BDF_50

Page 1

Ano 2 • Número 50

R$ 2,00 São Paulo • De 12 a 18 de fevereiro de 2004

Marcos Borges/Gazeta do Povo/AE

Brasil é o paraíso da cobrança nas estradas de rodagem, patrimônio do povo repassado a grupos particulares

A farra dos pedágios privatizados E

m nenhum país do mundo as empresas privadas dominam tantos pedágios rodoviários como no Brasil. Nos EUA, para cada 420 quilômetros de estrada, existe um pedágio, enquanto aqui, há um a cada 15 quilômetros, segundo a Associação Brasileira de Engenheiros Rodoviários. O Brasil também é recordista em irregularidades nas privatizações, e a exploração de rodovias pelo

setor privado não é exceção, como constata o governo do Paraná. E para impedir mais um aumento abusivo das tarifas, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ocupou praças de pedágio no Estado. Seus dirigentes destacam que os pedágios funcionam em estradas públicas, que são patrimônio do povo brasileiro, que foi repassado a grupos privados. Págs. 2 e 3

Escandalosa remessa de lucros e dividendos

Bancos e FMI fecham cerco à Argentina

Levante no Haiti exige renúncia de presidente

O governo de Néstor Kirchner está sendo submetido a uma forte pressão para aumentar o pagamento da dívida externa. O Fundo Monetário Internacional (FMI), os países mais ricos do mundo, a Justiça estadunidense e até o jornal Financial Times exigem que Kirchner reveja sua posição de pagar 25% do que os credores privados cobram. Após quebrar por seguir as políticas do FMI, a Argentina é colocada na parede para optar entre crescimento econômico ou pagamento da dívida. Pág. 9

A crise que se arrastava há meses no Haiti culminou em um levante da oposição que exige a renúncia do presidente neoliberal Jean-Bertrand Aristide, acusado de corrupção e violência contra a população. As principais cidades do país estão tomadas pelos grupos rebelados e o acesso à capital está impedido. Em uma semana, mais de 41 pessoas foram mortas e dezenas ficaram feridas nos confrontos com a polícia. Mesmo sem apoio do aliado EUA, Aristide diz que fica até 2006. Pág.9

Trabalhadoras tentam vencer preconceitos

Desemprego aumenta na América Latina

Depois de muita luta, as mulheres brasileiras conquistaram espaço e compõem, hoje, 50% do mercado de trabalho. Contudo, atuam em condições muito longe das ideais: ocupam os piores empregos e ganham muito menos que os homens. Metade da mão-de-obra feminina é empregada doméstica. A situação é ainda pior para as negras e pardas e para as que desempenham dupla jornada, no emprego e no trabalho doméstico, como explicam duas metalúrgicas e duas costureiras, que acusam as empresas de discriminação. O preconceito também ameaça as iraquianas, sujeitas à rigidez das leis islâmicas impostas pelo governo provisório. Págs. 8 e 11

Pág. 4

Camarão: futuro está no cultivo sustentável Pág. 13

Atores plantam árvores para futuro teatro Pág. 16

Sem-terra ocupam catorze pedágios no Paraná como protesto pelo aumento das tarifas

Haitianos pedem a renúncia do presidente Jean-Bertrand Aristide, acusado de corrupção e de seguir a cartilha neoliberal

E mais: TRANSGÊNICOS – O governo conseguiu um fato raro quando aprovou a Lei de Biossegurança: desagradou a gregos e troianos. Os ruralistas não gostaram da retirada dos plenos poderes que gostariam de dar à CTNBio, enquanto ativistas acham que a Comissão ainda tem muita força. Pág. 6 ÁFRICA – Brasil firma parceria com Angola no setor pesqueiro. São os primeiros frutos da viagem que o presidente Lula fez à África, em novembro de 2003. Pág. 12 DEBATE – César Benjamin, pesquisador do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ e integrante da Consulta Popular, discute o relacionamento de Lula com o Banco Central na série “Rumos do governo”, publicada por Brasil de Fato. Pág. 14

Nilson

ao exterior foi de 12,7 bilhões de dólares; nos anos de torra do patrimônio (1994-2003), atingiram 43,6 bilhões de dólares – aumento de mais de 250%. Depois das privatizações, o mercado brasileiro foi ocupado por empresas transnacionais, cujas as prioridades são definidas por suas matrizes no exterior. Pág. 5 Thony Belizaire/AFP

Rombos permanentes nas contas externas do país, com a saída anual de bilhões de dólares, tiveram forte estímulo com a entrega e a acelerada liquidação do patrimônio público via privatizações que ocorreram na última década. Os números mostram que no período préprivatizações (1984-1993), a remessa de lucros e dividendos


2

De 12 a 18 de fevereiro de 2004

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Tiago Rodrigo Dória • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Bernardete Toneto, 5555 Marilene Felinto, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, 5555 Natália Forcat, Nathan, Ohi • Diretor de Arte: Valter Oliveira Silva • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Bruno Fiuza e Letícia Baeta 55 Programação: André de Castro Zorzo 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: FolhaGráfica 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

NOSSA OPINIÃO

Pedágios, mais uma vergonha nacional

N

os Estados Unidos, para cada 420 quilômetros de estrada, 1 paga pedágio; na França, a razão é de 125/1; na Itália, 30/1; no Brasil, é de 15/1, segundo dados fornecidos pela Associação Brasileira de Engenheiros Rodoviários (ABER). Esses números, por si só, mostram o absurdo, mesmo quando não se consideram as irregularidades tantas vezes constatadas nos processos de privatização das estradas de rodagem do país. Os mesmos números mostram, também, a completa estupidez daqueles que defendem a instituição do pedágio, como se fosse uma decorrência necessária da modernização capitalista (a menos, é claro, que o Brasil pratique um capitalismo mais moderno do que o estadunidense, o francês e o italiano). O processo de privatização das estradas brasileiras sintetiza claramente a concepção das elites do que seja o patrimônio público nacional. No Pa-

raná, por exemplo, cujos dados são hoje amplamente conhecidos, graças à ação do atual governo estadual, o contrato de concessão firmado em 1997 atribuía ao poder público um prazo de apenas cinco dias para questionar os índices de reajuste das tarifas propostos anualmente pelas empresas concessionárias. Trata-se, obviamente, de um insulto à inteligência dos brasileiros. Por essas e outras, o governador Requião determinou uma auditoria completa nas contas de cada uma das empresas privadas que exploram as estradas do Estado. Entre as irregularidades já apuradas incluem-se a emissão de notas fiscais de obras e serviços não realizados ou emitidas por empresas desativadas; lançamentos contábeis irregulares; e superfaturamento. Como resultado das auditorias, o governo pode requerer a anulação dos contratos. Uma das lições que se pode tirar imediatamente desse episódio

é que basta que os governantes tenham vontade política para que as maracutaias armadas pelas elites venham à luz. A questão do pedágio não é técnica, como adoram argumentar os defensores das tarifas, sim política, como todo e qualquer assunto vinculado à esfera pública. É nesse quadro que deve ser entendida a ação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que voltou a ocupar, no início de fevereiro, 14 praças de pedágio instaladas em diferentes regiões do Paraná. Do ponto de vista do MST, não se trata de uma simples briga pela diminuição das tarifas, mas de defender estradas públicas, que são um patrimônio do povo brasileiro. É a mesma luta que se trava, por exemplo, para defender o patrimônio genético nacional contra a adoção das sementes transgênicas, ou pelo direito ao ensino público e gratuito, contra a privatização do conhecimento.

FALA ZÉ

OHI

CARTAS DOS LEITORES SAUDAÇÕES Esse não é apenas mais um instrumento de comunicação. Além da informação crítica e honesta, do compromisso com a verdade e a cidadania, do respeito à ética e à vida, Brasil de Fato tornou-se uma leitura indispensável na conjuntura atual. Por sorte, tornei-me leitor e assinante de primeira hora e hoje me orgulho em poder recomendálo a todos os militantes sociais, educadores e estudantes em todas as áreas e níveis. Em 20 anos de militância, não lembro de nenhum “informativo” que tivesse tanta diversidade de informações, profundidade nos conteúdos e abrangência nas reportagens. Com o conselho político constituído e linha editorial adotada, certamente veio para ficar. Que tenha vida longa, que continue sendo porta-voz da esperança e protagonista de um novo tempo, que já começou, na vida e na história do nosso país. Nelso dos Santos Nonoai (RS) Finalmente temos neste país um jornal que mostra a realidade dos fatos sem distorcer ou fazer como a maioria faz, acompanhar os que estão no poder. De uma maneira ou de outra, o objetivo deles é conseguir um financiamento com dinheiro público. As matérias sobre transgênicos, além de mostrar o que fazem os mandatários nas capitanias hereditárias do Brasil, foram didaticamente perfeitas, muito esclarecedoras para nós, leigos no assunto. Meus parabéns. Sigam em frente, pois este jornal, antes de servir de embrulho, passa por dezenas e dezenas de brasileiros que precisam saber sobre a triste realidade nacional.

Rui Carlos Marques de Barcellos por correio eletrônico MEIO AMBIENTE Devemos pedir urgentemente a abertura do debate público sobre os impactos causados ao meio ambiente pelas plantações de eucalipto. A região serrana capixaba está sendo invadida por essa planta. Árvores de nossa Mata Atlântica – imbaúbas, canelas, jequitibás, quaresmeiras – estão sendo sufocadas por esse tipo de cultura. Para agravar, “nossas” autoridades permitiram que em ex-desmatamentos seja plantado eucalipto, rotulando a terra utilizada como “áreas degradadas”. Quais são os parâmetros para essa “degradação”? Temos muita água, e de boa qualidade. Se responsáveis fossem, nossas autoridades não deveriam permitir a expansão desse agronegócio antes da divulgação pública das opiniões dos pesquisadores sobre os impactos do eucalipto em nosso meio ambiente. Vale destacar que as opiniões dos interessados no negócio deverão ser descartadas, principalmente dos financiados em campanhas políticas. A eles, sugerimos que as liberações recentes devem ser acompanhadas de “placas-alvará”, a ser fincadas nas divisas e entradas das propriedades degradadas. Dessa forma, “nossas” autoridades evitarão que fiquemos imaginando que as doações de campanhas funcionam como uma mordaça. Parece que há uma dinheirama no BNDES para expansão das plantações de eucalipto no Brasil, empresas estrangeiras aplicando o dinheiro público em destruição ambiental. Fernando Magno Vitória (ES)

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 3038 1432 ou mande uma mensagem eletrônica para: brasildefato@teletarget.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815

CRÔNICA

Carnaval e política Renato Pompeu O Carnaval está chegando e é tempo de pensar em como essa festa poderia ser recuperada como manifestação popular. Não estamos pensando aqui em coisas grandiosas, tais como incluir enredos “progressistas” nos desfiles das grandes escolas de samba, mesmo porque os enredos já estão decididos há muito tempo. Pensamos, isso sim, em coisas mais modestas, tais como pequenos blocos de pessoas com fantasias simples e uma pequena bateria ou qualquer conjunto de som, que saiam pelas ruas de suas comunidades entoando slogans musicais que satirizem, dentro de condições locais facilmente reconhecíveis, os podres poderes, de preferência devidamente personalizados e caricaturizados, responsáveis pelas condições precárias em que vivem as grandes massas brasileiras. Para tanto, não devemos ser puristas e tentar fazer reviver o Carnaval como foi no passado. Mas não custa lembrar algumas marchas e sambas de décadas atrás ainda atuais, como a do Pedreiro Waldemar, que faz o prédio e não pode entrar, ou a da Mãe de Quatro Filhos, que não pode pagar o aluguel e proclama: “Daqui não saio, daqui ninguém me tira.” Ou o trabalhador que entoa: “Trabalho como louco e ganho muito pouco, por isso

vivo sempre atrapalhado; comendo muxiba, fazendo faxina — tá faltando um zero no meu ordenado.” Não, é preciso inovar e atingir, com as novas formas musicais que se desenvolveram nos últimos anos, com as formas musicais regionais que se intermisturam nos agrupamentos de migrantes, e principalmente incorporando as novas vivências comunitárias, os verdadeiros pontos sensíveis das populações carentes. Na verdade, não é preciso “politizar” o Carnaval para conseguir fazê-lo tornar-se um fator de progresso humano. A simples mobilização da comunidade para organizar um desfile a fantasia pelas ruas do bairro, a simples colaboração para a confecção das fantasias, principalmente para as crianças, a simples reunião dos moradores para a decoração dos salões comunitários, a simples disponibilização dos talentos musicais e histriônicos locais e dos equipamentos necessários — só isso já torna o Carnaval uma experiência inesquecível em meio ao cotidiano cinzento, desolado e triste de dezenas de milhões de brasileiros. A experiência da festa, ainda mais de uma festa de multidões como é o Carnaval, leva à consciência de que um outro mundo é possível,

de que a vida não precisa ser uma sucessão de sofrimentos e carências. Leva à consciência de que todos têm direito a um lazer recreativo e culturalmente enriquecedor, para o que são necessárias condições dignas de trabalho e de salário, de jornada de trabalho, de saúde, educação, transporte, emprego e acesso aos bens culturais. Note-se que nesses bens culturais estão incluídos, além dos bens de consumo cultural, como bibliotecas, teatros, auditórios, salas de concerto, cinemas, televisores, aparelhos de som, salões de exposições e palestras, computadores ligados à internet etc., também os bens de produção cultural, com treinamento e equipamento para que todos possam, individual e coletivamente, ter suas próprias obras de arte e de cultura. Uma dessas obras de arte e de cultura é o próprio Carnaval, que não é algo para as pessoas simplesmente “verem”, mas, acima de tudo, para “viverem”. Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor, entre outros livros, de Canhoteiro, o Homem Que Driblou a Glória (Ediouro) e de Memórias de Uma Bola de Futebol (Editora Escrituras). Escreve uma vez por mês neste espaço.

