam quase todas as suas operações na Líbia: BP, Repsol, Eni, Total, Statoil, Wintershall, RWE, OMV e Royal Dutch Shell
Faz parte da estratégia de enfrentamento dos rebeldes da Líbia lidar com o principal item da economia do país, o petróleo. Muitos já assumiram o comando de regiões produtoras. Entretanto, até o momento, não dão declarações de que pretendem interferir na produção. Eles já estariam no comando de petrolíferas do leste do país, como Arabian Gulf Oil Company e Marsa Al Brega Refinery. Líderes tribais prometeram não depredar as instalações das empresas. Afirmam ter consciência de que o petróleo permaneceria sendo sua principal fonte de receita. Se o Egito era importante em termos logísticos, por causa do Canal de Suez, a Líbia é importante como produtora. É o terceiro país que mais produz na África,
Levante no mundo árabe mexe com os preços de combustíveis
com a maior reserva do continente. Isso acontece em um momento em que a alta de preços dos alimentos já pressiona a inflação no mundo todo. O fator mais grave, em momentos como este, é a atuação dos especuladores, que se aproveitam de instantes de incerteza para obter lucro. A Europa compra 79% do petróleo líbio. O país tem investimentos importantes na Itália. Parte da automobilística Fiat, por exemplo, pertence aos libaneses. No Iraque, a maior refinaria de petróleo teve que suspender suas operações após um ataque de insurgentes no dia 26 de fevereiro. Na ocasião, bombas foram detonadas e instalações foram incendiadas. Quatro pessoas morreram. Da produção da refinaria – 11 milhões de litros de gasolina e sete milhões de litros de benzeno por dia – depende o sustento de boa parte do país. Outra refinaria também foi fechada em Samara. Na Arábia Saudita, maior exportador mundial de petróleo, o rei Abdullah tem concedido uma série de benefícios sociais, num total de 36 bilhões de dólares, para impedir reflexos do levante. Uma eventual crise no país seria trágica para o fornecimento de petróleo. Desde o início do levante, o preço do barril já subiu 13%. Nesse cenário, em curto prazo, a brasileira Petrobras sai beneficiada, uma
vez que as ações da empresa valorizam uma enormidade quando os preços de petróleo aumentam no resto do mundo. Para a petrolífera, quanto mais alto for o preço do petróleo, maior visibilidade tem o Pré-sal. A empresa tem recebido críticas, entretanto, na mídia
O fator mais grave, em momentos como este, é a atuação dos especuladores, que se aproveitam de instantes de incerteza para obter lucro comercial, por não aumentar o preço da gasolina no Brasil – o que, segundo eles, teria levado a empresa a “deixar de lucrar” R$ 125 milhões. Em 2010, o lucro da Petrobras foi o maior já registrado por uma empresa brasileira na história – R$ 35 bilhões, 17% a mais do que em 2009. Já empresas como Gol e Tam perdem em cenários como este. Por serem muito dependentes do querosene para aeronaves, suas ações caem.
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O Nobel e a ideologia dominante ANÁLISE Prêmios de literatura e da paz deste último ano são usados para fortalecer agenda estado-unidense na Ásia e na América Latina Gama
Yuri Martins Fontes EM TEMPOS de desespero, que prenunciam o aprofundamento da crise capitalista iniciada em 2008, o Prêmio Nobel de 2010 foi a grande cartada ideológica em defesa do abatido neoliberalismo. A jogada da Academia Sueca veio dessa vez pelos seus dois principais flancos: o prêmio “da Paz” e o “da Literatura”. O primeiro foi para o chinês dissidente Liu Xiaobo – ex-professor da Universidade de Columbia (Nova York) e defensor da implantação do capitalismo na China, segundo moldes estadounidenses. Nada mais pertinente, visto a pressão das potências ocidentais para que a China arque com parte do prejuízo da crise, encarecendo seu yuan – no que vem sendo chamado de Guerra Cambial. Contudo, neste ano, os ideólogos do pensamento único surpreenderam a opinião pública com seu prêmio literário, concedido ao escritor e político fundamentalista neoliberal, Mario Vargas Llosa, peruano naturalizado espanhol, que vive em Nova York, onde leciona na Universidade de Princeton. Como é sabido, tradicionalmente o “Nobel da Paz” tem seu cunho ideológico bastante explícito – agraciando em geral líderes e ativistas ligados aos interesses das grandes potências. Diversas vezes, os premiados têm bastante sangue no currículo, como é o caso de Theodore Roosevelt (vencedor em 1906), para quem “o bom índio é aquele morto”; e do sionista Shimon Peres (1994), articulador do projeto de militarização de Israel. Já o histórico do Nobel de Literatura, desde os fins da Guerra Fria, não era tão abertamente direitista – quando em 1987, foi premiado o desconhecido dissidente soviético, exilado nos EUA, Joseph Brodski. De todo modo, a alternância entre escritores, ora conservadores, ora progressistas, sempre funcionou como adorno de “imparcialidade” para a Academia Sueca.
