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Ano 1 • Número 44

R$ 2,00 São Paulo • De 1º a 7 de janeiro de 2004

Brasil para todos, só com mobilizações O

povo brasileiro, desencantado com o agravamento da crise econômica e social em 2003, mantém a convicção cada vez mais forte de que é preciso se organizar para obter maiores conquistas em 2004. Diante dos índices de arrocho e de desemprego, analistas de diversos setores chegam à mesma conclusão: só a pressão dos movimentos populares poderá dar ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva sustentação

para enfrentar a resistência das elites e modificar a correlação de forças que faz do Brasil uma das sociedades mais desiguais do planeta. Esta edição especial do Brasil de Fato faz um balanço do primeiro ano de governo e mostra o que foi feito e aquilo que era esperado em diversas frentes de lutas sociais. Especialistas e intelectuais sugerem, nesta histórica oportunidade de transformação, alternativas e novos rumos para a nação.

Elza Fiuza/ABr

A esperança de realizar as mudanças necessárias para o avanço social está na força da pressão popular

Comparato aponta falta de projeto para o país O despreparo do PT para enfrentar o jogo do poder foi um dos fatores responsáveis pelos desacertos do primeiro ano de governo, na opinião do jurista Fábio Konder Comparato: “Não é que os homens do governo Lula, a começar por ele próprio, sejam ruins, tenham uma deficiência de caráter, longe disso. Só que eles não estavam preparados para enfrentar esse jogo do poder, acharam que iriam dominar o establishment”. Por conta disso, o país envereda por um caminho sem volta, rumo ao crescimento da pobreza e da miséria, à deterioração das pequenas e médias empresas.

Participação popular garante reforma agrária

Capital externo ameaça o ensino público Pág. 13

Criticar Sharon é diferente de ser anti-semita Pág. 12

Samba, a bandeira dos oprimidos Pág. 16

África une-se no combate à Aids em 2004 Pág. 11

Os movimentos sociais do campo acreditaram que no governo Lula a reforma agrária efetivamente sairia do papel. A resposta, em 2003, foi um programa tímido que prevê o assentamento de 500 mil famílias. Para o geográfo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, essa é a oportunidade de o governo realizar a reforma agrária pelas vias institucionais. Porém, Oliveira cobra a participação dos movimentos populares para que a reforma agrária não caia na ditadura da burocracia e das elites. Pág. 7

Mercosul: integração para América Latina Em 2003, os governos latinoamericanos que seguiram à risca o modelo defendido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) acumularam fracassos e pereceram diante dos protestos contra o projeto neoliberal, como aconteceu na Bolívia, Argentina, Uruguai, México, Equador e Peru. Contudo, para o cientista político Emir Sader, ainda não há uma proposta articuladora das forças de esquerda e antiimperialistas no conjunto da América Latina. Segundo Sader, a única saída é construir uma alternativa de integração, com projetos de justiça social, democracia e soberania nacional, o que poderia ser feito a partir da experiência do Mercosul. Pág. 10

Agê

Os Estados Unidos e as transnacionais querem acabar com as conquistas sociais do século 20. Crítico do neoliberalismo, o lingüista estadunidense Noam Chomsky acredita que essa ofensiva só será barrada com a mobilização popular. “O povo precisa estar pronto para lutar por um novo projeto de desenvolvimento”, avalia Chomsky. Para ele, o Brasil mudará apenas se romper com o sistema. “A primeira etapa é cancelar o pagamento da dívida externa, que não é legítima”, diz o lingüista. Pág. 9

agência Estado

France Press

EUA armam ofensiva contra direitos sociais

Ao constatar que este governo aprofundou as diretrizes do anterior, Comparato alerta: “É preciso que alguém de fora do Estado diga a eles uma verdade simples: o PT não assumiu o governo para aumentar a miséria do povo”. Em sua avaliação, porém, essa situação não pode durar muito tempo, pois falta uma base econômica para manutenção desse sistema. E cabe ao povo “o poder de impedir, de fixar limites àqueles que mandam”. O que temos de fazer com o PT, segundo o jurista, é mostrar “a realidade que ele não quer ver”. Págs. 4 e 5

Governo cai no conto do livre comércio Pág. 8

Mohamed Habib: transgênico não mata a fome Pág. 3

Em plena crise, mídia patrocina luta ideológica Pág. 14


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De 1º a 7 de janeiro de 2004

NOSSA OPINIÃO

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Tiago Rodrigo Dória • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

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Os desafios de 2004

M

uitos são os desafios que a sociedade brasileira precisará enfrentar durante o ano de 2004. O primeiro ano de governo Lula demonstrou que as eleições e a composição do atual governo não alteraram a correlação de forças na sociedade brasileira. Neste momento histórico, ainda vivemos uma crise de destino para o país. Desde o colapso do modelo de industrialização dependente, iniciado na década de 80 — e depois a tentativa da classe dominante de impor o neoliberalimo como solução e sua derrota nas últimas eleições —, o Brasil atravessa uma crise de projeto. Os brasileiros ainda não se livraram de graves problemas históricos. Somos a sociedade mais desigual do planeta. A concentração da riqueza, da terra e da renda continuam, vergonhosamente. Os indicadores de pobreza e das necessidades fundamentais da população são alarmantes. E, nos últimos tempos, nosso povo está sendo açoitado pelo mais dramático de todos problemas: o desemprego.

O direito ao trabalho é fundamental para transformar pessoas em cidadãos plenos. Em cada quatro brasileiros, há um desempregado – ou seja, em cada quatro brasileiros, um ainda não é cidadão. E, em praticamente cada família, temos uma pessoa desempregada. O ano de 2003 provou que não basta a economia crescer. Não basta o governo poupar. Não basta ter boa vontade. Se não mudarmos o modelo econômico, ou seja, se não discutirmos um novo projeto para nossa sociedade, as mazelas sociais só aumentarão. Infelizmente, parece que a maior parte dos setores governistas, e sobretudo a classe dominante, está satisfeitíssima. Os bancos continuam lucrando, as transnacionais continuam levando dinheiro para o exterior. Ou seja, aqueles que estão nas camadas de cima da sociedade não têm do que reclamar. Mas até quando ficarão oprimidos e calados os que estão em baixo, sabendo que pouco ou quase nada mudou?

FALA ZÉ

Esse é o enigma colocado para os movimentos sociais e para todas as parcelas conscientes da sociedade este ano. Temos urgência em realizar um grande mutirão nacional para debater um novo projeto para o país. E o melhor caminho até essa discussão com a população será via o nosso principal problema: o desemprego. Esperamos que, de fato, durante o ano de 2004, haja um grande clima de debate na sociedade. Que os movimentos sociais consigam realizar um sólido trabalho de base e mobilizar o povo, os trabalhadores, a juventude. 2004 será, portanto, um ano decisivo. Se não conseguirmos encontrar um novo rumo para a nação, permaneceremos em uma crise que aumentará a tragédia social e os sacrifícios dos mais pobres. Que 2004 seja um ano de debate e de mutirão em toda sociedade, para que alcancemos mudanças reais na economia, na distribuição de renda, na conquista de uma vida digna para todos os brasileiros.

OHI

CARTAS DOS LEITORES ALCA Os atuais donos do mundo não estão falando em fim do mundo, apenas na sua recolonização, e, a começar não apenas pelo Brasil como por toda a América Latina. O instrumento para tal intento, ou melhor dito, de imposição, é a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e seus cavaleiros da desgraça da maior peste que atinge a raça humana: a fome. Em seu conjunto, com a denominação de Novos Temas, se apresenta com seis itens assustadores. O primeiro, que tratará de investimentos, diz: os EUA exigirão garantias e privilégios (além dos que já têm) para suas transnacionais e investidores em todos os Estados nacionais integrantes do “acordo”. Consequências: permitirão a empresas processar Estados em tribunais dos EUA. O segundo, que tratará de compras governamentais, diz: os fornecedores internacionais poderão competir em igualdades de condições com empresas locais. Consequências: impedirá os Estados de usar o seu poder de compra. O terceiro, que tratará da propriedade intelectual, diz: serão criadas leis regulando direitos de propriedade intelectual. Consequências: impedirá que o conhecimento humano seja compartilhado entre todos os povos, dando às empresas o poder exclusivo de sua exploração comercial. O quarto, que tratará da Agricultura, diz: haverá redução de tarifas para o comércio dos produtos agrícolas entre os países. Consequências: causará o abandono de políticas de desenvolvimento agrário ou voltados para a agricultura familiar. O quinto, que tratará do acesso a mercados, diz: diminuição de tarifas, subsídios e impedimento para a adoção de políticas industriais pelos Estados

nacionais. Conseqüências: obrigará a uma irrestrita abertura comercial, o que causará prejuízos à indústria local, agravando o desemprego. E, finalmente, o sexto, que tratará de serviços, diz: serviços profissionais, educacionais, culturais e ambientais serão tratados como mercadorias. Consequências: privatização dos serviços públicos, o que impedirá a possibilidade de o Estado considerar a educação ou o acesso à água e à saúde como direitos universais. João Carlos da Luz Gomes Porto Alegre (RS) SAUDAÇÕES Somos um grupo de adolescentes que faz parte de uma entidade chamada Aprender Produzir Juntos (APJ). Esse é um projeto muito amplo que atende adolescentes de todos os bairros da nossa cidade sem contar a parte da cooperativa que é o ganha-pão de muitos pais de família, inclusive minha mãe é cooperada no setor de padaria. Faço parte da Oficina de Comunicação da Casa do Adolescente/APJ. Como o próprio nome já diz, gostamos muito de nos informar e de estar sintonizados com os acontecimentos, o que nos levou a tomar conhecimento do jornal Brasil de Fato. Percebemos que ele tem uma grande diferença dos outros meios de comunicação, no sentido de provocar uma discussão social, política e até econômica com mais democracia, ou seja, na nossa pequena compreensão sobre os meios de comunicação de massa, é um jornal que não aliena os leitores. Representantes da Oficina de Comunicação Teófilo Otoni (MG)

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 3038 1432 ou mande uma mensagem eletrônica para: brasildefato@teletarget.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815

CRÔNICA

Anotações sobre o folhetim eletrônico (1) Luiz Ricardo Leitão A estréia de nova telenovela global nos lembra que o chamado “folhetim eletrônico” é responsável por 70% do faturamento da Globo. Numa telenovela, nada se perde, tudo se capitaliza – desde os anúncios dos intervalos (os minutos mais caros da telinha) até o merchandising nada discreto de cenas em cada capítulo (há sempre um produto a ser vendido pela personagem – um automóvel, uma bebida, uma sandália). O lançamento da nova “novela das oito” (que começa às nove...) tornou-se uma agressiva campanha publicitária. Em 1999, um luxuoso encarte acompanhou uma edição dominical de O Globo para anunciar Terra Nostra, produção multimilionária (com gravações na Itália e Inglaterra). Em 2003, durante três semanas, Malu Mader, a heroína de Celebridade, apareceu em outdoors espalhados pelas capitais do país, anunciando o perfume Summer Spell (o nome tinha que ser inglês, para impressionar a colônia tupiniquim...); na semana de estréia, puseram uma tarja nos painéis: “Exclusivo na próxima novela das 8”...

O episódio indica que além do aspecto comercial, a telenovela representa uma arma da mídia na batalha ideológica na era “pósmoderna”. É óbvio que nenhum programa vai ao ar sem uma prévia e detalhada discussão de sua forma e... conteúdo. A Globo encomenda até quatro pesquisas para saber o que o telespectador pensa. Conforme a reação da platéia, muitos personagens terminam por desaparecer e a história segue novos rumos... (caso célebre foi a explosão de um shopping em Torre de Babel, em que duas lésbicas morreram, para felicidade dos guardiões da moral.) Não se pode esquecer que um simples capítulo custa R$ 100 mil. A emissora portanto, o trata como um produto que deve agradar a todos os segmentos. Surge o “realismo estatístico” com o qual os autores vão escrevendo suas tramas. Ao contrário do velho melodrama mexicano, a novela das 8 aborda temas “audaciosos”, como homossexualismo, drogas, alcoolismo e violência contra a mulher (em Mulheres apaixonadas, Manoel Carlos fez um coquetel desses ingredientes

e a audiência superou 50 pontos). A fórmula tem dado ótimo$ resultado$ em um país que há 40 anos era eminentemente rural e hoje vive uma urbanização caótica, que transformou as capitais em máquinas de consumo e exclusão, reservando aos despossuídos os sonhos e dramas vendidos pela tela eletrônica. Não há motivo para espanto quando uma telenovela resolve colocar o MST em cena, como em O rei do gado, com uma personagem proibida de aparecer no Jornal Nacional. É claro que, na visão dos autores, os lavradores que ocuparam as terras do “bondoso” fazendeiro eram meros baderneiros. No fundo o folhetim eletrônico é apenas uma mercadoria feita para agradar a todas as platéias, sejam elas severinos ou patricinhas, socialistas ou socialites... Luiz Ricardo Leitão é editor, escritor e prof. adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latinoamericana e Caribenha pela Universidade de La Habana, é autor de ¿A dónde va la telenovela brasileña? El folletín electrónico en la sociedad del espetáculo (Editora Ciencias Sociales, Cuba)

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De 1º a 7 de janeiro de 2004

NACIONAL SEGURANÇA ALIMENTAR

Leis e concessões prejudicam agricultura Claudia Jardim da Redação

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m março, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve de solucionar o problema da soja transgênica cultivada ilegalmente no Rio Grande do Sul, muitos acreditaram que a questão era mais uma herança maldita do governo anterior. Para agradar os produtores gaúchos, e em especial o governador Germano Rigotto (PMDB), o presidente editou uma medida provisória liberando a comercialização para o mercado interno da produção de soja transgênica cultivada ilegalmente no Estado. Permanecia proibido o plantio para 2004. Essa seria a primeira de inúmeras concessões que o Planalto faria ao longo do ano, por meio de medidas provisórias e de decisões aleatórias, de modo a contemplar os interesses das transnacionais produtoras das sementes modificadas, da bancada ruralista e dos agricultores gaúchos. Seria o início de seguidas premiações pela desobediência civil, já que o plantio de transgênicos está proibido no país desde 1998. Para, ao menos, garantir o cumprimento da lei que protege os consumidores e lhes dá o direito de saber o que estão colocando no prato, logo após liberar a comercialização da soja, o presidente sancionou um decreto obrigando uma identificação no rótulo dos alimentos com mais de 1% de conteúdo transgênico. Mais uma lei que não foi cumprida por falta de fiscalização. “O governo tinha a

alternativa de revogar essa regra ridícula e impossível de ser cumprida por essa equipe e colocar tudo na ilegalidade novamente. Mas o custo político era muito grande. Não acharam importante prestar contas aos consumidores, às donas de casa, aos ecologistas. Eles não têm o mesmo peso dos empresários”, critica o cientista David Hathaway. “Achavámos que as incompetências de governos anteriores não seriam piores em um governo popular”, lamenta o cientista.

zembro - uma liminar suspendeu a lei estadual que proíbe o cultivo por considerá-la inconstitucional. De acordo com o Supremo, uma lei estadual não pode prevalecer sobre a federal. Mesmo assim o secretário de Agricultura do Paraná, Orlando Pessutti, afirma que o Estado continuará a fiscalizar o plantio da soja e realizar testes de transgenia. Desde a edição da MP 131, o Ministério da Agricultura nega o pedido de Requião para declarar o Estado zona livre de transgênicos.

Jonas Oliveira/Folha Imagem

Amparado em medidas provisórias polêmicas, governo cede a ruralistas e é cobrado por ambientalistas

AMPARO DA LEI Dia 16 de dezembro, o presidente Lula sancionou a lei [convertida da MP 131] que autoriza o cultivo da soja transgênica para este ano, com veto ao parágrafo que responsabilizava as companhias detentoras da tecnologia da semente por danos ao ambiente e a terceiro. No entanto, mantém a reprodução das sementes geneticamente modificadas e seu registro provisório para essas variedades. A lei autoriza a comercialização da safra até março de 2004 e exige a incineração do restante para que a nova produção seja convencional. A expectativa de ambientalistas e movimentos sociais é de que o projeto de lei (PL 2401) seja votado na íntegra, sem as emendas propostas pela bancada ruralista – que pretende dar poder de decisão à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e suspender a exigência de Rima. No entanto, mais do que disputas parlamentares, o deputado João Alfredo (PT-BA) avalia como fundamental para decidir essa “briga” a atuação dos movimentos sociais. Dia 11 de março será realizado um Tribunal Internacional para apurar a introdução ilegal dos transgênicos no país.

FATO CONSUMADO No entanto, em vez de solucionar um problema, a MP 113 abriu o precedente para legitimar a desobediência civil. Carlos Sperotto, presidente da Federação Agrícola do Rio Grande do Sul (Farsul), anunciou publicamente que os produtores gaúchos continuariam a plantar transgênicos. E o governo Lula autorizou a violação: dia 25 de setembro, editou mais uma MP (131) liberando o cultivo da soja transgênica para 2004. A decisão provocou reações dos movimentos sociais, dos parlamentares e até do judiciário. Três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adin) foram movidas, uma delas pelo procurador geral da República Cláudio Fontelles. A MP passa por cima das leis que exigem estudos de impacto ambiental (EIA/Rima) e do princípio da precaução. O plantio da safra 2004 começou em outubro e até agora o Supremo Tribunal Federal não julgou as ações. “Esse problema é fruto da omissão do ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues,

Colheita de soja convencional em Cornélio Procópio, Norte do Paraná

que não garantiu o cumprimento da lei de proibição do cultivo”, avalia o deputado estadual Frei Sérgio Görgen (PT/RS).

