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Ano 1 • Número 48

R$ 2,00 São Paulo • De 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2004

Nova rodada continental contra a Alca A

mobilização dos movimentos sociais contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) vai continuar até que todas as negociações do acordo sejam interrompidas. Essa é a resolução do 3º Encontro Hemisférico de Luta contra a Alca, iniciado dia 26, em Havana, Cuba. No evento, de quatro dias, 1.042 representantes de organizações de trabalhadores, indígenas, mulheres, estudantes e religiosos, de 32 países das Américas, alertaram para o perigo da chamada Alca light e traçaram estratégias de ação conjunta, com protestos e campanhas de conscientização da população sobre os perigos do livre comércio. Uma das propostas é colocar cem mil pessoas nas ruas em repúdio à próxima reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), prevista para ser realizada em julho, no Brasil. Pág. 9

Celso Junior/AE

Em Cuba, mais de mil lideranças populares, de 32 países das Américas, ampliam campanha contra o livre comércio

Povo guarani, do Mato Grosso do Sul, resiste às agressões e ameaças de fazendeiros e do governo para exigir demarcação de suas terras

Economia começa mal em 2004

Lula completa reforma que põe PMDB no poder O governo retribuiu ao PMDB o apoio recebido na aprovação das reformas de 2003, e cedeu ao partido os ministérios das Comunicações e da Previdência. Assim, a base aliada na Câmara já se aproxima dos 80%. A atitude preocupa, apesar de refletir uma tendência observada em toda a gestão petista. O novo ministro das Comunicações é dono de rádios e a Seguridade Social é um dos setores da União com maior fluxo de recursos. Para abrir espaço aos peemedebistas, o governo teve de alterar várias outras pastas. Págs. 2 e 7

Trabalhadores anunciam greve na Bolívia Pág. 10

Sociólogo quer globalização humanista Pág. 12

Parmalat, mais uma crise típica do capitalismo Pág. 12

e sinalizou que a penúria continua. Em 2003, segundo o IBGE, a taxa de desemprego atingiu, em média, 12,3%, nas seis principais regiões metropolitanas do país. E mesmo com todo o arrocho feito pelo governo, o Brasil fechou 2003 mais endividado:

a dívida pública interna federal cresceu 13%. Com o corte de gastos para pagar uma dívida impagável, R$ 70 bilhões deixaram de ser investidos – recursos suficientes para construir 2,8 milhões de casas populares. Pág. 5

Os Guarani estão determinados a lutar “até a morte” para conseguir do governo a demarcação de suas terras no município de Japorã, no Mato Grosso do Sul. Mesmo diante da ameaça

de serem retirados “na marra”, os índios pretendem manter as retomadas das fazendas identificadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) como áreas indígenas. Pág. 4

Rodrigo Petterson/ Greenpeace

Se esperança havia na retomada do crescimento neste ano, o Banco Central (BC) tratou de desfazer a ilusão, ao manter o altíssimo nível da taxa básica de juros em 16,5%. Assim, jogou um balde de água gelada no já deprimido mercado de trabalho

Sob ameaças, índios resistem em suas terras

Manifestantes do Greenpeace protestam em Brasília. Pesquisa do Ibope revela que maioria dos brasileiros é contra os transgênicos – Pág. 3

Tráfico humano vitima mulheres pobres e negras A campanha nacional contra o tráfico humano, que inclui o esclarecimento público, não consegue alterar o alarmante número de mulheres brasileiras comercializadas para fins de exploração sexual. Um diagnóstico a ser divulgado em fevereiro, realizado em quatro Estados, visa traçar um perfil do crime, um meganegócio que no mundo todo faz até 4 milhões de vítimas e movimenta 12 bilhões de dólares anuais. Segundo dados do Centro de Estudos de Referência da Criança e do Adolescente (Cecria), uma mulher brasileira chega a valer até 15 mil dólares. As vítimas são jovens entre 12 e 25 anos, negras, sem acesso à educação e mães precoces. Pág. 8

E mais: REFORMA AGRÁRIA – Na comemoração dos 20 anos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o ministro do Desenvolvimento Agrário assegurou que a reforma agrária é uma das prioridades do governo para 2004. O presidente do Incra legitimou as ações do MST: “Sem movimento social organizado, o Estado não atua”. Pág. 4 LIVRE COMÉRCIO - Em entrevista ao Brasil de Fato, o senador Eduardo Suplicy explica projeto de sua autoria que limita a autonomia do Executivo na adesão a qualquer acordo internacional. Pág. 9 CULTURA - Há dez anos, o AfroReggae ensina aos jovens de Vigário Geral (RJ) que a música é um dos caminhos de resistência e de resgate da cidadania. Pág. 16


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De 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2004

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Tiago Rodrigo Dória • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Bernardete Toneto, 5555 Marilene Felinto, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, 5555 Natália Forcat, Nathan, Ohi • Diretor de Arte: Valter Oliveira Silva • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistentes de redação: Bruno Fiuza, Maíra Kubík Mano e 55 Tatiana Azevedo 55 Programação: André de Castro Zorzo 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: FolhaGráfica 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

NOSSA OPINIÃO

Não basta trocar ministros. O Brasil precisa crescer

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presidente Luiz Inácio Lula da Silva realizou, na semana passada, sua primeira reforma ministerial. As mudanças na administração acabaram surpreendendo a maior parte dos analistas políticos porque Lula foi além da esperada incorporação do PMDB ao governo, e decidiu tocar em pontos delicados da sua administração. A criação de um superministério para a área social, entregue ao ex-prefeito de Belo Horizonte e hoje deputado federal Patrus Ananias (PT-MG), e a reorganização das atribuições do ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, que incorporou a gestão da máquina administrativa, são dois sinais de que o presidente resolveu mexer em setores que não funcionaram bem no primeiro ano de seu mandato. Com isto, o governo espera ganhar mais agilidade na execução dos programas e metas estabelecidos. A reforma ministerial, porém, não é uma panacéia. Pode melhorar o desempenho administrativo da máquina governamental, mas não muda o caráter fundamental da gestão Lula, até aqui marcada por uma política econômica ultra-ortodoxa que inibe a realização do principal projeto do programa eleitoral petista: a geração de emprego e renda.

O que elegeu Lula presidente foi justamente a insatisfação do povo brasileiro com a política econômica adotada nos oito anos da gestão Fernando Henrique Cardoso. O alto nível de desemprego e a piora nas condições de vida da população foram temas centrais da campanha e garantiram a vitória do PT nas urnas. Agora, um ano depois da posse, o presidente não dá sinal algum de que a política de seu antecessor possa mudar um milímetro sequer. Ao contrário, o que se viu nas últimas semanas nada tem a ver com o prometido espetáculo de crescimento, já que a equipe comandada pelo ex-banqueiro Henrique Meirelles, presidente do Banco Central do Brasil (BC), decidiu reafirmar sua predisposição para o imobilismo medroso. Qualquer arremedo de crescimento, como o suspiro de final de ano alimentado pelo 13º salário, festas natalinas e ano novo, é visto como ameaça à “estabilidade dos mercados”. Por isso, o BC resolveu estancar a lenta e gradual redução dos juros, congelando a taxa básica em 16,5% ao ano. Ao manter os juros nos níveis mais altos do mundo, o BC parece ter decidido que a

economia, também em 2004, deve crescer pouco ou quase nada. Na mesma semana passada, o IBGE divulgou o tristíssimo balanço de emprego e renda de 2003. No ano passado, a taxa de desemprego atingiu, na média do ano, 12,3% nas seis regiões metropolitanas pesquisadas pelo órgão. Quanto ao rendimento real médio recebido pelos trabalhadores anotou queda real (depois de descontada a inflação) de 12,9%. Foi o sexto ano consecutivo de queda, refletindo o aumento do número total de desempregados. Mais: em dezembro, perto de 2,3 milhões de empregados ganhavam menos do que um salário mínimo/ hora. Esse contingente de trabalhadores aumentou 52% em relação ao mesmo mês de 2002. A reforma ministerial pode até criar novas expectativas para melhorar a atuação da equipe que comanda o país. Mas não tenhamos ilusões. As verdadeiras mudanças, dependem de uma guinada nos rumos da política econômica e, por ora, não há sinal disso. Apenas com outra orientação no Ministério da Fazenda é que o governo Lula poderá apresentar o desempenho que dele espera o povo brasileiro.

FALA ZÉ

OHI

CARTAS DOS LEITORES SADAM HUSSEIN A fotografia recém-publicada do atual ministro da defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld, cumprimentando efusivamente Sadam Hussein, comprova o que já se sabia: os EUA abandonam e derrubam os ditadores, mas quando eles contrariam seus interesses. Porém, nesse ex-aliado dos Estados Unidos temos que reconhecer um momento de nobreza: quando o governo Bush deu a Sadam 24 horas para sair do país com sua família e seus milhões, deixando o Iraque e suas riquezas aos cuidados do invasor, ele agiu como autêntico estadista, preferiu ficar junto a seu povo. Benjamin Almeida Cezar São Paulo (SP) CRIME ORGANIZADO Num comércio mundial ilegal cada vez mais atuante, forte e poderoso – que, em trilhões de dólares anuais, só fatura menos do que o Produto Interno Bruto estadunidense –, o crime organizado tem forte penetração nos mais altos escalões governamentais de todos os países. Eis aí o crime organizado, o mais forte concorrente do mercado globalizado de onde se origina e ramifica. Suas múltiplas atividades englobam quase todos os ramos do comércio como: armas, drogas, jogos, prostituição, bebidas, cigarros, combustíveis, ouro, pedras preciosas, minérios estratégicos, madeiras

nobres, eletroeletrônicos, tráfico de escravos e de órgãos humanos, além da biopirataria. Esses ladrões de ambos os lados, na legalidade ou na ilegalidade, lavam e remetem para os paraísos fiscais todo esse dinheiro sujo, e às vistas das autoridades (via Banestado) que, estranhamente, nada fazem no combate a tais crimes que tantos prejuízos causam aos povos. João Carlos da Luz Gomes Porto Alegre (RS) PARTIDO DOS TRAIDORES É vergonhoso, é lamentável. Estou sem palavras para dizer o que estou sentindo a respeito do governo Lula. Nas eleições de 2002, fui às urnas confiante de que o companheiro Lula fosse mudar o meu país, que o sonho de um Brasil melhor, mais justo e igualitário começaria a se realizar em 1º de janeiro de 2003. Porém, vi meu sonho se parecer com gelo fora do freezer, foi derretendo aos poucos. Já não confio mais no governo Lula. Ele que tanto criticava as alianças de FHC, hoje faz as mesmas coisas que este fez. Lula mostra para o mundo que o socialismo morreu, e que é mais viável construir um país sustentado nas cartilhas do Fundo Monetário Internacional do que seguir metas e ideais propostos em conjuntos com os trabalhadores. Carlos César Higa por correio eletrônico

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CRÔNICA

Ficção ou realidade? Algumas anotações sobre o folhetim eletrônico (II) Luiz Ricardo Leitão Durante os três anos em que vivi fora do Brasil, constatei o impacto do nosso folhetim eletrônico sobre platéias estrangeiras. Seja pela qualidade da produção, seja pela atualidade do argumento, o êxito das novelas globais na América Latina é indiscutível. Até em Cuba socialista, o produto da Globo possui grande aceitação. Mas há sutis estereótipos divulgados para os nossos vizinhos. O Rei do Gado, em Cuba, deixou os telespectadores intrigados com a “bondade” de um latifundiário que oferecia churrasco aos sem-terra acampados em sua fazenda. Lecionando literatura brasileira para os cubanos, pude refletir um pouco mais sobre a função cumprida pelo folhetim global. Alguém se lembra do tom moralizador de Vale Tudo (1988-1989), preâmbulo magnífico para a vitoriosa campanha presidencial de Fernando Collor, o “caçador de marajás”? Já se esqueceram de Sassá Mutema, o papel de Lima Duarte em O Salvador da Pátria (1989), clara advertência ao público sobre os

riscos de se eleger um tipo “popular”? (Se você pensou em um líder metalúrgico do ABC, a semelhança não teria sido mera coincidência...) Com a cúmplice propaganda da própria imprensa, o cinismo e a falta de ética só têm prosperado na programação diária. A rede aberta de televisão, à exceção da TVE, é um festival de voyeurismo e perversidade. Naturalizaram-se as “pegadinhas”, consideradas simples diversão para qualquer telespectador. Apresentadores e produtores simulam os mais variados conflitos domésticos para atrair audiência. As manchetes dos jornais, antes reservadas à vida social, dedicam agora generosos espaços às vicissitudes do mundo espetacular, como se a nossa existência devesse ser orientada pelo “educativo” exemplo de Xuxas, Faustões, Ratinhos, Gugus & cia. Quando George Orwell escreveu o romance 1984, criando a figura do “Grande Irmão”, alegoria do Estado repressor que tudo vê e tudo controla, decerto não imaginava que o Big Brother seria o título do mais badalado produto do “padrão globo de qualidade”. Na realidade, pouca gente se importou com a farsa, já que, segundo a mídia, todos

têm direito a quinze minutos de celebridade. E, para tanto, quase tudo é válido, conforme “ensina” a novela das 8. Mas o que fará a MTV estadunidense com as cenas (reais!) de estupro registradas durante a gravação do programa The Real World (uma série que reúne diversos adolescentes sob o mesmo teto, cuja adaptação pela MTV nacional foi batizada de Na real)? Proibirá sua apresentação, proclamando um surpreendente espírito de ética e dignidade? Levará as imagens ao ar, alegando tratar-se de um episódio “educativo” para a conscientização da juventude? Promoverá uma “pesquisa interativa” com os telespectadores, faturando as ligações a um dólar por minuto? Ou será que vai exibi-las apenas nas suas filiais do Terceiro Mundo, onde os fins sempre justificam os meios? Luiz Ricardo Leitão é editor, escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em literatura latino-americana e caribenha pela Universidade de La Habana (Cuba), é autor da Gramática Crítica: o culto e o coloquial no português brasileiro (Oficina do Autor Editora)

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NACIONAL SEGURANÇA ALIMENTAR

Brasileiro recusa transgênico no prato Ibope constata que 74% da população são contra a liberação dos organismos geneticamente modificados

S

e a polêmica sobre transgênicos causa conflitos e desgaste político para o governo, a última pesquisa divulgada pelo Greenpeace reforça a posição de ambientalistas e movimentos sociais. Em uma manifestação na rampa do Palácio do Planalto, em Brasília (DF), dia 26, o Greenpeace – que protestava contra as mudanças no relatório do Projeto de Lei de Biossegurança – divulgou que 73% dos entrevistados são contra a liberação dos transgênicos no país até que exista consenso entre os cientistas a respeito da segurança desses organismos para o ambiente e para a saúde. A pesquisa, realizada pelo Ibope com 2 mil brasileiros, em dezembro de 2003, constatou ainda que 74% dos brasileiros não querem consumir alimentos transgênicos. “Esse é mais um motivo para os deputados reverem o projeto de biossegurança. Até agora, somente as demandas de uma minoria de produtores e de poucas empresas foram atendidas”, critica Gabriela Vuolo, da Campanha de Engenharia Genética do Greenpeace. O alvo das críticas dos ambientalistas, inclusive do Ministério do Meio Ambiente (MMA), foi o conteúdo do relatório do então líder da Câmara e relator do projeto, Aldo Rebelo (PCdoB-SP) – que acaba de assumir o novo Ministério de Articulação Política. Mas foi o deputado pernambucano Renildo Calheiros (PCdoB) quem ficou com o ônus do controverso relatório do colega de partido. De acordo com o parecer de Rebelo, a necessidade de realização de estudos de impacto ambiental e sobre a saúde Glifosato – Herbicida utilizado para humana passacombater as ervas ria a ser deterdaninhas. No caso minada pela de sementes transgênicas, o herbicida Comissão Técé aplicado depois nica Nacional de que as plantas nascem, aumentando os Biossegurança (CTNBio) e não riscos de contaminação por resíduos pelos Ministéque permanecem no rios do Meio alimento. Ambiente e da Saúde, o que contraria a proposta inicial, defendida pelo governo e encabeçada pela ministra Marina Silva.

ao MMA e dia 21 a ministra Marina Silva voltou à cena e se reuniu com o ministro José Dirceu (Casa Civil) e com Rebelo para defender a manutenção do projeto inicial. Uma das reivindicações do ministério é a retirada da urgência para a votação do projeto. A troca do relator pode facilitar algumas mudanças, mas Renildo Calheiros anunciou que a base do relatório será mantida. “O ponto de partida é o relatório do Aldo (Rebelo). Não podemos perder mais tempo”, afirma o deputado, que admite “não estar completamente inteirado sobre o tema”. Ca-

lheiros promete um amplo debate no Congresso antes de levar o PL ao Plenário. Quanto às bruscas mudanças sobre o texto original, o deputado é reticente e diz que se trata de um processo “natural”: “Não há como fazer o desfecho de um tema sem receber críticas. O Congresso sempre procura trabalhar em sintonia com a sociedade”. O descontentamento entre os deputados do Núcleo Agrário do PT com o chamado “núcleo duro” também se acentuou. Para o deputado gaúcho Adão Pretto, o principal motivo para a convocação

extraordinária do Congresso foi a votação do PL e não as emendas da reforma da Previdência e as medidas provisórias para o setor elétrico e da Parceria Público-Privada, como alegou o governo. “Essa convocação foi feita para votar a Lei de Biossegurança e agradar os ruralistas”, reitera.

