Ano 1 • Número 45
R$ 2,00 São Paulo • De 8 a 14 de janeiro de 2004
Índios retomam terras e exigem ação do governo O
processo de retomada de terras, iniciado por cerca de 3 mil Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, é um “recado” para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva de que não há mais como adiar a demarcação dessas áreas. “Um governo popular não pode fazer vistas grossas a esse problema”, critica Egon Heck, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Os indígenas querem de volta
Lalo de Almeida/Folha Imagem
Para pressionar pela demarcação de terras, cinco fazendas foram reocupadas, em áreas que pertenciam aos indígenas
as terras de onde foram expulsos por fazendeiros em função da expansão da agropecuária. Especialistas explicam que os índios foram submetidos a um confinamento que está provocando o aumento no número de suicídios. Na seção Debate, o presidente da Fundação Nacional do Índio dá outra versão para o aumento das mortes entre os indígenas. Págs. 8 e 14
Cuba celebra 45 anos de luta contra desigualdade Mesmo sob pressão dos Estados Unidos, a revolução cubana continua viva e comemora 45 anos. Dia 1º de janeiro de 1959, os guerrilheiros Fidel Castro e Ernesto Che Guevara marchavam pela capital Havana, depois de três anos de luta que culminaram com a queda do ditador Fulgêncio Batista. Foi o início de uma história que transformou a ilha, até então um “quintal estadunidense”, no primeiro país
Em 1994, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) organizou um levante armado e começou um sólido movimento revolucionário no México. Em defesa da democracia, da liberdade e da justiça para os mexicanos e do reconhecimento dos povos indígenas na Constituição, os zapatistas resistem, nas montanhas de Chiapas, às ofensivas do governo e de grupos paramilitares. Apesar da repressão, em 2003 o EZLN criou cinco zonas territoriais autônomas, denominadas Caracoles. Pág. 9
FÓRUM SOCIAL – Movimentos sociais e organizações não-governamentais (ONGs) preparam-se para debater alternativas ao neoliberalismo no Fórum Social Mundial 2004, na Índia, entre 16 e 21 de janeiro. Pág. 5 IRAQUE – O sociólogo estadunidense James Petras denuncia que generais iraquianos tinham pacto com o Pentágono para entregar o país em troca de proteção. Para ele, a guerra no Iraque começou agora, com o levante popular contra as forças invasoras. Pág. 13 CULTURA – O artista plástico Rogério Mourtada inova com uma técnica de fazer gravuras em gesso. Ele retrata o mundo dos excluídos pela miséria ou pelas normas de moralidade vigentes. Pág. 16
PT cede espaço para a direita no Planalto
Indígenas membros do Exército Zapatista de Libertação Nacional celebram 10 anos do levante em Chiapas, México
Agê
E mais:
Cerca de 3 mil Guarani e Kaiowá participam da retomada de suas terras, invadidas por fazendeiros, em Japorã (MS)
Janet Schwartz/AFP
Dez anos de resistência zapatista
socialista da América Latina. Para o cientista político Emir Sader, Cuba e Venezuela representam a resistência à hegemonia dos EUA no continente. Ao contrário do que defende o Fundo Monetário Internacional (FMI), os dois países privilegiam o social e investem para universalizar o acesso do seu povo à educação, à saúde, à habitação e à cultura. Pág. 11
Movimentos ligados à luta por melhores condições de habitação consideram os primeiros sinais da reforma ministerial como um avanço da direita e temem prejuízos às perspectivas de melhoria no setor urbano. O PMDB deve receber, como recompensa pelo apoio às aprovações das reformas da Previdência e tributária, os Ministérios das Cidades e das Comunicações. O anúncio da reforma ministerial deve ser feito até dia 9, antes da viagem do presidente Lula para o México, dia 12. Pág. 5
Saúde em crise Para economista, por falta país precisa de de recursos mudança radical O sistema público de saúde ainda não consegue atender a todos os brasileiros. Além da falta de dinheiro, há problemas na administração. Mas sobram alternativas. Com vontade política, o governo pode quebrar patentes e baratear os remédios. Melhorando o repasse de verbas aos municípios não só se economizaria verbas de transporte, como se agilizaria o atendimento. Investimentos em prevenção reduziriam os custos com tratamentos e internações. O governo federal já tomou algumas iniciativas, mas existe muita coisa por fazer. “Tenho que esperar meses para marcar consulta para minha filha”, reclama a desempregada Iracema Leal. Pág. 7
Pág. 4
UNE prevê ano de lutas pela escola pública Pág.6
Brasil arca com custo ambiental dos países ricos Pág. 3
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De 8 a 14 de janeiro de 2004
NOSSA OPINIÃO
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Tiago Rodrigo Dória • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
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O canto do quero-quero
O
quero-quero costuma afugentar seus predadores e as pessoas que se aproximam gritando e atacando em local distante de onde está o seu ninho, para desviar a atenção. A classe dominante brasileira se parece com esse pássaro: usa sistematicamente seus meios de comunicação de massa para desviar a atenção do povo dos verdadeiros problemas do país. Com isso, protege seus privilégios e lucros. Quem veio passar o final de ano no Brasil e se informou apenas pelas notícias dos jornais e da televisão deve ter ficado estupefato com a invejável situação da economia brasileira. Durante vários dias os veículos da grande mídia repetiram a cantinela do me engana-que-eu-gosto, tentando mostrar que o país está uma maravilha. Usaram o tal índice “risco-Brasil” como prova – um indicador fajuto, criado por especuladores internacionais, para saber onde podem ganhar mais. E se eles ganham mais, é porque o país perde. Esconderam que, com esses índices (os mesmos do primeiro mandato de FHC), ainda perdemos até da Turquia, em guerra permanente com os curdos e o Iraque. Disseram que o saldo de 24 bilhões de dólares na balança comer-
cial foi um recorde histórico. Mas esqueceram de dizer que, se a economia não cresceu e tivemos esse saldo, é sinal de que o povo brasileiro enviou para fora 24 bilhões de dólares a mais de sua riqueza, sem nada dela aproveitar. A bolsa de valores teve um lucro líquido de 95% no ano. Um “espetáculo” preocupante. Não mais do que quinhentas empresas vendem ações na Bolsa, entre as mais de 20 mil que existem. E, se esses poucos investidores tiveram tanto lucro, quem pagou a conta? Os verdadeiros problemas continuam intocáveis. Sem comentários. Ninguém comenta a vulnerabilidade externa, que suga nossa economia há décadas. Ninguém comenta a dependência do capital financeiro, que leva o governo a desviar R$ 80 bilhões da poupança nacional, recolhidos na forma de impostos e entregues ao sistema financeiro – que por sua vez, reempresta ao governo e forma assim o ciclo vicioso de acumulação permanente às custas do povo. Esse é o preço da estabilidade e do apoio da classe dominante a um governo eleito pela esquerda. Não tocar nos privilégios! Nem afetar a taxa de lucro. Ninguém fala das concentrações de renda e de terra
que praticamente anularam o mercado interno brasileiro, onde apenas 15% dos 170 milhões de brasileiros têm poder aquisitivo. Por isso toda empresa brasileira só pensa em exportar. Porque por aqui ninguém tem dinheiro para comprar. Ninguém quer comentar que, fruto dos problemas estruturais e da natureza do modelo neoliberal, o povo sofre a mais alta taxa de desemprego de sua história, as mais altas taxas de violência urbana do mundo, e o maior déficit habitacional da América Latina. A classe dominante brasileira esconde os verdadeiros problemas porque uma reflexão sobre eles levaria a opinião pública a reconhecer a necessidade de um novo projeto para o Brasil. Nosso desafio hoje não é valorizar as exportações e os lucros escorchantes da Bolsa. Nosso desafio principal é debater nosso destino. É pensar um modelo econômico onde a maioria do povo tenha oportunidade. Esperamos que neste ano o governo Lula estimule o debate com os brasileiros sobre os seus verdadeiros problemas. E que possamos construir, coletivamente, um novo modelo econômico para o país. Não será possível ser fiel aos marqueteiros e ao povo, ao mesmo tempo.
FALA ZÉ
OHI
CARTAS DOS LEITORES KIRCHNER O presidente Kirchner, da Argentina, não teve o azar do seu colega Lula de ser precedido por um Fernando Henrique totalmente a serviço das empresas privatizadas e que, por meio das agências que criou, impediu o sucessor de barrar os abusivos aumentos de preços de telefone, energia elétrica etc. E é por isso que Kirchner está dando às empresas estrangeiras de eletricidade e telefonia o tratamento merecido, impedindo-as de locupletar por meio do empobrecimento do povo argentino. Parabéns a ele. Mas será que o nosso Lula não poderia arregimentar algum apoio no parlamento para conter essas sanguessugas que estão pauperizando o nosso povo por meio de tarifas tão altas que elas próprias não encontram mais campo para ampliar suas atividades? Antonio Rodrigues de Souza São Paulo (SP) FINANCIAMENTO ELEITORAL Depois da reforma da Previdência, um tanto parcial, mas que de qualquer forma contribuiu para um Brasil mais igualitário, esperamos que o governo Lula consiga, com igual rapidez, concretizar a reforma política, antiga aspiração de todos os democratas autênticos. O financiamento partidário e eleitoral pelas empresas é um câncer que corrói a democracia, não apenas em nosso país, mas em quase todo o
continente americano. Saímos de mais de vinte anos de uma ditadura militar, na qual como bem formulou Leonel Brizola, “os militares seguravam a vaca para os ricos tirarem o leite”, para um regime plurocrático em que os ricos passaram a ser os donos da vaca. Nos governos Collor e Fernando Henrique, para cada milhão que as empresas destinaram às campanhas eleitorais, recebiam um bilhão de recursos públicos depois da eleição, seja sob a forma de empréstimos para bancos falidos, seja sob a forma de compra de ações pelo poder público de empresas falidas, seja sob a forma de entrega a empresas privadas de empreendimentos públicos altamente rentáveis e ainda com financiamento público. Maria Conceição Schramm São Paulo (SP) MUDANÇA Após ter conhecido o Brasil de Fato, mudei a minha dose de informação semanal; não se trata de sair por aí dizendo que os outros meios de informação não prestam: mas é a mais pura verdade que o Brasil de Fato é, de longe, a melhor publicação semanal brasileira, justamente por não ter rabo preso com nenhum “pa(i)trocinador” ou algo que o valha. Zema Ribeiro, Natal (RN)
Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 3038 1432 ou mande uma mensagem eletrônica para: brasildefato@teletarget.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815
CRÔNICA
Em se plantando, tudo dá... Luiz Ricardo Leitão “Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior” (Pero Vaz de Caminha, Carta a El Rey Dom Manuel) Os alunos de Letras da Universidade de Maringá estão pasmos. No Vestibular de Literatura Brasileira, o texto adotado foi um artigo escrito (melhor dizer “assinado”) pelo presidente da Monsanto no Brasil, Rick Greubel. O “artigo”, intitulado A biotecnologia e a agricultura brasileira, é uma defesa, do emprego dos transgênicos na empresa agrária de Pindorama. Confiram só a retórica do gringo: A biotecnologia é um tema que está acima dos interesses de uma só empresa ou entidade, ao contrário do que dá a entender o artigo de João Pedro Stedile e Jean Marc von der Weid, publicado pela Folha. Trata-se de um debate que envolve diversas companhias e instituições de pesquisas, além do governo e de vários setores da economia, incluindo agricultores, multiplicadores de sementes, exportadores, indústria de alimentos, cientistas e consumidores. Acreditamos que todos esses segmentos
devam ser ouvidos e as decisões, tomadas com base em fatos, evidências científicas comprovadas, e não lastreadas em hipóteses, interpretações tendenciosas, princípios ou precauções ideológicos. O texto, decerto, nada possui de literário. À exceção do curioso eufemismo “multiplicadores de sementes”, com o qual o articulista busca dissimular – e, ao mesmo tempo, canonizar – sua empresa, nada aqui nos sugere o artesanato estético de um artista, mas apenas a instrumentalização mais acintosa do verbo em proveito da acirrada luta ideológica que se vem travando em favor da plena utilização das sementes transgênicas na lavoura nacional. O episódio serve como advertência para a nova onda de recolonização que o capital transnacional promove hoje no planeta: surgem os novos “cronistas de Índias”. É uma pena que os gringos de hoje não cultivem o estilo refinado dos gajos de antanho. Só a título de breve ilustração, relembremos a prosa cativante do escrivão Caminha: Águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela
tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente, e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. Havia um pouco mais de estilo, não é fato? Ainda que, no frigir dos ovos, tudo não passasse de pilhagem e expansão colonial, para deleite dos capitais flamengos, genoveses e seus pares (Portugal era apenas uma bucha de canhão, senhores!). Companheiros de Letras de Maringá, não desanimem. Para cada Rick Greubel que o Império nos exporte, surgirão vários Gregórios de Matos, Veríssimos, Stanislaws e outros cronistas amantes da verdade e defensores desta pátria. Um Feliz 2004 para vocês! (E oxalá o próximo vestibular não seja com um tal W. Bush, va bene?) Luiz Ricardo Leitão é editor, escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura latino-americana e caribenha pela Universidade de La Habana (Cuba), é autor da Gramática Crítica: o culto e o coloquial no português brasileiro (Oficina do Autor Editora).
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NACIONAL MEIO AMBIENTE
Ricos consomem e Brasil paga a conta O
jornalista e ambientalista Washington Novaes, em entrevista ao Brasil de Fato, alerta para a falta de visão estratégica do governo, nas questões ambientais. “A visão de desenvolvimento do PT me parece muito antiga, de 40 ou 50 anos atrás. Até nas coisas em que o partido ameaçou tomar um rumo, fica claro que não havia uma percepção estratégica do país”. Novaes sugere que a falta de água em São Paulo, associada ao inchaço da cidade, é também a outra face do modelo agropecuário adotado, baseado em mecanização intensiva e na produção de grãos para exportação, que expulsa o trabalhador do campo e causa danos ambientais e sociais.
Brasil de Fato – Como foi o primeiro ano do governo Lula na área de meio ambiente? Washington Novaes – Nos primeiros meses, a ministra do Meio Ambiente, Marina da Silva, sofreu algumas derrotas importantes. A primeira foi a Medida Provisória 131, que autorizou a colheita da safra de soja transgênica plantada ilegalmente. Logo o governo autorizou a redução da quantidade de álcool na mistura com a gasolina, exatamente para exportar o combustível a países que usariam o álcool para reduzir suas emissões de poluentes, misturando o produto à sua gasolina, como a Suíça e o Japão. Em nome das exportações, aqueles países ficam mais limpos e adequados, e o Brasil, mais sujo e inadequado. Em seguida, foram autorizadas importações de pneus usados do Uruguai, sob o argumento de que um tribunal arbitral do Mercosul exigia isso. É curioso porque, exceto o Brasil, os demais países do Mercosul não autorizaram a importação de pneus usados. O governo informou que vai fazer a transposição das águas do Rio São Francisco, a usina nuclear de Angra III, as hidrelétricas na Amazônia (como a usina de Belo Monte e mais duas no Rio Madeira), as hidrovias dos Rios Araguaia-Tocantins e Teles PiresTapajós, o gasoduto cortando a Amazônia e, principalmente, a expansão do plantio da soja na Região Amazônica. Seriam 80 mil quilômetros quadrados de soja, no Noroeste de Mato Grosso, Rondônia, Acre e mais algumas áreas. A partir daí, a ministra abriu a discussão para reavaliar a questão amazônica. E o que tem sido anunciado é que o projeto de Belo Monte vai ser refeito. Quanto ao projeto de asfaltamento da BR-163 (Cuiabá-Santarém), será submetido a um grupo misto de trabalho, para evitar o avanço do desmatamento. No caso do São Francisco, fala-se que antes da transposição será feita a revitalização do rio. BF - As alianças assumidas pelo PT, na campanha eleitoral e, depois, no Congresso, para votação das reformas, tiveram impacto sobre a política ambiental? Novaes – Na verdade, as questões ambientais praticamente não entraram na campanha eleitoral. Discutia-se Produto Interno Bruto, dívida externa, balança comercial. O concreto não entrava no debate, como, por exemplo, a questão urbana, que é uma calamidade, decorrente do mau uso e da má ocupação do solo, dos custos do modelo agropecuário, que tem uma influência enorme nesse inchaço das cidades; ou um projeto para a Amazônia. Até antes da campanha, o PT tinha uma posição declarada sobre transgênicos, e que acabou indo por terra ao
Área devastada na Floresta Amazônica, um dos sinais da falta de fiscalização e frágil política ambiental no país
O PT tinha uma posição declarada sobre transgênicos, que acabou indo por terra ao longo do processo de concessões longo do processo de concessões. Não percebo uma visão estratégica do PT e a sua visão de desenvolvimento me parece muito antiga, de 40 ou 50 anos atrás. Até nas coisas em que o partido ameaçou tomar um rumo, fica claro que não havia uma percepção estratégica do país. Na questão dos transgênicos, mesmo deixando de lado os riscos ambientais para a saúde e a ameaça aos direitos do consumidor, qual a visão do governo do PT? Ele é só a favor de ter transgênicos? Ou quer se manter fora da produção de transgênicos para se beneficiar de mercados privilegiados como o europeu e o japonês, que não querem transgênicos e, assim, preservar a posição do único grande produtor de grãos não transgênicos? Ou pretende ter uma posição mista, com áreas liberadas e não liberadas? O que o governo fez até agora é uma atrapalhada gigantesca, que não define nada. Digamos que se aprove a soja transgênica, definitivamente. Nesse caso, haveria outro tipo de problema, porque não se pode utilizar o glifosato, o Roudup Ready (herbicida da multinacional Monsanto, que tem o glifosato como princípio ativo), na soja pósemergente, e sem ele não adianta nada plantar soja transgênica. Que estudos foram feitos em relação à produtividade? A soja brasileira já é mais produtiva do que a estadunidense, a canadense, a argentina. Quais estudos foram feitos para comprovar, ou não, Caros Amigos
Lauro Jardim de São Paulo (SP)
Arquivo Greenpeace
O atual modelo agropecuário e as políticas de exportação vigentes favorecem o mercado externo e penalizam o país
a grande alegação de que a soja transgênica reduz custos porque exige menos herbicidas? E o preço da semente, que até agora não foi pago porque a soja foi contrabandeada? E os royalties que a Monsanto cobra? Nada disso está definido e o projeto já está sofrendo um massacre na comissão onde está sendo analisado, tirando isso, tirando aquilo, dando poder conclusivo para a CTNBio. BF – O modelo para a Amazônia é o mesmo da ocupação dos Cerrados, que teve resultados desastrosos. Novaes – Há o agravante de que o clima, o solo, o nível de umidade da Amazônia não são adequados à exploração agropecuária. Há vários estudos mostrando que 83% dos solos da Amazônia são inadequados para cultura de grãos e para pastagens. E mesmo os 17% que sobram, já foram desmatados. Não seria preciso desmatar mais nada, se for para seguir esse modelo. Até quando o Brasil vai ser fornecedor de produtos primários ou semi-elaborados, absorvendo todos os custos sociais e ambientais, sem receber compensações e ainda sendo penalizado pela queda de preços mundiais? A carne perdeu 17% de seu preço real, em uma década, no mercado internacional. A soja está abaixo de 1988, vale menos do que há 15 anos. Foi divulgado um primeiro balanço dos subsídios incluídos na tarifa da energia fornecida por Tucuruí aos fabricantes de alumínio, mais de 2 bilhões de dólares.