RESISTÊNCIA NO PARANÁ O governador do Paraná, Roberto Requião, foi uma referêrencia de resistência em 2003. Em outubro, sancionou uma lei estadual proibindo o plantio, o transporte – incluindo no Porto de Paranaguá

– e o comércio de sementes transgênicas. No mesmo mês, comprou briga também com outros Estados, ao exigir de 400 caminhoneiros a apresentação de certificado de que a soja transportada não era transgênica. Quatorze caminhões que carregavam transgênicos foram proibidos de entrar no Estado. A tentativa do Paraná de ser uma área livre de transgênicos foi barrada pela Justiça, dia 10 de de-

Brasil de Fato – Qual sua avaliação sobre as decisões polêmicas em relação à soja transgênica, no primeiro ano de governo Lula? Mohamed Habib – O governo brasileiro, nesses doze primeiros meses, quis buscar a governabilidade e um ambiente tranqüilo. Com isso, cedeu às pressões das transnacionais, da bancada ruralista e dos parlamentares, que cairam na ilusão dessa fase inicial dos transgênicos. Como a sociedade civil e a comunidade acadêmica não atuaram com a mesma força para pressionar do outro lado, o governo cedeu para quem pressionou mais. Além das nossas manifestações, que são importantes, também é importante olhar para o continente europeu. Se os transgênicos fossem bons, os europeus não teriam exigido a compra de soja convencional. Temos que aprender com a experiência amarga da Argentina, onde até as áreas de agropecuária foram transformadas em campos para plantio de soja transgênica. BF – Que problemas os transgênicos podem trazer para a agricultura? Habib – A sociedade que mantém uma agricultura cuja matéria-prima é patenteada leva ao monopólio. Retira da lavoura o pequeno agricultor. O ciclo é o seguinte: as transnacionais ven-

Quem é O egípcio Mohamed Habib é engenheiro agronômo e foi professor na Universidade de Alexandria, onde desenvolvia pesquisas nas áreas de controle biológico, manejo integral de pragas e agroecologia. Desde que chegou ao Brasil, há 31 anos, Habib é professor da Universidade Estadual de Campinas. Atualmente dirige o Instituto de Biologia da Unicamp. dem a semente e o agrotóxico barato, os agricultores plantam transgênicos, depois a indústria cobra royalties do produtor. Com isso, o produtor não consegue honrar seus compromissos de financiamento e acaba vendendo suas terras. Os impactos na questão social são percebidos logo. A soja transgênica não veio resolver problema porque não temos problemas. O produto brasileiro está em um patamar excelente. A liberação da safra de 2003 não resolve nada. BF – As indústrias fazem a pro-

paganda de que os transgênicos podem acabar com a fome no mundo. Habib – Isso não tem nada a ver com a fome. Tanto a soja quanto o algodão, o milho, ou a canola transgênicos não têm produção maior do que a produção da soja convencional. Transgenia não tem nada a ver com produção de alimentos para os pobres. A pobreza no mundo está ligada à exclusão social. Isso é que faz com que falte comida para os pobres. BF – Por que muitos pesquisado-

res afirmam que a diversidade das sementes está ameaçada? Habib – O México é um exemplo. Nesse país, há o maior banco genético de milho cultivado em todo o mundo. Exatamente por isso, o governo mexicano proibiu o cultivo de milho transgênico. No entanto, o milho transgênico cultivado nos Estados Unidos foi levado para o México “ninguém sabe como” e hoje está comprovado que variedades ancestrais de milho foram contaminadas.

José Cruz/ABR

Diante das pressões das transnacionais produtoras de sementes transgênicas e das conseqüências devastadoras da introdução dessa cultura na agricultura de países como Argentina e México, o diretor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Mohamed Habib, derruba o mito de que os transgênicos seriam a solução para acabar com a fome no mundo.

Heitor Hui/AE

O país não tem necessidade da soja transgênica

Manifestantes protestam diante do Ministério da Agricultura, em Brasília (DF): governo cedeu às pressões das transnacionais

Isso é um crime ambiental, compromete o banco genético que vai sustentar a alimentação das próximas gerações. BF – Há riscos para a saúde? Habib – O mundo está trabalhando com dois conceitos antagônicos. Um utilizado pelos EUA, pelo Canadá e pela Argentina: o conceito da equivalência, segundo o qual há as plantas transgênica e convencial da mesma espécie se equivalem. Assim, caso haja danos, retira-se do mercado o produto transgênico e, se houver prejuízos, o produtor deve ser responsabilizado. Fora aqueles três países, o mundo inteiro trabalha com outro conceito, oposto: o da precaução, pelo qual só é autorizado o plantio se for comprovada a segurança da espécie. Por isso, alguns produtos foram lançados nos EUA e saíram do mercado. Muitos foram proibidos. BF – Quais são as expectativas sobre o projeto de Lei de Biossegurança que deve ser votado este ano no Congresso? Habib – O governo já deu um bom sinal ao retirar o regime de urgência na votação, facilitando e favorecendo os debates. Espero que a sociedade civil e a comunidade científica se envolvam mais nesse projeto. Não podemos permitir nenhum prejuízo ambiental, para a saúde ou sócioeconômico. A lei também tem que ter um capítulo para garantir investimentos em pesquisas. Assim o Brasil pode ser uma grande potência que utiliza seus recursos naturais e suas tecnologias, protegendo o meio ambiente, a saúde e mantendo o equilíbrio social aceitável. O Brasil já sofreu muitas agressões tecnológicas. Só pode permitir o plantio e a comercialização de uma nova tecnologia depois de comprovada sua segurança. (CJ)


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De 1º a 7 de janeiro de 2004

NACIONAL BALANÇO

O governo do presidente Lula revelou-se A

o fazer uma análise das perspectivas sociais e econômicas do Brasil, depois de avaliar as medidas concretas tomadas no primeiro ano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o jurista Fábio Konder Comparato promove uma dramática volta ao passado – suas críticas ao governo atual se mantêm praticamente as mesmas feitas ao governo de Fernando Henrique Cardoso. Com um agravante, segundo ele: Lula, que aprofundou as diretrizes do governo passado, chegou apoiado por uma esperança muito grande. Mestre do pensamento contemporâneo, Comparato cita Confúcio, um mestre do pensamento antigo: “Um governo não pode existir sem o mínimo de confiança do povo”. Por isso, nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o jurista de renome internacional diz que cabe ao povo, aos movimentos sociais, “a todo momento mostrar ao governo a realidade que ele não quer ver, apontar implacavelmente os erros cometidos, de maneira ensurdecedora, sem lhes dar um minuto de descanso porque, na verdade, eles são servos do povo”. Brasil de Fato – Como o senhor analisa o primeiro ano de governo Lula? Fábio Konder Comparato – A situação é preocupante. Há muito tempo o Produto Interno Bruto (PIB) cresce sem nenhuma possibilidade aparente de melhorar a distribuição de renda. O governo Lula veio apoiado por uma esperança muito grande, um calor humano extraordinário, e está aos poucos destruindo nossa esperança – o que é muito grave, porque governar não é só exercer o poder. É também ter um fundamento das ações do governo na consciência e na esperança do povo. Este governo adotou a política econômica do pensamento único e aprofundou as diretrizes do governo passado. O crescimento de 2003 foi negativo, a classe trabalhadora está empobrecendo e aumenta a miséria. Ao mesmo tempo, vê-se um verdadeiro estouro de lucratividade das instituições financeiras. Ou seja, nós embarcamos de corpo e alma no capitalismo financeiro, um sistema econômico que nada produz e vive da intermediação e da especulação. BF – A que o senhor atribui esse comportamento frustrante do ponto de vista da esquerda brasileira? Comparato – Eu não acredito que essa opção do governo Lula tenha razões meramente econômicas, mas sim uma razão política. A cúpula do Partidos dos Trabalhadores entendeu, em junho de 2002, que o candidato Lula não poderia perder pela quarta vez a corrida pela Presidência da República. Se isso acontecesse, o PT teria que mudar inteiramente, mudando toda a equipe de direção. Era, portanto, um jogo de tudo ou nada e eles apostaram nessa possibilidade quase desesperadora de chegar ao poder. Assim, o poder significou para eles uma aceitação do jogo do poder como ele é, ou seja, separado da vida do país. A história do poder se fecha sobre si mesma. Essa é uma tendência incoercível: todo poder tende a se concentrar e se concentra sobre si mesmo, é uma espécie de doença psicológica. Os homens no poder têm a tentação de só enxergar a si mesmos, eles não enxergam mais a realidade fora do ciclo de poder. Ficam cegos e surdos mas, evidentemente, não ficam mudos; ao contrário, eles falam

Quem é Jurista renomado internacionalmente, Fábio Konder Comparato nasceu em Santos (SP), em 1936. É doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra (Portugal), doutor em Direito da Universidade de Paris (França) e professor titular da Universidade de São Paulo (USP). É autor de vários livros como A afirmação histórica dos direitos humanos e de vários artigos doutrinários. É fundador e diretor da Escola de Governo, em São Paulo.

Governar não é só exercer o poder. É também ter um fundamento das ações do governo na consciência e na esperança do povo para dar a impressão de que ainda mantêm contato com a realidade social. Isso não significa que os homens do governo Lula, a começar por ele próprio, sejam ruins, tenham uma deficiência de caráter, longe disso. Só que eles não estavam preparados para enfrentar esse jogo do poder, acharam que iriam dominar o establishment. BF – A justificativa do governo é de que este ano foi de preparação para o crescimento e para as mudanças. Comparato – Eu me pergunto se o pessoal que está lá em cima, que é inteligente e tem conhecimento dos dados, acredita realmente no que fala. No ano de 2003, o total dos investimentos no país foi 10% menor do que em 2002. E isso não pode mudar em 2004, pois o que asfixia a economia brasileira é o grau de endividamento do Estado. Não adianta invocar a herança do governo anterior porque, em vez de reduzir a crise, o atual governo a aprofundou. Aumentaram os constrangimentos financeiros que não tinham sido exigidos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), como o aumento do superávit primário. Mas o ministro da Fazenda, Antônio Palocci – que tem sido elogiado quase todos os dias pelo presidente da República – acaba de

dizer que esse superávit primário de 4,25% tem que durar pelo menos dez anos. É impossível criar uma poupança pública para investimento com esse constrangimento. Eu não acredito que o pessoal do Banco Central e do Ministério da Fazenda não saibam fazer contas. Eles têm perfeita noção disso. Em contrário, poderia ser dito: o que significa não pagar a dívida pública? Existem a dívida externa e a interna. A dívida interna é, em grande parte, manipulada pelos bancos, que têm, seguramente, a metade dos títulos públicos emitidos pelo

tece é que, um ano depois de instalado, o governo revelou-se incapaz de apresentar um projeto de país. Nós não sabemos para onde vamos, temos simplesmente de acreditar nas informações repetidas de que a prosperidade está na esquina, é só esperar um pouco, precisa ter paciência... Claro que, durante alguns meses, nós demos esse crédito de confiança. Mas agora queremos fatos, e os fatos estão aí: cada vez menos investimento, cada vez mais desemprego, desnacionalização da economia brasileira e manifesta impossibilidade de se conseguir recursos, ainda que modestos, para enfrentar o programa de políticas sociais apresentado. Não há recursos para a educação, para a saúde, para a reforma agrária. E, como constatamos, entre reduzir os juros ou reduzir os benefícios da previdência social, o governo ficou com essa última opção. Significa que, no choque entre os banqueiros e a grande massa do povo pobre, o governo optou por não se indispor com os banqueiros. Tudo isso é desastroso. Mas essa situação não pode durar muito tempo. Falta uma base econômica para que esse sistema permaneça.

Os homens no poder têm a tentação de só enxergar a si mesmos, eles não enxergam mais a realidade fora do ciclo de poder governo na sua carteira. O restante eles distribuem entre fundos de investimento. A conversa com os bancos tem que ser “de poder” para “súdito”, e o governo se coloca na posição inferior, de alguém obrigado a se submeter ao poder dos bancos. Isso não tem cabimento. Na questão da dívida externa, seria perfeitamente possível negociar se o governo tivesse um plano coerente para enfrentar o problema da falta de poupança pública. O que acon-

BF – O que o senhor acha das políticas sociais lançadas até agora, como os programas Fome Zero e Bolsa-escola? Comparato – São migalhas. Há um princípio fundamental que não foi entendido pelo governo: o desenvolvimento econômico é apoiado em uma política econômica correta. A desigualdade social não é provocada pela falta de políticas sociais, mas por uma política econômica perversa, intrinsicamente redutora da

U.Dettmar/ABR

Nilton Viana da Redação

Sérgio Lima/Folha Imagem

Na opinião de um dos mais respeitados pensadores atuais do Brasil, o PT não estava preparado para enfrentar o jogo

Moradores de Guaribas, no Piauí: esperança que o presidente Lula honre os compromissos históricos

igualdade social e cada vez mais concentradora de renda. Não se luta contra a miséria por meio de políticas sociais, simplesmente. É preciso corrigir essa fábrica de miséria que é o sistema capitalista. Para enfrentar esse sistema, é preciso uma boa preparação, uma preparação ética, sobretudo. Optar por manter o sistema capitalista significa optar por manter aqueles que esmagam o povo. Não há absolutamente a menor justificativa, a mais leve explicação aceitável, legítima, de que, para resolver problemas financeiros do governo, é preciso pôr na rua um milhão de trabalhadores empregados, com carteira assinada – que são, portanto, despedidos – e arruinar milhares de pequenas e médias empresas. Isso só é possível quando se aceita o pensamento único, como se a economia fosse uma ciência da natureza, como se ela não tivesse nada a ver com a vida humana. Nós podemos errar na parte de técnica econômica, mas eticamente não podemos aceitar uma direção contínua da economia que perpetua a miséria. BF – Essa análise do atual governo parece com uma avaliação que o senhor fez do governo Fernando Henrique Cardoso, quatro anos atrás. Comparato – É verdade, há muita semelhança nas critícas que fiz ao governo anterior. O agravante é que havia muita confiança em Lula. E sobre essa questão da confiança no governo, eu gostaria de lembrar um diálogo entre Confúcio e um discípulo: – Mestre, no que consiste a arte do governo? – pergunta o discípulo. – Em três coisas. Dar alimentos à população, distribuir armas e suscitar a confiança – responde Confúcio. – Mas, se tivéssemos de eliminar uma dessas três coisas, qual seria? – questiona o jovem. – As armas – diz o mestre. – E entre as duas restantes? Se nós tivéssemos que optar, qual delas eliminaríamos? – insiste o rapaz. – Os alimentos, que a morte acompanha a humanidade desde o início. Mas um governo não pode existir sem o mínimo de confiança do povo – é a lição de Confúcio. É por isso que a nossa situação me parece trágica. Podem dizer que as últimas pesquisas de opinião mostram que o povo continua a ter confiança pessoal no presidente Lula – não tem no governo, mas tem no presidente. É verdade, mas isso é típico da relação política atual, no mundo todo, e sobretudo no Brasil. O povo não faz uma reflexão crítica em relação ao governo. As pessoas têm sentimentos e intuições, e são dominadas pelo carisma pessoal. O carisma pessoal do Lula permanece praticamente o mesmo desde a eleição. Um trabalhador não se dá conta, por exemplo, de que se for despedido é porque os bancos pressionaram a sua empresa; ele não sabe que, se os bancos têm esse poder, é porque o governo está aliado aos bancos. Se o trabalhador fizesse esse raciocínio, a popularidade do presidente cairia praticamente a zero. Não digo a zero porque ainda sobraria um percentual de pessoas ligadas aos bancos, e até mesmo à grande indústria. BF – Então o povo está à mercê desse compromisso do governo com os bancos? Comparato – Fala-se na impossibilidade do governo do PT enfrentar poderosos. Mas eu me pergunto se o governo não tem contato com a grande indústria, que também está sofrendo com essa hegemonia bancária.


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De 1º a 7 de janeiro de 2004

NACIONAL

incapaz de apresentar um projeto de país U.Dettmar/ABR

do poder. E por isso o país envereda por um caminho sem volta, rumo ao cresimento da pobreza e da miséria falar dos pobres. Mas um governo que se afunda na estagnação econômica e só faz lamentar a desigualdade social não é um bom exemplo para os demais países pobres do mundo. É preciso entender isso. Durante o governo militar, por exemplo, é claro que a política militar do país não podia ser favorável à defesa dos direitos humanos. Seria uma contradição manifesta com o que existia no Brasil. Essa contradição começa a

Comparato – Eu não sou tão pessimista assim. Eu acho que a esquerda vai sofrer uma espécie de depuração. Vai ter que abandonar necessariamente essa crença de que, chegando ao poder, vai dominar as forças que tradicionalmente organizam, ou desorganizam, o país. A esquerda vai entender que é preciso um outro tipo de trajeto para o país, sobretudo outro tipo de preparação para o exercício do poder.

É preciso que alguém de fora do Estado diga a eles uma verdade simples: o PT não assumiu o governo para aumentar a miséria do povo

A política externa tem sido a única coisa que se salva no governo. Será que o morador de Guaribas (PE) se importa?