NOVOS MINISTROS A acomodação dos neo-aliados do PT no Ministério de Ciência e Tecnologia também não agradou. Saiu Roberto Amaral (PSB) para a entrada do deputado Eduardo CamIlustrações: Marcio Baraldi Foto: Greenpeace/Rodrigo Petterson

Claudia Jardim da Redação

Começa novo ciclo de protestos Protesto contra as mudanças no projeto de Biossegurança; pesquisa aponta que os brasileiros não querem transgênicos

MARINA REAGE Para Flávia Londres, da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura (ASPTA), mesmo antes de apresentar o relatório, Rebelo já preocupava os movimentos sociais porque “reproduzia o discurso dos ruralistas e hesitava em ouvir os cientistas críticos. Não esperávamos coisas muito favoráveis desse PL porque o governo nunca fez questão de defender seu próprio projeto”, diz Flávia. Para ela, a presença de grande parte de deputados favoráveis à liberação na Comissão Especial de Biossegurança já indicava os rumos do projeto. O relatório também desagradou

Monsanto tem prejuízos e sai da Argentina Após expulsar do campo cerca de 160 mil famílias de pequenos agricultores argentinos, que não conseguiram competir com as grandes indústrias produtoras de transgênicos, a transnacional Monsanto anunciou sua saída do país. Sob o argumento de que o mercado ilegal de sementes impedia a indústria de alcançar seus lucros, a Monsanto disse que estava fechando as portas na Argentina. Na verdade, o que incomoda a transnacional é que em cultivos como a soja e o trigo, os agricultores podem replantar as sementes, e com o aval da Lei de Sementes Argentina, os produtores não precisam pagar

pos (PSB-PE), neto do presidente do partido, Miguel Arraes, responsável por articular com José Dirceu a transição na pasta que agrega a CTNBio. A nomeação de Campos pode indicar mais um caminho aberto para a biotecnologia sem segurança. Em 2003, o deputado pernambucano pressionou o então ministro Amaral para liberar a entrada em Pernambuco de milho transgênico importado da Argentina, sob o argumento de que não havia milho para abastecer as aviculturas do Estado. Assim como em outros anos, em 2003 o Brasil exportou milho. “Isso é muito preocupante porque demonstra de que lado o ministro está”, avalia Flavia Londres. “Esse não é o nosso governo”, lamenta Adão Pretto, ao criticar as mudanças do projeto pré-eleitoral para a atuação do governo. “Amaral era um dos ministros mais socialista que tínhamos”, avalia o deputado, que apesar de lamentar a saída de Amaral, não faz restrições à nomeação de Campos.

direitos de propriedade intelectual para a empresa detentora da tecnologia, diferente da legislação brasileira, que prevê o pagamento de royalties nesses casos. De acordo com o Greenpeace o mercado ilegal de sementes existe na Argentina, mas a Monsanto também é responsável por ele. Assim como aconteceu com a soja no Rio Grande do Sul, a variedade de milho transgênico RR GA21 (tolerante ao herbicida glifosato) da transnacional foi plantada em campo argentino sem autorização. Para fazer parte desse mercado ilegal, como acusa a Monsanto, os pequenos agricultores precisariam

guardar parte da colheita para vendê-la. Considerando que um produtor de 200 hectares a 500 hectares não tem estrutura nem recursos para fazer essa reserva, tal prática seria economicamente inviável. Outro aspecto que derruba a argumentação da Monsanto é o fato de que os pequenos produtores não dispõem das condições especiais de colheita e armazenamento requeridas pelas sementes transgênicas. “A situação simulada pela Monsanto afeta diretamente o pequeno produtor. Além disso, é uma forma de pressionar o governo argentino para que se esqueça da ilegalidade em que a transnacional esteve

envolvida com o milho RR GA21 e o aprove o mais breve possível. Esse híbrido poderia evitar que o produtor guardasse sementes para a colheita seguinte, além de aumentar as vendas do herbicida da Monsanto, o glifosato”, afirma Emiliano Ezcurra, da Campanha de Biodiversidade do Greenpeace na Argentina. “Agora que os números não a satisfazem, a empresa quer mudar as regras do jogo. Com isso a Monsanto mostra aos produtores a verdadeira face das plantações transgênicas: as patentes, uma ferramenta que os tornará dependentes da transnacional para sempre”, reitera Ezcurra. (CJ com Agenpress)

Desapontados com as alterações do Projeto de Lei de Biossegurança, movimentos organizados pela Via Campesina e organizações não-governamentais (ONGs) iniciam novo ciclo de protestos contra o projeto. De acordo com um manifesto divulgado pelas lideranças populares, o projeto deixará a sociedade brasileira totalmente desprotegida e sem defesa diante da avidez das transnacionais dos transgênicos, “ao suprimir o princípio da precaução, ao retirar representação da sociedade civil da CTNBio, ao flexibilizar normas de rotulagem e ao autorizar a liberação de transgênicos sem testes prolongados de segurança alimentar e sem estudo prévio de impacto ambiental, dando todo o poder à CTNBio”. As entidades reiteram a preocupação de que um pequeno grupo de transnacionais tenha o controle das sementes para produção de alimentos “provocando uma nova onda de êxodo rural e miséria no campo”. O manifesto também aponta as contradições entre o projeto e a histórica defesa, pelos partidos de esquerda, da democracia e soberania alimentar do país. “Nos surpreende o temor que os defensores dos transgênicos têm em submetêlos a testes independentes para avaliar sua segurança alimentar e seus impactos ambientais, que toda sociedade exige”, diz o documento. Diante da negligência do órgãos de fiscalização frente à obrigatoriedade de rotular os alimentos que contêm acima de 1% de conteúdo transgênico, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) saiu à frente e reproduziu milhares de selos com o símbolo dos transgênicos que deve constar nos rótulos dos produtos. O MST pretende alertar os consumidores sobre o direito à informação e sobre os possíveis riscos dos organismos geneticamente modificados. De acordo com uma pesquisa do Ibope, 65% dos brasileiros já ouviram falar sobre transgênicos. Em 2002, esse percentual era de 37%, o que indica que as campanhas organizadas pelos movimentos sociais e as pressões de parte dos parlamantares têm tido resultados.


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NACIONAL MATO GROSSO DO SUL

Índios Guarani resistem a ameaças Mesmo com área já identificada como indígena, povos não conseguem os 9 mil hectares que lhes pertencem

O

s povos indígenas de Mato Grosso do Sul exigem o cumprimento de seus direitos e querem a demarcação de suas terras. Mas o que encontram como resposta são ameaças, a omissão do governo federal e o terrorismo praticado pela imprensa. No entanto, a comunidade afirma que não desocupa a área, a não ser que “cavem um buraco e nos joguem dentro”, sentenciou uma jovem indígena. A área indígena, chamada Tekoha Yvy Katu (Terra Sagrada) – 9.461 hectares, identificadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em relatório coordenado pelo antropólogo Fabio Mura – pertence aos 3.800 guarani da aldeia Porto Lindo, demarcada atualmente em 1.648 ha. A área fica no município de Japorã, a 510 km de Campo Grande, no Cone Sul de Mato Grosso do Sul, divisa com o Paraguai. Diante da grave situação de confinamento em que se encontram, penalizados por desnutrição, suicídios e à mercê da morosidade do governo federal em demarcar seu território tradicional, os índios resolveram, dia 17 de dezembro de 2003, interditar três pontes da rodovia que liga a cidade de Iguatemi a Sete Quedas. Com a intervenção da Polícia Federal (PF), os indígenas montaram o

acampamento nas margens da estrada. Sem solução, quatro dias depois retomaram as fazendas localizadas na área – Fazendas São Jorge, Remanso, São José, Chaparral, Paloma e pequenas chácaras –, totalizando quatorze ocupações. Os fazendeiros entraram com liminar de reintegração de posse na Justiça Federal, em Dourados.

O juiz Odilon de Oliveira marcou audiência de conciliação entre as partes, da qual participaram somente três representantes indígenas. No dia seguinte o juiz foi até a aldeia e garantiu apoio aos direitos indígenas. Dia 14 de janeiro, contrariando esse compromisso, concedeu aos fazendeiros a reintegração da posse, determinando prazo de três dias

para a comunidade desocupar as fazendas. Caso a Funai não retirasse os índios da região, deveria pagar multa de R$ 2 mil a cada dia de descumprimento da decisão. O juiz Oliveira, da 3º Vara Federal de Campo Grande, que abarca praticamente todas as demandas judiciais que repercutem na opinião pública envolvendo os Celso Júnior/AE

Rosália Silva e Jorge Vieira de Campo Grande (MS)

VIOLÊNCIA RS

Militares ferem mulheres e crianças

Lideranças guarani lutam pela retomada de suas terras, mesmo com ameaças de morte

Eduardo Luiz Zen e Olga Arnt de Porto Alegre (RS)

MST

Douglas Mansur

Festa de 20 anos reafirma luta pela terra Tatiana Merlino e Bruno Fiuza da Redação Em 20 anos de luta pela terra, a cidadania do povo brasileiro foi resgatada. Esse é o maior orgulho manifestado por dirigentes e militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que reuniram-se em São Miguel do Iguaçu (PR), em seu 12º encontro nacional. Nos dias 19 a 24, definiram as estratégias de luta pela reforma agrária. No assentamento Antônio Tavares, também discutiram a conjuntura nacional, homenagearam lutadores e organizações que originaram o movimento e comemoraram as conquistas das duas últimas décadas. Entre as atividades, houve a inauguração do Bosque da Solidariedade, no dia 22, com a participação de autoridades locais e representantes do governo federal. Na solenidade, Miguel Rossetto, ministro do Desenvolvimento Agrário, disse que a reforma agrária entrou definitivamente na agenda do governo nesse ano e prometeu o assentamento de 530 mil famílias até 2006. Rolf Hackbart, presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), reafirmou a meta de assentar 115 mil famílias em 2004. O presidente do Incra destacou a importância da reforma agrária como necessidade básica para o desenvolvimento econômico do país. “É fundamental para desconcentrar a propriedade, gerar renda e cidadania”, afirmou. Hackbart disse ainda que o “motor dessa mudança são os movimentos sociais”. “Sem movimento social organizado, o Estado não atua. Ele reage à pressão da sociedade”. O governador do Paraná, Roberto Requião, usou a palavra grega poiesis - em ação – para definir o MST. Segundo Requião, o movimento realiza na prática aquilo que prega. No evento, também estavam presentes Osvaldo Russo, secretário de Inclusão Educacional do Ministério da Educação (MEC);

indígenas no Estado, é conhecido por suas decisões contrárias aos interesses indígenas. Em declarações à imprensa local, o Secretário de Segurança Pública do Estado Dagoberto Nogueira disse que tomará todas as medidas para a retirada dos indígenas, mesmo que “na marra”. A ação de despejo contaria com aproximadamente 600 homens, envolvendo as polícias federal, militar e civil, além do acompanhamento logístico do exército. Seriam ainda colocados à disposição dois helicópteros e uma aeronave da PF, ao custo de aproximadamente R$100 mil por dia de operação. Um recurso do Ministério Público Federal julgado pela desembargadora Consuelo Yoshida de São Paulo determinou que a área indígena seja delimitada. Mas autoridades do governo do Estado de MS, fazendeiros e o próprio juiz Oliveira dizem que não entenderam o teor da sentença e destacaram que a partir de 11 de fevereiro a desocupação será executada.

Sem-terra celebram duas décadas de mobilização em defesa da Reforma Agrária sob o lema: “ocupar, resistir e produzir”

o deputado federal João Alfredo (PT/CE); Jorge Samek, presidente da Itaipu-Binacional; e Sérgio Mamberti, secretário de Música e Artes Cênicas do Ministério da Cultura (MinC).

PRESENÇAS ILUSTRES Participaram do encontro personalidades como Ariovaldo Umbelino, doutor em geografia e professor da Universidade de São Paulo (USP); Luiz Marinho, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT); o bispo dom Orlando Dotti, membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT); o economista Plínio de Arruda Sampaio Júnior; o pesquisador César Benjamin, do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ); Marcelo Resende, ex-presidente do Incra; Ana Maria Freire, viúva do pedagogo Paulo Freire; e Nalu Faria, representante da Marcha Mundial das Mulheres. Entre os homenageados no en-

contro, estava a antiga dirigente das Ligas Camponesas Elizabete Teixeira, esposa do líder camponês assassinado João Pedro Teixeira. Aos 79 anos, Elizabete acredita que a reforma agrária não está longe de acontecer: “Quero que antes que Deus me tire desse mundo, a reforma agrária já tenha sido implantada neste país”. Ela afirma, no entanto, que só com a pressão popular as transformações virão, e que o papel do movimento é fundamental: “Eu amo os companheiros que lutam pela terra e apóiam o MST”.

AMOR PELO ESTUDO João Pedro Stedile, da direção nacional do MST, lembrou que as conquistas do movimento nesses 20 anos não ficaram restritas apenas a batalha pela terra . “A nossa luta é por uma vida decente para todos”. Para ele, o MST recupera aqueles que estão excluídos pelo sistema capitalista e lhes dá dignidade. “Esse é nosso maior orgulho”.

Stedile falou das cerca de 1.800 escolas públicas dos acampamentos e assentamentos, onde hoje estudam cerca de 160 mil crianças no ensino fundamental. O movimento também trabalha com educação infantil e desenvolve um programa de alfabetização de cerca de 30 mil jovens e adultos nos assentamentos e acampamentos. Cerca de 750 pessoas estão em universidades, entre elas 58 cursando medicina em Cuba. “O movimento desenvolve o amor ao estudo. Sabemos que nunca é tarde para começar”, afirmou Stedile. Prova disso é o sem-terra Luis Beltrame de Castro, 95 anos, 8 filhos, 47 netos, 4 bisnetos e 6 tataranetos. “Seu” Luis participou de seis marchas do MST, numa das quais, dois anos atrás, percorreu 1.372 quilômetros a pé. Mesmo não tendo freqüentado a rede convencional de ensino, recentemente lançou um livro de poesias com o apoio do movimento, escrito a partir do que aprendeu com seu pai e nos cursos do MST.

Um confronto entre a Brigada Militar e 300 agricultores assentados, que faziam um protesto pela liberação dos recursos atrasados do Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf), dia 26, em Santana do Livramento (RS), resultou em cerca de 20 agricultores feridos. O confronto ocorreu quando os manifestantes deixavam a agência do Banco do Brasil, após fechar acordo com a gerência, que garantiu a liberação dos recursos atrasados. No momento em que deixavam a agência bancária, os trabalhadores rurais foram surpreendidos pela ação da BM. “A brigada começou a revistar as pessoas que saíam da agência e em seguida o comandante deu ordens para os brigadianos começarem a bater”, afirma Paulo Cesar Bosa, da coordenação estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Mulheres grávidas e crianças não foram poupadas da violência. O técnico agrícola Leandro Atílio Ferreira, que participou da manifestação, diz que, além de repreender o movimento com violência, a Brigada tentou impedir que os feridos fossem levados ao hospital. “Nunca vi tanta covardia. Ficamos alojados na secretaria do MST sem poder sair nem socorrer os companheiros feridos”, contou Ferreira. Um dos agricultores foi atingido na cabeça e está hospitalizado com suspeita de traumatismo craniano. Cinco trabalhadores rurais foram presos. O deputado frei Sérgio Görgen (PT/RS) condenou a ação da Brigada Militar. “Foi uma ação completamente desnecessária, pois os colonos já haviam feito acordo com a gerência e estavam desocupando a agência. A truculência da Brigada Militar não pode ficar impune. Exigimos que o governo do Estado puna os responsáveis por essa selvageria”, afirma o deputado. A Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa entrou com uma ação judicial para apurar os excessos praticados pela BM, sob o comando do coronel Lauro Binsfeld, do Comando Regional da Fronteira Oeste. As imagens captadas pela rede de televisão RBS foram solicitadas para identificar os responsáveis pela ação.


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NACIONAL CONJUNTURA

Emprego, o triste balanço de 2003 Lauro Jardim de São Paulo (SP)

A

equipe comandada pelo exbanqueiro Henrique Meirelles, presidente do Banco Central do Brasil (BC), decidiu reafirmar, na semana passada, sua predisposição inata para o imobilismo medroso. Qualquer arremedo de crescimento, mesmo que inchado por fatores temporários (as festas de fim de ano, por exemplo), é visto como ameaça à “estabilidade dos mercados”. Por isso, o BC resolveu estancar a lenta e gradual redução dos juros, iniciada em junho do ano passado, congelando a taxa básica em 16,5% ao ano, diante de uma inflação anual na faixa de 6% a 7%. A decisão foi tomada no mesmo momento em que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) anunciava os dados sobre o emprego e a renda dos brasileiros no ano passado, confirmando o que já se sabia: a economia atravessou 2003 em virtual estagnação. Ao manter os juros nos níveis mais altos do mundo, o BC parece ter decidido que a economia, também em 2004, deve crescer pouco ou quase nada.

Renato Stockler

Enquanto a economia anda para trás e o desemprego aumenta, o Banco Central, independente, pára de baixar os juros

Dados do IBGE revelaram o que o brasileiro sentia na pele a estagnação da economia

danças de metodologia no cálculo do desemprego em 2002, o IBGE decidiu comparar o período entre março e dezembro para apurar a tendência do desemprego entre os dois últimos anos. Nos 10 meses analisados, a taxa de desemprego passou de 11,7% em 2002 para 12,5% no ano passado. O índice fechou em relativa queda no final do ano, refletindo o que

SEM ALÍVIO No ano passado, a taxa de desemprego continuou elevada, atingindo, na média do ano, 12,3% nas seis regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE. Como houve mu-

os economistas chamam de “fatores sazonais” (ou seja, que se repetem em determinados períodos do ano). Neste caso, o pagamento do 13º salário e as festas de Natal e fim de ano ajudaram a aquecer as vendas, na comparação com os meses anteriores, levando a um aumento das contratações. Em dezembro, especificamente, foram contratadas 47 mil pessoas

a mais do que em novembro, num avanço modestíssimo de 0,25%. O balanço só foi positivo porque cresceram as contratações de trabalhadores sem carteira e mais pessoas decidiram trabalhar por conta própria, sem garantias, nem direitos. Na verdade, o total de empregados com carteira assinada caiu 0,5% entre novembro e dezembro, significando o fechamento de 39 mil

postos de trabalho formais. Mas, para compensar, foram abertas vagas para 59 mil trabalhadores sem carteira assinada e mais 45 mil por conta própria, somando 104 mil novos empregos, com salários mais baixos, sem Previdência Social, nem Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Portanto, todos os novos empregos criados pela economia, com destaque para o comércio, não ofereciam qualquer tipo de segurança ao trabalhador; eram empregos precários, que tendem a evaporar neste começo de ano, assim que murchar a demanda impulsionada pelo Natal e pelos festejos de ano novo. A pesquisa de emprego e desemprego do IBGE mostra que o desempenho do mercado de trabalho seguiu a mesma tendência ao longo de todo o ano passado. Na comparação entre dezembro de 2003 e igual período do ano anterior, o total de pessoas ocupadas cresceu, de fato, 4,5%, com a abertura de 812 mil empregos. Mas o total de pessoas economicamente ativas (ou seja, em condições e com disposição para trabalhar) aumentou mais rapidamente, trazendo mais 996 mil pessoas para o mercado de trabalho. Resultado: o total de desempregados cresceu 8,7% no período, já que 2,3 milhões de pessoas (189 mil a mais do que em dezembro de 2002) não conseguiram empregos.