Por que não fazem projetos realmente capazes de gerar trabalho e renda para o grosso da população da Amazônia? Por que não se utiliza esse dinheiro dos subsídios ao alumínio para fazer conservação e não se contrata essa gente toda para fiscalizar a floresta, os rios, as reservas? O que está projetado para a região é repetição dos modelos do Centro-Oeste e do Sul, que não servem para a Amazônia. BF – O agronegócio, louvado pelas altas de taxas de crescimento e pela participação no saldo comercial, teria um balanço negativo, com custos (ambientais e sociais) superiores aos ganhos? Novaes – Acho bastante provável. Há a erosão. O Brasil perde 10 quilos de solo por quilo de grão produzido. Existe hoje o plantio direto, que reduz bastante esse custo, mas não deve chegar a 30% da área de grãos. E aumenta os custos com herbicidas. Há os custos para a reposição da fertilidade perdida com a erosão. O Brasil já é o terceiro consumidor mundial
Um estudo mostra que nos produtos primários que um país como o Brasil exporta 90% do preço final pago pelo consumidor ficam no país importador. O exportador fica com 10% do preço final. Enquanto isso, nos produtos que o Brasil importa, os países industrializados agregam todos os valores, o custo da mão-de-obra, da tecnologia, do conhecimento, do seguro, tudo fica lá fora. Estamos eternamente nessa posição de criar a possibilidade de um consumo baratinho para os países industrializados e ficar com os custos todos aqui dentro. BF – Algumas regiões, como o Sudeste e, em especial, o Estado de São Paulo, voltam a enfrentar problemas de abastecimento de água. Novaes – Pouco mais de 50% dos domicílios têm rede de esgoto e talvez 15% recebem algum tratamento. O restante é despejado in natura nos rios e gera um volume brutal de poluição. Além disso, os domicílios que não têm esgotos usam fossas, e uma grande parte delas contamina lençóis freáticos. A ocupação dos solos urbanos não deixa espaços para a infiltração da água, que tende a correr para o fundo de vales e tem um escoamento muito mais rápido. Isso influi no microclima e no próprio volume de água. Há ainda a incapacidade do sistema de saneamento em lidar com o abastecimento de água. A perda média nas redes públicas brasileiras fica entre 40% e 50%, considerando o volume de água que sai das estações de tratamento e o que é faturado pela empresa. O resto perde-se em vazamentos, desvios, desperdícios. Na melhor das hipóteses, há dinheiro para obras de captação nova e estações novas de tratamento. Para manutenção, que custaria de cinco a sete vezes mais barato, não há recursos. A ocupação de áreas de mananciais, de áreas de preservação permanente, princi-
Estamos eternamente na posição de criar um consumo baratinho para os países industrializados e ficar com os custos aqui de agroquímicos, gastando entre 2,5 bilhões a 3 bilhões de dólares por ano. Há a degradação hídrica. A Agência Nacional de Águas (ANA) diz que todas as bacias, da Bahia ao Rio Grande do Sul, estão em situação crítica. Não se contabiliza, principalmente, a contribuição desse modelo agropecuário para o agravamento dos custos urbanos. Desde 1950, no país, mais de 50 milhões de pessoas se transferiram das zonas rurais para as urbanas. Entre 1960 e 2000, a população urbana brasileira cresceu em 107 milhões de pessoas. Isso é uma barbaridade, não há país no mundo que suporte uma coisa dessas. Como, em 40 anos, providenciar estruturas urbanas, habitação, energia, saneamento, saúde, transporte, limpeza, educação, segurança para 107 milhões de pessoas?
Quem é Washington Novaes é jornalista há 45 anos, especialista em meio ambiente. Foi secretário de Ciência e Tecnologia e Meio Ambiente do Distrito Federal e é autor do livro A Década do Impasse, da Rio-92 a Rio+10, entre outros. Participou do Programa das Nações Unidas sobre Desenvolvimento (PNUD) e colaborou na elaboração da Agenda 21 brasileira, programa que tenta implementar o desenvolvimento sustentável no país.
palmente nas grandes cidades, vai reduzindo também a capacidade de acumulação e geração de água. Em cima disso tudo, há mudanças climáticas, a respeito das quais ninguém sabe o que está acontecendo. Mudanças no uso da terra também podem afetar o regime hidrológico. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais trabalha com a hipótese de que ocorra modificação no regime hidrológico em função de desmatamento e queimadas, principalmente, mas não só, na Região Amazônica. BF – O problema de falta de água em São Paulo estaria relacionado a uma mudança climática conjuntural? Novaes – Ninguém sabe ainda. Todos os fatores que citei concorrem para isso, mas, por exemplo, por que os reservatórios chegaram a um nível tão baixo se não houve uma diferença tão pronunciada no regime de chuvas? Há poucas semanas, houve chuvas fortes em São Paulo, mas o nível dos reservatórios não mudou. A tese é de que hoje se precise de mais água para repor os aqüíferos subterrâneos e o lençol freático do que antes porque esse déficit vem se acumulando e, então, sobra menos água na superfície. Isso pode ser conseqüência de evaporação, de mais calor, de exaustão de aqüíferos subterrâneos. O conhecimento dessas coisas é muito precário. Sabe-se que a situação é grave e vai ficar ainda mais.
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NACIONAL CONJUNTURA
Economia só muda se houver um “tranco” Lauro Jardim de São Paulo (SP)
O
governo petista enredou-se de tal forma na política econômica adotada no governo de Fernando Henrique Cardoso que a economia só conseguirá reeditar taxas sustentadas de crescimento se esse modelo econômico for abandonado. A mudança poderia ter acontecido de forma gradual, lá pelo início de 2003. Agora, se acontecer, terá que ser feita na marra. “Só muda (o modelo, com conseqüente retomada do crescimento) se houver um ‘tranco’ na economia”, defende Ricardo Carneiro, diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). De certa forma, o país atravessa, neste começo de ano, um cenário ligeiramente semelhante ao do início do Plano Real, entre 1994 e 1995. Sobram dólares no mercado internacional, por causa da queda dos juros nas principais economias desenvolvidas; há uma enxurrada de recursos entrando no país, destinados, na maior parte, a investimentos especulativos de curto prazo (como ações nas Bolsas de Valores e títulos da dívida interna); o real se valoriza frente ao dólar; a economia mundial volta a crescer; e a inflação está novamente sob controle.
OPÇÃO EQUIVOCADA As semelhanças, ressalta Carneiro, param por aqui. A grande diferença, aponta ele, é que a insistência numa política que já se mostrou fracassada nos oito anos da era FHC agravou enormemente as condições da economia. “O governo endividou-se ainda mais, deixou o câmbio se valorizar ao permitir a livre entrada de capitais estrangeiros, não acumulou reservas em dólares e a dívida externa voltou a crescer”, diz o economista. Manteve-se, em conseqüência, a necessidade de o país continuar levantando grandes volumes de dólares, lá fora, para continuar pagando em dia compromissos com credores internacionais.
Mariana Ignatios/Folha Imagem
Para ganhar credibilidade, o governo criou uma armadilha que vai alternar crescimento passageiro e crise
Com o avanço do desemprego, as liquidações de janeiro representam um bom momento para quem precisa fazer compras
Além disso o avanço do desemprego e uma queda de até 15% nos rendimentos das pessoas ocupadas contribuíram para deprimir o mercado interno, reduzindo as chances de uma retomada sustentada do crescimento econômico por falta de demanda. “O governo fez a opção de trabalhar para conquistar a credibilidade dos mercados (leia-se bancos, investidores e credores internacionais e instituições financeiras em geral), mas fez isso da forma errada. Ao aprofundar a política econômica anterior (aumentando os juros e ampliando o aperto nos investimentos e despesas públicas), criou o que chamamos de ‘paradoxo da credibilidade’ e deixou de produzir, durante 2003, as condições para mudar essa mesma política”, analisa Carneiro.
O paradoxo está justamente no fato de o governo ter, efetivamente, angariado a confiança dos mercados, às custas da estagnação da economia, com avanço do desemprego e achatamento da renda de trabalhadores e da classe média em geral. Neste momento, a política de juros altos e de arrocho das despesas públicas transforma-se em uma armadilha que impede a pretendida retomada do crescimento.
NÃO DÁ PARA ERRAR No momento de lançamento do Plano Real, a dívida do setor público era baixa, representando por mais de um terço do Produto Interno Bruto (PIB), que soma todas as riquezas produzidas pelo país. As reservas internacionais eram mais de duas vezes maiores do que ho-
je, chegando a quase 51 bilhões de dólares. O desemprego não era tão elevado e a renda dos brasileiros empregados representava pouco mais de 40% do PIB, diante de 36%, em 2002. Em outras palavras, havia mais espaço para erros – e como se cometeram erros! Entre 1995 e 2002, a política de corte dos gastos públicos, juros altos, aumento de impostos, arrocho de salários e abertura do mercado interno a importações e a capitais especulativos criou uma economia que não consegue mais crescer sem gerar, em seguida, ciclos prolongados de crise, com elevação do desemprego, queda da produção e das vendas. No ano passado, afirma Carneiro, a opção pela mesma política agravou as condições gerais de operação da economia e
tornou inviável o caminho de uma mudança progressiva em direção a uma política sustentada de crescimento. A alternativa, agora, diz o economista, pressupõe um “tranco” na política econômica. “A discussão sobre o que é possível fazer hoje para corrigir os rumos da economia tornou-se muito mais complicada do que no final de 2002”, constata Carneiro. Quando fala em “tranco”, o economista defende a adoção de alguma forma de controle da entrada e da saída de dólares do país, uma vez que a margem para novos erros encolheu drasticamente e o governo perdeu virtualmente o controle sobre as políticas de juros e câmbio (que define a cotação diária do dólar em reais).
O “tranco” sugerido pelo economista Ricardo Carneiro expressa a alternativa disponível, hoje, para desarmar a armadilha que condenou a economia do país a alternar períodos de crescimento passageiro e fases de crises dramáticas. O controle de capitais permitiria, por exemplo, a redução mais firme das taxas de juros, aliviando seu peso sobre a atividade econômica em geral. E evitaria que o dólar continuasse numa espécie de “gangorra”, flutuando ao sabor do fluxo de entrada e de saída de recursos estrangeiros, ou, mais precisamente, segundo as variações de humor do mercado internacional. Exemplos dessa “gangorra”: com a fuga de dólares no final de 2002, causada por especulações em torno do futuro da política econômica no governo recém-eleito e facilitada pela posição vulnerável do país frente a seus credores externos, a cotação da moeda estadunidense disparou, levando o governo a aumentar os juros para tentar estancar a sangria. A equipe econômica exagerou na dose e o que se viu foi uma crise ainda mais grave ao longo dos primeiros sete meses do ano passado. No momento seguinte, com a redução dos juros dos títulos do governo estadunidense, investidores/ especuladores internacionais trataram de buscar aplicações mais lucrativas, o que ampliou a entrada de dólares no Brasil e em praticamente todos os países considerados
emergentes. Resultado: queda da cotação do dólar, com barateamento das importações. Num primeiro momento, essa política ajudou a segurar os preços e derrubar a inflação. Depois, como demonstra a experiência do Plano Real, a economia não conseguiu sair da crise.
Eduardo Knapp/Folha Imagem
Controle de capitais externos, para desatar o nó
GESTÃO PASSIVA Entre outros motivos porque se criou uma falsa sensação de estabilidade, já que aquele é um dinheiro que pode fugir rapidamente do país, ao menor sinal de mudança no cenário internacional (alta dos juros nos Estados Unidos, por exemplo), deixando o Brasil novamente em dificuldades. “Esse é o resultado de uma gestão passiva e liberal da política econômica”, pontua Carneiro. O controle de capitais, com a obrigação de permanência dos investimentos em dólar no país por um certo tempo, contornaria esse tipo de dificuldade, permitindo ao governo e às empresas planejar suas atividades a prazos mais longos. O problema é que a mudança exigiria um “certo enfrentamento entre o governo e o mercado financeiro”, comenta o economista, acrescentando que essa possibilidade não faz parte do cardápio já antecipado pela equipe econômica – que prevê a preservação das bases da atual política (juros altos, corte de despesas e investimentos públicos) em 2004 e 2005. Carneiro afirma que há, de fato,
Último pregão de 2003 na Bolsa paulista: falsa sensação de estabilidade
uma chance de a economia crescer 3,5% ou mesmo 4,0% em 2004, mas adverte novamente que não há a menor possibilidade de manter uma rota de crescimento sustentado com a política em vigor. Para que o crescimento aconteça, será preciso que a conjuntura internacional não sofra qualquer solavanco – como uma elevação dos juros nos Estados
Unidos, por exemplo. Ou seja, será preciso que se interrompa a tendência de crises cíclicas, verificadas nos anos 90 e no início da nova década, provocadas pela especulação financeira mundial. Como as principais economias do globo indicam taxas positivas de crescimento, isso poderá ajudar o país. A expectativa, no entanto, é
de que o aquecimento da economia estadunidense, aliada à desvalorização do dólar no mercado internacional (com conseqüente encarecimento das importações estadunidenses), obrigue o Banco Central dos EUA, em algum momento neste ano, a aumentar os juros para desaquecer a economia e impedir alta de preços. Isso traria complicações para o Brasil, já que haveria uma tendência de corrida de investidores em direção aos títulos do Tesouro dos EUA e conseqüente fuga de dólares no país. O Brasil passaria, assim, a enfrentar dificuldades para honrar seus compromissos internacionais. Neste ano, segundo projeções do Banco Central, apenas as despesas com juros e o pagamento de prestações (amortizações) da dívida externa brasileira deverão exigir um desembolso de 55,6 bilhões de dólares, num salto de 27% em relação aos 43,7 bilhões de dólares estimados para 2003. Se a fuga de dólares de fato acontecer, o governo terá que frear a economia novamente, para economizar dólares (via redução das importações), puxando os juros para cima (para atrair investidores estrangeiros e seus dólares), encolhendo a oferta de crédito e impondo novos cortes em gastos e investimentos públicos. O controle de capitais externos, como propõe Carneiro, poderia desatar esse nó e evitar que solavancos externos continuem a derrubar a economia brasileira. (LJ)
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De 8 a 14 de janeiro de 2004
NACIONAL MINISTÉRIO
Com reforma, governo avança para direita Roosevelt Pinheiro/ABR
Como recompensa pelo apoio à aprovação das reformas da Previdência e tributária, o PMDB recebe duas pastas Luís Brasilino e Tatiana Merlino da Redação
A
troca de alguns ministros de Estado, prevista para ser concluída no máximo até dia 9, abre as portas do primeiro escalão do governo do Partido dos Trabalhadores (PT) ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). O presidente nacional do PT, José Genoíno, já se declarou pronto para ceder cargos aos peemedebistas – o que aproxima ainda mais o atual governo da gestão anterior. O principal rival de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2002, José Serra – do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) –, compôs sua coligação exatamente com o PMDB. “No entanto, a aliança seria com apenas uma parte dos direitistas porque o partido é muito fragmentado, com baixo comprometimento ideológico e de projeto”, analisa o deputado estadual frei Sérgio Görgen (PT/RS). Para ele, apesar de abrigar “algumas pessoas sérias”, a história peemedebista é “marcada pelo fisiologismo e pelo adesismo”. A cúpula petista retribui o apoio do PMDB na aprovação, em 2003, das reformas da Previdência e tributária. Segundo José Domingues Godoi, vice-presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), as mudanças no primeiro escalão são simplesmente uma acomodação dos arranjos feitos no passado. Ao cobrar sua fatia do bolo, os peemedebistas pedem no mínimo dois ministérios. Até o fechamento desta edição, os mais cotados
Presidente Lula discursa, ao lado do vice, José Alencar, durante reunião de avaliação com ministros
para perder seus cargos eram os ministros Miro Teixeira (Comunicações) e Olívio Dutra (Cidades). O primeiro porque seu partido, o Partido Democrático Trabalhista (PDT), rompeu com o governo. Dutra, petista, cederia seu lugar por ser amigo pessoal de Lula. Frei Sérgio acredita, porém, que as mudanças de nome pouco importam: “Minha expectativa é com relação às transformações de rumo do governo”. Para ele, interessante é mudar a política econômica, gerar empregos, construir casas populares, fazer a reforma agrária, dizer não à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e articular os paí-
ses do hemisfério sul; não importa quem esteja no poder. Domingues concorda: “Os rumos do governo não serão alterados. Basta ver o Plano Plurianual 2003-2007, que impede mudanças estruturais”. Porém, mesmo diante do baixo desempenho do governo Lula, Domingues está esperançoso: “As pessoas vão se mexer. Não dá para enganar todo mundo o tempo todo”, diz, prevendo o crescimento das mobilizações”.
HABITAÇÃO AMEAÇADA Representantes de movimentos de luta por moradia preocupam-se com a possível entrega da pasta do
Ministério das Cidades ao PMDB. Para eles, o favorecimento da lógica partidária prejudica o trabalho de pessoas capazes de construir uma política nacional urbana. “Temos que ir para o enfrentamento”, afirma Luis Gonzaga da Silva, o Gegê, coordenador nacional da Central de Movimentos Populares (CMP), ao comentar a possível saída de Dutra. Gegê aprova a reforma ministerial, mas acredita que setores estratégicos como o Ministério das Cidades não podem sofrer modificações ou haverá retrocesso nas áreas de habitação, saneamento, esgoto e transportes. “Desse jeito a direita continua
avançando. Olívio é uma pessoa popular, tem trajetória militante”, diz o coordenador da CMP. Gegê defende a renúncia dos 70 representantes do Conselho Nacional das Cidades e convoca os movimentos sociais a acampar na frente do Ministério das Cidades em protesto contra a mudança. Classificando a postura do governo como autoritária, ele acha a reforma anunciada uma “rasteira” nos movimentos sociais, que considera agentes importantes na construção do Ministério. “Sequer fomos consultados sobre o assunto”, reclama. Renato Cymbalista, pesquisador do Instituto Pólis, também avalia a entrada do PMDB na pasta de Cidades como uma “tragédia”, um grande risco para os movimentos sociais. “Seria como nadar e morrer na praia. Esse ministério é fruto de vinte anos de lutas pela reforma urbana”, diz, lembrando que o Ministério das Cidades é composto por pessoas de esquerda. Gabriel Priolli, diretor da TV PUC, lamenta que as decisões sobre a reforma sejam políticas e não técnicas. Sobre a provável saída do ministro Teixeira lamenta mudanças em um ministério que, em um ano, “fez o que governos anteriores não realizaram em dez”. Revelando ter uma ótima impressão da equipe montada no Ministério das Comunicações, Priolli chama atenção para medidas positivas como a publicação, na internet, de todas as concessões de rádio e televisão do Brasil. “Preferia que não mexessem na pasta, mas torço para as mudanças em relação ao que vinha sendo feito sejam mínimas”, diz.
FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Brasileiros revivem esperança na Índia da Redação
OUTRO MUNDO POSSÍVEL Essa é a quarta edição do encontro que surgiu, em 2001, em contraposição ao Fórum Econômico de Davos, reunião anual realizada na Suíça. Financiado por empresas, o Fórum Econômico é o espaço no qual transnacionais e chefes de Estado dos países ricos e emergentes formulam suas estratégias econômicas. Pela primeira vez, os movimentos sociais e organizações não-governamentais (ONGs) realizam o
Fórum Social Mundial Índia - 2004 Temas: Terra, água, soberania alimentar; militarização; globalização; mídia; casteísmo; mundo do trabalho Estimativa de público: 75 mil participantes, sendo 20 mil estrangeiros Quando: de 16 a 21 de janeiro Onde: Mombai, Índia Com mais oe 13 milhões de habitantes, é a capital financeira da Índia e já foi palco de diversos conflitos sociais, protagonizados pelos operários da indústria têxtil e ferroviários. A escolha para o FSM se dá, entre outros motivos, por ser possível estabelecer ali um desafio à agenda neoliberal e à ideologia de extrema direita.
Fórum Social fora do Brasil. As três primeiras edições do evento aconteceram em Porto Alegre (RS), com crescente ampliação de participação da sociedade civil. Em 2001, o Fórum Social Mundial reuniu 20 mil pessoas de 117 países. No ano seguinte, foram cerca de 50 mil participantes. Em 2003, 100 mil pessoas de 123 países participaram das atividades. Mombai foi escolhida como sede do encontro de 2004 numa tentativa de aproximar o movimento contrário à globalização e à militarização do continente asiático. Um dos frutos dessa iniciativa é a inclusão de temas mais próximos aos movimentos sociais locais na pauta de discussão, co-
Renato Stockler
Os movimentos sociais brasileiros preparam-se para participar do Fórum Social Mundial, que acontece em Mombai. A capital financeira da Índia vai se tornar a capital da luta por um outro mundo possível durante os dias 16 e 21. Sede do Fórum Social Mundial 2004, a cidade recebe cerca de 75 mil ativistas, que se reúnem para trocar experiências, articular ações e formular propostas alternativas de superação do “neoliberalismo e contra o domínio do mundo pelo capital”, como expressa a carta de princípios do evento. Os movimentos sociais brasileiros prometem marcar presença. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) vai enviar 10 delegados para a Índia. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e ONGs também terão representantes no encontro. Além disso, estão convidados para as atividades o sociólogo Francisco de Oliveira e a economista Maria da Conceição Tavares. Ativistas internacionais, como a canadense Naomi Klein, o boliviano Evo Morales e a indígena equatoriana Blanca Chanco também participam.
Fórum de Mombai, na Índia, reúne pela quarta vez consecutiva representantes de centenas de organizações e movimentos sociais em busca de propostas alternativas à globalização econômica injusta
mo a análise de uma sociedade dividida por castas.
TENSÕES ÉTNICAS A Índia recebe o Fórum em um cenário político dominado por setores conservadores e da direita. Desde 1996, o país é governado por um partido adepto das políticas neoliberais. Privatizações, desemprego, militarização e sectarismo religioso estão na ordem do dia dos indianos. Mombai, capital financeira da Índia, é também sede do partido ultranacionalista e religioso Shiv Sena. O país vive sob constante tensão por causa do conflito entre a maioria hindu (75% da população) e a minoria islâmica (12%). Desde
1947, quando a Índia conquistou a independência, a região da Caxemira é disputada pelo Paquistão, de maioria islâmica. O governo indiano é acusado de ser complacente com o regime de castas, que condena milhões de pessoas a viverem sem direitos, excluídas do acesso à terra, educação, saúde e emprego digno, submetidas a um sistema de semi-escravidão. A ofensiva das classes dominantes também encontra a resistência de um amplo movimento social. Na Índia, são internacionalmente conhecidas as lutas de entidades de direitos humanos contra a discriminação racial, o movimento dos camponeses contra os transgênicos e contra a construção de barragens
e a luta dos trabalhadores por moradia e direitos trabalhistas. Mesmo sem contar com o apoio do Estado, a organização do Fórum garantiu sua realização e tentará unificar as lutas sociais no ano em que os indianos vão eleger o 14º parlamento. O país possui uma esquerda fragmentada e dividida em tendências partidárias que não conseguem se opor ao domínio do partido religioso hindu BJP (Bharatiya Janata). Mas o comitê responsável pela coordenação do evento parece ter superado esse desafio e conseguiu reunir 200 entidades, como sindicatos, movimentos sociais e ONGs na tarefa de organizar o encontro.(com Agência Carta Maior e Planeta Porto Alegre).
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NACIONAL EDUCAÇÃO
Estudantes preparam ano de mobilizações Maíra Kubík Mano da Redação
Agência Brasil
Após a euforia do primeiro ano de governo Lula, UNE quer estudantes na rua por mais verbas para a universidade pública
P
ara os estudantes brasileiros, o ano de 2004 será de mobilizações em todo o país. Quem promete isso é Rafael Pops, vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), entidade que, reconhece, caminha na corda bamba da luta estudantil: de um lado, tenta superar uma crise de credibilidade e, de outro, procura se posicionar diante da política educacional do governo Lula. Realista, Pops prevê: “Se não lutarmos com mobilização por mais verbas na universidade pública, será tarde”. Brasil de Fato – Qual sua avaliação da situação do ensino superior no primeiro ano do governo Luís Inácio Lula da Silva? Rafael Pops – A universidade pública brasileira passou por oito anos de perdas consecutivas. A política educacional entrou na lógica de desmonte do Estado, de perda permanente de recursos, de funcionários e de professores. Os orçamentos de algumas universidades acabam em abril ou no máximo em agosto. No primeiro ano de governo Lula não foi feito qualquer investimento real para superar a crise. Pelo contrário, o orçamento de 2004, inferior ao de 2003, é preocupante. BF – Por que a crise se tornou mais aguda? Pops – Os avanços que ocorreram em 2003, como a contratação de funcionários e professores em número superior ao de todo o governo Fernando Henrique Cardoso, não foram suficientes. O buraco deixado pela reforma da Previdência é tão grande que houve apenas uma recomposição da perda que o próprio governo criou. Há um entrave quando se trata de política financeira. Houve diálogo mas as pautas não foram encaminhadas. No varejo, aconteceram sinalizações positivas, mas no centro, no que diz respeito ao financiamento necessário ao ensino superior público, não foram registradas mudanças e, sim, perdas.
Protesto contra o aumento das mensalidades nas universidades particulares, em Brasília: projeto de lei que regulamentava as mensalidades parou na Casa Civil
Quem é? Eleito vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 2003, o goiano Rafael Pops conclui, neste ano, o curso de Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB). Aos 25 anos, Pops integrou anteriormente o centro acadêmico de Ciências Políticas da UnB e centro acadêmico da universidade. te para nós em 2003. Mas na nossa avaliação esse projeto de reforma não tem hoje uma correlação de forças favoráveis. No primeiro ano do Lula vimos o plano de recomposição das perdas do ensino superior ser abandonado. Para nós, o debate de reforma universitária tem de ser congelado até acontecer essa recomposição. Para isso, precisamos ampliar as mobilizações. O movimento estudantil não pode esperar o tempo do governo para não perder a vez. BF – Isso significa que o mo-
No primeiro ano de governo Lula não foi feito qualquer investimento real. O orçamento de 2004 é inferior ao de 2003 vimento estudantil não está pressionando suficientemente o governo? Pops – Uma grande parcela da direção do movimento estudantil ainda vive a euforia da eleição do Lula e espera o tempo do governo. Se não mudarmos esse quadro imediatamente, se não lutarmos com mobilização por mais verbas na universidade pública, será tarde. A UNE não está Greg Salibian/Folha Imagem
BF – E no ensino privado? Pops – Na universidade privada percebemos boa vontade do governo em dialogar mas não houve processo de mobilização. A abertura indiscriminada de cursos que existia durante o governo FHC diminuiu apenas um terço. O projeto de lei que regulamentava melhor as mensalidades parou na Casa Civil. Portanto, há setores que avançam nas pautas defendidas e outros que param. Ou seja, há uma situação contraditória em todo governo. BF – O grande problema da universidade pública é financiamento? Qual a posição da UNE sobre a cobrança de mensalidades? Pops – É preciso diferenciar duas coisas: uma é a cobrança através da alíquota do Imposto de Renda (IR) e outra é a cobrança de mensalidades. As duas são absurdas mas no caso da mensalidade, se não pagar, é impedido de estudar. No caso da alíquota, o estudante pode ser processado por sonegação fiscal mas consegue tirar o diploma. O governo parece optar pela restituição do IR, apesar de o Banco Mundial pressionar pela cobrança de mensalidades. BF – Essas mudanças fazem parte do projeto de reforma universitária que o ministro Cristovam Buarque pretende realizar? Pops – Sim. O debate de reforma universitária foi muito importan-
fazendo o enfrentamento direto do governo. Ficamos aquém, por exemplo, da mobilização social na discussão do orçamento para 2004. BF – Na sua opinião, a UNE é representativa o bastante para articular uma grande mobilização de estudantes? Pops – Eu acho que a UNE tem um papel fundamental no movimento estudantil. É uma organização que construiu mobilizações históricas e na década de 90 participou de movimentações muito importantes como o “Fora Collor” e o desgaste do ex-ministro Paulo Renato de Souza. Houve um grande acerto na construção política da greve das universidades federais em 2001 e é esse tipo de mobilização que queremos realizar agora. Nós sabemos das nossas divergências internas do movimento estudantil, mas precisamos ter claro que só com os estudantes nas ruas é que vamos disputar os rumos desse governo. Em alguns casos, como na construção do projeto de avaliação institucional que substituiria o Provão, uma parte do movimento recuou mais que o próprio governo. Isso é inadmissível. Como todos os mo-
Estudantes prestam vestibular para a Universidade de São Paulo (USP)
vimentos sociais, estamos com um problema de dubiedade. Precisamos disputar logo esse governo senão chegamos ao absurdo de permitir a revitalização de um projeto como o Rondon, elaborado pela ditadura militar. Hoje o cenário de disputa dos rumos está bem mais turvo do que imaginávamos, mas ainda existem brechas. Para mudar é preciso mobilização social, dar mais caldo político ao cenário nacional.
frentar o ensino superior pago. Mas nós queremos. Temos claro que o dono da universidade paga é nosso inimigo, e enfrentá-lo é fortalecer os estudantes. No entanto, essa luta esbarra no autoritarismo das universidades pagas, que é muito grande e dificulta a mobilização. Em 2004, queremos aprovar um projeto de lei que regulamente a atividade estudantil mais ou menos no mesmo nível da atividade sindical. Hoje o MEC aprova estatutos
O MEC aprova estatutos inconstitucionais de universidades particulares, alguns proibindo até a distribuição de panfletos BF – Mas existe um senso comum de que a UNE não é representativa. Pops – Esse senso comum diminuiu. O movimento estudantil tem de perceber que a UNE é uma entidade histórica que não pertence a um grupo político mas aos estudantes. O problema não está na organização nem na troca de direção, mas na prática política. Eu não nego a crise de representatividade da UNE, que pode ser superada a partir do momento em que demonstramos que a entidade não tem dono. Precisamos mostrar que a UNE quer participar da luta política de todos os estudantes. BF – O movimento estudantil está tradicionalmente organizado nas universidades públicas. Como participar da luta política das escolas particulares? Pops – O governo não quer en-
inconstitucionais de universidades particulares, alguns deles proibindo até a distribuição de panfletos. BF – Qual é a avaliação da UNE sobre a mudança no sistema de avaliação institucional? Pops – Esse é um processo de transição, como o programa inteiro do governo. Infelizmente esse não é um governo de ruptura. Eu tenho críticas ao Índice de Desenvolvimento do Ensino Superior (Ides) mas alguns pontos são muito positivos. O sistema tem, por exemplo, um viés duro para as universidades particulares, como o protocolo de ajuste de conduta (assinado pelos estudantes, pela direção da universidade e pelo MEC). De forma geral, o Ides é importante porque busca a responsabilidade social das instituições. BF – Qual é a pauta do movimento estudantil para 2004? Pops – Temos de realizar uma grande movimentação em defesa da universidade pública. Precisamos pedir mais verbas e maior infra-estrutura. Nas universidades pagas o enfrentamento deve ser muito centrado na questão das mensalidades. Estamos chamando esse movimento de campanha de boicote às mensalidades, que tiveram aumentos absurdos esse ano. Para isso, temos que ampliar a mobilização dentro de cada universidade, tanto nas públicas como nas pagas. Agora, em geral, os movimentos sociais têm que radicalizar no movimento reivindicatório. Temos de pressionar o governo e defender as categorias. Precisamos de um ascenso das lutas sociais para mudar os rumos da política econômica. Superado o primeiro ano do governo Lula, o tempo de esperar e da euforia passou.
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NACIONAL SAÚDE
Vontade política pode otimizar recursos Luís Brasilino da Redação
O
orçamento do Ministério da Saúde foi o maior entre todos os ministérios em 2003 (R$ 24,6 bilhões) e também o que teve maior índice de aplicação (foram utilizadas 90% das verbas destinadas à Saúde). No entanto, o acesso da população brasileira aos serviços ainda está longe de ser universalizado. Os jornais noticiam todos os dias: sobram filas; faltam medicamentos. Para 2004, porém, esse quadro pode apresentar uma leve recuperação, segundo a médica e deputada federal (PT-DF) Maria José da Conceição Maninha. A Saúde deve receber R$ 33 bilhões, um aumento de aproximadamente 35% em relação ao ano passado. Gastão Wagner, secretário-executivo do Ministério, reclamou das políticas econômicas prejudiciais ao desenvolvimento, durante a 12ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em dezembro de 2003 em Brasília. Para se ter uma idéia do arrocho do setor, segundo a Lei de Diretrizes Orçamentárias, em 1995, os gastos com saúde equivaliam a 24,3% do total da seguridade social. Neste ano, esse número não passará dos 15,6%. Uma das propostas da Conferência para aumentar o orçamento foi a vinculação dos recursos da Saúde a 10% das receitas correntes da União. O Ministério precisa, agora, se desdobrar para convencer o governo a encampar a idéia. Se implantada este ano, a medida representaria uma elevação de mais de R$ 10 bilhões no orçamento da pasta. “O dinheiro destinado para
Alan Marques/Folha Imagem
Especialistas apontam medidas para melhorar a aplicação das escassas verbas destinadas ao atendimento público nifica, portanto, contribuir com a prevenção – outra providência essencial quando se quer não apenas economizar dinheiro, mas beneficiar a saúde pública. Segundo Maninha, em 2003 os avanços da Saúde se deveram a investimentos em prevenção e não em tratamento de doenças. Só que esse tipo de ação não aparece tanto na mídia quanto a construção de grandes hospitais ou o investimento em pesquisas de remédios para doenças complexas.
LONGO PRAZO
Mães com seus filhos esperam em fila de atendimento do SUS, em Brasília (DF)
a Saúde tem que ir para a Saúde”, afirma Maninha.
SOLUÇÕES À MÃO Segundo o médico sanitarista Gilson Carvalho, além de o orçamento estar abaixo das necessidades, os recursos disponíveis são mal empregados. Como uma nova discussão sobre mais verbas só ocorrerá no final do ano, quando se definirá o orçamento de 2005, é hora de se pensar em alternativas para driblar a falta de dinheiro. Uma delas é a quebra de patentes de medicamentos – o que exigiria do governo vontade política para bater de frente com os
laboratórios transnacionais. Nesse sentido, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva adotou uma medida importante. Criou a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), cuja função será impor limites aos preços de remédios avaliados como muito caros. No lançamento da Câmara, em julho do ano passado, o ministro da Saúde, Humberto Costa, admitiu a necessidade da presença do Estado para regular o mercado e impedir abusos. Assim, disse ele, seria possível evitar a formação de oligopólios e assegurar a oferta de medicamentos às pessoas. Maninha chama atenção para
outra medida capaz de economizar o dinheiro da União: a melhoria do gerenciamento por meio do repasse de recursos aos municípios. Segundo ela, se tiverem mais recursos as prefeituras poderão oferecer um serviço com mais qualidade, evitando despesas com transporte de moradores que saem de suas cidades em busca de atendimento em outras regiões. Além disso, com hospitais e postos de saúde mais perto de casa, as pessoas começariam a se tratar no início da doença – o que aumentaria as chances de cura e pouparia despesas com exames, internações etc. Descentralizar recursos sig-
Tatiana Merlino da Redação O aposentado Adão Dias Mota é mais um brasileiro que sente na pele as conseqüências da ineficácia do sistema de saúde do país. Morador do bairro do Itaim Paulista, zona leste de São Paulo, ele precisa fazer uma cirurgia de hérnia no abdome e está fazendo exames pré-operatórios no hospital da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, onde espera fazer a cirurgia até o início de fevereiro. “Depois que fiz exame de sangue no Hospital Santa Marcelina, na região onde moro, me pediram para procurar um cardiologista, um clínico e um cirurgião em outro hospital, mas não disseram qual”, conta. Dia 20 do mês passado começou a via sacra de seu Adão, como é conhecido o ex-tapeceiro de 73 anos. Ele saiu de casa por volta das 5h para pegar a fila do médico anestesista, na Santa Casa. Foi atendido às 11h para uma consulta marcada com um mês de antecedência. Para passar pelo cirurgião, terá que esperar mais um mês, apesar da urgência em fazer a operação. “Fazer o quê?”, lamenta.