Eu me pergunto se o pessoal que está lá em cima, que é inteligente e tem conhecimento dos dados, acredita realmente no que fala PT tinha autoridade moral para expulsar. Hoje, faz aliança com o PTB, acordos com José Sarney e com Antônio Carlos Magalhães, negocia com plantadores gaúchos de soja transgênica. Qual a autoridade que o PT tem para expulsar esse pessoal? BF – Que análise o senhor faz da política externa do governo? Comparato – Até agora, a política externa tem sido praticamente a única coisa que se salva nesse governo. Não que os demais ministérios fora da área econômica estejam apresentando um desempenho ruim. Mas eles estão sendo asfixiados pela política econômica. No caso da política externa, tradicionalmente essa asfixia não acontece. Apesar de todos os cortes feitos pela Secretaria do Tesouro no Ministério das Relações Exteriores – que fazem

A conversa com os bancos tem que ser “de poder” para “súdito”, e o governo se coloca na posição inferior Roosevelt Pinheiro/ABR

As pequenas e médias indústrias estão comendo o pão que o diabo amassou. Politicamente, portanto, seria viável que o governo tentasse se aliar com esse setor econômico. Em vez de hostilizá-lo, chamá-lo para ser seu aliado perante os bancos. Mas o governo não fez isso. Neste caso, o juízo moral é horrível – eles aceitaram tomar o poder sabendo que não poderiam fazer nada pelo povo. Isso é inadmissível. Temos que dar sempre às pessoas um mínimo de confiança e não podemos fazer um julgamento definitivo do caráter das pessoas. Eu ainda acho que essa situação em que o governo se colocou é uma situação típica do aprendiz de feiticeiro, o velho mito do doutor Fausto, que assumiu o poder e achou que poderia negociar com o diabo em condições vantajosas. O governo superestimou sua capacidade de negociar com o diabo e agora vai amargar a sua situação de sujeição. Como eu disse antes, o governo só está enxergando a si mesmo, não está vendo o entorno. É preciso que alguém de fora do Estado diga a eles uma verdade simples: o PT não assumiu o governo para aumentar a miséria do povo, para arruinar pequenas e médias empresas. Esse é um caminho sem volta. BF – O que o senhor acha das punições aos integrantes do PT que se rebelaram contra os rumos do governo? Comparato – São lamentáveis. No passado, o PT já expulsou partidários. Mas o PT do passado não é o PT do presente. O

com que muitas vezes os diplomatas brasileiros enfrentem um constrangimento no exterior – a política externa pode se desenvolver livre desses constrangimentos financeiros porque não é uma política de investimento econômico. Acontece que nenhuma política econômica progressista pode permanecer muito tempo nessa linha com um governo conservador e retrógrado, pois há uma contradição evidente no governo brasileiro. Ao mesmo tempo em que lidera movimentos de libertação da periferia do mundo capitalista, das injunções que vêm do centro do sistema, se conforma aplicadamente com todas as obrigações que são impostas ao país pelo Fundo Monetário Internacional. Um país com crescimento expressivo da sua economia e que reduz sua pobreza tem autoridade para

aparecer agora no campo da política econômica. A Argentina, por exemplo, suspendeu o pagamento da dívida pública e com isso teve um alívio extraordinário – o país voltou a crescer e o desemprego foi reduzido de maneira substancial. A Argentina mostrou que já estava podendo respirar fora da câmara hermética em que ela havia sido encerrada pelos governos anteriores, mancomunados com os organismos financeiros internacionais. Por isso a Argentina apresenta melhores condições que o Brasil para propugnar a realização de uma política externa independente. E a coisa se coloca perspectivamente: o Brasil, até agora, graças à excelente administração do Ministério das Relações Exteriores, tem mantido uma política independente no que diz respeito às injunções que vêm dos Estados Unidos quanto à formação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Mas tudo isso precisa ser visto com cuidado. Eu pergunto por que os Estados Unidos acabaram aceitando a posição brasileira na Alca? Não se pode esquecer que eles estão às vésperas de eleições presidenciais. Um fracasso nesse campo acabaria repercutindo negativamente. Até que ponto, se viermos depender mais uma vez do FMI, os Estados Unidos não estarão por trás do Fundo para nos pressionar, exigindo uma política mais razoável em relação à constituição da Alca? São essas dúvidas que ficam pairando sobre todos nós. E mais uma vez repito: não se trata de algo que vem da maldade dos homens em si. Os homens do governo fizeram uma opção errada e entraram de ponta-cabeça em um sistema de poder que dificilmente permite uma saída. BF – O PT representa o maior acúmulo já conquistado pelas forças de esquerda no país, nos últimos anos. O senhor acredita que um fracasso de um governo do PT possa trazer sérias conseqüências para a esquerda brasileira?

Ministros participam de reunião com o presidente Lula, para avaliar ações de 2003

BF – Qual o papel dos movimentos sociais nessa conjuntura? Comparato – Um papel fundamental. Quero aproveitar para afirmar com toda a convicção o acerto da linha seguida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Existe, em toda relação de poder, uma espécie de dialética entre o poder que manda e o poder que impede. Até agora, a esquerda só se preocupou em chegar lá para mandar, mas não percebeu que a tendência natural do poder de mando é se concentrar em si mesmo e eliminar os seus rivais ou os obstáculos ao desempenho de sua ação. Ao contrário, o poder que pertence ao povo deve ser sempre um poder de impedir, de fixar limites àqueles que mandam, e é exatamente isso que faz o MST, com muita propriedade. Ele procura impedir que o poder enlouqueça, e a todo momento chama atenção para o fato de que o poder se deixa levar por uma certa negligência, por uma certa preguiça, por um certo conformismo burocrático. Quando o MST decidiu não se tornar um partido político, teve uma visão muito sábia da realidade porque o movimento defende muito mais o povo e seus direitos fundamentais mergulhado na sociedade civil, atuando como fermento na massa, do que se quisesse se catapultar para o centro do poder e começar a mandar. O que temos de fazer com o governo do PT é nos fortalecer como movimentos sociais para, a todo momento, mostrar ao governo a realidade que ele não quer ver. E, a todo momento, apontar implacavelmente os erros cometidos. É preciso fazer isso de maneira ensurdecedora, sem lhes dar um minuto de descanso porque, na verdade, eles são servos do povo. Eles estão na condição, ou deveriam estar, de simples ministros, e ministro é uma palavra que vem de minus, quer dizer, de menor. Eles sempre são menores em relação ao povo; é o povo que é soberano. BF – Que medidas concretas poderiam mudar os rumos do país? Comparato – A moratória da dívida externa e uma mudança substancial da dívida interna. Seria preciso colocar o restante do mundo em uma posição de fato consumado e, a partir daí, poderíamos negociar. O que há de terrível na renovação do acordo com o FMI não é o fato de aumentarmos a dívida. O pior é que, se por acaso o governo quiser fazer alguma mudança que contrarie o acordo, terá de reembolsar imediatamente a dívida. Foi lamentabilíssimo o governo não ter aproveitado uma ocasião que não foi criada por ele, mas pelo governo anterior, e pôr fim ao acordo com o FMI. Porém, a equipe econômica considerava o novo acordo uma espécie de cinto de segurança para impedir que as pressões sobre a mudança da política econômica chegassem a um extremo, para não haver qualquer possibilidade de retorno.


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De 1º a 7 de janeiro de 2004

NACIONAL CONJUNTURA ECONÔMICA

Mais um ano de arrocho desnecessário

O achatamento da renda, o avanço do desemprego e a queda do consumo condenam a economia à estagnação

Total de pessoas desocupadas, em milhões 3,0

2,5

2,0

Out 2002 DESEMPREGO

Nov

Dez

Jan 2003

Fev

Mar

Abr

Mai

Jun

Jul

Ago

Set

Out

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE

A RENDA DOS EMPREGADOS DESABA Rendimento real médio efetivamente recebido, valores em reais

1200

1000

800

RENDA

Set 2002

Out

Nov

Dez

Jan 2003

Fev

Mar

Abr

Mai

Jun

Jul

Ago

Percentual de pessoas ocupadas sem carteira assinada e por conta própria

50

40

Out Nov Dez Jan 2002 2003 MERCADO DE TRABALHO

Depois de estacionar ao redor de 13% entre maio e outubro, a taxa de desemprego recuou para 12,2%, em novembro, e deverá encerrar o ano não muito longe disso. No ano passado, a taxa fechou em 10,9%. O total de pessoas desocupadas, em novembro, alcançou 2,609 milhões, crescendo de 23% nos primeiros onze meses do governo.

Set

5 4 3 2 1 0 -1 -2 -3 -4

Out Nov 2002

PRODUÇÃO

Dez

Jan 2003

Fev

Mar

Abr

Mai

Jun

Jul

Ago

Set

Out

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE

Variação em relação ao mês anterior, em %

-8 -10

VENDAS

Out Nov 2002

Dez

50

COMEM TODA

2002

2003*

Fonte: Banco Central do Brasil (Bacen)

50

DÍVIDA

2002

Ago

Set

Out

1999

1998

2000

2001

2002

2003*

NO SETOR PÚBLICO

A política de cortes indiscriminados de gastos permitiu que o governo “poupasse”, nos doze meses terminados em outubro de 2003, perto de R$ 62,5 bilhões mais do que o próprio FMI havia exigido. Na comparação com 2002, o superávit primário entre receitas e despesas do setor público, excluído os gastos com juros, cresceu praticamente 20% e dobrou desde 1999.

Saldo em dezembro da dívida pública líquida, valores correntes em bilhões de reais

800 600 400 200 1998

“ROMBO”

1999

2000

2001

2002

2003*

E DÍVIDA AVANÇAM

Como a despesa com juros foi muito maior, em 2003, o “rombo” final do setor público cresceu 43%, para R$ 88,2 bilhões - o que representou praticamente 122% a mais do que em 2000. Para cobrir essa diferença entre despesas e receitas, representada pela conta dos juros, o governo foi buscar recursos no mercado, endividando-se ainda mais: a dívida do setor público alcançou, em outubro, R$ 890 bilhões, cerca de 57% do PIB. Reservas internacionais disponíveis, em bilhões de dólares

100

2001

Jul

AS RESERVAS CONTINUAM "MAGRAS"

150

2000

Jun

Receitas menos despesas do setor público, em bilhões de reais acumulados em 12 meses

80 70 60 50 40 30 20 10 0

* Posição em outubro

200

1999

Mai

O GOVERNO ARROCHA DESPESAS PARA POUPAR RECURSOS DOS IMPOSTOS

Dívida externa total, em bilhões de dólares

* Posição em agosto

Abr

As vendas do setor tendem a anotar, em 2003, o terceiro ano consecutivo de queda. Em outubro deste ano, as vendas registraram o 11º mês seguido de baixas, caindo 3,04% em relação ao mesmo período de 2002. O IBGE registrou redução em 21 do 28 meses, sempre na comparação com igual mês de 2002.

“POUPANÇA”

A DÍVIDA EXTERNA DO PAÍS VOLTA A AVANÇAR

0

Mar

DO COMÉRCIO

0

As despesas com juros superaram toda a “poupança” feita pelo governo, às custas de cortes de despesas essenciais. Foram gastos, também nos doze meses encerrados em outubro de 2003, perto de R$ 150,7 bilhões, pouco mais de 32% acima da despesa de 2002 e 93% mais do que em 2000. O superávit primário cobriu apenas 41,5% da despesa com juros e o setor financeiro acumulou lucros outra vez recordes.

250

Fev

2003*

EXTERNA

Mesmo quebrando recordes na área das exportações, a dívida externa do país continuou crescendo em 2003, passando a 232,6 bilhões de dólares, diante de 227,7 bilhões de dólares em 2002. Um dos motivos para esse crescimento foi que o país teve que pagar quase 44 bilhões de dólares aos seus credores externos.

80 70 60 50 40 30 20 10 0

Fonte: Banco Central do Brasil (Bacen)

JUROS

Jan 2003

Fonte: Banco Central do Brasil (Bacen)

Fonte: Banco Central do Brasil (Bacen)

100

2001

Out

A DÍVIDA DO SETOR PÚBLICO CONTINUA CRESCENDO

150

2000

Set

-6

1000

1999

Ago

-4

200

1998

Jul

-2

DESPESAS COM JUROS DISPARAM

* Fluxo acumulado em 12 meses, até outubro

Jun

0

Gastos acumulados em 12 meses, valores em bilhões de reais

0

Maio

Variação em relação ao mesmo mês do ano anterior, em %

ARROCHO

A recuperação esperada para o final do ano não chegou com a intensidade prevista. Em São Paulo, a indústria voltou a demitir em novembro, sugerindo estagnação da atividade industrial na maior economia do país. As indústrias de alimentos e de remédios, ligadas diretamente ao mercado interno, continuam encolhendo.

Abr

2

* Fluxo acumulado em 12 meses, até outubro

INDUSTRIAL

Mar

AS VENDAS DO COMÉRCIO DESPENCAM

E SALÁRIOS

A PRODUÇÃO INDUSTRIAL DERRAPA

Fev

A economia continuou criando empregos, mas em número insuficiente. Foram abertas mais 765 mil vagas, entre janeiro e novembro de 2003, para 1,256 milhão de pessoas que passaram a procurar colocação, gerando um saldo negativo de mais 491 mil desempregados. Para agravar, praticamente 92% das vagas criadas foram ocupadas por empregados sem carteira e por conta própria.

-12

Em 2002, a participação da renda dos empregados no Produto Interno Bruto (PIB) havia desabado para apenas 36,1%, diante de 45,4% em 1990 - o que explica porque a economia não consegue crescer. Nos países ricos, aquela participação chega a 60% do PIB. Em 2003, a renda dos ocupados continuou em baixa, atingindo, em novembro, queda de 13% em relação ao mesmo mês de 2002.

alta acelerada, com o aumento dos preços puxado pela escalada das cotações do dólar. O avanço dos preços, naquele cenário, tenderia a perder fôlego, nos meses seguintes, como apontaram analistas independentes, porque a economia já estava desaquecida. A fuga do consumidor, em função do desemprego e do achatamento dos salários, já estava provocando um esfriamento das vendas, o que obrigaria as empresas a baixar preços, mais adiante. Sem a necessidade de novo arrocho.

O MERCADO DE TRABALHO SE DETERIORA

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE

O DESEMPREGO AVANÇA

A política de juros altos não teve alterações, debilitando ainda mais a economia. Pior: a elevação das taxas aumentou o “rombo” entre receitas e despesas do governo, tornando inútil a “economia” feita com o corte de despesas. Ao contrário do que sugerem análises feitas nas últimas semanas por ministros e pela equipe econômica, a manutenção da política de arrocho não era exatamente imprescindível. Como se recorda, no final de 2002 a inflação entrou em

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE

O

s números para a economia em 2003, primeiro ano do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mostram um balanço largamente negativo em quase todas as áreas. O desemprego encerrou o ano à taxa de 12%, contra 10,9% em 2002. A renda dos ocupados e os salários dos empregados continuaram em queda. Em meio a tudo isso, o mercado de tra-

dar continuidade à política de arrocho aplicada ao longo de oito anos pelo governo anterior, acolhendo-se integralmente a “cartilha” recomendada por credores internacionais e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para não descontentá-los. Aprofundou-se o corte de gastos, deixando à míngua setores essenciais, como saúde e educação, e paralisando até mesmo a emissão de carteiras de identidade e passaportes para economizar os recursos e pagar os juros da dívida pública.

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE

balho ainda experimentou sensível deterioração, causada pelo avanço das contratações de empregados sem carteira assinada e do número de ambulantes, de camelôs e de trabalhadores que não tiveram outra opção a não ser fazer “bicos” em empregos temporários e sem garantias. Com isso, as vendas do comércio despencaram, a produção industrial permaneceu estagnada e as demissões se mantiveram. Tudo porque a equipe econômica decidiu

Fonte: Banco Central do Brasil (Bacen)

Lauro Jardim de São Paulo (SP)

1992

1993 1994 1995 1996 1997

* Posição em outubro

RESERVAS

1998 1999 2000

2001 2002

2003*

INTERNACIONAIS

A vulnerabilidade externa do país pode ser expressa no comportamento das reservas externas. Em outubro, o Brasil tinha, em caixa, 20,6 bilhões de dólares, o equivalente a cinco meses de importações.


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De 1º a 7 de janeiro de 2004

NACIONAL REFORMA AGRÁRIA

Lula pode perder o trem da história Claudia Jardim, Jorge Pereira Filho e Nilton Viana da Redação

Douglas Mansur

Ariovaldo Umbelino de Oliveira alerta: essa é a última chance de fazer a reforma agrária pela via constitucional

E

sta é a última chance histórica de fazer a reforma agrária pelas vias institucionais e, ao mesmo tempo, gerar empregos e garantir soberania alimentar. A opinião é do geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, integrante da equipe do professor Plínio de Arruda Sampaio, responsável pela elaboração do Plano Nacional de Reforma Agrária do governo Lula. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele revela dados sobre a propriedade improdutiva no Brasil e o papel político dos movimentos sociais para que a reforma agrária não caia no tempo ditado pela burocracia.

Parte do governo vê a reforma agrária apenas como uma política compensatória

Quem é Estudioso dos movimentos sociais na zona rural, Ariovaldo Umbelino de Oliveira chefia o departamento de Geografia e o laboratório de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo. É autor dos livros Modo capitalista de produção e agricultura (Ática), A agricultura camponesa no Brasil, A geografia das lutas no campo (Contexto) e Amazônia: monopólio, expropriação e conflitos (Papirus). a ele. Mas são respostas que não colocam esse setor reformado como parte constitutiva do núcleo central da economia, capaz de alavancar processos gerais, de geração de renda. BF – Como inverter essa lógica? Oliveira – O plano que fizemos pretendia tirar um milhão de assentados da base da pirâmide social do Brasil, assentados que sairiam de uma renda inferior a um salário mínimo por mês para uma situação de renda mensal de três ou quatro salários mínimos. Ou seja, por meio de uma política que permitiria a aquisição dos produtos agrícolas dos assentados, permitiria-se que eles fossem se consolidando também do ponto de vista econômico e financeiro, porque teriam que fazer pequenas poupanças para pagar a terra – que não é entregue de graça.