Brasil de Fato é o resultado das aspirações de milhares de lutadores de movimentos populares, intelectuais de esquerda, sindicatos, jornalistas e artistas que se uniram para formar uma ampla rede nacional e internacional de colaboradores. • Como participar: Você pode colaborar enviando sugestões de reportagens, denúncias, textos opinativos, imagens. Também pode integrar a equipe de divulgação e venda de assinaturas. • Cadastre-se pela internet: www.brasildefato.com.br. • Quanto custa: O jornal Brasil de Fato custa R$ 2,00 cada exemplar avulso. A assinatura anual, que dá direito a 52 exemplares, custa R$ 100,00. Você também pode fazer uma assinatura semestral, com direito a 26 exemplares, por R$ 50,00. • Reportagens: As reportagens publicadas no jornal podem ser reproduzidas em outros veículos - jornais, revistas, e páginas da internet, sem qualquer custo, desde que citada a fonte. • Comitês de apoio: Os comitês de apoio constituem uma parte vital da estrutura de funcionamento do jornal. Eles são formados nos Estados e funcionam como agência de notícias e divulgadores do jornal. São fundamentais para dar visibilidade a um Brasil desconhecido. Sem eles, o jornal ficaria restrito ao chamado eixo Rio-São Paulo, reproduzindo uma nefasta tradição da “grande mídia”. Participe você também do comitê de apoio em seu Estado. Para mais informações entre em contato. • Acesse a nossa página na Internet: www.brasildefato.com.br • Endereços eletrônicos: AL:brasil-al@brasildefato.com.br•BA:brasil-ba@brasildefato.com.br•CE: brasil-ce@brasildefato.com.br•DF:brasil-df@brasildefato.com.br•ES:brasil-es@brasildefato.com.br•GO:brasil-go@brasildefato.com.br•MA:brasil-ma@brasildefato.com.br•MG:brasil-mg@brasildefato.com.br•MS:brasil-ms@brasildefato.com.br•MT:brasilmt@brasildefato.com.br•PA:brasil-pa@brasildefato.com.br•PB:brasil-pb@brasildefato.com.br•PE:brasil-pe@brasildefato.com.br•PI:brasil-pi@brasildefato.com.br•PR:brasil-pr@brasildefato.com.br•RJ:brasil-rj@brasildefato.com.br•RN:brasil-rn@brasildefat o.com.br•RO:brasil-ro@brasildefato.com.br•RS:brasil-rs@brasildefato.com.br•SC:brasil-sc@brasildefato.com.br•SE:brasil-se@brasildefato.com.br•SP:brasil-sp@brasildefato.com.br


3

De 12 a 18 de fevereiro de 2004

NACIONAL PARANÁ

Sem-terra derrubam aumento de pedágio Das 17 praças que elevariam tarifas, 14 foram ocupadas. Três dias após o início do protesto, Justiça suspendeu reajuste

ANULAÇÃO DOS CONTRATOS Integrantes do MST ocupam a praça do pedágio em Madaguari, no Paraná, em protesto contra o reajuste das tarifas

6, o MST desocupou as praças. As concessionárias prometem recorrer da decisão.

LUTA PROLONGADA “Trata-se de uma luta prolongada”, observa Baggio, ao afirmar que “as conquistas alcançadas até aqui já demonstram o poder de nossa mobilização social”. Estudos estimam que o impacto do pedágio na safra paranaense de milho e soja se-

Iniciativa privada domina rodovias brasileiras Nenhum país do mundo possui uma malha rodoviária entregue à exploração da iniciativa privada tão extensa como o Brasil. Esta é uma das conclusões de um diagnóstico do setor de transportes, elaborado pela Associação Brasileira de Engenheiros Rodoviários (Aber) e apresentado em 2002 aos candidatos à Presidência da República. Intitulado “A crise no setor rodoviário - Uma abordagem para os candidatos de oposição à Presidência”, o documento critica o sucateamento a que foi submetido desde o final da década de 70 o Departamento Nacional de Estradas e Rodagem (DNER) – órgão extinto em 2002 pelo governo FHC –, prega a reativação do mesmo e defende a interrupção imediata do programa de concessões de rodovias federais à iniciativa privada. “Somente a instituição de um fundo vinculado, com recursos oriundos de imposto sobre o consumo de combustíveis, resolverá o problema da malha rodoviária em sua totalidade, sendo essa a solução adotada em quase todo o mundo desenvolvido”, diz o texto. De uma malha total de 164 mil quilômetros de estradas pavimentadas existentes no Brasil, nada menos que 10,7 mil quilômetros encontram-se pedagiados.

CANCELAMENTO Um processo de concessão à iniciativa privada de sete lotes de rodovias federais, paralisado desde abril de 2002, foi cancelado pelo governo Lula em outubro do ano passado.Novos estudos dos trechos que cortam os sete Estados das

regiões Sul e Sudeste estão sendo realizados pelo Instituto Militar de Engenharia (IME). Devem ser concluídos ainda neste semestre, o que permitiria a reabertura de novas licitações em prazo médio de um ano. A revogação do processo foi provocada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que encontrou “discrepâncias” nos editais de licitação.

PRIVATIZAÇÃO EM ALTA A promulgação da lei federal 9.277, em maio de 1996, possibilitou a Estados e municípios solicitar a delegação de trechos de rodovias federais para inclui-los em seus programas de concessão de rodovias. De acordo com dados da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), existem hoje no Brasil 164,2 mil quilômetros de rodovias pavimentadas .Desse total, 10,7 mil quilômetros de rodovias são pedagiadas. Outros 8,5 mil quilômetros de rodovias, de acordo com a ANTT, encontram-se atualmente com as respectivas concessões “em estudo”. São 185 praças de pedágio espalhadas pelo território brasileiro – 165 controladas por 36 concessionárias privadas e outras 20 por 6 operadoras públicas, tais como os DERs (Departamentos de Estradas e Rodagem, ligados aos governos estaduais). As 36 concessionárias privadas controlam 9,5 mil quilômetros de estradas, enquanto as operadoras públicas administram apenas 805 quilômetros. (FCO)

BRASIL É RECORDISTA EM ESTRADAS PEDAGIADAS PAÍS Brasil EUA França Itália Espanha Grécia Áustria

REDE PAVIMENTADA (km) 164.000 3.550.000 725.000 160.000 150.000 35.000 36.000

Fonte: Associação Brasileira de Engenheiros Rodoviários (Aber)

REDE COM PEDÁGIO (km) 10.706,4 8.500 5.800 5.500 2.000 900 150

da cidade, onde ainda se recupera. Em nota oficial, a direção estadual do MST informa ter recebido inúmeras ações de solidariedade ao processo de ocupação das praças de pedágio.

rá superior a R$ 60 milhões. Este é o valor que os produtores irão deixar nas praças de pedágio de todo Estado para escoar os 12,5 milhões de toneladas previstas para exportação nesta safra. Um caminhão que sai, por exemplo, de Maringá (Norte do Estado) com destino a Paranaguá paga de pedágio aproximadamente R$ 260. Com o aumento pretendido pelas concessionárias, este valor passaria para quase R$ 300. Em junho de 2003, o MST já havia ocupado 11 praças de pedágio do Estado. O protesto ocorreu no mesmo dia em que o Legislativo paranaense aprovou um projeto de “encampação” (desapropriação) das ações das concessionárias de rodovias. Na época, além da redução das tarifas de pedágio, o MST reivindicava a aprovação de uma lei estadual proibindo o cultivo e o comércio de produtos transgênicos, além de agilidade no processo de reforma agrária. Durante os protestos deste mês, um menino foi atropelado na praça de pedágio de Arapongas. Filho de uma família sem-terra, João Brás Filho, 8, foi operado num hospital

IRREGULARIDADES A decisão do TRF, que suspendeu o reajuste dos pedágios do Paraná, foi baseada no fato de o Departamento de Estradas e Rodagem (DER) do Paraná não ter concluído a avaliação dos cálculos elaborados pelas concessionárias de rodovias, apresentados em novembro do ano passado. Pelo contrato firmado em 1997 entre as empresas e o então governador Jaime Lerner (ex-PFL, hoje filiado ao PSB), o governo tem um prazo de apenas 5 dias para questionar os índices anuais de reajuste, propostos anualmente pelas próprias empresas. Para o atual governo, esse tempo é “exíguo”. Através de auditorias, o governo do Paraná está investigando as contas de cada uma das concessionárias de rodovias. O governo

Com base em tais auditorias, as concessionárias já estão sendo oficialmente intimadas pelo governo a responder a processos de inadimplência, o que pode gerar a decretação da caducidade (nulidade) dos contratos. Outra linha de ação adotada pelo governo é a desapropriação das concessionárias. As ações das empresas já foram decretadas de “utilidade pública” por meio de decreto assinado em janeiro pelo governador Roberto Requião (PMDB). Na seqüência, o governo deve tentar adquirir o controle acionário das empresas. Já ofereceu R$ 15 milhões pelo controle de duas delas. Caso as empresas não aceitem a desapropriação “amigável”, o caso será decidido pelo poder Judiciário. Das 6 concessionárias que exploram rodovias no Estado, apenas a Caminhos do Paraná, que fechou acordo com o governo e reduziu suas tarifas em 30%, não será submetida ao processo. “É bem claro para os paranaenses que o preço do pedágio é abusivo”, afirma Requião. “Implantado num governo com claras posições neoliberais, esse modelo favorece as concessionárias, em detrimento dos usuários.”

SANTA CATARINA

Festas mostram resultados da reforma agrária Dirceu Pelegrino Vieira de Campos Novos (PR) A Igreja do Romeiro, em Campos Novos, no meio-oeste catarinense, sediou um evento diferente: a 5ª festa da melancia e a 2ª festa do frango caipira, cuja produção demonstram a viabilidade econômica dos assentamentos rurais da região. Na oportunidade, foi inaugurada também a indústria de laticínios no assentamento 30 de Outubro. O município de Campos Novos tem aproximadamente 30 mil habitantes, dos quais 6,5 mil residentes no meio rural. Há 15 anos, organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), cerca de 90 famílias foram assentadas e, com o tempo, conseguiram superar o preconceito da comunidade local, que os via como baderneiros. Em 1988, depois de várias discussões, os assentados da região se organizaram e formaram a Cooperativa Regional do Contestado – Coopercontestado. Após estudo de viabilidade econômica, decidiram investir na produção de melancia, na criação de frango caipira e na produção de leite e derivados. As festas temáticas são uma maneira dos assentados se relacio-

Dirceu Pelegrino Vieira

O

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) voltou a ocupar, no início de fevereiro, uma série de praças de pedágio instaladas em diferentes regiões do Paraná. A mobilização foi deflagrada a partir da concessão, pela Justiça Federal de Curitiba, de uma liminar que permitiria a quatro concessionárias de rodovias aplicar um reajuste médio de 15,34% em suas tarifas. O aumento atingiria 17 praças de pedágio a partir do último dia 4. Ao longo de três dias, cerca de 1,2 mil trabalhadores sem-terra ocuparam, simultaneamente, 14 desses locais. A cobrança dos novos valores do pedágio foi impedida graças à ação do movimento. “Os pedágios funcionam em estradas públicas, que são um patrimônio do povo brasileiro repassado a grupos privados”, observa Roberto Baggio, um dos coordenadores nacionais do MST. “Parte das rodovias está nas mãos do capital internacional, precisamos retomá-las.” A manifestação recebeu amplo apoio dos motoristas. Durante a ocupação, as cancelas dos pedágios foram abertas e a passagem dos motoristas, liberada. O reajuste das tarifas seria suspenso pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 4.ª Região, localizado em Porto Alegre. Após a decisão, emitida dia

aponta a existência de uma série de irregularidades em todas as concessionárias de rodovias do Estado – algumas empresas teriam mais de 200 irregularidades, entre elas a emissão de notas fiscais de obras e serviços não realizados ou por empresas já desativadas, lançamentos contábeis irregulares, além da prática de superfaturamento. O governo afirma ainda que, entre os anos de 1998 e 2001, 5 das 6 empresas – Econorte, Viapar, Rodovia das Cataratas, Rodonorte e Ecovia – arrecadaram aproximadamente R$ 870 milhões. No mesmo período, essas concessionárias teriam investido apenas R$ 91,8 milhões em obras nas estradas – o equivalente a apenas 10,6% do faturamento com a cobrança do pedágio.

