Ano 1 • Número 47
R$ 2,00 São Paulo • De 22 a 28 de janeiro de 2004
Fórum fortalece movimentos sociais Antônio Milena/ABR
Com participação massiva de asiáticos, encontro na Índia traça estratégias de combate a políticas neoliberais
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ealizado na Ásia justamente para ampliar as articulações dos movimentos sociais de todo o mundo, o 4º Fórum Social Mundial, de 16 a 21, em Mumbai (Índia), reuniu cem mil participantes de mais de 130 países. O encontro discutiu formas de resistência à globalização e à militarização. O Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz criticou as políticas liberalizantes do Fundo Monetário Internacional (FMI). A Via Campesina defendeu a soberania alimentar. “Um país que não protege sua agricultura está condenado ao fracasso”, afirmou em palestra a líder semterra Itelvina Massioli. Págs. 2, 9 e 10
Governo paulista despeja 500 pessoas Dia 20, o governo do Estado de São Paulo despejou 97 famílias de um prédio ocupado, no centro da capital. Os sem-teto reclamam de insensibilidade das autoridades, “irredutíveis nas negociações”. Eles prometem manter a luta pacífica enquanto aguardam uma solução prometida pela prefeitura. Pág. 3
Mais de 100 mil ativistas reforçam a aliança contra a globalização, no 4º Fórum Social Mundial, realizado em Mumbai, Índia
“Não existe hegemonia permanente. Somos capazes de construir um projeto que inclui Caracas, Brasília e Buenos Aires e passa por essa aliança”, afirmou Darc Antonio da Luz Costa, vice-presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), em seminário no Rio de Janeiro, dia 16. O presidente do banco, Carlos Lessa, disse que o Brasil vive a dificuldade de “uma sociedade estigmatizada pela escravidão em traçar projetos de desenvolvimento, pois o projeto das elites é apenas para as elites”. Para o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, os países periféricos são geridos por agências financeiras interessadas em garantir o pagamento da dívida externa. Parmalat - Transnacional quebra, depois de fraude financeira, e vira problema para sindicatos e governo. Pág. 6
Família Sarney mantém pobreza no Maranhão Há 38 anos, a família do senador José Sarney (PMDB-AP) controla o Maranhão, Estado recordista em desigualdade social. O Maranhão tem 24 das 47 cidades mais pobres do Brasil e a maioria (68%) da população encontra-se abaixo da linha da pobreza, vivendo com menos de R$ 80. Sarney administra sua hegemonia dominando o maior número possível de partidos e os principais meios de comunicação, como a TV Mirante, afiliada da TV Globo. A recente aproximação entre o governo federal e o esquema Sarney causou perplexidade a setores da esquerda. “Não posso me aliar a alguém que quer o oposto do que quero”, comenta o professor Dalmo Dallari. Pág. 8
MST comemora 20 anos de luta Cerca de 1.200 pessoas participam, em São Miguel do Iguaçu (PR), do encontro nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em que são definidas estratégias
para a luta pela terra. A reunião é histórica: comemora os 20 anos do MST exatamente onde o movimento começou, com uma ocupação de fazenda do falido Banco Bamerindus. Transfor-
mada no produtivo assentamento Antônio Tavares, a área é hoje uma das mais ricas do Estado. O MST já é responsável pelo assentamento de 350 mil famílias. Pág. 7 Douglas Mansur
BNDES defende alianças na América Latina
MST celebra 20 anos de luta pela reforma agrária e em defesa de um projeto popular para o Brasil
E mais: ORIENTE – Giulliana Iukhan, uma brasileira na Palestina há quase dois anos, conta a situação dos árabes na região. “A vida é um inferno e qualquer atividade que se pretenda realizar depende da boa-vontade e do humor de soldados de 18 anos”, constata. Pág. 12 ÁFRICA – Em entrevista, Maria Alice Mabota, da Liga dos Direitos Humanos de Moçambique, comenta o acesso à Justiça em um dos países mais pobres e corruptos do mundo. Segundo ela, no início de seu trabalho, poucos tinham ouvido falar em direitos humanos. Pág. 13 DEBATE – Reinaldo Gonçalves discute um projeto para o Brasil. Para ele, em 2003, a gestão macroeconômica de Lula variou de medíocre a trágica. Pág. 14
Diocese acusa prefeitura de apoiar seqüestro Contrária à homologação da área indígena Raposa-Serra do Sol, a prefeita de Uiramutã (RR), Florany Mota, está sendo acusada de participar do seqüestro dos três missionários do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ocorrido dia 6. A denúncia foi feita pela Diocese de Roraima e encaminhada às executivas Estadual e Nacional do Partido dos Trabalhadores. No Mato Grosso do Sul, cerca de 2 mil Guarani Kaiowá prometem resistir à perseguição de fazendeiros e às ameaças do governo. Pág. 3
Agricultores recuperam semente crioula Pág. 4
Médicos cubanos atuam em morros da Venezuela Pág.11
São Paulo: 450 anos de diversidade Pág. 16
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De 22 a 28 de janeiro de 2004
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Tiago Rodrigo Dória • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
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NOSSA OPINIÃO
A importância de Mumbai
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Fórum Social Mundial chegou à Índia, neste ano. Em sua quarta edição, o encontro teve como principal objetivo buscar uma maior aproximação dos movimentos sociais asiáticos com a articulação internacional contra o neoliberalismo. E, ao mesmo tempo, as demandas sociais dos indianos, submetidos a uma opressão social e religiosa, puderam incorporar a diversificada agenda do Fórum Social, contribuindo ainda mais para qualificar esse importante espaço de debates. Antes de chegar ao continente asiático, o Fórum percorreu uma trajetória de acúmulo de forças no Brasil. Desde a primeira edição, em 2001, quando 20 mil pessoas se reuniram em Porto Alegre, até 2003, com a participação de 100 mil pessoas de 123 países nas atividades, o Fórum Social foi se consolidando como um espaço de aglutinação. Entre as questões debatidas na Índia, nenhuma é irrelevante para o futuro da humanidade. Em 2004, os assuntos mais discutidos foram a soberania alimentar, o acesso à terra, a militarização, a democratização da
mídia, os novos desafios no mundo do trabalho, o problema da água e, como não podia deixar de ser, os efeitos nefastos da globalização. Evidentemente nada disso apareceu na grande imprensa e quem quis se informar sobre o teor dos debates teve de acessar a página oficial do evento na internet (www.forumsoci almundial.org.br) ou veículos da imprensa crítica, como Brasil de Fato. Além da importância dos temas debatidos, a verdade é que, ano a ano, o Fórum Social Mundial vai se tornando um grande aglutinador dos movimentos sociais, de organizações não-governamentais e de militantes que lutam por uma nova racionalidade para organizar a existência dos povos no nosso planeta. É óbvio que a busca por este novo padrão de coexistência não é algo que se consiga em um encontro de poucos dias. Ao contrário, deverá, como bem lembra o professor Francisco de Oliveira, demorar muitos Mumbais. Neste momento, o mais importante não é a busca do consenso, mas o acúmulo das discussões e a troca de experiências entre os
lutadores do povo. Ao contrário da globalização financeira e comercial, esse internacionalismo, sim, interessa muito, e renderá frutos no futuro. A riqueza do Fórum Social Mundial está justamente na sua diversidade, que permite até, como se viu na Índia neste ano, a criação de um Fórum paralelo para criticar a falta de “combatividade” do evento oficial. É deste confronto saudável de idéias e experiências distintas que o Fórum cresce e se afirma como centro aglutinador de uma agenda alternativa para o futuro do planeta. Não é pouca coisa. O Fórum Social é um espaço importante. Não é, não quer ser, não pode ser uma organização internacional. É um espaço de debates onde o mais importante é incentivar a discussão, primeiro, sobre os dilemas da humanidade e, depois, estimular a articulação de círculos internacionais. Mas é em cada país que a luta tenderá a aumentar, cada um a seu jeito e cultura, contra um inimigo comum: o capital dos Estados Unidos e sua máquina de guerra.
FALA ZÉ
OHI
CARTAS DOS LEITORES EDUCAÇÃO Primeiramente gostaria de parabenizá-los pela excelente produção jornalística que é o Brasil de Fato. Produção essa mais que necessária diante da qualidade da mídia que temos em nosso país. Gostaria também de ressaltar a importância que deve ser dada para o tema da educação. Como estudante de pedagogia, acredito que seja necessário provocar um debate de toda sociedade brasileira sobre a necessidade de uma educação pública de qualidade, que inclua todos os segmentos sociais sejam sem-terra, índios, negros, ciganos e outros. O jornal poderia trazer como matéria um panorama da educação atual no país. Acredito que esse tema ainda seja pouco explorado pela imprensa, principalmente no quesito da credibilidade. Natalino Silva Belo Horizonte (MG) AGRICULTURA A crise da “vaca louca” atinge os Estados Unidos pouco tempo depois da Comunidade Européia ter começado a restringir as importações de carne daquele país. Está na hora de os estadunidenses fanáticos infiltrados no governo entenderem que se a nossa bem-sucedida agricultura se pautar pelo que querem que façam os seus concorrentes do Norte, teremos o mesmo destino deles, e um outro país ocupará a posição hoje ocupada pelo Brasil de exportador de produtos naturais e saudáveis. Reny Barros Moreira São Paulo (SP) RELIGIÃO E ALIENAÇÃO Há pouco tempo conheci por acaso numa banca de jornais o Brasil de Fato, comprei, li e gostei do conteúdo. Em
tempos em que a nossa esquerda anda mais neoliberal do que na era FHC, faz-se necessário uma voz alternativa à grande mídia. É uma pena que o povão prefira comprar jornalecos como o Agora e aquela baboseira alienante chamada Lance. Por sorte estamos livres do extinto Notícias Populares e suas reportagens “Gilgomescas”. No Brasil, a maioria das pessoas tem repulsa à política, o que é lamentável, parece que a grande migração dos fiéis católicos para as igrejas (neo) pentecostais tornou nossa população ainda mais submissa e alienada do que no passado. Como observa o sociólogo François Houtart, a religião do neocolonizador tem como princípios “a substimação e menosprezo da religiosidade dos povos do Terceiro Mundo, sendo esta considerada como reflexo de sua inferioridade nacional e étnica. Imposição e evangelização como parte da violência permanente que caracteriza o processo de colonização, impondo uma dominação sobre as consciências. Utilização de numerosas instituições religiosas existentes como mediadoras para obter, ampliar e aprofundar o consenso da exploração capitalista, reforçando o conformismo com a realidade terrena. Neutralização do potencial de rebeldia dos povos”. Infelizmente temos que combater a religiosidade (embora ela pareça fazer parte da essência humana). Perdemos muito com a neutralização da rebeldia popular, esta de fato poderia realizar transformações em nosso país e as religiões, especialmente as evangélicas, têm trabalhado no sentido oposto às verdadeiras necessidades do povo. Márcio Ribeiro de Campos por correio eletrônico
Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 3038 1432 ou mande uma mensagem eletrônica para: brasildefato@teletarget.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815
CRÔNICA
O futebol e a paz mundial Renato Pompeu Segundo o site eletrônico americano www.aldaily.com, o futebol foi indicado como candidato ao Prêmio Nobel da Paz. Não fica claro se é uma indicação oficial ou não, ou apenas uma sugestão, mas, embora a proposta possa surpreender muita gente, ela é muito adequada. O futebol, como espetáculo simbólico, representa os mais nobres sentimentos da humanidade, relacionados com a democracia, a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Ele pressupõe direitos humanos básicos, como o direito de ir e vir, a igualdade de todos perante a lei, independentemente de etnia ou renda. No futebol todos os jogadores podem caminhar livremente pelo gramado, todos têm os mesmos direitos e os mesmos deveres. A fama do futebol brasileiro em todo o mundo é um dos fatores que privilegiam o Brasil como porta-voz dos anseios mundiais. Pois, além de estar numa posição estratégica, como intermediário entre os países ricos e os países pobres – no Brasil convivem um país de ricos e vários países de pobres, verdadeira imagem em miniatura do planeta – o nosso país goza da simpatia mundial em
todos os quadrantes da Terra. O Brasil não é conhecido como país explorador ou como país agressor, e sim pelo seu futebol, a sua música e suas telenovelas, além, é claro, de sua mestiçagem. Não é à toa que seja um presidente brasileiro, Lula, a propor o estabelecimento de um imposto sobre as transações financeiras internacionais, cuja renda seria aplicada na assistência aos países pobres e aos pobres de todo o mundo. O Brasil é levado a sério pelo resto do mundo, não por ser um país poderoso economica ou militarmente, sim por ser conhecido, através de suas diferentes artes, entre as quais o futebol ocupa um lugar preponderante, pelo pacifismo de suas intenções. Por isso mesmo, a nossa diplomacia poderia aproveitar melhor essas facetas de nossa cultura para conseguirmos aprimorar a convivência entre os povos. Por exemplo, o Brasil poderia organizar um torneio de futebol de que participassem times israelenses e palestinos, além de brasileiros; ou um desfile de escolas de samba em Jerusalém tendo como tema a paz entre esses dois povos; ou exibir uma telenovela em que moços judeus e moças
judias namorassem moças árabes e moços árabes. Pois isso acontece de fato por aqui e acontece de fato em Israel e na Palestina, o problema é dar voz a quem não tem. As nações que não têm Estado – os curdos, os palestinos, os assírios – torcem todas pelo Brasil na Copa do Mundo, da qual não podem participar. Isso é uma indicação de que os povos oprimidos da Terra podem torcer pelo Brasil em todos os sentidos da vida, em especial rumo à globalização da democracia e dos direitos sociais. Não existe nação mais internacional do que o Brasil – há cinco mil jogadores de futebol brasileiros jogando fora do país, em todos os cantos do mundo, da Sibéria à Índia. É de se desejar que, de nação internacional, o Brasil passe a ser uma nação internacionalista, como já o são o seu futebol, a sua música popular e as suas telenovelas. Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor, entre outros livros, de Canhoteiro, o Homem Que Driblou a Glória (Ediouro) e de Memórias de Uma Bola de Futebol (Editora Escrituras). Escreve uma vez por mês neste espaço.
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NACIONAL MORADIA
Governo paulista despeja 500 sem-teto Luís Brasilino da Redação
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governo do Estado de São Paulo acaba de agravar ainda mais a crise habitacional na capital. No dia 20, por meio da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), despejou as 97 famílias que ocupavam o Edifício Almeida, no centro da cidade. Antes de serem transferidas para um alojamento provisório, onde poderão ficar no máximo um mês, os moradores prometiam: “Não acamparemos na rua, vamos morar nela mesmo”. A afirmação foi de Ivaneti de Araújo, coordenadora geral do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) e moradora da “Ana Cintra”, nome da rua onde fica o imóvel e pelo qual a ocupação ficou conhecida. Segundo Fernando Batistuzo, superintendente da CDHU, o imóvel será reformado e entregue a 70 famílias de baixa renda que atualmente vivem em cortiços. Para os cerca de 500 moradores despejados, dos quais 143 crianças e mais de 30 idosos, o governo estadual não ofereceu opção, exceto o uso de albergues da prefeitura, em geral superlotados e sem estrutura para abrigar famílias inteiras. Provisoriamente, a companhia transferiu os sem-teto para pequenos hotéis no centro da cidade. “Com meu salário (de cozinhei-
Anderson Barbosa
As 97 famílias que ocupavam um edifício na capital do Estado são desalojadas e, juntas, prometem resistir na rua
Reintegração de posse no edifício da rua Ana Cintra, em São Paulo, onde há 420 mil domicílios vazios ou ociosos
ra) não dá pra pagar uma moradia. Defendo que é lutando que se conquista, mas preocupo com meus filhos”, afirma Maria da Glória Quaresma, que até dia 20 recebia suas cartas no apartamento 42 do Edifício Almeida. Manoel Del Rio, advogado dos moradores e do MSTC, fica indignado quando fala da lista de espera por casas da CDHU. “Direito não tem fila, é para quem luta
por ele”, exclama. Ivaneti também não consegue se conformar com a atuação do governo do Estado, que segundo ela foi irredutível durante toda a negociação.
RESPONSABILIDADE O vereador paulistano Nebil Bonduki (PT-SP) explica que o Edifício Almeida era uma alternativa para as famílias que lutavam por
420 mil domicílios vazios ou ociosos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No caso da Ana Cintra, o governo do Estado promete não voltar atrás, numa atitude que, na opinião de Del Rio, atenderá apenas famílias que não participaram da luta pelo Edifício Almeida. No entanto, os ocupantes prometem continuar unidos e mobilizados. Segundo Ivanete, estão se organizando para morar na rua, todos juntos. “Enquanto eu existir, a luta continua. Ficarei com o movimento, contanto que o processo seja pacífico e civilizado”, afirma Maria da Glória, dando como exemplo de bom comportamento a reintegração de posse da Ana Cintra.
moradia definitiva. “O problema, agora, é para onde vão as famílias em curto prazo. A insensibilidade da CDHU é muito grande”, diz. Para ele, como os sem-teto ocupavam um imóvel de uma companhia estadual, a responsabilidade não pode ser transferida para a prefeitura. Na capital paulista, calcula-se que o déficit habitacional é de 565 mil moradias, apesar de existirem
POVOS INDÍGENAS
Prefeitura do PT pode estar envolvida em seqüestro O anúncio da homologação das terras indígenas Raposa-Serra do Sol, no interior de Roraima, continua a gerar conflitos. As executivas Estadual e Nacional do Partido dos Trabalhadores estão checando as denúncias sobre a utilização de um caminhão da prefeitura do município de Uiramutã, que fica dentro da área indígena, no seqüestro de três religiosos. O caso aconteceu dia 6, com a prisão em cárcere privado do padres Ronildo Pinto França e Cézar Avellaneda e do irmão Juan Carlos Martinez. O envolvimento da prefeitura ficou evidente quando os missionários e testemunhas deram seu depoimento afirmando que um caminhão com a inscrição da prefeitura de Uiramutã transportou os seqüestradores até a missão Surumu e, em seguida, um dos padres seqüestrados para a maloca do Contão. Uiramutã é administrada pela prefeita Florany Mota, filiada recentemente ao Partido dos Trabalhadores (PT) e que já se pronunciou publicamente contrária à homologação da área. O presidente do diretório municipal do PT, Flávio Bezerra, tentou encontrar justificativas para o caso: “Aqui no Estado, a situação é muito complicada. Infelizmente, funcionários públicos às vezes até levam o carro para casa. Não há controle. De fato, o carro foi utilizado pelos manifestantes, mas sem o consentimento da prefeita”, alegou. A denúncia sobre o uso do veículo oficial em sequestro também foi reafirmada pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) . Os indígenas favoráveis à homologação das terras acreditam que a prefeitura do município teria interesse no assunto porque, com a demarcação, a cidade de Uiramutã poderia desaparecer, já que se encontra dentro da área indígena. Um comunicado enviado pela Diocese de Roraima ressalta a posição da prefeita, enquanto o PT de Roraima anunciava, publicamente, ser favorável à demarcação em área contínua. Na opinião de Bezerra, os pro-
Agência Estado
da Redação
Weissenstein considera ainda que, provavelmente, a minoria dos indígenas esteja ligada aos grandes fazendeiros da região. “É difícil de comprovar. Mas a gente acha que fazendeiros, arrozeiros, comerciantes e políticos locais estejam por trás das ações dos índios contrários a essa assinatura. O que a gente sabe é que o Conselho, que controla a maioria das malocas lá dentro, tem mais de 70% de apoio”.