Qualquer proprietário que olha uma política de reforma agrária vê o dinheiro batendo asas. É como senhor de escravos do governo Lula se aproxima muito à concepção do governo Fernando Henrique. Ao analisar as metas do PNRA, vemos que elas não são muito diferentes daquilo que o último governo fez. Inclusive, são menores do que o próprio PT já teve nas eleições de 89 e 94. São metas que considero extremamente tímidas tendo em vista que não alterarão de forma significativa o índice de concentração fundiária do Brasil. Isso significa que uma parte será assentada, mas corremos o risco de ter muito mais acampados do que temos nesse momento, porque a meta deste ano não será capaz de assentar quem já está acampado. BF – Isso significa que não haverá reforma agrária? Oliveira – Não é que não haverá reforma agrária. Ela será uma reforma agrária visando apenas uma política compensatória. Lula foi eleito com votos de uma parte expressiva dos movimentos sociais e é preciso dar respostas

Arquivo JST

Brasil de Fato – Qual o balanço do primeiro ano de governo Lula na questão agrária? Ariovaldo Umbelino de Oliveira – Esse ano foi marcado por uma espécie de compasso de espera. De um lado, os movimentos sociais acreditando que o governo poderia implementar uma política mais arrojada de reforma agrária e, de outro, o governo que demorou um pouco para desencadear o processo de elaboração do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Só em meados de maio e junho, com o aumento dos processos de luta dos movimentos sociais, o ministério cuidou de preparar o PNRA. Isso mostra que, na realidade, Lula foi eleito sem um plano de fato para o campo. Ao mesmo tempo, há um clima de frustração no fim do ano, em função do baixíssimo índice de assentamentos que o governo conseguiu fazer em 2003. Então, o quadro não é nada animador. BF – O que impede esse governo de fazer a reforma agrária? Oliveira – Vivemos um período crítico, pois aqueles intelectuais que estão ocupando cargos decisórios no núcleo duro do governo não vêem a reforma agrária como uma alternativa de política de desenvolvimento econômico. Ao contrário, vêem a reforma agrária apenas como uma política compensatória. É evidente que isso é contraditório porque os movimentos sociais estão aí. É praticamente o único setor da sociedade civil que responde rapidamente à ausência de políticas voltadas para o campo. A concepção desse núcleo duro

BF – Na verdade, o PNRA não vai mexer na estrutura fundiária. Oliveira – Exatamente. A primeira tentativa era que a reforma agrária fosse feita em terras públicas. Quando se descobriu que essas terras eram insignificantes – havia praticamente 5 milhões de hectares de terras disponíveis – então o caminho seria a desapropriação. No entanto, houve uma tentativa de desqualificar os dados existentes no cadastro do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]. É curiosa essa desqualificação porque no cadastro do Incra as informações são prestadas pelos proprietários rurais. É um cadastro declaratório. O equívoco foi achar que ao mexer no setor das terras cadastradas no Incra, mexeriam na estrutura do agronegócio, o que não procede. A área total ocupada pela agricultura brasileira hoje não vai além dos 50 milhões de hectares, num país que tem 850 milhões de hectares. Desses, se tirarmos 120 milhões

de terras indígenas, 110 milhões de áreas de preservação, ainda restam mais de 500 milhões de hectares que estariam disponíveis. O cadastro do Incra aponta cerca de 410 milhões de hectares. Isso quer dizer que há aí uma faixa de 100 a 200 milhões de hectares de terras “não cadastradas”, terras devolutas. Mas se analisarmos Estados como São Paulo, Paraná ou Rio Grande do Sul, fortemente ocupados do ponto de vista da atividade econômica, fica a sensação de que não existem essas terras não ocupadas. Isso revela que as escrituras dos proprietários contêm uma área inferior à que eles de fato ocupam. Isso quer dizer que na hora que tivermos um cadastro fundiário rigoroso, se descobrirá que os proprietários ocupam mais terras do que de fato deveriam ocupar. Essa informação é valiosa pois poderia oferecer terras a custo quase zero para a reforma agrária. BF – Que o percentual dessas terras fará parte do PNRA? Oliveira – Se avaliarmos as metas do plano, das 500 e poucas mil famílias que estão previstas para serem assentadas nos quatro anos de governo, vamos verificar que 150 mil vão se beneficiar da política do que era o Banco da Terra, em que as propriedades serão compradas. Uma outra parcela será assentada em terras públicas ou em terras arrecadadas. Assim, as terras de fato improdutivas serão a menor parte do PNRA. BF – Da meta estipulada, quantas famílias devem ser assentadas efetivamente? Oliveira – Não chegamos a fazer uma estimativa, mas imagino que menos de 50% dos assentamentos serão feitos por desapropriação baseada na Constituição e no Estatuto da Terra, em um quadro em que os dados de outubro de 2003 revelavam a existência de algo em torno de 112 milhões de hectares classificados como improdutivos. Isso já obrigaria o governo a cumprir a Constituição e mandar desapropriar essas terras imediatamente. Mas

parece que isso não é prioridade no Ministério do Desenvolvimento Agrário. BF – O que muda na economia e na sociedade brasileira com a reforma agrária? Oliveira – Uma política de reforma agrária ampla poderia gerar inicialmente um aumento da oferta de empregos. Alguns estudos mostram que cada assentamento geraria de 2 a 3 empregos diretos, e de 2 a 3 indiretos. De cara haveria impacto social, tirando uma parte expressiva da população do desemprego. A outra conseqüência é a produção de alimentos. Como a área é restrita, o proprietário tem de ocupar tudo o que pode, em via de regra com policultura, aumentando a oferta de alimentos. Isso colocaria em questão o papel econômico desse aumento de produção. Esse seria

o quadro de violência. Seria fundamental criar varas judiciais agrárias no país para acelerar a apuração dos crimes. A punição exemplar poderia promover mudanças no comportamento dos latifundiários. Penso que eles agem assim porque encontram respaldo nas elites governantes. Hoje não há esse respaldo do governo federal, mas certamente existe do ponto de vista dos governos estaduais. O governo de São Paulo é um exemplo típico. Adota uma estratégia política no Pontal do Paranapanema favorável aos latifundiários e não aos sem-terra, porque tem na Secretaria da Justiça um representante do PFL que evidentemente comunga com os princípios gerais de que a reforma agrária não é uma alternativa, que os proprietários de terra não devem perder esse patrimônio. Qualquer proprietário, na hora em que olha uma política de reforma agrária, vê seu dinheiro batendo asas. É como o senhor de escravos no fim da escravidão. Então, a reforma agrária tem de ser uma política corretiva, porque a terra não é uma propriedade como as demais. Acredito que, se o governo Lula abrisse inscrições gerais para assentar todos aqueles que têm potencialmente o desejo de voltar ao campo, esse número não seria os 830 mil do Fernando Henrique. Estima-se que este número oscile entre 3 milhões e 5 milhões de famílias, enquanto a meta do PNRA [500 mil] é 10% desse total. BF – E como fica o orçamento de 2004? Oliveira – Como está no Congresso, o orçamento não tem recurso para a reforma agrária. Mas no momento que o governo se compromete publicamente a tomar essas medidas, precisa encontrar esses recursos. Terá de haver remanejamento orçamentário, como houve em 2003, quando o governo não utilizou todo o orçamento que tinha. E por várias razões, uma parte por contingências e outra por não implantar todas as políticas que os recursos financeiros permitiriam. O ministério fechará o caixa no azul. Ainda não há um quadro para dizer “o Lula não está atendendo aos objetivos que eles mesmo disseram que fariam”. Por enquanto, existem promessas. Então, aos movimentos sociais só resta uma alternativa: se mobilizar politicamente. Se não houver mobilização política, a implantação da reforma agrária obedecerá o tempo da burocracia e todos sabemos que é um tempo longo.

Lula foi eleito com votos de parte expressiva dos movimentos sociais e é preciso dar respostas a eles o ponto a ser alterado. Não há, no sistema capitalista no mundo, um quadro que permita à agricultura se reproduzir sem uma política de subsídio. A idéia inicial da equipe coordenada pelo professor Plínio de Arruda Sampaio para o 2 º PNRA é de que o próprio Estado fosse o grande comprador dessa produção vinda dos assentamentos da reforma agrária e de uma parte da produção dos pequenos agricultores do país. Esses alimentos poderiam ser destinados ao Fome Zero, para merenda escolar, para o abastecimento das forças armadas, do sistema prisional. BF – Como conter a violência no campo? Oliveira – Acredito que ela derive do quadro de impunidade do Brasil, fazendo com que os proprietários de terra continuem

BF – Se a reforma agrária não for feita, o que a sociedade brasileira pode esperar? Oliveira – O quadro histórico é de que haverá mobilização social e, se um governo popular, com um conjunto de políticas reformistas, não realizar a reforma agrária, a chamada via institucional começará a ser questionada. Não há outra possibilidade. Desde o governo Sarney, em 1985, insiste-se na via institucional para fazer a reforma agrária. Se não é possível, os movimentos acabarão conscientes disso e que é necessário buscar outras alternativas. O governo Lula vive um momento de desafio político. Se fracassar na reforma agrária, ela não mais será alcançada institucionalmente. Isso quer dizer que as forças sociais terão de buscar outros caminhos.


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De 1º a 7 de janeiro de 2004

NACIONAL ALCA

Livre comércio internacional é ilusão Jorge Pereira Filho da Redação

Paulo Maldos

Economista Marcos Arruda defende ampla mobilização popular para mudar os rumos da economia do governo Lula

O

economista Marcos Arruda é cético em relação às negociações travadas no âmbito da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Para ele, a estratégia brasileira não rompe com o marco ideológico do neoliberalismo. “Não existe livre comércio”, enfatiza, explicando que as transferências financeiras feitas pelas transnacionais, os oligopólios e os subsídios agrícolas distorcem qualquer idéia de livre mercado. Arruda elogia a iniciativa diplomática do governo, de fortalecer o diálogo com países do hemisfério Sul, mas critica a orientação econômica. “À medida que aprofundamos nossa dependência de capitais externos, não vamos fazer uma autônoma política internacional”, analisa. A solução? “Ou nós botamos o Lula na parede para mostrar que o povo quer outro caminho ou perdemos a guerra”.

Delegação brasileira participa de protestos contra a Alca durante reunião ministerial de novembro, em Miami (EUA)

Quem é O economista Marcos Arruda é educador do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs) e participa da Campanha Jubileu Sul. Também atua como consultor nas áreas de macroeconomia, globalização e políticas de desenvolvimento local, nacional e global. operam. Existem produtos que estão subordinados ao oligopólio, monopólio ou cartéis de grandes grupos do Hemisfério Norte. Se eliminar tudo, incluindo os produtos subsidiados pelo Hemisfério Norte e as áreas protegidas contra exportações do Sul, não existe

O Brasil não está no bom caminho. Segue jogando dentro do contexto ideológico e doutrinário do livre comércio BF – O que mudou depois de Miami? Arruda – Chegou-se à reunião de Miami com a preocupação de não deixar a Alca cair no buraco. Brasil e Estados Unidos, que estão na presidência da atual rodada de negociações, decidiram reduzir a pauta de negociações para sair com uma vitória de Miami. Isso é o que se chama de Alca mínima. Essa proposta, no entanto, é uma maneira de fazer rolar uma discussão que não vai se resolver com facilidade. Os Estados Unidos querem fazer uma Alca que envolva todas as áreas de negociação. Miami foi um recuo tático dos Estados Unidos, que não corresponde de maneira alguma ao que vai ocorrer em 2004, último ano das negociações para assinatura do acordo. Uma vez encaminhado o processo eleitoral nos Estados Unidos, e assegurado a Bush que ele tem mais cacife para negociar os temas de comércio internacional, vai endurecer outra vez. BF – E a estratégia brasileira nesse contexto? Arruda – O Brasil não segue no bom caminho, embora pareça o contrário. Está jogando dentro do contexto ideológico, doutrinário do livre comércio, quando nós esperávamos que o governo Lula colocasse na mesa as cartas da realidade. Não existe livre comércio internacional, pois trocas no interior das transnacionais distorcem profundamente a liberdade de mercado. Essas empresas fazem transferências ilegais de lucros, de um país para outro, conseguindo benefícios às custas do fisco de cada um dos países onde

Arquivo PACS

Brasil de Fato – Como o Brasil tem se posicionado nas negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca)? Marcos Arruda – O Brasil tem sido a liderança da resistência ao que se convencionou chamar Alca abrangente. Mas não por estar preocupado com a falsidade do livre comércio ou com os efeitos que esses temas, como serviços, investimentos, compras governamentais e propriedade intelectual, podem trazer para os países da América Latina. A razão pela qual o Brasil se opõe – e digo isso com dor porque gostaria que fosse por melhores ideais – é arrancar concessões na área de agricultura. Em troca, oferece concessões nas áreas estratégicas.

mercado livre. O problema é que jogamos esse jogo, fingindo que acreditamos nele. É lamentável. BF – Esse discurso dentro do marco do livre comércio se repete na Organização Mundial do Comércio (OMC)? Arruda – Sim, se repete, mas a OMC é o quadro menos desfavorável. Quando há vários grandes países na nossa frente, temos a possibilidade de jogar com as contradições existentes entre eles e tentar fazer negociações que diversifiquem nossa dependência. Em vez de colocar todos os ovos numa cesta só, a gente coloca um pouco na Europa, um pouco no Japão, nos Estados Unidos, e muito na relação Sul-Sul. Essa é a parte mais inovadora e avançada do governo Lula. O que ocorreu de melhor foi a abertura de conversações comerciais, de diálogos, de colaboração da América Latina e entre países da África e Ásia. Uma negociação Sul-Sul com enorme perspectiva e que já mostrou sua força em Cancún. A OMC tem essas oportunidades, melhores do que a Alca.

posse de Lula. Não podia esperar que ele fosse recuar e ceder tanto ao FMI, arquivando completamente sua postura crítica. O que vemos é a continuidade de uma postura sabuja, pelega, que tem afastado o Brasil da Argentina, um país arruinado pelo caminho que seguiu com o FMI. O Brasil está fazendo tudo para que ocorra uma argentinização do país. Isso me admira profundamente e me revolta. Nesse momento, quando a Argentina se levanta para dizer que quer uma negociação menos subordinada com o FMI, o Brasil fica mudo. É inacreditável. A política econômica do governo Lula é a área mais desastrosa desse primeiro ano de gestão. BF – E é possível desenvolver uma política externa soberana aceitando tal extrema dependência do capital externo? Arruda – Não pode ter essa política soberana, assim como não poderá ter uma política social transformadora. A economia faz a sociedade, gera bem-estar ou carência social. É uma economia igualitária que gera uma sociedade igualitária. Apresentar programas sociais para minorar os sofrimentos, a fome, a exclusão, o desemprego, sem fazer mudanças profundas na economia, é uma receita de permanente fracasso. Só um casamento autêntico entre a economia e o social na formulação das políticas de desenvolvimento do Brasil pode resolver os problemas do nosso país de maneira sustentável. À medida que aprofundamos nossa dependência de capitais externos para cumprir e manter o

O movimento social não pode ficar esperando que Lula ou qualquer governo atenda aos interesses da maioria do povo BF – O presidente Nestor Kirchner denunciou as imposições do Fundo Monetário Internacional (FMI) para a Argentina aumentar o pagamento da dívida externa. Por que o Brasil não entra nesse debate? Arruda – Estou admirado com as mudanças depois da tomada de

círculo vicioso do endividamento financeiro em que o governo está afundado até o nariz, nós não vamos fazer uma autônoma política internacional. BF – E como essa política do FMI se articula com a Alca e a estratégia militar dos Estados Unidos?

Arruda – Trata-se de um projeto que denunciamos continuamente na Campanha Jubileu Sul. Apesar de todo o fracasso das políticas neoliberais nesses últimos 20 anos, sua característica principal é não ceder no essencial, na defesa de que o mercado resolva todos os problemas. Essa é espinha dorsal de um projeto que busca subordinar países do Hemisfério Sul e, em especial, da América Latina, em três campos.

Primeiro, no campo financeiro, por meio das dívidas, e isso se concretiza nos programas de ajustes estruturais impostos pelas nossas elites, tendo o FMI e o Banco Mundial como representantes dos credores. Segundo, a área comercial e econômica, por meio de acordos bilaterais ou multilaterais (como a Alca), que liquidam a possibilidade de um projeto próprio de desenvolvimento. O terceiro braço é a garra militar, fortalecida em razão da debilidade da situação social e a violência que prevalece nos centros urbanos. Os Estados Unidos usam o pretexto de que é preciso controlar o narcotráfico para fazer acordos militares, instalar bases na América Latina e propor um sistema de segurança regional liderado pelos EUA. Se as populações dos nossos países não abrirem os olhos e não forem para a rua rápido, as conseqüências podem ser muito graves. BF – Como tem sido a participação popular na recusa do projeto neoliberal? Na Bolívia, por exemplo, a insatisfação já derrubou um presidente. Arruda – Há sinais positivos, mas ainda muito precários. Houve manifestações no Equador, na República Dominicana. Na Bolívia, há três anos há levantes, desde quando uma transnacional quis controlar a água em Cochabamba. Agora, derrubaram um presidente que não apenas era pró-EUA como tinha sotaque estadunidense. Mas são situações ainda pontuais frente à força do rolo compressor que o outro lado tem. O outro lado conta com uma cumplicidade terrível das elites dos nossos países. O movimento social precisa tomar logo as ruas. Não pode mais ficar esperando que o governo Lula, ou qualquer outro governo, vá cumprir a pauta de interesses da maioria da população. O governo Lula está sob tremendas pressões, que são cotidianas nas áreas econômica, política e eleitoral. Ou nós ocupamos as ruas, botamos o Lula na parede para mostrar que o povo quer outro caminho, ou perdemos a guerra.