Andy Iore/ Gazeta do Povo/AE

Fernando César de Oliveira de Curitiba (PR)

Assentados comemoram produção de melancias e criação de frangos

narem com a sociedade, mostrando os frutos da luta pela terra e pela reforma agrária. Como disse João Paulo Strapasson, superintendente regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Santa Catarina: “A inauguração do laticínio é o resultado da luta pela terra. É a reforma agrária tomando sua concretude, que é a geração de renda e melhoria de vida das pessoas que vivem nos assentamentos”. Na região, são produzidas 350 toneladas de melancia. A indústria de lacticínios inaugurada tem capa-

cidade de transformar em queijo 20 mil litros de leite por dia. O abatedor de frango, em fase de construção, irá industrializar a produção de frango caipira, possibilitando a agregação de valor e o aumento da produção e comercialização. Segundo Dilso Barcellos, assentado que é membro da coordenação estadual do MST e da Direção da Cooperativa Central de Reforma Agrária de Santa Catarina, “a agroindústria não é a solução de problemas, ela é aumento de desafios, exige uma maior capacitação de todos nós”.


4

De 12 a 18 de fevereiro de 2004

NACIONAL TRABALHO

Uma dolorosa luta pela sobrevivência

Desemprego na América Latina Jan-Set 2002 (%)

Na América Latina, o desemprego aumenta, o poder aquisitivo cai e 100 milhões de pessoas trabalham em condições precárias Anamárcia Vainsencher da Redação

E

lementar: se a economia não cresce, o desemprego aumenta. Entretanto, o crescimento econômico não gera, automaticamente, novos postos de trabalho. Por isso, os governos devem adotar políticas públicas voltadas para a criação de empregos – uma questão chave para o crescimento sustentável da economia porque, afinal, não há desenvolvimento sem consumidores com renda suficiente para adquirir os bens e serviços produzidos. Essa lógica, porém, não tem prevalecido no Brasil, nem na América Latina, onde o quadro é desolador: 100 milhões de latino-americanos – a grande maioria jovens e mulheres – trabalham em condições precárias, de acordo com o Panorama

Laboral 2003, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), divulgado no início do ano. No continente, a taxa de desemprego passou de 7,2%, em 1980, para 10,7%, em 2003; o poder aquisitivo dos salários mínimos caiu 25% (em nove países a redução chegou a 50%); o número de trabalhadores informais aumentou de 32,7% para 46,5% do total de ocupados, enquanto o de empregados no setor formal diminuiu de 67,4% para 53,5% – sete de cada dez novos postos de trabalho criados foram no mercado informal; a cobertura da seguridade social se reduziu de 63,3%, em 1980, para 51,7% em 2003 – só quatro de cada dez novos postos de trabalho têm acesso à seguridade social e apenas dois em cada dez trabalhadores do setor informal têm proteção social.

Em resumo, desde 1990, na região, é sistemático o aumento do emprego em condições precárias, e do trabalho sem proteção social. Mulheres e jovens ainda são os grupos mais atingidos, mesmo onde o desemprego recuou, como no Peru. Um em cada três jovens está desempregado na América Latina. Segundo a OIT, as legislações trabalhistas vigentes facilitam as demissões em períodos de baixo crescimento econômico, barateando os custos trabalhistas sem aumentar a produtividade. Apesar do fim do ciclo recessivo desde 2002, a América Latina continuou registrando altos níveis de desemprego em 2003. Para 2004, com a projeção de crescimento médio de 3,5% do PIB dos países da região, a OIT estima que o desemprego terá recuo de um ponto percentual, passando dos 11% registrados no ano passado para 10%.

Jan-Set 2003 (%)

Venezuela

15,7

18,9

Uruguai

16,5

17,4

Colômbia

16,8

16,3

Argentina

21,5

15,6

Panamá

16,5

15,6

Brasil

12,0

12,4

Peru

9,7

9,4

Chile

9,3

8,9

Equador

6,3

6,7

Costa Rica

6,8

6,7

México

2,8

3,2

Total de desempregados

19 milhões

Fonte: Organização Internacional do Trabalho — Panorama Laboral 2003

O duplo desafio: criar e manter empregos Não será fácil o governo cumprir uma das promessas de campanha do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, qual seja a de geração de 10 milhões de empregos ao longo de seu mandato. Para isso, a economia precisaria ter um crescimento vigoroso no período para superar restrições como o aumento da produtividade (as empresas conseguem produzir cada vez mais com menos trabalhadores) e a modernização tecnológica (que acaba dispensando mão-de-obra, sobretudo não especializada). A partir de 1990, com a descontrolada abertura da economia brasileira, até 2001, a adoção de novas tecnologias resultou na eliminação de 10,8 milhões de empregos no Brasil. No mesmo período, as importações implicaram no fechamento de 1,5 milhão de postos de trabalho. Esses números foram levantados pelo Grupo de Indústria e Competitividade do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a pedido da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). Em números absolutos, o fim de 12,3 milhões de empregos (tecnologia + importações) foi contrabalançado pela criação de 15,56 milhões de vagas (mercado interno + exportações), com saldo positivo de 3,24 milhões de empregos (veja quadro).

TAREFA PESADA Entretanto, em onze anos, esse montante de postos de trabalho é insignificante, a considerar que, to-

dos os anos, chegam ao mercado de trabalho de 1,5 milhão a 1,8 milhão de pessoas. Ou seja, para não haver desemprego, seria necessário criar de 16,5 milhões a 19,8 milhões de empregos no período. O quadro levantado pelo grupo da UFRJ além de derrubar alguns mitos, mostra, mais uma vez, a perversidade do modelo econômico vigente no país. Entre os mitos, a falsa contraposição entre mercado interno e exportações: embora o comércio internacional seja importante, é a demanda doméstica, isto é, o mercado interno, o maior gerador de empregos: 12 milhões,

em relação aos 3,6 milhões da atividade exportadora.

NÃO HÁ VAGAS Outra balela é a capacidade de o agribusiness (agricultura voltada para o mercado internacional e baseada em latifúndios) criar uma quantidade significativa de novos postos de trabalho. Sobretudo em função de mudanças tecnológicas (leia-se mecanização acelerada), a agropecuária foi a que mais fechou vagas entre 1990 e 2001: quase 9 milhões de desempregados, ou mais de 83% de todos os postos de trabalho fechados em conseqüência de inovações tecnológicas.

Isso, aliás, mostra, mais uma vez, que a reforma agrária não é uma questão ultrapassada, e que são as pequenas e médias propriedades as únicas que criam emprego no campo. Quanto às áreas de atividades dependentes do desenvolvimento do mercado doméstico, apresentaram saldo positivo de empregos, mesmo com o avanço de mudanças tecnológicas. Aqui, a exceção foi a administração pública que, no período analisado, sabidamente enxugou a máquina governamental. Nada indica que a adoção de novas tecnologias vá arrefecer no país, nem que as empresas pensem

em reduzir ganhos de produtividade para empregar mais. Entre 1990 e 2001, a produtividade do trabalho cresceu, anualmente, em média, 5,12% na agropecuária; 2,52% na indústria; 1,21% na administração pública; 1,23% na construção civil, segundo o Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade. Nesse cenário, resta saber se o governo Luiz Inácio Lula da Silva vai olhar com mais atenção para o avanço da pobreza no Brasil, dando prioridade ao crescimento com distribuição de renda, ao invés de continuar privilegiando um modelo concentrador e excludente. (AV)

Geração e eliminação de postos de trabalho, 1990-2001 (*) Setores

Mercado interno

Exportações

Mudanças tecnológicas

Importações

Saldo

Agropecuário

4.713.438

1.425.104

(8.983.273)

(235.770)

(3.080.500)

65.840

47.199

(192.944)

(8.096)

(88.000)

2.765.043

748.470

(3.633.578)

(684.736)

(804.800)

Eletricidade, gás, água

103.906

13.725

(233.077)

(5.154)

(120.600)

Construção civil

617.664

6.870

(757.413)

(4.221)

(137.100)

(1.459.088)

885.831

3.383.645

(397.888)

2.412.500

1.174.030

(37.760)

(561.464)

21.094

595.900

467.046

297.447

916.742

(95.834)

1.585.400

2.661.719

152.083

200.330

(107.732)

2.906.400

859.789

50.186

(902.181)

(30.194)

(22.400)

11.969.389

3.589.156

(10.763.212)

(1.548.532)

3.246.800

Mineração Ind.manufatureira

Comércio Transportes e comunicações Serviços empresariais Serviços pessoais e sociais Administração pública Total

(*) Números entre parênteses significam saldo negativo

Fonte: Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

No governo, contradição entre o discurso e os fatos No Brasil, para tentar reverter o desemprego, o governo decidiu fixar metas setoriais de emprego para 2004, e dar prioridade para as áreas de saneamento e habitação, tidas como as que mais necessitam de investimento. Mas o ministro Antonio Palocci, da Fazenda, avisou, desde logo, que o objetivo não seria “criar números globais, mas realistas e críveis”. Para ele, “o Brasil decidiu, de forma definitiva, ser um país arrumado. A arrumação de contas e o equilíbrio das contas públicas são o objetivo do país. Não há lugar para procedimentos diferentes, para aventuras, para projetos mirabolantes”. O ministro considera que o país tem todas as condições de entrar

numa fase de crescimento econômico prolongado, mas, para isso, o equilíbrio das contas públicas é vital. Traduzindo, crescimento e geração de emprego continuam subordinados aos instrumentos de ajuste fiscal, controle da inflação e equilíbrio das contas. Contraditoriamente, porém, foi em nome de um suposto controle da inflação, que o Banco Central decidiu, em janeiro, interromper o corte da taxa básica de juros (Selic), deixando-a em 16,5%, sob os protestos dos setores produtivos.

PALAVRAS X ATOS Pode-se, ainda, ver a distância entre o discurso e os fatos quando o ministro da Fazenda destaca a

importância dos setores de saneamento e habitação para a criação de emprego. Nenhum dos dois, porém, escapou do enorme aumento (de 3% para 7,6%) da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), em vigor a partir deste mês. Levantamento da GV-Consult para o Sindicato da Indústria da Construção Civil de São Paulo (SindusCon) mostra que o aumento resultante do fim da cumulatividade da contribuição significará um aumento médio de 22,3% da Cofins arrecadada no setor. Pior: o aumento é maior nos segmentos mais intensivos em mão-de-obra, como o de obras de acabamento e serviços auxiliares de construção. No de

alvenaria e reboco, por exemplo, o aumento chega a 84%. Além disso, os Estados do Norte e Nordeste devem sofrer um impacto maior que o da média nacional. E, de maneira geral, o segmento de empresas pequenas e médias – que empregam entre 40 e 100, e entre 100 e 249 empregados – terão aumento superior à média do setor. “Por fim, os dados permitem concluir que há uma clara penalização dos segmentos formais do setor que são intensivos em mãode-obra”, avalia a GV-Consult.