Apesar da China não promover guerras e não ter bases militares no estrangeiro, o país jamais recebeu um Nobel que agraciasse sua prática pacífica e cultura milenar Guerra comercial contra a China
O caso chinês foi o que mais deu a falar. Ou melhor, a “calar”. Apesar da China não promover guerras e não ter bases militares no estrangeiro, o país jamais recebeu um Nobel que agraciasse sua prática pacífica e cultura milenar. Em 1989, o prêmio “da Paz” foi dado ao Dalai Lama, líder espiritual e ex-ditador da aristocracia que então vigorava no Tibete, hoje exilado na Índia. Em 2000, foi a vez do escritor neoliberal dissidente Gao Xingjian, exilado na França, receber o de literatura. Agora, dada a necessidade de acirramento da guerra comercial-cambial liderada pelos EUA, a Academia se lembra novamente dos orientais. Excetuando-se os grandes inimigos chineses, Japão e EUA (e alguns de seus aliados), a maior parte do mundo preferiu não se pronunciar. Foi o caso do presidente francês, Nicolas Sarkozy, que, em outubro, pouco antes da reunião do G-20, recebeu seu colega chinês Hu Jintao para discutir negócios bilaterais, e não tocou no assunto do prêmio da Paz. Diante da má repercussão da premiação na China, Sarkozy, ao menos dessa vez, parece ter feito a escolha correta. “Xiaobo foi considerado culpado de um crime – conceder-lhe o Nobel equivale a promover o crime”, afirmou o portavoz chinês Ma Zhaoxo. “O Prêmio deveria ser concedido àqueles que trabalham para promover a harmonia étnica, a amizade internacional – eram os desejos de Alfred Nobel”, acrescentou na época o ministério chinês do Exterior. Já o governo do Paquistão – importante aliado ocidental na região – foi mais longe que o francês, manifestando seu “espanto” com a concessão que, segundo seu comunicado, “não condiz com o prestígio do prêmio”, ressaltando a sua “politização” com o “intuito de interferir em assuntos domésticos dos Estados”. A declaração diz ainda que Xiaobo “foi sentenciado pelo judiciário e não fez nada que o pudesse qualificar para o Nobel”, o que agrava a tensão, especialmente num momento em que a China “dá passos em direção ao respeito dos princípios internacionais, no âmbito legal e humanitário”.
gir com ironia, o que acabou por expor certa desconfiança que era generalizada: “Tinha certeza de que não receberia o prêmio – espero que tenha sido pela minha obra literária e não pelas minhas opiniões políticas”. Isto porque o autor é hoje declaradamente um defensor do liberalismo – o que vem a servir como um garoto-propaganda “nativo”. Sua premiação – voz neoliberal e latino-americana – vem a calhar com a busca dos EUA pela retomada de sua hegemonia perdida dos anos de 1990.
“Tinha certeza de que não receberia o prêmio – espero que tenha sido pela minha obra literária e não pelas minhas opiniões políticas”
Xiaobo, agora aclamado como defensor dos direitos humanos, foi condenado em 2009 a 11 anos de cadeia por “tentativas de subversão do Estado”. A condenação foi divulgada pela mídia ocidental como um gesto injusto e intolerante, “hostil aos valores universais”. Contudo, segundo artigo da Global Research – agência de informação de Quebec (Canadá) –, o que os meios ocidentais “não mencionam” é que o que causou sua prisão foi a assinatura da Carta 08 (manifesto em ocasião do 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem e das Liberdades). Tal documento trata-se “não apenas de uma demanda por liberdades políticas e civis, mas, antes, de um projeto para tornar a China uma réplica da sociedade dos EUA, e eliminar assim os últimos resquícios de socialismo no país”. Xiaobo defende que seu país deve se tornar um mercado livre sem nenhuma regulamentação do Estado – em tempos que mesmo o Estado norte-americano intervem, e muito, em sua própria economia.
A declaração (do governo paquistanês) diz ainda que Xiaobo “foi sentenciado pelo judiciário e não fez nada que o pudesse qualificar para o Nobel” O relatório da Global Research rememora ainda o fato de Xiaobo ter se aproximado da CIA nos anos de 1990 ao defender o Dalai Lama – o que, conforme a agência, foi contraditório a qualquer noção de direito humano, pois Lama era “o líder de uma aristocracia feudal que possuía escravos e vivia suntuosamente nas costas de servos tibetanos, antes de o Exército Popular pôr fim ao seu governo opressivo”. Importante ressaltar que não se defende aqui o domínio chinês sobre o Tibete, assim como não se defende o império dos EUA sobre Porto Rico.