DÍVIDA

Jorge Pereira Filho da Redação “A dívida continua sendo um problema para o Brasil. O país ainda está vulnerável a um problema no cenário externo”. A constatação não é de um crítico da política econômica, nem de qualquer parlamentar tido como radical pela grande mídia, mas de Anne Krüeger, diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI). Já George Soros, o megaespeculador internacional, também cultuado pelos grandes veículos, disse durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, que “tanto a política fiscal como a monetária do governo Lula são restritivas demais”. Para Soros, o governo brasileiro deveria ser mais “agressivo no estímulo ao crescimento econômico”. Krüeger e Soros sabidamente trabalham em defesa do interesse dos grandes credores da dívida externa brasileira e não estão preocupados com a situação dos milhões de brasileiros desempregados. Mesmo assim, tais palavras são um atestado de fracasso da política econômica do governo em 2003, executada a mando do próprio FMI, mas uma política tão restritiva que é criticada até por representantes do “mercado”. A estratégia de cortar gastos sociais e reduzir lentamente a taxa de juros para economizar recursos para o pagamento da dívida brasileira fracassou. Em 2003, os números mostram que o endividamento cresceu, o desemprego aumentou e o Brasil ficou mais dependente dos capitais externos. De novo, o mesmo círculo vicioso dos oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso.

CORTE SOCIAL Mesmo com todo o arrocho feito pelo governo e a penúria dos serviços básicos como saúde e educação, em 2003, a dívida pública interna federal cresceu 13%. No início do ano passado, o país devia R$ 636 bilhões. Em dezembro, esse valor havia saltado para R$ 731 bilhões. Um terço desse endivida-

Luciney Martins/Rede Rua

Política econômica aumenta dependência externa

Com a política econômica do governo Lula, o resultado não pode ser outro senão o aumento do desemprego e da dívida

mento vencerá em 2004. Como o governo não vai conseguir pagar os credores, tomará mais empréstimos para honrar os pagamentos, endividando-se ainda mais. Em 2003, o corte de gastos promovidos pelo governo foi equivalente a 21% de todo o orçamento do setor público. Deixaram de ser investidos R$ 70 bilhões. Segundo o Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), com esses

recursos poderiam ser construídas 2,8 milhões de casas populares. Ou, então, o orçamento do programa Fome Zero poderia ser aumentado em 41 vezes. Toda essa economia, no entanto, não foi o bastante nem para dar conta do pagamento dos juros nominais da dívida, que havia atingido R$ 97,5 bilhões em novembro de 2003. O Brasil teve, então, de se endividar mais para rolar essa dí-

vida. Esse montante é equivalente a 5 vezes o orçamento do governo federal para a saúde, 85 vezes o dinheiro destinado para a reforma agrária e 460 vezes os recursos investidos em habitação.

EXEMPLO ARGENTINO Mas engana-se quem não acredita que não há alternativas para romper com esse círculo vicioso, que transfere riqueza para o exte-

rior e mantém a economia brasileira estagnada. No mesmo Fórum Econômico Mundial, em Davos, Joseph Stiglitz, ex-vice-presidente do Banco Mundial e antigo conselheiro do governo Bill Clinton, vaticinou: “Há vida depois da moratória, como demonstram Argentina e Rússia. Há quem diga que há vida melhor”. O economista lembrou que os próprios Estados Unidos sugeriram reduzir a dívida externa do Iraque, depois de invadí-lo. O governo Bush já conta com o apoio de outros países, também credores do Iraque, como França e Alemanha. Os EUA alegam que a dívida, pelo seu tamanho, impediria a reconstrução do Iraque. Para países como o Brasil, cujo endividamento atinge 55% do seu Produto Interno Bruto (PIB), o mesmo argumento não pode ser utilizado. Mas isso não impediu que a Argentina, depois de quebrar, decidisse pagar apenas 25% do que devia. Houve choradeira do FMI e dos especuladores internacionais, que ameaçavam não investir mais no país. O resultado foi que, em 2003, nossos vizinhos registraram crescimento econômico superior a 6%, com queda do desemprego. Enquanto isso, o Brasil decidiu manter o pagamento integral da dívida externa. A conseqüência foi um crescimento do PIB inferior a 1%, com o desemprego na casa dos 20% da população economicamente ativa.

América Latina envia mais recursos do que recebe Os países da América Latina têm muito mais em comum além da mesma origem ibérica: a região envia mais dinheiro para os países ricos do que recebe. Estudo da Comissão de Assuntos Econômicos para América Latina (Cepal) mostra que, em 2003, o saldo negativo para os povos latino-americanos foi de 29 bilhões de dólares (40,2 bilhões de dólares em 2002). Só nos últimos cinco anos, as nações mais ricas ficaram com 5% de to-

da riqueza produzida na América Latina. Enquanto isso, o número de pobres na região aumentou. Em 2003, havia 20 milhões a mais de pessoas nessas condições do que em 1997. A pobreza já atinge 44% da população latino-americana. Essa é a mais evidente relação entre o capital externo e desenvolvimento sócioeconômico da região. Remessa de lucros Mas de onde vem e para onde vai

esse dinheiro? A pesquisa preliminar da Cepal sobre o Balanço da Economia identifica que esses recursos, basicamente, equivalem às remessas de lucros das transnacionais sediadas na América Latina e ao pagamento de juros das dívidas externas. A onda de privatizações que contaminou a região na década de 90, estimulada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), apenas contribuiu para agravar essa situação. As transnacionais compraram as empresas públicas e

seus lucros, que antes pertenciam ao Estado, passaram a ser remetidos para o exterior. Ocorre que, quando uma nação envia mais recursos para fora do que recebe, acaba se endividando ainda mais para cobrir a diferença negativa. Para os países da América Latina, detentores de questionáveis e imensas dívidas externas, isso significa simplesmente o agravamento da sua vulnerabilidade externa. (JPF)


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NACIONAL EMPREGO

Setor de construção está às moscas Anamárcia Vainsencher da redação

N

em bem entrou 2004, o presidente da República convocou parte do ministério, anunciou prioridade para a criação de empregos, que a aprovação de projetos teria entre seus principais critérios a geração de postos de trabalho e que os ministros seriam cobrados para que tais metas fossem atingidas. Na ocasião, o balanço do emprego no país, em 2003, ainda nem tinha sido divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o que aconteceu dia 23 de janeiro. Em dezembro, 2,3 milhões de brasileiros não tinham emprego, um contingente 8,7% maior do que no mesmo mês de 2002. Em todo o ano passado, nas seis regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE, a taxa média de desemprego foi de 12,3%, maior que a taxa de 10,5% apurada no mesmo mês de 2002. Como a economia não cresceu em 2003, praticamente nenhum setor produtivo criou postos de trabalho, o que é tanto mais grave quando se trata da indústria de construção que, isoladamente, respondia, em 2001, por quase 4 milhões de empregos diretos (veja gráfico). De acordo com estimativas do Sindicato da Indústria da Construção Civil de São Paulo (SindusCon-SP) divulgadas em dezembro, o produto da construção deve apresentar uma queda de 8,5% em 2003, em comparação a 2002. Trata-se do maior declínio registrado pelo setor desde 1990, quando o IBGE mudou a metodologia de cálculo do Produto Interno Bruto (PIB). Em relação

Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem

A indústria recua há cinco anos. Grande gerador de emprego, o setor deveria ser prioritário numa política de crescimento

A construção caiu 8,5% em 2003, se continuar o resultado negativo, isso equivalerá à favelização do país

a 1998, o produto da construção apresenta declínio de 15%. A queda na atividade da construção está refletida em seu principal indicador de desempenho: o nível de emprego. No Brasil, foram fechados cerca de 43.500 empregos, de outubro de 2002 a outubro de 2003 (recuo de 3,49%). No final de outubro, a construção empregava 1,2 milhão de trabalhadores, portanto menos da metade do que em 2001.

DÚVIDAS No final do ano, o SindusCon manifestava otimismo em relação a 2004, prevendo expansão de 4,5% do produto da construção. Eduardo

Zaidan, vice-presidente de economia do sindicato, acreditava em crescimento mais vigoroso a partir do segundo semestre, mas tinha dúvidas se seria sustentável. “Se não tivermos nenhum solavanco, poderemos atravessar até 2005 mantendo o crescimento. Mas nosso gargalo é um forte constrangimento externo. Precisamos reduzir a dependência e não temos controle sobre as condições que nos permitiriam fazê-lo”, declarava. De acordo com a economista Ana Maria Castelo, da GV Consult, a construção foi o setor mais penalizado em 2003. “Juros elevados, crédito escasso, renda em baixa e

contingenciamento dos recursos públicos formaram uma combinação bastante perversa para a construção”, disse. Pelo menos no começo de 2004 nada mudou: o Banco Central decidiu não baixar a taxa básica de juros, mantendo-a em 16,5%; a renda continua em baixa, os recursos públicos seguem atrelados ao cumprimento do superávit fiscal de 4,25%. O crédito, é verdade, anda menos escasso, mas é muito caro.

DESMONTE Eduardo Zaidan explica ao Brasil de Fato seu otimismo em relação a 2004. No Brasil, diz, a construção civil funciona como um “filtro” de

toda atividade econômica. “Passam por ela de 60% a 70% de todo investimento feito na economia do país. Como a economia é movida a investimento, quando há investimento, a construção civil cresce. A indústria da construção ‘processa’ o investimento feito em quaisquer áreas de atividades, sejam elas agrícolas, comerciais, de serviços em geral”, explica. Traduzindo: se, por exemplo, há investimento em saúde, são construídos hospitais e postos de saúde; na agricultura, armazéns graneleiros, e assim por diante. “Havendo investimento, a construção civil trabalha”, resume Zaidan. Como a construção caiu 8,5% em 2003, diz Zaidan, crescer em cima desse baixíssimo patamar é fácil. A se confirmar o resultado negativo do ano passado, o declínio acumulado da construção entre 1999 e 2003 atingirá entre 14% a 14,5%. “É intolerável para o país desmontar um setor como a construção civil. Isso equivale à favelização do país, ao desinvestimento em infra-estrutura”, alerta o diretor do SindusCon-SP. Segundo Zaidan, como a curva de desempenho da construção é uma caricatura exagerada do PIB, se o Brasil experimentar algum crescimento em 2004, a construção também terá desempenho positivo. Ele, porém, não arrisca qualquer prognóstico de mais longo prazo, nem mesmo para 2005. “Não sei se a economia brasileira terá uma retomada sustentável. Não sou capaz de prever”, pondera. Seu maior temor está na enorme fragilidade das contas externas do país, um constrangimento que ele não considera resolvido.

ALTERNATIVAS De mais a mais, estimular a indústria de construção também é uma oportunidade para reduzir o déficit de moradias, que ultrapassa 6,5 milhões de unidades, de acordo com dados da PNAD/IBGE e da Fundação João Pinheiro. Esse déficit é crescente: 5,12 milhões de moradias em 1995, 5,18 milhões em 1997. É também o caminho para alargar o acesso da população à rede de esgotos (veja gráfico) e aumentar a oferta de equipamentos comunitários.

4,0

A indústria da construção é a maior fonte de empregos diretos (em milhões) 1998

3,5

2001

3,0 2,5 2,0

Fonte: IBGE - Contas Nacionais

Não é por falta de diagnósticos sobre a indústria de construção, ou de sugestões de política habitacional que o setor está às moscas. Na medida em que as políticas econômicas são recessivas, em que seus objetivos não são a geração de emprego, o aumento e a distribuição da renda, a indústria da construção anda para trás. No ano passado, a LCA Consultores destacou a importância da construção, e elaborou sugestões para uma política habitacional que, além de criar postos de trabalho, poderia, a curto prazo, diminuir substancialmente a falta de moradias e aumentar o acesso ao serviço de saneamento no Brasil. Em 2001, o conjunto de subsetores que formam a cadeia produtiva da construção representava 15,5% do PIB (produção total de riquezas do país), e empregava 15 milhões de pessoas (4 milhões diretamente). É expressivo o poder multiplicador da indústria sobre a demanda doméstica – a cada ano, ela tem o potencial de consumir R$ 66,8 bilhões em insumos (minerais, metalúrgicos, material elétrico, madeira). Além disso, é uma indústria que praticamente não importa. Pelo contrário, pode gerar, anualmente, um superávit comercial de cerca de 2,5 bilhões de dólares com exportações de bens e serviços. E a cada 100 milhões de dólares exportados, a cadeia da construção emprega 20 mil pessoas no Brasil.

1,5 1,0 0,5 0,0 Construção civil

Elaboração: LCA Consultores

Crescer, uma questão de decisão política

Vestuário

Madeira e imobiliário

Nos últimos cinco anos, aponta o estudo da LCA, o Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e a Caixa Econômica Federal destinaram cerca de R$ 10,3 bilhões para habitação (construção e reformas), o que viabilizou a construção de cerca de 330 mil unidades habitacionais equivalentes, numa média de 31 mil unidades/ano. Muitíssimo aquém de uma demanda nova estimada em aproximadamente 400 mil unidades por ano. Os principais gargalos do setor habitacional incluem, entre outros, fatores como insuficiência de recursos, restrições ao acesso a financiamentos, tributação elevada. Nesse último quesito, vale destacar a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) que, quando deixou de ser cumulativa, aumentou de 3% para 7,6%, passou a onerar excessivamente setores de atividades altamente empregadores de mão-de-obra, como a construção.

GARGALOS Simulação realizada pela GVConsult para o SindusCon, a partir dos dados da Pesquisa Anual da

Máquinas e tratores

Material elétrico

Industria da Construção (PAIC) do IBGE, indica que a mudança acarretará forte elevação de carga tributária no setor da construção civil. Em 2001, a Cofins representava cerca 6% do valor adicionado da empresa da construção; com o aumento da alíquota para 7,6%, essa participação deve aumentar para cerca de 8%. A GV-Consult conclui que houve uma clara opção de melhorar a competitividade dos bens “exportáveis”, em detrimento dos bens “não exportáveis”. Essa opção deverá ter pelo menos duas conseqüências negativas: aumento dos preços dos serviços e bens que tiveram aumento de carga tributária; e aumento do custo do investimento. Para a GV-Consult, é paradoxal que as mudanças na tributação tenham sido anunciadas praticamente junto com a idéia da parceria público-privada (PPP), uma vez que tal parceria seria uma alternativa para expandir os tão necessários investimentos em infra-estrutura. “Parece que o governo esqueceu que a construção representa cerca de 65% da Formação Bruta de Capital (medida

100 80 60 40 20 0 de investimento) do país”, analisa da GV-Consult.

MORADIAS As sugestões da LCA para uma política nacional de habitação incluem a de tratamento diferenciado para o acesso à moradia. No caso das habitações de interesse social para populações de baixa renda, contariam com recursos orçamentários e extra-orçamentários para financiamento e subsídios, tendo como fontes, entre outras, o SFH, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Quanto às habitações de mercado, seriam financiadas pelo SFH e pelo Sistema Financeiro Imobiliário. Nos dois alvos da política habitacional, os critérios de acesso à casa própria seriam os mesmos: capacidade de pagamento e renda. Quanto ao saneamento, o estudo da LCA propõe que seja definida uma política tarifária de caráter distributivo, com subsídio explícito às famílias de menor renda, além de políticas estruturais contemplando a universalização do acesso ao serviço de esgotamento sanitário,

tratamento adequado ao problema da inadimplência etc. A LCA acredita que a PPP é um caminho para a realização de investimentos no setor de saneamento.

RESULTADOS Na avaliação da consultoria, uma vez azeitada a cadeia produtiva da construção, suas conseqüências positivas incluem a redução da desigualdade social por meio da inclusão das populações marginalizadas aos benefícios da habitação, saneamento e equipamentos urbanos; diminuição de gargalos de infraestrutura; reforço ao crescimento econômico e social sustentável, via aumento das exportações (de bens e serviços de engenharia) e geração de emprego e renda; produção de 4,6 milhões de unidades residenciais equivalentes, o que implica reduzir déficit habitacional em 2007 para 60% do atual, permitindo sua eliminação em 15 anos; investimentos da ordem de R$ 88 bilhões, num prazo de cinco anos a partir da implementação das medidas sugeridas; criação de 3,6 milhões de empregos diretos e outros 13 milhões indiretos, no mesmo qüinqüênio. (AV)


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NACIONAL REFORMA MINISTERIAL

Troca de ministros não muda o país Líderes de setores afetados pela mudança de ministros avaliam as novas perspectivas do cenário nacional

AS NOVIDADES NOS MINISTÉRIOS

PREVIDÊNCIA EM DIA A saída do ministro Ricardo Berzoini do Ministério da Previdência pode ser mais facilmente explicada uma vez que sua principal tarefa no cargo, a reforma do setor e a criação dos fundos de pensão, já foi realizada. Roberto Leher, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que o PMDB está no papel antes desempenhado pelo Partido da Frente Liberal (PFL):

Ana Nascimento/ABr

José Cruz/ABr

Miro Teixeira saiu do Ministério das Comunicações para dar lugar a Eunício Oliveira, deputado federal do PMDB. Ex-militante estudantil, Oliveira, ingressou no PMDB em 1972. Estava no segundo mandato de deputado federal (CE). O empresário de 51 anos é dono de pelo menos três emissoras de rádio.