FORÇA POLÍTICA
Desde a década de 60 tentam expulsar os índios dessas terras, que estão demarcadas oficialmente como sua propriedade
blemas que estão sendo gerados na região, sobretudo na área RaposaSerra do Sol, são provenientes da falta de informação. Ele acusou o Conselho Indígena de Roraima (CIR) e o governo do Estado de não se preocuparem em explicar como será feita a homologação – prevista para ser assinada assim que todas as partes estiverem satisfeitas.
Diante de tantas divergências e conflitos que vêm ocorrendo na área de Raposa-Serra do Sol, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Estado afirma que, mesmo havendo divisão entre os povos indígenas, 75% deles – de um total de 15 mil indígenas que moram na região – são a favor da homologação em área contínua.
Segundo o coordenador da CPT, Ralf Albert Weissenstein, apenas 25% dos índios são contrários à assinatura da homologação, anunciada pelo Ministério da Justiça e confirmada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Os 75% dos indígenas são vinculados ao Conselho Indígenas de Roraima (CIR) e favoráveis à homologação”, disse.
Em Roraima, mais precisamente na capital, Boa Vista, o tratamento dado pela imprensa local é claramente baseada na posição contrária à homologação por parte, sobretudo, de muitos políticos e do próprio governo do Estado. “Nos dois jornais mais importantes (Brasil Norte e Folha de Boa Vista) políticos se posicionam contra a homologação Raposa-Serra do Sol em área continua. O interessante, agora, é que o governador (Flamarion Portella) não aparece mais tanto na mídia local com relação a esse assunto. Quem mais tem se posicionado, de forma contrária, é o vice-governador, Salomão Cruz”, revela o coordenador da CPT. (Com agências)
Os Guarani prometem resistir a desocupação da Redação Continua tenso o conflito entre indígenas Guarani e fazendeiros do Mato Grosso do Sul. Diante da ameaça de serem despejados das fazendas que ocuparam, os índios prometem resistir, mesmo sob ameaça do governo do Estado e dos proprietários de terra. Segundo dados do governo, desde o final do ano passado a área total invadida chega a 1.250 hectares. Cerca de 2,5 mil índios estão envolvidos no conflito. Desse total, 800 vieram do Paraguai. Os Guarani reivindicam ampliação e demarcação das terras no Estado. O conflito está sendo marcado por violência. Na semana passada,
houve tiroteio entre índios e fazendeiros. Mércio Pereira Gomes, presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) deve ir ao Estado para tentar fazer com que os guaranis desocupem as fazendas.
ALTERNATIVAS Está sendo tomada outra medida para tentar amenizar o conflito: a criação de um grupo de trabalho para buscar soluções definitivas para os impasses rurais no Estado. Curiosamente, o grupo seria formado por representantes da Funai, da Assembléia Legislativa, do Congresso Nacional, dos governos estadual e federal e produtores. Comunidades indígenas e representantes de movimentos indigenistas
não foram convidados. A situação de impasse em que vivem os povos Xavante, no Estado do Mato Grosso, que estão lutando pela posse de sua terra, fez com que o bispo dom Pedro Casaldáliga, da Prelazia de São Félix do Araguaia, que vem recebendo várias ameaças de morte, divulgasse uma carta onde agradece as manifestações de solidariedade. Na carta, dom Pedro afirma que não há uma situação oficial definida e que, no dia 23, o governador do Mato Grosso, Rogério Salles, visitará a área em conflito. No dia 29, haverá uma audiência judicial para discutir o assunto. “Não vou escrever, detalhadamente, os antecedentes e a causa
do conflito. Lembro, apenas, que os índios Xavante foram deportados dessa área na década de 60, em aviões da Força Aérea Brasileira, e que por conta dessa deportação morreram 90 índios de sarampo, doença para a qual não tinham defesas”, escreveu. Segundo o bispo a área é, oficialmente, reconhecida como indígena, demarcada e homologada, mas foi ocupada e vendida por diversas empresas que impedem, assim, o retorno dos índios às suas terras. Recentemente, cerca de 14 fazendas foram invadidas por três mil indígenas. No final da semana passada, a Justiça Federal determinou a desocupação das terras pelos índios. (Com agências)
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NACIONAL SEGURANÇA ALIMENTAR
Agricultores criam banco de sementes Claudia Jardim da Redação
Arquivo JST
Movimentos sociais desenvolvem projeto que garante reprodução de sementes crioulas e combate a transgênicos
B
“Conscientizar o produtor significa preservar as sementes que eles carregam há 20, 30 anos, que eram de seus pais, avós”
Contudo, o interesse das indústrias de biotecnologia em dominar a biodiversidade dos países do Hemisfério Sul - que detêm cerca de 80% do germoplasma de todo o planeta - tem colocado em risco esse trabalho.
ESCASSEZ DE ALIMENTOS O processo de melhoramento feito por essas empresas, substituindo sementes crioulas por híbridos ou transgênicos, tem acelerado o processo de extinção de cultivares e de dominação da produção agrícola mundial. “Por meio de leis, agora as transnacionais tentam se apropriar do resultado de melhoramento das sementes, resultado da ação da humanidade com a natureza”, critica Corrêa. Cerca de 70% de toda a humanidade baseiam sua alimentação em oito variedade de sementes, enquanto as populações indígenas se alimentavam diariamente com mais de mil tipos de variedades de hortaliças e grãos. “Essa redução significa um risco à cultura. Se
perdemos a cultura, perdemos os povos”, avalia Zucchi.
VANGUARDA OU RETROCESSO? O debate sobre a preservação de sementes crioulas e agroecologia questiona diretamente o modelo agrícola brasileiro, essencialmente voltado à monocultura para atender aos mercados internacionais. Em 2003 o Brasil atingiu o ranking de maior exportador de grãos do mundo, destinados na maior parte para a alimentação de gado na Europa. “A agricultura tem
sido conduzida de forma desequilibrada, não se pensa na alimentação dos brasileiros. Temos de romper com a idéia de que a produção de sementes crioulas é um atraso, pois se trata de segurança alimentar”, afirma o coordenador do MPA. Ele complementa. “É preciso resgatar em toda a sociedade a preocupação com a qualidade e segurança dos alimentos. Não vivemos só de soja”, critica. Ciro Corrêa acrescenta “A agroecologia pode matar a fome dos produtores e abastecer o comércio local”.
Fotos: Sind. Trabalhadores Rurais - Anchieta / SC
anco de sementes. Essa é uma das alternativas que movimentos sociais do campo encontraram para impedir que a diversidade das sementes, já sob ameaça, se reduza por completo. A campanha de preservação das sementes crioulas combate o que especialistas e agricultores temem com a introdução dos transgênicos na agricultura: homogeneização das cultivares e dos alimentos. Para garantir a biodiversidade os produtores estão montando bancos que funcionarão como local de proteção das sementes crioulas. O engenheiro agrônomo Ciro Corrêa, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), explica o processo: o agricultor cultiva, em uma lavoura comunitária, algumas variedades. Recebe do banco, por exemplo, 10 quilos de semente. Na safra seguinte, devolverá pouco mais do que os 10 quilos que recebeu. “Com isso garantimos que as variedades não sejam extintas, ressurgem novas cultivares e gradativamente mais famílias terão acesso a um volume maior de variedades, até chegar à autonomia”, analisa Corrêa. A meta do MST, que integra a campanha lançada pela Via Campesina no Fórum Social Mundial 2003, é criar um banco de sementes em cada Estado até o final deste ano. Os agricultores ligados ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), que também participam da campanha, nos últimos anos resgataram inúmeras sementes que estavam em processo de erosão (quando perdem sua capacidade produtiva). “Conscientizar o produtor significa preservar as sementes que eles carregam há 20, 30 anos, que eram de seus pais, avós”, explica Cledecir Zucchi, da coordenação do MPA.
A opinião do diretor da Associação Brasileira de Sementes, Claudio Manuel da Silva, reflete o conflito de interesses dos grandes produtores, que têm investido no crescimento da monocultura de grãos. Para ele, o melhoramento de sementes realizado pelos pequenos agricultores não traz resultados importantes, pois não é compatível com a alta produtividade exigida pelo agronegócio. “A homogeneização pode até vir a ocorrer, mas é preciso pensar nas sementes que dão maior retorno. O trabalho dos pequenos agricultores não é significativo”, avalia Silva. No entanto, o engenheiro agrônomo do MST explica que o processo de agroecologia é mais rentável a longo prazo, além de preservar o ambiente. “Tendência da monocultura é a degradação do solo, que em 5 a 6 anos está comprometido. Com isso o agricultor passa a usar mais veneno. A agroecologia em um primeiro momento tem produtividade menor, mas com o tempo incrementa a produtividade, diferente do agronegócio e da monocultura”, rebate Corrêa. Vanguarda ou não, o fato é que, semelhante à crescente recusa aos transgênicos, o mercado internacional tem se interessado pelos produtos orgânicos produzidos pelo país. O Brasil exportará alimentos orgânicos para o Japão, o que representará o crescimento da participação brasileira em um mercado que movimenta 30 bilhões de dólares anuais.
Lei de biossegurança favorece ruralistas A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) ganhará superpoderes e a sociedade civil será mantida à margem das discussões sobre biotecnologia. Isso é o que diz o relatório do projeto de Lei de Biossegurança, apresentado pelo deputado Aldo Rebelo (PC do BSP) na convocação extraordinária do Congresso, no dia 20. Diferente do texto original, defendido pelo governo, a CTNBio ganha poder deliberativo sobre as pesquisas com organismos geneticamente modificados (OGM), e decidirá se deve solicitar a realização de estudos de impacto ambiental, o que viola o artigo 225 da Constituição. “O projeto foi completamente desvirtuado. O princípio de precaução e a participação da sociedade civil foram eliminados. Isso é uma ameaça à soberania nacional”, critica o deputado federal João Alfredo (PT-BA). Um dos aspectos mantidos, e que minimamente poderia limitar a entrada dos OGMs no país, o Conselho Nacional de Biossegurança (CNB), foi duramente criticado pela bancada ruralista. O deputado Roberto Freire (PPS-PE) afirma que o CNB não será respeitado. “Não faz sentido os ministros interromperem suas tarefas para discutir o plantio do feijão transgênico”, ironiza o deputado, principal porta-voz dos transgênicos no Congresso. Outra questão que surpreende foi a limitação do papel da sociedade nas decisões. Agora, para compor a CTNBio, o representante tem de ser cientista; caso contrário, não poderá opinar. Freire também comemora a
quebra de mais essa barreira e provoca: “Desde quando movimento social pode decidir se transgênico faz mal? Se é assim, vão poder dizer qual remédio eu devo tomar”. O deputado estadual Edson Duarte (PV-BA) rebate e denuncia os preconceitos com que o tema é tratado na Câmara. “Essa discussão interessa a toda a sociedade, que sofrerá as conseqüências de uma possível contaminação com os transgênicos, não somente os cientistas”, avalia Duarte, para quem a mudança no relatório indica possível aval do governo. “Imaginávamos que o (Aldo) Rebelo defenderia o projeto original. Se o governo lavar as mãos ficará claro que participou deste fazde-conta para agradar os ministros que defendem a precaução”, critica. Os deputados antes favoráveis ao PL e que agora vêem a bancada ruralista em festa pretendem retirar da pauta da Convocação Extraordinária a votação do texto na Câmara, adiada para a próxima semana.
O Movimento dos Pequenos Agricultores também participa da campanha de preservação das sementes crioulas
Milho envenenado pode ir para a mesa da Redação Em 2004, o Conselho Europeu de Ministros deverá decidir se aprova o plantio e a comercialização para consumo humano do milho “Bt 11”, produzido pela Syngenta. A decisão está causando preocupação entre cientistas e ambientalistas europeus, já que a espécie contém, como declarado pela própria Syngenta, a mesma proteína que o milho “Bt 176”, tido como provável
responsável pela morte de gado na Alemanha. Os efeitos sobre a saúde humana, alertam, ainda não foram devidamente estudados. O milho Bt é uma variável transgênica resistente ao herbicida glufosinato de amônio. Contém uma toxina derivada da bactéria Bacillus thuringiensis, que funciona como inseticida. A Syngenta foi autorizada a vender o Bt 156 na Europa, para consumo animal, em 1997, e atualmente possui 20
RESISTÊNCIA |O governador do Paraná, Roberto Requião, reafirma a intenção de manter o Estado livre de transgênicos com um novo método de fiscalização. Ele prometeu borrifar em um metro quadrado de todas as lavouras o herbicida Roundup (glifosato). Após uma semana, quando os fiscais retornarem ao campo, se a soja continuar viva haverá o sinal de que é transgênica. Com isso, o Estado identifica os mais de 200 agricultores que o Ministério da Agricultura afirma que plantaram transgênicos nesta safra. (CJ)
O milho Bt 11 tem a mesma proteína do milho que matou gado na Alemanha
mil hectares plantados na Espanha. Na Alemanha, o plantio comercial dessa variedade foi suspenso em 2000. Áustria, Luxemburgo e Itália também já baniram o cultivo. Nos EUA, a autorização para o plantio expirou em 2001 e não foi renovada. O agricultor alemão Gottfried Glöckner era um apoiador das sementes trangênicas desde 1997 e plantava o Bt 156 da Syngenta, com o qual alimentava seu gado. Quando começou a utilizar exclusivamente esse milho, entre 2000 e 2001, cinco animais morreram em quatro meses. Outros sete morreram em 2002 e alguns tiveram de ser abatidos devido a doenças não identificadas. A taxa de produção de leite diminuiu nos animais restantes. Ainda em 2001, Glöckner comunicou as mortes ao Instituto Robert Koch, responsável pela fiscalização do milho da Syngenta. No ano seguinte, recebeu uma compensação de 20 mil euros da empresa, devido às mortes, à queda de produtividade e aos gastos com veterinários. Mesmo tendo abandonado os cultivos trangênicos em fevereiro de 2002, o gado continuou a morrer até outubro do mesmo ano. (Portal Planeta Porto Alegre – www.planetaportoalegre.net)
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De 22 a 28 de janeiro de 2004
NACIONAL DÍVIDA PÚBLICA
Despesas superam os gastos sociais O
orçamento à prova de cortes, como chegou a alardear o ministro do Planejamento, Guido Mantega, começa a dar mostras de poderá se transformar em mais uma peça de ficção, como tradicionalmente ocorre com as leis orçamentárias no país. O ministro de Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, cuja pasta foi atingida por uma redução de 32,1% na dotação prevista para este ano, puxa a fila dos descontentes e avisa que, do jeito que está, não será possível cumprir as metas do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Logo em seguida, o secretárioadjunto da Secretaria de Receita Federal (SRF), Ricardo Pinheiro, avisou que sua equipe terá que realizar um grande esforço para arrecadar o que prevê o orçamento. Segundo ele, a Receita trabalhava com uma previsão realista de uma arrecadação, incluindo impostos e contribuições, em torno de R$ 286 bilhões para este ano, perto de 10% a mais do que o valor arrecadado no ano passado. Mas, no orçamento, a previsão de receita foi ampliada para R$ 297 bilhões, cerca de 14,4% acima da de 2003. Para Pinheiro, será “um grande desafio” acrescentar à receita do ano passado mais R$ 37,4 bilhões. O ministro Rossetto negocia com a equipe econômica, desde já, uma complementação de R$ 1,5 bilhão, o que elevaria o orçamento da reforma agrária para R$ 2,6 bilhões – recursos suficientes, segundo o ministro, para assentar, “com qualidade”, 115 mil famílias até dezembro. No ano passado, a despeito das promessas feitas, conseguiu-se assentar pouco mais da metade da meta prevista. Das 60 mil famílias anunciadas, apenas 34 mil foram assentadas.
DISTORÇÕES Para que as metas de receita se concretizem, será preciso que a economia cresça mais do que os 3,5% a 4% projetados pelo governo – mas a política econômica não tem ajudado para que as coisas caminhem na direção desejada. E o orçamento da União ilustra as distorções criadas pela política de juros altos sobre o planejamento dos gastos públicos, com efeitos diretos no dia-a-dia de trabalhadores, assalariados e empregadores.
Em vez de criar empregos e promover justiça social, a atual política econômica do governo Lula vem alimentando a ciranda financeira
Este ano, praticamente um quarto dos recursos destinados ao pagamento de despesas correntes – pessoal e encargos sociais, e gastos com a manutenção da máquina administrativa (desde equipamentos, móveis e materiais de escritório até o cafezinho do ministro e seus visitantes) – serão desviados para cobrir a conta de juros do Tesouro Nacional. Os juros deverão consumir R$ 117,8 bilhões este ano – quase 70% mais do que os R$ 69,9 bilhões para gastos sociais. Na comparação com o orçamento reprogramado para 2003, haverá nos juros um avanço de 25,7%, ou de 113% desde 2002. No mesmo período, os recursos para os programas sociais – lembrando que se trata de uma promessa de gasto, quase nunca cumprida – terão crescido apenas 23,5%. A inflação chegou a 22,9% – ou seja, a variação mal repõe as perdas causadas pela elevação dos preços em geral, enquanto o gasto com juros cresceu 73% mais do que a inflação. Mais claramente, em vez de financiar investimentos e criar empregos e crescimento, quase 25% dos gastos do Tesouro serão direcionados para alimentar a ciranda financeira. O percentual supera a
Conta dos juros já é maior do que salários dos servidores Em meio à campanha de desmoralização do setor público, armada a partir da segunda metade dos anos 80, tornou-se moda atacar os salários pagos ao funcionalismo, tachando-os como um dos principais responsáveis pelo “rombo” nas contas do Tesouro Nacional. O discurso, agora, deveria inverter-se, se é que se pretende preservar alguma lógica no debate econômico. Desde o ano passado, o total de gastos com os juros da dívida pública federal já é superior à despesa com os servidores – que nunca chegou a ser tão elevada como se dizia. Em 2001 e 2002, dois últimos anos do governo passado, as despesas com pessoal e encargos trabalhistas representavam entre 21% e 22% do total de gastos correntes do Tesouro Nacional, superando a participação dos juros (18,3% em 2001 e 16,5% no ano seguinte). Em 2003, com base nos dados revisados, os juros passaram
a ter uma participação de 23,5%, superando os gastos com salários em pouco mais de 20%. A folha de pagamento viu sua fatia encolher para 19,6%. Para este ano, as previsões indicam gasto de R$ 83,7 bilhões com salários, equivalentes a 17,7% das despesas correntes, enquanto os juros engordaram 24,9% e deverão ser mais de 40% superiores aos gastos com o funcionalismo. A previsão orçamentária para 2004 embute uma estimativa de crescimento de 7,5% nas despesas com pessoal, o que nem de longe repõe as perdas. Nos últimos dois anos, para uma inflação de 22,9%, as despesas com salários do governo federal aumentaram 13% – o que sugere uma perda real de 8%. Menores salários significam possibilidades também menores de consumo, afetando o desempenho da economia principalmente nas regiões onde o funcionalismo tem maior peso relativo. (LJ)
fatia dos gastos destinada ao pagamento de juros mesmo no período de Fernando Henrique Cardoso. Em 2001 e 2002, os juros foram responsáveis pelo correspondente a 18% e 16,5% das despesas correntes. A escalada dos juros explica grande parte do crescimento das despesas correntes nos últimos anos. Comparando-se o orçamento prometido para 2004 e a previsão de gastos para 2003, revista em junho do ano passado, o Ministério do Planejamento estimou um avanço de 18,6%, superior ao aumento esperado para as receitas correntes do Tesouro (mais 15,1%). Desde 2002, os gastos aumentaram em 41%, enquanto as receitas avançaram 29%. O descasamento foi provocado pela conta dos juros, já que a soma das demais despesas (sem os juros) acompanhou mais ou menos de perto o desempenho das receitas.