Fotos: Renato Stockler
Na fila, com esperança e muita paciência
O aposentado Adão Dias, na fila da Santa Casa de Misericórdia para uma cirurgia
mas o posto de saúde próximo à sua casa fornece os medicamentos necessários – “se não, não sei como ia ser”. Apesar das dificuldades, é otimista em relação ao futuro. Ele acredita que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda vai promover mudanças na área de Saúde pois, por enquanto, “estava arrumando a
casa”. Ele acha que o presidente precisa de um “empurrãozinho” mas que, em 2004, Lula vai agir.
MESES DE ESPERA A desempregada Iracema Leal também esperou muitas horas para passar a filha Bruna, de cinco meses, no pediatra. Ela conta que o
atendimento da Santa Casa é muito bom, “os médicos são atenciosos”, mas reclama da demora e dificuldade para marcar exames e passar em especialistas. “São meses de espera”. Bruna nasceu prematura e precisa de atendimento de um neurologista e de um fonoaudiólogo. Em duas sextas-feiras seguidas, Iracema chegou às 5h da manhã para pegar uma senha, necessária para marcar exames para sua filha, mas não teve sucesso. A fila estava enorme e as senhas já haviam acabado. Iracema tem 33 anos e está desempregada há um ano. Moradora do bairro de Cachoeirinha, zona sul paulista, ela conta que não há atendimento para Bruna no posto de saúde próximo à sua casa e por isso tem que pegar duas conduções para ir até o hospital da Santa Casa de Misericórdia. Apesar da necessidade do bebê, Iracema não sabe quando poderá voltar para tentar pegar a senha, pois não é sempre que tem dinheiro para a condução.
LULA VAI AGIR Apesar da demora, a espera foi de pouco tempo, se comparada a experiências anteriores. Quando precisou fazer uma cirurgia de próstata, alguns anos atrás, a espera seria de três meses a seis meses, no Hospital Brigadeiro. “Imagine só, se eu tivesse que esperar esse tempo todo, o tumor iria crescer ainda mais. Felizmente consegui uma vaga no Instituto Brasileiro de Controle do Câncer”, diz ele. Seu Adão gostaria muito de ter um plano de saúde, mas sua aposentadoria é de pouco mais que um salário mínimo: “Se eu tivesse dinheiro, não seria jogado de um hospital para outro desse jeito”. A esposa dele tem depressão nervosa,
Iracema Leal, desempregada, encontra muita dificuldade em marcar exames para sua filha Bruna, de cinco meses
Em São Paulo (SP), por exemplo, o governo do Estado vai investir R$160 milhões, até 2006, na finalização do Instituto da Mulher, uma obra parada desde 1992. Quando ficar pronto, o centro vai ganhar um novo nome – Instituto Dr. Arnaldo – e não atenderá só mulheres, mas também vai receber pacientes de transplantes e de doenças como câncer e Aids, todos casos de diagnóstico e tratamento onerosos que, por isso, só podem ser oferecidos a uma parcela pequena da população. Medidas preventivas como campanhas educativas são muito mais baratas e alcançam um número maior de pessoas. O governo federal faz campanhas preventivas contra a dengue e a doença de Chagas. Mas outras doenças fatais e complexas podem ser evitadas com informação, como a Aids, o câncer e até acidentes de trânsito. A prevenção também pode ser feita por meio de políticas sociais transversais: reforma agrária, saneamento básico, o programa Fome Zero etc. Melhorar a qualidade de vida das pessoas é uma forma de torná-las mais saudáveis.
Planos de saúde: médicos e pacientes sofrem Quanto mais a saúde pública agoniza, mais as empresas operadoras de planos de saúde se fortalecem. Aproximadamente 34 milhões de pessoas – quase 20% do total da população – são atendidas por esse sistema de medicina suplementar. Porém, a lista de males desse mercado privado da Saúde é quase tão extensa quanto a do setor público. Profissionais e pacientes sofrem diariamente os efeitos da mercantilização da medicina. “Os conflitos com as seguradoras afetam a relação médico-paciente, com prejuízos para ambos”, diz Clóvis Constantino, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp). Muitas vezes, a capacidade do profissional fica limitada por conta das restrições impostas pelas empresas que fazem de tudo para evitar onerar o custo/paciente: não autorizam determinados procedimentos e materiais solicitados em cirurgias; chegam a “castigar” com o descredenciamento os médicos que pedem exames muito caros; e até substituem um exame solicitado por outro de menor valor, sem consultar o médico. Há oito anos os médicos que trabalham com empresas de medicina de grupo não têm reajuste de tabela – mesmo período em que as mensalidades para os usuários subiram 248%. Por isso, o Conselho Federal de Medicina, a Associação Médica Brasileira e mais seis entidades encaminharam ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva uma carta aberta com diversas reivindicações, como a liberdade para os usuários escolherem seus médicos; a aceitação, por parte dos planos, da padronização dos procedimentos médicos; reajustes de tabela simultâneos aos reajustes que a seguradora impuser aos clientes, entre outros. (LB)
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De 8 a 14 de janeiro de 2004
NACIONAL POVOS INDÍGENAS
Retomadas são recado para presidente Claudia Jardim da Redação
O
ano começou com uma dívida histórica a ser paga pelo governo Lula: a demarcação das terras indígenas. Cansados de esperar, desde o dia 20 de dezembro cerca de 3 mil índios das etnias Guarani e Kaiowá decidiram reocupar cinco fazendas em Amambai e Japorã, Mato Grosso do Sul, região próxima à fronteira com o Paraguai. Para eles, essas são terras yvy katu (terra boa, em guarani). “Esse é um recado para o presidente, que de uma vez por todas precisa entender que existem questões inadiáveis. Não há como um governo popular fazer vistas grossas e postergar o problema da terra indígena”, avalia Egon Heck, do Conselho Indígenista Missionário (Cimi), para quem a situação de concentração de terra índigena é “vergonhosa”. O Mato Grosso do Sul é o Estado onde há menor índice de distribuição de terras por índio em todo o país, (aproximadamente 3 hectares). No entanto, é o Estado com a segunda maior população índigena (31 mil), perdendo apenas para o Amazonas (65 mil índios), de acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai).
MUITOS SUICÍDIOS “Essa situação tem sido adiada de maneira criminosa e o resultado tem sido um grande número de suicídios”, ressalta Heck. De acordo com dados do Cimi, de 1981 até março de 2003 foram registrados 480 suicídios de índios em todo o país, período em que foram expandidas a criação de gado e as monoculturas de erva-mate e, posteriormente, de soja. Este último cultivo acelerou o processo de expulsão dos povos índigenas em regiões reconhecidas pela Funai como áreas de tradição índigena. O antropólogo Claudio Romero explica que a principal causa das mortes é o confinamento dessas populações em um pequeno território. “Não há espaço suficiente para que esses povos desenvolvam suas atividades agrícolas e culturais. Esses grupos têm crescido, mas não
Lalo de Almeida/Folha Imagem
Guarani e Kaiowá reocupam fazendas em yvy katu (terras boas) e denunciam a situação crítica em Mato Grosso do Sul
Arrozeiros invadem sede da Funai
Guarani e Kaiowá retomam suas terras, antes invadidas por fazendeiros, em Japorã (MS)
DEMARCAÇÕES NOS 4 ÚLTIMOS GOVERNOS TIs declaradas Presidente (período)
Nº
Fernando Collor (mar.90/ dez.92) Itamar Franco (out.92/ dez.94) Fernando Henrique Cardoso (jan.95/ dez.2002) Luiz Inácio Lula da Silva (jan.03/nov.2003)
Extensão (hectares)
Nº
Extensão (hectares)
58
25.794.263
112
26.405.219
39
7.241.711
16
5.432.437
118
33.900.910
145
41.043.606
2
37.442
24
1.170.025
297
74.051.287
TOTAL Fonte: Instituto Sócio Ambiental
TIs homologadas
Um grupo de posseiros armados ligados a produtores de arroz de Roraima invadiu e depredou, às 3h da madrugada do dia 6, uma escola técnica e um hospital que atendem indígenas, localizados na antiga missão Surumu, pertencente à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Os invasores tomaram três reféns. O padre Ronildo França e o irmão João Carlos Martinez, ambos da Diocese de Roraima e missionários do Cimi, além do padre Cesar Avellaneda, foram levados para um local chamado de “maloca do contão”, 35 km distante de onde foram capturados. No mesmo dia, o mesmo grupo invadiu a sede da Funai no Estado, além de fechar três estradas de acesso à capital Boa Vista. As ações dos posseiros foram motivadas pelo anúncio, feito há duas semanas pelo ministro Márcio Thomaz Bastos (Justiça), de que a homologação da Raposa Serra do Sol seria concluída este mês. Segundo representantes do Conselho Indígena de Roraima (CIR), o agricultor Paulo César Quartiero, um dos maiores produtores de arroz do Estado, teria comandado pessoalmente a invasão da regional da Funai. Até o fechamento desta edição, o conflito ainda não havia sido resolvido. (CJ com agência Carta Maior)
TI – Terra Indígena
encontram espaço para sobreviver com dignidade nas terras da qual foram expulsos”, avalia o antropólogo. Os índios reivindicam a ampliação da reserva de Porto Lindo, que tem 1.648 hectares, demarcados em 1928 pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio. Antropólogos já reconhecem mais 7.800 hectares como terra de ocupação indígena tradicional. A assessoria da Funai
informou que está sendo finalizado um relatório antropológico da área. Caso seja aceito, o resumo do relatório será publicado no Diário Oficial da União. A partir de então, os fazendeiros terão 90 dias para contestar. Se os pedidos não forem aceitos, as terras estarão prontas para a demarcação. A conclusão do processo de homologação ainda pode demorar anos. O coordenador regional da Fu-
nai, Odenir Pinto de Oliveira, afirma que a fundação tem essa proposta de ampliação há muito tempo, mas que os índios anteciparam a ação: “Isso sinaliza uma situação insustentável. Estamos do lado dos índios e vamos cuidar para solucionar o conflito dentro dos marcos legais”. O Cimi entende que a criação de uma Comissão Interministerial poderia contribuir para solucio-
nar o problema. “Os índios estão dando o recado e já se mostraram dispostos a morrer, em vez de continuar a viver dessa maneira. Esse é um processo contínuo; hoje são cinco fazendas, amanhã podem ser dez”, alerta Heck. Em uma tentativa de conciliação, a Justiça Federal marcou para dia 8 uma audiência em Dourados (MS), entre fazendeiros, índios, Ministério Público Federal e Funai.
TRABALHO
Centrais sindicais invertem os papéis Luiz Antonio Magalhães de São Paulo (SP) No ano em que o ex-operário e ex-líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a administração do país, as principais centrais sindicais brasileiras passaram por uma inversão de papéis. Por um lado, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), que Lula ajudou a fundar, abrandou o seu histórico oposicionismo e alinhou-se, em muitas situações, ao novo governo. De outro lado, a Força Sindical radicalizou o discurso e tornou-se a voz mais crítica da gestão petista no mundo sindical — uma postura bem diversa daquela adotada frente à administração tucana de Fernando Henrique Cardoso. “Do ponto de vista dos trabalhadores, a chegada de um ex-operário à Presidência não gerou nenhuma modificação”, diz Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, presidente da Força. “Ao contrário, a situação piorou para os trabalhadores em 2003. A renda caiu e o desemprego aumentou, passou dos 20%”, completa o sindicalista. Paulinho critica duramente a política econômica, que julga responsável pelo alto desemprego e pela baixa renda, e vê poucos avanços no governo Lula. Segundo ele, a negociação da reforma sindi-
da medida também porque ela é, na prática, um grande incentivo para a sindicalização e para o pagamento em dia das contribuições dos filiados, uma vez que as taxas são menores para quem é sindicalizado.
CRÍTICAS BRANDAS cal é um dos pontos positivos. O presidente da Força, central surgida durante o governo Fernando Collor de Mello, que hoje representa cerca de 16 milhões de trabalhadores em 1800 sindicatos, explica que as conversas no Fórum Nacional do Trabalho evoluíram e já existe um consenso entre as entidades ali reunidas para que o projeto de reforma seja levado ao presidente da República no começo de 2004. “Essa reforma sai este ano. Já a trabalhista, vamos negociar em 2005”, afirma o líder sindical. Outro ponto considerado positivo por Paulinho foi a medida que possibilitou aos trabalhadores tomar empréstimos nos bancos e pagá-los por meio de desconto na folha de pagamento. “Acho que foi a melhor medida deste governo”, afirma o presidente da Força, explicando que os juros cobrados nesse tipo de operação são muito mais baixos do que os de mercado. Os juros são de fato bem menores, mas Paulinho se esquece de mencionar o fato de que as centrais gostaram
O presidente da CUT, Luiz Marinho, é bem mais complacente do que seu colega Paulinho quando faz o balanço do primeiro ano do governo Lula. Segundo nota oficial, a entidade “reconhece a habilidade com que o governo Lula
conseguiu enfrentar as dificuldades herdadas. Reconhece a importância para o Brasil e para os trabalhadores da vitória sobre as ameaças de desestabilização da economia e as iniciativas do governo no sentido de plantar as sementes para uma profunda mudança na economia e na sociedade brasileira.” Marinho também faz críticas, mas o tom é ameno: “a CUT reafirma a crítica sistemática que sustentou durante todo o ano em relação à falta de atenção do governo para com a necessidade de políticas
Reforma trabalhista deve ficar para 2005 O governo ainda não bateu o martelo, mas a reforma trabalhista que o presidente Lula considera uma das prioridades de sua gestão deverá ficar mesmo para 2005. O Planalto avalia que as modificações na legislação trabalhista são polêmicas e, da mesma maneira como ocorreu na tramitação da reforma previdenciária, podem gerar desgaste para o governo. Como 2004 é ano eleitoral, a estratégia do Executivo deverá ser
a de cozinhar em banho-maria a reforma trabalhista, dando seqüência às discussões já iniciadas no Fórum Nacional do Trabalho, no âmbito do Ministério do Trabalho, e no grupo temático do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. De acordo com o presidente da Força Sindical, Paulo Pereira da Silva, já foi fechado um acordo para que a reforma trabalhista fique realmente para o terceiro ano da gestão Lula.
voltadas para a geração de emprego e renda, em particular no que diz respeito à recuperação do poder de compra do salário mínimo, da correção da tabela do imposto de renda, da recuperação do serviço público, inclusive dos salários do funcionalismo e outras medidas capazes de promover uma melhor distribuição da renda nacional”. É difícil imaginar uma análise desse tipo se a situação econômica fosse a mesma, mas sob outra administração. Na verdade, a postura da CUT, entidade que representa 22,5 milhões de trabalhadores em cerca de 3.500 sindicatos, realmente mudou em 2003. O marco dessa mudança pode ter sido o comportamento da central frente à reforma da Previdência: a postura branda adotada, bem diferente do que se viu em anos passados, causou desgaste junto aos trabalhadores do setor público, a ponto de diversas lideranças começarem a trabalhar pela fundação de uma nova central que representasse o funcionalismo. Luiz Marinho nega que a CUT tenha feito “corpo mole” e diz que tentou negociar melhorias na proposta. O fato é que o presidente Lula, à diferença de Fernando Henrique Cardoso, não enfrentou a menor oposição da entidade para realizar a reforma da Previdência.
Ano 1 • número 45 • De 8 a 14 de janeiro de 2004 – 9
SEGUNDO CADERNO MÉXICO
Comemoração em 1º de janeiro lembrou uma década do movimento de libertação de indígenas mexicanos e ação do EZLN Rogéria Araújo da Cidade do México (México)
O
dia 1º de janeiro de 1994 foi uma data decisiva para os rumos que o México tomaria nos anos seguintes. De um lado, setores oficiais comemoravam a assinatura do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês), que hoje apresenta sérios prejuízos econômicos para o povo. Enquanto isso, na selva Lacandona, mais precisamente no Estado de Chiapas, uma outra comemoração começava com um levante armado que se propunha revolucionário. O movimento defendia a presença e o reconhecimento dos indígenas maias da região, até então esquecidos pelos programas oficiais dos presidentes mexicanos. Assim, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) veio a público e passou a ser considerado um dos movimentos contemporâneos mais autênticos de que se tem notícia. As informações sobre a origem do movimento são desencontradas e pouco oficiais. Diz-se que um grupo de intelectuais não satisfeitos com a situação política do México resolveu partir para a selva, formando um grupo com o objetivo de levar em frente algumas das questões pendentes da revolução mexicana, que em 1910 lutou pelos direitos indígenas e pela libertação do país e derrubou a ditadura de Porfírio Díaz. Calcula-se que o grupo se preparou para o levante por 10 anos. Finalmente, dia 1º de janeiro de 1994, as bases federais do governo foram atacadas em San Cristóbal de las Casas. Era o início da insurreição zapatista, que tem à frente a emblemática figura do subcomandante insurgente Marcos, espécie de porta-voz do movimento. Durante uma década, o movi-
mento conseguiu se consolidar em muitas bases. As principais são as zonas ou municípios autônomos que se formaram dentro do Estado de Chiapas e, sobretudo, nas áreas zapatistas. Mesmo com a presença massiva do Exército oficial e das forças paramilitares, os municípios procuram manter a independência.
Fotos: Maurício Revide
Chiapas, dez anos de solidariedade
PRESSÃO DO GOVERNO Poucos dias antes das comemorações dos 10 anos do levante, o governo mexicano, através da Secretaria de Segurança Pública, tinha anunciado que não haveria qualquer vigilância especial por conta do aniversário, ao mesmo tempo em que proibia o bloqueio de rodovias. No dia 22 de dezembro, alguns municípios autônomos e militantes do zapatismo foram surpreendidos por agressões do grupo paramilitar Justiça e Paz. Um exemplo foi o município autônomo Rebeldia, onde foram registradas ameaças de morte e agressões físicas a integrantes da base de apoio do EZLN. O professor e sociólogo Onésimo Hidalgo Dominguez, membro fundador e coordenador da área de Informação e Análise da Coordenação de Organismos Não - Governamentais pela Paz, além de assessor da Comissão Nacional de Intermediação (Conai), afirma que, atual-
Zapatistas comemoram 10 anos de resistência, apesar da presença massiva do Exército e das forças paramilitares no sul
mente, existem em Chiapas cerca de 63 mil soldados e pelo menos 80 acampamentos militares.