TRISTE RECORDE As festas de final de ano aliviaram, momentaneamente, o grave panorama do desemprego na re-

gião metropolitana de São Paulo (RMSP), mas não impediram que a taxa de desemprego atingisse o escandaloso patamar de 19,9%, o mais elevado desde 1985, quando Fundação Seade e o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) iniciaram a pesquisa. Em 2003, eram 1,94 milhão os desempregados na RMSP. No ano passado, o rendimento médio dos ocupados diminuiu 6,4%, declinando pelo sexto ano consecutivo. Os mais prejudicados foram os autônomos (-13,3%) e empregados domésticos (-9,8%), ambos excluídos da proteção dos direitos trabalhistas. De 1998 a 2003, a renda dos ocupados despencou 30%. (AV)


5

De 12 a 18 de fevereiro de 2004

NACIONAL FARRAS DA PRIVATIZAÇÃO

Remessas de lucros triplicam em dez anos Privatizações ajudam a criar rombos permanentes nas contas externas, provocando a saída de bilhões de dólares Lauro Jardim de São Paulo (SP)

N

a última década, o Brasil entrou em um processo vertiginoso de liquidação do patrimônio público, privatizando quase uma centena de empresas estatais, em muitos casos, compradas por grupos transnacionais em condições ultrafavorecidas – seja com o uso de moedas podres, que garantiam descontos fantásticos aos compradores, e financiamentos com recursos públicos a custos reduzidos, seja pela doação disfarçada de máquinas e equipamentos existentes no almoxarifado daquelas empresas à época da venda. Ao mesmo tempo, os governos da época patrocinaram políticas suicidas de abertura do mercado nacional a todo o tipo de transnacionais e investidores. A combinação dessas políticas, possíveis em função de uma campanha maciça de desmoralização do setor público, trouxe distorções que agora dificultam a retomada de políticas de crescimento.

ROMBOS PERMANENTES Dificultam, entre outros motivos, porque a venda de estatais a empresas estrangeiras, e o avanço das transnacionais na economia, de uma forma geral, ajudaram a criar rombos permanentes nas contas externas do país. Os dólares que eventualmente tenham entrado para a compra de empresas públicas e privadas, entre 1994 e 2003, retornam aos borbotões aos seus donos no exterior – as matrizes das transnacionais instaladas aqui dentro. Nos dez anos anteriores, entre 1984 e 1993, as filiais de empresas estrangeiras em operação no Brasil enviavam a suas matrizes ao redor de 1,3 bilhão de dólares por ano, em média, a título de lucros e dividendos – uma conta que o país poderia pagar sem maiores esforços. (Veja gráficos) A farra das privatizações, e a invasão do mercado brasileiro pelas transnacionais, que se seguiram àquele período, transformaram radicalmente o cenário. As remessas de lucros, nos 10 anos seguintes, mais do que triplicaram, saltando para uma média anual de praticamente 4,3 bilhões de dólares.

teriores, quando atingiram 306,8 bilhões de dólares, o crescimento foi de 75%, uma taxa muito mais modesta do que a disparada das remessas de lucros. Dito de outra forma, isso significa que o país fez um grande esforço para exportar mais, com todos os custos sociais envolvidos (estagnação da economia interna, achatamento dos salários e da renda dos brasileiros, desemprego e precarização do mercado de trabalho, maior concentração da renda), mas uma fatia cada vez maior desse esforço tem sido desviada para engordar os lucros das matrizes das transnacionais.

O PARAÍSO É AQUI Como qualquer empresa, as transnacionais vendem produtos e serviços, cobrando um preço por isso. Nesse preço vai embutida a

A sangria de dólares (Valores em milhões de dólares)

Período

Lucros e dividendos*

Exportações

Transações correntes**

Antes da privatização (1984/1993)

12.696

306.771

-1.426

Depois da privatização (1994/2003)

42.568

536.698

-184.007

Variação

+75,0%

+253,3%

+12.500%

(*) Lucros e dividendos transferidos por transnacionais a suas matrizes, fora do Brasil, elevam o rombo nas contas externas (**) Resume todas as operações do país com o exterior. Números negativos significam que saíram do Brasil mais dólares do que entraram, causando aumento da dívida externa e agravando a dependência da economia a recursos de fora Fonte: Banco Central do Brasil (Bacen)

margem de lucro esperada, gerando ganhos para a empresa. Quando se trata de uma empresa nacional, a destinação final dos lucros pode ser

definida também com base em políticas de governo, que estimulem o reinvestimento de parte dos lucros no próprio negócio, contribuindo

para a expansão da empresa e para o crescimento da economia como um todo, via geração de empregos e renda. Grupos transnacionais, no entanto, atendem a decisões e a políticas traçadas por suas matrizes e/ou governos. No caso das empresas de telefonia e energia elétrica, há casos em que os recursos distribuídos aos acionistas – ou seja, aos donos das empresas – chegam a superar o lucro real. Por quê? Porque, além do lucro em si, o governo permite que as empresas paguem juros a seus sócios, devolvendo a eles uma parte do capital investido nas empresas. Detalhe: o pagamento de juros é considerado como despesa da companhia e, por isso, é descontado no momento de calcular o Imposto de Renda, reduzindo a carga fiscal efetiva.

Remessas de lucros e dividendos disparam*...

8000 7000

6.732

6000

5.640

5000 4000 3000

2.483

2.383

2000 796

1000 0

1984

1985

1986

1987

1988

1989

1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

1999

2000

2001

2002

2003

(*) Lucros e dividendos transferidos por transnacionais a suas matrizes, fora do Brasil Fonte: Banco Central do Brasil

10000

...e ajudam a engordar o rombo nas contas externas*

5000 0

95 1984

1985

1986

1987

1988

1989

1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

-5000

PERDAS EM CASCATA Em grandes números, os lucros remetidos pelas filiais a suas matrizes, entre 1984 e 1993, totalizaram 12,7 bilhões de dólares. Entre 1994 e 2003, no entanto, as remessas aumentaram 253%, acumulando um total de 42,6 bilhões de dólares. Seria como se o país tivesse enviado para o exterior mais de 8% de todas as riquezas que consegue produzir em um ano, medidas pelo Produto Interno Bruto (PIB). Considerando os dados acumulados nos últimos 10 anos, até 2003, o Brasil exportou um total de 536,7 bilhões de dólares – quase um PIB inteiro. Mas, comparadas essas exportações às dos 10 anos an-

-10000 -15000 -3.784

-20000

-18.384

-5.323 -23.215

-23.502

-25000 -30000

-33.416

-35000

(*) Números negativos significam que saíram do país mais dólares do que entraram, causando aumento da dívida externa e da dependência da economia a recursos de fora Fonte: Banco Central do Brasil

Dinheiro do BNDES turbina lucro das transnacionais Para complicar, uma parte dos lucros das empresas privatizadas tem sido obtida com a ajuda de instituições oficiais como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Numa primeira etapa, o banco emprestou dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que deveria financiar programas de geração de emprego e o seguro-desemprego, para que grupos nacionais e estrangeiros compras-

sem empresas estatais. Depois disso, o banco continuou emprestando o dinheiro dos trabalhadores para que as empresas privatizadas continuassem ampliando seus negócios e seus lucros. No total, entre 1994 e setembro de 2003, os empréstimos somaram 15,4 bilhões de dólares, representando quase 17% dos 91,3 bilhões de dólares que o governo arrecadou com a venda de estatais. Apenas a título

de comparação, as remessas de lucros naquele período corresponderam a 47% do valor obtido com a privatização.

BURACO NAS CONTAS Somados, os valores das remessas e dos empréstimos do BNDES corresponderam a 63,5% da receita das privatizações. É bom lembrar que as remessas de lucros não foram realizadas apenas pelas empresas privatizadas, mas pode-se

supor que tiveram uma participação relevante naquele total. Não é por coincidência que o buraco nas contas externas do Brasil cresceu estrondosamente desde 1994. A explosão de importações ocorrida no período teve um papel decisivo no alargamento do rombo externo, com a ajuda das remessas de lucros. A conta de transações correntes, que reflete toda a entrada e a saída de dólares do país, incluindo

o resultado de exportações e importações de bens e mercadorias, a compra e venda de serviços no exterior, gastos de turistas, despesas com fretes e outras, acumulou um déficit (saídas menores do que as entradas de dólares) de apenas 1,46 bilhão de dólares entre 1984 e 1993. Nos 10 anos seguintes, o buraco cresceu 126 vezes (isso mesmo, algo como 12.500%), pulando para 184 bilhões de dólares. (LJ)


6

De 12 a 18 de fevereiro de 2004

NACIONAL SEGURANÇA ALIMENTAR

Uma lei Frankenstein para os transgênicos A

primeira batalha da polêmica votação do projeto de lei (PL) de Biossegurança, no Congresso, teve como resultado a surpresa. De um lado, estava a bancada ruralista, confiante nas pressões prótransgênicos. De outro, ambientalistas e movimentos sociais, temerosos pela manutenção do substitutivo do então relator do projeto, deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP). “Evitamos o pior, que seria deixar os ministérios da Saúde e Meio Ambiente de fora do processo de decisão sobre a liberação comercial dos transgênicos”, avalia Jean Marc Von deir Weid, da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (ASPTA). Apesar disso, para ele, o projeto nada mais é do que um “frankenstein”, repleto de contradições e omissões. Não é para menos. Essa é a segunda alteração que o texto do PL sofreu após ter sido redesenhado inúmeras vezes pelo governo, antes de seguir para a Câmara Federal. Ao longo do processo, a polêmica cercava a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que na visão dos ruralistas deveria determinar quem pode e quem não pode pesquisar, cultivar e comercializar transgênicos.

MENOS PODER Porém, os superpoderes atribuídos à CTNBio por Aldo Rebelo (ministro de Articulação Política) foram minimizados pelo atual relator do projeto, Renildo Calheiros. A Comissão terá plenos poderes para deliberar sobre pesquisas com organismos geneticamente modificados (OGM), mas fica sob responsabilidade dos ministérios da Saúde e do Meio Ambiente a decisão de exigir licenciamento ambiental e indicar a segurança em uma suposta liberação de produção e comercialização de transgênicos. “A burocracia do Ibama venceu o Brasil”, protestou Darcísio Perondi (PMDB-RS). Ambos estão sujeitos a intervenção do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), integrado por 15 ministros, que baterão o martelo final em casos de produção e comercialização de OGMs. Isso significa que se a Agência Nacional de Vigilância Sanitária

(Anvisa) avaliar que determinado produto não é seguro, o CNBS pode intervir e inverter a decisão. “Isso é uma aberração. A decisão política não pode passar por cima de uma análise técnica”, critica Von der Weid, para quem uma intervenção, que poderia colocar em risco a saúde da população, significaria um desgaste ainda maior para o governo.