Ana Nascimento/ABr

A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres sai das mãos de Emília Fernandes e passa para as de Nilcéia Freire. Ela foi a primeira mulher que assumiu a reitoria da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Militante petista e de movimentos sociais, essa carioca de 51 anos atuou nas lutas contra o regime militar e se exilou no México, em 1978.

Foi criado o “superministério” do Desenvolvimento Social, em substituição aos da Assistência Social e da Segurança Alimentar. Com isso, Benedita da Silva e José Graziano perdem seus cargos para o também petista Patrus Ananias. Advogado de 51 anos e exprefeito de Belo Horizonte (MG), Ananias foi o deputado federal com o maior número de votos da história de seu Estado. Participou da luta democrática e é fundador do PT.

assume uma pasta com um montante de recursos enorme (R$ 124,03 bilhões é o orçamento previsto para pagar os benefícios da Previdência Social nesse ano). O novo ministro, senador Amir Lando (RO), recebeu um recado da Central Única dos Trabalhadores (CUT): “Reiteramos nossa preocupação com a eficácia no combate à sonegação das contribuições”, afirmou em nota à imprensa o presidente da central, Luiz Marinho. Se a troca no Ministério das Comunicações não provocou efeitos muito drásticos na organização da equipe de governo (Miro Teixeira foi

para o cargo de líder do governo na Câmara), a saída de Berzoini gerou uma reação em cadeia. Ele foi para o Ministério do Trabalho, de onde saiu Jaques Wagner rumo à presidência do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), deslocando Tarso Genro para o Ministério da Educação. O ex-ministro da Educação, Cristovam Buarque, voltou a seu mandato de senador. Para Leher, Buarque começou a perder terreno no governo quando rompeu o diálogo com as pessoas que “fazem” a educação (professores, reitores, trabalhadores e estudantes) para se apoiar na burocracia

José Dirceu, ministro da Casa Civil, passa a dividir suas atribuições com o ex-líder do governo na Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB), que agora ocupa a recém-criada Secretaria da Coordenação Política e Assuntos Institucionais. Enquanto o comunista fica com a articulação entre o Executivo e o Legislativo, o petista está liberado para trabalhar nas relações internas do governo. Jornalista alagoano de 45 anos, Rebelo construiu sua carreira política em São Paulo e estava no quarto mandato de deputado federal pelo PCdoB. Destacou-se, em 2001, na presidência da CPI da CBF/Nike.

O ministro do PSB também foi trocado. Na Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral cedeu seu posto para o economista Eduardo Campos. Antes de ir para o ministério, Campos, nascido em 1965, exercia seu terceiro mandato como deputado federal (PSB-PE). Presidiu a Comissão de Defesa do Meio Ambiente, esfera na qual se notabilizou pela defesa dos transgênicos.

Roberto Barroso/ ABr

O

Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) entrou no primeiro escalão do governo Luiz Inácio Lula da Silva com dois importantes ministérios: o das Comunicações e o da Previdência. Essa ampliação da base aliada é conseqüência do apoio dado pelos peemedebistas à aprovação das reformas tributária e previdenciária em 2003. O novo ministro das Comunicações, o empresário cearense Eunício Oliveira (veja o quadro), é proprietário de três emissoras de rádio. “Espero que os interesses de classe não interfiram no seu trabalho”, afirma o jornalista Celso Augusto Schröder, coordenador geral do Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações. O jornalista define o PDT, do ex-ministro Miro Teixeira, como um partido populista, mas avesso à mercantilização, e o PMDB, como o contrário disso. “Não podemos esquecer do papel desempenhado pelo (ex-presidente e peemedebista José) Sarney em 1985, quando mais de mil concessões de emissoras de rádio e de televisão foram entregues para que parlamentares aprovassem mais um ano de seu mandato”, exemplifica . Na opinião de Schröder, a gestão de Teixeira teve alguns méritos. Um ponto positivo foi o enfrentamento do governo com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) para recuperar o comando das políticas públicas da área. Outro foi a possibilidade de o país produzir tecnologia para mídia digital. E, ainda, a montagem de um grupo de trabalho para regulamentar as rádios comunitárias, embora o governo tenha decepcionado porque acabou não encaminhando o material produzido nessas reuniões. “O governo precisa priorizar a comunicação, como aconteceu em todos os países que conseguiram consolidar suas democracias”, conclui Schröder.

A chegada de Amir Lando ao Ministério da Previdência provocou uma dança de cadeiras entre vários ministros do PT. O antigo ocupante da pasta, Ricardo Berzoini, foi para o Trabalho, deslocando Jaques Wagner, que ficou com o comando do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e mandando Tarso Genro para a Educação. Cristovam Buarque volta a ocupar sua cadeira no Senado. Catarinense de 57 anos, Lando está no tercero mandato de senador pelo PMDB (RO). Advogado, ganhou fama em 1990 quando foi relator da CPI de impedimento do ex-presidente Fernando Collor.

Rose Brasil/ABr

Luís Brasilino da Redação

interna do ministério. Além disso, a Casa Civil teria se apoderado do controle sobre as decisões referentes ao setor. Assim, a reforma universitária acabou tomando um caráter muito privatizante e o programa Brasil Alfabetizado foi baseado em capital de empresas. Para a gestão Tarso Genro, fica a dúvida sobre a criação ou não de uma agenda de diálogo com os educadores. “Se optar por simplesmente ser um articulador do Antonio Palocci (ministro da Fazenda) e do Henrique Meirelles (presidente do Banco Central), Tarso fracassará assim como Cristovam”, prevê Leher.

Outras mudanças aconteceram no ministério, porém com caráter mais administrativo. O ministro de Ciência e Tecnologia não é mais Roberto Amaral, mas sim Eduardo Campos; Benedita da Silva e José Graziano perderam seus postos para Patrus Ananias, novo líder do recém-criado Ministério do Desenvolvimento Social; Nilcéia Freire foi para a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, no lugar de Emília Fernandes; e José Dirceu, ministro da Casa Civil, divide agora uma parte de suas tarefas com Aldo Rebelo, secretário da Coordenação Política e Assuntos Institucionais.

Na Índia, Lula defende combate à pobreza mundial A viagem de quatro dias do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Índia, que começou dia 25, foi marcada por discursos em defesa do desenvolvimento social e de combate à pobreza mundial. Na prática, o governo brasileiro conseguiu estreitar as relações comerciais com o segundo país mais populoso do mundo, com 1 bilhão de habitantes, e reforçar a cooperação “Sul-Sul”, que inclui a África do Sul, como bloco de resistência às imposições comerciais feitas por Estados Unidos e União Européia. A primeira iniciativa liderada por Brasil, África do Sul e Índia foi a formação do G20 na rodada da Organização Mundial do Comércio, em Cancún (México) – a qual fracassou, com a barreira imposta pelo G20 frente ao protecionismo aos produtos agrícolas dos países ricos. Em seu primeiro dia em Nova Déli, Lula disse que o Brasil e a Índia podem “mudar a geografia comercial do mundo para melhor atender interesses do povo mais pobre do planeta”. O governo brasileiro assinou cinco acordos de cooperação bilateral e um sexto en-

Antônio Milena/ABr

da Redação

que é preciso ser feito na economia e que seu governo não está promovendo a estabilidade com fórmulas econômicas mágicas, como aconteceu em governos passados.

DISTRIBUIÇÃO DE RENDA

Presidente Lula na recepção oferecida pelo presidente da Índia, Abdul Kalan, no jardim do Palácio Rastrapati Bhawan

tre o Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) e a Índia. Em um encontro organizado pelas duas principais associações empresariais da Índia, com um expressivo número de industriais brasileiros, Lula propôs a colaboração dos setores público e privado para conseguir a interação necessária

para superar “os obstáculos colocados às relações comerciais por esses dois gigantes que são os Estados Unidos e a União Européia”. Segundo dados das entidades empresariais indianas, de 2000 a 2003 o comércio entre os dois países se incrementou 250%, e no último ano foi de 1,2 bilhão de dó-

lares. A estimativa dos empresários é de que em 2005 os intercâmbios alcançarão os 5 bilhões de dólares, com perspectiva de crescimento acelerado para os anos seguintes. Apesar do crescimento econômico no primeiro ano de governo ter sido menor do que 1%, o presidente disse que está fazendo aquilo

“Não basta crescer. O crescimento tem que significar distribuição da renda e distribuição da riqueza”, disse Lula, para quem este deve ser o século no qual países emergentes como Brasil e Índia deixarão de ser pobres “para fazer parte de um mundo mais justo. Queremos mudar ou pelo menos melhorar a geografia econômica do planeta Terra”, disse o presidente, em reunião com empresários indianos e brasileiros. Ao avaliar as taxas de crescimento econômico da Índia – taxas médias de 6% durante uma década, o que fez com que a pobreza absoluta fosse reduzida de 46% para 26% –, o ministro do Planejamento, Guido Mantega, considerou importante avaliar esses dados no Brasil. No entanto, volta-se à velha equação: “Precisamos, primeiro, conseguir essas taxas de crescimento e, segundo, adotar um estilo de crescimento que distribua essa riqueza”.


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De 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2004

NACIONAL TRÁFICO HUMANO

Mulher vira mercadoria mundial Tráfico de seres humanos confirma exploração sexual de brasileiras, que valem até 15 mil dólares no mercado negro Jarbas Oliveira/Folha Imagem

Bernardete Toneto da Redação

E

stá para ser lançado, no próximo mês, o diagnóstico sobre tráfico de seres humanos, desenvolvido em quatro Estados e focado principalmente no tráfico de mulheres brasileiras para fins de exploração sexual. Denominado “forma moderna de escravidão”, o tráfico de seres humanos faz até quatro milhões de vítimas por ano no mundo, a maioria mulheres e crianças, um meganegócio que movimenta até 12 bilhões de dólares anuais. O diagnóstico sobre tráfico de seres humanos, um retrato reduzido da violência contra a mulher, está sendo realizado nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará e Goiás, as quatro unidade federativas em que teve início o Programa Global de Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos, do Ministério da Justiça. Foi o ministério quem determinou que, em todos os aeroportos e rodoviárias do país, fosse afixado o número de telefone, com ligação gratuita, para denúncia de tráfico de pessoas. Contudo, organizações feministas, como o Serviço à Mulher Marginalizada (SMM) e a Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude (Asbrad) reclamam que a orientação não está sendo cumprida e que é mais fácil encontrar cartazes de denúncia de tráfico de animais silvestres do que os referentes a tráfico humano.

IMPUNIDADE MORAL As dificuldades de implantação de um programa de combate ao tráfico de mulheres derivam-se da própria natureza do crime, que envolve preconceitos morais e na maioria das vezes encoberto pelo lençol da impunidade. A coordenadora do Programa Global de Prevenção, Leila Paiva, explica que um dos objetivos do projeto é descobrir as barreiras para a punição dos responsáveis. O futuro diagnóstico está sendo

RETRATO DA VIOLÊNCIA √ Jovens de 15 a 27 anos √ Maioria afrodescendente √ Moradoras de periferia urbana √ Mães precoces √ Vítimas de violência intrafamiliar

As jovens aliciadas são, em geral, jovens das periferias das cidades, têm baixa escolaridade e moram com algum familiar

feito a partir da análise dos inquéritos e dos processos em andamento, ou seja, apenas a face visível do crime. Leila lembra que o fosso da violência deve ser muito mais profundo, pois o Brasil é considerado país fornecedor de vítimas para o tráfico doméstico e internacional de seres humanos, de acordo com a única pesquisa de âmbito mundial realizada até hoje sobre o assunto, o relatório do Departamento de Estado dos Estados Unidos, divulgado em 2001. Segundo o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC), os lucros obtidos com o tráfico internacional de seres humanos chegam a 12 bilhões de dólares por ano em todo o mundo. Essa atividade criminosa é o terceiro negócio ilegal mais rentável, perdendo

Holanda, Japão, Portugal e França, entre outros países. Grande parte das mulheres vendidas para o exterior são aliciadas por falsas promessas. Na maior parte das vezes, querem melhorar de vida, mas são colocadas em situações de desrespeito, submetidas a cárcere privado, ficam sem documentos e em situação de ilegalidade. No mercado negro, uma brasileira chega a valer 15 mil dólares. Uma pesquisa elaborada sob a coordenação do Centro de Estudos de Referência da Criança e do Adolescente (Cecria), juntamente com outras organizações não-governamentais, prova, entre outras coisas, que a exportação de meninas da Amazônia para a prostituição em países limítrofes, como Venezuela e Guiana, não é exceção, e sim uma

apenas para o tráfico de drogas e o de armas, que rendem cerca de 400 bilhões de dólares e 290 bilhões de dólares anuais, respectivamente.

ILUSÃO SOB LENÇÓIS “O tráfico de seres humanos é uma atividade organizada e podemos perceber o incremento da capacidade dos criminosos”, avalia Leila. Conforme mostram dados do Instituto Latino-Americano de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos (ILADH), o Brasil é responsável por 15% das mulheres traficadas para a América do Sul, em especial no Norte, onde há fronteiras com sete países. As brasileiras também alimentam o mercado de prostituição na Espanha (calculam-se 20 mil mulheres prostituídas na cidade de Bilbao), Alemanha, Suíça, Israel,

prática cada vez mais freqüente. O estudo mapeou 241 rotas em 20 Estados, das quais 131 são internacionais. Junto com o tráfico externo há um fluxo doméstico de adolescentes e jovens tiradas de suas comunidades e levadas para onde houver demanda. As aliciadas são, em geral, jovens das periferias, apresentam baixa escolaridade e moram com algum familiar. Apesar de variações na faixa etária, predominam jovens entre 12 e 18 anos, afrodescendentes. A pesquisa constatou que a maioria sustenta filho, enfrentou maternidade precoce e já sofreu alguma violência sexual. O mapa da exploração sexual acompanha o da desigualdade. As regiões mais pobres concentram o maior número de caminhos usados no comércio de pessoas. O Norte é campeão de rotas de tráfico: 76, seguido pelo Nordeste, com 69.

MÁFIA DO SEXO Por se tratar de um crime muitas vezes transnacional, não há como reduzir o número de casos se não houver cooperação e parceria entre os países envolvidos. Entre as organizações mafiosas internacionais que exploram a “escravidão moderna” se destacam as tríades chinesas (traficam mulheres do Sudeste Asiático, da América do Sul e Leste Europeu para a Europa Ocidental), a Yakuza (a máfia japonesa, que leva mulheres asiáticas, russas e latino-americanas para o Japão); as redes tailandesas (mulheres do Sudeste Asiático para EUA, Japão, Canadá e Austrália), a máfia russa (do leste europeu para Europa, Israel, Japão, EUA), os grupos da Ucrânia, Geórgia, Polônia e Albânia, e pequenas redes nigerianas. A escravidão humana é proibida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelo Pacto Internacional sobre Direito e Política, pela Convenção para Eliminação de Todas Formas de Discriminação contra as Mulheres e pela Convenção sobre Direitos da Infância.

Depoimento de L.A.S, de São Paulo Nasci em Poranga, no Ceará, quase divisa com Piauí. Como todas as meninas da minha cidade, comecei a namorar cedo, aos 12 anos. Aos 14, por causa de um namoro, meu pai me botou na rua, acho que era uma boca a menos em casa. Minha mãe não falou nada, tive de sair. Fui sozinha, de carona, para Fortaleza. Nunca tinha visto cidade tão grande. Comecei a “fazer a vida”, tinha dia que tirava até R$ 100, outros nem conseguia dinheiro pra comer. Tentei ser balconista, mas um dia um cliente me reconheceu, fiquei com medo e voltei para a prostituição. Um dia, um motorista de táxi começou a falar comigo, me convidou para ir para a Europa. Disse que eu era bonita, que poderia trabalhar como modelo, quem sabe conseguiria um casamento e acertava minha vida. Eu tinha 17 anos, era menor de idade. No começo tinha medo, mas ele vinha falar todo dia. Depois que eu aceitei, ele demorou quase um mês pra acertar tudo. Ele conseguiu passaporte, passagem e me deu umas roupas de frio, disse que eu ia precisar. Viajei dia 18 de agosto de 2002, para a Espanha. Ele disse que, quando chegasse no aeroporto espanhol, um outro motorista de táxi, que falava português, me deixaria na casa onde eu ia ficar. Tinha uns 100 dólares e todos os documentos comigo, muito medo e muito sonho. Comigo foram mais três garotas.

A ROTA DA PROSTITUIÇÃO

Marcos Ribolli/Folha Imagem

“Eu era um bicho no zoológico”

Apesar de variações na faixa etária, predominam as jovens entre 12 e 18 anos

Eu achava que iria ganhar muito dinheiro, voltar para o Brasil e ajudar minha família. Era tudo mentira. Logo depois que chegamos, o tal motorista de táxi, que era espanhol e não falava português, pegou nossos passaportes. Disse que era para confiar nele porque a cidade era perigosa. Quando chegamos à casa, vimos que era mesmo um bordel. Só ali falaram a verdade:

o “trabalho” era das seis da tarde às seis da manhã, só folgava na segunda-feira. A gente teria de pagar a passagem, uns R$ 5 mil, coisa que não tinham falado pra gente no Brasil. Se quisesse ir embora, teria de pegar o passaporte, mas antes a gente teria de acertar as contas. Depois descobri que o espanhol tinha ligação com o traficante europeu que nos pegou em Fortaleza.

Eu desconfiava que o trabalho era mesmo na prostituição, mas nunca pensei que ia ser prisioneira, ameaçada dia e noite. Na boate, éramos como escravas. Nunca recebi, não tinha dinheiro nem para as roupas. Não tinha documentos, não podia sair, a alimentação era pouca, estávamos obrigadas a ficar acordadas até as 5 da manhã, todos os dias, para forçar os clientes a consumir. Uma das meninas foi ameaçada de morte quando saiu para passar um final de semana fora, achavam que ela tinha ido procurar a embaixada brasileira.

Nunca tivemos atendimento médico nem exames de rotina, muito menos acesso a testes de HIV. Depois descobrimos que, em algumas casas, as meninas só saíam com segurança acompanhando. Eu fugi quando encontrei um cliente brasileiro, a quem contei minha história. Pelo jeito, ele tinha contatos com outros grupos, porque nove dias depois do primeiro encontro ele voltou à boate e me entregou um passaporte falso e uma passagem de volta. Consegui escapar, mas até hoje penso nas colegas que estão presas feito bichos em zoológico.