ACORDOS DE SAN ANDRÉS A resistência do EZLN é marcada também por um objetivo: a retomada dos diálogos pela paz e o cumprimento dos Acordos de San Andrés, assinados em fevereiro de
A REGIÃO DE CHIAPAS
Tudo para todos, nada para nós Depois do primeiro levante, o Exército Zapatista de Libertação Nacional ganhou simpatizantes e militantes de suas causas em toda as partes do mundo. As declarações zapatistas feitas pelo subcomandante insurgente Marcos ganharam também um meio mais rápido para serem divulgadas: a internet. Em uma de suas declarações pela internet, Marcos definiu o que viria ser a base do movimento: “Tudo para todos, nada para nós”. A partir daí, ficou evidente que a luta dos zapatistas não era pela tomada do poder e, sim, por tomada de espaço, pelo reconhecimento e pelo respeito ao povo indígena. Ainda na década de 90, a liderança do movimento convocou toda a sociedade civil para integrar
a luta pela vida digna dos povos indígenas. Foi criada a Frente Zapatista de Libertação Nacional, cujos representantes vão além das fronteiras do México. Entre outros países, estão a Itália, Brasil, Argentina, Austrália, Estados Unidos e Canadá, seguindo a palavra de ordem do movimento: “Em busca de um mundo onde caibam todos os outros mundos”. A simpatia pelo movimento recebe também o apoio de diversos escritores e intelectuais, a exemplo de Eduardo Galeano, José Saramago, Manuel Vásquez Montalbán e Carlos Fuentes. Eles ressaltam o fato de Marcos ser, além de exímio porta-voz, um dos melhores escritores contemporâneos no mundo.
Sociólogos e economistas de vários países afirmam que o movimento é responsável por tratamento diferenciado dado a um dos Estados mais pobres do México. As ajudas não vêm do governo federal, e sim de outros países, como as Caravanas da Paz, que chegaram a entregar 40 toneladas de alimentos para os chiapanecos. Apesar dos consideráveis ganhos obtidos com o levante zapatista, há quem diga que essa história não passa de uma grande utopia. A respeito disso, o subcomandante Marcos afirmou em entrevista a Manuel Vásquez Montalbán: “Sobre a utopia eu pergunto: que transformação social na história do mundo não foi utopia na véspera? Nenhuma”. (RA)
e anunciam a luta por democracia, liberdade e justiça para todos os mexicanos.
Janeiro -1994 Levante Zapatista - As regiões de San Cristóbal de las Casas, Altamirano, Las Margaritas, Ocosingo, Oxchuc, Huixtan e Chanal, em Chiapas, são tomadas no primeiro levante armado do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). O Comitê Clandestino Revolucionário Indígena-ComandoGeral (CCRI-CG) torna pública a Declaração da Selva Lacandona, na qual declaram guerra ao governo de Carlos Salinas de Gortari
Junho -1995 O EZLN propõe um grande diálogo nacional com o governo para avaliar as demandas do povo mexicano e estabelece um fórum de discussões sobre os direitos indígenas a serem respeitados pelo governo, como
1996 e nunca cumpridos. Em uma carta, o subcomandante Marcos afirma que os tópicos dos acordos são básicos, necessários e urgentes para as nações indígenas mexicanas. Segundos os acordos, caberia ao governo reconhecer os povos indígenas na Constituição; ampliar a participação e a representação políticas; garantir acesso pleno à Justiça; promover as manifestações culturais dos povos autóctones; garantir educação, capacitação e necessidades básicas; incentivar a produção e o emprego; e proteger os indígenas migrantes. O movimento participou de várias reuniões e da formação de instâncias para mediar os diálogos entre os zapatistas e o governo federal, como a Comissão de Concórdia e Pacificação (Cocopa) e a Conai. Depois das negociações, chegou até a abrir mão de alguns pontos para assinar os acordos. O governo,
porém, voltou atrás e as tentativas de entendimento pararam. Segundo Hidalgo Dominguez, apesar das negociações estarem suspensas, a conversa prossegue, porque a Lei para o Diálogo, Negociação e Paz Digna em Chiapas, divulgada no dia 11 de março de 1995, estabelece que, ao romper o diálogo, se aplicariam ordens de prisão contra os zapatistas. “Não se pode reiniciar o diálogo pela falta de vontade política do governo em cumprir os acordos firmados em matéria de direitos e cultura indígena”, explica. Também tem sido determinante a falta de mediação entre as partes. Hidalgo Dominguez revela que a Conai foi encerrada dia 7 de junho de 1998, depois dos ataques feitos pelo então presidente Ernesto Zedillo ao bispo da Diocese de San Cristóbal de las Casas, dom Samuel Ruiz García, chamado de “teólogo da violência”. (Adital)
Discurso prega união contra inimigo comum Veja trechos do comunicado zapatista, lido à meia-noite do Ano Novo em Oventik, Chiapas. Hoje estamos reunidos para comemorar o décimo aniversário do levante armado do Exército Zapatista de Libertação Nacional, a parte mais importante de nossa grande história como povos indígenas, quando nos erguemos em luta contra todo tipo de injustiça de que há mais de 500 anos padecemos. Tudo o que fizemos foi em meio à resistência e à rebeldia, porque nossos trabalhos em saúde, educação, comércio e formação dos municípios autônomos foram
golpeados pelos programas contra-insurgentes do mau governo. Apesar de tudo, pudemos avançar na nossa luta. No ano de 2003 formaram-se as Juntas do Bom Governo, que devem governar nossas aldeias na resistência. Saudamos e agradecemos o apoio e a solidariedade de muitos milhares de irmãos e irmãs da sociedade civil nacional e internacional. Pedimos que continuem nos apoiando como possam, mas também que se organizem e lutem em seus próprios locais e nações contra o inimigo comum, que é o neoliberalismo. É o que temos para dizer. Democracia, liberdade e justiça!
e dirigidos pelos governos federal e estadual assassinaram 45 indígenas, entre crianças, mulheres e homens. O gesto de brutalidade marcou o início de uma ampla ofensiva militar e policial contra os povos indígenas de Chiapas.
maior participação política e respeito à cultura desses povos. Abril -1996 San Andrés – O governo mexicano assina o Acordo de San Andrés, que reconhece a livre determinação dos povos indígenas e o respeito as formas próprias de eleição de suas autoridades. Dezembro -1997 Massacre de Acteal – Grupos paramilitares armados, treinados
Março - 2001 Marcha dos povos indígenas – O subcomandante Marcos pela primeira vez desce da montanha Lancadona e, junto a milhares de mexicanos, marcha rumo à Cidade do México para exigir que o presidente Vicent Fox reconheça constitucionalmente os direitos dos povos indígenas e respeite os direitos humanos da população. Agosto - 2003 Caracoles – O EZLN cria as Juntas de Bom Governo nas cinco zonas territoriais mexicanas sob seu controle, que recebem o nome de Caracoles.
Com isso, mesmo sem o aval do governo, os zapatistas iniciam a implementação do Acordo de San Andrés, ignorado desde 1996 pelo governo mexicano.
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De 8 a 14 de janeiro de 2004
AMÉRICA LATINA BOLÍVIA
Povos mantêm mobilização, enquanto aguardam os 90 dias concedidos ao novo governo para atender às suas reivindicações
Fotos: Gonzalo Espinoza/AFP
Índigenas prometem continuar a luta
Marcelo Larrea de Quito (Equador)
O
Malku, ou seja, Felipe Quispe, líder do movimento Pachacuti da Bolívia, falou em Quito, Equador, sobre os resultados da movimentação popular que, em setembro e outubro, venceu a repressão sangrenta ordenada pelo governo de Sánchez de Lozada. Seu sucessor constitucional, o vice-presidente Mesa Lago, assumiu o poder, afastando os temores do Departamento de Estado e da oligarquia boliviana de que pudesse surgir um governo genuinamente popular. “Nós demos 90 dias para o governo Mesa Lago. Nesses três meses devemos entrar em um processo de diálogo para solucionar os inumeráveis problemas que temos. Até agora, não estamos entrando em diálogo. Tem-se que compreender que eles são de outra cultura – primeiro eles massacram, assassinam, aniquilam vidas humanas. No entanto, nós primeiro queremos dialogar, esgotar todos os meios possíveis para solucionar nossos problemas”, diz Quispe.
Pergunta – O governo de Mesa mostra vontade política para dialogar com o povo indígena? Felipe Quispe – Não. Me parece que o governo está sonhando com outra coisa. É um governo surdo e mudo. Pensa que nós vamos ficar calados e não vamos reclamar. Estamos esperando. Mas não paramos aí. Enquanto os dias passam, estamos junto às comunidades, organizando, preparando e articulando as forças vivas que temos, rearticulando os quadros sindicais etc. Pergunta – Vocês acreditam que pode acontecer uma crise política na Bolívia depois de janeiro? Quispe – Julgo que até abril não acontecerão muitas mobilizações. Também se tem que ver que o trabalho da terra é sazonal. Estamos em tempo de semear, de cuidar de nossas plantações, e ainda há carnaval, Semana Santa. Passando todas as festas, poderemos fazer as mobilizações. Tem-se que ser bem claro, bem realista: no começo de abril, ou em meados do mês, as massas vão estar prontas e podemos fechar as estradas, impedir a passagem de mercadorias, cercar novamente as cidades coloniais que tanto nos oprimem. Pergunta – Que experiência ficou da mobilização de setembro e outubro? Quispe – Para começar, manejamos o maquiavelismo. Já que toda guerra se caracteriza pelo engano, tivemos que enganar o Gringo (o ex-presidente Sánchez). Primeiro, armamos uma batalha em Warisata. Não estou falando de pedras e pedaços de pau, mas de fuzis velhos que tínhamos guardado. Depois dissemos que dialogaríamos em Warisata. Eles não foram porque houve conflitos. Então, dissemos: conversaremos em campo neutro, que podia ser em Cuzco, no Peru. Enviamos um dirigente e logo colocamos o tema do gás. Sabemos que os bolivianos são bem antichilenos e antiperuanos, somos bem nacionalistas, assim nos educaram nos quartéis. Então, vimos que todo o povo foi em direção à Central Operária (COB), se uniu em torno da Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia. Com isso, o governo
Durante os três meses de negociação com o governo, indígenas bolivianos procuram se organizar nas comunidades e formar novos quadros sindicais
Quem é Aos 61 anos, agricultor, guerrilheiro, estudante de História na universidade pública e deputado pelo Movimento Indígena Pachacuti (MIP), Felipe Quispe é mais conhecido como o “Malku” (o condor), líder dos indígenas bolivianos – cerca de 60% da população do país. É presidente da Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB) e liderou o movimento popular que, em outubro, depôs o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada.
apressou o diálogo, queria nos dar tudo. Nós avaliamos que, se entrássemos em diálogo, íamos nos desmobilizar e não íamos atingir o Gringo. Mesmo se perdêssemos, íamos trabalhar com a idéia de renúncia do Gringo. Começaram a nos ligar, mas desligamos os celulares e já não falávamos com mais ninguém. Todos os dias nos ligavam e nos diziam que iam dar tudo de graça para nossas famílias. Chega o dia 17, renunciam os miristas e depois os republicanos. Vão saindo todos e caem por seu próprio peso. Mas tínhamos por cima disso outro plano, nenhuma organização pode trabalhar por outra. Nós estávamos trabalhando para nós mesmos, a Central Trabalhadora, o Comitê Cívico da Alca, os transportadores do Altiplano, trabalhávamos para a tomada de poder. O Gringo renunciou, o povo se acalmou e todos começaram a festejar, como uma espécie de carnaval. No entanto, mudamos a pessoa, mas não mudamos o sistema. É a mesma coisa, só que com outra cara. No entanto, conseguimos adiantar o processo e sabemos que um dia vamos conseguir completá-lo. Pergunta – O que esperam do governo de Mesa Lago? Quispe – Nada. Ele só fala bonito, com palavras doces. Para mim, é um governo inútil. É um governo que não conduz a nada. Temos um ministro indígena que pertence ao MAS. Vendo a classe de gente que governa nosso país, pensamos: por acaso os índios têm complexo de inferioridade para governar o país? E digo: por acaso estamos preparados? Estamos preparados para roubar, corromper-nos, prostituir-
nos? Para isso não estamos preparados, mas sim para conduzir o país. Os homens do governo falam que são apolíticos, mas têm gente do Movimento Bolívia Livre, MNR, MAS etc. São pessoas de todos os lugares, é uma mistura, um híbrido, não têm horizonte, não são como os governos anteriores que conhecíamos, como o de Banzer; eram corruptos, mas eram cheios de artimanhas, sabiam como criar saídas e entradas, mas esses de agora não. Por isso que é um governo muito frágil.
permaneça bem firme. Pergunta – Como vocês avaliam a posição do MAS nas mobilizações e agora que está no governo? Quispe – O MAS não fez grandes manifestações porque Evo Morales estava na Líbia, em outros lugares. Mas eles zombavam de nós pois pensavam que não poderíamos levar avante o movimento. Tivemos mortos em Warisata, em El Alto de La Paz etc. Em Cochabamba (zona de maior influência de Evo Morales), não aconteceu nada, parece que aconteceu uma mobilização de um dia em Chaparenuma. Ele chegou no fim e
Mudamos a pessoa, mas não mudamos o sistema. É a mesma coisa, com outra cara Pergunta – Vocês pensam criar órgãos de poder alternativos? Quispe – Não. Esse é um governo de transição e a saída é convocar novas eleições presidenciais, uma Assembléia Constituinte, mas não se sabe quando será a data. O senhor Carlos Mesa deve analisar qual é a saída, e da nossa parte temos que decidir o que fazer, o que podemos obter desse governo, consultar as perspectivas das massas. Pergunta – A estabilização do governo Mesa não poderia afetar o nível de mobilização popular? Quispe – Conseguimos atingir um patamar superior e isso deve ser preservado porque, se cairmos, o país se tornará uma aberração política. Por isso, como principal dirigente deste movimento que se tornou especialmente vivo em setembro e outubro, devo prestar atenção. Qualquer passo em falso poderia trazer uma divisão que seria bem aproveitada pelo senhor Mesa e por outros. Por essa razão, se deve mostrar habilidade para que o movimento
começou a dizer pelos meios de comunicação que tinha sido ele quem tinha iniciado a movimentação. Ultimamente, por terem entrado no governo, disseram “temos que dar tempo ao governo”. Eu acho que é um equívoco, porque não há necessidade de entrar em um ministério por migalhas. Para quê? Nós queremos toda a torta, tudo ou nada. Pergunta – Quais as diferenças fundamentais entre seu movimento e o de Evo Morales? Quispe – Eles estão loucos para chegar às prefeituras e municípios. Trabalham em função disso, mas ideologicamente creio que são um socialismo cristão. O MAS não nasceu sob as tradições do indígena. Nós, sim, fundamos o movimento em 14 de novembro de 2000, em Peñas, onde foi executado o indígena Tupac Katari, e saímos debaixo do proteção da Confederação Única de Trabalhadores Camponeses. Ideologicamente, nos orientamos pelo indigenismo. No MAS está a Fundação Che Guevara, de Antonio Peredo, o Bloco Patriótico
Social de Manuel Morales Dávila, o Movimento Felix Vázques etc. Eles têm expressões diferentes, não uma unidade, cada um fala diferente. Têm 27 deputados, mas os indígenas não participam; a classe média, os mestiços são os que falam mais. Nós temos duas opções: estar na legalidade do Parlamento, dentro da lei da República, sermos legais. E estar nas organizações sindicais, do transporte e indígenas, com as quais realizamos mobilizações e fazemos o enfrentamento. Se fracassa um braço, somos obrigados a usar o outro. Pergunta – Como vocês convocam os outros setores que não são indígenas e os integram à luta anticolonial e antiimperialista? Quispe – Muito simples. É que nós fazemos a luta de classes. Tomamos a bandeira vermelha como estandarte e, ao lado dela, que representa a luta de classes, está a luta de nações, nosso símbolo de sete cores. Nós não somente falamos dos índios, mas também dos pobres, dos marginalizados, dos que não têm nada para comer, dos desempregados. Pouco a pouco vamos reunindo essa gente, porque não levar em consideração essas pessoas significa uma aberração política. Pergunta – Dentro desse conceito de articular a luta nacional e a luta de classes, como vocês definem os principais propósitos de libertação nacional e de descolonização da Bolívia? Quispe – Estamos vendo que, pela via legal, eleitoreira, não vamos fazer nada. Podemos chegar ao governo, mas não ao poder porque sabemos muito bem que ali estão as Forças Armadas, que são o braço armado dos ricos. Assim, é preciso optar por outra via. Quando os espanhóis chegaram, trouxeram armas de fogo, cavalos, pólvoras, a Bíblia, e nos derrotaram. Bolívar e Sucre chegaram matando seus avós e se republicanizaram. No ano de 1952, Víctor Paz, Hernán Siles Suazo e outros fizeram a revolução, aconteceu a reforma agrária, houve mudança. Esse mesmo caminho nos espera: o caminho da luta. Só aí poderemos mudar, desneoliberalizar, ditar novas leis. Marcelo Larrea é correspondente da Adital no Equador e diretor da revista El Sucre
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INTERNACIONAL CUBA
45 anos de resistência e socialismo Cubanos comemoraram aniversário da revolução e Fidel Castro fala da sobrevivência da humanidade
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ia 1º de janeiro de 1959. Os guerrilheiros Fidel Castro e Ernesto Che Guevara realizam uma entrada triunfal em Havana. A marcha pela capital de Cuba, pequena ilha do Caribe, marca a derrubada do ditador Fulgêncio Batista e a vitória da guerrilha, que começara três anos antes em Sierra Maestra. Dia 1º de janeiro de 2004. A revolução cubana chega a seu 45º aniversário. O movimento popular
transformou a ilha, antes quintal dos Estados Unidos, no primeiro país socialista da América Latina, marcando aquilo que o próprio Fidel Castro chama de “a segunda independência do país”. Para comemorar o aniversário da revolução, Fidel Castro, presidente de Cuba, proferiu um de seus famosos discursos no teatro Karl Marx, em Havana. O pronunciamento, inicialmente marcado para acontecer dia 1º, na cidade de Santiago, foi transferido para dia 3, e durou menos de uma hora. Aos
France Press
A humanidade não sobreviverá sem mudanças
Leia alguns trechos do discurso do presidente Fidel Castro, por ocasião do 45º aniversário da revolução cubana: Ideais da revolução – Nossos objetivos nunca foram a busca de glória ou honras, nem reconhecimentos individuais ou coletivos. Acreditávamos nos direitos dos povos, entre eles o direito à independência e a rebelar-se contra a tirania. Futuro da humanidade – A luta para criar outro mundo, diferente, racional, digno da inteligência da nossa espécie, constitui algo que não era possível, sequer imaginável em outras circunstâncias: uma tentativa de que os seres humanos pela primeira vez programem seu próprio destino. Trata-se de algo que vai muito além de sentimentos nobres de justiça; trata-se da sobrevivência da espécie. Armamentos – Faz menos de 60 anos que se tornou evidente, ao explodir sobre Hiroshima o primeiro artefato nuclear, que a tecnologia poderia pôr fim à existência da vida humana sobre o planeta. Desde então não parou um único dia o desenvolvimento de novas armas e sistemas deste tipo, até centenas de vezes mais poderosas. Um reduzido grupo de países entre os que monopolizam essas armas se arrogam o direito exclusivo de produzi-las e melhorá-las. Meio ambiente – Há apenas 40 anos algumas pessoas começaram a expressar preocupações sobre o que veio a ser chamado de meio ambiente, a partir de uma civilização bárbara que estava destruindo as condições de vida. Já se passaram mais de dez anos
cubanos, Fidel falou da conjuntura mundial, com especial destaque para a situação dos países da América Latina. Para ele, a humanidade enfrenta um dilema que diz respeito à sua “própria sobrevivência enquanto espécie”.