ABR
Lauro Jardim de São Paulo (SP)
Renato Stockler
Enquanto ministros reclamam da falta de recursos, Receita Federal avisa: terá problemas para atingir arrecadação
No ano passado, das 60 mil famílias anunciadas, apenas 34 mil foram assentadas
Tesouro diminuirá investimentos Em função do seu “tamanho”, o orçamento da União tem capacidade de influenciar a economia como um todo. Para este ano, o valor total aprovado pelo Congresso poderá atingir – se não surgirem novos cortes – R$ 1,470 trilhão, correspondendo a mais de 84% do Produto Interno Bruto (PIB). A maior parte, no entanto, será “esterilizada” – ou seja, não produzirá um tostão de novas riquezas. Por quê? Porque será consumida pelo pagamento de juros e pelas despesas com a “rolagem” da dívida da União, multiplicando os lucros de
investidores/especuladoresebanqueiros. As despesas financeiras responderão por quase 75% do total. A parte que afetará a vida dos brasileiros resume-se a alguma coisa ao redor de R$ 354,2 bilhões, indicando um crescimento de 16,4% em relação a 2003. Caso o orçamento fosse mandatório, ou seja, se o governo tivesse mesmo que cumpri-lo, seria possível afirmar que um aumento naqueles níveis poderia injetar algum ânimo na economia. Mas não há garantias de que o governo venha a gastar tudo o que está previsto.
A DIVISÃO DO BOLO As reais prioridades da equipe econômica surgem na divisão do bolo orçamentário MINISTÉRIOS
VALOR
PREVIDÊNCIA
Desconsiderando os juros e demais encargos da dívida pública, de longe é a maior conta do orçamento – R$ 129,5 bilhões ou 23,8% mais do que o previsto para 2003
SAÚDE
Vem em segundo lugar com R$ 35,8 bilhões, um avanço de 17%
DEFESA
R$ 28 bilhões, com recuo de 0,8%
TRABALHO E EMPREGO
Poderá receber R$ 26,8 bilhões, um avanço de 29%
EDUCAÇÃO
R$ 18,8 bilhões, com uma correção de apenas 4,3%
INTEGRAÇÃO NACIONAL E CIDADES
Sofreram os maiores cortes, respectivamente 31,3% (para 4,6 bilhões) e 43,8% (para R$ 1,75 bilhão)
No ano passado, estava previsto um crescimento de 33% para as despesas primárias (todos os gastos do Tesouro Nacional, menos as despesas com a dívida). Mas o governo não chegou a gastar os mais de R$ 304,3 bilhões autorizados pelo Congresso, enquanto a economia se mantinha virtualmente estagnada.
MENOS INVESTIMENTOS Concretamente, o Tesouro decidiu gastar menos com investimentos, este ano. E o tombo só não será maior porque o Congresso revisou para cima as previsões de despesas nessa área. O orçamento prevê R$ 10,5 bilhões para investimentos, 54% a mais do que o governo pretendia gastar, mas 26,6% a menos do que os R$ 14,2 bilhões prometidos para 2003. A conta só é maior, mesmo assim quando não se considera a inflação, do que os R$ 9,4 bilhões investidos em 2002. Para contrabalançar a fúria fiscal do Tesouro, os investimentos das empresas estatais devem compensar aquela queda crescendo 25% este ano, R$ 31,8 bilhões. Comparados ao último ano do governo FHC, os investimentos das estatais (Petrobras, Eletrobrás, Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e outras) aumentarão quase 70%. Somados aos investimentos programados pelo Tesouro, tem-se uma conta de R$ 42,3 bilhões – 6,5% maior do que o esperado para 2003 e praticamente 50% acima do valor investido em 2002. (LJ)
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De 22 a 28 de janeiro de 2004
NACIONAL CONJUNTURA
O projeto de Brasil, segundo o BNDES O presidente da instituição fala em desenvolvimento com inclusão social e defende a parceria público-privada Lalo de Almeida/ Folha Imagem
Nestor Cozetti do Rio de Janeiro (RJ)
“H
Crédito para construção civil está associado a emprego e renda Elza Fiúza/ABR
á 12 anos o país parou. De 1930 a 1980, cresceu ininterruptamente, com a segunda maior taxa de crescimento mundial, só inferior à do Japão. Depois, durante anos de crescimento rastejante, retrocedeu da 8ª para a 10ª economia mundial”, constatou o economista Carlos Lessa, presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), na abertura do seminário “BNDES, um sonho do desenvolvimento”, realizado dia 16, no Rio de Janeiro. Avisando que falaria mais como professor do que como economista, Lessa declarou-se um otimista: “verei o país retomar o crescimento. A palavra desenvolvimento é igual à transformação, é crescimento acompanhado de transformação. E o processo não se dá sem ruptura, não é linear, e é sempre inovador”, definiu. Lembrando que “a história só se repete como farsa”, Lessa fez uma retrospectiva do país desde a formação do Estado brasileiro, “a instituição das instituições”. Ao mencionar a “construção da nação”, assinalou que ela “ainda não está construída”. E, como “não havia povo” na terra, aconteceu o “instituto hediondo da escravidão”. Por isso, “o ser moderno na sala e o ser atrasado na cozinha continua até hoje. A matriz da escravidão é muito pesada. Abolimos a escravidão e não incluímos os escravos nem os pobres. Nós não criamos um povo porque na abolição não incluímos o escravo”. E diagnosticou “a dificuldade de uma sociedade estigmatizada pela escravidão em traçar projetos de desenvolvimento, já que o projeto das elites é apenas para as elites”. Para o presidente do BNDES, “quem segura este país é o povão, não só pelo trabalho, mas também pelo imaginário. E nós temos agora um povo que elegeu um dos seus para presidente. Ser brasileiro começou de novo a ser importante. O país está começando a levantar a cabeça”. A atual proposta de desenvol-
coordenação entre o público e o privado, e esse é o planejamento. Parceria público-privado será o modo pelo qual o Estado nacional brasileiro estará convocando as forças produtivas. Porém, ao mesmo tempo, nós falamos em economia solidária, que é entender que outros protagonistas são centrais no processo produtivo. Ninguém está propondo grandes rupturas, mas variadas e pequenas rupturas, ligadas a estima, identidade, coordenação, articulação etc. A infra-estrutura foi agora totalmente priorizada pelo governo. Eu, como presidente do Banco, tenho instruções de pensar, repensar e executar o bloco da infra-estrutura”.
Carlos Lessa: não pode haver desenvolvimento econômico sem inclusão social
COOPERAÇÃO & ALCA vimento do país, segundo Lessa, é desenvolvimento com inclusão social, o que implica em reforma agrária, em educação universal, e implica, sim, em dar a todos três refeições por dia. “E não me venham com o discurso de que é melhor
ensinar a pescar do que dar o peixe: a pessoa precisa comer o peixe para ter forças para aprender a pescar”, argumentou. Carlos Lessa defende a parceria entre o poder público e o setor privado. “Tem que ter articulação,
Falando no seminário sobre “Cooperação Sul-Americana”, Darc Antonio da Luz Costa, vicepresidente do BNDES, considera que uma concepção estratégica do Brasil é parte resultante da cooperação com os países da América
do Sul. “O discurso liberal é para manter a periferia subordinada. Não existe hegemonia permanente, somos capazes de construir um projeto que inclui Caracas, Brasília e Buenos Aires, que passa por essa aliança, e isso está acontecendo”, disse. Em palestra sobre a Área de Livre Comércio ds Américas (Alca), o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores, afirmou que “a questão momentosa da política externa só pode ser compreendida dentro da visão do Brasil no mundo”. Deu a sua visão: temos uma hiperpotência que reluta em aceitar os princípios básicos que vinham regendo o mundo desde 1945, como soberania nacional, não-intervenção etc. Naquele tempo os Estados Unidos estavam quietos. Hoje a intervenção preventiva coloca em cheque os princípios citados. E continuou: “a economia mundial aprofundou a diferença entre os países desenvolvidos centrais e a periferia de ex-colônias, países administrados por agências financeiras internacionais para garantir o pagamento da dívida”. Para o embaixador, dentro de “uma visão do Brasil que queremos e do mundo que queremos, política externa e interna acabam por ser a mesma coisa”. Ao lembrar que dois terços da população vivem com menos de dois salários mínimos, num país de rica diversidade biológica e integridade étnica, a seu ver o problema é “como incorporar isso tudo àqueles 2/3, como incorporar essas pessoas ao processo produtivo”. Pinheiro concluiu afirmando que “a Alca, como disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, deve ser negociada com soberania e preservando os interesses brasileiros, e assim tem sido feito. Não esquecemos a importância das relações Brasil/Estados Unidos, tanto econômicas quanto culturais, e como exemplos basta ouvir as músicas do rádio ou ir ao cinema. Mas isso jamais pode ser às custas da soberania brasileira”.
PARMALAT
Trabalhadores buscam saídas para a crise João dos Santos e Silva de Porto Alegre (RS) A unidade brasileira da transnacional de origem italiana Parmalat já está operando sob intervenção da Justiça, que nomeou o advogado Carlos Casseb e o administrador de empresas Carlos Alpoim Botelho para administrar a empresa, em cooperação com seus atuais gestores. A medida segue o decreto divulgado, dia 16, de intervenção na sede da Parmalat em São Paulo. Os reflexos da crise da Parmalat,que pediu falência dia 6, já estão sendo sentidos em todos os 30 países onde a empresa está presente. Mais uma vez, governos e entidades de classe estão com um grande abacaxi a ser descascado. No Rio Grande do Sul, Estado onde está localizada a maior fábrica do grupo no país, cada um busca salvar a sua pele, sem se preocupar com o conjunto do problema. Na Câmara Setorial do Leite, o governo gaúcho senta-se apenas com representantes dos produtores de leite afinados com propostas que tenham no seu horizonte o destino do produto até então entregue à Parmalat. Entidades que se preocupam com o destino dos funcionários e com os produtores, principalmente os pequenos, até o momento foram ignoradas. Até agora, os 418 funcionários
10 milhões, ainda não usufruídos em sua totalidade.
MONOPÓLIO À VISTA
Objetivo é envolver os trabalhadores de todas as unidades espalhadas pelo país
da unidade de Carazinho, região noroeste do Estado, não foram incluídos na lista de preocupações centrais. O problema não tem solução simples. Alguns acreditam que a saída está na incorporação da unidade por outra empresa do ramo. No Rio Grande do Sul, essa possibilidade tem um agravante: a Parmalat instalou-se no Estado com benefício fiscal do governo, em 1993, quando adquiriu a Lacesa (empresa familiar).
Reformulado em 1988, o Fundo Operação Empresa (Fundopem) deveria descentralizar a produção industrial no Rio Grande do Sul. Porém, 74,85% das empresas beneficiadas encontram-se na macroregião Nordeste, eixo mais industrializado do estado, como observa Pedro Roque Giehl. Para se instalar em Carazinho e montar postos de distribuição em todas as regiões do Estado, a Parmalat foi beneficiada com renúncia fiscal no valor de R$
O governador Germano Rigotto (PMDB-RS) tem discutido o assunto com a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag), entidade que se declara preocupada com o destino do leite. A preocupação é justificável, mas desconsidera o conjunto de problemas acarretados pela quebra da empresa, o oito maior conglomerado da Itália. A incorporação da unidade de Carazinho por outra empresa do setor é uma alternativa discutida pelo governo e pela Fetag. Mas várias entidades, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) do Rio Grande do Sul e o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), têm outra preocupação: a concentração da produção e distribuição. A empresa Elegê, do Grupo Avipal - que detém 50% da captação de leite inspecionado no Estado - já manifestou interesse em assumir o controle da Parmalat. O monopólio preocupa Marco Antônio Figueira, representante da CUT no conselho diretor do Fundopem. Para ele, “essa concentração pode fazer o preço do leite cair ainda mais para o produtor”.Com ele concorda Roberto Ioop, coordenador da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região
Sul (Fetraf-Sul), que lembra que a Elegê também teve benefícios fiscais do governo do Estado e tem um grande volume de leite em estoque.
TRABALHADORES Até o momento, o único movimento para buscar formas de garantir o emprego dos funcionários da Parmalat uma audiência pública realizada dia 15. Durante o encontro, foi criada uma comissão, aberta a representantes de entidades interessadas em discutir o assunto e que tem como tarefa imediata marcar uma audiência com o governador Germano Rigotto e com o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues. Segundo Siderlei Silva de Oliveira, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Alimentação da CUT (Contac), o objetivo é envolver os trabalhadores de todas as unidades da empresa espalhadas pelo país. “Ou salvamos a Parmalat como um todo ou não a salvaremos”, alerta o sindicalista. Nos próximos dias será realizado um encontro nacional dos trabalhadores da empresa. Em 2002, a transnacional tinha 36.356 funcionários em todo o mundo, dos quais 15.910 na América Latina. No Brasil, eram 7.280, quase três mil a menos em comparação a 1999. Ou seja, em três anos a Parlamat demitiu 28% dos seus funcionários no País.
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De 22 a 28 de janeiro de 2004
NACIONAL MST
20 anos de conquistas no direito à terra Encontro histórico, no local onde o movimento foi fundado, define estratégias para melhorar a distribuição de terras Douglas Mansur
Bruno Fiuza e Tatiana Merlino de São Miguel do Iguaçu (PR)
V
Presente em 23 Estados, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra celebra 20 anos e é referência internacional
ma agrária. Porém, desde 2000 o MST já tinha transformado a antiga sede da fazenda em um centro de formação, que engloba a Escola José Gomes da Silva e o Instituto Técnico de Educação e Pesquisa da Reforma Agrária (Itepa). O assentado Idelmar comemora: “O assentamento é uma conquista e uma referência para quem nos apoiou, ainda mais depois de oito anos de governo Jaime Lerner, quando os sem-terra eram liquidados”.
DAS DÍVIDAS À ESCOLA Ariulino Alves Moraes, o “Chocolate”, participou da fundação do MST. Morador da região Sudoeste do Paraná, ele integrava o grupo de pequenos agricultores que perde-
RIO GRANDE DO SUL
Militantes organizam minifórum social Patrícia Wittenberg de Pelotas (RS) A cidade de Pelotas (RS), a 350 quilômetros de Porto Alegre, foi uma alternativa para quem queria participar dos debates antiglobalização, mas não pôde ir ao Fórum Social Mundial (FSM) 2004, em Mumbai, na Índia. O município gaúcho organizou o II Acampamento do Fórum Social Mundial de Pelotas, em uma zona de preservação ambiental da cidade. O evento teve a presença de centenas de acampados de vários Estados brasileiros, uruguaios, argentinos e europeus, além de milhares de pessoas que participaram de oficinas, debates e atividades culturais. Um dos movimentos que esteve em Pelotas foi a Rádio COM 104,5, rádio comunitária que organizou oficinas e transmitiu boletins ao vivo. “A gente vê que todos na periferia têm criatividade. O importante é incentivá-los a usar sua capacidade e talento”, diz Davi da Silveira Duarte, integrante do Movimento Hip Hop, que tem um programa na Rádio COM. Silveira diz que sua vida mudou com o ativismo: “Morava na rua e foi por meio dos movimentos sociais que eu me encontrei. Agora, eu quero passar esse exemplo para outras pessoas. Mas, para isso, é preciso incentivar a educação”. Mais de 30 conjuntos musicais se apresentaram de forma voluntária durante o evento. A mesa de abertura promoveu a discussão sobre as possibilidades do Fórum Social Mundial em contraposição ao neoliberalismo. Outros temas também foram abordados, como militarismo, mídia, comunicação, educação. O Fórum de Pelotas faz parte do processo de difusão do FSM,
que não está restrito a um único evento anual. Zelmute Oliveira explica que uma série de fóruns regionais e temáticos são realizados com o objetivo de se opor à hegemonia do pensamento neoliberal, como o Fórum Social Brasileiro, que ocorreu em novembro de 2003. “Queremos mostrar que não são apenas o Fórum Mundial Econômico ou os encontros do Fundo Monetário Internacional (FMI) que estão preocupados em discutir questões para a sociedade. Nós temos um enfoque antagônico a esses grupos e estamos em todos os cantos discutindo a possibilidade de um outro mundo,” salienta Oliveira.
ram suas propriedades no final dos anos 70 para honrar dívidas com bancos. Para pagar o que devia ao Banestado, vendeu sua terra e, com o que sobrou do dinheiro, comprou uma área de três alqueires, insuficiente para toda sua família. No começo dos anos 80, Chocolate fazia parte da direção do Sindicato Municipal de Trabalhadores Rurais de Dois Vizinhos. Via a mobilização do Movimento Terra e Justiça, formado pelos agricultores que perderam suas propriedades com a construção da represa de Itaipu, e as organizações de agricultores do Rio Grande do Sul. Decidiu integrar o Movimento de Agricultores SemTerra do Oeste do Paraná (Mastro) e, mais tarde, o Movimento de
Agricultores Sem-Terra do Sudoeste do Paraná (Mastes), organizações que antecederam o MST. Chocolate passou sete anos acampado na fazenda Lagoa e hoje vive no assentamento Guanabara, no Norte do Estado. Ele diz que, ao longo dos 20 anos de movimento, sua forma de pensar mudou radicalmente. Entre as principais diferenças, hoje não pensa mais que a pobreza é algo determinado por Deus, mas sim conseqüência de condições sociais concretas. Outro que diz ter aprendido com o movimento é Idelmar. Graças ao MST, seu filho conseguiu estudar, diferente dele, que não pôde ir à escola. Ele diz: “Eu não estudei, acho que a sociedade tem uma dívi-
Em 1984, um grupo de 80 representantes de organizações camponesas de 13 Estados se reuniram em uma igreja próxima à cidade paranaense de Cascavel, entre os dias 20 e 24 de janeiro. Na reunião foi decidida a criação de um movimento nacional que reunisse camponeses que, desde o fim dos anos 70, se organizavam para reivindicar o acesso à terra. Esses camponeses não se conformavam em ter perdido a terra no processo de mecanização que transformava a agricultura brasileira. Como já vinham sendo chamados de “sem-terra” pela imprensa, decidiram incorporar a expressão ao nome do movimento. Nascia assim o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. Hoje, o movimento conta com cerca de 350 mil famílias assentadas. Aproximadamente 135 mil famílias vivem em acampamentos. Considerando que a família brasileira é composta por, em média, quatro pessoas, os militantes do MST chegam a quase dois milhões de pessoas.
da comigo. No MST meu filho, que vai completar 16 anos, já terminou o primeiro grau. O pouquinho que aprendi foi no movimento. O que marca muito a gente é que resgata a cidadania.”