Ano 1 • número 48 • De 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2004 – 9

LIVRE COMÉRCIO

Começa nova luta continental contra a Alca

João Alexandre Peschanski

SEGUNDO CADERNO

Em Cuba, representantes de movimentos sociais de 32 países definem rumo da campanha contra a Alca até 2005 João Alexandre Peschanski enviado especial a Havana (Cuba)

A

mobilização dos movimentos sociais contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) vai continuar até que todas as negociações do acordo sejam interrompidas. Esta é a resolução do III Encontro Hemisférico de Luta contra a Alca, dias 26 a 29, em Havana, Cuba. No evento, 1.042 representantes de organizações de trabalhadores, indígenas, mulheres, estudantes e religiosos, de 32 países das Américas, decidiram os rumos da campanha contra o livre comércio até 2005. “A Alca light é ainda mais perigosa porque sua aparente suavidade esconde uma concepção essencialmente neoliberal”, disse Osvaldo Martínez, do comitê cubano organizador do encontro. A afirmação sobre a Alca light, referência à proposta assinada na 8ª reunião ministerial da Alca, em Miami, Estados Unidos, foi feita durante a conferência inaugural do

evento, da qual participou o presidente de Cuba, Fidel Castro. Martínez apresenta dados que provam que, em 2003, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita da região foi inferior ao PIB de 1997, ao mesmo tempo em que há 20 milhões de latino-americanos em situação de pobreza absoluta. “O presidente dos Estados Unidos defende o indefensável. Manipula estatísticas, omite o evidente, mente e recorre a uma retórica simplista. Assim, continua defendendo o neoliberalismo como caminho para o desenvolvimento, enquanto a realidade mostra exatamente o contrário”, diz. Segundo o professor venezuelano Edgardo Lander, em 2003 os movimentos sociais conseguiram dar transparência e visibilidade à questão do livre comércio. “O que antes era discutido entre técnicos de forma privada, em reuniões fechadas com conteúdo totalmente secreto, agora está na consciência coletiva e é discutido por toda a sociedade”, explica.

Na agenda de mobilizações, estão previstas manifestações em frente a embaixadas dos Estados Unidos

e a luta contra o livre comércio. Ele sugere também a realização de protestos continentais, incluindo manifestações em todas as embaixadas dos Estados Unidos contra a reeleição do presidente estadunidense George W. Bush, a quem se referiu como “Bushitler”.

João Pedro Stedile, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, afirmou que 2004 vai ser um ano decisivo para a luta contra o livre comércio. Ele aponta oito desafios que os movimentos sociais das Américas têm pela frente, o primeiro deles a decisão de romper com a letargia existente e intensificar o trabalho de conscientização do povo.

100 mil pessoas nas ruas. “Vamos desarticular essa reunião, como fizemos em Cancún, durante o encontro ministerial da Organização Mundial do Comércio, em setembro”, prevê. Para 2004 já estão agendadas outras atividades: a manifestação mundial contra a guerra, pela desocupação do Iraque e pelo reparo dos danos feitos ao país, no dia 20 de março; no dia 1º de maio, no Brasil, um encontro de trabalhadores, tendo como eixo principal a luta contra a Alca; e nos dias 25 e 30 de julho, em Quito (Equador), o Fórum Social das Américas.

MANIFESTAÇÃO NO BRASIL Uma das principais atividades da campanha é a organização de uma manifestação no Brasil, provável palco da próxima reunião ministerial da Alca, prevista para julho. Luiz Bassegio, da coordenação do Grito dos Excluídos, promete um protesto com mais de

PROTESTOS NAS EMBAIXADAS Stedile considera fundamental envolver outros setores da sociedade na campanha contra a Alca, mostrando, por exemplo, as conexões entre a realidade das pessoas

Um projeto do senador Eduardo Suplicy (PT-SP) promete levantar uma polêmica saudável no Congresso Nacional. Elaborado em 2003, o PL nº 189/2003 estabelece um mandato negociador para o poder executivo e, na prática, define parâmetros para os acordos que o governo pode celebrar em negociações internacionais, como na Área de Livre Comércio das Américas (Alca) ou em um Tratado de Livre Comércio (TLC). A proposta, em tramitação no Senado, está na Comissão de Relações Exteriores e deve ser apreciada em fevereiro, quando termina a convocação extraordinária do Congresso. Criticado por alguns parlamentares por supostamente limitar o poder do executivo nas relações internacionais, o projeto tenta se contrapor à estratégia imperialista dos países ricos. Os Estados Unidos e União Européia negociam, atualmente, acordos regionais e bilaterais para implementar uma série de modificações jurídicas e constitucionais nos países da América Latina, que favorecem apenas suas transnacionais. Em entrevista ao Brasil de Fato, o senador Suplicy explica que o seu projeto prioriza a integração regional com países do Mercosul, faz referência à introdução de políticas sociais nas negociações, como uma renda mínima e joga as negociações de temas polêmicos (como compras governamentais) para a Organização Mundial do Comércio (OMC). Qual o objetivo do projeto? Trata-se de um aperfeiçoamento do que está na Constituição, que diz que o Congresso precisará referendar os acordos comerciais realizados pelo governo com outros países. Em outros países, como nos Estados Unidos e na União Européia, os respectivos parlamentos definem normas e diretrizes para seus governos realizarem negociações. Há re-

gras muito claras sobre o que o governo pode e o que não pode negociar. Para se ter uma idéia dos detalhes contidos nessas normas, nos EUA, o mandato negociador diz que o governo não pode incluir modificações nas leis de imigração norte-americanas. Qualquer que seja a perspectiva de integração das Américas, o governo brasileiro deve ter em mente que não se pode levar em conta apenas o ponto de vista dos detentores do capital e, principalmente, dos proprietários das transnacionais sediadas nos EUA. O governo deve levar em conta o ponto de vista dos seres humanos. Não podemos ter uma perspectiva de integração que considere apenas a livre circulação de bens, serviços capitais sem, ao mesmo tempo, considerar a liberdade de movimento dos seres humanos. O projeto poderia enfraquecer o governo nas negociações? O projeto fortalece as posições do governo brasileiro, lhe dá a devida flexibilidade para nego-

ciar, levando em consideração os interesses econômicos e sociais do país. Em diálogos com o ministro Celso Amorim (Relações Exteriores) e com o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, tenho dito que estou aberto a sugestões à luz da experiência do executivo nessas negociações. Amorim me disse que, em princípio, considera o projeto positivo, ajuda o governo, mas poderá fazer sugestões levando em conta experiências recentes, como, por exemplo, as negociações com as nações do Pacto Andino. Ele avaliou que

naquilo que interessa a eles. E quando as coisas são do interesse brasileiro, jogam as negociações para a OMC. Definir claramente o escopo do processo negociador, mantendo temas sistêmicos no âmbito da OMC, é uma forma de proteger o governo brasileiro das pressões emanadas do governo dos EUA. Além disso, queremos dizer que, em qualquer processo de negociação, deve ser incluída a remoção de barreiras que impedem acesso de produtos brasileiros aos mercados externos.

Quem é Eduardo Suplicy (PT-SP) foi o primeiro senador eleito do Partido dos Trabalhadores. Sua principal bandeira é o projeto de renda mínima, sancionado em 2004 pelo governo Lula, que estabelece uma renda básica para todos cidadãos brasileiros. alguns itens do projeto aprovado nas comissões podem ter uma forma mais flexível para levar em consideração acordos que o Brasil tem feito e pode fazer com países em desenvolvimento, como os da América Latina ou da África.

E quanto aos direitos sociais? O projeto também estabelece que as negociações do governo devem fortalecer a integração regional, em especial o Mercosul, por meio de políticas comuns, e em matéria de direitos sociais, como a renda mínima ou a renda básica de cidadania. Se for para ter integração, é importante termos integração dos direitos sociais, humanos, para todos partilharem da riqueza das nações.

Por que o projeto estabelece que temas como propriedade intelectual, compras governamentais e investimentos sejam negociados apenas no âmbito da OMC? O governo dos Estados Unidos tem procurado entendimento com o Brasil sobre a Alca apenas

Comércio com América Central beneficia EUA da Redação A partir deste ano, Guatemala, Nicarágua, El Salvador e Honduras passam a integrar a Área de Livre Comércio da América Central (Alcac ou Cafta, em inglês) com os Estados Unidos. A Costa Rica foi o único país da região que recusou os termos propostos pelo governo George Bush. O acordo foi negociado a toque de caixa, em 2003, e a iniciativa estadunidense foi uma forma de driblar a pressão popular, em todo o continente, contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). O tratado de livre comércio com a América Central ainda será submetido ao Congresso dos EUA, no sistema “via rápida” (fast track). Os parlamentares poderão aceitar ou rejeitar o tex-

Omar Torres/AFP

Jorge Pereira Filho da Redação

Roosewelt Pinheiro/ABR

Projeto quer proteger interesse nacional

Acordo prevê tarifas zero para produtos dos Estados Unidos

to, em bloco, mas não introduzir alterações. Os sindicatos de trabalhadores estadunidenses são contra o

acordo. Mas terão de enfrentar o poderoso lobby das grandes transnacionais dos EUA, que esperam aumentar em até 12 bilhões de

dólares anuais suas exportações para a América Central, além de aproveitar o custo barato da mãode-obra local para instalar linhas maquiladoras, semelhantes às que existem no México. Mais de 80% do total das exportações dos EUA para os quatro países da América Central que aderiram ao acordo gozarão de tarifa zero assim que o tratado entrar em vigor. Em contrapartida, os Estados Unidos terão quinze anos para reduzir a zero as suas tarifas sobre importações agrícolas provenientes da América Central. A assimetria se torna ainda mais evidente quando se leva em conta que o governo Bush não tem intenção de reduzir os subsídios aos grandes agricultores estadunidenses. (CiberoAméricaArgenPress)


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De 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2004

AMÉRICA LATINA COLÔMBIA

Farc celebram 40 anos em meio a pressão Yuri Martins Fontes de Bogotá (Colômbia)

Quem é

O

povo colombiano vive um conflito armado civil há mais de meio século. Com o chamado “Plano Colômbia”, instituído pelos Estados Unidos, as possibilidades de paz se tornam cada vez mais distantes. O atual governo, de Álvaro Uribe, optou pelo confronto físico para tentar exterminar grupos revolucionários. Cartazes espalhados por rebeldes mostram o terror: “Plan Colombia, los gringos ponen las armas, Colombia pone los muertos”. A guerra civil colombiana remonta 1948, ano em que nacionalistas liberais e pequenos grupos socialistas começam a luta armada contra setores conservadores, aliados de transnacionais. A partir de 1964, com algumas reivindicações atendidas, os liberais Plano Colômbia tentam frear o – Criado pelos Estaavanço das condos Unidos, para supostamente combaquistas polítiter o plantio de coca. cas. Neste períNa prática, consiste odo, as guerriem uma intervenção lhas comunismilitar ostensiva, com fins políticos e tas ganham forterritoriais, em pleno ça. Nesse concoração da Amazôtexto surgem as nia sul-americana Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), o Exército de Libertação Nacional (ELN) e o Exército Popular de Libertação (EPL). No final de 2003 o presidente Álvaro Uribe fechou um acordo bastante suspeito, de rendição e anistia, com as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), maior grupo paramilitar do país e que, suspeitase, é formado por homens do próprio exército. Sob a máscara dos confrontos, são promovidas ações como a destruição de povoados inteiros e assassinatos de supostos “amigos” dos guerrilheiros, conforme conta Raúl Reyes, comandante do secretariado geral das Farc.

Raúl Reyes é comandante do secretariado geral das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), grupo que conta atualmente com 30 mil homens armados, organizados em sete blocos e 60 frentes, escondidos nas montanhas e nas cidades.

não há diálogos formais, pois o presidente da República liquidou todas as garantias para as negociações prosseguirem. Proibiu visitas de delegações de muitos países, como as do México, Itália, República Dominicana e Venezuela, mas consideramos que todos aqueles que queiram nos conhecer, devem vir sem restrições. Também queremos que o governo cumpra o compromisso de combater os paramilitares.

Como estão as conversações de paz? Estão paradas. Neste momento

Como se dão essas conversações? O comandante Marulanda (comandante máximo das Farc) escreveu diversas propostas ao governo, através de cartas públicas dirigidas ao presidente, ao Alto Comissionado para a Paz e a todos os setores que representam o Estado colombiano. Até agora, em qualquer mesa de reunião, só nos dizem que tudo que propomos é inegociável, porque afeta a lei, a constituição, até que baixemos as armas. Isso não nos diz nada, porque as Farc são uma organização guerrilheira, política, e que se levantou em

A resistência civil colombiana culminou nas Facs, que contam com 30 mil homens

GUANTÁNAMO

Peter Muhly/AFP

Dois anos depois da chegada dos primeiros prisioneiros do Afeganistão à base militar estadunidense em Guantánamo, Cuba, a Anistia Internacional afirma, em documento oficial, que “a detenção de centenas de homens na Baía de Guantánamo, sem acusações nem processo (em alguns casos há dois anos), constitui uma afronta à Justiça e uma violação da dignidade humana”. A entidade pede a imediata libertação dos presos que não foram acusados e exige que observadores independentes possam visitá-los. Em um documento governamental, chamado “A estratégia da segurança nacional dos Estados Unidos”, de setembro de 2002, os estadunidenses afirmam que “devem se manter firmes no que se refere às questões inegociáveis da dignidade humana”, como “o Estado de direito” e “os limites ao poder absoluto do Estado”. Outro documento, “A estratégia para combater o terrorismo”, de fevereiro de 2003, acrescenta: “Entendemos que um mundo no qual esses valores sejam assumidos como normas, sem exceção, será o melhor antídoto à expansão do terrorismo.” Diante disso, afirma a Anistia: “Os Estados Unidos construíram um campo de detenção na Baía de

Farcs defendem um novo governo pluralista, democrático e soberano na Colômbia

armas porque considera o Estado colombiano injusto. A paz é possível? Na Colômbia não haverá paz enquanto não resolvermos os problemas econômicos, estruturais, os problemas de comunicações, de eletricidade, de água potável, do sistema educativo, de saneamento básico, enquanto não se faça a reforma agrária, enquanto não se acabe com os crimes do Estado em nome do paramilitarismo. Se o Estado está mesmo interessado em conseguir a paz precisa investir em todos esses campos. Sem isso, os confrontos vão continuar e as Farc seguem sendo um protagonista muito importante na luta, com uma grande projeção em âmbito nacional. Nesta conjuntura, qual é a proposta política das Farc? Buscamos abrir espaços de participação cidadã. Daí nossa proposta de um novo governo pluralista, patriótico e democrático, que se comprometa a defender a soberania de nosso país. Não podemos mais ser pisoteados pelo imperialismo es-

tadunidense, com sua ingerência em nossos assuntos internos. Queremos restituir a liberdade aos trabalhadores do campo e da cidade, aos estudantes e professores, para que possam protestar livremente sem serem reprimidos pelo Estado, assassinados ou exilados. Como as Farc são financiadas? As Farc são um exército do povo que se nutre da economia do país, que por sua vez é mantida pelo petróleo, o café, as esmeraldas, o gado, o algodão, a coca e a papoula. Assim, as Farc cobram impostos àqueles capitalistas que tenham mais de um milhão de dólares, independentemente da proveniência de seus capitais. As Farc não têm cultivos, não negociam com narcóticos, não vendem favores aos narcotraficantes. Subsistem da economia do país, apesar da campanha encabeçada pelos EUA, que tem por objetivo nos desacreditar, nos apresentar não como uma organização revolucionária, mas como narcotraficantes, agora narcoterroristas. Mas é normal que os EUA façam isso, pois são nossos inimigos.

BOLÍVIA

Dois anos de desrespeito aos direitos humanos da Redação

Fotos: Yuri Martins Fontes

Confrontos com grupos paramilitares, financiados pelo governo e pelo Plano Colômbia, afastam possibilidades de paz

Vem aí uma nova greve geral contra Carlos Mesa da Redação

Pelo terceiro ano, prisioneiros de Guantánamo não têm acesso a advogados

Guantánamo e o lotou com mais de 600 presos de 40 nacionalidades, alguns deles meninos.” A Corte Suprema dos EUA deve decidir em breve se os tribunais estadunidenses têm jurisdição sobre os presos em Guantánamo. Se disser não, a Corte estaria consagrando um mundo que aceita detenções arbitrárias. Tudo começou em janeiro de 2002, quando o governo Bush se negou a dar status de prisioneiros de guerra aos detidos em Guantánamo, oriundos do Afeganistão, e julgou poder assim ignorar as

Convenções de Genebra. Também ignora as garantias de quaisquer detidos sob simples suspeita, como o direito a ter um advogado, a saber de quais delitos são acusados, e o direito a serem libertados se não houver acusações contra eles. A Anistia, embora lute pela libertação dos presos em Guantánamo, teme ao mesmo tempo que, se for devolvida a seus países de origem, parte deles corra o risco de ser torturada em países como a “China, Iêmen, Arábia Saudita e Rússia. (Com agências internacionais)

Na Bolívia, completados os três meses de trégua que os movimentos sociais e de trabalhadores deram ao governo, começa a se evidenciar novamente o forte clima de mobilização social. A Central Obrera Boliviana (COB) defende uma greve geral, em fevereiro, para exigir a convocação de novas eleições e o fechamento do Congresso Nacional. As atividades terão como foco Carlos Mesa, atual presidente da Bolívia, depois da renúncia de Gonzalo Sánchez de Lozada. A convocação conta com apoio de segmentos sindicais e movimentos populares bolivianos, como o líder aimara Felipe Quispe, da Confederação Única dos Trabalhadores Agrícolas da Bolívia (CSUTCB, na sigla em espanhol), e a Central Obreira do município de El Alto, um dos principais cenários dos confrontos do ano passado. O dirigente cocalero Evo Morales, do Movimento ao Socialismo (MAS) e que obteve votação apenas 2% inferior à de Sánchez de Lozada nas eleições de 2002, considera o movimento precipitado. A convocação apresenta dois motivos básicos para a greve geral: o Congresso Nacional não “escuta” as demandas do povo boliviano e o governo de Carlos Mesa não alcan-

çou qualquer mudança na economia. A decisão foi tomada durante uma assembléia na cidade de Cochabamba. Na reunião, também foi rechaçado o aumento salarial de 3% oferecido pelo governo. Segundo Jaime Solares, dirigente da COB, o principal objetivo do protesto será conseguir a renovação do Congresso Nacional, acusado de não responder às demandas populares. “O povo quer o fechamento do Congresso e nós temos de aceitar esse pedido”, disse. Ele acrescentou que o Executivo será pressionado para, em “três, quatro ou cinco meses, convocar novas eleições, como na Argentina”.