CALENDÁRIO DE MANIFESTAÇÕES EM 2004 A Campanha Jubileu Sul articula movimentos sociais com a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a União Nacional dos Estudantes (UNE), as pastorais sociais e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em torno de um calendário de mobilizações. O objetivo é combater três eixos da estratégia que subordina povos dos países pobres: os acordos de livre comércio, a dívida externa e a militarização. Veja as próximas atividades no Brasil e no mundo. JANEIRO 16 a 21 – Fórum Social Mundial – Mombai (Índia) 26 a 30 – 3º Encontro do Hemisférico contra a Alca – Havana (Cuba) FEVEREIRO 17 e 18 – Seminário dos Movimentos Sociais sobre Trabalho 1ª Semana – Rodada do Comitê negociador da Alca em Puebla (México) MARÇO 8 – Dia Internacional da Mulher 20 – Mobilização Mundial contra a Guerra ABRIL 14 e 15 – 13ª Plenária Social sobre a Alca 16 a 18 – Encontro dos Articuladores do Grito dos Excluídos 17 – Início da Semana de Luta pela Reforma Agrária MAIO 1º – Dia de Luta pelo Trabalho e contra a Alca 6 a 9 – Semana Social Brasileira JUNHO 13 a 18 – Conferência das Nações Unidas sobre Comércio – São Paulo (Brasil) JULHO 1º quinzena – Fórum Social das Américas – Quito (Equador) – data a definir Reunião Ministerial de Negociação sobre a Alca (Brasil) – cidade e data a definir SETEMBRO 1º a 7 – Semana da Pátria e Grito dos Excluídos OUTUBRO 3 – Plebiscito Oficial sobre a Alca


Ano 1 • número 44 • De 1º a 7 de janeiro de 2004 – 9

SEGUNDO CADERNO CONJUNTURA INTERNACIONAL

Mudança depende da mobilização popular João Alexandre Peschanski de Cambridge (EUA)

O

presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sozinho, não tem forças para romper com a subordinação aos Estados Unidos e com a política imperial das corporações. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o professor estadunidense de lingüística Noam Chomsky afirma que apenas com mobilização do povo brasileiro, cooperação internacional e conscientização da população dos EUA Lula vai conseguir criar uma alternativa de desenvolvimento para o Brasil. Brasil de Fato – George W. Bush defende invasões, como a do Iraque, e repressões a manifestantes antiglobalização, como a de Miami na reunião da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), dizendo que fazem parte da luta por liberdade. O que é essa liberdade? Noam Chomsky – O povo brasileiro sabe bem do que se trata. No Brasil, no período da ditadura, os militares justificavam a violência e a repressão dizendo que agiam em nome da liberdade. No momento do golpe de 1964, o governo estadunidense mandou uma carta aos militares brasileiros parabenizando-os por terem proporcionado uma das maiores vitórias da liberdade no século 20. Para Bush, liberdade quer dizer “faça o que eu quero.” E isso não é contraditório com organizar golpes militares neonazistas ou, graças ao modelo neoliberal, impedir que governos democráticos, como o de Lula, consigam fazer mudanças fundamentais em seus países. A liberdade do Bush é seguir à risca o que ele quer e, se algum país resistir, esse país terá sua economia destruída.

João Peschanski

Para Noam Chomsky, só com apoio interno o governo Lula poderá romper com a subordinação às políticas imperiais

Manifestação contra a reunião ministerial da Alca em Miami (EUA), em novembro de 2003

muito clara: querem fazer nos Estados Unidos o mesmo que querem fazer no Brasil e no resto do mundo, isto é, eliminar o sistema democrático e acabar com as conquistas sociais do século passado. Enquanto restringem o poder de outros governos no mundo inteiro, desejam aumentar o tamanho e a força do governo estadunidense para que sirva aos interesses de um grupo reduzido de privilegiados. Nessa lógica, tudo o que o governo faz de bom para a população precisa ser desmontado: previdência, saúde, educação etc., e só devem sobrar os impostos. No campo da saúde, o governo investe bilhões de dólares para ajudar corporações a desenvolverem remédios, que são vendidos a preços exorbitantes,

Os governos, inclusive o brasileiro, têm duas constituições: a de seu povo e a dos investidores internacionais numa inversão de valores, pois o público financia o privado para se prejudicar. Ao mesmo tempo, de acordo com a lei, o povo não tem direito de comprar remédios no Canadá, onde são mais baratos. O povo sempre sai perdendo e quem ganha são as corporações farmacêuticas. Nos EUA, 80% são a favor da saúde pública e gratuita. Mas Bush diz que isso não é politicamente possível. BF – Internacionalmente, qual é a principal característica do governo Bush? Chomsky – Os tratados de livre comércio são um bom exemplo de como a política de Bush funciona internacionalmente. É o livre comércio implementado de toda forma: invasão, pressão política, ameaças. Na reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Cancún, o Brasil Cédric Brun

BF – Essa “liberdade” é imposta pelas corporações? Chomsky – Ela é imposta por uma rede de arranjos econômicos internacionais, que garantem que governos não têm como existir a não ser aceitando a ordem dessa rede. Assim, mesmo que eles possam tentar definir suas políticas em defesa do povo, os governos acabam muitas vezes fazendo o jogo das corporações e instituições financeiras. Os governos, inclusive o brasileiro, têm duas constituições: a de seu povo e a dos investidores internacionais. E geralmente é a segunda que prevalece, porque os investidores ameaçam o governo, enfraquecem a moeda, ditam políticas públicas. Eles têm o poder de destruir um governo. Todos os elementos do pacote neoliberal foram pensados para restringir a democracia. Quando o Brasil, por exemplo, privatiza uma instituição, privatiza uma parte de sua economia e de sua política. Reduz sua arena pública e enfraquece sua democracia. O mesmo ocorre com a privatização de serviços, como educação, saúde, segurança e previdência. A vida e a cidadania são transformadas em assuntos privados e postas à venda. Isso esvazia a democracia e a liberdade, algo que Bush pode dizer e citar, mas que politicamente não quer dizer nada, pois está vazio. BF – Quais são as conseqüências dos quatro anos de governo do Bush para os estadunidenses? Chomsky – As pessoas que estão no comando do governo estadunidense têm uma agenda

tentou alguma resistência, mas de forma limitada. Lula questionou os subsídios governamentais à agricultura dos países ricos, mas o que realmente importa é questionar a atuação das grandes corporações de agronegócio que dominam a produção e a política agrícola do mundo. A política imposta pelas corporações, na verdade, não tem nada de livre comércio. Basta ver o número de mexicanos mortos e presos na fronteira com os Estados Unidos para ter certeza que livre comércio não traz liberdade para as pessoas. A criação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Alcan ou Nafta, em inglês), em 1994, foi acompanhada pela militarização da fronteira entre o México e os EUA, o que novamente nos revela a política de Bush: maximizar os lucros das corporações e subordinar o povo. Aliás, o total de investimentos no México caíram por causa da impossibilidade de empresas locais competirem com grandes corporações. Cada vez mais, por causa do Nafta, a economia e a política do México são orientadas por transnacionais. O comércio entre os Estados Unidos e o México não aumentou de fato; o que aumentou foi a quantia de dinheiro que corporações movimentam entre si além de fronteiras. Por exemplo, se a General Motors faz carros no México, onde pode pagar menos para os trabalhadores e desrespeitar leis de meio ambiente, e os envia aos Estados Unidos, isso não é comércio, mas sim uma operação interna de uma corporação que se beneficia de acordos internacionais. BF – As conseqüências da Alca serão as mesmas do Nafta? Chomsky – Claro. Os dois acordos estão baseados nos mesmos princípios e se resumem em aumentar o poder das corporações,

que são enormes tiranias internacionais. A Alca significa submissão à política das corporações e renúncia ao desenvolvimento econômico dos países, pois nenhuma transnacional vai apoiar o fortalecimento de concorrentes. Para a América do Sul, aceitar a Alca é renunciar a desenvolver seu próprio pólo industrial. Já os Estados Unidos, depois de assinarem a Alca, irão contra as regras todas as vezes que quiserem, e ninguém vai poder reclamar, pois são o país mais rico e poderoso. Pode parecer simplista, mas a Alca funciona, de fato, com a lógica da colonização.

para impedir seus governos de realizarem intervenções militares. Passadas essas etapas, o Brasil terá como realizar verdadeiras mudanças estruturais que beneficiem seu povo. É um caminho longo e que depende da organização dos movimentos sociais. BF – O senhor assinou uma carta dirigida a Lula, pedindo que a direção do PT reconsiderasse a expulsão de deputados e da senadora Heloísa Helena. Qual sua avaliação sobre isso? Chomsky – Não posso falar do Brasil assim como pessoas que estão dentro do país. Na minha avaliação, expulsar esses deputados foi péssimo. Não acho que parlamentares devam ser expulsos por não aceitarem imposições do partido. Por isto assinei a carta, porque acho que vai contra o princípio de democracia que o PT carrega. BF – Qual deve ser a estratégia dos movimentos sociais brasileiros em relação ao governo? Chomsky – Os movimentos sociais precisam trazer o governo para seu lado. É preciso entender que o governo não é um agente independente. Há imposições estrangeiras, ameaças de estrangulamentos econômicos e intervenções militares que obrigam o governo a agir com cautela. Essas ameaças podem ser vencidas, mas a luta deve ser muito intensa. Por isso, os movimentos sociais, mais do que nunca, têm de organizar ainda mais sua base e mobilizar a população brasileira. Hoje, a mobilização no Brasil já é tremenda, mas precisa ser ainda maior. O mesmo precisa ocorrer nos Estados Unidos, onde, se você passear na

As pessoas, no comando nos EUA, querem eliminar o sistema democrático e acabar com as conquistas sociais do século 20 BF – Lula oferece uma real resistência a essa recolonização? Chomsky – Ele está tentando fazer resistência, mas não muita. Isso era previsível. Um governo popular de esquerda no Brasil teria de ser mais reacionário que seus antecessores, pois teria de preservar o que os donos do mercado chamam de credibilidade em relação aos investidores internacionais. Também não dá para criticar Lula, pois não há muitas opções neste sistema complicado. O único modo de tirar o governo desta linha – e mudar o rumo do país – é expulsar e rejeitar o sistema. Para tanto, a primeira etapa é cancelar o pagamento da dívida externa, que não é legítima. Também é necessário fazer a distribuição de renda e de propriedade, para colocar o Brasil no eixo do desenvolvimento e tirá-lo da subordinação aos imperativos das corporações. Para que a ruptura com o sistema ocorra, é preciso muito apoio interno. O povo precisa estar pronto e disposto a entender as conseqüências: resistir a ataques do sistema, lutar, trabalhar para criar um novo projeto de desenvolvimento. É preciso haver cooperação internacional, e o Mercosul, se consolidado, pode ser uma importante ferramenta. Finalmente, são necessários movimentos de solidariedade dentro dos Estados Unidos e de outros países ricos,

rua e perguntar paras as pessoas o que é livre comércio, quase ninguém saberá responder. É preciso aumentar a consciência política e a mobilização dos estadunidenses – isso será uma grande ferramenta para a vitória no Brasil. BF – Como está a mobilização nos Estados Unidos? Chomsky – Maior do que há 10 ou 20 anos, mas ainda insuficiente. Há cada vez mais descontentamento com o governo e com as corporações, e isto é um grande avanço. Dificilmente, hoje, a população estadunidense deixaria que as forças militares atacassem o Brasil, se este decidisse não seguir as regras do livre comércio. Haveria manifestações e protestos. BF – Quando Lula ganhou as eleições, o jornal estadunidense The Washington Post publicou editorial em que dizia que Bush deveria fazer algo para não permitir que o Brasil fosse governado por um perigoso comunista. O senhor está dizendo que o governo estadunidense não invadiria o Brasil? Chomsky – O governo estadunidense não tem força suficiente para invadir o Brasil, o que não quer dizer que não tentaria. Ao mesmo tempo, em nosso mundo, há outros mecanismos para derrubar um governo e o principal deles é o estrangulamento econômico. A trajetória do Brasil, e do Lula, certamente não será fácil.

Quem é Avram Noam Chomsky, 71, linguista estadunidense, é professor no Massachusetts Institute of Technology (MIT), um dos principais centros de pesquisa dos EUA. Um dos principais críticos da política e da mídia do seu país, escreveu mais de 60 livros, entre eles 23 sobre a política dos EUA. Atualmente, é um dos mais renomados pensadores de esquerda da atualidade.


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De 1º a 7 de janeiro de 2004

AMÉRICA LATINA MERCOSUL

Integração com justiça social é a saída Emir Sader defende extensão do Mercosul, com democracia e soberania nacional para América Latina Nilton Viana da Redação

UM CONTINENTE DE LUTA Franspress

HAITI

CMI

Milhares de manifestantes saíram às ruas para exigir a renúncia do presidente Jean Bertrand Aristide

CANCÚN (MÉXICO) Manifestantes de todo o mundo, reunidos em Cancún, contribuíram para que as políticas excludentes, combatidas pelo recém-formado G-22, não seguissem nos trilhos. A rodada da Organização Mundial do Comércio (OMC) de setembro foi um fracasso Gabriel Gonzales

BOLÍVIA Um mês de intensa manifestação popular pôs fim ao governo neoliberal do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, que não suportou as pressões e renunciou no dia 17 de outubro

VENEZUELA

Martin Bernetti/AFP

Laura Muradi

Em resposta às ameaças da direita, no dia 6 de dezembro, 2 milhões de venezuelanos tomaram as ruas de Caracas para comemorar cinco anos da eleição de Hugo Chávez e do governo popular

Pablo Cuarterolo/AFP

BRASIL

Pablo Cuarterolo/AFP

Brasil de Fato – A história recente da América Latina mostra situações de grandes mobilizações e mesmo de convulsão social. É o caso da Bolívia, da Argentina, da Colômbia, da Venezuela, do Peru e mesmo do Equador, onde os indígenas já romperam com o governo. Qual sua análise dessa conjuntura? Emir Sader – O ano de 2003 foi um ano de virada na América Latina. O continente foi o laboratório de experiências neoliberais, vivendo posteriormente a ressaca da farra especulativa dos anos 90. Antes, os presidentes se elegiam e reelegiam com a adoção das políticas do Fundo Monetário Internacional (FMI), como aconteceu com Carlos Menen, na Argentina, Alberto Fujimori, no Peru, e Fernando Henrique Cardoso, no Brasil, entre outros. Depois da crise do Brasil, em 1999, o mal-estar foi se generalizando, a recessão se perpetuou e os presidentes que se elegeram e mantiveram o modelo passaram a fracassar. Esses foram os casos de de la Rúa (Argentina), de Sánchez de Losada (Bolívia), de Alejandro Toledo (Peru), de Jorge Battle (Uruguai), de Vicente Fox (México), de Lúcio Gutierrez (Equador). No Brasil, a vitória de Lula se deve, antes de tudo, ao fracasso do governo de Fernando Henrique Cardoso, que já não podia exibir a estabilidade monetária como chave para que o país voltasse a crescer, para criar empregos, para expandir as políticas sociais, como ele havia prometido, especialmente na campanha para seu segundo mandato. E deveu-se à persistência do Partido dos Trabalhadores (PT), na oposição a esse governo. BF – Como explicar a relativa estabilidade brasileira frente a esse cenário? Sader – A vitória de Lula se dá no marco de um descenso das mobilizações populares, com os movimentos sociais golpeados duramente pelas políticas de FHC e pela recessão. Foi nesse vazio que se inseriu uma campanha fria, centrada na televisão e com forte peso de marketing, que acabou combinando, na sua segunda metade, com dois elementos que passaram a defini-la: a “Carta ao povo brasileiro”, que se comprometia a não romper contratos com o capital financeiro – que havia promovido um grande golpe especulativo durante a campanha – e o “Lulinha, paz e amor”. Ambos se complementavam para passar a idéia de que se mudaria o país, mas de forma indolor, aparentemente para todos. Até agora, Lula detém a esperança dos mais pobres e tem uma recepção muito simpática por parte das elites porque fez um primeiro ano conservador, golpeando conquistas populares ou deixando de realizar os programas sociais que havia prometido. Daí, o clima de relativa tranqüilidade do Brasil no primeiro ano. BF – Qual é, especificamente, o papel do PT nessa conjuntura,

Robert Sulivan/AFP

O

s povos da América Latina rejeitaram o projeto neoliberal em 2003. Para o cientista político Emir Sader, os presidentes que mantiveram as linhas mestras do modelo defendido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) acumularam fracassos. Como, por exemplo, o levante popular boliviano que tirou o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada. O desafio, agora, é construir uma alternativa de integração regional, com projetos de justiça social, democracia e soberania nacional, que poderia ser feito a partir da experiência do Mercosul.

Mais de 4 mil trabalhadores rurais sem-terra percorreram 190 quilômetros até Brasília (DF) para pressionar o governo Lula a assentar 1 milhão de famílias, na entrega do Plano Nacional de Reforma Agrária, dia 21 de novembro

EQUADOR No ínicio de dezembro, uma série de manifestações organizadas pelo movimento índigena pressionaram o presidente Lúcio Gutierrez para que deixe de pagar a dívida externa, reestatize as empresas nacionais e faça uma reforma política

especialmente após a consumação da expulsão de Heloísa Helena e demais parlamentares? O partido ainda pode ser encarado como uma possibilidade de organização independente dos trabalhadores? Sader – O PT tem sido neutralizado para que o único sujeito político seja o governo. O atual presidente do partido – que, quando suas posições liberais eram minoritárias, não se cansou de usar a imprensa para criticar a direção partidiária e, agora, quer coibir o debate e a existência de posições divergentes – é mais um interventor do que um representante das generalizadas inquietações da militância diante dos rumos do governo. Se esse é um governo de centro-esquerda, o papel do PT deve ser pelo menos o de lutar pela hegemonia da esquerda nessa aliança. A expulsão dos parlamentares é algo que correntes majoritárias queriam e tinham ameaçado há muito tempo, como se fosse um obstáculo ao novo caminho assumido. Até no Partido Trabalhista inglês, quem votou contra a guerra – tema muito mais agudo – não foi punido. BF – O bolivarianismo chavista seria uma alternativa ideológica para a América Latina? Sader – O bolivarianismo não tem, infelizmente, abrangência suficiente para ser uma proposta articuladora das forças de esquerda e antiimperialistas no

ARGENTINA Cerca de 30 mil argentinos saíram às ruas no dia 21 de dezembro para comemorar o segundo ano da queda do governo Fernando de la Rúa

Quem é Emir Sader é mestre em filosofia e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Crítico do neoliberalismo, publicou recentemente os livros Poder, cadê o poder? e A Vingança da História, Século XX – o século do imperialismo.

conjunto da América Latina. BF – Quais seriam as alternativas realistas para uma recomposição das forças socialistas e dos trabalhadores na América Latina? Sader – Hoje, a esquerda latinoamericana deveria concentrar forças na construção da integração continental. Deve ver como ela pode se dar a partir da reorganização, aprofundamento e extensão do Mercosul, que pode ser o espaço de afirmação dos projetos de justiça social, soberania nacional, democracia política, de caráter antiimperialista e por um mundo multipolar. BF – A Declaração Ministerial de Miami parece traçar um caminho irreversível para a Alca, ainda que seja a versão “light” proposta pelo Brasil. É possível barrar

a Alca? Como analisar a política externa brasileira com relação à estratégia da Alca? Sader – A política externa brasileira foi a grande e boa novidade de 2003 e pode, até mesmo, servir para induzir uma mudança significativa da política econômica interna do Brasil. Porque a política atual encontra na Alca sua desembocadura normal, uma economia que vive de exportação – ainda mais de produtos primários – não pode deixar de lado nenhum pedaço do mercado estadunidense, o mais rico do mundo. Mas a prioridade do Mercosul pode demandar, ao contrário, uma política de integração, desenvolvimento industrial e tecnológico, extensão do mercado interno e

chocar-se com a política atual. Temos 2004 para formular e fortalecer nossa política de integração. O Fórum Social das Américas, em julho, no Equador, deveria ter esse tema como um de seus eixos centrais. Porque, até as eleições presidenciais de novembro, nos EUA, Bush não vai conceder nada nas negociações da Alca, para não perder votos. Mas quem quer que se eleja, voltará com força à ofensiva pela Alca. Aí, será a hora da verdade, também para o governo Lula, porque ficará claro quem formula a política externa – se é o Itamaray, como ocorreu, por exemplo, em Cancún, com a constituição do Grupo dos 20, ou se é a equipe econômica, como quando Lula se negou a solidarizar-se com Kirchner nas negociações da Argentina com o FMI. Para o Brasil e o governo Lula, será a hora de decidir qual a prioridade: Mercosul ou Alca.