EMBARGO Cuba, 45 anos depois da vitória do movimento guerrilheiro, vive um momento especialmente delicado. No começo de novembro de 2003, a assembléia geral da Organização das Nações Unidas (ONU)
condenou o embargo comercial que os EUA mantêm contra a ilha há mais de 40 anos, por 179 votos a favor e apenas 3 contra. No entanto, as tentativas de parlamentares estadunidenses, de aliviar o bloqueio, enfrentam a oposição declarada do presidente George W. Bush, que promete vetar qualquer medida de enfraquecimento do embargo. O ano de 2003 também foi marcado por um forte abalo na imagem do regime cubano frente à opinião pública internacional. A prisão de 75 dissidentes e o fuzilamento de
três acusados pelo seqüestro de uma balsa, em abril, geraram polêmica mesmo entre simpatizantes históricos do regime cubano. Entre as dificuldades, está a crescente dependência das famílias, que esperam o dinheiro enviado por parentes que moram no exterior para completar sua renda. Mesmo assim, em 2003 a ilha registrou crescimento econômico de 2,6% – índice superior à média de 1,6% dos países latino-americanos, como mostram dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Niurka Barroso/AFP
da Redação
desde a Rio-92 e muito pouco foi feito. No entanto, cresce a consciência do perigo mortal. Deve crescer e vai crescer a luta. Não há alternativa. Superpopulação mundial – Hoje são 6 bilhões e 374 milhões de pessoas. Os cálculos para 2050 indicam entre 7,409 bilhões e 10,63 bilhões. Conhecendo a crescente deterioração e redução dos recursos de terra e água, as epidemias de fome, os desperdícios das sociedades de consumo, os problemas educacionais e sanitários, seria bom perguntar aos campeões olímpicos dos direitos humanos se alguma vez dedicaram um só minuto a pensar nessas realidades. Economia – As privatizações alienaram bens nacionais no valor de centenas de bilhões de dólares, criados ao longo de muitos anos, que se desmancharam na velocidade com que os capitais desses países fugiram para os Estados Unidos e Europa. O desemprego atingiu cifras recordes. De cada 100 novos postos de trabalho que se criam, 82 pertencem ao chamado “setor informal”, sem nenhuma proteção social nem legal. A pobreza extrema atinge 44% da população mundial. A América Latina enfrenta agora o desafio da Alca, que arrasaria as indústrias nacionais e seria insustentável para o próprio povo dos Estados Unidos, que vê seus empregos ameaçados por uma abundante mão-de-obra barata. Esperança – Tenho a profunda convicção de que nossa espécie, e com ela cada um de nossos povos, se encontra num momento decisivo de sua história: ou muda o curso dos acontecimentos ou a espécie não poderá sobreviver. Felicito todos os que lutam, os que não desistem jamais diante das dificuldades, os que acreditam nas capacidades humanas para criar, semear e cultivar valores e idéias; os que apostam na humanidade; todos os que compartilham da bela convicção de que um mundo melhor é possível. Cubanos participam de ato em protesto contra a invasão do Iraque
A “subversão” de Cuba e da Venezuela Emir Sader de São Paulo (SP) O governo de George W. Bush tem razão de se preocupar com o que Cuba e Venezuela podem fazer para desestabilizar ainda mais a capacidade de influência de seu país na América Latina. Só que o que eles chamam de “subversão” – revelando sua nostálgica visão da “guerra fria” – é outra coisa, mais perigosa do que qualquer ajuda econômica, treinamento de guerrilheiros ou propaganda ideológica. São coisas para as quais os olhos viciados do cowboy texano tem dificuldade para ver. Quando o continente vive sua pior crise social desde os anos 30 do século passado, como conseqüência da aplicação das políticas que seu governo e os organismos internacionais em que Washington tem hegemonia recomendavam como as melhores para a América Latina, o
governo Bush tem razão para preocupar-se. A Argentina, eleita como o melhor aluno dessas políticas com Carlos Menem, sofreu o pior retrocesso de sua história, do qual só poderá se recuperar caso mantenha um ritmo contínuo de crescimento por dez anos. Menem foi derrotado pela votação do povo argentino. O México foi o aliado privilegiado de Washington e ingressou no Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Naffta) como exemplo de que a integração subordinada consolidada seria o melhor caminho para os países do continente. Retrocedeu tudo o que havia andado e muito mais, com a recessão estadunidense, e Fox foi derrotado pela votação do povo mexicano em julho de 2003.
MAUS EXEMPLOS Sánchez de Losada foi reeleito na Bolívia tendo o embaixador dos EUA como seu principal cabo
eleitoral, prometendo retomar suas políticas neoliberais. Seu governo não durou um ano, fracassou estrepitosamente e o povo boliviano o derrotou, depondo-o nas ruas e nos campos do país. Alejandro Toledo, no Peru, e Jorge Battle no Uruguai, esgotaram rapidamente seus governos, ficando à espera do fim de seus mandatos e de ser derrotados nas urnas pelos povos de seus países. O governo chileno assinou com o governo dos EUA um dos tratados comerciais mais vergonhosos que já foram subscritos no nosso continente, prenúncio do que seria a Alca. O tratado permite aos capitais estadunidenses circular pelo Chile como se estivessem no Michigan ou na Califórnia – ou, pior, porque alguns Estados dos EUA têm legislações que minimamente os protegem de alguns excessos, enquanto que o governo de Ricardo Lagos entregou-se de pés e mãos atados aos capitais
estadunidenses, renunciando à soberania que ainda restava ao país. A Alca é derrotada dentro e fora dos EUA, como a reunião de Miami revelou, com um consenso generalizadamente contrário aos desígnios estadunidenses, de escancarar todas as fronteiras do continente para seus capitais.
RESISTÊNCIA Enquanto isso, Cuba e a Venezuela assinaram e colocam em prática um tipo bem distinto de intercâmbio, em que cada país fornece ao outro o que possui: a Venezuela dá petróleo a Cuba e em troca recebe remédios, técnicos em alfabetização, em medicina social, em esportes. O que se convencionou chamar de “comércio justo”, aquele em que cada país fornece o que dispõe e recebe o que necessita, independentemente dos preços do mercado internacional. Além desse “mau exemplo”, os dois países privilegiam o social,
deslocando o grosso de seus recursos para universalizar o direito de acesso à educação, à saúde, à habitação, ao saneamento básico, à informação, à cultura, enquanto outros governos do continente continuam a seguir as orientações do FMI e privilegiam o ajuste fiscal. São intoleráveis para Washington os exemplos dados por Cuba e pela Venezuela. Quando acusa o principal líder boliviano, Evo Morales, de ser abastecido por Cuba e pela Venezuela, na sua cabeça mercantilizada sempre passa o argumento de fornecimento de dinheiro, quando se trata, na verdade, do fornecimento de modelos não mercantis de construção de sociedade e de intercâmbio entre os países. Justas as preocupações do governo Bush. Cuba e a Venezuela são apenas a ponta de um iceberg que ressurge como resistência latino-americana à hegemonia imperial e neoliberal dos EUA.
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INTERNACIONAL ÁFRICA
Escritor resgata tradição moçambicana Lobão João especial para o Brasil de Fato em Maputo (Moçambique)
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omo ele não gosta de ser chamado de “Chico” ou “Francisco”, o nome que tem no “bilhete de identidade”, imposto pelo colonizador português, Francisco Esaú Cossa adotou a versão tsonga tradicional de sua identidade: Ungulani Ba Ka Kossa. O escritor moçambicano, também jornalista e com formação em história e geografia, tem quatro livros publicados e é uma referência na literatura moçambicana de expressão portuguesa hoje. Nasceu em Inhaminga (província de Sofala), em agosto de 1957. É indicado pelo também moçambicano e consagrado escritor Mia Couto como um nome importante desta geração de escritores de seu país. Kossa, que começou a escrever nos anos 80, se diz um “escritor rural”, influenciado pelo realismo mágico dos escritores latinoamericanos de língua espanhola. “A literatura latino-americana, na vertente castelhana, trouxe o mágico para a literatura e tornou-se uma grandeza. Eu sentia nos escritores africanos a ausência dessa magia. Também achava que isso não entrava na racionalidade européia. Apaixonei-me e a minha grande influência está na literatura latino-americana”, diz. Seus livros nunca ganharam edição brasileira. Atualmente trabalha como gestor do instituto de áudio visual e cinema de Moçambique. É colunista do jornal Vertical. Em entrevista ao Brasil de Fato em Maputo, capital de Moçambique e cidade onde vive, Ungulani Ba Ka Kossa falou também sobre o tema central de sua literatura: o confronto entre o universo cultural das tradições de seu país e a devastadora herança colonial portuguesa. Brasil de Fato – Por que um nome tsonga? Ungulani Ba Ka Kossa – Aqui e quase em toda África, além do nome oficial que vem no registro, temos um nome tradicional. Quando da colonização, os portugueses sempre se recusaram que usássemos os nomes tradicionais. Queriam que, por assimilação, adquiríssemos os nomes ligados ao próprio colono, tipo Francisco, João. Nunca gostei do nome Francisco, que é o meu de bilhete de identidade. Achei por bem resgatar o meu nome tradicional. Então, optei pelo nome tsonga, acho bonito. Tsonga é um termo genérico para
Trecho do conto Exorcismo, de Ungulani Ba Ka Kossa “As águas, alheias à comunicação humana, entraram pelos gabinetes da burocracia, espantaram os serviços estancados pela canícula tropical, e acercaram-se do gabinete do chefe. O administrador, com a balalaica totalmente desabotoada e os pés assentes sobre os sapatos com a dimensão de sapos de épocas perdidas, despachava processos dos candongueiros de ratos selvagens, dos adúlteros impotentes e dos poços sem águas, com o polegar da mão direita, o mesmo que servia, com o apoio do indicador, para limpar o ranho que teimava sair das narinas coloridas de azul, quando se apercebeu de que algo estranho se passava. As águas, como larvas em cio, invadiram o corpo obeso e cobriram a secretária, tornando indecifrável os processos de prostitutas em regime de reeducação e dos candongueiros de ratos selvagens. - O que é que se passa? - O seu filho desapareceu, senhor administrador, respondeu um funcionário que irrompeu pelo gabi-
Fotos: Ferhat Momade
Ungulani Ba Ka Kossa, autor de Ualalapi, combate a herança colonial portuguesa e a supremacia sul-africana
Quem é Nome: Ungulani Ba Ka Kossa, escritor moçambicano Idade: 46 anos Obras: Ualalapi (contos, 1987); Orgia dos Loucos (contos, 1990); História de Amor e Espanto (contos, 1999); No Reino dos Abutres (novela, 2003)
Apaixonei-me pelo mágico da literatura castelhana; minha grande influência foi essa designar todas as populações da região Sul de Moçambique, os changanas, matsuas e rongas. Como há um padrão comum na língua, os lingüistas designaram todos tsonga. BF – Sua família é desta etnia? Kossa – O meu pai é changana e minha mãe é sena. A única diferença está na língua porque a minha mãe é da zona centro e o meu pai é do sul do Rio Save. Mas o subextrato é o mesmo. Quando os zulus invadiram esta região, vindos da África do Sul, foram até as margens do Rio Zambeze, no centro. Aqui na região Sul havia uma população local que era designada Va Ka Tsonga. Depois disso, entrou aqui o reinado Shangana. As populações submetidas por ele passaram a se chamar changanas, mas eles tinham a língua base tsonga. Os tsongas eram povos dessa região muito antes da invasão Nguni. Foram submetidos pelos Nguni. Meu primeiro livro, Ualalapi, retrata um pouco essa questão. Até se refere inclusive a Ngungunhana como
invasor nesta região, tendo submetido os povos que aqui viviam. A submissão era por etapas. Chegaram à região dos Tembe, Ka Tembe, e invadiram e submeteram os jovens, que eram conhecidos como Mabulunguela, quer dizer, os que abrem o caminho. BF – Você fala a língua? Kossa – Meus pais eram assimilados, enfermeiros de profissão. Então, minha primeira língua foi português, mas depois aprendi changani, porque a sociedade é patrelinear, daí vem o meu sobrenome Kossa. Falo um pouco de francês e espanhol. Não gosto de inglês, por causa da supremacia sul-africana. BF – Foi professor antes de entrar na literatura? Kossa – Eu entrei na docência em 1997, um pouco depois da Independência. Nosso sistema educacional estava fragilizado, pois os professores coloniais abandonaram o país. Tivemos uma formação rápida. Estávamos a terminar o secundário para entrar para a universidade, foi como que por decreto governamental. Gostei imenso. Fui trabalhar para uma
Minha primeira língua foi português; aprendi changani e espanhol, não gosto de inglês
nete adentro com mesuras do tempo de Changamire Dombo. - Como? - O rio levou-o, camarada... - Porcaria de vida! Caminhando com as meias por onde despontavam os dedos como cabeças de tartarugas espantadas com a clareza do mundo, e a balalaica mostrando o relvado desordenado da savana entregue aos dissabores da devastação amorosa dos herbívoros insaciáveis, o administrador percorreu os gabinetes dos regulamentos e das palavras de ordem em busca dos polícias que jogavam damas debaixo das árvores, longe da esquadra e dos locais de vigília. - Chamem-me esses, esses... Minutos depois, por vontade e ordem do administrador, os homens e as mulheres saíram dos gabinetes e das residências e bares e bazares legais e clandestinos e em todos os outros locais onde pudessem estar, incluindo as retretes e as casas de banho sem teto. E durante cinco dias e seis noites, as canoas em uso e desuso, cortaram as águas em todas as direcções possíveis, e o mais que puderam encontrar foram os ossos do primeiro colono que morreu de um diarreia crônica, as armas enferrujadas de encher pelo cano, a primeira dentadura postiça que circulou na
boca de um preto que se orgulhava do nome de João Merda, as polainas dos caçadores de pretos revoltados, as lanças de cabo curto de que os nguni reivindicavam a patente, séculos depois dos aborígenes as terem inventado, e outros objectos sem nomeação nas línguas correntes, pois pertenceram às comunidades que falavam o banto primitivo. Disse-te, Pedro, pensava o administrador, goza esta vida, eu sou chefe, tenho o poder, as ordens são acatadas por mais de quinze mil almas; os homens e as mulheres lambem-me os pés como cães carentes de afeto... dei-te tudo, Pedro, as mulheres mais belas perfilaram a teus olhos, e tu nem quiseste... meu filho único, órfão de mãe, mãe que choraria se te visse a correr como um cão atrás dessa, dessa, dessa, ... ai, Pedro, quantas vezes, mas quantas, quantas não foram as vezes que te disse que esses tipos mudam os chefes quando lhes dá na gana, e por isso goza, meu filho... e tu, parvo que foste, deixaste-te levar por essa... E foi neste turbilhão de pensamentos desencontrados que os homens da procura, meio desfeitos pelas águas e pelo cansaço, o encontraram: os cotovelos rasgando as coxas, a cabeça sustida pelas mãos calosas, o cabelo desgrenhado, o rosto
província que tinha condições muito difíceis, o Niassa. BF – Que escritores influenciam sua escrita? Kossa – Para ser sincero, quando começamos a escrever, nós, isto é, a minha geração, tínhamos poucas referências. A grande referência era a literatura oral, sobretudo os provérbios. Vê-se nos meus livros que eu sou apaixonado pelos provérbios. Essa é a tradição oral gravada. Eu lia os escritores russos e outros. De Portugal, muito pouco, nunca gostei, talvez porque na escola fui obrigado a ler. Só os escritores dos anos 80 é que comecei a gostar mais, partindo do Dinis Machado e outros. Mas acima de tudo comecei pela literatura americana, nomeadamente, Hemingway, William Faulkner, este último levou-me aos escritores latino-americanos, a Vargas Llosa, Garcia Marques, Júlio Cortazar, ao mexicano Juan Rufo. Tive essa influência. E a influência da literatura latino-americana, hispânica acima de tudo, mostrou-me uma espécie de contraste. Na literatura africana, quando eu lia, por exemplo, o Ngungo Wationgo, o Sembene Osmane, Bernard Datié, eu sentia neles um libelo, uma acusação, em termos da neocolonização que se vivia na África, mas acima de tudo não eram capazes de ir à própria cultura, de ir ao mágico, como acontecia com os escritores latino-americanos da vertente castelhana. BF – O tema central da sua literatura seria o confronto entre as tradições populares de Moçambique e a nova ordem da administração do colonizador? Kossa – Digamos que eu não sou uma pessoa urbana. Por causa do trabalho do meu pai, eu andei sempre em distritos... o que no Brasil se chamam pequenas cidades. Estava em contato constante com o mundo rural e o mundo do cimento. Portanto, sou um escritor rural, encontro com a parte popular e confronto com a parte de cimento. Vivo em Maputo, mas não sou capaz de ser um contrito, a velhice despontando. Estava sentado no mesmo local onde o filho sempre se sentara. - Não o encontrámos, camarada administrador. - É impossível. - Procurámo-lo pelo rio todo. - E como é que o corpo não apareceu? - Os crocodilos devem tê-lo comido. - E o sinal? - É verdade. O sinal não apareceu. Mas não seria melhor chamarmos o curandeiro? - Quem? - Simamba. - Chamem-no. Mas... esperem aí. Soergueu-se. Limpou as calças. Aproximou-se dos homens que o olhavam com a inocência das lebres em zoos carentes de erva e disse: - Não quero cartas de leitores nem relatórios falsos às estruturas centrais. O que vamos fazer aqui não deve sair deste distrito. Não quero ouvir histórias. Não quero intriguistas, boateiros, reacionários, contrarevolucionários, inimigos da pátria, ouviram? Aqui não entra superstição, curandeirismos! O que vamos fazer, camaradas, enquadra-se nas experiências revolucionárias. Entenderam? (...)”
escritor de Maputo. E qualquer tentativa de escrever sobre a cidade sai-me muito mal. BF – Você foi colunista no extinto “Metical”. Como vê o assassinato do jornalista Carlos Cardoso? Kossa – Sou colunista há muito tempo. Passei pelo Notícias, pelo Médiafax, pelo Savana e, depois, parei. O Metical terminou, mas os jornalistas, para não ficarem desempregados, criaram o Vertical A morte de Cardoso é o corolário do que é o mundo do crime organizado neste país. O sindicato do crime, quando se sente tocado por investigação jornalística, e o Cardoso era investigador, procura pará-la de todas as formas possíveis. Mesmo no Brasil, noto através da televisão que os jornalistas, quando entram nas favelas e tentam trabalhar são assassinados. Eu nem gosto de falar muito disto porque o Carlos Cardoso foi um homem de muita estima e esteve muitas vezes comigo. As pessoas depois se aproveitam daquilo que a gente diz para outros fins. Eu pura e simplesmente tenho o Cardoso no coração. BF - A literatura tem espaço nos jornais? Kossa – Muitos jornais são privados e querem publicidade. Há algumas exceções: o jornal Notícias tem um suplemento cultural, o que é de louvar. Nas minhas colunas, escrevo sobre o dia-a-dia, a minha colaboração é mais de intervenção. Cardoso, quando me propôs a coluna no Metical, queria que eu escrevesse sobre assuntos literários, mas eu prefiro ser mais participativo. O ponto é que publicamos livros de três em três anos e, nos intervalos, ficamos em silêncio. BF – Qual a melhor e a pior coisa de ser um escritor moçambicano? Kossa – Ser escritor é uma coisa que vem da alma. Na África, ser escritor não é ser profissional. No Brasil, há escritores profissionais. Aqui uma coisa que frustra muitos jovens é não ter acesso a edição. Depois, a pessoa tem que sobreviver e conciliar a vida profissional com a escrita. Por outro lado, no caso de Moçambique, tínhamos um partido único e não democrático. Havia certa imposição, os jornalistas também tiveram autocensura. Na escrita, a gente utilizava metáfora para fugir a isso. Mas, neste momento de abertura, eu sinto que para muitos jovens faltam editoras. BF – Como é o mercado do livro? Kossa – O que acontece é que não há publicidade nem distribuidores. Eu tiro um livro aqui e esse mesmo livro só depois de oito meses é que chega a Pemba (norte do país). Só de costa, temos mais de 2.700 quilômetros e não temos distribuidoras, não temos livrarias. Estive recentemente na Beira, em Manica, senti que há apetência para leitura. As bibliotecas não estão equipadas, quer dizer, a cultura está em segundo plano.