GASOLINAÇO Nesta semana, a Confederação dos Transportadores da Bolívia (CTB) ameaçou iniciar uma greve geral por tempo indefinido e paralisar as rodovias do país, caso o governo Mesa decrete o aumento dos preços dos combustíveis. “Sabemos que vão elevar o preço da gasolina, o preço do gás de cozinha e possivelmente até do diesel. A população tem que assumir a defesa dos seus interesses”, declarou Angel Villacorta, líder da CTB, referindo-se à pretensão governamental, já apelidada de “gasolinaço”. Segundo ele, o governo está usando o aumento abusivo para cobrir o déficit fiscal.


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INTERNACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL

Ativistas convocam para lutas de 2004 Entre as várias bandeiras reafirmadas durante o encontro, novo dia internacional de protestos contra a guerra da Redação

O

manente do governo dos Estados Unidos e seus aliados, e a vitória contra a OMC em Cancún. Globalização - Reafirmamos nosso compromisso de l uta contra a globalização neoliberal, o imperialismo, a guerra, o racismo, as castas, o imperialismo cultural, a pobreza, o patriarcado e todas as formas de discriminação e exclusão econômica, social, política, étnica, de gênero, sexual, assim como a favor da orientação sexual e identidade de gênero. Terrorismo - Lutamos contra toda forma de terrorismo, inclusive o terrorismo de Estado, enquanto nos opomos ao uso da “luta contra o terrorismo” para criminalizar os movimentos populares e ativistas sociais.

Trechos do “Chamamento da Assembléia dos Movimentos Sociais”: Nós, movimentos sociais reunidos em Assembléia na cidade de Mumbai, Índia, partilhamos as lutas do povo da Índia, assim como as dos povos asiáticos e reiteramos nossa oposição ao sistema neoliberal que gera crises econômicas, sociais, ambientais e conduz à guerra. Resistência - Nossas resistências iniciadas em Chiapas, Seattle e Gênova conduziram-nos à enorme mobilização mundial contra a guerra no Iraque, que deslegitimou a estratégia de guerra global e per-

Direito à terra - Reivindicamos a luta de camponeses e camponesas, trabalhadores e trabalhadoras, movimentos populares urbanos e todos os que estão ameaçados de perder o lar, o trabalho, a terra e seus direitos. Multiplicam-se as lutas para deter e reverter as privatizações, proteger os bens comuns e de caráter público. Dívida externa - Denunciamos o uso coercitivo do insustentável endividamento dos países pobres por parte dos governos, transnacionais e instituições financeiras internacionais. Repudiamos a dívida ilegítima do Terceiro Mundo e exigimos seu cancelamento incondicional e a reparação dos danos econômicos, sociais e ambientais, como condição preliminar para alcançar a plena satisfação de seus direitos.

Livre comércio - Rejeitamos a imposição de acordos regionais ou bilaterais tais como Alca, Nafta, Cafta, Agoa, Nepad, Euro-Med, Afta e Asean. Militarização - O capitalismo, em resposta a sua crise de legitimidade, recorre à força e à guerra para manter uma ordem econômica antipopular. Exigimos dos governos o fim do militarismo, da guerra e o cancelamento dos gastos militares; reivindicamos o fechamento das bases militares estadunidenses em todo o mundo, pois representam um risco e uma ameaça para a humanidade e o planeta. Temos que seguir o exemplo de luta do povo porto-riquenho, que forçou o fechamento da base de Vieques. (Portal Vermelho)

Fotos: Antônio Milena/ABR

4º Fórum Social Mundial (FSM), encerrado dia 21, em Mumbai, na Índia, serviu de palco a uma Assembléia dos Movimentos Sociais, que aprovou um “Chamamento” para as lutas de 2004. As inúmeras bandeiras de combate propostas no documento são o retrato da diversidade e também da unidade do FSM. No Chamamento, os militantes convocam para 20 de março, data em que a ocupação do Iraque completa um ano, uma jornada internacional de protestos contra a guerra. Cada país deverá desenvolver suas próprias táticas para garantir uma ampla participação popular nas mobilizações, que os

movimentos esperam seja maior do que as manifestações de fevereiro de 2003.

Militantes convocam para 20 de março uma jornada internacional de protestos contra a guerra

Mário Osava de Mumbai (Índia)

“A guerra pode terminar. Só depende de você!”, diz o cartaz

Davos repete discurso da insegurança da Redação As imagens do 4º Fórum Social Mundial, na Índia, chegaram ao centro turístico de Davos, na Suíça, para provar o que todos já sabiam: empresários e governantes reunidos no Fórum Econômico Mundial, dias 21 a 25, nada tinham em comum com o encontro de ativistas preocupados com a injustiça endêmica da sociedade. Bill Clinton, ex-presidente dos Estados Unidos, presente ao encontro, resumiu o sentimento dos representantes do poder: “O mundo está dividido nos campos político, social e econômico”. Clinton falou o óbvio. Os economistas em Davos não davam à mínima para a justiça social, e se interessavam mais pelos sintomas da sociedade vinculados à prosperidade e, principalmente, à segurança, principal preocupação da reunião deste ano. O presidente e fundador do Fórum Econômico Mundial de Davos (FEM), Klaus Schwab, ressaltou: “Não teremos crescimento econômico global sus-tentado se não dispormos de segurança”. Para conseguir os dois objetivos necessitamos da paz, insistiu. Sintomático foi o fato de as principais críticas terem se concentrado nas chamadas ações “antiterroristas” impulsionadas pelos

Estados Unidos. Assim como em alguns momentos do Fórum Social Mundial, o presidente estadunidense George W. Bush recebeu críticas negativas. Neste ano, o tema central do pífio FSE foi “Segurança e prosperidade”, que tentava provar que a instabilidade é um dos principais entraves ao crescimento da economia global e ao bem-estar dos habitantes de todo o mundo. Paralelamente, proferiram o discurso de que “sem crescimento e distribuição justa das riquezas, a segurança global continuará maleável”.

SEGURANÇA De novo, os organizadores do encontro de Davos montaram um forte esquema policial para tentar monitorar as manifestações contrárias ao encontro e à globalização. O governo local destacou 4,7 mil soldados para combater as manifestações contrárias ao evento, além de fazer um rígido controle do espaço aéreo da região. As represálias em Davos foram tão evidentes que levaram a Anistia Internacional a pedir às autoridades federais e regionais, responsáveis pela equipe de segurança, que mantivessem o respeito às normas internacionais de direitos humanos durante o evento.

“Existem duas globalizações em marcha, uma da sociedade civil e outra do sistema neoliberal, que algum dia terão de negociar um contrato que promova um mundo melhor e mais justo”. A opinião é do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, professor da Universidade de Coimbra. Mas, segundo ele, não há, neste momento de agudo belicismo estadunidense, condições sequer de diálogo. O que significa a realização do Fórum Social Mundial na Índia para uma futura negociação entre as duas globalizações? As duas globalizações são entidades dinâmicas. A do neoliberalismo mudou muito desde 11 de setembro de 2001, ao incorporar a guerra e o militarismo dos Estados Unidos. É impossível negociar com quem pensa que a guerra pode resolver todos os problemas da humanidade. Em relação aos que defendem a globalização neoliberal, dentro da globalização alternativa há uma grande divergência entre os que pensam ser possível um diálogo com essas instituições, para mudá-las, e os que não acreditam na possibilidade de reformá-las e defendem sua eliminação. Ainda não temos oportunidade de discutir essa divergência. Mas em 2004 começa a reforma das Nações Unidas e a questão se impõe. A ONU é parte da globalização neoliberal ou algo mais amplo? Está acima das reformas ou pode ser reformada? Pessoalmente, creio que, havendo uma agenda e condições para o diálogo, deveria-se tentar a reforma.

Quem é Boaventura de Souza Santos é professor de Sociologia na Universidade de Coimbra, em Portugal. Seu doutorado, na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, abordou formas de organização social em comunidades afastadas dos serviços públicos. Atualmente está envolvido com o projeto da Universidade Popular dos Movimentos Sociais. Fatos recentes, como a invasão do Iraque apoiada por governos que tinham quase toda sua população contra, não indicam um aumento do fosso entre as duas globalizações e entre as instituições e a sociedade? Os sinais são contraditórios. O que aconteceu em Cancún, pela ação do Grupo dos 20 (G-20), é uma negociação ou um bloqueio? Os países em desenvolvimento, em lugar de manter uma atitude passiva, bloquearam a Organização Mundial do Comércio (OMC) por um tempo, enquanto os países ricos não se dispõem a negociar a sério. Mas, de fato, a agressão militarista, o belicismo estadunidense e seu neoliberalismo estão destruindo todas as condições de diálogo. Para o Fórum Social Mundial, que defende a luta política não-armada, não pode haver diálogo com os que exercem o terrorismo de Estado. Isso é algo temporário, da administração de George W. Bush? Também os dois governos do opositor Partido Democrata adotam atitudes belicistas, basta ver o bombardeio do Sudão e do Vietnã. Os Estados Unidos, em

Agência Brasil

As duas globalizações terão de dialogar

uma situação econômica débil, têm de recorrer à guerra para sustentar sua hegemonia. É uma ameaça para o Terceiro Mundo, e também contra a Europa, já que a diplomacia de Washington para com esse continente não se desenvolve no campo econômico, mas no militar. O Fórum Social Mundial se renovará em seu retorno a Porto Alegre? Este Fórum na Índia, pelo seu êxito, representa um grande desafio para Porto Alegre, que terá de fazê-lo melhor, com inovações que aprofundem a democracia interna, através de consultas. Proponho que nós, pela primeira vez em 2005, façamos um ensaio de democracia participativa transnacional. Que as pessoas inscritas possam votar. Hoje temos tecnologia eletrônica para isso. A votação seria para referendar algumas propostas de ação coletiva, sobre as quais há consenso dentro do Fórum e que permitam às organizações e redes avançar em planos de ação conjunta. Penso, também, que se deve iniciar já um processo de consultas para organizar o próximo Fórum. (IPS/Envolverde)


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INTERNACIONAL PARMALAT

Falência é sinal de crise do capitalismo Para italiano, funcionários da transnacional devem exigir pagamento de direitos trabalhistas dos compradores Carlo Herman/AFP

Claudia Fanti de Roma (Itália)

A

falência da transnacional Parmalat pode ser benéfica ao Brasil. A opinião é do italiano Antonio Onorati, especialista em agricultura familiar, para quem a crise da Parmalat se insere na crise do capitalismo contemporâneo, “no qual a produção de riqueza material é minoritária em relação ao volume da riqueza virtual”. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, ele defende soluções traçadas por trabalhadores e produtores, com condições de impor exigências a quem pretenda comprar a empresa.

Quais as conseqüências da crise da Parmalat para os lavradores e criadores de gado italianos e latino-americanos? A Parmalat não produz só leite, mas atua na indústria agroalimentar em geral, do extrato de tomates aos sucos de frutas, e ainda no turismo, no futebol. No setor agroalimentar, a estratégia da Parmalat foi destruir as estruturas intermediárias, muitas delas cooperativas, de colheita e primeira transformação. Agora, a crise financeira da Parmalat deixa os produtores completamente desprotegidos. O governo italiano pode tentar salvar a Parmalat italiana, mas a Parmalat de Portugal ou do Brasil, por exemplo, serão cedidas a eventuais interessados, em bloco ou aos pedaços. De todo modo, se

Produtores de leite italianos fazem protesto em frente a fazenda da Parmalat em Piana de Monteverna Divulgação

Maringoni

Existe relação entre a crise da Parmalat e a atual situação do capitalismo? Até a Segunda Guerra Mundial, a burguesia tinha uma visão estratégica de ação, ao menos a médio prazo, a ponto de planificar guerras com milhões de mortos, mas que atingiam os seus objetivos. Agora, no entanto, com o predomínio da riqueza virtual, a burguesia tem horizontes brevíssimos de tempo, sem uma estratégia global a longo ou a médio prazos. Assume iniciativas, econômicas ou militares, que não consegue gerenciar. É o caso das guerras desencadeadas pelo governo estadunidense, que ele não consegue controlar. Na Itália, a classe política mudou as regras de balanço, que eram uma garantia até mesmo para os capitalistas, e depois não sabe gerenciar o caos que deriva dessa mudança.

Quem é Antonio Onorati é presidente da organização não-governamental italiana Crocevia, que desde 1958 dá assistência à agricultura familiar. Defensor do consumo crítico, foi um dos organizadores do Fórum Social de Milão.

a Parmalat não for vendida por inteiro a gigantes como a Unilever, Philip Morris, Cargill ou Nestlé, se adotará o método criminoso do “despedaçamento”: todos os débitos serão atribuídos a uma sociedade, as que tenham menos problemas serão saneadas, para serem vendidas. Vendem-se as jóias da família e se arruína o resto, em prejuízo dos

controle nacional sobre a indústria agroalimentar. Quanto ao exterior, os sindicatos e os produtores agrícolas brasileiros deveriam se organizar para discutir com o governo as condições da compra da Parmalat no Brasil.

trabalhadores. Mesmo que sejam restabelecidas as antigas cooperativas, os criadores e produtores titulares serão responsabilizados por parte das dívidas da Parmalat.

Quer dizer que, para os produtores latino-americanos, a eventual venda da Parmalat não seria necessariamente um prejuízo? Não, poderia até mesmo ser uma oportunidade de pôr fim ao mode-

Qual seria a melhor solução para os trabalhadores? Decerto, na Itália, seria uma coisa positiva a recuperação de um

Explode valor da dívida líquida A dívida líquida da Parmalat, gigante italiana do setor de laticínios, hoje em concordata e sob intervenção do governo, é oito vezes maior do que se conhecia. A informação é da empresa de auditoria PricewaterhouseCoopers, que apurou uma dívida de 14,3 bilhões de euros, ou 18 bilhões de dólares. O balanço de setembro da Parmalat indicava uma dívida líquida de apenas 1,8 bilhão de euros. A PricewaterhouseCoopers foi contratada pelo interventor do governo italiano na empresa, Enrico Bondi. Os trabalhos dos auditores foram feitos com apoio dos bancos Mediobanca e Lazard. A apuração das dívidas da empresa foi a primeira parte do trabalho de revisão das contas da Parmalat. A partir de agora, os interventores começarão a pagar fornecedores, com exceção dos localizados no Brasil e nos EUA, onde foram formadas “unidades de crise” para negociar com credores locais. A dívida da empresa no Brasil está estimada em mais de R$ 1 bilhão (cerca de 300 milhões de euros). lo dos grandes conglomerados, da Unilever, da Cargill. Esse modelo mudou a natureza das criações, colocando-as na condição de reduzir ao máximo os custos do leite. A crise da Parmalat poderia ser aproveitada para reorientar a produção para o leite fresco destinado ao mercado local e regional, e não de leite longa vida para exportar a regiões distantes. Nossas sugestões ao Brasil são duas: primeiro, que as soluções sejam discutidas entre os trabalhadores dependentes da Parmalat e os produtores, uma vez que há a tendência de terem seus interesses contrapostos, estendendo-se essa contraposição aos consumidores. Segundo, que sejam impostas condições a quem pretenda comprar a Parmalat. Em matéria agrícola, os governos não podem ficar só olhando, mas devem guiar um processo de reconversão ao sistema de cooperativas.

ÍNDIA

Ernesto Rodrigues de Belo Horizonte (MG) “Na Índia, temos o espírito de ouvir o outro.” É esse o princípio que norteia os diálogos que o cientista social indiano Ananta Kumar Giri apresenta em seu livro Reflections and Mobilizations (sem edição nacional), no qual explica suas idéias sobre universalismo e transversalidade cultural. Para ele, gradativamente, o processo de globalização significa a destruição de uma série de direitos coletivos, conquistados ao longo de anos de lutas e reivindicações. A saída? A globalização humanitária, em oposição à globalização corporativa. Giri, que é Ph.D em Antropologia pela John Hopkins University e trabalha como pesquisador e professor no Madras Institute of Development Studies, na Índia, classifica a globalização como um fenômeno multifacetado, com um lado extremamente nocivo: a globalização corporativa, que destrói vidas locais e comunidades. Ele cita como exemplo o Esta-

do de Orissa, ocupado por 25% de populações tribais. Oito anos atrás, uma das áreas foi vendida para uma transnacional norueguesa do setor de mineração. “Se os projetos dessa companhia fossem aprovados, as pessoas teriam de se mudar. Mas, para onde? Não houve qualquer preocupação em dialogar com a comunidade local e, desde então, diversos confrontos se sucederam”, lembra. Segundo Giri, o governo anunciou que daria atenção às comunidades, mas agora está numa posição de submissão em relação ao capital transnacional. “É mais complicado reverter a situação. Além disso, a mídia do nosso país havia se posicionado a favor das transnacionais, defendendo o seu papel para o ‘desenvolvimento’ nacional”. No caso de Orissa, houve resistência, confronto e morte. Mas um evento deu um outro rumo à história. Um grupo de ativistas da Noruega, o Norwatch, convidou o líder da resistência comunitária a ir ao país escandinavo falar aos trabalhadores da empresa, e explicar a posição dos povos afetados,

Ernesto Rodrigues

Cientista propõe globalização humanitária

Giri: espírito de “ouvir o outro”

numa tentativa de sensibilizá-los. O indiano explicou que, se a empresa iria gerar muitos empregos, isso se daria às custas de um povo em condição de miséria. Os norueguese acabaram desistindo do projeto. “Isso é uma prova de solidariedade global. O que se conclui deste episódio é, que além da resistência contra a globalização corporativa, a mobilização pode levar também a uma solidariedade global, o que é também um aspecto da globaliza-

ção, que eu chamo de globalização humanitária”, defende.