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INTERNACIONAL ÁFRICA

Iniciativas de sucesso no combate à Aids começam a ser registradas em diversos países do continente mais atingido pela epidemia, hoje

Paulo Pereira Lima

Combate à Aids move africanos em 2004

Marilene Felinto da Redação

A

EXEMPLO DE UGANDA A liderança forte do presidente de Uganda, Yoweri Musevini, na campanha de combate à Aids em seu país, é tida como o principal fator para a drástica redução no número de infectados. Utilizando expressões de impacto como “abstinência sexual ou morte”, e pregando a fidelidade no casamento e nos namoros, Musevini liderou as campanhas de conscientização e informação sobre a doença. Em declarações a agências africanas de notícias, o diretor geral dos Serviços de Saúde de Uganda, Francis Omaswa, tem dito que a principal preocupação das autoridades ugandenses de Saúde foi informar com clareza a população quanto à natureza da doença e a forma de contágio, até que se atingisse uma mudança de comportamento significativa. “Houve, como resultado, mais sexo responsável”, disse ele. “E depois intervenções no setor de Saúde, intervenções ao nível da comunidade, ao nível da sociedade civil, em vários setores do governo, de modo que o país inteiro se transformou num movimento contra o HIV/Aids”, completou. Segundo a Organização Mun-

Filhas de funcionários do hospital-dia, especializado no tratamento da Aids em Maputo, capital de Moçambique, em passeata pró-prevenção

Mar Mediterrâneo

GANA

NIGÉRIA

QUÊNIA

TOGO

UGANDA

BENIN

COSTA DO MARFIM

cordos assinados em meados de dezembro último entre as multinacionais farmacêuticas Boehringer Ingelheim e GlaxoSmithKline de um lado e autoridades e ativistas da Campanha de Ações para o Tratamento da Aids (TAC, na sigla em inglês) na África do Sul de outro liberaram a produção, comercialização, exportação e distribuição de medicamentos anti-retrovirais genéricos para o combate ao HIV/Aids em toda a África subsaariana. Especialistas internacionais dizem que a licença foi concedida “voluntariamente” pelas duas multinacionais, para evitar que elas passassem pela “humilhação” da quebra de patentes estabelecida em decretos pelos governos africanos que necessitam com urgência atender suas populações infectadas pelo vírus HIV (causador da Aids). Drogas como AZT e Nevirapine entram agora no mercado a preços acessíveis para os quase 30 milhões de infectados pelo vírus HIV/Aids no continente. Atualmente os antiretrovirais consumidos na África do Sul (que tinha 25% de sua população – cerca de 5,3 milhões de pessoas – infectadas no final de 2002) e na maioria dos países da África são importados, o que encarece e impossibilita o tratamento de milhões de portadores do vírus numa região dominada pela pobreza. Mas esse e outros avanços na luta contra a epidemia, que ameaça dizimar o continente nos próximos dez anos se nada for feito, começam a ser registrados. O caso mais notório é o de Uganda, onde as autoridades reconheceram o perigo representado pela doença logo no início e implantaram programas de prevenção e tratamento para deter seu avanço. O esforço deu resultado. A taxa de infectados hoje em Uganda é de 6%, relativamente baixa em relação a outros países africanos.

ZIMBÁBUE BOTSWANA L

OCEANO ATLÂNTICO

A

RIC

ÁF

dial de Saúde (OMS), na capital de Uganda, Kampala, a taxa de infectados entre mulheres atendidas em clínicas de pré-natal caiu de 31% em 1993 para 14% em 1998. Fora de Kampala, a taxa de infectados entre mulheres grávidas com menos de 20 anos de idade caiu de 21% em

DO

SU

SUAZILÂNDIA

OCEANO ÍNDICO

1990 para 8% em 1998. Entre homens, a taxa de infectados caiu de 46% em 1992 para 30% em 1998.

CORREDOR ANTIAIDS Outra iniciativa recente de combate à pandemia de Aids na África foi o lançamento, em meados de

dezembro, do corredor antiaids na ligação entre as cidades de Abidjan e Lagos, na Nigéria. Trata-se de um corredor de imigração de 185 quilômetros de extensão que abrange cinco países da África Ocidental: Nigéria, Togo, Gana, Costa do Marfim e Benin. Segundo a agência Panapress, o projeto, lançado em Cotonou, capital do Benin, tem como objetivo disponibilizar acesso aos serviços de prevenção e tratamento da Aids nesta rota bastante utilizada por imigrantes dos cinco países. Dados recentes divulgados pelo Programa Conjunto das Nações Unidas para o HIV/Aids (Unaids) revelam que a taxa de infectados nestas nações da África Ocidental é de 3,6% no Benin e em Gana, 5,1% na Nigéria, 6% no Togo e 10,8% na Costa do Marfim.

SEM PREÇO Até mesmo em países com altas taxas de infectados, como Botsuana (38%) e Suazilândia (35%), esforços para amenizar os efeitos da pandemia e preveni-la já começam a ganhar corpo. Na Suazilândia, igrejas estão tomando a frente na iniciativa para debelar o medo e a desinformação da população no que se refere à Aids. Este ano marcou a introdução de medicamentos anti-retrovirais no país e o treinamento de enfermeiros e auxiliares.

Uma aliança de prefeitos tem atuado em nível local na organização do tratamento da doença. Falta, porém, aprofundamento das campanhas de prevenção. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) tem alertado para o contágio de crianças suazi por meio de violência sexual naquele país, única monarquia da África. O incesto tem sido apontado como um dos principais fatores causadores de infecção em crianças na Suazilândia. Botsuana, país com o mais alto índice de infectados em toda África, vem tentando seguir o exemplo de Uganda. O presidente Festus Mogae tomou pessoalmente para si a campanha de combate à pandemia. Fez teste de HIV e anunciou em público o resultado negativo. Pediu o mesmo comportamento a todos os seus ministros e altas autoridades do governo. Botsuana é um dos países com pior distribuição de renda no mundo, perdendo apenas para Bangladesh e Brasil. A desinformação e a pobreza da população são as principais causas da propagação da doença no território. No Zimbábue, uma das principais campanhas de prevenção contra o HIV/Aids chama-se “Zvitambo” (“sem preço” ou “precioso” em shona, língua local dominante) e tem como foco mulheres grávidas, na tentativa de diminuir a transmissão do vírus da mãe para o feto.

Anti-retroviral para todos Joyce Mulama de Nairóbi (Quênia) Duas agências das Nações Unidas lançaram na capital do Quênia uma iniciativa para que mais três milhões de portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV), causador da imunodeficiência adquirida (Aids), recebam medicamentos anti-retrovirais antes do final de 2005. A campanha “Três milhões para 2005” (também conhecida como “3 por 5”), da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Programa Conjunto das Nações Unidas para o HIV/Aids (Unaids), é “um plano de ação para nações, instituições e todo o público, inclusive os que vivem com HIV/Aids”. Foi o que afirmou o diretor-geraladjunto da OMS encarregado da luta contra a aids, a tuberculose e a malária, Jack Chow, ao apresentar a campanha no início de dezembro, em Nairóbi. A meta final do 3 por 5 é alcançar o tratamento universal até 2012. Segundo estatísticas da OMS e da Unaids, 40 milhões de pessoas

vivem hoje com HIV, 95% delas em países em desenvolvimento. Três quartos – ou 29 milhões – residem na África subsaariana. Por outro lado, seis milhões de pessoas no mundo em desenvolvimento necessitam de remédios anti-retrovirais, os mais efetivos para retardar o desenvolvimento da Aids e, assim, prolongar a vida dos portadores do HIV. Mas, apenas 400 mil podem fazer o tratamento, com o qual a maioria dos três milhões de pessoas que morreu de Aids este ano poderia ter sobrevivido. Também em dezembro, a OMS aprovou o uso de três medicamentos genéricos anti-retrovirais para o tratamento da doença. A produção de genéricos para tratar pacientes com Aids é um assunto controvertido dos últimos anos. As companhias farmacêuticas advertem que essas cópias de remédios patenteados prejudicam o lucro dos proprietários da patente o que, por sua vez, os impedirá de fazer novas pesquisas. O diretor do Programa de Controle de Enfermidades de Transmissão Sexual do Quênia, Kenneth Chebet, aplaudiu

a decisão da OMS. “Estes novos produtos são uma vantagem para os países em desenvolvimento, tão afetados pelo HIV/Aids, e são fáceis de administrar”, afirmou Chebet. Dez por cento dos quenianos soropositivos requerem com urgência tratamento anti-retroviral, acrescentou. Mais de dois milhões dos 30 milhões de habitantes do país são portadores do HIV. Outros especialistas presentes no lançamento da campanha criticaram os laboratórios por não se dedicarem ao desenvolvimento de anti-retrovirais de fácil administração para crianças. “Necessitamos de algo para as crianças, e esse é um grande desafio para as companhias farmacêuticas”, disse à IPS Moirten Rostrup, presidente da organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras. A redução do preço, acrescentou, também deveria ser uma prioridade das empresas. A OMS afirmou que houve uma substancial redução do preço dos antiretrovirais oferecidos aos países da África subsaariana. Remédios cuja administração antes custava

100 mil dólares anuais podem ser comprados agora por 300 dólares. De todo modo, Rostrup acredita que o tratamento ainda pode ficar mais barato. “Reduzir os preços entre 50 dólares e 70 dólares é realista”, afirmou. Por sua vez, o diretor da Associação de Pessoas com Aids do Quênia, Rowlands Lenya, se perguntou: “Poderiam os responsáveis deixar de falar e fazer algo?” “Não deveríamos dar apoio aos que sofrem apenas com declarações. Necessitamos que os governos, as agências internacionais e as companhias farmacêuticas cooperem para fornecer medicamentos aos que deles precisam”, acrescentou Lenya. O ministro da Saúde do Quênia, Charity Ngilu, disse que seu país pretende que 140 mil soropositivos recebam anti-retrovirais até 2005. O governo fornece esses remédios a apenas seis mil pacientes. A campanha 3 por 5 se concentrará em garantir aos países que necessitarem medicamentos e equipamentos para diagnóstico. (IPS/Envolverde)


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INTERNACIONAL ORIENTE MÉDIO

Ostensiva manipulação do anti-semitismo e manifestações antimuçulmanas escondem objetivos estratégicos dos dois países

Jaafar Ashtiyeh/AFP

Israel e EUA, aliança nada santa

Sergio Yahni de Tel-Aviv (Israel)

S

erá que a rejeição das políticas estadunidenses e israelenses podem ser descritas como uma forma de hostilidade ou preconceito contra os judeus e o judaísmo? Ou será que as acusações de anti-semitismo são simplesmente um meio de racionalizar preconceitos antimuçulmanos? Será que a direita nos Estados Unidos e em Israel está usando abusivamente a história judaica de sofrimento e perseguição? No seu livro Pregadores do ódio: o Islã e a guerra contra os EUA, publicado em inglês, o escritor estadunidense Kenneth Timmerman afirma que a 3ª Conferência Mundial da ONU Contra o Racismo, realizada em Durban, na África do Sul, em agosto de 2001, foi o “prelúdio ideológico” dos atentados do dia 11 de setembro seguinte. Após ter descrito a conferência como um evento anti-sionista orquestrado pelo governo iraniano, Timmerman cita um funcionário de baixo nível do Ministério do Exterior israelense, Mordechai Yedid, que disse que “o anti-sionismo, a negação aos judeus do direito básico de uma pátria, é nada mais do que o antisemitismo puro e simples”. Timmerman conclui que “o que começa com os judeus, não termina com os judeus... três dias depois de a conferência de Durban chegar ao final, terroristas desceram em Nova York, Washington e em uma pista de pouso solitária na Pennsilvânia. Por todo o país, os estadunidenses viram em primeira mão, nas telas de seus televisores, o horror que os israelenses sofrem virtualmente no seu dia-a-dia. Mas as forças reais por trás disso eram antigas, bem mantidas, experimentadas e mortíferas”. Assim, Timmerman claramente se alinha numa já antiga tradição de líderes israelenses que rejeitam a distinção entre crenças anti-semíticas e a crítica legítima das políticas de Israel. Tal como essa tradição foi articulada no começo de dezem-

Soldado israelense durante operação militar no campo de refugiados palestinos em Nablus: perseguição política a grupos israelenses de direitos humanos

bro pelo primeiro-ministro Ariel Sharon, “hoje não há separação... estamos falando do anti-semitismo coletivo. O Estado de Israel é um Estado judeu e a atitude em relação a Israel varia de acordo com isso”.

DIREITOS HUMANOS Em entrevista ao jornal inglês The Guardian, dia 25 de novembro, Robert Wistrich, diretor do Centro Internacional de Estudos Sobre o Anti-Semitismo da Universidade Hebraica de Jerusalém, afirma que “o fenômeno mais interessante é o destaque e a demonização do Estado de Israel, que o qualifica como o Estado de tipo nazista, ou o acusa de genocídio. Esse tipo de discurso muitas vezes é divulgado sob a bandeira dos direitos humanos. Isto é novo”. O governo dos Estados Unidos nunca foi entusiasta a respeito de conceitos de direitos humanos internacionais. A amarga disputa entre os EUA e a ONU a respeito do Iraque parece ter levado muitos conservadores estadunidenses a aproveitarem a oportunidade de deslegitimar o discurso e os me-

canismos dos direitos humanos, ao lançarem acusações de anti-semitismo a organizações que criticam as políticas dos EUA em relação a Israel e, por extensão, às políticas estadunidenses e israelenses em relação ao Oriente Médio em geral. Para alcançar esse objetivo, está se formando uma aliança entre os governos israelense e estadunidense (bem como entre os partidários internos de cada um), que busca explorar os perigos e as preocupações genuínas a respeito do anti-semitismo, com o fim de levar adiante metas político-ideológicas.

“ALTAMENTE POLÍTICO” O grupo de estudos conservador israelense-americano Centro de Jerusalém para Assuntos Públicos (JCPA, na sigla em inglês), está entre os pioneiros dessa estratégia, particularmente por meio de sua publicação na internet NGO Monitor. A publicação é focalizada em organizações israelenses e internacionais de direitos humanos, como a B’Tselem, Adalah e Ajuda Cristã. Segundo o JCPA, “o Direito Internacional é um conceito pre-

cariamente definido... e a falta de mecanismo centralizado de imposição da lei deixa espaço para interpretações subjetivas” – em outras palavras, para interpretações “políticas” dos dispositivos dos direitos humanos. O grupo israelense de direitos humanos B’Tselem está entre aqueles que o JCPA identifica como “altamente político”. Além disso, o Fundo do Novo Israel, que apóia numerosas ONGs israelenses, incluindo, mas não exclusivamente, grupos de direitos humanos, é pesadamente criticado por apoiar organizações que trabalham para promover os direitos humanos dos cidadãos palestinos de Israel, especialmente os grupos que participaram da Conferência de Durban.

OFENSIVA CONSERVADORA Nos Estados Unidos, fundações tidas como progressistas, como a Fundação Ford e o Instituto da Sociedade Aberta, do mega-investidor George Soros, estão sendo alvo dos conservadores. A 21 de outubro, o jornal The New York Sun publicou o artigo “Financiando o ódio – a

Fundação Ford merece investigação na medida em que as regras contra o terrorismo são implementadas”. Nesse artigo, o jornal afirma que “os milhões que, sob controle frouxo, estão indo para as organizações palestinas a partir de fundações, levaram as autoridades estadunidenses a agirem. O Departamento de Estado e a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional começaram a aplicar a ordem executiva 13224, do presidente Bush, a organizações estadunidenses que estão trabalhando em áreas palestinas”. O semanário de Nova York The Jewish Press atacou George Soros, ele próprio judeu, por suas declarações numa conferência da Rede dos Fundadores Judaicos, há 5 de novembro. Soros disse que “há um ressurgimento do anti-semitismo na Europa. O governo Bush e o governo Sharon contribuíram para isso”. Soros foi acusado pelo semanário de ter uma “percepção simplista, contraprodutiva, enviesada e preconceituosa” e de não contribuir com dinheiro suficiente para as causas judaicas.