A inédita expansão na Argentina da soja transgênica, convertida na principal exportação do país, originou um forte debate entre os que detêm a patente da semente e agricultores que reivindicam a plantação de grão de suas colheitas, sem pagamento adicional. O governo tenta mediar em busca de um acordo que contemple os interesses de todos, enquanto o comércio ilegal de sementes cresce e transnacionais da biotecnologia, como a Monsanto, começam a migrar em busca de negócios mais rentáveis com híbridos como milho e girassol, que não podem ser novamente semeados. A área semeada com soja na Argentina aumentou mais de 100% nos últimos cinco anos, depois da introdução da variedade de semente obtida em laboratório, resistente ao herbicida glifosato. Cálculos da Secretaria da Agricultura indicam que cerca de 20% da superfície dedicada à soja foi semeada com sementes certificadas, 30% com sementes de uso próprio e os demais 50% com sementes compradas irregularmente, sem pagamento de patente. Fernanda González, da Asso-

“DETONAM MEU COMUNISTA”

MAIS SOJA TRANSGÊNICA A inclusão dos ministérios do Meio Ambiente e da Saúde no processo de avaliação dos OGMs foi conquistada pela ministra Marina Silva, após horas de negociações na madrugada do dia 4 com o presidente da Câmara, João Paulo Cunha, e com Renan Calheiros. Mas a concessão não saiu de graça: a dívida que os brasileiros terão de arcar é a liberação do plantio da soja transgênica também para a safra 2004/2005. Para Mariana Paoli, do Greenpeace, o arcabouço para esse tipo de concessão teve início em março de 2003, quando foi liberada a comercialização da soja. “Com isso, os ruralistas ganham força e vão desrespeitar a lei duas, três, quantas vezes forem preciso”, critica Ma-

Movimentos sociais protestam na Câmara contra Lei de Biossegurança

riana, para quem é de fundamental importância o poder atribuído dos ministérios. Após 2005, se quiser continuar a comercializar suas sementes no país, a transnacional Monsanto terá que cumprir as regras e apresentar o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) ao Meio Ambiente. Por ter sido liberada pela CTNBio sem a realização do EIA é que a soja Roundup Ready, da Monsanto, até então tinha seu cultivo proibido no país. Para o deputado Frei Sérgio Görgen (PT-RS), isso deve desmascarar a transnacional e seus aliados no Congresso. “Eles sabem que vai

ter impacto ambiental, assim como nos outros países, por isso estão incomodados. Vão tropeçar nas próprias pernas”, afirma. Outro ponto polêmico do PL é a suspensão da Lei de Agrotóxicos – que proíbe o uso do herbicida glifosato (Roundup) no pós-emergência – durante as pesquisas. O geneticista Rubem Nodari, do Ministério do Meio Ambiente, diz que a suspensão da lei não compromete o meio ambiente. “A região de testes é pequena, não significa um risco”. Porém, se a semente transgênica passar neste primeiro teste e passar a ser cultivada, necessariamente vai

O projeto defendido pelo governo até o ano passado e essencialmente modificado por Aldo Rebelo, que saiu em defesa dos interesses dos ruralistas, foi além do desgaste com os ambientalistas e com o Núcleo Agrário do PT. As mudanças de rumo dos chamados representantes da esquerda foi verbalizada , sem constrangimento, durante a votação na Câmara. “A primeira vez que eu gosto de um comunista, eles pegam e detonam o meu comunista”, resmungou Abelardo Lupion (PFL-PR), referindo-se ao parecer anterior de Rebelo, que foi motivo de festa entre os ruralistas. Rebelo e Roberto Rodrigues (Agricultura) tiveram de defender o projeto do governo, contrariando os interesses de seus aliados. A segunda etapa da batalha, que deve ocorrer em março, será no Senado. Se o texto não for modificado, segue para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tem poder de alterar o texto e encerrará definitivamente o assunto.

Fracassa pesquisa com batata-doce na África Rafael Evangelista de São Paulo (SP) Caiu por terra uma das principais peças de propaganda da transnacional Monsanto em favor dos transgênicos. Relatos de pesquisadores afirmam o fracasso do projeto de adaptação de um gene de resistência a doenças virais em batatas-doces cultivadas no Quênia. O projeto era patrocinado pela Monsanto, em cooperação com o Banco Mundial, a agência estadunidense para o desenvolvimento internacional (Usaid, na sigla em inglês) e o governo queniano. Inicialmente, o programa buscava adaptar esse gene à batata-doce cultivada no Quênia. Interessada em mostrar que os transgênicos seriam parte importante da luta contra a fome, a empresa modificou a planta e permitiu que fosse cultivada sem pagamento de royalties. Novidade: o esforço de marketing incluiu pro-

Vizinho planta soja e colhe tempestade Marcela Valente de Buenos Aires (Argentina)

ter de utilizar o herbicida, o que pode indicar mais uma ilegalidade com precedente aberto.

ciação Argentina de Proteção das Obtenções de Vegetais (Arpov), que reúne donos de sementes proprietários de patentes, garantiu que o problema não está no direito reconhecido dos produtores de reservarem semente para a próxima safra, mas no comércio ilegal que se faz com o excedente de grãos. A associação dos produtores de sementes começou a exigir em cada operação de venda a assinatura de um contrato de “regalias estendidas”, que obriga o agricultor a pagar um adicional pelo valor de sementes que se guarda para a próxima safra, e a informar sobre o destino dado ao restante. Através de uma empresa de consultoria contratada para esse fim, os produtores de sementes pressionam os agricultores no campo com longos interrogatórios e enviam cartas intimidatórias para exigir explicações sobre o uso das sementes obtidas na colheita. Os agricultores rechaçam o contrato e as inspeções no campo, que consideram à margem da legalidade. Afirmam que essas práticas implicam em atropelar seu histórico direito de reservar sementes para a semeadura e tentam estabelecer uma nova doutrina no negócio de grãos. (IPS)

moção da imagem de uma cientista africana que se dispôs a emitir declarações sobre as “maravilhas” do produto da transnacional. Mas os pesquisadores do Instituto Queniano de Pesquisas em Agricultura, o Kari, não conseguiram desenvolver uma linhagem de batata-doce que fosse resistente aos vírus que atacam as plantações.

NATUREZA REAGE O fracasso é considerado mais uma evidência de que tecnologias desenvolvidas em certas regiões não podem ser simplesmente transplantadas para outras. As linhagens de teste plantadas foram suscetíveis aos mesmos vírus que atacam as plantações tradicionais. Uma pes-

quisa independente, concluída em meados de 2003 por Aaron deGrassi, da Universidade de Sussex, já apontava para o mesmo resultado. A doação para o Quênia do gene da batata-doce resistente a vírus foi parte de uma campanha bastante agressiva da Monsanto. Desde o início a empresa procurou envolver a pesquisadora queniana Florence Wambugu no projeto. De acordo com a organização não governamental (ONG) GMWatch, o projeto foi, originalmente, criado por dois empregados da Monsanto e um funcionário da Usaid. Os três recrutaram a queniana para o projeto, usando dinheiro da Usaid para financiar seu pós-doutoramento. Ao fazer declarações como “a

biotecnologia pode tirar a África de décadas de desespero social e econômico”, Florence tornou-se a queridinha das empresas. Um dos problemas da pesquisa realizada pelos quenianos, de acordo com deGrassi, seria o foco excessivo em uma doença viral como causadora da menor produtividade. “Ele é apenas um pequeno fator, dentre outros”, diz. A ânsia em promover os trangênicos como solução para a fome pode ter significado um grande desperdício de tempo e dinheiro – Monsanto, Usaid e o Banco Mundial investiram, no mínimo, 6 milhões de dólares. No mundo da biotecnologia, marketing e ciência parecem nunca andar separados. (Portal Porto Alegre)

A campanha publicitária “Se você já pensou num mundo melhor, você já pensou em transgênico”, da transnacional Monsanto, é enganosa. A sentença foi anunciada dia 5 pelo Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar). O Conar sugere que a Monsanto pare de mentir e interrompa os anúncios. “Ela passa a mensagem, por exemplo, de que serão usados menos agrotóxicos com os transgênicos, sendo que, no caso da soja, o que acontece é justamente o contrário”, explica Marilena Lazzarini, coordenadora institucional do Instituto de Defesa do Consumidor. Sem poder de veto, reservado à Justiça, o Conar tem tradição de ter suas recomendações respeitadas. (Instituto Socioambiental) Divulgação

Claudia Jardim da Redação

Agência Brasil

Depois de mais alterações, polêmica sessão na Câmara consegue desagradar movimentos sociais e ruralistas


7

De 12 a 18 de fevereiro de 2004

NACIONAL POLÍTICA

Vem aí um novo partido de esquerda A

expulsão, por “rebeldia”, de quatro parlamentares do Partido dos Trabalhadores (PT), em dezembro, foi o estopim para a criação de um novo partido no Brasil. A senadora Heloísa Helena (AL) e os deputados federais João Batista de Araújo (PA), João Fontes (SP) e Luciana Genro (RS), junto a outras forças de esquerda distantes do governo federal, estão elaborando uma alternativa socialista ao projeto petista. Atualmente, o grupo ainda é heterogênio e incerto, mas o lançamento já tem data marcada. Em calendário tirado na primeira reunião do grupo, no Rio de Janeiro (RJ), dia 19 de janeiro, ficou previsto para 6 de junho – tendo em vista a possibilidade de concorrer nas eleições de 2006. Com a futura agremiação, o espectro da esquerda fica ainda mais dividido. No governo, o comando é do PT, que conta com o apoio dos partidos Comunista do Brasil (PCdoB), Socialista Brasileiro (PSB) e Popular Socialista (PPS). Numa ala mais radical estão os par-

de São Paulo e da Coordenação dos Movimentos Sociais. A seu ver, “esfriaram os ânimos de todos” o desmanche do socialismo no Leste europeu; as sucessivas derrotas do PT nas eleições de 1989, 1994 e 1998; a crise dos sindicatos; o avanço do conservadorismo na Igreja Católica; a intensificação da propaganda consumista.

INDEFINIÇÕES

Heloisa Helena e os deputados Babá e Luciana Genro: no novo partido político

tidos da Causa Operária (PCO) e Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU) – as baixas são tidas como certas no PSTU, envolvido nas discussões do novo partido, ao lado de petistas frustrados com a administração federal.

SEM SURPRESAS A divisão da esquerda é resultado de um processo que começou com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2002. Se por um lado, a posse do presi-

dente metalúrgico reacendeu uma esperança perdida no período de arrocho econômico da era Fernando Henrique Cardoso, por outro, gerou um forte fator desagregador dentro da esquerda, causado pelas sucessivas guinadas do governo para a direita. “A isso, some-se a desmobilização social dos últimos 20 anos, por razões políticas, sindicais e religiosas”, avalia o metalúrgico aposentado Waldemar Rossi, membro da Pastoral Operária da Arquidiocese

MÍDIA

Na entrevista de estréia do programa TV CUT, da Central Única dos Trabalhadores (CUT), o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva disse que “este é um sonho antigo que se realiza pela metade”. Na transmissão, dia 7, Lula ressaltou a importância de democratizar os meios de comunicação no país, com a liberação de concessões para as comunidades e para os sindicatos. “É preciso apenas saber se os sindicatos estão preparados e com recursos para fazer funcionar uma emissora”, disse. Luiz Marinho, presidente da CUT, disse no lançamento do TV CUT que o programa seria um laboratório para que a central um dia tenha sua própria emissora. “Daqui 10 anos, a CUT sonha em ter o seu canal de televisão”.

Rafael Neddermeyer/AE

CUT lança programa de televisão da Redação

Ainda há muito por definir na futura agremiação política, por exemplo, o nome. Na primeira reunião, além do calendário de encontros, foram traçadas algumas linhas gerais, como a necessidade de mobilização dos trabalhadores e fortalecimento dos movimentos sociais. “Não há como mudar de fato se as transformações não forem feitas pelas mãos do povo; e a única forma disso acontecer é se ele se organizar”, explica Luciana Genro. Para José Maria de Almeida, presidente nacional do PSTU, a entidade será importante para acumular forças na construção de um país socialista. “Queremos construir um partido para fazer a revolução no Brasil. Para isso, uma sociedade organi-

zada é essencial”, argumenta. A entidade não terá seu foco fundamental nas eleições. Outros temas ainda serão discutidos, dentre eles a democracia interna (já motivo de polêmica entre o PSTU e os parlamentares), o debate de alianças com outros partidos e a construção de um movimento amplo. “Nenhum setor pode ser vetado”, explica Zé Maria. No curto prazo, o novo partido representará a consolidação de uma oposição de esquerda no Congresso. “Vamos denunciar as posturas que o governo está tomando, como a liberação dos transgênicos e o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Também vamos ser porta-vozes dos movimentos sociais dentro da Casa”, anuncia Luciana. Até agora, além do PSTU e dos parlamentares expulsos do PT, anunciaram adesão ao partido, entre outros, o ex-deputado federal Milton Temer, Roberto Robaina (Movimento Esquerda Socialista), os professores Carlos Nelson Coutinho e Roberto Leher, o jornalista Cid Benjamin, o escritor Leandro Konder e Agnaldo Fernandes (Socialismo e Liberdade).

Ana Carolina/ Folha Imagem

Luís Brasilino da Redação

Victor Soares/ABr

Ainda sem nome, a futura agremiação política reunirá quadros do PSTU e ex-petistas – entre expulsos e insatisfeitos

Lançamento da TV CUT, dia 3, em Brasília, reuniu diversas lideranças políticas

Com o nome “TV CUT – um novo olhar sobre o Brasil”, o programa vai ao ar todos os sábados, às 14h15, na Rede TV, com duração de 40 minutos. Produzido pela Radar TV, o programa custa R$ 300 mil por mês e pretende

mesclar informação e entretenimento. O investimento para os três primeiros meses será bancado pela CUT, em parceria com a agência de publicidade Fischer América, enquanto buscam patrocínio nos setores público e privado.