Diante de tal impertinência, o prêmio “da Paz” foi criticado mesmo pelos colegas de Xiaobo, que lutam contra o regime. Na opinião do líder opositor Wei Jingsheng – sete vezes candidato ao Nobel –, haveria diversos outros militantes mais engajados que deveriam receber o prêmio antes dele. Há muitos anos, Xiaobo já demonstra publicamente sua “ocidentalização”, chegando a afirmar que: “Nós chineses somos um povo bruto”. Xiaobo, de 54 anos, até 1989 vivia bem nos EUA.
Diante de tal impertinência, o prêmio “da Paz” foi criticado mesmo pelos colegas de Xiaobo, que lutam contra o regime Foi apenas durante os últimos dias das manifestações da Praça da Paz Celestial que ele regressou à China, recolocando-se como intelectual em evidência. E frisemos também que, embora o Nobel tenha por lema premiar “manifestações pacíficas”, certamente o episódio da Praça da Paz não se pretendia pacífico – o que fica evidente quando, após a instituição do estado de sítio, os líderes do protesto montam barricadas e enfrentam ativamente o exército, o que culminaria em várias mortes, inclusive de militares. Tampouco Xiaobo pode ser encaixado no quesito de “promover a fraternidade entre as nações” – argumento que foi o primeiro a ser usado pelo governo chinês contra a premiação. Assim, o professor chinês veio a cumprir o estratégico papel de apoio ao governo de Obama, diante da pressão dos conservadores republicanos e da guerra cambial que quer fazer com que a China arque com uma parte maior dos prejuízos da crise advinda da libertinagem financeira. E veio num momento estratégico, pouco antes da plenária do XVII Comitê Central do Partido Comunista, em que se começou a discutir a sucessão de Hu Jintao, a ocorrer em 2012. O anticoletivista anti-indígena
Já no caso do prêmio de Llosa, aos 74 anos, a surpresa foi ampla, da direita à esquerda – a ponto de ele próprio rea-
É evidente que hoje, em vista das frustradas tentativas de golpe de Estado na última década (Venezuela em 2002, Bolívia em 2008 e Equador em 2010) – apesar do bem-sucedido golpe de Estado em Honduras –, os EUA não têm mais o mesmo poder de intervenção em seu antigo “quintal”, o que se deve em parte às graves limitações econômicas conjunturais, agravadas pelas duas caras guerras que Obama herdou na Ásia. Assim, Llosa, com suas posições extremistas contra qualquer país periférico que se pretenda autônomo, serve aos interesses neocoloniais como um autofalante fomentador de uma tão apática reação “latina”. Em seus frequentes discursos, ainda defende as privatizações por parte de empresas estrangeiras, inclusive a das reservas naturais estratégicas de seu país – sendo ferrenho crítico dos governos progressistas que vêm ocupando espaços na América Latina e elevando sua autoestima na última década. De fato, após o declínio da Alca, em 2004, os EUA tentaram “impor” tratados bilaterais, o que só foi aceito por três países – Peru, Chile e Colômbia. É o que nos lembra o pesquisador Paulo Nogueira Batista Jr., representante no FMI de um grupo de nove países americanos (inclusive o Brasil), em estudo publicado na Revista de Economia Política: “Nesta época, quase todos os países da América eram governados por políticos alinhados aos EUA em maior ou menor grau, como Menem, FHC, Fujimori e outros, que serviam de instrumentos de seu poder”. Para ele, “o quadro atual é muito diferente”, pois os resultados “não foram positivos, o que já se poderia prever” – pois “governado de fora para dentro, nenhum país pode ser bem-sucedido. Daí a importância de se investir na popularidade de Llosa – para quem os anos de 1990 foram mesmo o “fim da história”.
Em 1990, quando os marxistas do Sendero Luminoso ainda disputavam o poder, Llosa concorreu à presidência do país Para que se tenha uma ideia de suas posições, ele defende, para as eleições presidenciais do Peru (2011), que um “cenário positivo” seria a vitória de um candidato do que chama de “centro” – e cita os nomes dos candidatos de plataforma mais submissa, Luis Castañeda e Lourdes Flores. Já a respeito do candidato mais nacionalista, Ollanta Humala, de centro-esquerda, dispara: “É um grande perigo apoiado por Chávez, o que é incompatível com a democracia”. Quanto a ele mesmo, afirma não querer ser “político profissional”, mas diz que continuará atuando por “certas causas”. Em 1990, quando os marxistas do Sendero Luminoso ainda disputavam o poder, Llosa concorreu à presidência do país – segundo a Reuters, como um “candidato reformista de centro-direita”. Em sua plataforma privatizante – segundo ele inspirada em Margareth Thatcher, “mulher que mudou o rumo da história” –, propõe o corte orçamentário e a defesa do mercado livre, o que “alarmou os pobres e trouxe apoio dos conservadores ricos”. Perdeu a eleição para Fujimori e abandonou o país para viver na Espanha. Yuri Martins Fontes é jornalista e filósofo.