Ronaldo O. Cavalli
inte anos depois, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra volta às origens e, em São Miguel do Iguaçu, Sudoeste do Paraná, realiza seu 12º encontro nacional. Dias 19 a 24, no assentamento Antônio Tavares, cerca de 1.200 pessoas avaliam as diretrizes estabelecidas no último congresso nacional do MST, realizado em 2000 em Brasília (DF), e traçam as novas estratégias de ação. Para João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do MST, o retorno à região Sudoeste do Paraná tem uma forte carga simbólica. Em 1984, o primeiro encontro foi realizado em uma igreja emprestada. Neste ano, acontece em um assentamento localizado em uma das áreas mais ricas do Estado. “Isso nos anima a continuar a luta por mais 100 anos”, diz. A alegria é compartilhada pelos assentados. O trabalhador rural Idelmar Gonçalves da Silva conta que a área foi ocupada pelo MST para evitar um golpe financeiro. Os 1.098 hectares, que pertenciam a José Eduardo de Andrade Vieira, na época presidente do falido Banco Bamerindus, serviriam como moeda de troca, com preço supervalorizado, como parte do pagamento da dívida do banco à União, em 1997. A desapropriação da área só veio definitivamente em 2002, quando o Banco Central transferiu a fazenda para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), disponibilizando a terra para refor-
De 80 a dois milhões
Ato contra a Alca durante o II Acampamento Municipal do Fórum Social Mundial, em Pelotas (RS)
RIO DE JANEIRO
SERGIPE
Líder comunitário é Decretada prisão de nove trabalhadores rurais acusado sem fundamento Maria Tereza de Andrade de Aracaju (SE) Foi decretada, dia 16, a prisão de nove sem-terra no sertão de Sergipe. São Roberto Araújo, da coordenação nacional do MST e vereador do PT em Poço Redondo, mais Maria Inês dos Santos, Etevaldo Nunes da Silva, Jucélio Gomes dos Santos, José Gomes de Lima, Derisvan Correia de Lima, Geraldo Ferreira da Silva, Edvan Gomes dos Santos e José Correia de Lima. A prisão ocorreu depois de o Tribunal de Justiça do Estado revogar habeas-corpus expedido em setembro. Os advogados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) recorreram ao Superior Tribunal de Justiça.
No ano passado os réus participaram, no sertão sergipano, de manifestações pacíficas pela liberação imediata de água, alimentação e crédito. A situação da seca era crítica: houve perda de 100% da safra. Faltavam água e comida, tanto para o consumo humano quanto animal. O governador João Alves (PFL) tratou a situação como caso de polícia. Para tentar impedir uma das mobilizações, no início de setembro mandou a polícia cercar todas as entradas de acesso a Canindé do São Francisco, isolando o sertão por um dia. Poucos dias depois ocorreram as prisões. Diante dessa situação, o MST em Sergipe iniciou uma campanha de solidariedade e repúdio à perseguição aos semterra.
Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro (RJ) O repórter-fotográfico do jornal Inverta e coordenador do Movimento Popular das Favelas do Rio de Janeiro (MPF), Antonio Carlos Ferreira Rumba Gabriel, foi condenado a oito anos de prisão, sob a acusação, considerada infundada, de incentivo e associação ao tráfico de drogas. Rumba Gabriel, que tem como advogados o ex-governador do Rio de Janeiro, Nilo Batista, e André Nascimento, havia sido absolvido em primeira instância. Batista e Nascimento argumentaram que as ligações telefônicas de traficantes, que supostamente relacionariam Rumba Gabriel às drogas, “ao contrário de o condenarem,
o absolvem, pois todas as vezes em que ele é citado nas conversas telefônicas é sempre por terceiros e no sentido de fazê-lo intervir em defesa das crianças do Jacarezinho e dos mais essenciais direitos humanos”. Outro argumento, a resposta ao recurso da promotoria, é a tese da “prova emprestada”, ou seja, a declaração de um réu em outro processo, que afirmou exercer a função de “vapor” do tráfico na favela do Jacarezinho. O autor da “prova” afirma: “A associação de moradores recebia dinheiro de uma boca de fumo, e que parece que o presidente era o sr. Rumba Guimarães”. A defesa alegou que a “prova emprestada” não serve quando não há o contraditório. Mas, na segunda instância, ele foi condenado.
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De 22 a 28 de janeiro de 2004
NACIONAL MARANHÃO
O poder de Sarney e a miséria do povo
Xela Arievles
Agência Estado Xela Arievles
O esquema oligárquico mantido pelo presidente do Senado contrasta com a miséria de 68% da população maranhense
Segundo pesquisa da FGV, dos 47 municípios mais pobres do Brasil, 23 estão no Maranhão. Dos dez que se encontram em pior situação, seis são maranhenses
Oficiais do Exército e Sarney, relações estreitas desde os tempos de ditadura
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os primeiros dias deste ano, quando os operadores políticos do governo intensificavam as articulações visando à reforma ministerial, o ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu, foi à cidade de São Luís, capital do Maranhão, para uma reunião com os senadores Renan Calheiros, José Sarney e Roseana Sarney. Os dois primeiros são do PMDB, o partido que reivindicou ministérios no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Roseana, no entanto, é do PFL – participando da reunião, aparentemente, na qualidade de filha do dono da casa onde ocorreu o encontro: José Sarney. Muitos poderiam estranhar o fato de Roseana, filiada a um partido que faz oposição ao governo Lula, participar de uma reunião onde seriam tratados assuntos relacionados à escolha de ministros do PMDB. Porém, no Maranhão a política tem sido tratada como coisa de família, onde público e privado normalmente se confundem. E são as características lamentáveis da política do Maranhão que fazem com que setores importantes da esquerda brasileira sintam arrepios cada vez que percebem a aproximação entre o governo Lula e o esquema Sarney. Há pouco mais de um mês, o professor Dalmo Dallari, ex- presi-
dente da Comissão de Justiça e Paz nos anos da ditadura, comentou essa aliança, em entrevista para a revista Caros Amigos: “Não posso me aliar a alguém que quer o oposto do que eu quero, que defende uma idéia oposta à minha, que pauta as suas atividades por princípios que são opostos aos meus. Então, há um limite nessa busca de composição de forças, e isso não está sendo cuidadosamente observado pelo governo Lula”. O professor Dallari disse, na mesma entrevista, que a presença de Sarney na presidência do Senado, conseguida graças ao apoio do PT, “mantém oligarquias que impedem a correção de injustiças históricas”. Em seguida, arrematou: “Sarney é um oligarca do velho estilo, que impede a correção de injustiças sociais. Bem ao contrário disso, ele explora a pobreza para tirar proveito eleitoral” .
POBREZA RECORDE A realidade está numa pesquisa divulgada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), em 25 de setembro do ano passado, que revela que o Maranhão é o Estado com maior números de pessoas vivendo na miséria. Segundo a pesquisa, 68,42% dos maranhenses ganham menos de R$ 80 por mês, isto é, estão abaixo da linha da pobreza. A pesquisa divulgada no ano passado expôs um quadro dramático, mostrando que a situação social piorou no final dos anos 90,
Legado dos tempos da ditadura militar O esquema montado por José Sarney começou a partir de 1966, logo após a subida dos militares ao poder. Ele assumiu o comando da política maranhense protegido por um regime que marcou um dos períodos mais tristes da história brasileira. Na eleição de 1965, quando Sarney se elegeu governador, oficiais do Exército vieram ao Maranhão para defender a candidatura dele. Sarney começou na vida pública nos anos 50, como deputado federal. No início, o jovem deputado federal da União Democrática Nacional (UDN) agia no Maranhão a serviço da oligarquia de Vitorino Freire, um truculento senador do Partido Social Democrata (PSD), que por mais de quinze anos mandou no Maranhão. O atual presidente do Senado é filho do desembargador Sarney Costa, amigo pessoal de Vitorino e presidente do Tribunal
Regional Eleitoral do Maranhão por longos anos. No tempo de Vitorino, falar em fraude eleitoral no Maranhão era algo tão comum quanto comer arroz de cuxá. Em sua primeira eleição, Sarney, o filho do desembargador, foi acusado de ser beneficiado pela fraude. Sarney hoje é senador pelo Amapá e não disputa uma eleição no Maranhão desde 1978, ainda nos tempos da ditadura. Naquele pleito, ocorrido há mais de 25 anos, ele era da Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido que dava sustentação aos militares e que ele presidiu durante muito tempo. Mesmo não sendo mais eleitor do Maranhão, Sarney interfere diretamente na economia e na política do Estado, controlando o maior número possível de partidos e os principais meios de comunicação, entre eles a TV Mirante, afiliada da Rede Globo. (EA)
período em que o Maranhão foi governado por Roseana Sarney. De acordo com a FGV, dos 47 municípios mais pobres do Brasil, 23 estão no Maranhão. Dos dez que se encontram em pior situação, seis são maranhenses e, dos cinco piores, três estão no Estado comandado há 38 anos pelo esquema de José Sarney. O município brasileiro com maior número de pessoas vivendo na miséria é Centro do Guilherme, no Maranhão. Lá, segundo o mapa da fome da FGV, 95,32% da população estão em situação de penúria. Para se ter idéia, o projeto Fome Zero, do governo Lula, foi lançado no município de Guaribas, o mais pobre do Piauí. No Maranhão, existem três municípios em situação pior que a de Guaribas.
PARAÍSO DOS LATIFUNDIÁRIOS Uma das razões para os graves problemas sociais do Maranhão de hoje está em uma ação do governo
do Maranhão ocorrida há mais de trinta anos, precisamente em 17 de julho de 1969. Nessa data foi sancionada e promulgada a chamada Lei de Terras (Lei 2979), assinada por José Sarney, que na época exercia o cargo de governador do Maranhão. Na prática, essa lei, também chamada de Lei Sarney, tumultuou o processo de regularização fundiária no Maranhão, facilitando a ação de empresários e grileiros, que puderam adquirir a preços baixíssimos terras públicas – na maioria dos casos, terras ocupadas por famílias de posseiros que se encontravam nas terras há mais de uma geração. Diante desse conluio entre o poder público e a iniciativa privada, as terras maranhenses deixaram de pertencer a lavradores e passaram a ser ocupadas por grandes latifundiários, que ainda dispunham de créditos fáceis e incentivos fiscais. Já em 1975, uma pesquisa do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que o Maranhão ocupava, naquele momento, a condição de Estado brasileiro onde era registrada a maior concentração fundiária. Somente no início dos anos 70, a Lei de Terras permitiu que 1 milhão de hectares de terras “caíssem” nas mãos de latifundiários. A partir dali, a situação foi ficando cada vez mais caótica para as famílias de posseiros que, em pleno regime militar e sem ter a quem recorrer, se viam cada vez mais desamparados, tendo que deixar seu lugar de origem, expulsos pela grilagem cartorial. Hoje, no Maranhão, é comum se ver, nas beiras das estradas, grandes fazendas de gado com casas de palha entre a cerca e o asfalto. Muitas famílias expulsas de suas terras tiveram que se arranjar dentro do próprio Maranhão, mas outras saíram do Estado. O sul do Pará é um exemplo disso. Lá existem localidades onde há mais maranhenses do que paraenses. O trágico episódio conhecido como Massacre de Eldorado do Carajás, em abril de 1996, se deu quando cerca de mil lavradores sem-terra saíam de Parauapebas para Belém, pedindo a reforma agrária. Ao longo do caminho, o grupo foi cercado pela PM e atacado covardemente. Segundo dados oficiais, 19 pessoas morreram – a maioria, 11 deles, era maranhense. Mais tarde, entre os feridos, três morreram – um maranhense.
No bom estilo de Odorico Paraguaçu Em meados do anos 70, Dias Gomes chamou a atenção do país com uma novela chamada O Bem Amado. O dramaturgo criou um típico personagem da elite interiorana do Brasil, Odorico Paraguaçu, um “coronel” atrasado, que explorava o pequeno município de Sucupira. De aparência simpática e afável, Odorico era truculento e inescrupuloso, quando a questão era se manter no poder. Em Sucupira, os membros da família Paraguaçu, vivos ou mortos, davam nomes às ruas, praças, aos monumentos e prédios públicos. O personagem de Dias Gomes era uma crítica explícita às velhas oligarquias brasileiras, nascidas antes mesmo da República. O “estilo Paraguaçu” de fazer política ainda resiste no Brasil e é mais visível no Maranhão. Em São Luís, capital do Estado, existe ponte José Sarney, colégio Roseana Sarney, maternidade Marly Sarney, Fórum Sarney Costa, creche Kiola
Xela Arievles
Emílio Azevedo de São Luís (MA)
Tribunal de Contas do Estado com o nome de Roseana Sarney, oligarquia familiar
Sarney, Avenida Roseana Sarney, Vila Sarney Filho e – escândalo dos escândalos – palácio Roseana Sarney, que abriga, nada mais nada menos que o Tribunal de Contas do Estado. As “homenagens” são feitas aos membros de uma oligarquia familiar, que entre seus integrantes tem hoje uma desembargadora, o atual presidente da Câmara Mu-
nicipal de São Luís, um deputado estadual, dois deputados federais e dois senadores. Dentro do esquema, discute-se hoje, nas páginas de jornais de São Luís, se o próximo candidato a governador do Maranhão a ser lançado pelo grupo será Sarney Filho ou Roseana Sarney. Nem Odorico é páreo para essa concorrência. (EA)
Ano 1 • número 47 • De 22 a 28 de janeiro de 2004 – 9
SEGUNDO CADERNO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Movimentos sociais devem pressionar FMI Antônio Milena/ABR
O Prêmio Nobel de Economia alertou contra abertura comercial e do mercado de capitais, defendidas pelo Fundo Marcel Gomes de Mumbai (Índia)
U
m dos mais concorridos eventos do Fórum Social Mundial 2004, que começou dia 16, em Mumbai (Índia), a palestra de Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia em 2001, lançou mais um alerta aos países em desenvolvimento contra as políticas liberalizantes defendidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Falando a 3 mil pessoas, dia 19, Stiglitz disse que experiências recentes de abertura comercial e do mercado de capitais geraram crise econômica, recessão e desemprego. “O FMI sempre defendeu que só a liberalização poderia levar ao crescimento econômico. Os mercados estão abertos e não é isso que se vê. A política econômica não pode mais estar nas mãos de tecnocratas dessas instituições internacionais”, afirmou o economista, que foi conselheiro do ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton. Stiglitz foi também economista-chefe do Banco Mundial. Essa crença de que os mercados podem regular tudo, disse ele, é mais ideológica do que pragmática.
PIOR DO QUE ANTES Nos últimos anos, Stiglitz notabilizou-se como um dos mais ferozes críticos dos dogmas neoliberais. Um de seus mais conhecidos trabalhos, realizado nos anos 70, defende que a assimetria de informação obtida pelos agentes econômicos torna os mercados imperfeitos. Assim, não se poderia contar exclusivamente com eles para obter ajustes econômicos.
Enciclopédia para os militantes
da Redação
Manifestantes indianos em Mumbai (Índia) protestam contra o FMI, pedindo o cancelamento da dívida dos países pobres
Um exemplo desse processo ocorreu na crise asiática de 1997. “Nesse ano, quando o FMI mudou sua carta para que os países mais pobres liberalizassem seus mercados, estudos já indicavam que isso causaria instabilidade econômica. Aconteceu o esperado: quando entra capital estrangeiro a economia vai bem; mas quando sai, os benefícios desaparecem, há recessão e desemprego. O país fica pior do que antes, principalmente se não existir uma rede de proteção social”, afirma. Em sua palestra no FSM 2004, acompanhada por pelo menos 3 mil pessoas, Stiglitz afirmou que a resistência dos movimentos sociais
está obrigando o FMI a ceder. O economista estadunidense relatou que um informe do Fundo de um ano atrás já reconhecia que liberalização não é causa (imediata) de crescimento econômico, e ainda poderia trazer dificuldades para o mercado de trabalho. No entanto, esse recuo não causou nenhuma alteração considerável nas políticas do FMI. De acordo com Stiglitz, o FMI continua incentivando a privatização dos serviços de proteção social, como aposentadorias e pensões. No entanto, essa idéia já foi rejeitada nos próprios EUA. “Agora eles (FMI e EUA) querem empurrar isso para outros países. É uma contradição, pois
o setor de proteção social exige segurança, o que não poderá ser oferecido por empresas expostas nas bolsas de valores”. Apesar das críticas ao FMI e aos EUA, Stiglitz acredita que os países em desenvolvimento podem obter benefícios com a globalização. Para isso, seria necessário revisar vários acordos internacionais, como os do comércio mundial, considerados injustos por ele. “O rechaço à globalização não pode ser absoluto porque ela também pode ser utilizada para reduzir a pobreza, como aconteceu na própria Ásia, onde alguns países em desenvolvimento se aproveitaram dela para crescer”, diz. (Carta Maior)
Milhares protestam contra militarismo
A Via Campesina, organização de camponeses de todo o mundo, reafirmou a soberania alimentar como sua bandeira em uma das conferências iniciais do Fórum Mundial Social, ignorando a disputa entre países em desenvolvimento e industrializados na Organização Mundial do Comércio . “A OMC deve ficar fora da agricultura’, disse o ativista francês Jose Bove. A situação agrícola agravou-se desde 1986, quando começaram as negociações comerciais globais que levaram à criação da OMC em 1994, argumentou. Com a soberania alimentar, a Via Campesina “recupera o princípio de que cada povo, seja de um país, de uma província ou de comunidades locais, deve produzir seus próprios alimentos”, explicou Itelvina Massioli, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Sem isso, “nenhum povo é livre. Um país que não protege sua agricultura e sua alimentação está condenado ao fracasso”, afirmou a líder sem-terra. A defesa dos mercados locais, “camponeses e indígenas”, também foi recomendada pelo máximo dirigente da Via Campesina, o hondurenho Rafael Alegria, acusando a OMC de “daninha” e saudando os golpes sofridos pela organização em suas reuniões nos últimos anos. A Via Campesina considera a alimentação da população nacional prioridade absoluta da agricultura, rejeitando políticas voltadas à exportação, que deveriam estar limitadas a excedentes ocasionais.