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INTERNACIONAL IRAQUE
Nas ruas, a verdadeira guerra popular James Petras de Nova York (EUA)
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pesar da ampla circulação de explicações sobre a vitória militar no Iraque, baseadas na invencível superioridade militar dos EUA, restam perguntas sem respostas: por que não foram usados aviões iraquianos para atacar os postos de comando estadunidenses no Kuait e os navios estadunidenses, que estavam a poucos minutos de vôo? Por que os militares iraquianos deixaram Bagdá praticamente abandonada? Por que há mais baixas estadunidenses “depois da guerra” do que antes? Por que a resistência e o moral dos iraquianos não diminuíram sob a ocupação? Mais profundamente: ocorreu realmente uma “guerra” entre os invasores estadunidenses e o governo iraquiano? Mais de 30 mil soldados iraquianos e oito mil civis foram mortos. Isso indica que houve ataques estadunidenses muito violentos contra cidades iraquianas e instalações militares, mas não significa necessariamente uma guerra. Houve focos de resistência, alguns bastante decididos, mas é claro que cidades estratégicas – as cidades petrolíferas do Norte e do Sul, mais Bagdá – foram conquistadas sem qualquer resistência. A idéia de “guerra” implica conflito entre dois exércitos, o que em grande parte não ocorreu, pois um lado bombardeou e conquistou, e o outro pouco se comprometeu. Os estadunidenses deram duas explicações, amplamente disseminadas pela mídia: a primeira, de que os ataques aéreos “aniquilaram” o exército iraquiano, tanto psicológica quanto fisicamente, e por isso ele se retirou ou se rendeu. Mas na verdade apenas 5% do exército iraquiano foram “aniquilados” – por que os 95% restantes não continuaram combatendo? Os racistas, neoconservadores e acadêmicos que vasculham a “mentalidade árabe”, expressam abertamente desprezo pela falta de disciplina dos “árabes”, sua incapa-
Hassan Abdulzahra
Baixas das forças invasoras revelam sucesso da guerrilha iraquiana, capaz de realizar dezenas de ações militares diárias
Iraquianos pedem a retirada das forças invasoras estrangeiras em Najaf, perto de Bagdá, um dos focos de resistência
Ao longo dos anos 90, o regime iraquiano adotou posição conciliadora em relação aos EUA. Apesar da propaganda da mídia sobre “a não-cooperação”, sobre “a intransigência” de Sadam Hussein e sobre suas “armas de destruição em massa”, na verdade o regime se submeteu a todas as missões da ONU de busca e destruição de armamentos. E os inspetores forneceram para a CIA dados estratégicos sobre o poder militar do Iraque e sobre o grau de compromisso de seus principais quadros com o regime de Sadam. Em uma década, as Nações Unidas e a Agência Internacional
A verdade é que os generais iraquianos e alguns políticos importantes entregaram o país aos invasores de Energia Atômica destruíram o poder militar do Iraque, de resistir a uma invasão estadunidense. A isso se acrescenta o bombardeio permanente do Iraque por aviões e mísseis estadunidenses e britânicos. A ONU ainda fez cumprir as sanções econômicas ditadas pelos EUA, que mataram mais de um milhão de iraquianos, incluindo 500 mil crianças. O regime iraquiano acreditou que as sucessivas concessões feitas
do que alardeou a mídia ocidental. A explicação de por que desapareceram os 250 mil guardas republicanos de elite, por que não voaram os 500 aviões de guerra iraquiana, por que ficaram guardados os mísseis antitanques, morteiros, toneladas de armas pesadas e leves
nidenses e minimizam as perdas, a eficácia em sabotar os oleodutos e em expulsar os auxiliares coloniais da ONU, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e organizações não-governamentais. O sucesso se deve também à consciência generalizada de que a “re-
Lembrem-se do Vietnã. Baixas numerosas significam que o gigante adormecido finalmente despertará e carros blindados, é que houve um pacto secreto entre o Pentágono e os generais iraquianos, que receberam transporte e salvo-conduto para si e suas famílias, que foram para os EUA e outros países seguros, além ganhar muito dinheiro. O abandono da estrutura de comando primeiro causou desmoralização, mas logos os focos locais de resistência se reagruparam em redes de resistência guerrilheira, com a incorporação de especialistas em minas, explosivos e guerra tática, levando aos múltiplos ataques diários contra as tropas de ocupação. O sucesso assombroso da guerrilha pode ser medido pela capacidade de realizar dezenas de ações militares diárias em várias regiões do país, pelos ataques-relâmpago que maximizam as baixas estadu-
Karim Sahib/AFP
cidade para lutar contra um adversário democrático como Israel e os EUA. Essa “explicação” evita falar dos ataques diários da resistência iraquiana contra o exército de ocupação estadunidense. A maioria das tropas iraquianas não se rendeu. Muitos dos iraquianos foram aprisionados depois da guerra. O comando de ocupação falou de apenas alguns milhares de prisioneiros de guerra e a maior parte das armas não foi entregue ou capturada. A verdade é que os generais iraquianos e alguns políticos importantes entregaram o país aos invasores. Os contatos secretos entre generais iraquianos e os EUA proporcionaram uma fuga segura a troco de desmobilizarem as forças iraquianas e preservarem as instalações petrolíferas para sua exploração pelos estadunidenses. Depois, sem o comando geral traidor, muitos dos ex-soldados se transformaram em resistência anticolonial. Contrariamente ao que disse George W. Bush, a guerra começou, e não terminou, a 1º de maio de 2003. Pela primeira vez o povo iraquiano não estava dirigido por líderes conciliadores que permitiram que a ONU inspecionasse, desarmasse e espionasse o país, entregando as informações aos estadunidenses e britânicos. A resistência anticolonial iraquiana é capaz de uma guerra popular prolongada, o que era inconcebível sob Sadam Hussein.
iriam amenizar as sanções econômicas. De fato, cada concessão aumentou a pressão de Washington. A ditadura de Sadam impediu uma mobilização antiimperialista ao nível daquela a que estamos assistindo depois do “fim da guerra”. A “guerra” que não houve, por causa da traição dos comandantes iraquianos, foi transformada pela mídia num grande “triunfo militar”. Não houve nenhuma façanha, nenhuma grande batalha, portanto não houve nenhuma grande vitória. Esta teve de ser inventada. O símbolo desta guerra de mentira foi o resgate da soldada Jessica Lynch, com ferimentos graves por causa de um acidente com seu veículo. Ela foi capturada por tropas iraquianas e tratada num hospital iraquiano, onde recebeu tratamento prioritário e até sangue das enfermeiras. No entanto, os EUA inventaram a história de uma valente soldada Jessica, guerreira adolescente, que lutou e matou um esquadrão de iraquianos, foi aprisionada por sádicos captores e libertada por um comando estadunidense, que depois destruiu o hospital e aterrorizou os médicos, enfermeiras e pacientes, já que não havia nenhum soldado iraquiano no estabelecimento. Jéssica só tinha ferimentos oriundos do desastre de seu veículo, não levou nenhum tiro nem foi apunhalada, ao contrário
Ao contrário do que divulgou a mídia estadunidense, os ataques aéreos não aniquilaram o exército iraquiano
construção colonial” só perpetuará os novos governantes e enriquecerá as transnacionais que estão privatizando o petróleo, eletricidade, água e outras infra-estruturas básicas, levará à instalação de enormes bases militares estadunidenses em caráter permanente e minará a unidade do país. A camarilha de Bush teme que o aumento dos contingentes estadunidenses de ocupação lhes custe a reeleição; por isso se pensa em recorrer em massa a soldados de outros países, por exemplo 50 mil soldados indianos e muçulmanos do Sul da Ásia, mas sem ceder poderes de ocupação nem de outorgar contratos a empresas. Enquanto isso, Bush e a mídia divulgam a mentira de que a resistência é coisa de estrangeiros, militantes da Al Qaeda e alguns partidários de Sadam – pequenos grupos que logo serão aniquilados. A nova guerra já dura meses e os EUA não fizeram nenhum progresso quanto à diminuição dos ataques, nem capturaram posições estratégicas. Para a grande maioria dos iraquianos os objetivos estratégicos são a retirada estadunidense do Iraque e a dissolução do “governo” nomeado pelos ocupantes. Há traidores e delatores, mas seus vizinhos e colegas os conhecem e se lidará com eles no contexto da resistência anticolonial. Não há frentes de batalha – a resistência está por toda a parte, existem minas nas estradas porque comandos locais as instalam e detonam; não há nenhuma “Batalha de Bagdá” – haverá mil e uma batalhas em Bagdá, em cada rua, beco, bloco de apartamentos e praça do mercado. Esta é uma nova guerra. Baixas numerosas significam que o gigante adormecido finalmente despertará. (Rebelión)
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DEBATE POLÍTICA INDÍGENA
Mércio P. Gomes ano de 2003 começou de forma diferente para os brasileiros. A esperança dominou as multidões que aguardavam, ansiosas, transformações há longo tempo prometidas e muito pouco realizadas. Com os povos indígenas não foi diferente. Desde os primeiros dias do novo governo, representantes de diversos povos indígenas acorreram ao Palácio do Planalto para prestar suas homenagens ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e dele ouvir uma palavra de ânimo e afirmação de sua determinação pela mudança. Essa esperança deu o tom à visão e às expectativas dos povos indígenas em relação ao seu futuro, bem quanto ao seu relacionamento com as diversas instâncias do Estado brasileiro e instituições não-governamentais que trabalham em prol dos povos indígenas. Ocorre que a herança recebida pelo presidente Lula – incluindo toda sorte de passivos sociais, culturais e econômicos – fez com que o governo realizasse uma série de intervenções administrativas de grande profundidade no Estado brasileiro. Todos sabemos o quanto a chamada máquina administrativa e os recursos para investimento social foram “enxugados” por medida de contenção de despesas. Muita gente ficou aborrecida com as medidas e externou suas reclamações sem pudor. O governo sabia o que estava fazendo porque era o que precisava ser feito. Sua fidelidade ao povo brasileiro não diminuiu, e os resultados só nesse final de ano é que começaram a aparecer. Os apressados estão começando a entender de novo.
Kipper
O governo Lula e os povos indígenas O
PROBLEMAS NA FUNAI
A Fundação Nacional do Índio (Funai), principal órgão de atuação da política indigenista do Estado, sofreu muitíssimo com as medidas administrativas inicialmente tomadas. Herdeira de um orçamento já bastante pequeno, com um quadro de pessoal que só decresce há mais de 16 anos, e com uma quantidade cada vez maior de problemas para resolver, a Funai sofreu com a saída, por aposentadoria, de muitos de seus quadros, com a diminuição de mais de 70 funções gratificadas e com o apostilamento para baixo de mais de três centenas de funções gratificadas, especificamente aquelas que servem de suporte financeiro e administrativo para os cargos de chefia de postos indígenas, justamente a atividade-fim mais importante do órgão. A primeira equipe indicada para comandar o órgão sentiu as conseqüências dessas mudanças e teve muitas dificuldades para exercer seu papel. As expectativas frustradas levaram a um desassossego e a desencontros permanentes entre diversas representações indígenas e a direção do órgão, resultando no afastamento e demissão de seu presidente. Por um breve tempo o
governo procurou encontrar uma saída diferente para a realização de uma política indigenista. Com isso, diversos ministérios passaram a exercer ações indigenistas mais abrangentes do que aquelas já consignadas. A partir de setembro, uma nova direção, nomeada pelo presidente da República, com a coadjuvação de indigenistas experientes, passou a dirigir a Funai e dar a ela um rumo mais equilibrado. Nesse meio tempo, diversas organizações não-governamentais vinham observando os acontecimentos e pouco caso faziam para entender o que o governo estava pretendendo. Passaram a fazer críticas acerbas, como se o presidente Lula estivesse deixando de lado seus compromissos históricos em prol dos índios, exigindo medidas drásticas que nunca haviam exigido antes em outros governos.
a Funai tem cerca de 700 funcionários indígenas, entre eles muitos com cargos de função administrativa superior, dirigindo postos indígenas, administrações e coordenações. O quadro atual da entidade é de tão somente 2.177 funcionários. Há 20 anos, quando eram menos de 200 mil índios e menos de 500 territórios reconhecidos, a Funai tinha 5.600 funcionários. Hoje, esse quadro, diminuído em quase dois terços, continua firme no trabalho de apoiar e assistir a mais de 410 mil índios, divididos entre 220 povos, lutando pela demarcação e preservação de 620 terras indígenas, que compreendem cerca de 12,5% do território brasileiro. Não é tarefa simples; ao contrário, exige muito discernimento político e administrativo, bem como dedicação e abnegação por parte dos servidores e daqueles que são convidados a colaborar.
EXIGÊNCIAS
Algumas delas passaram o ano dizendo que, por desleixo, a luta pela terra tinha se exacerbado e que 23 indígenas teriam tombado nas trincheiras dessas disputas. Nesse rol, que a bem da verdade não passa de cinco, contabilizaram todos os tipos de mortes, desde aquelas por atropelamento em estradas, as resultantes de brigas pessoais entre índios e não-índios e até as resultantes de brigas entre índios. Por sua vez, as organizações indígenas também se apressaram a fazer críticas ao governo, exigindo não as apurações de mortes que eles sabem não serem resultado em sua grande maioria de disputas por terras, mas maior participação nos quadros dirigentes da Funai. Com efeito,
CONCURSO PÚBLICO
A participação de índios nos quadros da Funai é desejada. Porém, não em forma de cooptação, como vinha sendo feita, mas dentro dos princípios da administração pública, por competência reconhecida e mediante concurso público, a ser feito para preencher 500 das mais de 3 mil vagas existentes. É por elas que se espera uma nova participação de índios e não-índios interessados em trabalhar pela questão indígena. A Funai é um órgão do Estado brasileiro. Tem obrigações para com os povos indígenas e para com a nação brasileira. Funciona como se fosse um intermediário entre os povos indígenas e a sociedade brasileira em geral. O
papel de tutora, que lhe é conferido pelo Estatuto do Índio (cujo 30º aniversário foi comemorado dia 19 de dezembro de 2003), é que lhe permite exercer essa função. Ser tutora nunca significou um impedimento ao exercício dos direitos de cidadania e aos direitos especificamente indígenas, como já frisou o eminente jurista Dalmo Dallari, e sim um acréscimo de garantia especial do Estado brasileiro para com os interesses maiores dos povos indígenas. Muitas pessoas, inclusive antropólogos, advogados, parlamentares e curiosos em geral, querem retirar esse instrumento jurídico em um novo Estatuto que está para ser discutido nos próximos meses no Congresso Nacional. Acham que não corresponde aos novos tempos em que muitos povos indígenas, sobretudo muitos jovens indígenas educados no sistema educacional brasileiro, se sentem constrangidos, se não inferiorizados, pela idéia de serem tutelados. Criar um novo instrumento jurídico que tenha as funções de defesa dos direitos específicos dos povos indígenas vai ser um repto à inteligência jurídica nacional. A retirada da tutela talvez seja um risco para a defesa daqueles povos que continuam a exercer sua vida cultural nos moldes tradicionais e que ainda não querem se inserir nos meandros da vida política brasileira. RESPONSABILIDADE
A política indigenista do Estado brasileiro não é executada exclusivamente pela Funai. São diversos os ministérios e instituições governamentais que atuam diretamente com os povos indí-
genas. O Ministério da Saúde, através da Funasa, é que cuida das questões da saúde, tendo um orçamento que chega a uma vez e meia o orçamento da própria Funai. O Ministério da Educação cuida da educação indígena. O Ministério do Meio Ambiente tem orçamento de largo espectro para apoiar projetos relacionados ao meio ambiente e à produção econômica. Por sua vez, as organizações não-governamentais têm recursos de diversas ordens que são aplicados em projetos feitos diretamente com os próprios índios, em geral com as associações de lideranças indígenas mais jovens que possuem uma visão mais urbana e integrada (apesar do discurso contrário) com o mundo moderno. Entretanto, quando qualquer coisa dá errado na realização prática de políticas indigenistas, invariavelmente a Funai é a culpada. É preciso que a sociedade brasileira se dê conta de que há outras instituições com atuação indigenista e que conseqüentemente seja capaz de cobrar delas a responsabilidade devida. O Estado se fez responsável pela questão indígena desde 1910. Durante os anos de existência do antigo Serviço de Proteção Indígena (SPI), criado pelo marechal Cândido Rondon, e até recentemente pela Funai (criada em 1967), quase tudo que concernia a problemas de relacionamento entre índios e não-índios estava nas mãos desses órgãos. Hoje não é mais assim. Muitos órgãos têm seu peso na política indigenista e, portanto, exercem atividades pelas quais são responsáveis. As soluções para os graves problemas de demarcação e garantia de territórios indígenas estão ficando cada vez mais exíguas, precisamente pela expansão da agricultura e pecuária em áreas tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. Levantar a voz em prol dessa causa é um ato de nobreza do povo brasileiro. Apontar os equívocos de atuação indigenista de todos os órgãos concernentes, estatais ou privados, é um dever, ao qual deve se seguir o reconhecimento integrado do problema. Ao final, ajudar a buscar soluções é um ato de sabedoria, para o qual conclamamos a todos. O governo Lula é um governo de esperança e de ação. O ano de 2004 confirmará seus propósitos na política indigenista brasileira. Mércio P. Gomes é antropólogo, autor do livro O Índio na História (Vozes 2002) e presidente da Funai Esta semana, excepcionalmente, a seção Debate traz um único artigo. Trata-se da resposta à polêmica iniciada na edição 42, quando foi publicado artigo de Éden Magalhães, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), sobre a política indigenista do governo Lula.