As tentativas levadas adiante pelos conservadores para defender as políticas violentas de Bush no Oriente Médio caminham passo a passo ao lado de uma tentativa estadunidense e israelense de reforçar os preconceitos ocidentais em relação à comunidade árabes e muçulmanas. É necessário difamar todo o mundo muçulmano, para alimentar a teoria do “choque de civilizações”. Para essa finalidade, houve uma notável intensificação da retórica racista e inflamada em relação aos muçulmanos. Numa entrevista publicada no site de notícias EUpolitix.com, Sharon disse que, “como há uma presença muçulmana cada vez mais forte na Europa, isso certamente põe em risco a vida de pessoas judias. De certo, do fato puro e simples de que há uma grande quantidade de muçulmanos, cerca de 70 milhões na União Européia, essa questão se tornou também um problema político”. Além do mais, o Fórum Israelense de Coordenação da Luta Contra o Anti-Semitismo – um grupo de funcionários da inteligência e do Ministério do Exterior de Israel –

define três tipos de anti-semitismo: “clássico”, “novo” e “muçulmano”. O fórum afirmou recentemente que o último é o mais perigoso, e o crescente número de muçulmanos na Europa é responsável por fomentar ataques terroristas, violências de rua e assédio geral contra os judeus. A visão de um conflito global judaico-cristão contra o mundo muçulmano, do qual a resistência palestina contra a ocupação israelense é apenas uma parte, é mantida, pelo menos parcialmente, por figuras proeminentes entre os militares dos Estados Unidos, que concebem a guerra no Iraque como uma guerra contra o Islã e tentam abertamente promover essa visão do mundo. Por exemplo, o tenente-general William Boykin, vice-subsecretário da Defesa para o Apoio à Inteligência e aos Combates de Guerra, foi recentemente filmado discursando, em uniforme militar completo, em várias igrejas, retratando a batalha americana contra os muçulmanos como uma luta contra “Satã” e dizendo que os islamitas militantes buscam destruir os Estados Unidos “porque somos uma nação cristã”. O secretário da Defesa dos EUA,

Orel Cohen/AFP

Estratégia reforça preconceito contra muçulmanos

Israel continua com a construção do muro para segregar o povo palestino

Donald H. Rumsfeld, se recusou a criticar Boykin.

COOPERAÇÃO Do mesmo modo que os ideólogos israelenses e estadunidenses trabalham em conjunto para retratar um “choque de civilizações” em escala global, a fim de justificar suas respectivas guerras de penetração

militar nos territórios da Ásia Ocidental e Central, o relacionamento militar especial entre Israel e os EUA também é fundamental. Num texto apresentado em novembro de 1998, Gerald M. Steinberg diz: “Nos últimos trinta anos, o relacionamento estratégico evoluiu gradualmente de um quadro ad hoc, de ações específicas para

cada ocasião, para uma estrutura altamente institucionalizada. Esse processo foi marcado por uma série de memorandos de entendimento bilaterais, a começar dos fins dos anos 1970, seguidos pela criação de instituições específicas e permanentes, incluindo o Grupo de Trabalho Político-Militar Conjunto, que se reúne duas vezes por ano. O compartilhamento da inteligência tem sido há muitos anos um aspecto importante, ainda que muitas vezes oculto, desse relacionamento.” Contra semelhante aliança é inevitável que as tentativas patéticas do primeiro-ministro britânico Tony Blair, para conseguir uma política mais “equilibrada” dos EUA em relação ao conflito entre israelenses e palestinos, venham a dar em nada. Os falcões que controlam as políticas estadunidenses e israelenses, plenamente apoiados por figuras e instituições pseudo-acadêmicas, e grande parte da mídia popular, não estão em nada preocupados em conseguir uma solução justa para os conflitos do Oriente Médio, tanto quanto não se preocupam por explorarem o anti-semitismo e o sofrimento dos judeus para seus próprios fins. (SY)


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NACIONAL EDUCAÇÃO

Banco Mundial ameaça educação pública

Brasil de Fato – Qual a sua avaliação da educação pública no ano de 2003? Roberto Leher - Eu acho que não houve um avanço no sentido de fortalecer o ensino público, o que representa um descompasso muito grande em relação às expectativas dos educadores. Segundo o Observatório Social da América Latina, um programa do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais que acompanha os conflitos da América Latina, os professores estiveram entre os principais agentes das lutas antineoliberais durante a década de 90. Esses educadores, defensores de valores como solidariedade, busca de um bem público, da universalização do conhecimento etc., seguramente se sentiram frustrados com a política educacional do governo Lula. BF – O que poderia ter sido feito para atender a essas expectativas? Leher – Primeiro, uma convocação ao setor público, para que assumisse o protagonismo de mudanças educacionais. A rigor, quem vem sendo convocado são o chamado terceiro setor e o segmento empresarial. O exemplo mais marcante da opção do governo de privilegiar o setor empresarial na educação foi o lançamento do programa Brasil Alfabetizado, em que falaram todas as lideranças do País – indústria, bancos, comércio, empresários da educação. Mas não o setor público. Todas as medidas de políticas públicas que estão sendo premiadas são focalizadas: têm como protagonistas estudantes, voluntários, amigos da escola. As escolas públicas – que estão depauperadas, mas que acumularam um saber e que poderiam dar uma contribuição fundamental para a expansão do direito à educação – não estão sendo chamadas. É muito triste, para um professor de uma cidade conflitiva como Caxias, no Rio de Janeiro, um professor que resistiu e lutou, agora ver as políticas educacionais do seu governo serem encaminhadas por empresários ou organizações não-governamentais que legitimaram as políticas neoliberais da década de 90. BF – Quais são as principais fragilidades das atuais políticas educacionais? Leher – Me preocupa muito essa manutenção do sucateamento do ensino público. E não é uma questão apenas de recursos, mas de concepção política. Não estou vendo ações que possam alterar significativamente as condições de trabalho dos professores, o financiamento à escola pública. Nos municípios, resta um proble-

Professores paulistas protestam contra o sucateamento do ensino público Arquivo ANDES

E

ste novo ano promete escrever vários capítulos na definição de uma nova política educacional. Reforma universitária, sistema de avaliação do ensino superior, cobrança de ex-alunos de faculdades públicas são apenas alguns dos tópicos que darão margem a amplos debates na sociedade, em especial porque governo e educadores parecem ter idéias absolutamente diferentes a respeito de como deve terminar essa história. Munido da experiência de pesquisador da área de Educação e ex-dirigente de um dos maiores e mais combativos sindicatos de docentes do País, o professor doutor Roberto Leher constata o sucateamento internacional das escolas públicas, alerta para a ameaça de privatização do ensino superior e denuncia a estratégia destrutiva do Banco Mundial (Bird), que impõe ao Brasil o fim da gratuidade do ensino e da pesquisa científica.

Quem é Doutor em Educação, Roberto Leher é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi presidente, de 2000 a 2002, do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições do Ensino Superior (Andes). Atualmente no Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, é pesquisador-sênior do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais. Também coordena o Observatório Social da América Latina (Seção Brasil) e o Observatório Latino-Americano de Políticas Educacionais do LPP.

ma crucial que bloqueia toda a política educacional, a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, que engessa a possibilidade de aplicação de recursos, para promover ajuste fiscal. No caso de financiamento da União, segue a desvinculação de receitas da União que, a grosso modo, retira 20% da verba educacional. No lançamento do programa Brasil Alfabetizado, foi apresentado um bonito vídeo sobre a concepção educacional elaborado por um publicitário (Duda Mendonça) e realizado pela Fundação Roberto Marinho e pela Companhia Vale do Rio Doce. Enquanto isso, os educadores fizeram quatro congressos nacionais, elaboraram um plano nacional de educação alternativo ao neoliberal, estimularam ampla discussão na sociedade civil, nos movimentos sociais, nos sindicatos, nos governos democráticos populares... Havia uma expectativa de que o presidente Lula tomasse esse plano nacional de educação, se não como sua política, como uma referência legítima e forte para estabelecer um diálogo com os educadores. Mas eles foram sobejamente ignorados. BF – Como esses educadores estão organizados e de que modo poderiam interferir no cenário para fazer reverter essa tendência do governo? Leher – Desde a Constituinte de 1988, existe uma articulação de

movimentos e entidades de educação chamada Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, que ajudou a escrever o capítulo de Educação da Constituição de 1988 e organizou o debate e a intervenção dos educadores nas disputas dos projetos de Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Esse fórum está sendo revigorado. Sindicatos e entidades acadêmicas estão elaborando uma proposta de plano de educação. Em maio, devemos realizar um novo congresso para avaliar os rumos da educação e vamos tirar encaminhamentos críticos pontuais sobre algumas medidas do governo Lula.

selo de qualidade para os professores. Outro ponto preocupante é o fato de o governo não ter se manifestado até agora sobre os vetos que o ex-presidente Fernando Henrique fez ao Plano Nacional de Educação. BF – O que o senhor acha da proposta de emenda constitucional encaminhada ao Congresso para cobrar contribuições de ex-alunos de universidade públicas? Leher – Isso implicaria mudar o artigo 206 da Constituição Federal, que assegura ensino gratuito nos estabelecimentos públicos. Não importa se você estaria pagando pelo imposto de renda

A manutenção do sucateamento do ensino público não é uma questão apenas de recursos, mas de concepção política BF – O senhor pode citar exemplos desse pontos específicos? Leher – Um deles é o Provão do professor, um sistema de avaliação que propõe gratificações a docentes que tiram “boas notas”. Essas políticas de gratificação, muito marcantes nos governos neoliberais, não se aplicam à área de educação. Não há como medir a produtividade por indicadores como os utilizados nesses casos: número de alunos, número de aprovados etc. A escola não é uma linha de produção. Propôsse também criar uma certificação de professores, como se fosse um

Anderson Barbosa

Áurea Lopes da Redação

Anderson Barbosa

Professor da UFRJ afirma que o governo coloca empresariado como principal agente das políticas educacionais

Mercado tomará o controle se o ensino for aberto à concorrência externa

ou sendo descontado em folha. O fato é que o ensino não seria mais gratuito, o que significa uma inconstitucionalidade. Mas o chefe da Casa Civil, José Dirceu, já avisou: “Vamos mudar toda a relação da universidade com o empresariado, empresas, fundos de investimento. As instituições terão de se ajustar ao mercado, como previsto na Lei de Inovação Tecnológica, originalmente proposta pelo governo de Fernando Henrique Cardoso”. Em entrevista a um jornal paulista, Dirceu citou, como bons exemplos, o ensino superior da China e da Coréia do Sul – casos que não poderiam ser mais desastrosos para a universidade brasileira. Ambos os países flexibilizaram a gratuidade e não asseguram liberdade de cátedra, sendo que, no que se refere à relação entre a oferta pública e privada, o modelo coreano é muito semelhante ao existente no Brasil. Ademais, na Coréia, grande parte da pesquisa é direcionada para três grandes conglomerados: Daewoo, Hyundai e Lucky-Gold Star 7. Do ponto de vista do movimento estudantil, a gratuidade é um tema visceral. Os alunos hoje têm dificuldade de pagar bandejão, tirar xerox, comprar livros... Uma proposta de cobrança de taxa vai levar a uma insurreição estudantil.

BF – Mas um documento do Ministério da Fazenda que analisa os gastos públicos das políticas sociais, divulgado em novembro de 2003, identificou como principal causa das injustiças sociais a gratuidade do ensino superior... Leher – Nesse documento chegou-se até a sugerir que seria muito mais racional a concessão de bolsas, que estudantes poderiam ter um vale para comprar serviços educacionais no mercado. Esse raciocínio nada mais é do que uma tentativa de salvar o setor privado, que está quebrado. Com a política de bolsas, estimulada pelo governo, seria possível salvar esse setor. Mas ao mesmo tempo significa acabar com as universidades públicas, e acabar com a pesquisa, pois 90% das pesquisas são feitas no setor público. BF – O senhor acredita na perspectiva de abertura do ensino superior ao capital estrangeiro, proposta em discussão na Organização Mundial do Comércio (OMC)? Leher – Essa questão está mais ou menos suspensa, em virtude do fracasso da rodada da Cancún, em setembro. Mas continua em pauta porque o setor de agribusiness, que está negociando a agenda de livre comércio com mais força no governo brasileiro, quer que os Estados Unidos reduzam as taxas dos produtos agrícolas sob a contrapartida de o Brasil abrir o setor de serviços e de investimentos. Ora, abrir o setor de serviços significa abrir o mercado educacional brasileiro. BF - O que o senhor espera da reforma universitária que está sendo encaminhada para 2004? Leher – Para co-patrocinar essa reforma, o governo brasileiro convocou o Banco Mundial, instituição que contribuiu para inviabilizar a educação e em particular as universidades da África subsaariana e, na América Latina, impediu que os governos mantivessem as universidades entre as prioridades das políticas públicas. O Banco Mundial colocou como condição que o governo abandonasse a gratuidade da universidade pública. Um dos dogmas do Banco é que América Latina, África e sul da Ásia não podem ter universidades baseadas no que eles chamam pejorativamente de “modelo europeu”, isto é, uma universidade gratuita, que produz conhecimento. Para os técnicos do banco, os países periféricos não vão mais ter espaço na economia mundial competindo com produtos de alto valor agregado, ou seja, produtos com alto índice de conhecimento incorporado. Eles acham que esses países devem investir em indústrias como as maquiladoras do México, por exemplo, que são na verdade montadoras – com “vantagens” como mão-de-obra barata, energia barata e ausência de impostos. Para fazer esse tipo de trabalho, portanto, não há necessidade de mão-de-obra qualificada, muito menos de formar pesquisadores. A gente vai comprar tecnologia. Por isso, é um gasto irracional formar pesquisadores. Esse é o pensamento do Banco Mundial, parceiro do governo Lula para fazer a nossa reforma universitária. Também está auxiliando no projeto uma organização francesa chamada Orus, que assessorou uma reforma neoliberal amplamente contestada na França. A mobilização contra foi tamanha que eles acabaram não conseguindo aprovar essa reforma – cujo cérebro, Edgar Morin, agora é chamado para fazer a reforma brasileira.


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De 1º a 7 de janeiro de 2004

NACIONAL COMUNICAÇÃO

A batalha ideológica travada na mídia T

odo militante de partido de esquerda, dos movimentos sociais e das lutas populares sabe muito bem das barreiras que enfrenta para divulgar suas propostas, expor suas reivindicações ou mesmo debater suas idéias e posições através dos meios de comunicação de massas. Mesmo quem não é ativista de frente combativa, mas que precisa às vezes de algum espaço para divulgar um trabalho artístico, uma realização qualquer, um apelo dramático de emergência, enfim, necessita da comunicação de maior alcance com a sociedade, percebe que a imprensa pratica muita discriminação em relação aos mais pobres e aos mais carentes. Essa realidade perdura por muitos anos. Tem sido intocável, inclusive porque todo o sistema de comunicação privado – jornais, revistas, emissoras de rádio e TV – foi construído com o objetivo de lucro, é mantido pelos empresários e banqueiros e sempre contou com o apoio irrestrito do Estado brasileiro, independentemente do partido ou do grupo político no governo. Os grandes tubarões da imprensa não apenas controlam as informações e as opiniões que circulam nas principais redes de comunicação; impedem a livre manifestação do pensamento e tratam de forma distorcida tudo aquilo que ameaça os seus domínios e o seu arco de alianças no sistema capitalista.

EXPECTATIVA A chegada do PT ao governo federal e a eleição de Lula para presidente da República geraram, naturalmente, expectativas variadas no campo da comunicação, tanto de mudança na atitude dos veículos como de mudança na estrutura do modelo, principalmente em relação às concessões e funcionamento das emissoras de rádio e TV, cujo controle está nas mãos do Estado. O fundamento de tais expectativas vem da própria história de lutas do partido e de suas lideranças, que sofreram, como militantes sociais e políticos, todos os tipos de manipulações para desqualificá-los e destruí-los. O PT foi, durante muitos anos, o alvo preferido dos ataques da TV Globo, do jornal O Estado de S. Paulo e da revista Veja, só para citar alguns dos veículos mais rancorosos e radicais. Toda a imprensa liberal conservadora, controlada por setores da burguesia, atacou sistemática e cotidianamente não apenas o PT, desde a sua fundação, mas todos os movimentos sindicais e sociais (CUT, MST etc) construídos pelo povo, mais precisamente pelas classes trabalhadoras, para defender a liberdade e a democracia e para lutar por um Brasil mais justo e mais igualitário. Pela experiência de vida com essa imprensa, pela crítica acumulada no Partido dos Trabalhadores contra o sistema de comunicação existente, parecia evidente que o governo Lula, empossado em 1º de janeiro de 2003, ao completar o seu primeiro ano, atuaria no sentido de fortalecer a democratização da comunicação e da informação no País.