DEMOCRACIA AMEAÇADA Giri lembra que, nos últimos dois anos, o governo indiano tem feito tentativas sucessivas de vender estatais lucrativas, empresas que competem no mercado global, como a India Oil. “Além do erro que essa iniciativa pode representar, o governo está tentando impor sua decisão, no âmbito exclusivamente executivo, sem passar pela apreciação do Parlamento. Simplesmente trata-se de desrespeitar procedimentos democráticos ao querer tomar uma decisão sem a aprovação parlamentar”. A Suprema Corte, no último momento, se opôs a isso e determinou a inconstitucionalidade do ato, mas o governo ainda não desistiu, ato que Giri classifica como “uma séria ameaça à nossa democracia”. Aos 39 anos, autor de sete livros e de dezenas de ensaios e artigos sobre movimentos sociais, globalização e democracia pós-industrial, Giri lembra que durante 300 anos a

Europa explorou todos os recursos naturais de suas colônias de forma injusta. “Agora que aqueles países estão em condição de competir, para tentar recuperar o que foi expoliado, os Estados Unidos e a Europa querem que retiremos nossos incentivos de exportação, mas mantêm os subsídios aos seus produtos. Isso é a lei da selva. Não há palavras para isso”, diz, indignado. Contra a “lei da selva”, vale a capitalização do conhecimento. Um exemplo é o fato de a Índia ser, hoje, uma superpotência na área de programas de computadores. Hoje, são indianos 27% dos cientistas que trabalham no Vale do Silício, o pólo industrial do setor nos Estados Unidos. Giri destaca o fato de muitos desses pesquisadores terem origem muito humilde, alguns até sem comida em casa. “Apesar da desigualdade social, da tecnologia e da ciência na Índia, por causa da política de bem-estar social instituída após a independência, pessoas de classes mais baixas foram inseridas nesse processo de transformação. Aquele talento está sendo valorizado”.


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INTERNACIONAL ÁFRICA

Estilista valoriza tecidos africanos Monique Moulareh, desenhista e costureira da Costa do Marfim, viaja o mundo divulgando a moda do continente Paulo Pereira Lima Enviado a São Tomé e Príncipe

M

onique Moulareh, estilista da Costa do Marfim, viaja há anos pela África observando o estilo de cada povo, criando seus modelos e difundindo seu trabalho. Vive e trabalha em Abidjan, capital da Costa do Marfim. Em entrevista ao Brasil de Fato em São Tomé e Príncipe, Monique falou da maneira africana de vestir. “Nós, estilistas, costureiros, tentamos trabalhar, sobretudo, com tecidos africanos. Por exemplo, temos os tecidos tradicionais, que são feitos à base da casca das árvores. Essas árvores são tratadas tradicionalmente”, disse. O que diferencia a moda africana? De início, todos podem vestir a moda africana. Não precisamos ser muito magros, estilizados. A moda africana se adapta a todas as formas de mulheres.

Monique Moulareh, estilista de moda da Costa do Marfim (Oeste da África), trabalha com tecidos africanos e diz que vestimentas do continente se adaptam ao gosto de negros e brancos.

homens não têm tanto esse problema. Então, a moda africana é mais fácil. Por exemplo, os tecidos africanos não colam, não marcam o corpo. E, quando se veste o tecido europeu, se não se está em boa forma, não é tão bonito. Na moda africana, você é gordo, você é magro, você é como é e pode vesti-la. Isso é muito bom.

tugal do que dos outros países africano. Tento introduzir a moda africana aqui. Logo no começo, todo mundo se vestia mais à moda portuguesa, européia, apesar de ser um país africano. Mesmo na alimentação, eles se sentem mais portugueses que africanos. Muitos começam a se vestir agora ao estilo africano.

Os estilistas africanos já têm fama internacional? Claro. Temos, por exemplo, Alfadi, da Nigéria. Temos Pateo Gaubro, que mora na Costa do Marfim. Temos muitos estilistas no Senegal, em todos os lugares.

Que outros países já visitou? Estive no Gabão em 1983 e 84, e introduzi a moda africana lá. Também a introduzi aqui, na Guiné Equatorial, e costumo ir a Lisboa. Até os portugueses aprendem a vestir a moda africana.

A senhora disse que São Tomé e Príncipe está mais perto de PorFotos: Paulo Pereira Lima

De homens também? Também. Para as mulheres, existe mais problema de peso, os

Quem é

Seu trabalho seria uma descolonização da moda? Sim, pois a África está repleta de coisas. Temos que mostrar para o exterior que a África é capaz de se impor também pela moda, que a África tem coisas boas. Nós, estilistas, costureiros, tentamos trabalhar, sobretudo, com tecidos africanos. Por exemplo, temos os tecidos tradicionais, que são feitos à base da casca das árvores. Essas árvores são tratadas tradicionalmente. Que tipo de árvore? Muitas árvores da floresta. Existem regiões onde se pode ver pessoas que há cem anos se vestem com tecidos tingidos com cascas e raízes. Nós tentamos modernizar nas camisas para homens e nos vestidos para mulheres. A moda africana escapa da globalização? Para mim, a moda africana tem seu lugar na globalização. Porque ela é o que existe de novo, que a Europa não conhece. Para os europeus, não seria folclórico? Não, não é, pois tentamos, justamente, tirar um pouco deste lado folclórico para ser mais acessível a todos. Podemos trabalhar um tecido africano com um mode-

lo europeu. Também podemos pegar um tecido europeu e trabalhá-lo em um estilo africano, de maneira que o estilo europeu possa vestir os africanos e as rou pas africanas cheguem à mundialização sem problemas. Temos que conquistar nosso lugar. A senhora participa de feiras internacionais? Eu tento participar das feiras. Participei de uma em Paris, por exemplo, na época em que o presidente Jacques Chirac era o prefeito. Também fui à feira de Milão, à feira de Dakar, aqui, em 1982. Atualmente eu me dedico mais a um contato direto com a

população. Agora que eu estou em São Tomé, tenho mais tempo para me aproximar da gente, ver como vivem. De que outro modo divulga seu trabalho? Eu faço desfiles, geralmente. O problema é que aqui é diferente em relação aos outros países, pois os estilistas que existem aqui não são africanos. Mesmo se as pessoas costuram aqui, não é no estilo africano, é sempre no estilo europeu. Então é diferente. Mesmo se você os abordar, tem que, primeiramente, fazer a população perceber que temos de usar a moda africana.

Meninas ugandenses voltam à escola Gustavo Capdevila de Genebra (Suíça) Shamin Cairo Atwine, uma ugandense de 15 anos, conta com orgulho os êxitos do Movimento para a Educação das Meninas de sua escola em Nakulabye, um bairro pobre e densamente povoado da capital, Kampala. Esse movimento, cuja vice-presidência é ocupada por Shamin, ajuda as meninas a se preparem para a vida ativa e conseguiu reintegrar muitas à educação. Assim, mais de 400 mil crianças se beneficiaram em Uganda com as atividades do movimento. Shamin contou sua experiência em Genebra, na apresentação, em dezembro de 2003, do relatório sobre o Estado Mundial da Infância 2004, que o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) dedica ao objetivo de aumentar em todo mundo o número de meninas que vão à escola. A divulgação do relatório coincidiu com a realização nesta cidade suíça da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (em dezembro último), uma conferência que examina as políticas

e as ações para difundir o emprego das tecnologias da comunicação entre os países pobres. As formas de aproveitamento dessas novas tecnologias para atingir as metas de desenvolvimento humano no mundo em desenvolvimento ganham importância relevante, admitiu Carol Bellamy, diretora-executiva do Unicef. Porém, a especialista atribuiu maior importância ainda à qualidade da educação básica oferecida a meninos e meninas em cada país.

INTERNET POPULAR Os especialistas do Unicef entendem que a internet tem o potencial para mudar a vida dos povos. Mas esse resultado será impossível de se alcançar se essas populações não sabem ler ou se não entendem matemática básica. Somente o aprendizado básico e a alfabetização preparam as crianças para se incorporarem ao mundo, incluindo o da internet, disse Carol. A tecnologia oferece modernas maravilhas e novas fronteiras do conhecimento, mas somente para alguns. Ao mesmo tempo, são verificados fatos assombrosos, como a existência a

cada ano de mais de 120 milhões de crianças que nunca passaram pelos portões de uma escola. Porém, o fato mais grave é que a maioria são meninas, ressaltou a diretora do Unicef. Uma avaliação das políticas internacionais demonstra que as estratégias de desenvolvimento não consideram de maneira suficiente as meninas, pois centenas de milhões de mulheres carecem de instrução e não podem contribuir para as mudanças positivas para seus filhos e suas sociedades. Mas a educação das meninas pode mudar o panorama do desenvolvimento. Por essa razão, o Unicef convoca a sociedade a acelerar o esforço para colocar as meninas na escola nos próximos dois anos. Walter Fust, diretor-geral da agência suíça para o desenvolvimento e a cooperação, apreciou esses esforços pela eliminação das disparidades de gênero nas escolas primárias e secundárias, afirmando que nenhum dos objetivos do desenvolvimento será atingido sem educação. Na África Subsaariana, a quantidade de meninas sem escolarização aumentou progressivamente de 20

milhões em 1990 para 24 milhões em 2002. Informes recentes estimaram que, se não forem acelerados os progressos, essa região não alcançará a educação primária universal até 2129. Os estudos revelaram que 83% das meninas sem escolarização no mundo vivem na África Subsaariana, Ásia Meridional, Ásia Oriental e no Pacífico. Na América Latina e no Caribe, a assistência às escolas é igual, de 91% para homens e mulheres. Entretanto, as taxas altas de matrícula que a região registra (96% para homens e 94% para mulheres) ocultam uma crise, advertiu o Unicef. Vários informes indicam que nessas duas regiões se verifica um aumento do número de meninas que abandonam a escola, especialmente nas zonas rurais.

GÊNERO FEMININO No Oriente Médio e na África do Norte, a matrícula está em 83% para homens e 75% para mulheres. A assistência líquida à escola registra um ponto a menos em cada gênero. No Marrocos, cerca de 25 mil meninas e adolescentes trabalhavam como domésticas na região da Grande Casablanca e em torno de 60% delas

tinham menos de 15 anos. Na Ásia oriental e no Pacífico, a matrícula atinge 80% de homens e 65% de mulheres. Entretanto, a assistência mostra um indicador de 76% entre homens e de 69% entre mulheres. Nessas duas regiões, a taxa de matrícula é de 93% para homens e 92% para mulheres, mas o relatório do Unicef admite carecer de dados sobre a assistência líquida na região. Carol observou que na maioria dos lugares a igualdade de gênero em educação significa derrubar as barreiras que afastam as meninas da escola. O número de meninas que não vão à escola supera em nove milhões o de meninos. Entretanto, quando estes obstáculos de gênero são eliminados, as escolas se transformam em lugares mais atraentes para todos, meninos e meninas, comprovaram os especialistas do Unicef. (IPS/Envolverde)


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DEBATE RUMOS DO GOVERNO

Políticas compensatórias: o “cala-a-boca” do governo Lula Luciana Genro o mesmo tempo em que anunciou a continuidade do modelo econômico que gerou desemprego, massa salarial em queda, e uma cifra imensa de excluídos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o governo dizendo ser sua prioridade o combate à fome. Assim, o governo seguiu “by the book” (conforme os livros), como disse recentemente o ministro Luiz Fernando Furlan, o receituário neoliberal, ou social-liberal. A verdade é que as políticas compensatórias, assistencialistas e focalizadas em uma minoria em um mundo que possui uma legião de excluídos, nada mais são do que um “cala-a-boca” para que o modelo possa seguir e, ao mesmo tempo, fingir que combate a miséria e a exclusão. Um governo que supostamente estabelece como prioridade este tipo de política, atesta sua incapacidade de gerar desenvolvimento econômico com distribuição de renda. Em 2003, a bem da verdade, o goveno Lula foi incapaz de gerar qualquer tipo de desenvolvimento econômico, mesmo aquele que atende apenas aos interesses da classe patronal. O crescimento previsto para este ano de 2004 também não dará conta sequer de absorver os jovens que tentarão ingressar no mercado de trabalho. Muito menos do estoque de desempregados que aumentou em meio milhão no primeiro ano de administração Lula.

Marcio Baraldi

A

É preciso lembrar também que a promessa de priorizar o combate à fome foi solenemente esquecida: com muita propaganda e resultados pífios, o Fome Zero recebeu pouco mais de R$ 1 bilhão em recursos, enquanto o ajuste fiscal de 4,25% do PIB drenou perto de 100 vezes este valor para o pagamento de juros da dívida.

Até mesmo Joseph Steiglitz, que por anos serviu ao FMI – e não é suspeito de ser de esquerda – declarou que com o atual nível de superávit primário executado no Brasil é impossível um crescimento econômico duradouro e consistente. E, acrescento eu, nenhuma distribuição de renda será possível. Os programas assistenciais, agora unificados sob o comando

do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome, são medidas compensatórias que, se associadas a uma política de enfrentamento real dos problemas que geram a exclusão social, cumpririam um papel importante. Afinal, a fome não espera, e medidas de urgência são necessárias e podem salvar vidas. Mas as pessoas não querem esmola, e sim empregos, salários dignos, serviços públicos qualificados. Por isso, a urgência maior é mudar o modelo.

UNIFICAÇÃO: MEDIDA COMPENSATÓRIA O governo, no entanto, prefere seguir oferecendo uma cesta básica ou um tiquete alimentação com uma mão e, com a outra, tirando o emprego, arrochando o salário, aumentando as tarifas públicas. Este é o resultado, evidente em todos os indicadores da economia real, da política de Lula e Palocci. O Brasil e a América Latina como um todo têm sido exportadores de capitais para os países ricos. Em 2003, o continente sofreu uma transferência líquida de recursos para o exterior de 29 bilhões de dólares. Em duas décadas, a América Latina transferiu aos centros de poder econômico 2,5 trilhões de dólares na forma de pagamentos da dívida externa, fugas de capital e pelo diferencial de preço a que são vendidas as matérias-primas. Como se vê, não faltam recursos, a questão é para onde eles estão indo. Um programa de urgência precisa ser implementado, e para isto é preciso construir uma alternativa política para a classe trabalhadora. Este programa deve pautar em primeiro lugar o fim da drenagem de riquezas para os países ricos, a suspensão do pagamento da dívida externa, a utilização do dinheiro que hoje compõe o superá-

vit primário na educação, saúde, habitação, investimentos públicos que gerem emprego. Acabar com a pobreza pressupõe fazer a reforma agrária que acabe com o latifúndio, dando terra aos que querem produzir e aumentando a oferta de alimentos. Por fim, a integração latinoamericana no enfrentamento dos interesses do grande capital, dos banqueiros e dos governos imperialistas é imprescindível. Para batalhar por estas propostas estamos construindo uma alternativa. Junto com o Movimento Esquerda Socialista (corrente política que integro e que deixou o Partido dos Trabalhadores diante da nossa expulsão), com vários outros agrupamentos políticos, junto com os parlamentares expulsos do PT, a senadora Heloísa Helena e os deputados Babá e João Fontes, militantes e intelectuais do porte de Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Milton Temer, Cid Benjamin, Roberto Leher, dirigentes sindicais do Andes/SN, Unafisco e dezenas de outros setores da classe trabalhadora, da juventude, dos movimentos sociais em geral, estamos dando os primeiros passos para construir um novo partido de esquerda no Brasil, que ajude a manter em pé as bandeiras da esquerda socialista do mundo inteiro. Luciana Genro é deputada federal pelo Rio Grande do Sul Nesta edição, excepcionalmente, estamos publicando apenas um artigo na página de Debate. Na próxima edição, a página volta ao seu formato normal, com dois artigos que ampliarão o debate iniciado nesta semana sobre os novos rumos da condução da política social do governo Lula após a reforma ministerial e nomeação do deputado Patrus Ananias para o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.


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De 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2004

agenda@brasildefato.com.br

AGENDA NACIONAL SÃO PAULO

LIVROS TEATRO DE ARENA O livro faz parte da Coleção Paulicéia, lançada pela Boitempo Editorial, em dezembro de 2003. A coleção retrata, em seis livros, a história e o cotidiano de bairros e personagens da capital paulista e de outras regiões do Estado. De autoria de Izaías Almada, aborda o trabalho do Teatro de Arena contando que, até seu surgimento, a tendência dominante no teatro brasileiro era o rigor formal. Foi por meio daqueles que faziam teatro buscando transformar o mundo que esse círculo foi rompido e novas dimensões do Brasil foram reveladas pela arte aberta aos sentimentos populares. Em “Eles não usam black-tie” e “Arena conta Zumbi”, o público era convidado a compreender e a protagonizar a história brasileira. Neste livro, o autor recolhe a história e o sentido daquele período, cinqüenta anos depois. Almada reúne testemunhos de Décio de Almeida Prado (uma de suas últimas entrevistas), Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Chico de Assis, Antônio Fagundes, entre outros. Mais informações: (11) 3875-7285, editora@boitempo.com CRIANÇAS INVISÍVEIS A obra, que discute o enfoque da imprensa sobre o trabalho infantil doméstico e outras formas de exploração, integra o Programa de Ação de Comunicação para o Enfrentamento do Trabalho Infantil Doméstico – executado pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) e pela Fundação Abrinq, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), Unicef e com a organização não-governamental Save the Children, do Reino Unido. Assim como o Programa, o livro tem o objetivo de fazer com que os meios de comunicação ampliem e qualifiquem a cobertura jornalística de questões relativas ao trabalho infantil doméstico. A publicação traz entrevistas com jornalistas que de alguma forma tiveram contato com o trabalho infantil

outros; exposição “Henfil Baixou Aqui!”, reunindo charges e caricaturas de Laerte, Luscar, Célus, Maringoni, Spacca, Osvaldo, Vilaça; exposição do acervo de Ivan de Souza (filho de Henfil), entre outras mostras. Também acontecerá a festa de lançamento da edição de aniversário de O Pasquim21 e uma performance do grupo Troles & Bondes, apresentando trechos da peça “Enfim, Henfil: passo-a-pasDivulgação

Com o tema “A Invasão do Humor III – Henfil Baixou Aqui... 60 anos”, o projeto Autor na Praça promove uma semana de eventos relacionados à vida e à arte do cartunista Henfil – que, se estivesse vivo, completaria 60 anos dia 5 de fevereiro. A semana é uma homenagem ao cartunista que mais influenciou a geração que viveu o período da ditadura militar. Realização conjunta da Associação dos Amigos da Praça Benedito Calixto, da Associação dos Cartunistas do Brasil, do Instituto do Memorial de Artes Gráficas do Brasil, da BRimagens, da BrazucaH Produções, da Henfil Produções e do jornal O Pasquim21

so, uma história no traço”, com personagens criados por Henfil, como Graúna, Zeferino, Bode Orelana, e Ubaldo, o Paranóico. 5 de fevereiro – Parthenon The Excellence Flat 10h – abertura da exposição “Henfil Baixou Aqui!” 10h, 12h, 14h e 16h – exibição do filme “Cartas da Mãe”, dirigido por Fernando Kinas e Marina Willer, e do documentário “Henfil, Profissão Cartunista”, dirigido por Marisa Furtado de Oliveira; exposição de trabalhos; performance do grupo Troles & Bondes. Ivan de Souza vai autografar obras de seu pai. 19h30 – exibição do longa metragem “Tanga, Deu no New York Times” 20h30 – mesa de bate papo sobre Henfil e sua arte com a participação de Ivan de Souza, Audálio Dantas, Jal, Rose Nogueira.