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AGENDA
agenda@brasildefato.com.br
LIVROS AMÉRICA LATINA O FURGÃO DOS LOUCOS O livro, relato do jornalista Carlos Liscano sobre os treze anos em que ficou preso durante a ditadura no Uruguai, mostra como o homem consegue sobreviver às situações mais irracionais e desumanas. Em 1972, Liscano foi preso e torturado, aos 23 anos. Da Editora Garçoni, o livro custa R$ 35. Mais informações: (11) 5073-7398
A PREVIDÊNCIA SOCIAL NO BRASIL O livro reúne textos sobre a história da Previdência Social no Brasil e sua importância como projeto social e programa de inclusão social. Trata também da proposta de reforma da Previdência apresentada pelo governo Lula em 2003, destacando a posição do governo, do PT, da CUT e de estudiosos do tema, além de algumas experiências internacionais sobre Previdência e Seguridade Social. Caderno nº2 da Fundação Perseu Abramo, foi escrito por vários autores. Custa R$ 16. Mais informações: (11) 5571- 4299
NACIONAL TRANSGÊNICOS As entidades que fazem parte da campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos estão pedindo às pessoas que se interessam pelo assunto para enviar mensagens a entidades de defesa do consumidor, reivindicando o fim da campanha publicitária da Monsanto, empresa que produz organismos geneticamente modificados. Nas peças publicitárias, a companhia relaciona os transgênicos à preservação do meio ambiente, ao aumento da produção de alimentos mais nutritivos com menor uso de agrotóxicos e à vida saudável. De acordo com as organizações, essas afirmações não são verdadei pois os riscos dos transgênic ainda não foram suficientem
Cartaz da campanha mundial contra a Alca
avaliados. As mensagens em favor da proibição da campanha publicitária podem ser encaminhadas ao Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar - diretoria@conar.org.br); ao Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça (dpdc@mj.gov.br); à Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias da Câmara dos Deputados (codmm.deco m@camara.gov.br). Mais informações: www.syntonia.com/textos/ textosnatural/textosagricultura/ apostilatransgenicos. PRÊMIO CRIANÇA Estão abertas as inscrições para o Prêmio Criança, da Fundação Abrinq. Podem participar pessoas, organizações sociais ou empresas que tenham contribuído com suas ações para melhoria das condições de vida das crianças há pelo menos um ano. As iniciativas vencedoras serão disseminadas, contribuindo para a implantação de políticas públicas ou estimulando outras ações que transformem positivamente a realidade de nossa infância. As inscrições podem ser feitas até 20 de janeiro. Mais informações: www.fundabrinq.org.br/ premiocrianca
RIO DE JANEIRO I CONCURSO DE PRODUÇÃO TEXTUAL DO OBSERVATÓRIO DE FAVELAS
EXPOSIÇÃO: CÂNDIDO PORTINARI Até final de janeiro - todos os dias, exceto às terças, das 12h às 17h O museu Chácara do Céu expõe cerca de 60 obras do artista, entre as quais ilustrações feitas para uma edição de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Local: Museu Chácara do Céu, R. Murtinho Nobre, 93, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2507-1932
SÃO PAULO MARCO ZERO De 7 a 29 Em homenagem ao aniversário de São Paulo, o evento traz manifestações culturais características do marco zero da cidade, a Praça da Sé. Forró, mágicos, break e repente, entre outros, fazem parte da programação. Programa: dia 12, Jorge Melo; dia 15, Cia dos Tambores; dia 21, Gabriel Levy; dia 26, Tarancón; dia 29, Cacique e Pajé. Todas as apresentações são às 20h, com entrada gratuita. Local: Sesc Consolação - R. Dr. Vila Nova, 245, São Paulo Mais informações: (11) 3234-3000
O século 21 A divulgação das tecnologias desenvolvidas no século 20 foi sempre acompanhada da promessa de que tais avanços contribuiriam para a melhoria do bemestar das pessoas, para a consolidação da paz no mundo e outras tantas promessas raramente cumpridas. A introdução de uma nova tecnologia produz custos – principalmente sociais - que a sociedade pode não estar preparada para assumir e, mesmo assim, por pressões econômicas, assume. O resultado mais cruel dessa política é o aumento da exclusão social, da miséria, da violência, da extrema desigualdade entre os povos e entre as classes sociais. O século 21 mal começa e novas e mirabolantes promessas são feitas para pôr fim às mais implacáveis contradições da atualidade: a miséria, a fome, a ignorância, o desperdício etc. “Por outro lado, aceleram-se os processos de privatização do conhecimento e da pesquisa, da megaconcentração do poder econômico, técnico e militar, e as capacidades de
O Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, em parceria com o Centro de Estudos sobre Segurança e Cidadania (CESeC) e o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (Clam/UERJ), promove o concurso, destinado a universitários. O objetivo é ampliar a compreensão sobre as formas como se articulam as questões da sexualidade, da violência e da justiça em espaços como as favelas. Os trabalhos podem ser inscritos em duas categorias: produção literária (ensaio, conto, novela ou peça teatral) e projetos de monografia/pesquisa. Os autores das três melhores produções literárias receberão bolsas de estímulo à pesquisa durante doze meses e prêmios de R$ 1,5 mil, R$ 1 mil e R$ 500. Os textos serão publicados no livro Sexualidade, Violência e Justiça nos espaços populares do Rio de Janeiro. Inscrições abertas até 15 de março. Mais informações: www.observa toriodefavelas.org.br, contato@obs ervatoriodefavelas.org.br
repressão e de controle sobre os cidadãos”. Há, portanto, de um lado, a promessa das maravilhas que as novas tecnologias irão produzir e, de outro, a montagem de um tal poder repressivo que nos faz crer que o que vem por aí não é nada “cor-de-rosa”. É uma contradição que este livro nos ajuda a entender. CONFIRA O século 21 Pat Roy Moone 224 páginas R$ 10 Editora Expressão Popular (11) 3105-9500 www.expressaopopular.com.br
DANÇAS POPULARES De 10 a 30, 14h Aulas abertas e gratuitas, ao ar livre, com um ritmo diferente a cada final de semana. Local: Sesc Vila Mariana - Pça. de Eventos, R. Pelotas, 141, São Paulo Mais informações: (11) 5080-3000 FORRÓ BODDÓ Dia 16, 21h Na noite de sexta, ritmos para dançar: a banda Forró Boddó apresenta um repertório que vai de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro ao “forró universitário” de Falamansa e Rastapé. Entrada de R$ 2 a R$ 4. Local: Sesc Ribeirão Preto, R. Tibiriçá, 50, Ribeirão Preto Mais informações: (16) 610-0141
SHOW DA QUINTA Até 5 de fevereiro, às quintas, 21h O Sesc Santos traz, na Barraca de Praia, shows dançantes. Dia 8, Via Rock; dia 15, Koala Joe; dia 22, The Sixties, dia 29, Brilho do Samba-Rock; dia 5 de fevereiro, Banda Guernica. Grátis Local: Sesc Santos R. Conselheiro Ribas, 136, Santos Mais informações: (13) 3227-5959 HORAS LAMARTINESCAS Diversos artistas ligados à música e ao humor prestam uma homenagem ao compositor Lamartine Babo, conhecido principalmente por suas marchinhas carnavalescas. Os programas relebram momentos de Lamartine, como sua parti-
cipação no rádio, composições de hinos de times de futebol e a participação no teatro de revista. Ingressos de R$ 3 a R$ 6. Dia 13 - “Trem da Alegria”: Língua de Trapo e Jica y Turcão, com participação especial de Ângela Maria; dia 20 - “América Futebol Clube”: Cometa Gafi e Maria Alcina, além de participação de José Trajano; dia 27 - “Lalá em Revista”: Mário Manga e Banda Paralela, com participação de As Galvão; dia 3 de fevereiro - “Alô Alô Carnaval”: Maurício Pereira e Yvette Matos, com participação especial de Jorge Mautner. Local: Centro Cultural Banco do Brasil - R. Álvares Penteado, 112, São Paulo Mais informações: (11) 3113-3651
MEMÓRIA Agência Estado
REFORMA AGRÁRIA NO BRASIL: HISTÓRIA E ATUALIDADE DA LUTA PELA TERRA O livro, de autoria de Leonilde Servolo de Medeiros, discute a atualidade do tema reforma agrária, apesar de todas as profecias em torno da resolução da questão agrária pela modernização tecnológica do campo. Editado pela Fundação Perseu Abramo, R$12. Mais informações: (11) 5571-4299
ENCONTRO NACIONAL DE LUTA CONTRA A ALCA De 26 a 29 Entre os temas abordados estão: balanço do desenvolvimento das jornadas de Cancún e Miami; estratégias de articulação dos movimentos sociais e outros fatores para processar a luta nos planos nacional e hemisférico contra esse projeto; seguimento ao processo negociador da Alca; debate e construção de alternativas frente a Alca e os acordos bilaterais que os Estados Unidos impõem; avaliação, reflexão e discussão da campanha de luta contra a Alca; dívida e militarização, soberania e autodeterminação dos povos. Na ocasião estarão presentes vários militantes e personalidades da América Latina, Canadá, EUA e países da Europa. Na lista, presenças confirmadas dos presidentes Hugo Chavez e Fidel Castro. Taxa de inscrição: 20 dólares Local: Palácio de Convenções de Havana, Cuba Mais informações: (11) 3259-6466
O historiador e jornalista Clóvis Moura em seu escritório, em São Paulo (SP)
Clóvis Moura mostrou os negros como agentes da história do Brasil Alipio Freire O movimento negro brasileiro contemporâneo perdeu um dos seus mais importantes pensadores. O povo brasileiro perdeu um dos seus bons militantes revolucionários. Dia 23 de dezembro, no Hospital Alberto Einstein, em São Paulo (SP), faleceu Clóvis Steiger de Assis Moura, um piauiense de Amarante, que se criou em Salvador (BA). Nascido em 1925, Clóvis Moura – jornalista e sociólogo – ingressou no Partido Comunista nos anos 40, militando na imprensa partidária na Bahia e depois em São Paulo. Quando da cisão do Partido Comunista Brasileiro, Moura foi dos poucos intelectuais de peso a abandonar as fileiras do PCB e compor o novo Partido Comunista do Brasil, no qual manteve estreita colaboração com Pedro Pomar. Sua trajetória enquanto pesquisador e pensador da questão negra tem início em 1948 quando, aos 23 anos, começa a pesquisa que iria desembocar no livro Rebeliões da Senzala – Quilombos Insurreições Guerrilhas, concluído em 1952 mas que teve de aguardar até 1959 para ser publicado por uma pequena editora – Edições Zumbi. Esse livro marcará nossa historiografia, particularmente no que diz respeito ao papel dos afro-descendentes na história do Brasil. É
a primeira obra onde os negros são tratados como sujeitos ativos dessa história – o que fica claro desde o título. Em 1975 Clóvis Moura criou o Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas e promoveu cursos, debates e outras atividades culturais com e para os militantes do movimento negro que começava a se organizar naquela década. Autor de vários livros e artigos sobre os movimentos populares no Brasil, sua última obra Sociologia Política da Guerra Camponesa de Canudos – Da Destruição do Belo Monte ao Aparecimento do MST foi publicada em maio de 2000 pela Editora Expressão Popular, da qual foi assíduo colaborador. Comunista sem partido, abandonado por vários de seus antigos companheiros, recusou-se radicalmente a compactuar com a orgia neoliberal que se apossou do país e mesmo de amplos setores da nossa outrora esquerda. Assim, no final de sua vida manteve estreitos laços com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O acervo de sua biblioteca de pesquisador e estudioso encontra-se hoje no Rio de Janeiro, no prédio restaurado do antigo Ministério da Educação, em espaço que leva seu nome. Como afirmou o historiador gaúcho Mário Maestri, via internet, Clóvis Moura “sempre deu a impressão do chá inglês de latinha. Sempre igual! Sempre bom!”
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CULTURA
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ARTES PLÁSTICAS
Gravuras retratam os sem-direito Divulgação
Rogério Mourtada, de Campinas (SP), desenvolve nova técnica e tem trabalhos publicados na Agenda do MST-2004 Alipio Freire de São Paulo (SP)
C
erca de um ano atrás, um crítico de arte, durante uma descuidada passadinha pela repartição onde está lotado, deparou-se com uma gravura de Rogério Mourtada. Ao ser informado do que se tratava, esbravejou: “Gravura em gesso não existe. Isso é um escândalo. Tirem isto da minha frente”. O trabalho foi retirado da parede. Negou as evidências: estava frente a uma gravura feita a partir de uma matriz de gesso e negava que existissem gravuras em gesso, da mesma forma que, até as três primeiras décadas do século passado, não existiam gravuras em matrizes de linóleo. Picasso fez sua hoje célebre série de touradas recortando linóleo. Então, elas passaram a existir. As gravuras são feitas em um ateliê bem pequeno, uns cinco metros quadrados. Mas tudo tem uma certa ordem: latas para fôrmas de gesso, matrizes, entalhadeiras, tintas, pincéis. De um lado estão algumas telas, trabalhos antigos hoje suspensos, para serem retomados no futuro. O trabalho de Rogério Mourtada sustenta-se sobre três pilares, sendo que o terceiro diferencia o artista não apenas dos gravadores seus contemporâneos, mas da própria história da gravura desenvolvida a partir da Europa. Primeiro, a busca da coerência entre técnica, material escolhido e temática que desenvolve. Segundo, as matrizes em gesso – material de pouca resistência para a impressão múltipla e precisa de um mesmo entalhe. As matrizes em gesso foram pensadas e criadas pelo próprio artista, que prossegue pesquisando novas ligas e soluções para seu aprimoramento.
Tema e técnica se misturam na obra de Mourtada. Utilizando matrizes de gesso como matéria-prima para suas gravuras, o artista paulista retrata a exclusão social através de uma técnica ao alcance de todos
do, de Augusto Boal. Nesse roteiro, Mourtada – que abandonara a Faculdade de Direito aos 21 anos para se tornar artista plástico – seleciona materiais, técnicas e constrói seu programa de trabalho e linguagem.
NOVIDADE Terceiro – e talvez o mais desconcertante para muitos –, é a utilização dessas matrizes em sentido diverso daquele tradicionalmente assumido pela gravura, o de multiplicar um mesmo trabalho, de reproduzir de forma idêntica um mesmo discurso plástico/gráfico fechado. Mourtada transforma as impressões de suas matrizes de gesso em “palavras”, “ideogramas”, “pictogramas”, “signos”, “anotações mais ou menos breves” e até “carimbos”. Utilizadas sempre em novos contextos criados com o auxílio da pintura e do desenho; de pontos, linhas e planos; de massas compactas e transparências, se aco-
MATERIAL DEMOCRÁTICO plam, se misturam, se baralham e se reorganizam criando um novo. É bem verdade que, no interior de São Paulo, há pouco mais de meio século, Cândido Portinari já coloria a lápis pelo menos sua série de gravuras sobre o Quixote. Mas o procedimento estava ainda ancorado de certo modo na tradição das gravuras aquareladas, comuns
sobretudo no século 19. De todo modo, é sempre bom ter em mente que o século 20, desde seus primeiros anos, se dedicou com afinco à
desconstrução dos conceitos e cânones das Belas Artes consolidados pelo século 19, o que saudosistas tentam recuperar, mesmo que disfarçadamente.
CONDENADOS À MORTE O tema de Rogério Mourtada é um mundo dos humilhados e dos ofendidos, dos excluídos pela miséria ou pelos padrões de normalidade vigentes. Ele retrata os moradores de rua, pivetes, prostitutas-meninas, prostitutas pobres em geral, adolescentes grávidas, as vítimas do crime organizado e da polícia, idosos, mendigos, homossexuais, xifópagos, portadores das mais diversas deficiências físicas e mentais, dependentes químicos, índios, negros e mestiços. São todos aqueles para cuja sobrevivência os neoliberais e a modernidade conservadora garantem não haver riqueza suficiente no mundo. Todos aqueles que, segundo essas doutrinas, estão fora dos 30% a cujo bem-estar dirigem os esforços de suas políticas econômicas. Os condenados à morte por um programa de genocídio aplicado com base em uma nova eugenia. Mourtada os conhece bem. Durante cerca de um ano, ele ministrou oficinas de artes plásticas para crianças e adolescentes de rua, num projeto desenvolvido por uma organização não-governamental de Campinas (SP). Ali, a regra era a de muitos dos seus alunos desaparecerem repentinamente das oficinas, para em seguida serem encontrados assassinados por grupos de extermínio ou recolhidos em casas correcionais ou prisões. Antes, já fizera uma incursão em experiências do Teatro do Oprimi-
O gesso surge da necessidade não apenas de um material barato onde gravar uma matriz. É também um material dúctil, para cuja gravação podem ser criadas, com alguma facilidade, pelo próprio artista, ferramentas a partir de arames, metais variados, velhas lâminas, madeiras (ou relevos e incisões originados de tramas, tecidos ou qualquer outro material cujas reentrâncias e saliências sejam passíveis de se tornar textura no gesso úmido). A escolha do suporte (cartão duplex preto) segue a mesma diretriz, bem como a definição do guache branco para impressão, desenho e pintura. “Se posso tomar um homem por tema, esse mesmo homem tem o direito de ser sujeito da mesma ação que desenvolvo quando o tomo por objeto. E esse não é um problema apenas de distantes secretarias de educação ou de cultura, ou de remotos ministérios”, diz.