PM agride comunicadores em Niterói Rodrigo Brandão do Rio de Janeiro (RJ) A Praça Leoni Ramos, no centro histórico de São Domingos, em Niterói (RJ), foi palco, dia 6, de manifestação contra agressões e prisões arbitrárias de policiais militares a quatro militantes do projeto “Radiola na Praça”, promovido semanalmente no local. Conjunto de atividades culturais que envolve música, poesia, jornalismo e discussão política, a Radiola é coordenado pela organização não-governamental Recôncavo da

Guanabara. Tem apoio da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), de sindicatos locais como o Sindicato de Trabalhadores da Universidade Federal Fluminense (Sintuff), da TV Comunitária de Niterói, da rádio local Pop Goiaba e de vendedores ambulantes. A venda de camisetas e de jornais populares, entre eles Brasil de Fato, além de eventual apoio de autoridades locais também ajudam a financiar o Radiola. No dia 30, policiais militares do Batalhão de Policiamento de Vias Especiais (BPVE) decidiram

interromper as atividades do grupo por volta das 23h, alegando “desrespeito à lei do silêncio”. Diante da resistência, atacaram o grupo, desligaram os equipamentos de transmissão e quebraram câmeras que faziam imagens para a TV Comunitária. Quatro integrantes foram presos e libertados horas depois. Uma semana depois, na data programada para o protesto, entraram com uma representação no Ministério Público Estadual contra a PM. Anexaram ao documento um abaixo-assinado com mais de mil assinaturas em apoio à Radiola.

Indicativa expediu nova portaria tornando sem efeito a anterior, alegando solicitação da Advocacia Geral da União. Mozart Rodrigues, diretor da Divisão, foi exonerado.

auferir lucro sem a menor responsabilidade social.

Espelho da mídia > Pressão violenta (1)

No dia 3 de fevereiro, o Ministério da Justiça, através de sua Divisão de Classificação Indicativa, expediu portaria considerando os telejornais “sanguinários” “Brasil Urgente”, da TV Bandeirantes, e “Cidade Alerta”, da TV Record, como programas inadequados para exibição antes das 21h, dado seu conteúdo violento e sensacionalista. Tal medida havia sido solicitada, há seis meses, pela Campanha Contra a Baixaria na Mídia, promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Apenas dois dias depois, a mesma Divisão de Classificação

> Pressão violenta (2)

A ONG TVer protestou contra o recuo do governo lembrando a lesão que tais programas televisivos – que chegam a transmitir tentativas de suicídio em plena tarde – causam à saúde mental de crianças e adolescentes. Para a ONG, este recuo governamental representa “um continuísmo da impunidade do setor”, que usa a concessão pública para

> Futebol para todos

Com o surgimento da TV paga no Brasil, apenas 30% das partidas do Campeonato Brasileiro foram transmitidas gratuitamente, contra 50% das pagas. Preocupado com esse apartheid cultural-esportivo, o deputado Edson Duarte (PV-BA), apresentou projeto de lei liberando a transmissão dos espetáculos desportivos para as emissoras públicas abertas, sem custos relacionados à comercialização dos direitos de imagem.

Depois da “operação de rotina” da Polícia Militar na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, que deixou uma vítima e seis feridos, dia 9, os moradores não tiveram medo: saíram às ruas para pedir paz. No dia seguinte, cerca de 100 moradores se reuniram para protestar contra a violência polícial. Mascarados e com roupas manchadas de vermelho, atores representavam o sangue do dia-a-dia.

Movimentos Sociais esperam resposta da CNBB da Redação Dia 6, representantes da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da União Nacional dos Estudantes (UNE) foram a Brasília convidar a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para integrar a Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS). O secretário nacional de comunicação da CUT, Antonio Carlos Spis; o secretário de relações internacionais da UNE, Paulo Vinícius e o coordenador do MST, Luis Antonio Pasquetti, o Tonico, conversaram com o padre Luis Pedro Vagner e a irmã Delci Franzan, responsável pelas pastorais sociais da CNBB. Segundo irmã Delci Franzan,

uma das responsáveis pelas pastorais sociais da CNBB, a resposta oficial da entidade ao convite só será dada depois do dia 19, quando acontece a reunião da comissão dos bispos com a presidência da conferência. Ela lembra, porém, que duas entidades ligadas à CNBB - a Pastoral Operária e o Grito dos Excluídos - já integram a coordenação. Outras, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que ainda não fazem parte da CMS. Enquanto espera a resposta da CNBB, a Coordenação dos Movimentos Sociais realiza, dias 11 e 12, sua plenária nacional na cidade de São Paulo, na qual define o plano da campanha nacional pelo direito ao trabalho.


8

De 12 a 18 de fevereiro de 2004

NACIONAL MULHERES

Trabalho demais, salário de menos Mulheres continuam ganhando 35% a menos do que os homens e são vítimas de discriminação

E

m 30 anos, a participação das brasileiras no mercado de trabalho cresceu cerca de 20%. Mas, apesar de índices aparentemente animadores, a realidade é dramática: elas ocupam os piores empregos e ganham, em média, 35% a menos do que os homens, conforme pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2001. Em 1973, as mulheres representavam cerca de 30% da população economicamente ativa brasileira. Em 2001, compunham 50% do total dos trabalhadores. Desse total, 50% desempenham trabalhos domésticos. Além de liderarem nos índices de más condições de trabalho e na economia informal, as mulheres ainda ganham 35% a menos que os homens. “A pesquisa do IBGE mostra que toda diferença salarial é conseqüência da discriminação. A mulher está mais escolarizada, trabalha o mesmo número de horas, mas ganha menos”, afirma Katy Maia, economista e consultora do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social. O IBGE revela que 71% das trabalhadoras recebem até dois salários mínimos mensais, contra 55, 1% dos homens. Na faixa salarial superior a cinco mínimos mensais, a proporção é de 15,5% para os homens e 9,2% para as mulheres.

Independentemente dos anos de estudo, as trabalhadoras negras sempre ganham menos. Mulheres com até três anos de escolaridade ganham 61% do rendimento médio da população masculina com o mesmo grau de instrução, ao mesmo tempo que aquelas com 11 anos e mais de estudo ganham 51,1% do que recebem os homens com a mesma escolaridade.

NA MESA SINDICAL Penalizadas no mercado de trabalho, as mulheres estão distantes dos sindicatos. Apesar do alto índice de participação sindical de categorias antigas como costureiras e empregadas domésticas, a grande parte afasta-se do movimento político-rei-

vindicatório. “Elas acham que, se os maridos já são sindicalizados, elas não precisam ser”, acredita Ivania Alves Moura, da Comissão Estadual da Mulher da Central Única dos Trabalhadores (CUT-SP). “Se elas não se organizam, não conhecem seus direitos, e não conseguem melhores salários e melhores condições de trabalho”, completa. No âmbito sindical, há diferenças regionais marcantes. Na Federação dos Empregados em Estabelecimentos Bancários dos Estados de Minas Gerais, Goiás, Tocantis e Distrito Federal, a ala feminina corresponde a 30% da diretoria sindical. “Aqui é a mulherada quem briga e manda. Toda reunião tem de ter uma mulher na mesa. Eles

Elas reclamam de preconceito e falta de oportunidades

fazem questão e nossas idéias são acatadas”, afirma a bancária Avana de Castro. Chefe de família, mãe de dois filhos, Avana ganha R$ 2 mil por mês e garante: “Aqui, homem e mulher trabalham o mesmo tempo e têm o mesmo piso salarial”.

LUTA PELA AUTONOMIA Erra quem considera que apenas a pobreza e a crescente queda de rendimento das famílias levaram as mulheres ao mercado de trabalho. Atualmente, 25% das famílias são chefiadas por mulheres. Nas famílias pobres, elas chefiam quase 50% das famílias.A professora Bila explica a importância de uma nova cultura, aliada ao aumento do nível de escolaridade

e à queda da taxa de fecundidade. “As mulheres buscam autonomia e individualização. Elas estão se percebendo como pessoas com direitos nas esferas públicas, no mercado e na política”, diz. Uma pesquisa realizada, em 2001, pela Fundação Perseu Abramo, constatou que 39% das mulheres entrevistadas associam a condição feminina à possibilidade de inserção no mercado de trabalho e à conquista da independência econômica. Das pesquisadas, 33% acreditam que ser mulher hoje é ter liberdade e independência social para tomar decisões próprias, e 8% crêem que é ter direitos políticos conquistados e igualdade frente aos homens.

Fotos: Renato Stockler

Letícia Baeta da Redação

Tatiana Merlino da Redação

DUPLA JORNADA A dupla jornada de trabalho também penaliza as trabalhadoras, submetidas a carga horária desgastante no emprego ou no mercado informal e ainda ao trabalho doméstico. “A mulher, mais do que o homem, se submete a qualquer serviço para sustentar os filhos, principalmente quando tem filho para criar”, constata Bila Sorj, professora de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O trabalho doméstico abriga 50% da mão-de-obra feminina do país, com salário médio de R$ 240. “A maioria das mulheres não gosta da profissão de doméstica. Trabalham porque não acharam empregos melhores e não tiveram oportunidade de estudo”, afirma Creuza Maria de Oliveira, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas. Segundo a Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílio (Pnad), realizada pelo IBGE, 73,9% dos empregados em serviço doméstico não tinham carteira assinada em 2001. Em 2002, esse número subiu para 74,2%. A Campanha de Valorização do Salário Mínimo, da Marcha Mundial das Mulheres, tem uma pauta de reivindicações em defesa do salário e emprego das mulheres. Propõe, entre Marcha Mundial outros pontos, das Mulheres - Moconstrução de vimento internacional, iniciado em 8 creches, crescide março de 2000, mento da ecocomposto por várias nomia voltado ações concretas de luta contra a pobreza para o mercado e a violência sofridas interno e polítipelas mulheres. cas públicas nas áreas da saúde e educação. “Investindo nessas áreas, toda a população se beneficia mas, principalmente, as mulheres”, diz Miriam Nobre, coordenadora nacional da Marcha.

DISCRIMINAÇÃO RACIAL A pior remuneração fica com as mulheres negras e pardas. Segundo o IBGE, essas trabalhadoras ganham, em média R$ 296 ao mês, enquanto o homem negro ganha quase o dobro – R$ 421. Na lista de rendimentos, seguem-se a mulher branca, com R$ 583 mensais, e o homem branco, com R$ 874 – quase quatro vezes mais que o salário da negra.

A metalúrgica Juvercina Maria Carmo dos Santos trabalha há 16 anos na empresa de ferramentas elétricas Makita, em São Bernardo do Campo, São Paulo. Na época em que começou a trabalhar na fábrica, apenas homens eram responsáveis pelo teste final em máquinas montadas. Juvercina orgulha-se de, hoje, ser a responsável pelo serviço. “Só eu faço esse trabalho. Antes achavam que era trabalho só de homem”. Na Makita trabalham 200 pessoas, 40% delas mulheres. Apesar do grande número de trabalhadoras, gerentes e diretores são homens. Em cada seção da fábrica há um supervisor, que coordena o trabalho da equipe, denominado “líder de seção”. Hoje, nenhum deles é mulher. Juvercina já foi líder de uma seção, e conta que na época muitos homens ficavam incomodados em receber ordens. “Outros vieram me dizer que não gostavam da idéia de serem supervisionados por uma mulher, mas que depois que começaram a trabalhar comigo, mudaram de idéia”. A metalúrgica acha que não há líderes mulheres na Makita por preconceito. Segundo ela, há mulheres na empresa com muito mais responsabilidade e capacidade que alguns homens, mas nem por isso elas são líderes. “Isso é revoltante”.

Maria Elmira Rocha e Silva é colega de trabalho de Juvercina na fábrica de ferramentas elétricas. Elas entram às 7h45 e saem às 17h. Apesar de achar que homens e mulheres são tratados com o mesmo respeito, conta que já sofreu discriminações: “Um dia meu chefe disse que eu não conseguia fazer um serviço, que os meninos tinham mais capacidade para fazer aquilo do que eu”. Ela acha que o mercado de trabalho está difícil para qualquer pessoa, mas se um homem e uma mulher disputarem uma vaga, mesmo os dois tendo a mesma capacidade, “vão dar preferência para o homem”. Elmira acredita que a discriminação “vem de casa”, pois muitas delas trabalham muito “e ninguém dá valor a elas, lembrando de mulheres que enfrentam a dupla jornada (emprego e serviço doméstico). “Acho que não podemos aceitar isso, o homem tem que dividir o serviço de casa. É uma sobrecarga muito grande”, diz.