FIM DO PROTECIONISMO
Daniel Merli de Mumbai (Índia) Em uma das pequenas tendas montadas pelos indianos, se juntaram alguns dos membros do Fórum Mundial de Alternativas (FMA). Esse Fórum, um pouco mais antigo que o Fórum Social Mundial (FSM), reúne centros de estudos dos cinco continentes. A proposta está em seu nome: buscar alternativas para a globalização financeira. No início do FSM, o Fórum Mundial de Alternativas deu um passo importante para aumentar sua coesão: lançou o Répertoire des mouvements sociaux, que pode ser traduzido como Enciclopédia dos Movimentos Sociais, disponível em uma página da internet (www.socialmovements.org) que reúne material sobre 107 organizações. “Temos desde os dados básicos, do tamanho e da forma de organização de cada movimento, até textos de análises, e coisas ainda mais simples, mas que muitas vezes fazem falta, como o endereço eletrônico, o postal e o telefone da sede”, explicou François Polet, do Centro Tricontinental, da Bélgica. “A enciclopédia vai ser uma ótima forma de manter algum contato entre os cem mil militantes que, em 2003, foram a Porto Alegre e os 60 mil que foram a Paris, no Fórum Social Europeu”, analisa Christophe Aguiton, do ATTAC França. Também pode ser um instrumento para os movimentos aprenderem com a atuação de seus pares, segundo o secretário-geral do centro de estudos canadense Alternatives, Pierre Beaudet: “Em Quebec, temos um caso muito interessante. É uma central sindical que dobrou o número de filiados”. (Portal Planeta Porto Alegre – www.planetaportoalegre.net)
Via Campesina exige soberania alimentar
da Redação Os protestos contra a invasão do Iraque e os apelos para combater o militarismo e o neoliberalismo caracterizaram a abertura do 4º Fórum Social Mundial, em Mumbai (exBombaim), Índia, com a presença de mais de cem mil delegados. “Como trabalhar nas entranhas do monstro”, foi o nome do seminário da coalizão estadunidense Pare a Guerra, que atua para deter a política belicista da Casa Branca e impedir a reeleição do presidente George W. Bush. Essa entidade, que participou das manifestações de massa contra a guerra em 600 cidades, em fevereiro de 2003, agora está convocando protestos, em vários lugares, para o dia 20 de março, aniversário da invasão do Iraque. Nas sessões do Fórum e nas ruas de Mumbai, palavras de ordem como “Fora do Iraque, Tio Sam” e “Abaixo o imperialismo” são entoadas por militantes, religiosos, ecologistas, intelectuais e sindicalistas. Em outra mesa-redonda, a ex-alta-comissãria da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Direitos Humanos, a ex-primeira-ministra da Irlanda Mary Robinson, fez um apelo para se pôr fim à proliferação descontrolada de armas em todo o mundo: “As armas autênticas de destruição em massa são as armas convencionais, que causam a cada ano a morte de meio milhão de pessoas em todo o mundo”. Segundo Mary Robinson, há no mundo pelo menos 639 milhões de armas de fogo de pequeno
FÓRUM SOCIAL MUNDIAL Temas: Terra, água, soberania alimentar; militarização; globalização; mídia; casteísmo; mundo do trabalho Quando: de 16 a 21 de janeiro Onde: Mumbai, Índia População: superior a 13 milhões NÚMEROS 100 mil participantes de mais de 130 países 71.779 delegados, sendo 23.313 de fora da Índia 2 mil jornalistas de 45 países cobrindo o evento 800 voluntários de vinte países 180 tradutores
porte e 16 bilhões de balas de pequeno calibre; as potências mais importantes são as maiores vendedoras desses armamentos. Também foram discutidas a globalização neoliberal, a soberania sobre a terra e a água e a dívida externa. O líder camponês francês Jose Bove criticou duramente a Organização Mundial de Comércio e as políticas agrárias da União Européia e dos Estados Unidos. O hondure-
nho Rafael Alegría, da organização Via Campesina, que reúne pequenos agricultores de 120 países, declarou que o grupo trabalha para libertar a terra do controle das transnacionais e dos grandes proprietários locais. Citou que, por ano, 200 mil camponeses são empurrados para as periferias urbanas na Europa e que na América Latina “esse fenômeno se multiplica em proporções dantescas”. (Prensa Latina)
Enquanto isso, os governos do grupo de países em desenvolvimento G-20, encabeçado por Brasil e Índia, buscam negociar na OMC a extinção do protecionismo e dos subsídios praticados pela União Européia e Estados Unidos. Assim, esperam conseguir uma melhora nos preços agrícolas internacionais e aumentar as exportações, ampliando a renda para financiar seu desenvolvimento. Esse é o caminho de um modelo sem futuro, segundo os dirigentes camponeses. Mais de cem mil chineses tiveram que deixar o campo e o triplo terá o mesmo destino nos próximos anos, segundo Bove. Alegria destacou que dois terços da humanidade são rurais e que grande parte carece de terras, enquanto bilhões de pessoas passam fome. Em sua opinião, a reforma agrária é necessária não só para alimentar as pessoas, mas também para ter “camponeses mais conscientes, mais solidários e mais combativos”. Este, entretanto, não é o caso de Moçambique, onde a luta é para “não perder a terra”, que é pública em sua maior parte, disse Antonio Tonela, coordenador de programas da União Nacional de Camponeses. Ao contrário da realidade de muitos países, inclusive dos vizinhos África do Sul e Zimbábue, os camponeses moçambicanos buscam impedir a privatização de suas terras e o cumprimento de uma lei “progressista” de 1998, que promove a agricultura familiar e permite às mulheres ter o acesso e controle da terra explicou Tonela. Alegria defendeu uma campanha para a recuperação de sementes de arroz para livre uso dos camponeses na Ásia. Atacou, também, a monopolização de sementes via patentes, os produtos transgênicos, a destruição de recursos naturais e a privatização da água, principalmente por grandes transnacionais como Coca-Cola e Nestlé. (IPS/ Envolverde)
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De 22 a 28 de janeiro de 2004
INTERNACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
“A Índia que luta é o país que tolera” Antonio Martins, Daniel Merli, Moema Miranda e Rita Freire de Mumbai (Índia)
S
e fosse possível mapear os sonhos que produziram um Fórum Social Mundial na Índia, um deles seria o de Vinod Raina. Físico de formação, educador por natureza, ele é uma espécie de Paulo Freire indiano – com menor repercussão internacional, mas com influência direta entre os movimentos sociais e os partidos progressistas. Há muito ele insiste na idéia de que, para transformar a Índia, a esquerda precisa voltar os olhos para a vida e a cultura do povo, em vez de se limitar a suas visões de mundo particulares. A vitória dessas idéias é o segredo que permitiu realizar o 4º FSM num dos países mais materialmente empobrecidos do mundo. O que significa, para os movimentos sociais indianos, a realização do Fórum Social em Mumbai? Uma oportunidade extraordinária de renovação, abertura para experiências novas do resto do mundo e unidade. A própria realização do Fórum foi um enorme desafio para os indianos. Muitos duvidaram que fôssemos capazes de organizá-lo, de manter a diversidade e a capacidade de incluir inauguradas em Porto Alegre. Apontavam para a tradicional divisão que marca a esquerda indiana, onde há marxistas, gandianos, movimentos de mulheres, dalits, socialistas, ambientalistas, o novo e o tradicional – e os conflitos eclodem muitas vezes entre partidários de uma mesma ideologia. Felizmente, o próprio espírito do Fórum ajudou a resolver o problema. O comitê organizador indiano uniu quase 200 movimentos sociais e organizações nãogovernamentais, de diversas ideologias, empenhados no sucesso do encontro. Isso é inédito, ainda mais quando lembramos que o comitê organizador brasileiro reúne apenas oito organizações.
Antônio Milena/ABR
O educador Vinod Raina conta o que são os movimentos sociais na segunda nação mais populosa do planeta
Os novos movimentos sociais indianos criam formas alternativas de se organizar e de se aproximar dos pobres
independência. Em nenhum lugar isso é tão importante quanto na Índia. O movimento foi fortemente influenciado pela liderança de Mahatma Gandhi. Reuniu um número imenso de pessoas, em particular entre 1910 e 1947. Criou uma nação de 100 milhões de pessoas naquele ano, e de mais de 1 bilhão hoje. Além de suas características principais de não-violência e luta baseada na verdade – satyagraha – penetrou em áreas com o método de governo, descentralização, ética e moralidade da política, educação, desenvolvimento rural e nacional, voluntariado, casta e muito mais. Após a independência, e depois do assassinado de Gandhi por um fanático religioso hindu, em 1948, seu pensamento espalhou-se por um grande número de movimentos e sociedades civis
Gandhi permanece popular entre os grupos que lutam por uma relação mais ética entre os seres humanos e a natureza indianos que continuam até hoje. A persistência desse pensamento também pode ser atestada em movimentos que não são herdeiros diretos do gandianismo, como os ambientalistas, adivasi (povos indígenas) e governos locais. Ele permanece popular entre grupos e movimentos que lutam para estabelecer uma relação mais ética e harmônica entre os seres humanos e a natureza. Em que organizações se materializa a herança gandiana? A principal organização que canalizou as massas populares indianas em favor da independência foi o Partido do Congresso. Foi por meio dele que Ana Paula Stock
O senhor é o criador de um movimento social raro, ligado à formação cultural e política e de certa forma precursor desta unidade. Fale sobre ele. Trata-se do People’s Science Movement. É único na Índia e talvez seja difícil encontrar algo similar em outro país. Consiste num enorme número de profissionais da ciência – 300 mil engenheiros, médicos, professores etc – que se articulam com comunidades e em muitos casos com os panchayats [governos locais]. O movimento combina reconstrução e luta, e atua em temas como alfabetização, água, saúde, produção rural, energia e governo local. Usa vários meios de resistência ao neoliberalismo. Sempre que possível, colabora com governos, mas também se confronta com eles quando necessário. Tem um perfil claro de esquerda, mas agrega a isso a capacidade de inclusão. Incorpora pessoas de muitas origens, da esquerda até o centro, e desenvolve um esforço intelectual para sintetizar o pensamento marxista e o gandiano. Em particular, acumulou experiência no planejamento de ações no plano local em colaboração com os panchayats, como forma de resistência ao paradigma neoliberal. Quais as principais raízes dos movimentos sociais indianos? A primeira é a luta histórica pela
Gandhi consolidou o movimento pela independência. Também era claro que, no momento em que a independência foi conquistada, o Partido do Congresso afastouse das noções de poder, governo e desenvolvimento de Gandhi. Embora mantivesse respeito por seu mestre, Nehru – o primeiro presidente, cuja marca foi a modernização – diferia fortemente de sua ideologia. Ele e a maioria dos elementos “progressistas” no Partido do Congresso eram favoráveis a um processo de modernização de estilo soviético, combinada com um viés secular e socialista. A visão de Gandhi passou a ser vista como utópica até mesmo em sua própria organização. Além disso, seus esforços por reconciliação entre os nacionalistas hindus e os muçulmanos que reclamavam uma nação própria não foram bem sucedidos. Trace um perfil dos movimentos sociais na Índia. Os mais facilmente identificáveis são os que estão diretamente ligados a partidos políticos. Cada um dos três partidos comunistas mantém uma central sindical, uma organização de estudantes e jovens e um movimento de mulheres. Essa tradição espalhou-se, aliás, para todos os partidos, inclusive aqueles que atuam principalmente visando o poder de Estado. Ao lado dos movimentos “tradicionais”, há outros, “novos” e “independentes”, que tendem a se distanciar das ligações diretas com partidos, para inovar em termos de estruturas organizativas, papéis de liderança e proximidade com os oprimidos nas regiões mais remotas. O movimento ambientalista aparece facilmente como um exemplo. É o caso dos “abraçadores de árvores”? Esse movimento é pouco compreendido
no Ocidente. Chama-se Chipko Andolan, o que significa, ao pé da letra, “movimento dos abraçadores de árvores”. Surgiu com um incidente numa cidade remota do Himalaia, em 1972. O estopim foi uma disputa entre os habitantes e uma empresa que havia sido autorizada pelo governo a derrubar árvores em uma floresta
terras), Kshatriya (guerreiros), Vaishya (comerciantes) e Shudra (mais baixa), nessa ordem hierárquica. E inferioriza, acima de tudo, os intocáveis, dalits. Um dos problemas da esquerda na Índia foi a inabilidade de incluir as castas em sua agenda política. São um setor muito importante no Fórum.
O conflito entre governo, pobres e marginalizados ampliou-se. Estima-se que haja mais de 200 mil ONGs na Índia próxima. Revoltadas, as mulheres do lugar dirigiram-se à floresta e abraçaram as árvores. Os fatos se espalharam imediatamente e forçaram o governo a negociar com a comunidade. As mulheres passaram a se articular em comitês e a defender temas como desenvolvimento sustentável. O que não se compreende muitas vezes é que essas mulheres defendiam seu “direito de uso” à floresta. Queriam usar as árvores como fonte de lenha e as folhas em seus cobertores, ao contrário da empresa, interessada em devastar para obter e vender madeira. A experiência desencadeou movimentos ambientalistas semelhantes, como o Narmada Bachao Andolan [Movimento pela Defesa de Narmada, MDN], que se opõe à construção de uma represa devastadora. O sucesso do MDN em forçar o Banco Mundial a desistir de seu financiamento à represa de Narmada deu repercussão internacional ao movimento. O que é o movimento dos dalits? O sistema de castas é uma herança histórica ligada ao hinduísmo, e ainda dominante nas sociedades do Sul da Ásia e presente mesmo no Japão (o Burako). Seu sistema baseia-se em quatro varnas (grupos): Brahmin (a elite, cultivada e proprietária de
Quem é Vinod Raina é criador do Movimento do Saber Popular (People’s Science Movement), pelo qual percorre há 20 anos vilas e zonas rurais indianas, especialmente na região do Bhopal, onde viveu. É reconhecido como um entusiasta das novas idéias, e um cultivador do diálogo entre culturas políticas que se unem no desejo de construir uma nova sociedade. Ativista das organizações que lutam pelos direitos das vítimas do vazamento de gás em Bhopal, em 82 (tragédia que fez mais de 4 mil mortes em uma só noite), participa também de movimentos regionais e organizações continentais, como o Jubileu Sul e o Asian Regional Exchange for New Alternatives. Integra o Comitê Organizador do 4º Fórum Social
Quais são os principais movimentos de resistência ao neoliberalismo? Como quase todos os partidos implementaram políticas de privatização, o conflito entre governo, pobres e marginalizados ampliou-se claramente. As causas são o fechamento de milhares de indústrias tradicionais, as políticas que atingem a agricultura familiar e os trabalhadores. A Índia tem aproximadamente 300 milhões de trabalhadores, dos quais apenas 30 milhões organizados. Uma ampla parcela de trabalhadores não-sindicalizados é composta de dalits, mulheres e adivasis. Por isso, a maior parte se expressa por meio dos movimentos sociais aos quais são ligados. Nos últimos 15 anos, tais movimentos envolvem-se cada vez mais em campanhas de combate às políticas neoliberais – ainda que a imprensa não lhes dê destaque. Estima-se que haja mais de 200 mil ONGs na Índia. O que representa o Mumbai Resistence, que muitos chamam de um “FSM paralelo” em Mumbai? O Fórum Social Mundial não pode agradar a todos. Alguns grupos da Índia e das Filipinas, que crêem na violência como método político, ou não toleram o fato de que movimentos recebam financiamento estatal ou de agências, decidiram organizar o chamado Mumbai Resistence 2004. O Fórum Social Mundial jamais pretendeu ser o espaço exclusivo de expressão de resistências ou alternativas. Nunca houve, na história política da Índia, uma articulação tão ampla quanto ele. É um indicador de que os movimentos estão começando a entender o valor da construção comum, sem a preocupação do controle político dos processos. (Portal Planeta Porto Alegre – www.planetaportoalegre.net)
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AMÉRICA LATINA SAÚDE
Cubanos na Venezuela: um santo remédio Claudia Jardim
Parceria entre os dois países garante atendimento gratuito à população venezuelana dos bairros periféricos Claudia Jardim da Redação
E
PREVENÇÃO É O REMÉDIO Contrariando a oposição, o presidente venezuelano mantém o acordo que tanto incomoda grupos de direita de seu país e os Estados Unidos. Além do projeto de envio de médicos, desenvolvido desde 1963 pelo governo de Fidel Castro, Cuba apóia a Venezuela em projetos de educação e esportes. Em troca, a ilha recebe diariamente 53 mil barris de petróleo, parte comprada e parte como moeda de troca aos benefícios concedidos.
Plano cubano prevê envio de médicos que ensinem a população a se prevenir contra doenças
Na Venezuela, os médicos ensinam a população a extrair dos alimentos as vitaminas necessárias para escapar de doenças. Além de médicos, a ilha também envia remédios e vacinas. “Agora as crianças são vacinadas contra meningite, hepatite, paralisia. Antes tinha que levar no hospital e pagar pelas vacinas”, conta Alberto Heibes, um dos líderes comunitários do bairro de Manicômio, em Caracas. Não é só por medicamentos que
os venezuelanos têm de pagar. Heibes fala que a precariedade do sistema público de saúde é tanta que, quando atendidos, os pacientes têm que levar os instrumentos para que os médicos e enfermeiros possam trabalhar. “ Em alguns hospitais temos de levar gaze e esparadrapo para os curativos”, conta. A falência do sistema mantido durante anos fez com que o acesso a tratamentos se tornasse cada vez mais escasso. Aos 67 anos,
Juana Airta pela primeira vez foi atendida por um oftalmologista e será submetida a uma cirurgia para tratar a catarata, que há anos não permite que enxergue como antes. “Os médicos são excelentes, cuidam de toda a família. Agora com a cirurgia, vou voltar a fazer muitas coisas. Vou até poder ler”, comemora. Quando as doenças são graves e exigem tratamento especializado, os pacientes são enviados a Cuba,
Cuba é considerada um centro de excelência em medicina em todo o mundo. São 67 mil médicos para uma população de 11 milhões. Ou seja, um médico para cada 160 habitantes. No Brasil, segundo dados do Conselho Federal de Medicina, são 727 habitantes para cada médico. As diferenças entre a medicina cubana e a brasileira não estão apenas nos números. Em Cuba, cerca de 80% da prática é preventiva, com visitas regulares dos médicos a todas as residências. Mesmo com o bloqueio econômico dos Estados Unidos, a ilha apresenta o menor índice de mortalidade infantil de toda a América Latina (6,3 por mil nascidos vivo), inclusive superior à estadunidense (7 mortos por mil). Além de curar, a medicina cubana conta com a Escola Latino-Americana de Medicina, em Havana, responsável pela formação de estudantes latinoamericanos. sem ter de desembolsar nenhum bolívar. De acordo com dados do governo venezuelano, cerca de 4 mil pessoas já foram à ilha para receber tratamento médico.