FRUSTRAÇÃO Mesmo que taticamente não interessasse ao novo governo “comprar briga” com os tubarões da mídia, já que havia grande preocupação em assegurar governabilidade diante do empresariado, dos especuladores financeiros internacionais e dos organismos (FMI, OMC, Banco Mundial etc) controlados pelo governo dos Estados Unidos, nada justifica a política adotada pelo Palácio do Planalto no sentido de reforçar – com prioridade informativa, relações privilegiadas e verbas

Em vez de democratizar a comunicação, governo Lula adota política de boas e privilegiadas relações com a imprensa conservadora e dominante

públicas – todo o aparato ideológico conservador dominante. Pelo menos quatro fatos significativos marcaram as boas relações do governo Lula com os oligopólios de comunicação da burguesia: a confortável omissão diante da caçada da Anatel às rádios comunitárias; a presença do presidente e seus ministros no velório de Roberto Marinho (o sujeito mais danoso à democracia brasileira em todos os tempos); a enxurrada de anúncios governamentais veiculados na mídia conservadora e reacionária; e a ação clandestina para induzir o BNDES a socorrer os grandes grupos de mídia com bilhões de dólares dos cofres públicos. Os estrategistas governamentais apostam na aderência fisiológica e oficialista da grande imprensa comercial-burguesa, que sempre quer lucros, estar próxima do governo e conseguir as benesses do poder. Se continuar, em 2004, com a política neoliberal do primeiro ano,

muito provavelmente o governo Lula manterá bom apoio da mídia, terá os seus sabujos e estabelecerá algum equilíbrio na disputa da opinião pública contra os setores mais radicais à direita. No entanto, se o governo Lula fizer algum movimento na direção das propostas históricas do partido e tentar cumprir as promessas de campanha – oposição ao neoliberalismo e mudanças econômicas e sociais –, com certeza todo o aparato da mídia tenderá a se voltar contra a atuação governamental, como já ocorreu em vários momentos anteriores quando o governo ou o povo, ou ambos, caminharam para avançar nas conquistas democráticas. A mesma imprensa que apoiou o golpe militar de 1964, no Brasil, apoiou a derrubada do governo Allende, no Chile, em 1973, apoiou

a vitória de Fernando Collor, em 1989, vem participando ativamente da orquestração da mídia estadunidense e latino-americana contra o presidente Hugo Chávez, da Venezuela. É uma imprensa que tem partido próprio, que não é o PT, mas o liberalismo conservador das elites que lucram com o capital. Como os estrategistas do Planalto não estão nem um pouco preocupados em constituir alianças mais sólidas com a mídia mantida e influenciada pelos setores de esquerda e os movimentos sociais; não estão se mexendo para formar redes de rádio e TV realmente comprometidas com os postulados democráticos; não estão criando e nem fortalecendo novos veículos para possíveis confrontos políticos e ideológicos – tudo está a indicar que o governo Lula pretende mesmo continuar contando com a “boa

vontade” da imprensa liberal-burguesa, que cada vez mais influencia no comportamento governamental, não só no que é dito ao público, mas principalmente em tudo que vai se tornando omissão e abandono de posição e de proposta. Ingenuidade ou não, incompetência ou não, esse é o quadro desenhado pela perspectiva do governo Lula, pelo mesmo de tudo que ele sinalizou e praticou no seu primeiro ano de gestão. Aparentemente, o governo Lula desistiu de qualquer disputa política e ideológica com a mídia conservadora. Salvo alguma mudança de rumo pra valer, dificilmente a sociedade brasileira poderá contar com esse governo como aliado numa luta pela democratização geral das comunicações, muito menos para um confronto aberto com os principais grupos que monopolizam e manipulam as informações. Hamilton Octavio de Souza é jornalista, professor da PUC-SP e editor da revista Sem Terra

A luta popular pela democratização Se ainda não dispõem de canais e redes de rádio e televisão, e não conseguem consolidar jornais e revistas de alcance e influência nacionais, os setores que lutam pela democratização da imprensa – e ao mesmo tempo por uma sociedade mais justa e igualitária, junto com os partidos de esquerda e com os movimentos sociais – conquistaram, em 2003, muitos aliados na sociedade, graças à realização de várias atividades de conscientização e de mobilização. Em 2003 foi lançado, no início do ano, com grande ato público em Porto Alegre, o jornal semanal Brasil de Fato, que tem compromisso com a democratização da mídia e defende um projeto popular para o País. É apoiado pelo MST e por vários setores da igreja e das esquerdas. Vários veículos importantes para as lutas do povo brasileiro, como as revistas Caros Amigos e Reportagem, o jornal Correio da Cidadania e outros, ampliaram o número de leitores e prestaram um bom serviço na elaboração de pautas e produção de matérias dos assuntos que mais importam para o futuro do País, como o debate sobre a Alca, o papel do imperialismo estadunidense, a questão dos transgênicos, a luta por reforma agrária,

Cartaz da campanha contra a Veja, carrochefe das publicações panfletárias de direita

mentos sociais e populares), pela defesa de espaços democráticos nesses veículos (e controle social especialmente das emissoras de rádio e TV), pela reorganização do sistema de comunicação, para permitir que setores excluídos tenham acesso aos seus próprios meios de comunicação.

PARTICIPAÇÃO

Divulgação

Hamilton Octavio de Souza

Agência Estado

Ausência de democracia na imprensa enfraquece lutas e reivindicações de movimentos sociais

a articulação das lutas dos negros, mulheres e outros setores excluídos e oprimidos. As lutas por democratização foram marcadas pela realização de muitos debates, seminários, encontros, articulações, quase sempre pautadas pelas críticas ao comportamento dos veículos comerciais (combate às distorções e às tentativas de criminalização dos movi-

Vários eventos realizados pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, pelo grupo Intervozes, pelos sindicatos de jornalistas e de radialistas, por universidades, pelo grupo Mídia Independente, pelos estudantes da Enecos e da UNE, todos na mesma direção de se conquistar para a sociedade uma participação efetiva e democrática no sistema de comunicação de massas. A campanha dos gaúchos contra o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, alcançou grande repercussão nacional, conseguiu

atingir economicamente o grupo empresarial, com o cancelamento de milhares de assinaturas, e contribuiu para chamar a atenção de muita gente sobre o papel nefasto do jornal durante o processo eleitoral de 2002. No final do ano, um comitê integrado por dezenas de entidades realizou três grandes atos e debates para fortalecer a luta pela democratização, um no Mineirinho, em Belo Horizonte, durante o Fórum Social Brasileiro, outro na sede da Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, e o terceiro no Tuca (Teatro da PUC), em São Paulo. Nesses atos foi lançada, também, uma campanha contra a manipulação e a distorção na imprensa, centrada na revista Veja, da Editora Abril, que tem sido o carrochefe das publicações panfletárias que destilam ódio e discriminação contra os povos árabes, contra as esquerdas, contra os ambientalistas e contra os movimentos sociais do Brasil e da América Latina. Junto com o aumento da conscientização e da mobilização, o movimento pela democratização da mídia precisa conquistar em 2004 espaços efetivos de comunicação de massas, principalmente com emissoras de rádio e TV e veículos de alcance nacional. (HOS)


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NACIONAL RETROSPECTIVA

Eles juraram que era sério! Cômicos, dramáticos, estapafúrdios, difíceis de engolir... acima de tudo, estes foram momentos inesquecíveis de 2003 √ Estou de alma lavada. Foi um sinal de que, acreditando, trabalhando e fazendo muito esforço, não tem tarefa impossível para um ser humano, sobretudo quando esses seres humanos têm determinação política naquilo que querem fazer. Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República, demonstrando alívio na votação da reforma da Previdência

√ Infelizmente, não tenho mais avós nem pais, mas tenho tios idosos, que gostam muito de mim. Ricardo Berzoini, ministro da Previdência, depois de cortar o pagamento dos aposentados com mais de 90 anos √ Não! Estamos fortalecendo uma equipe interdisciplinar de pesquisadores que estudem biossegurança, mas até agora não há estudos. Clayton Campanhola, presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), ao ser questionado pelos movimentos sociais se havia estudos que comprovassem a seguranças dos transgênicos

Natalia Forcat

√ A Regina Duarte, a essa altura, perdeu o medo. Marta Suplicy, prefeita de São Paulo, referindose à atriz global ao defender a política econômica do ministro Antônio Palocci √

É uma luta da nacionalidade brasileira. Miro Teixeira, ministro das Comunicações, comparando a campanha pela TV digital brasileira à campanha “O petróleo é nosso”, da década de 50

√ O ideal seria o Brasil anunciar um superavit de 4,25% durante dez anos. Antônio Palocci, no balanço de um ano do governo √ Foi um evento da mesma importância história que teve a queda do muro de Berlim Robert Zoelick, representante comercial dos Estados Unidos, referindo-se às negociações da Alca em Miami A captura de Sadam não significa o fim da violência no Iraque. Enfrentamos terroristas que preferem continuar matando inocentes a aceitar o aparecimento da liberdade. George W. Bush, presidente dos Estados Unidos, sobre a prisão do ex-presidente iraquiano

Marcio Baraldi

√ Você já pensou num mundo melhor? Você pensa como a gente, você pensa em um mundo com transgênicos. Slogan de campanha milionária de defesa dos transgênicos, movida pela transnacional Monsanto, e destinada a donas de casa e estudantes √ Você precisa descansar uma temporada conosco. Luiz Inácio Lula da Silva, convidando o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, a descansar no Brasil √ Resolver a inadimplência é o primeiro passo para voltar a consumir. Somando isso ao crescimento de 16,5% do crédito à pessoa física, você vê que já há uma retomada. Antônio Palocci, ministro da Fazenda, afirmando que a retomada da economia está acontecendo via crédito √ O ex-ministro da Fazenda, Pedro Malan, merecia uma estátua em praça pública. Marcos Lisboa, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, apoiando a continuidade das políticas econômicas implementadas no governo Fernando Henrique √ Não há nenhuma hipótese de o país crescer

Marcio Baraldi

com juros no cartão de crédito entre 7,5% e 10% ao mês e uma tarifa de capital de giro para empresas entre 40% e 60%. José Dirceu, ministro da Casa Civil, cobrando a redução dos juros pelos bancos, a quem, reconheceu, o “governo deu tudo o que eles pediram”


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CULTURA

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MÚSICA

O samba é a bandeira do povo Simpatizante do MST, Beth Carvalho quer a democratização da cultura e combate o preconceito contra os gêneros populares Divulgação

Beto Almeida de Brasília (DF)

H

á 35 anos na estrada da música, ela levanta bem alto a bandeira do samba, como uma das manifestações culturais que mais identificam e representam o povo brasileiro. A carioca Beth Carvalho não deixa de ser também cidadã comprometida com a defesa de profundas transformações sociais que permitam ao Brasil erradicar suas vergonhosas injustiças, sua miséria, sua submissão ao poder internacional. Declarando-se ligada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Cuba, Beth, que é brizolista de carteirinha e vice-presidente nacional do PDT, falou, ao Brasil de Fato, de samba e de política. Sem perder o tom ou o ritmo, analisou o massacre que a indústria cultural exerce sobre os artistas, a alienação cultural de segmentos da mídia e a necessidade de conscientização dos artistas. Por fim, confessou: “Esperava muito mais do governo Lula, por sua origem popular”.

BF – Você acha que há preconceito contra manifestações culturais populares como o samba? Beth Carvalho – Há muito preconceito e não só contra o samba, mas contra os gêneros culturais populares, contra o forró, o maracatu etc. Como o samba é do Rio de Janeiro, é a cara, a alma do Rio, e pelo fato de o Rio ter sido a capital da República, houve uma irradiação cultural que permitiu ao samba ter dimensão nacional. Mas o mesmo não ocorre com outros gêneros. O Chico Science, pra acontecer, teve que virar eletrônico. O samba não se ferrou por isso. Mas, hoje, a divulgação do samba para amplas camadas da população é muito superficial. Conhecem apenas o refrão de “Deixa a vida me levar”, interpretada pelo Zeca Pagodinho, este lindo samba de Serginho Meriti e Eri do Cais, e pensam que a música é do Zeca, embora ele sempre diga quem são os verdadeiros autores. Mas o povão é diferente, o povão sabe tudo!

Renato Stockler

“A mídia tem muito preconceito contra a cultura popular” BF – A relação dos artistas com as gravadoras é muito complexa? Beth Carvalho – Há muitos problemas. Agora há até entidades multinacionais atuando na área de direitos autorais. Chegamos ao ponto de uma linda música como “Travessia”, de Milton Nascimento e Fernando Brandt, com várias gravações nos EUA e versão para o inglês, ter um gringo que fez a versão da letra ganhando mais que o letrista. Um absurdo, uma apropriação. BF – E a batalha pela numeração dos discos? Beth Carvalho – Essa parada nós ganhamos, os discos estão sendo numerados. Se estão sendo cum-

pridos todos os termos eu não sei, afinal, depois de toda aquela mobilização para convencer o Congresso e o governo para numerar, na qual eu e o Lobão dedicamos muito tempo, tivemos de cuidar da carreira. Artista também tem que pagar conta de luz, telefone etc. Não é fácil. BF – Os artistas brasileiros são organizados? Sabem defender seus direitos? Beth Carvalho – Nós, os artistas, precisamos de maior politização e organização. Tem artista que nem lê contrato com atenção e entra pelo cano. Somos usados dia e noite. Por exemplo, quando vamos fazer a divulgação de um disco na televisão não recebemos cachê. A gravadora é que tem de divulgar. Mas a gravadora paga o “jabá” para a mídia e os artistas não recebem nada. Veja como são os contratos. Eu, por exemplo, tenho um dos mais altos royaties do Brasil, ganho apenas 18% do disco, a gravadora fica com 82%. BF – Um índice alto. Beth Carvalho – A verdade é que nós pagamos para cantar. Além disso, 25% são para a capa do CD, sem falar dos impostos que temos de pagar sem nem saber exatamente pra quê e por quê! Se for um CD com compilação de gravações antigas, é pior ainda, pois recebemos 50% menos, e olha que é sobre o preço de custo do CD. Se o disco for destinado para comercialização no exterior, o artista também recebe 50% a menos. BF – Então, o artista depende muito da realização de shows? Beth Carvalho – Sim, quando deveria ganhar uma remuneração decente e adequada pelos discos que grava, e não viver de shows. E ainda por cima não fazemos os shows que gostaríamos. Os artistas têm que aceitar muitas condições e exigências para os shows, quando deveria ser uma opção. Eu duvido que o grande Moreira da Silva gostasse de fazer tantos

shows como fazia aos 90 anos de idade! É que não tinha outra alternativa, é uma situação imposta. O resultado é que o artista se desgasta, fica cansado com uma série interminável de viagens, deixa de compor, tem mais dificuldades para criar, para se aperfeiçoar como músico, como compositor, e no final das contas os discos ficam muito iguais.

“Eu esperava muito mais do governo Lula” BF – Por que os artistas não reagem? Beth Carvalho – Na verdade, o artista é muito ingênuo. Gostaríamos de apenas tocar, cantar, compor, subir ao palco e que cuidassem de nós com respeito. Mas não é assim que a coisa funciona, principalmente numa sociedade capitalista! Numa sociedade socialista como Cuba, por exemplo, a relação com o artista é outra, é maravilhosa, é relax! Não é essa loucura. Do jeito que a coisa funciona aqui no Brasil, é um massacre. Eu até falo que o MST – que é o movimento mais importante que o Brasil tem –, em certo sentido está em melhor posição que os artistas, pois a maioria dos artistas não tem qualquer proteção. O MST pelo menos tem uma organização. No nosso caso, a Ordem dos Músicos apenas cobra a anuidade, não faz nada mais. E nós artistas deveríamos ter uma entidade poderosa como a OAB, com um prédio com boas instalações, um estúdio para gravações de discos, ensaios etc. BF – Falta organização? Beth Carvalho – Não temos força, não temos apoio de nada. Muito menos somos milionários

como se pensa. Pensam assim porque existe uma certa filosofia hollywoodiana que se entranhou por esse país. Acabamos copiando aquele modelo dos EUA, mas só a parte pior. É bom deixar claro que nem aquele modelo é bom para o artista. Tanto é que muitos morreram de maneira trágica, como Marillyn Monroe, Elvis Plesley e até mesmo nossa querida Carmem Miranda. Eles se suicidaram! Isso tinha que ser diferente! BF – Mas é preciso manter a chama acesa.... Beth Carvalho – Ainda bem que o que eu canto é ideológico. A minha música é o meu néctar, porque representa o povo brasileiro. Não sou feliz inteiramente porque vejo um povo tão sofrido como o nosso. Mas sou feliz com o que faço, a hora em que entro no estúdio para cantar é a grande alegria da minha vida. Mas depois é muito sofrido, e olha que eu estou há 35 anos nessa história! BF – E a política? Beth Carvalho – Fico muito triste com o que aconteceu com a Heloísa Helena. É um espanto! Não se pode mais contestar? BF – Como você está vendo o governo Lula? Beth Carvalho – O governo Lula é muito pouco à esquerda. Eu esperava muito mais, principalmente levando em conta a origem popular do Lula. Estou atenta às críticas que o Brizola tem feito, e ainda não dá pra ver direito onde isso tudo vai dar. Há coisas que eu acho legal, como o CEU que a prefeita Marta está fazendo. Mas é bom lembrar que o Brizola, quando governou o Rio de Janeiro, construiu 500 Cieps. Brizola e Darcy Ribeiro chegaram a botar metade do orçamento do Estado do Rio de Janeiro na educação. Isso é um exemplo!

Renato Stockler

Brasil de Fato – Como você analisa a relação da mídia com o samba? Beth Carvalho – A mídia não entende o samba, com as exceções de sempre. Confunde tudo. Mas o samba é guerreiro, consegue sobreviver a tudo e a todos. O samba é muito mais que um ritmo, é uma causa, é a bandeira do povo, dos oprimidos, dos despossuídos, dos humilhados. Sempre que está em baixa, porque não há a devida atenção da mídia e das políticas culturais, ele se mobiliza. E reaje. Aí surgem expressões e movimentos importantíssimos como o Candongueiro, a Tia Doca, o Jongo da Serrinha, e o Samba da Vela, em São Paulo. É a sua reação, mas ainda é pouco, deveria estar muito mais em alta. Hoje, por exemplo, a maior visibilidade fica com Zeca Pagodinho, Jorge Aragão e Beth Carvalho. Mas tem muito mais gente boa por aí e a mídia não entende. BF – Qual deveria ser o papel da mídia? Beth Carvalho – Não é só a mídia, precisa mudar muita coisa. Quando o país tiver escola para todos, cultura democratizada etc, será bem diferente. Mas o Brasil que saiu da ditadura ainda hoje é muito medíocre. Os baixos salários dos jornalistas e professores são uma forma de rebaixamento cultural. Os jornalistas, em média, ganham muito mal, não podem se dedicar a uma especialização cultural. Os professores ganham mal, precisam de quatro empregos. Ninguém pode ler, e nem ter informação. O resultado é que o Brasil não conhece o povo brasileiro. E há preguiça e preconceito da mídia. As elites, que controlam a mídia, só aceitam aquilo que tem retorno comercial rápido. Então, o nível cultural médio da sociedade é muito baixo.

Quem é Beth Carvalho nasceu em maio de 1946 no Rio de Janeiro (RJ) e teve uma infância repleta de cultura. Emocionava-se com as músicas de Silvio Caldas, amigo de seu pai, e na adolescência iniciou carreira, gravando o primeiro álbum em 1965. Três anos depois, conquistou reconhecimento nacional ao ganhar o terceiro lugar no Festival Internacional da Canção. Já famosa, continuou ao lado do povo e tornou-se especialista em descobrir novos talentos como Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal e Jorge Aragão. A intérprete carioca no Samba da Vela, em São Paulo (SP)


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