A ajudante de costureira Carla Batista de Souza tem 20 anos e trabalha há dois. Apesar de querer trabalhar com informática, por falta de opção ela está na Artline, empresa de artigos para bebê, em Santo André, São Paulo, onde ganha R$ 380 por mês: “É complicado arranjar emprego, o que mais tem para a gente é serviço de empregada doméstica e costureira”, lamenta. Carla acredita que os homens ganham mais que as mulheres, e que mesmo tendo um emprego que não lhes agrade, as mulheres devem trabalhar, em vez de “ficar em casa cuidando de marido”. Carla conta que as costureiras da fábrica não recebem benefício nenhum além do salário, e que apesar de a maioria estar insatisfeita com o emprego, não se unem para reivindicar melhores condições de trabalho “porque existe muita desunião entre elas”.

A categoria tem alta rotatividade, de acordo com Carlene Benta de Moura, do sindicato de costureiras do ABC. Além disso, muitas são chefes de família, como Fernanda Gomes Ferreira, de 24 anos. Mãe de uma menina de quatro anos, Fernanda também trabalha há dois anos na mesma fábrica que Carla. Moradora da cidade Tirandentes, ela acorda todos os dias às 4h45 para chegar na fábrica às 7h30. Durante a semana, a filha da costureira fica com o pai, que está desempregado. Fernanda acha um “absurdo” que as costureiras da Artline não recebam qualquer benefício: “E eles ainda exigem uma meta de produção cada vez maior”. A produção de Fernanda é o fechamento de 300 a 350 bolsas de bebê por dia. Apesar de gostar muito de trabalhar como costureira, ela conta que a maioria de suas colegas trabalha ali “porque não tem outra coisa para fazer”. Fernanda discorda de Carla. Para ela, as mulheres não se mobilizam por melhores condições “porque têm medo de serem demitidas”.


Ano 2 • número 50 • De 12 a 18 de fevereiro de 2004 – 9

SEGUNDO CADERNO DÍVIDA EXTERNA

Credores tentam enquadrar Argentina Jorge Pereira Filho da Redação

A

s nações mais ricas do mundo, instituições financeiras multilaterais, bancos privados, jornais e a Justiça estadunidense lançaram uma ofensiva conjunta, na última semana, para a Argentina aumentar o pagamento da sua dívida externa. No início do ano, o presidente Néstor Kirchner anunciou que pagaria 25% do que querem os credores privados, para não prejudicar a economia do país. A medida desagradou o setor financeiro. Em reunião na Flórida, o G-8 emitiu comunicado chamando o país a rever sua postura. Em seguida, o diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Horst Köhler, marcou uma reunião com o ministro da Economia argentino, Roberto Lavagna. No encontro, dia 9, Köhler cobrou de Lavagna sinais de que o país quer seguir na “comunidade financeira internacional”.

France Presse

FMI e países mais ricos do mundo pressionam o presidente Néstor Kirchner para aumentar pagamento da dívida externa

A via crucis de um país endividado

FECHANDO O CERCO O Fundo repassou a lista de exigências discutidas pelo G-8. Entre elas, o cumprimento de um severo cronograma de pagamento das dívidas junto às instituições financeiras multilaterais e a revisão da proposta de pagamento aos credores privados. Segundo os jornais argentinos, o FMI quer que o governo pague, peG-8 – Grupo dos lo menos, 50% países mais ricos do planeta que se do que pedem reúnem para definir os credores. O políticas globais. Fundo tem o Hoje, reúne Estados apoio dos EsUnidos, Alemanha, França, Inglaterra, tados Unidos. Itália, Japão, CanaA pressão dá e Rússia. contra a Argentina incluiu também ações na mídia e na Justiça. O Financial Times – jornal inglês conservador – publicou editorial exigindo medidas energéticas do FMI e das instituições financeiras internacionais contra o governo Kirchner. O diário

Dezembro de 2001 – Depois de anos seguindo a cartilha do Fundo Monetário Internacional (FMI) e dos credores privados, a Argentina quebra e decreta moratória. Metade da população cai abaixo da linha de pobreza. 2002 – O país volta a quitar dívidas contraídas junto às instituições multilaterais, mas mantém moratória com credores priva-

dos. O FMI cobra mais esforço dos argentinos e exige privatização do setor financeiro. Setembro de 2003 – O presidente Néstor Kirchner assina acordo de três anos com o FMI. País fica um dia em moratória com fundo, sem pagar 2,9 bilhões de dólares. Dezembro de 2003 – Estudos estimam que a Argentina cresce 7% sem pagar credores privados. Ainda

assim, gastou 7 bilhões de dólares a mais do que recebeu de instituições financeiras internacionais. Janeiro de 2004 – Kirchner anuncia que retomará pagamento aos credores privados, com desconto de 75% sobre o valor da dívida. Bancos rejeitam. Durante a Cúpula das Américas, no México, o presidente George W. Bush, dos Estados Unidos, pede a Kirchner

mais flexibilidade com credores. A Justiça estadunidense bloqueia bens do Estado argentino para garantir pagamento dos bancos. Ministros de finanças do G-8 cobram nova proposta da Argentina para credores. A poucos dias da revisão do acordo com o FMI, o diretor do fundo, Horst Köhler, entrega ao governo argentino reivindicações do G-8.

avaliou que, se a Argentina mantivesse sua proposta, haveria risco de outros países seguirem o seu exemplo e questionarem o pagamento da dívida, em vez de adotar “reformas dolorosas”. Já a Justiça estadunidense decretou, na última semana, o bloqueio de bens do Estado argentino para garantir o pagamento aos credores privados.

1983, foi contraído de forma ilegal. Em um processo movido por Olmos na Justiça local sobre a dívida externa, foi constatado que o Banco Central argentino não possuía o perfil dos vencimentos nem a lista de credores e devedores do país. A instituição só tinha dados estatísticos sem validade contábil. Kirchner não ousou contestar a legitimidade da dívida externa, mas quis estabelecer novas condições para retomar o pagamento da dívida. Isso desagradou os credores. Por dois anos, a Argentina decretou moratória com os bancos privados. Em 2001, depois de uma década seguindo à risca as reformas defendidas pelo Financial Times e ditadas pelo FMI, a Argentina quebrou e arruinou a situação da sua população. Cerca de 19 milhões de argentinos (53%

da população) foram parar abaixo da linha da pobreza. Antes, aproximadamente 60% dessas pessoas faziam parte da classe média, segundo números oficiais. Agora, com o crescimento da economia previsto para 2004, Kirchner alega que o país só tem condições de arcar com 25% daquilo que os credores cobram.

Banco Mundial. Nos anos de 2002 e 2003, a Argentina pagou 16,6 bilhões de dólares a essas instituições e recebeu apenas 9,3 bilhões de dólares. O saldo final foi negativo em 7,2 bilhões de dólares. Em 2003, Kirchner assinou um novo acordo com o FMI, comprometendo-se a fazer um superávit fiscal de 3%. Os credores do país desaprovaram a negociação e, agora, querem mais arrocho na economia para sobrar dinheiro e aumentar os pagamentos da dívida externa. Em 9 de março, vence uma dívida de 3 bilhões de dólares com o FMI. Uma equipe do Fundo deve ir ao país ainda em fevereiro para verificar se Kircher está cumprindo com o superávit acertado no último acordo. Se as contas não forem aprovadas, Kirchner já avisou que não pagará a dívida com o Fundo.

DÍVIDA ILEGÍTIMA Todo o alarde da banca internacional ocorre não porque a Argentina decidiu romper com o FMI e deixar de pagar a sua dívida externa, como querem os movimentos sociais locais. Motivos para isso não faltariam. Investigações feitas pelo advogado Alejandro Olmos, morto em 2000, mostraram que todo o endividamento argentino datado da ditadura militar, entre 1976 e

RECUPERAÇÃO ECONÔMICA Durante o período em que os credores não receberam, a economia argentina se recuperou, em vez de perecer no limbo, como muitos alardeavam. Números ainda nãooficiais estimam que o país cresceu 7% em 2003. Mesmo assim, segundo a consultoria argentina M&S, o país ficou no prejuízo na relação com os organismos financeiros internancionais, como o FMI e o

HAITI

Oposição organizada exige renúncia de Aristide Desde o dia 5, grupos de oposição no Haiti promovem um levante contra o presidente Jean-Bertrand Aristide. Os “rebeldes” exigem a renúncia do presidente, reeleito com amplo apoio popular em 2000, mas que passou a seguir a cartilha neoliberal ditada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial. Os conflitos entre oposição e governo já deixaram 41 mortos e dezenas de feridos. As rádios locais estimam que o número seja ainda maior. Aristide, que foi visto como um defensor da democracia, hoje é acusado de corrupção e violência política. Mesmo antes do levante, dezenas de pesGonaives – é a soas morreram cidade onde o Haiti durante manideclarou sua independência em festações em 1804, na primeira ataques de gruindependência pos partidários essencialmente popular da América de Aristide. Latina, na qual os As rádios escravos derrotaram anunciam que a o exército francês de polícia abandoNapoleão. nou os quartéis. A central elétrica da capital teve de interromper suas atividades por falta de combustível, pois os caminhos que levam da capital Porto Príncipe ao norte do país estão bloqueados com barricadas de pneus. O exército haitiano foi extinto por um decreto assinado pelo presidente em 1995. Das 11 cidades tomadas pelos grupos de oposição, Gonaives, a quarta mais importante do país,

até a tarde do dia 10 estava sob o controle da Frente de Resistência Revolucionária de Arbonite. A frente, ex-aliada de Aristide, é liderada por Butuer Métayer, irmão de Amiot Métayer, ligado ao grupo de repressão organizado pelo ex-ditador Francois Duvalier.

De acordo com partidos políticos da oposição, Métayer foi encarregado por Aristide de organizar um grupo de choque, o Exército Canibal, contra os opositores do governo. A organização rompeu com Aristide quando o grupo encontrou o corpo de Amiot Métayer,

Thony Belizaire/AFP

da Redação

morto em setembro de 2003. O governo acusa a oposição pela violência e diz que seus líderes representam um pequeno grupo de “mulatos” que se opõem ao governo, de maioria negra. Apesar do caos, Aristide afirma que pretende completar seu segundo mandato, até 2006.

A missão enviada pela Organização das Nações Unidas (ONU) ao país teme que os problemas políticos possam agravar ainda mais a crise social no país centro-americano. A ONU pede que a comunidade internacional volte a dar atenção a uma das nações mais pobres do mundo. A estimativa é de que seria preciso 84 milhões de dólares para garantir alimentação e saúde à população civil. Por enquanto, a entidade conta com pouco mais de 10% dos recursos necessários. De acordo com os porta-vozes da ONU, nem mesmo os Estados Unidos, tradicionais doadores e aliados do governo do Haiti, deram indicações de que estão dispostos a liberar recursos para as atividades no país.

DIVISÃO NA ESQUERDA Os partidos de esquerda ainda não chegaram a um consenso sobre a situação do país. A Frente Nacional de Libertação do Haiti teme a desfragmentação dos grupos depois da saída de Aristide. Já a Plataforma Democrática não vê outra saída para cessar a violência no país se não a renúncia do presidente.

REPÚBLICA DO HAITI Localização: América Central Capital: Porto Príncipe Idiomas: Francês e crioulo (oficiais) Moeda: Gourde População: 8 milhões de habitantes 80% abaixo da linha de pobreza 80% católicos 95% negros

PoPulação: 7,52Populaç de

ão7,817PPP{PPPPPPP

250 mil vivem com Aids

HISTÓRICO

Nos protestos contra Aristide, 41 haitianos foram mortos

No final do século 18, a população de quase 500 mil escravos, liderada pelo ex-escravo Toussaint L’Ouverture, se revolta contra os franceses. Em 1804, depois de uma década de lutas o Haiti se torna a primeira república negra a conquistar sua independência. A ilha é governada por uma série de ditaduras violentas até 1990, quando o padre progressista Jean-Bertrand Aristide é eleito. No entanto, seu governo sofre um golpe militar em oito meses. A situação se estabiliza em 1995, quando René Préval é eleito. Aristide é reeleito com o apoio dos Estados Unidos em 2000.