De sem-terra a estudantes de medicina Maíra Kubík Mano de Havana (Cuba) Hoje, cerca de cem brasileiros estudam medicina em Cuba. Originários de quase todos os Estados, alguns não pretendiam ser médicos e outros sequer sabiam como seria entrar em uma faculdade. Contudo, a falta de oportunidades para fazer um curso superior no Brasil, aliada à alta qualificação das universidades cubanas, tornaram-se fatores decisivos para a opção profissional. Apesar de alguns estudantes pagarem suas despesas, a maior parte dos que estão em Cuba é financiada pelo próprio governo cubano. Além de receber uma bolsa, possuem alojamento e alimentação gratuitos durante todo o curso, que dura seis anos. Para receber o benefício eles devem, em geral, pertencer a alguma organização ou mo-
Fotos: Maíra Kubik Mano
les vêm de Cuba para viver nas favelas e na zona rural da Venezuela. Com uma maleta e uma motocicleta percorrem os morros e o interior do país para fazer o que muitos médicos venezuelanos nunca ousaram: cuidar da saúde de quem não pode pagar. Desde 1999, Cuba tem enviado à Venezuela médicos que fazem parte do Programa Nacional Bairro Adentro, pelo qual milhares de famílias são assistidas diariamente. Eles promovem tratamento preventivo e cuidam de casos simples, que antes se tornavam crônicos por falta de atendimento básico. Os moradores das periferias de Caracas e de outros Estados organizam-se no Comitê de Saúde para cuidar da segurança e do bem-estar dos profissionais de saúde que, assim como eles, convivem com a violência diária dos bairros periféricos. “Nosso trabalho é voluntário. Somos destacados pelo governo cubano para cuidar de quem precisa”, conta Carlos Rodriguez, que deve ficar no país por dois anos. Desconfiado, o médico que desembarcou recentemente em Caracas já aprendeu que, na Venezuela, é sempre arriscado conversar com jornalistas. A preocupação faz sentido. A Federação Médica da Venezuela, respaldada pelos meios de comunicação, passou a criticar a “invasão cubana” e coordenou manifestações alegando “exercício ilegal da medicina”. O presidente da Federação, Douglas Léon Natera, adverte que todas as mortes nas mãos de médicos cubanos serão responsabilidade do presidente Hugo Chávez. Apesar da polêmica, o convênio é amparado legalmente pelo artigo 7 da Lei do Exercício da Medicina na Venezuela, que permite a participação de médicos estrangeiros no país por um período determinado.
Atendimento prioriza pobres
Estudantes brasileiros de medicina da faculdade de Camagüiy
vimento social no país de origem, encarregada do critério de seleção. Eliza Rodrigues de Souza, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e estudante do 3º ano de medicina, conta que ela e os colegas foram “selecionados nos acampamentos por nossa militância e pelo retorno que poderíamos dar ao MST”, diz. Os dois primeiros anos do curso são realizados em Havana. Depois,
os estudantes são enviados para diversas cidades do interior. Diferente do Brasil, os alunos do 3º ano já podem atender pacientes, participando da vivência diária dos hospitais. A maior parte dos brasileiros está concentrada na província de Camagüiy, onde já iniciaram o atendimento rotineiro aos pacientes. Pouco familiarizados com a língua espanhola e com os hábitos
cubanos, a adaptação ao novo país não é uma tarefa fácil. Para tentar preservar a cultura brasileira, os estudantes ligados ao MST estão organizados em brigadas, semelhante às dos assentamentos, e realizam encontros com estudantes de todos os cursos. Em 2005 se forma a primeira turma enviada pelo movimento. Com planos de voltar para os assentamentos, eles também elaboraram um projeto de atuação em comunidades carentes do Brasil. A proposta, entregue ao ministro da Casa Civil, José Dirceu, prevê um levantamento das principais doenças e necessidades dessas populações e coloca à disposição, inclusive, professores do curso. Os estudantes, no entanto, ainda não obtiveram resposta.
GUATEMALA
Um novo presidente, um frágil recomeço Sob a sombra do medo, no dia 15 tomou posse o novo presidente guatemalteco, Oscar Berger. A transição de poder não marca a volta segura da democracia ao país – ainda traumatizado por uma guerra civil entre guerrilheiros e ditadura militar que durou 36 anos e deixou 200 mil mortos. Ao contrário, a esvaziada disputa presidencial, da qual quase 45% dos eleitores se abstiveram, parece mostrar uma sociedade que ainda ensaia sua autonomia política. Os resquícios da ditadura são claros. O atual presidente do Congresso, Efraín Ríos Montt, foi autor de um dos golpes militares que entrecortam a histórica guatemalteca, em 1982. Ex-aluno da Escola das Américas, Ríos Montt é também o homem-forte do partido Frente Republicana Guatemalteca (FRG), do atual presidente Alfonso Portillo. O ex-ditador candidatou-se à
France Presse
Daniel Merli da Redação
Guatemaltecos esperam retorno da democracia com o novo presidente
presidência em 2003, mas ficou em terceiro lugar, não passando do primeiro turno. É um avanço que pode indicar a redução de seu poder. Mas a fraqueza do novo governo, de Oscar Berger, indica que a sombra de
Rios Montt deve perdurar. Além da enorme abstenção eleitoral, o novo presidente terá de conviver com a falta de maioria no Congresso. Sua coligação ficou com 25% das cadeiras, o que obri-
ga Berger a buscar apoio de outros partidos. O mais provável aliado seria a FRG, do derrotado ditador Ríos Montt, que elegeu a segunda bancada no Congresso Nacional, com um quinto das cadeiras. É também o partido mais próximo do centro-direitista Berger. Parte da apatia eleitoral reflete a difícil retomada da vida pública na Guatemala. Ainda sob o domínio do medo, o país tem dificuldade para digerir os 36 anos de guerra civil. A disputa, desigual, entre governo militar e a União Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG) encerrou-se em 1996, com um acordo de paz patrocinado por um órgão especial da ONU, a Minugua (Missão das Nações Unidas para a Guatemala).
MOVIMENTOS SOCIAIS “O sentimento de impunidade é onipresente’’, atesta o representante da Minugua para a região Norte do país, Alberto Cabellero, em entrevista ao jornal Le Monde
Diplomatique. Ele explica a razão: na região, 15% dos moradores pertenceram à guerrilha, mas nunca receberam as indenizações previstas no Plano Nacional de Ressarcimento das Vítimas. Por outro lado, os membros da Patrulha de Autodefesa Civil (PAC) – grupo paramilitar de direita que reprimia a população e responsável por 12% dos casos de violação de direitos humanos na Guatemala, segundo o Minugua – receberam no ano passado um bônus financeiro pelos ‘’serviços prestados durante o conflito’’. Segundo a repórter Stépanie Marseille, do Le Monde Diplomatique, entre essa gangrena crescem os grupos de defesa dos indígenas e dos direitos humanos. Em 1992, o Prêmio Nobel da Paz foi concedido à guatemalteca Rigoberta Menchú, justamente em reconhecimento à sua luta pelos indígenas. Hoje, ela é a principal figura à frente do pedido de julgamento do ex-ditador Ríos Montt. (Portal Planeta Porto Alegre – www.planetaportoalegre.net)
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INTERNACIONAL ORIENTE MÉDIO
Uma brasileira no coração do conflito André Deak e Rita Freire de São Paulo (SP)
“E
lamentável que o responsável por esse estado das coisas seja a entidade representante de um dos povos que mais sofreram no passado e que, de vítima, passaram a vitimar. Uma grande tragédia que pede resolução imediata, pois não se pode comprometer mais gerações. E como a solução somente virá com pressão externa sobre a sociedade israelense, esta é uma responsabilidade compartilhada por todos os que se importam”, diz Giulliana Iukhan, uma brasileira que se importa. Ela foi para a Palestina a convite de Mustafá Barghouthi, presidente do Comitê de Auxílio Médico e Diretor do Instituto de Saúde, Desenvolvimento, Informação e Política (HDIP), em Ramallah. Há um ano e nove meses morando na região, tem uma visão clara do conflito que ocorre desde o início da Segunda Intifada – quando os palestinos se revoltaram, em setembro de 2000, contra a opressão israelense. Qual foi a situação mais marcante que presenciou desde que chegou a Ramallah? Vi as forças armadas israelenses e os colonos cometerem todas as violações possíveis aos instrumentos internacionais de proteção à população civil , e seguirem impunes. Sob o pretexto de “lutar contra o terror”, Ariel Sharon (primeiro-ministro de Israel) comete o massacre de Jenin, impõe toques de recolher a cidades inteiras, destrói e pilha a infra-estrutura das cidades. Ele vandaliza sedes de organizações humanitárias, incluindo o nosso escritório que, como aconteceu com as sedes dos Ministérios da Intifada – Revolta Cultura e da popular palestina Educação Sucontra a ocupação israelense, iniciada perior, foi haem 1967, depois bitado por troda Guerra dos Seis pas regulares Dias. durante um mês inteiro. Nosso escritório teve todos os computadores e demais equipamentos destruídos, arquivos queimados, além de paredes pixadas com mensagens “de agradecimento” e sujas com fezes e urina, também espalhadas por todo lado. Hoje existem 482 check-points na Palestina. Como isso afeta a região? O direito mais básico, de ir e vir, fica comprometido. A vida passa a ser um inferno constante e qualquer atividade que alguém pretenda realizar, do simples ato de ir ao trabalho, à escola, à consulta médica ou mesmo visitar um familiar ou realizar comércio, tudo depende da boa-vontade e do humor de soldados de 18 anos. Esses jovens, na maioria dos casos, detêm poderes de vida ou morte sobre as pessoas que estão em fila, esperando para passar. Check-points não são, como a palavra pode indicar, pontos onde apenas checam-se documentos; são rituais de humilhação institucionalizada. Nos últimos três anos, no total ocorreram mais de 991 casos de acesso médico negado a pacientes em necessidade que não puderam cruzar os pontos de checagem. Registram-se 82 casos de mortes decorrentes destes acessos negados (27 crianças e 17 recém-nascidos). Até o momento, 52 mulheres tiveram seus filhos em check points militares, em alguns casos em meio à lama e sob chuva, sem as menores condições higiênicas e sem cuidados médicos apropriados. Esse tem sido o pesadelo que acompanha toda mulher gestante palestina durante a gravidez, causando um aumento de 29% de partos realizados em casa.
AFP PHOTO/Jaafar Ashtiyeh
Arqueóloga que vive em Ramallah conta um pouco da dura realidade de quem vive oprimido
Jovem palestino joga pedras em um tanque israelita no campo de refugiados de Nablus. Ocupação de sedes de ONGs humanitárias por Sharon causam revolta
Hoje há menos escudos humanos na Palestina do que antes. A guerra no Iraque teve alguma influência? Sim, muitos ativistas internacionais sentem que existe um duplo trabalho, que é proteger populações civis agora sob duas ocupações militares estrangeiras: a palestina, sob ocupação militar israelense, e o Iraque, sob ocupação militar estadunidense. Na Palestina, a presença de observadores internacionais é crucial, seja como mediadores entre os soldados e colonos e a população civil palestina (em decorrência do arraigado nível de preconceito, os soldados is-
Quem é Giulliana Iukhan, brasileira, é arqueóloga e coordenadora de relações públicas do Instituto de Saúde, Desenvolvimento, Informação e Política de Ramallah, na Palestina. Trabalha com a rede de ONGs palestinas (PNGO), que reúne mais de 90 organizações civis, e com o Palestine Monitor, centro de informação unificado que relata, dia-a-dia, os efeitos da ocupação israelense. raelenses tendem a dispensar um tratamento diferenciado aos estrangeiros), seja para testemunharem a situação e poder, depois, ao retornarem a seus países de origem, realizar campanhas de conscientização. Agora também ocorre o fenô-
Israel destrói a cidade de Nablus. De novo. da Redação A população de Nablus, maior cidade da Cisjordânia, está sujeita ao toque de recolher desde dia 30 de dezembro. Israel impôs o toque horas depois da retirada das forças que operaram por cerca de duas semanas na localidade e no campo de refugiados adjacente de Balata. Desde aí, vigora a violência, com invasão de residências, limitação do direito de ir e vir e detenção de supostos ativistas do levante palestino no distrito de Rafá, ao sul da Faixa de Gaza. Fontes militares e de outros organismos de segurança israelenses justificam a medida por considerarem os campos de refugiados em Nablus “ninhos de terroristas” da resistência palestina contra a ocupação. As buscas de militantes e de suas armas e explosivos tinham se intensificado depois do ataque suicida em território israelense, dia 9, por um militante da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) em um parada de ônibus. No episódio, morreram três soldados e um civil. O suicida, cuja família teve a casa dinamitada, vivia em Bet Furik, cerca de 70 quilômetros a norte de Jerusalém. Também foram detidos quatro supostos ativistas do levante palestino no distrito de Rafá, onde a resistência atacou assentamentos ju-
deus com três projéteis de morteiro e um foguete Al Kasam, embora sem conseqüências, na opinião de fontes militares. O reatamento das operações em Nablus coincide com a intensificação das medidas de segurança em Israel contra possíveis atentados palestinos no início do ano.
VIOLÊNCIA CULTURAL Durante três dias consecutivos, as tropas de ocupação bombardearam o centro antigo de Nablus e a cidade de Ramallah. Sítios arqueológicos foram destruídos por dinamite e pelo uso de escavadeiras. O Ministério do Turismo e Antigüidades da Autoridade Nacional Palestina denunciou os atentados à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), alegando que “a cidade de Nablus é parte da herança cultural palestina assim como da civilização humana em geral. Portanto, a demolição de sítios arqueológicos é uma grande perda para toda a humanidade”. Desde o dia 4, tropas israelenses passaram a dinamitar e destruir com tratores o coração arqueológico da cidade. Um dos sítios destruídos foi a casa da família Al Shabi, de mais de 500 anos, o que colocou em risco milenares construções próximas. (Com agências)
meno dos sem-teto na Palestina. Como isso surgiu? Sem-teto e sem-terra são o coração do problema. O problema dos refugiados palestinos surgiu na formação do Estado de Israel. Os cerca de cinco milhões de refugiados palestinos, a maior
população refugiada da terra, são uma combinação dos descendentes diretos das 750 mil pessoas forçadas para fora de suas casas em 1948, somadas aos cerca de 240 mil palestinos que foram desenraizados na guerra de 1967, quando Israel tomou mais terras. Para além de todas as complexidades, o problema é que as forças israelenses seguem continuamente produzindo mais e mais refugiados, sem-terras e sem-teto, com as demolições de casas a cada retaliação, ou por “necessidades” de expansão israelense, como a construção do muro – uma outra tragédia em curso. (com Portal Porto Alegre)
Desconfiança permeia as negociações com a Síria Peter Hirschberg de Jerusalém (Israel) O primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon, não acredita quando a Síria diz que deseja reiniciar as negociações de paz, paralisadas há quatro anos. Sharon tampouco está disposto a pagar o preço territorial de um tratado de paz integral: a devolução à Síria das colinas de Golan, que Israel capturou em 1967 e anexou unilateralmente há 22 anos. Mas isso não significa que o mandatário israelense possa ignorar o convite ao diálogo feito pelo presidente sírio Bashar al Assad. Tentou fazê-lo, mas foi acusado pela oposição de ser um arruinador em série de negociações de paz. Ministros do próprio partido Likud, de Sharon, e o presidente Moshe Katsav pediram urgência na resposta do primeiro-ministro a Assad, que fez o convite por meio de uma entrevista, no mês passado, ao jornal The New York Times. Diante da pressão, Sharon anunciou as condições para o reinício do diálogo: a Síria “deve suspender sua ajuda e apoio a agentes terroristas”, afirmou a correspondentes estrangeiros em Jerusalém. Segundo ele, não havia necessidade de “correr a abraçar os sírios”.
TERRITÓRIOS EM JOGO Israel condena o que considera o apoio sírio a organizações palestinas armadas e ao grupo radical islâmico Hizbolá, estabelecido no sul do Líbano. Forças de segurança
israelenses afirmaram que aviões sírios que transportavam ajuda de emergência para a cidade iraniana de Bam, devastada por um terremoto, haviam regressado carregados de armas para o Hizbolá. Segundo as fontes, as armas foram carregadas em caminhões e levadas para o Líbano. Se as acusações forem comprovadas, Sharon terá uma justificativa para rejeitar o convite de Assad para o diálogo. A Síria, por sua vez, nega patrocinar o terrorismo e insiste em que grupos radicais apenas têm escritórios de informação em seu território. Segundo muitos israelenses, a paz com a Síria é crucial para normalização das relações com o resto do mundo árabe. Israel capturou Golan junto com o Sinai egípcio, no sul do Líbano e os territórios palestinos de Gaza e Cisjordânia, durante a chamada Guerra dos Seis Dias, em 1967. Em 1981, anexou Golan por decisão parlamentar, mas a medida nunca foi reconhecida pela comunidade internacional. Sucessivos governos israelenses construíram assentamentos nas colinas de Golan, embora suas campanhas para povoar a estratégica meseta de 1.158 quilômetros quadrados não tenham sido um grande sucesso. No total, vivem ali cerca de 20 mil judeus israelenses, junto com um número aproximado de drusos, muitos dos quais levantam bandeiras sírias em suas casas e se mantêm fiéis a Damasco. (IPS/ Envolverde)
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INTERNACIONAL ÁFRICA
Moçambicanos lutam por direitos humanos Paulo Pereira Lima enviado a Maputo (Moçambique)
C
riada em 1995, a Liga dos Direitos Humanos de Moçambique vem trabalhando duro para atingir seu grande objetivo: dar às pessoas acesso à Justiça num dos países mais pobres do mundo e com altos índices de corrupção. A organização, apoiada por organismos humanitários do Canadá, Holanda, Noruega, Dinamarca, Finlândia, Suécia, Suíça, e Irlanda conta hoje com bases em todo o território do país de 18 milhões de habitantes: três delegações regionais (nas regiões Sul, Centro e Norte) e centros de apoio em cada uma das 11 províncias, contando com a cidade de Maputo. A Liga dá atendimento jurídico à população carente, trata da situação das prisões em Moçambique, das questões de terra e de qualquer violação de direitos políticos, sociais ou econômicos sofrida pelos cidadãos. Em entrevista ao Brasil de Fato em Maputo, Maria Alice Mabota, presidente da Liga desde sua fundação, conta a história do surgimento da organização: “Naquela altura, em 1993, a maioria do povo moçambicano nunca tinha ouvido falar em direitos humanos. Quando nós surgimos, pensaram que éramos defensores de ladrões, e queriam nos atirar contra o povo. Mas nós conseguimos provar que não era isso.” Maria Alice criticou a situação política de Moçambique, a falta de transparência nas eleições, a Frelimo (partido no poder) e a Renamo (oposição), bem como o assassinato mal esclarecido do jornalista Carlos Cardoso, morto em novembro de 2001, quando investigava casos de corrupção junto ao governo e ao empresariado moçambicano. “Nós só podemos sair desta situação tirando o poder tanto da Frelimo quanto da Renamo, porque são governos militares, voltando-nos para alguém que possa aglutinar os cidadãos moçambicanos e não os cidadãos partidários”, disse ela. Joaquim Chissano está na presidência de Moçambique desde 1986. Tem havido transparência nas eleições? Não, nunca houve transparência. Nem vai haver tão já. Mas é um processo que nós acreditamos que é normal, por duas razões: uma das questões que existe na mentalidade africana é a vingança. Há um medo terrível, por causa do passado, que não está esclarecido. Há um medo de represálias. É por isso que nas campanhas eleitorais há intimidação. Chissano e os ministros de seu governo são um clube de amigos que estão constantemente no poder. Quem não pertence ao poder, por mais técnico que seja, não tem chance. Nós já tivemos governadores que não sabiam nem ler nem escrever. O primeiro governador de Maputo não sabia ler nem escrever, mas porque pertencia ao poder, estava lá. O ministro da Defesa Nacional, durante muitos anos, foi um indivíduo que tinha dificuldade para ler. É diferente em Angola, que tem muitos intelectuais. Moçambique não teve no início. Eu fiz licenciatura em direito aos 50 anos, e são poucas pessoas que tiveram isso. Diferentemente de Angola, que estava mais próxima de Portugal. A região Norte de Moçambique é a mais prejudicada ainda nesta área de educação. O Sul é mais desenvolvido. Na parte política, aproveita-se disso. Dizem: nós somos do Norte e não querem nos dar o poder. Daí que a corrupção que existe é a procura de riquezas fáceis e permanência no poder. As mesmas pessoas que estão no poder dirigem as empresas.