31 de janeiro - Espaço Plínio Marcos, Feira de Artes da Praça Benedito Calixto - 10h - abertura da exposição; 15h - presenças de Ziraldo, Jal, Gual, Custódio, Alcy, Audálio Dantas, Rose Nogueira, Lucinha Lara, entre

doméstico e fazem uma reflexão sobre como ele vem sendo abordado. O livro dedica um capítulo ao trabalho infantil em geral, no qual aborda aspectos históricos e legais, causas, conseqüências e eventuais soluções. Mais informações: (61) 322-6508, ramal 224

CEARÁ ALCA E GRITO DOS EXCLUÍDOS Dia 31, 9h

Primeira reunião sobre o Grito dos Excluídos 2004 e a Campanha Nacional Contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). O encontro pretende avaliar as atividades de 2003 e realizar as primeiras discussões sobre a comemoração dos dez anos do Grito, que acontece este ano. Também serão discutidas as mobilizações pela realização do plebiscito oficial sobre a Alca. O objetivo é conseguir que o governo federal realize o plebiscito durante as eleições municipais de 2004. A discussão deve reunir representantes de diversas entida-

CURSO DE VERÃO TERRA DO SOL Inscrições até 29 de fevereiro O curso, sob o tema “Êxodo: caminhos de liberdade”, vai promover discussões e atividades para analisar o sentido e o exercício do poder, em seus aspectos social, político e religioso. As inscrições

DE OLHO NO AMBIENTE Até 15 de fevereiro, das 8h às 21h Projeto da Petrobras será realizado em 13 Estados e pretende fomentar discussões sobre grandes questões ambientais. Em Fortaleza, será montada uma grande tenda na praia, com estandes de várias entidades que trabalham com a questão ambiental. Das 8h às 10h, acontecerão oficinas de arte e educação, com teatro de bonecos, do Grupo Formosura. Das 15h30 às 19h, serão realizadas oficinas sobre o tema água e saneamento, com lideranças comunitárias. A Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas (Aquasis), o Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador (Cetra), o Labomar e o Instituto Terrazul mostrarão suas experiências. O objetivo do projeto é ouvir as demandas da sociedade sobre as questões ambientais, relacionadas ao tema água e saneamento, e discutir a Agenda 21 em Fortaleza. A Agenda 21 é um programa de ação que tenta promover, em escala planetária, um novo padrão de desenvolvimento, conciliando métodos de proteção ambiental, justiça social e eficiência econômica. No encerramento, dia 15 de fevereiro, os organizadores pretendem tirar um documento para ser discutido com o prefeito de Fortaleza. Local: Praia da Iracema, Fortaleza Mais informações: (85) 268-2778

MARANHÃO I ENCONTRO REGIONAL DE QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU 4 e 5 de março, das 8h às 17h Momento para a sensibilização dos agentes sociais para a situação das quebradeiras de coco babaçu, na região dos cocais maranhenses, o encontro vai discutir o agroextrativismo sustentável e a segurança alimentar das famílias que sobrevivem dessa atividade. Local: Escola Emílio Garrastazu Médici, Av. João Leal, Centro, Timbiras Mais informações: (99) 668-1370, institutodeapoiocomunitario@ig. com.br

SÃO PAULO

O presente é feito de lutas A época da atuação política de Che – da guerra fria, das ditaduras sanguinárias, da efervescência revolucionária que agitava a América Latina, das esperanças e dos sonhos – era uma época “em que se vivia uma História em movimento e uma confrontação permanente de pensamentos antagônicos”. Nascido em 1928 e assassinado em 1967, em uma emboscada na Bolívia, onde lutava contra as forças que oprimiam o povo boliviano, seu compromisso com a História – não a história manipulada pelos vencedores – foi forjado na luta diária, no campo, na cidade e na trincheira revolucionária, quando colocou o seu pensamento em prática. Sua presença marcante, se provoca suspiros em mocinhas e inveja em mocinhos preocupados apenas com moda e moto, permanece na História viva da

7 de fevereiro – Espaço Plínio Marcos, na Feira de Artes da Praça Benedito Calixto 10h - Ivan de Souza autografa obras de Henfil. Artistas e cartunistas estarão na praça. No final do evento (20h), exibição de “Cartas da Mãe” e “Henfil, Profissão Cartunista”. Locais: Parthenon the Excellence Flat, sala Bordeaux, R. Capote Valente, 500; Pça. Benedito Calixto, São Paulo Mais informações: (11) 3085-1502 / 9586-5577, edsonlima@pracabeneditocalixto. com.br www.hqmix.com.br/henfil

des, movimentos, comunidades, pastorais sociais e demais interessados. Local: Seminário da Prainha, sala 1, Fortaleza Mais informações: (85) 226-7277

Divulgação

3° CONCURSO REDE ANDI Estão abertas as inscrições para o 3° Concurso Rede Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância) para Projetos em Comunicação pelos Direitos da Criança e do Adolescente. Voltado a organizações não-governamentais com sede no Brasil, o concurso aceita projetos que contribuam para a qualidade da informação sobre os direitos da criança e do adolescente, promovendo o diálogo profissional e co-responsável entre atores sociais, jornalistas e meios de comunicação. Esse objetivo pode ser alcançado por meio da promoção de eventos, pesquisas, publicações, entre outras ações. As inscrições devem ser feitas por meio de formulário disponível na internet (www.andi.org.br) ou solicitado por correio eletrônico (redeandi@andi.org.br). O formulário deve ser enviado, juntamente com material institucional da organização inscrita (folhetos, vídeos, matérias veiculadas na imprensa etc.), à Andi, em Brasília. A data limite para recebimento das inscrições é 18 de abril de 2004. Mais informações: (61) 322-6508 ramais 218 ou 212, redeandi@andi.org.br

podem ser feitas por telefone ou pela internet. Mais informações: (85) 253-7274, www.cursodeveraofortaleza.com.br.

América Latina, como um símbolo de revolta e de sonho, e de ensinamentos políticos ainda não de todo absorvidos pelas organizações de esquerda de hoje. Não queremos encontrar o mito, mas, sim, o lutador, que a burguesia descaracteriza de sua atividade revolucionária, concentrando e limitando seu legado a uma estampa ou a um rótulo de uma mercadoria

qualquer – uma ironia – queremos encontrar o homem íntegro, o companheiro leal, o revolucionário inflexível, “o mais completo ser humano de nossa época”, como afirmou Jean-Paul Sartre. Mesmo com base na experiência latino-americana e na cubana, em particular, o pensamento de Che tem um caráter profundamente universal, sendo suas obras estudadas por militantes revolucionários de todo o mundo. Ele já dizia, há mais de trinta anos, que o internacionalismo proletário é um dever e que o presente é feito de lutas: o futuro nos pertence. Alguém é contra? CONFIRA O pensamento de Che Guevara Michael Löwy 160 páginas R$ 8,00 Editora Expressão Popular R. Abolição, 266, Bela Vista, (11) 3105-9500, www.expressaopopular.com.br

1º FESTIVAL DO MINUTO DE SÃO PAULO Inscrições até 30 de abril Com o tema “Mínima Diferença”, o 1º Festival do Minuto de São Paulo acontece de 1º a 6 de junho e propõe discutir o “ser paulistano”, a identidade dos habitantes da metrópole. Os trabalhos deverão ter no máximo 60 segundos e podem ser produzidos com qualquer equipamento que produza imagens em movimento. Mais informações: www.festivaldominuto.com.br EXPOSIÇÃO “UMA VIAGEM DE 450 ANOS DE SÃO PAULO” Até 14 de março A mostra representa a quantidade de migrantes que participaram da construção da cidade. As obras estão montadas em uma grande instalação e há uma trilha sonora alusiva à cidade de São Paulo. Entrada gratuita. Local: R. Clélia, 93, São Paulo Mais informações: (11) 3871-7700


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CULTURA

De 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2004

MÚSICA

Da página policial ao caderno de cultura Alessandra Bastos de Brasília (DF)

D

a favela para o mundo. A frase resume os 10 anos de trabalho do AfroReggae, que começou com um grupo de amigos produtores de festas e hoje é uma referência de trabalho social para, através da arte, profissionalizar crianças e adolescentes carentes. Tudo começou em 1992 quando os amigos José Júnior, Plácido e Teco Rastafari organizaram um baile funk. Mas, por causa da violência, o governo estadual proibiu os bailes no Rio. Como já estava tudo pronto para a festa, a saída foi transformar a noite em uma evento de reggae. Nascia assim, meio sem querer, meio para burlar as proibições, o nome AfroReggae. Para conseguir divulgar seus eventos, os amigos resolveram fazer um jornalzinho, onde também abordavam questões raciais e das favelas. Era o início do trabalho social. No dia 29 de agosto de 1993, a história da favela foi marcada por uma tragédia: o episódio, que ficou conhecido como a chacina de Vigário Geral, resultou na morte de 21 pessoas, assassinadas brutalmente, e quatro sobreviventes. As investigações provam que aproximadamente 50 policiais militares e civis encapuzados mataram em represália à morte de quatro PMs, atribuídas a traficantes. Entre brigas das facções do tráfico e batidas policiais, as favelas cariocas ocupavam, cada vez mais, as manchetes dos jornais e as páginas policiais. Crianças e adolescentes cresciam no cenário de violência, abandonados social e civilmente. Nesse momento, os três amigos perceberam a necessidade de levar esperança às crianças e de afastálas das drogas, transformando-as em cidadãs. Promover um arrastão foi a decisão do grupo. Mas esse arrastão foi “do bem”, como eles mesmos dizem. Chamaram o grupo SambaReggae para fazer um show em Vigário Geral e saíram, de casa em casa, levando as crianças e anunciando uma oficina de percussão. “Foi a primeira vez que vi, em Vigário Geral, alguma atividade cultural. A cultura que imperava até aquele momento era a cultura da violência”, recorda Altair Martins, na época com 13 anos. Hoje, aos 22, é um dos percussionistas do AfroReggae.

Fotos: Victor Soares/ABr

Com o grupo AfroReggae, jovens de Vigário Geral, no Rio, superam a violência e o tráfico por meio da música

Meninos do AfroLata: um dos grupos do Movimento AfroReggae, que já conseguiu modificar a realidade de várias comunidades

Júnior, líder do AfroReggae, conta a trajetória do grupo no livro

José Júnior, líder do AfroReggae, se recorda do dia em que Gil fez um show no Complexo da Maré, na Vila dos Pinheiros, Rio de Janeiro. “O Complexo vive uma guerra permanente entre quatro facções do tráfico. Uma vez, o chamamos para tocar, e a guerra parou por 10 dias. Isso pra nós ficou marcado porque demonstra que a cultura é um elemento transformador e se houvesse mais investimentos, haveria mais garotos tocando”, afirma.

AUTO ESTIMA ELEVADA Júnior conta que a falta de verbas, a violência e todos os outros problemas enfrentados são contornáveis com trabalho. “O mais difícil

é quando se está desmotivado. Eu tenho de acreditar que posso mudar a vida das pessoas para conseguir”, ensina o líder que traz consigo a força de Shiva, o deus hindu adotado pelo movimento como símbolo, e que virou tatuagem no braço direito. “A história do AfroReggae é a história do caos, ele surgiu da violência, do apartheid social, só de coisa ruim. Mas ele pega a coisa ruim e transforma no bem e por isso adotamos a ‘Lei de Shiva’, o deus que primeiro destrói e depois transforma”. A brincadeira é levada a sério e a “lei”, cumprida à risca, se tornou uma ajuda para passar pelos momentos difíceis, que não são pou-

cos. Fome, desemprego, falta de dinheiro, violência, discriminação social, preconceito racial e tantos outros fazem da história do AfroReggae um caminho de vitórias. Entre momentos tristes e felizes, o AfroReggae conseguiu modificar a realidade de várias comunidades. “O que sabemos é que conseguimos mexer na vida de muita gente. Mesmo aquela pessoa que não é atendida pelo projeto é beneficiada na auto-estima”, alegra-se Júnior. Parte do sucesso do grupo é atribuída aos padrinhos, o músico Caetano Veloso e a atriz Regina Casé, que deram um empurrãozinho ao trabalho do AfroReggae, ajudando-os a conquistar a mídia e patro-

cínios. O trabalho cresceu, as parcerias foram surgindo e o AfroReggae hoje é uma organização não-governamental com três núcleos. Em Vigário Geral há oficinas de dança e percussão. Foi lá que nasceu a primeira banda do projeto, chamada apenas de AfroReggae, e as filhas mais novas, Makala, Kitoto e AfroLata. A AfroReggae gravou o primeiro CD, Nova Cara, em 2001. O disco ficou conhecido pela música “Capa de revista”, que fala do próprio grupo. No morro do Cantagalo, são ministradas as aulas de vídeo e de circo, de onde surgiu o grupo Levantando a Lona. E em Parada de Lucas são realizados os cursos de informática. (Agência Brasil)

PERCUSSÃO EMPRESTADA O começo não foi fácil. Sem dinheiro e sem instrumentos, as crianças brigavam entre si para tocar, na ânsia pelo novo e por conseguir ali uma profissão. “Quando a gente viu o arrastão foi atrás, se inscreveu e todo sábado ficava esperando a oficina. A gente não tinha instrumentos ainda, eles eram emprestados. Mais de 40 meninos ficavam ali, à espera para tocar. Imagina como era, rolava até porrada porque quem conseguisse pegar o instrumento primeiro, tocava mais tempo”, conta Martins. O desespero para tocar tinha motivo. “Nós nunca tivemos nada. A primeira oportunidade na vida, abraçamos com tudo”, desabafa o percussionista. Hoje, Martins é músico profissional e já conheceu várias cidades e países onde o AfroReggae se apresentou. “Mudou a minha vida e a da comunidade. Tiramos Vigário Geral das páginas policiais e colocamos nos cadernos de cultura”. O músico, e hoje ministro da Cultura, Gilberto Gil acha que nenhum outro grupo, no mundo, tem a junção da técnica, habilidade e energia física dos brasileiros do AfroReggae. “Eu fico babando, apreciando essa extraordinária complexidade matemática dos arranjos, tempos e variações, sem falar na energia da performance. É um nível cultural acima do normal”, diz.

Atitude leva arte a Brasília Assim como o AfroReggae usa a música e a arte para tirar crianças e adolescentes do tráfico de drogas, várias organizações não-governamentais surgiram com o mesmo objetivo. A partir da necessidade de ajuda mútua, o grupo de Vigário Geral criou uma rede para troca de informações, idéias e experiências. “Resolvemos deixar de lado o discurso chorão e começamos a nos organizar para contribuir na melhora da nossa cidade”, conta Sérgio Nascimento, presidente do grupo Atitude, de Brasília.

Criado em 1998, o Atitude trabalha com jovens da cidade satélite de Ceilândia, uma das regiões mais pobres e violentas da capital federal. O trabalho consiste em montar grupos de teatro, artes plásticas e dança nas escolas públicas. Além das aulas de artes são oferecidas palestras sobre Aids e outros temas ligados ao cotidiano dos adolescentes. “Nascemos na Ceilândia e crescemos sem assistência. Lá só há um hospital, as escolas não são reformadas, não há cinemas, nem teatro”, relaciona Nascimento. A história é parecida com a de Vigário Geral e a de inúmeras

outras regiões pobres do país. O objetivo das ações é diminuir as notícias de violência e transformálas em agenda de eventos culturais. Nascimento resume o objetivo do grupo: “Queremos mostrar o que tem de bonito na Ceilândia. O que mais aparece nos jornais são as notícias ruins. A gente não quer alimentar o sonho dourado de vir para o Plano Piloto e melhorar a nossa vida. Queremos contruir esse sonho lá”. Hoje, 30 colégios, em Ceilândia, Taguatinga e Gama, já formaram grupos de arte. O Atitude se tornou uma ONG em 2003 e o trabalho continua a todo vapor.

Três instituições ajudam financeiramente a organização, com local para as reuniões. Já estão sendo treinados jovens instrutores para abordarem o tema da sexualidade nos colégios. Também em 2003, Sérgio foi ao Rio conferir o trabalho do Afroreggae. Para 2004, está prevista a vinda de alguns membros do Afroreggae a Brasília para mostrar ao grupo da capital como eles trabalham no Rio e assim, ajudar a aumentar a rede de solidariedade. (A.B.)

Atitude trabalha com jovens da cidade satélite de Ceilândia montando grupos de teatro, artes plásticas e dança nas escolas


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