Fotos: Paulo Pereira Lima
Presidente de organização pioneira no país narra avanços da caminhada por justiça social e combate à corrupção
Quem é Maria Alice Mabota, advogada. Presidente da Liga dos Direitos Humanos de Moçambique, criada em 1995 e sediada na capital, Maputo, tem centros de apoio nas onze províncias do país
Nós só podemos sair desta situação tirando o poder tanto da Frelimo quanto da Renamo, porque são governos militares MOÇAMBIQUE e suas províncias
A perseguição política e a espionagem acontecem ainda hoje? Continua. A Liga sofre com isso. Às vezes pensam que não sabemos. Eu conheço os espiões que estão aqui, um por um, mas eles mal sabem que eu os conheço. Alguns, tivemos que mandar embora. A perseguição política também continua. Exemplo: nas comissões de eleições é permitido haver membros da Frelimo, da Renamo e membros da sociedade civil. Em Niassa escolheram-se esses membros da comissão e colocaram um funcionário das telecomunicações. A lei diz que qualquer que seja o cidadão escolhido para a comissão tem o direito de ser liberado do traba-
lho sem prejuízo do salário. Mas como ele era da Renamo, foi expulso quando voltou ao trabalho. Foi perseguido por alguém da Frelimo. A Liga presta atendimento jurídico aos pobres? Sim, em particular às mulheres. Mas a todo cidadão que tem um problema de violação dos seus direitos políticos, econômicos, sociais ou culturais, nós procuramos dar uma resposta e dar uma defesa caso seja necessário irmos à Justiça. A pessoa paga apenas 50 mil meticais, cerca de 2 reais, para as custas do processo.Ontem recebi uma mensagem muito bonita de um jovem advogado sobre o caso de uma fábrica de alumínio que em 2001 despediu cerca de 40 trabalhadores que fizeram uma manifestação. Nós levamos o caso à Justiça e a empresa foi condenada a pagar uma indenização de 400 milhões de meticais a cada trabalhador. O julgamento só terminou ontem. A fábrica é uma multinacional? É, a Mozal, sul-africana, austríaca, japonesa, inglesa e australiana. É uma fábrica que produz poluição, mas o governo nega. Ela polui o solo da área onde fica, e os peixes e pássaros já começam a aparecer mortos. Há também casos de racismo extremamente sérios na empresa. Estamos com processos na empresa também por isso. A Mozal tem trabalhadores negros
Aqui em Moçambique estão tirando terras dos camponeses para entregá-las aos brancos, fazendeiros zimbabuanos
com a mesma formação que os trabalhadores estrangeiros, mas paga subsídios [espécie de saláriofamília] para a mulher e os filhos dos estrangeiros e não paga para os familiares dos trabalhadores moçambicanos. Os sindicatos são atuantes? Não. O sindicato é ligado ao governo. O sindicato dos trabalhadores fingiu-se de aliado deles, mas, no fim, entregaram os trabalhadores. Os senhores também atuam nas questões de terra? Sim, nos conflitos que envolvem terra, prestamos assistência jurídica. Temos muitos casos. Há duas semanas fui falar com um presidente de município [prefeito] por causa de uma área que ele confiscou dos camponeses para dar a outras pessoas. Essas questões vêm parar aqui. As pessoas nos escrevem para intervirmos. As terras aqui estão parcialmente nas mãos do Estado, de grupos ligados ao Estado, ou em consórcio com algumas multinacionais, como a Blanchard, que pertence a um americano que interveio na guerra civil apoiando a Renamo, mas o governo tinha interesse em abafar porque ele era uma pessoa com muita influência. Ele pegou uma quantidade de terra nesta região chamada reserva de Maputo. Nós instalamos um centro da liga lá para poder gerir estes conflitos e apoiar os camponeses. Agora estão a vir para cá farmeiros [fazendeiros] zimbabuanos que foram expulsos do Zimbábue.
um cidadão que nasceu numa província de grandes conflitos, Sofala. A população de Sofala, seja ela branca ou negra, tem uma tradição de luta. Embora alguns lutem sem uma perspectiva muito clara. É uma população que não aceita calada. O Carlos Cardoso era um lutador por justiça. Eu não falo isso porque ele morreu, mas porque eu o conheci. Eu ia à casa dele e conversava com ele. O Carlos denunciava tudo e estudava muito. Lutava pela justiça social através do jornal, o “Metical”, um jornal independente, que fazia jornalismo investigativo sério. Quando fizemos o último debate na TV, numa quinta-feira à noite, na sexta-feira um grupo de 27 policiais chefiado pelo comandante da cidade reuniu-se para ver o que poderia fazer comigo por eu estar a fazer barulho, a denunciar, a agitar as populações e a provocar o governo. Soltaram uma medida dizendo que deviam me matar. Mas alguém da polícia — porque os policiais gostam de mim, embora não digam isso de frente, dizem por trás; só os chefes é que não gostam —, alguém da polícia veio me informar. Eu disse então ao Carlos Cardoso: “Carlos, há problemas”. Eu recebi ameaças de morte que diziam que iriam me matar com duas balas e que os policiais já tinham sido escolhidos. Eu disse ao Carlos: “Quero que você publique isso”. Ele então respondeu que não podia publicar se não soubesse quem tinha dito. Mas
Nunca houve transparência nas eleições. Chissano e seus ministros são um clube de amigos que estão sempre no poder O governo está cedendo terras a eles? Está, sob o pretexto de que estão a desenvolver o país. Mas a gente pergunta: “Se não desenvolveram no Zimbábue, se criaram problemas lá, como é que aceitam aqui?”. São farmeiros zimbabuanos e sul-africanos também, a maioria brancos. Eles criam problemas de racismo e estão em todo o país, nas zonas ricas. O Zimbábue faz uma reforma agrária de extremos. Eu pessoalmente não concordo que se faça uma reforma agrária matando pessoas. A reforma agrária para mim significa que um latifundiário tem que trabalhar para a produção de alimento e repartir esta terra com os outros que não têm nenhum pedaço de terra. Aqui em Moçambique o que está acontecendo é que estão tirando terras dos camponeses para entregá-las aos estrangeiros. Os senhores acompanharam o caso do assassinato de Carlos Cardoso? Nós éramos unha e carne, Carlos e eu, em termos da seriedade do trabalho. No último debate que se fez na TV, estava ele, um advogado, um político e eu. E as pessoas disseram, depois disso, que eu estava proibida de receber convites para fazer debates na TV porque nós atacamos. A televisão é estatal. Há outras três estrangeiras, uma brasileira, uma sul-africana e uma portuguesa. Mas o caso Carlos Cardoso é complicado. Carlos Cardoso era
as pessoas não podiam falar pois perderiam o emprego. Eu insisti que ele publicasse mesmo assim, ou eu iria à BBC. Ele então escreveu, e foi um barulho terrível. O ministro quis saber como o segredo tinha vazado, não conseguiu e acabou demitindo o diretor da polícia. Logo a seguir, o Carlos Cardoso não foi capaz de acompanhar que poderia ele próprio ser morto. O caso foi acompanhado pela Liga? O caso foi à Justiça. A Liga nomeou um advogado, mas a família de Carlos Cardoso nomeou a advogada principal. Então nosso advogado só acompanhou o caso.Foram buscar três pessoas como mandantes e duas pessoas como executoras do crime. E foram condenadas estas, o resto ficou fora. São só indianos. São Vicente Ramaia e os irmãos Aiob Satari, Anibal dos Santos Jr, o executor. É um caso que já está decidido, eles têm o recurso. E nós aqui na Liga estamos a debater o caso às sextas-feiras para entender. Ainda não está resolvido? Totalmente, não. Ainda não. Mas não pode estar resolvido com o governo que há. É impossível.
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DEBATE RUMOS DO GOVERNO
Política externa, entre nutricionistas e pirotécnicos
dor de manufaturados) devem se envergonhar desse mercantilismo agrícola, primário-exportador, padrão século 19. PIROTECNIA EM ALTA
Reinaldo Gonçalves bcecado pela governabilidade, inebriado pelo poder, desprovido de um projeto de sociedade e sem coragem para enfrentar as forças conservadoras, Lula foi responsável em 2003 por uma gestão macroeconômica que variou da mediocridade à tragédia. A primeira se expressou, por exemplo, na queda da renda per capita de mais de 1% e no elevado crescimento da dívida pública apesar do hiperavit fiscal. A segunda ficou marcada na vida e na alma dos 1,2 milhão de novos desempregados. Ou seja, todo mês Lula jogou no desemprego e no desespero mais de 100 mil brasileiros. Quem não tem um parente, um vizinho ou um amigo desempregado? A tragédia do cotidiano agravou-se com a queda de mais de 10% da renda média real dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que os bancos tiveram taxas elevadíssimas de lucro. Nesse primeiro ano de governo Lula, houve uma das mais selvagens transferências de renda do trabalhador para os banqueiros das últimas décadas. A relação juro/salário bateu recorde histórico. Triste troféu para o presidente honorário do Partido dos Trabalhadores. Mas deixemos de lado a economia, na qual é fácil mostrar a gestão extraordinariamente incompetente da política econômica e, principalmente, os resultados que vão do pífio ao trágico, passando pelo medíocre. Não me venham falar nos investimentos estrangeiros na bolsa, na queda do dólar e na melhora do RiscoBrasil. O primeiro é um problema, que se explicitará quando da realização dos lucros e da saída dos dólares. O segundo é resultado, em grande medida, das taxas de juros absurdamente altas e das condições favoráveis de liquidez internacional. E a terceira é falaciosa, pois o risco de todos os países caíram internacionalmente e a posição relativa do Brasil praticamente não se alterou em 2003. Passemos à análise de uma área onde parece haver uma forte percepção favorável ao governo Lula: a política externa. A realpolitik mostra uma relação clara entre política internacional e desenvolvimento. A seqüência é conhecida: in-
O
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serção ativa no sistema econômico internacional, redução da vulnerabilidade externa, política externa independente e desenvolvimento. A inserção ativa trata das dimensões comercial (comércio exterior), monetário-financeira (dívida externa e fluxos de capitais), real-produtiva (desnacionalização) e tecnológica (sistema nacional de inovações). Somente com uma forte base econômica interna é que o país logra reduzir sua vulnerabilidade externa nas quatro dimensões acima. Isto é, o país aumenta suas chances de resistir a pressões, fatores desestabilizadores e choques externos. A menor vulnerabilidade é, então, a condição necessária – a base econômica de poder – para se formular e implementar uma política externa independente. Essa política está orientada para maximizar pragmaticamente a relação benefício-custo das relações internacionais. E, portanto, a política externa torna-se um instrumento importante do processo de desenvolvimento. Ou seja, as relações internacionais deixam de ser uma forte restrição e tornam-se um fator coadjuvante
da estratégia e das políticas de desenvolvimento. A realidade da política externa de Lula tem sido contrária a tal seqüência. Ele tem promovido uma inserção cada vez mais passiva no sistema econômico internacional. Isso provoca o aumento da vulnerabilidade externa do país e, portanto, compromete a implementação de uma política externa independente e, conseqüentemente, a retomada do desenvolvimento.
DEPENDÊNCIA AUMENTOU Vejamos alguns indicadores recentes. A dependência bilateral com relação aos Estados Unidos aumentou. Em 2003, o Brasil teve um superávit comercial de 7 bilhões de dólares com os EUA. Isso é, de fato, um problema, visto que aumenta a capacidade de pressão dos EUA sobre o governo brasileiro. A reprimarização da pauta de exportações também informa uma maior vulnerabilidade externa na dimensão comercial na medida em que as exportações do país ficam cada vez mais dependentes dos preços reconhecidamente instáveis das commodities. Há, ainda, enormes dificuldades enfrentadas de acesso a mercado frente a barreiras protecionistas para produtos agrícolas. E não se esqueçam que a melhora das contas externas em 2003 dependeu de fatores circunstanciais: aumento extraordinário dos preços das commodities, excesso de liquidez internacional, recessão interna e taxa de juros absurdamente elevadas no Brasil. É ingenuidade imaginar que o aumento da exportação de commodities vai relaxar significativamente a restrição externa! Na dimensão monetário-financeira, a manutenção de ampla e profunda liberalização da conta de capital, crescente dependência
com relação ao investimento de portfólio e aumento da dívida externa marcam uma trajetória de maior vulnerabilidade. Cabe citar ainda duas “evidências anedóticas”: o acordo vexaminoso com o FMI (hiperávit primário) e o anúncio do nome do presidente do Banco Central feito em Washington após visitas (e, provavelmente, consultas, ao governo estadunidense). Esse nome, como todos sabem, está fortemente identificado com um banco comercial dos EUA e tem valor simbólico e, neste caso, desfavorável à política externa independente. Ainda na área monetário-financeira, Lula está nos devendo a auditoria da dívida externa. No que se refere à dimensão real-produtiva, o governo Lula tem persistido no erro estratégico de promover o investimento estrangeiro nos setores de infraestrutura, que não têm receita em dólares. Nesse sentido, é lamentável que o PPP (Parceria Público Privado) tenha se orientado para atrair capital estrangeiro para setores da infra-estrutura. Com o PPP, deverá aumentar ainda mais a desnacionalização de setores estratégicos. No que se refere à questão tecnológica, a posição de submissão frente ao lobby dos transgênicos mostra um governo fragilizado e acocorado na arena internacional. Por trás dessa submissão está, além do poder do lobby das empresas transnacionais e do agronegócios, o desespero do governo de querer exportar a qualquer custo. O Brasil de Lula tornou-se o quarto maior produtor de transgênicos no mundo! O fato é que Lula aumentou a vulnerabilidade externa da economia brasileira nas dimensões comercial, real-produtiva, monetário-financeira e tecnológica. Não me venham com a história da Alca light, pois o que é preciso é uma não-Alca. Também não venham com a história de que o Brasil lidera o recém-criado G-21 ou G-22, pois deve-se ter em mente que entre os membros desse “G-qualquer número“ estão a Índia e a China, países com reduzida vulnerabilidade externa, grande projeção e significativo poder econômico e militar. Quando nesse grupo o Brasil tenta focar as negociações nos produtos agrícolas, os diplomatas da Índia (grande exportador de software) e da China (importante exporta-
Sem coragem e criatividade, exceto para a pirotecnia, Lula encontra-se numa “saia justa”, e procura tirar do Judiciário o poder de determinar restrições à entrada de cidadãos estadunidenses. O governo estadunidense já está pressionando e o fato é que a dependência bilateral do Brasil com relação aos EUA fará com que essas restrições sejam eliminadas brevemente. É essa dependência que impede Lula de fazer o plebiscito oficial sobre a Alca. Além da submissão às pressões de Washington, falta a Lula coragem para enfrentar a crítica mais aberta e frontal ao projeto da Alca, inclusive, o modelo da Alca light proposta pelos nutricionistas do Itamaraty. Qual o saldo líquido de mais de três dezenas de viagens ao exterior? Impedir que a oposição venezuelana avance na sua contestação ao coronel Chávez? Fazer discursos inócuos nas Nações Unidas? Entrar na fila para ser fotografado com líderes dos países do G-8 em Evian, na França? Ser recebido com tapete vermelho em republiquetas caribenhas, latinoamericanas e africanas? Tentar obter um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde os EUA não respeitam sequer a Alemanha, a França e outros países poderosos? Ou, pior ainda, propor a formação de uma força militar latino-americana? Lula descobriu que a política externa pode ser usada como um instrumento de autopromoção e de formação de capital político no plano interno. Isso é trivial, mas tem retornos decrescentes, principalmente quando as trapalhadas começam a se acumular (vejam a história do piloto estadunidense fazendo gesto obsceno). Pirotecnia nas relações internacionais, sobretudo para quem tem déficit de poder e é vulnerável, acaba fazendo com que os fogos de artifício explodam nas próprias mãos. O melhor para o Brasil seria o perfil baixo (vejam os exemplos da Índia, China e até mesmo do Japão), ao mesmo tempo em que se implementa políticas que efetivamente reduzam a vulnerabilidade externa. Se Lula mudar significativamente suas políticas, talvez o Brasil consiga, num horizonte de 5 anos ou 10 anos, reduzir efetivamente sua vulnerabilidade externa. Mas não é isso o que ele está fazendo. Muito pelo contrário. Lula aprofunda e alarga a vulnerabilidade externa do Brasil. E, portanto, a política externa de Lula oscila entre a esperteza dos nutricionistas do Itamaraty e a astúcia dos pirotécnicos do Planalto. No Brasil de alegoria, a política externa de Lula é um sucesso de público, mas no Brasil de fato, essa política é falsa, vazia, desprovida de conteúdo e de sustentação na base econômica do país e nas políticas do próprio governo. O Brasil pagará mais essa conta. A política externa de Lula não é independente, pois está com séria pendência: medidas concretas para reduzir a vulnerabilidade externa do país. Cabe separar, de um lado, retórica, imaginação e vontade, e, de outro, realidade. Isso deve ser feito, sobretudo, quando a realidade é grave e a auto-ilusão é confortável. Reinaldo Gonçalves é professor titular de Economia Internacional na UFRJ e ex-funcionário das Nações Unidas, em Genebra, Suíça, entre 1983 e 1987
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AGENDA
agenda@brasildefato.com.br
NACIONAL
TEATRO: O ALIENISTA Até 15 de fevereiro, sextas e sábados às 21h; domingos às 20h A peça O Alienista, baseada no conto de Machado de Assis e dirigida por Carlos Delgado, conta a história do Dr. Simão Bacamarte, um homem célebre que resolve dedicar-se de corpo e alma ao estudo das patologias cerebrais. Tentando descobrir os limites que separam a insanidade do perfeito juízo e buscando a cura universal da loucura, ele constrói um hospício onde coloca vários cidadãos ilustres que a sociedade considerava normais. Ingressos a R$ 14 e R$ 7 (estudantes) Local: Espaço Andante, R. Cachoeira Dourada, 44, Belo Horizonte Mais Informações: (31) 8833-3123
PERNAMBUCO MOSTRA SOBRE JUSTIÇA Até 30, segunda a sexta, das 13h às 18h A mostra exibe seis painéis constituídos por textos e imagens de processos e fotografias de pessoas que atuam na Justiça. Com caráter educativo, é voltada para estudantes de primeiro e segundo graus. Entrada gratuita. Local: Memorial da Justiça, Av. Alfredo Lisboa, s/nº, Recife Mais informações: (81) 3224- 0142.
RIO DE JANEIRO OFICINA DE JONGO Terças e quintas, das 19h às 20h30 O Grupo Cultural Jongo da Serrinha (GCJS) cria grupos artísticos e faz espetáculos integrados por crianças e jovens que participam dos seus projetos de qualificação profissional em música, dança e produção cultural. O espetáculo Jongo da Serrinha é formado por 40 artistas de 1 a 83 anos, moradores da comunidade da Serrinha, integrantes do projeto Escola de Jongo. Local: Fundição Progresso,
CAETANO VELOSO E CONVIDADOS Dia 24, às 23h Caetano Veloso canta com convidados na esquina das avenidas São João e Ipiranga, na cidade de São Paulo, local que foi tema de uma de suas mais famosas músicas, Sampa. Espetáculo gratuito. Local: Esquina das avenidas Ipiranga e São João, Centro PARADA SÃO PAULO 450 ANOS Dia 25, das 10h às 21h, com show às 16h Principal evento das comemorações de aniversário da cidade, o show de Rita Lee recebe como convidados Maria Rita, Titãs, Demônios da Garoa e o Rapper Xis. A apresentação acontece no Vale do Anhangabaú e contará com 31 carros de som. Pela manhã, haverá uma série de apresentações esportivas, culturais e de entretenimento. Representantes das 31 subprefeituras paulistanas também participarão dessas atividades junto ao público. Evento gratuito. Local: Av. 23 de Maio, na região do Viaduto Tutóia, São Paulo TOM ZÉ Dia 26, às 19h Interpretando sucessos de sua carreira de cantor e compositor, Tom Zé faz show acústico, como parte da programação do Sesc São Paulo dedicada ao aniversário da cidade. Ingressos: R$ 6 e R$ 3 (trabalhador no comércio e serviços matriculado e dependentes). Local: Sesc Carmo, R. do Carmo, 147, São Paulo Mais informações: www.sescsp.com.br, 0800-118220 MÚSICA E DANÇA NO MUNICIPAL Com entrada gratuita, o Teatro Municipal de São Paulo festeja o aniversário de 450 anos da cidade. Orquestra Sinfônica Municipal e Coral Lírico apresentam Missa
Lapa, Sala dos Espelhos, 2º andar, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 3852-0043, 3852-0053 ou 8143-3714, www.jongodaserrinha.org.br
RIO GRANDE DO SUL ENCONTRO INTERNACIONAL PELA
Um clássico baseado em fatos reais Na virada do século 19 para o século 20, a literatura russa já não satisfazia os leitores. A sociedade de então, a da nobreza, era uma sociedade decadente e seus problemas não comoviam como antes. Era para o futuro que o público leitor olhava. E esse era um futuro revolucionário. Foi a terra e a época de mestres de renome mundial, como Tolstoi, Dostoievski e muitos outros na literatura, e como Lenin na política, assim como as contradições que o autoritarismo tsarista engendrava, que possibilitou o surgimento de Máximo Gorki e seus escritos. Nascido no coração do império russo em 1868, Gorki desempenhou, para sobreviver, as mais diversas atividades. Essa vivência junto do povo proporcionou-lhe um profundo conhecimento de sua cultura, de seus falares, de suas gírias, de seus costumes, de suas crenças e descrenças.
Sua formação política foi acontecendo ao longo do tempo, de forma desordenada, anárquica mesmo, resultando em algumas obras “menores”, que serviram para o aprimoramento de sua técnica narrativa. Ao mesmo tempo que escrevia, fazia agitação entre camponeses, entre empregados deportados de uma rede ferroviária, organizava círculos de estudos
Solemnis, de Beethoven - 26, 27 e 28, às 21h Paulicéia Musical - Orquestra Experimental de Repertório, Coral Paulistano, Flo Menezes e Sujeito a Guincho - 31, às 21h, e 1º/02, às 17h. Balé da Cidade de São Paulo, Coral Paulistano e Lírico e OSM - 12, 13 e 14/02, às 21h, e 15/02, às 17h. Local: Pça. Ramos de Azevedo, Centro, São Paulo PASSEIO POR SÃO PAULO A PÉ OU DE ÔNIBUS Dia 24, às 9h30 O passeio começa no Pátio do Colégio e passa por Museu Anchieta, Solar da Marquesa de Santos, Mosteiro de São Bento, Edifício Martinelli, Centro Cultural Banco do Brasil, Catedral da Sé, Marco Zero, Largo São Francisco, Praça do Patriarca, Capela Santo António, Viaduto do Chá, Praça Ramos de Azevedo e Teatro Municipal. Ingressos: a pé - R$ 11 e R$ 8 (para aposentados e crianças de 3 a 7 anos, com desconto do ingresso na
PAZ CONTRA A GUERRA 11 a 13 de fevereiro O encontro pretende abrir um espaço de balanço, debate e formulação de propostas sobre o sistema de poder mundial e sobre o processo do Fórum Social Mundial (FSM). As potencialidades e os horizontes futuros do FSM serão analisados a partir da necessidade de integrar o tema da paz e da guerra com o
e muitas outras atividades. Seu comportamento “grosseiro” e sua escrita simples e direta, que falava da realidade vivida pelas pessoas, possibilitava uma ampla penetração nas camadas populares, tornando seu nome conhecido e colocando a polícia em seu encalço. A Mãe, talvez a sua obra mais conhecida e divulgada, baseou-se em fatos reais ocorridos nas fábricas de Sormovo, onde Gorki conheceu o operário Zamolov (Pavel Vlassov no livro), militante revolucionário, e sua mãe, Anna (Pelagueia Nilovna no livro, que se dispõe à arriscada tarefa de distribuição de panfletos), protagonistas das manifestações do 1º de Maio de 1902, nessa cidade, e da conseqüente prisão e julgamento dos envolvidos. Um clássico. CONFIRA A Mãe Máximo Gorki 456 páginas R$ 15,00 Editora Expressão Popular Tel. (11) 3105-9500 www.expressaopopular.com.br
entrada do Museu Anchieta); de ônibus - R$ 19 e R$ 16 (para aposentados com desconto de ingresso no Museu Anchieta). Crianças até 1 ano e 11 meses não pagam; crianças de 2 anos até 7 anos R$ 9,50 Local: Saída do Pátio do Colégio, Centro, São Paulo Mais informações: (11) 6351-3821, 6854-2300 EXPOSIÇÃO: SÃO PAULO Até 28 Moradores da cidade – profissionais ou não da fotografia – reúnem imagens de diversos locais da cidade retratando suas diferentes visões. Junto à exposição será possível o visitante elaborar, dentro de uma cabine com vídeo, suas observações e experiências pessoais a respeito de São Paulo. Também haverá monitores de vídeo transmitindo entrevistas com personagens paulistanas, aspectos culturais, religiosos e artísticos da cidade. Entrada gratuita. Local: R. Amador Bueno, 505,
da luta por “um outro mundo possível”. Entre os palestrantes convidados, já confirmaram presença: Tariq Ali, Bernard Cassen, Ignacio Ramonet, Emir Sader, Ana Esther Ceceña, Daniel Bensaid, Atilio Boron, Gilberto Achcar, Meena Menon, João Pedro Stedile, Paulo Vizentini e Beverly Keene. Temas a serem abordados: “Crise capitalista e guerra”, “A nova hegemonia imperial”, “Cultura de guerra e Cultura de paz”, “Mídia, democracia e guerra”, “Luta pela paz e contra a guerra”. Local: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Av. Ipiranga, 6681, Partenon, Porto Alegre Mais informações: (51) 3289-3627 ou pelapazcontraguerra@gp.prefpoa .com.br
Santo Amaro, São Paulo Mais informações: (11) 5525-1855 LANÇAMENTO - CADERNO TRABALHO E CIDADANIA ATIVA PARA AS MULHERES: DESAFIOS PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS Dia 22, a partir das 17h30 A publicação, editada pela Coordenadoria Especial da Mulher, traz artigos de diversos especialistas no tema, traçando um rico panorama que possa servir como modelo e incentivo para a implementação de políticas públicas locais que realmente alterem as relações desiguais de gênero no âmbito do trabalho, engajando pessoas e instituições no compromisso e na responsabilidade de se construir uma realidade sem qualquer forma de desigualdade ou opressão. Local: Canto Madalena, R. Medeiros de Albuquerque, 471, Vila Madalena, São Paulo Mais informações: (11) 3313-9761
SÃO PAULO TEATRO: I FESTIVAL DE TEATRO DE RUA Até 31, às 21h Promovido pela Prefeitura de São Sebastião, vai apresentar variadas formas de manifestações teatrais, como teatro de bonecos, de rua e circo. Os organizadores querem que o festival leve esse tipo de arte ao maior número de espectadores, das mais diversas faixas etárias. A programação conta com 15 espetáculos das cidades de São Paulo, Recife e Garanhuns. A abertura será com a apresentação do grupo O Cuscuz Fedegoso. Espetáculo gratuito. Local: Pça. Antônio Argino, Centro, São Sebastião Mais informações: (12) 3892-1005, 3892-1757
CARTUNISTA RECEBE PRÊMIOS Um dos colaboradores do Brasil de Fato, o cartunista Márcio Baraldi ganhou dois prêmios Angelo Agostini, nas categorias “Melhor Cartunista de 2003” e “Melhor Lançamento de 2003”, pelo livro RokoLoko e Adrina-Lina. O prêmio leva o nome do primeiro quadrinhista brasileiro e um dos pioneiros do mundo e é conferido anualmente pela Associação dos Quadrinhistas e Cartunistas (AQC). O resultado é obtido por votação de profissionais ligados aos quadrinhos (cartunistas, editores e mídia especializada). O prêmio, Divulgação
MINAS GERAIS
ANIVERSÁRIO DE SÃO PAULO Divulgação
INTERNET: FAZENDO MEDIA Portal bilíngue, criado por um grupo de estudantes de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), para discutir o papel da chamada grande mídia do ponto de vista de suas relações com o poder político-econômico. O Fazendo Media é parte de uma iniciativa que reúne um jornal impresso, com periodicidade quinzenal; um programa de televisão semanal e um blog. Mais Informações: www.fazendomedia.com
o mais antigo e importante do país, existe há mais de 20 anos e já contemplou grandes nomes como Henfil, Ziraldo e Maurício de Souza. A entrega do prêmio acontece dia 1º de fevereiro, durante o 8º Fest Comix, Festival de Quadrinhos da livraria Comix, em São Paulo.
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CULTURA
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SÃO PAULO 450 ANOS
Folha Imagem
As várias faces de uma cidade sem rosto, mas com muita personalidade Ao completar 450 anos, dia 25 de janeiro, a cidade de São Paulo cativa e assusta, exibe riqueza e miséria, recompensa e castiga Texto: Áurea Lopes Colaborou: Carolina Lopes
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ara falar da história de uma cidade com tantas virtudes e tantas deficiências, nada melhor do que falar da história das pessoas que nela vivem e experimentam, no dia-a-dia, tais encantos e agruras. Crescidos nas ruas quatrocentonas ou desembarcados de diversos cantos do Brasil, os paulistanos, de nascença ou de circunstância, têm um sonho em comum: ganhar a vida e encontrar a felicidade em São Paulo. Ao completar 450 anos, dia 25 de janeiro, essa cidade marcada pela diversidade cultural e pelos grandes contrastes sociais representa uma espécie de Macunaíma urbana – onde todas as identidades são possíveis, onde todos os desafios se consumam. Folha Imagem
Antagonismo Patrícia Ferreira, 36 anos, responsável pela formação política dos militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, moradora do acampamento Anita Garibaldi, periferia de Guarulhos
Casas decentes para todos Emiliano Javier Miranda, 28 anos, designer, morador do bairro do Pacaembu
“Eu moro no acampamento há quase três anos e, em São Paulo, há quatro anos. O que eu mais gosto nesta cidade é a heterogeneidade das pessoas. O que eu mais detesto é esse caráter de metrópole, a superpopulação, a periferia da cidade mais desenvolvida da América Latina tão pobre, tão abandonada. Essa é a cara de São Paulo, a cara do antagonismo. Um presente que eu daria para a cidade de São Paulo nos seus 450 anos é uma grande ocupação, uma grande marcha de trabalhadores ocupando as fábricas vazias e mostrando para o sistema financeiro que o trabalho é centro da vida do ser humano”.
O Pátio do Colégio, onde tudo começou
Coisas muito loucas, muito velozes
Fotos: Carolina Lopes
Cristiano de França Lima, dirigente da Juventude Operária Católica Brasileira, morador da Baixada do Glicério “Sou pernambucano e vivo em São Paulo há três anos. Acho que o maior problema da cidade é o transporte, onde constato um destrato com a população. Sempre tive a impressão de São Paulo como uma cidade enorme e, para mim, esta é a cara do Brasil hoje, essa é a cara de São Paulo. E como aqui as coisas são muito loucas, muito velozes, parece que a vida fica atrás disso. A gente tem que ficar correndo sempre e observa pouco o que está ao redor porque as coisas se movimentam muito rápido e a gente não consegue acompanhar”.
Ninguém sai daqui Eurides Gibin Gonçalves, 42 anos, taxista, morador do bairro Pedreira, região de Santo Amaro
Não dá para juntar dinheiro Florinoni Ribeiro de Oliveira, 40 anos, gari noturno, morador de São Miguel “São Paulo é ilusão, não gosto daqui. Vim atrás de trabalho, mas não tenho capital para voltar para Minas Gerais. Aqui se ganha, aqui se deixa, não dá para juntar um pouco de dinheiro. Eu moro em São Miguel Paulista, em um terreno invadido. Antes disso morava de aluguel, até conhecer uma pessoa que me falou de um terreno que seria invadido e que era só ir lá e demarcar o espaço. O primeiro que eu marquei, eu perdi, mas consegui comprar outro pelo preço na época de 6 URVs (hoje, em torno de 10 reais) e construí uma casinha de bloco. Estou nesse terreno há uns 14 anos. Temos poste de luz, mas a energia não é paga; tem água que também não é paga, mas até que eu gostaria de pagar a água, para ter mais garantia. Um dia espero ter um papel que comprove que aquilo é meu. Se eu fosse solteiro, ia embora. Mas com os filhos, não dá. O que eu espero daqui é ver meus filhos estudados e felizes, se virando sem mim”.
A metrópole hoje, com a população em torno de 10.000 milhões de habitantes, completa 450 anos no dia 25 de janeiro
“Mudei para cá em 1979, atrás de emprego. Antes morava no Paraná. Nos diversos bairros que eu passo, vejo a diferença cultural, o contraste entre um e outro. Todo mundo fala mal de São Paulo, mas ninguém sai daqui. A cidade é maravilhosa, a melhor do país, tem tudo o que eu gosto – menos o trânsito. Seria bom se tivesse também menos violência”.
Salvação da alma Enileta Dias de Sousa, 61 anos, moradora do bairro Santo Amaro “Eu vim pra São Paulo já faz 36 anos e não volto para a Bahia de jeito algum. Quando eu estava lá, costumava dizer que se eu morresse e não fosse para São Paulo minha alma não iria se salvar. Eu amo aqui de coração, meus filhos são daqui e
A correria envelhece as pessoas Elisete da Silva, 35, passadeira “Eu tinha uns parentes aqui e vim para trabalhar, há 25 anos. Mas nos últimos tempos as coisas pioraram, não tem mais emprego. Então resolvemos voltar para a nossa terra, cuidar dos negócios que deixamos por lá. Aqui tudo é muito rápido, e essa correria envelhece as pessoas”.
amam também. Eu adoro a correria de São Paulo, e até levantar de madrugada pra trabalhar”.
Violência Sérgio Miyashiro, 43 anos, engenheiro civil, morador do bairro Jardim Paulistano “Eu nasci em São Paulo, não gostaria de morar em outro lugar, sou bem urbano. Eu gosto de tudo aqui, até já me acostumei com o trânsito, com a violência. Essa é uma cidade do mundo, como Nova York, não deve nada para nenhuma cidade grande. E essa questão da desigualdade é uma questão com a qual temos que conviver, faz parte do desenvolvimento, sempre vai existir.”
Ilusão de trabalho Mariano Araújo da Silva, 48 anos, comerciante, morador do bairro de Americanópolis “O que me fez vir para cá foi uma ilusão, uma ilusão de trabalho,
“Para definir essa cidade, eu gosto de usar a palavra cinza. Sou argentino e vim para cá com a minha mãe, por causa da ditadura. Primeiro fomos para o Rio, para Recife, mas só nos adaptamos em São Paulo mesmo. Uma característica da cidade é a informação. Aqui as pessoas são ligadas no que acontece, na cultura, são pessoas interessadas. O que eu gosto na cidade é a arquitetura – também por isso adoro caminhar, ver as pessoas na rua, o Centro antigo, galerias, camelôs, grandes lojas etc. Um retrato da desigualdade, a meu ver, são os casarões, ao lado das casas normais, ao lado daqueles sem cade poder crescer, coisa que eu não encontrei. Mas existem oportunidades para quem tem força de vontade e dignidade. Tirando a violência, São Paulo é uma maravilha, eu me sinto no paraíso. Quem nasceu e se criou aqui não sabe o que é São Paulo porque se perde numa fantasia onde sempre quer mais, quer ser sempre o que não é, estar sempre à frente e nunca alcança porque o ser humano é ganancioso – o paulistano especialmente”.
Sem esperança Luís Carlos, 50 anos, desempregado, morador de rua “Não tem muito que gostar dessa cidade porque a gente fica aí, sem destino, sem esperança de amanhã estar trabalhando... e vai passando o tempo e a gente acaba envelhecendo nessa situação. Já estou em São Paulo há uns trinta anos. Antes disso eu era interno em Minas Gerais e vim para cá atrás de trabalho. Mas
sa, que moram debaixo da ponte. O presente que eu daria para a cidade neste aniversário seria uma grande limpeza urbana, onde todas as pessoas tivessem casas decentes para morar”. por causa das diversas crises acabei ficando sem emprego. Morava de aluguel e a situação apertou. Daí saí para a rua. Agora eu cato latinha e disso tento sobreviver. Não me sinto acolhido pela cidade, mas isso também não me faz falta. Tem algumas coisas boas nessa cidade, pessoas que ajudam, dão um lugar para a gente tomar banho, comer alguma coisa. De pior tem essa situação, com essa crise do mercado de trabalho, a tecnologia superando e a pessoa não tem como acompanhar. Tenho perspectiva de melhorar com esse governo. Mas para isso eu tenho que sair de São Paulo, estou esperando essa reforma agrária, ter uma terrinha ou entrar numa cooperativa. Essas coisas são mais fáceis no interior”.
Cidade que não acaba nunca Adelson Góis de Almeida, integrante da Juventude Operária Católica Brasileira, morador da Baixada do Glicério “Para mim, São Paulo é a Rua Direita às quatro horas da tarde – muito prédio antigo, misturado com prédios novos, os camelôs ao lado do pessoal de terno e gravata, muitas pessoas diferentes, que vivem coisas diferentes. Eu não me identifico com São Paulo no todo, mas em algumas coisas. Por exemplo, eu vivia em São Vicente, cidade que tem praia. Então o que é mais difícil para mim, aqui, é que eu não sei onde São Paulo acaba, parece na verdade que não acaba nunca. Quando eu morava na praia, sabia que ali era meu limite”.
Um caldeirão em ebulição Rodrigo Oliveira de Faria, 27 anos, militante do movimento estudantil, formado em publicidade e terminando o curso de direito. “Isto aqui é um grande caldeirão que está em constante ebulição, por conta das divergências de realidades sociais entre as pessoas. E a cidade tem um lado perverso, que ensina você a ser indiferente. Eu gosto de São Paulo, mas para quem chega de fora não é uma cidade acolhedora. Eu consegui me adaptar e me sinto acolhido, coisa que não acontece com todo mundo.”