10

De 12 a 18 de fevereiro de 2004

AMÉRICA LATINA LIVRE COMÉRCIO

Alca patina nas negociações de Puebla Jorge Pereira Filho da Redação

A

s negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) fracassaram durante a reunião do Comitê de Negociações Comerciais (CNC), que terminou dia 6, em Puebla, México. Diplomatas dos 34 países que discutem o acordo não conseguiram chegar a um consenso sobre como prosseguir nas negociações. O resultado é positivo para os movimentos sociais que, em todo o continente, fazem campanha para barrar a criação do acordo. Embora o prazo de implantação da Alca em 2005 fique cada vez mais inviável, os diplomatas pretendem se encontrar dentro de dez dias para tentar superar os entraves da negociação. Como em outras reuniões, as divergências em relação ao tema agricultura foram o pivô das polêmicas, e impediram que os negociadores formulassem as linhas gerais do que seria a Alca light. Em novembro, na 8ª Reunião Ministerial de Miami (EUA), os países participantes decidiram criar um novo formato de negociações do acordo, menos ambicioso, com vistas a implantá-lo em 2005. Entretanto, o Mercosul, liderado pelo Brasil, apresentou uma proposta de dividir as discussões da Alca em dois pisos. No primeiro, seriam negociadas regras mínimas

comuns a todas as nações e, em um segundo piso, seriam negociados acordos bilaterais, ou plurilaterais, que não se estenderiam necessariamente aos outros países. Essa proposta foi batizada de Alca light. O objetivo da reunião de Puebla seria operacionalizar a decisão, e estabelecer novos parâmetros da negociação. Os diplomatas, no entanto, não chegaram a um texto consensual, o que bloqueou as discussões.

Martin Bernetti/AFP

No México, não houve acerto sobre acesso a mercados, os movimentos comemoraram, mas o acordo não está morto A proposta não agradou o Mercosul, uma vez que o principal interesse dos negociadores do bloco tem sido garantir acesso ao mercado estadunidense, sobretudo de agricultura e aço. Pela proposta do G-14, os Estados Unidos poderiam manter subsídios agrícolas e proteção a setores industriais.

COMEMORAÇÃO

AGRICULTURA O Mercosul apresentou, no início do encontro, uma proposta de Alca com ampla abertura comercial e redução das barreiras alfandegárias para zero entre todos os países. Ao mesmo tempo, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai esvaziaram o conteúdo dos acordos sobre temas sensíveis como investimentos, compras governamentais e propriedade intelectual. Para eles, só interessavam acertos mínimos nessas questões. Já um grupo de países batizado de G-14, integrado por Estados Unidos, Chile, Canadá e México, propôs uma Alca menos ambiciosa do que a do Mercosul. Aceitaram as restrições nos temas sensíveis, surpreendendo a expectativa geral, e rejeitaram a sugestão de reduzir a zero as tarifas de importação. O G-14 queria redução substancial das tarifas, não total.

Movimentos ironizam o fracasso: “Alca só sobrevive num formato extra-light”

Os movimentos sociais, que levaram milhares de pessoas às ruas em Puebla, comemoraram o resultado negativo da reunião. “Se a Alca tem alguma possibilidade de sobrevida, é só em um formato extra-light”, afirma Gonzalo Bérron, da Aliança Social Continental, articulação de movimentos sociais americanos. A proposta da área de livre comércio, no entanto, está longe de ser extinta. Isso porque, até o momento, mesmo em um formato extra-light, a Alca traria acordos de mais abertura comercial para as nações, além de compromissos mínimos nas áreas de investimentos, compras governamentais e serviços. Tais compromissos poderiam ser, gradativamente, aumentados conforme a conjuntura políticosocial do continente. “Nós não queremos nenhuma Alca, nem a extra-light. Esse tipo de integração não está na agenda de prioridades dos movimentos sociais”, garante Bérron.

Verena Glass e Gilberto Maringoni de Ciudad Guayana (Venezuela) A terceira edição do Fórum Social Panamazônico (FSP) representou uma derrapada séria num evento que, desde sua primeira edição em 2002, vinha construindo a articulação política dos movimentos sociais da bacia amazônica (Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela). Por pouco não naufragou, vitimado por uma desorganização exemplar e por disputas políticas internas entre organizadores locais (Ciudad Guayana) e nacionais (Caracas). Os desencontros quase inviabilizaram a realização das atividades propostas, mas não prejudicaram as articulações políticas entre os diversos movimentos e atores participantes. Apesar de caótico, o FSP sai fortalecido com a integração do Caribe. Levado para a Venezuela com o objetivo de internacionalizar o FSP e para reafirmar o seu apoio à chamada revolução bolivariana, a impressão que ficou é que o evento não foi suficientemente valorizado pelos organizadores venezuelanos. Segundo Aléxis Martinez, membro do comitê organizador local, a realização do Fórum não era uma prioridade no contexto da luta política nacional, pautada pela disputa em torno do referendo revogatório do mandato de Chávez. Lembrado que o governo venezuelano não era responsável por organizar o evento, mas sim os movimentos sociais venezuelanos, Aléxis acabou por concluir: “Não estávamos preparados para realizar o Fórum aqui”. Problemas à parte, a articulação de ações e movimentos, marca e objetivo do processo Fórum Social Mundial, foi bem-sucedida na avaliação dos participantes e do Conselho Internacional do FSP. A criação de uma rede amazônica para o combate à biopirataria, de um acordo entre movimentos brasileiros e cubanos para a elaboração de um estudo acadêmico sobre a conjuntura política, social e econômica da Pan-Amazônia, de um coletivo de juventude panamazônico e da

Bia Barbosa/Carta Maior

Fórum Panamazônico fortelece movimentos

Apesar da desorganização, fórum consegue incorporar movimentos sociais caribenhos, evento volta ao Brasil em 2005

participação consistente de representantes de Cuba, que integrou o Caribe aos debates macrorregionais da América Latina, foi uma vitória, avalia Adilson Vieira, secretário geral do Grupo de Trabalho Amazônico e membro do Conselho Internacional do FSP. A participação no FSP de personalidades como o general Raul Baduel, comandantegeral do Exército venezuelano que teve papel decisivo na desmontagem do golpe de abril de 2002, do ex-representante da Venezuela na Opep, Elihe Habalian, da diretora

da recém-criada televisão educativa da Venezuela (Vive TV), Blanca Eekhout, do diretor da Central dos Trabalhadores de Cuba, José Miguel Hernandez, além de outros, deu consistência política ao evento.

MANAUS Em reunião realizada no penúltimo dia do FSP, o Conselho Internacional definiu a volta do evento ao Brasil. Uma secretaria composta, por enquanto, pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) se

responsabilizará pela organização do evento em Manaus, algumas semanas antes do encontro do Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Em documento elaborado e assinado por uma série de organizações participantes do evento, fica firmado o compromisso do FSP de aprofundar os debates sobre as temáticas Paz, Igualdade e Soberania na Pan-Amazônia. A chamada Carta de Ciudad Guayana – que não é uma declaração final do evento, mas expressa a posição política da maior parte dos movimentos parti-

cipantes – reafirma o compromisso de articular os movimentos latinoamericanos e caribenhos e apoiar as lutas específicas dos vários países e organizações participantes do processo. Entre elas estão as lutas independentistas da Guiana Francesa, de resistência cubana contra o embargo dos EUA, do movimento revolucionário bolivariano na Venezuela, dos direitos dos povos indígenas em toda a Amazônia, dos quilombolas e trabalhadores rurais e urbanos da região, entre outros. (Agência Carta Maior)

Estrangeiros continuam donos do gás boliviano da Redação As poderosas transnacionais petroleiras ainda mantêm seus privilégios e continuam sendo proprietárias do gás e do petróleo da Bolívia. As modificações nos tributos e na legislação feitas pelo presidente Carlos Mesa não interferem no domínio nem diminuem o controle que estas empresas têm sobre as riquezas hidrocarburíferas do país, avaliadas em mais de 100 bilhões de dólares. A revocatória do decreto supremo 24806, aprovado no dia 4 de

agosto de 1997 pelo ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada e anulado no início de fevereiro de 2004 por Mesa, elimina o domínio que as transnacionais têm sobre o gás e o petróleo apenas de maneira formal, mas não na realidade. A medida prevê que, nominalmente, se cumpra o que a Constituição boliviana estabelece: enquanto estiverem no subsolo, as reservas de gás e petróleo estão sob o domínio do Estado. Contudo, as petroleiras estrangeiras continuarão tendo a “propriedade real” sobre os hidrocarbonetos produzidos na Bo-

lívia ao concentrar o controle total das reservas de gás e petróleo, ao manter o direito absoluto de sua exportação, produção, comercialização e venda, ficando com os lucros e benefícios da venda nos mercados internos e externos.

GREVE Os trabalhadores do setor de transporte público anunciaram uma greve de 48 horas contra a política econômica de Carlos Mesa. Já a Central Obreira Boliviana (COB) e outras organizações ameaçam retomar os bloqueios nas auto-estradas

bolivianas. As manifestações são uma resposta ao recente plano de combate à crise econômica anunciado por Mesa. Para a COB, a política de Mesa não responde às expectativas de trabalhadores e camponeses e não rompe com o modelo neoliberal e as transnacionais. A organização afirmou, ainda, que já havia vencido o prazo de 20 dias para o governo atender às reivindicações apresentadas pelos trabalhadores. Os movimentos sociais estão anunciando marchas e bloqueios para essa semana.


11

De 12 a 18 de fevereiro de 2004

INTERNACIONAL IRAQUE

Leis violam direitos das mulheres Jim Lobe de Washington (EUA)

O

Conselho de Governo provisório do Iraque instaurou preceitos da lei islâmica (sharia) que violam os direitos das mulheres, segundo advertiram 44 legisladores estadunidenses. A aplicação da sharia vai jogar por terra as poucas garantias legais com que contavam as mulheres iraquianas, “até agora as mais liberais do mundo árabe’, disseram os parlamentares em carta enviada ao presidente George W. Bush. Os congressistas rechaçam a revogação, decidida dia 29 de dezembro pelos 25 membros do Conselho de Governo, de uma antiga lei de caráter civil, substituída por normas religiosas. Ao que tudo indica, a recém-aprovada resolução 137 do Conselho de Governo Iraquiano afetará os direitos à educação e ao emprego das mulheres, sua liberdade de movimento, seu direito de herdar propriedades, de se divorciarem e terem a guarda dos filhos. A aplicação da norma será supervisionada por clérigos sunitas ou xiítas, segundo as partes envolvidas pertencerem a um ou outro ramo do Islã. Para que entre em vigor, a resolução deve ser aprovada pela autoridade provisória da coalizão no Iraque, presidida pelo diplomata estadunidense Paul Bremer. A organização feminista Madre, com sede em Nova York, enviou uma carta a Bremer assinalando que a

Cris Biuroncle/AFP

Governo provisório substitui lei civil por preceitos religiosos que ameaçam garantia de proteção ao sexo feminino

Iraquianas protestam em Bagdá contra as medidas adotadas pelo governo provisório

decisão do Conselho de Governo Iraquiano carece de transparência e que sua gravidade requer um debate público. “Sob a direta autoridade do governo Bush, o Conselho de Governo privilegiou o sectarismo e violou os princípios do governo democrático”, disse a diretora do Madre, Yifat Susskind.

BRIGA PELO PODER Muitas mulheres iraquianas também protestam contra a resolução, segundo versões da imprensa.

A resolução “nos mandará para casa e fechará a porta, tal como ocorreu no Afeganistão”, disse a advogada curda Amira Hassan Abdulá ao jornal The Washington Post. “A legislação anterior não era perfeita, mas essa transforma o Iraque em uma selva para nós. Para que entre em vigor terão de passar sobre nosso cadáver”, acrescentou. É pouco provável que Bremer apóie a resolução, mas muitas mulheres temem que os muçulmanos conservadores reapresentem a pro-

posta quando assumir um governo de transição iraquiano, que se espera seja eleito em junho.

DIVISÃO HISTÓRICA Clérigos xiítas não só têm a intenção de aumentar sua representação no próximo governo como, também, esperam receber apoio dos sunitas conservadores, apesar das diferenças religiosas. Depois que o presidente Sadam Hussein foi derrubado em abril pela coalizão anglo-estadunidense, os xiítas e

sunitas conservadores se tornaram mais poderosos e influentes na população. Historicamente, o Iraque sempre foi dominado pelos sunitas, mesmo sob o regime de Sadam Hussein. Mas o atual Conselho de Governo reflete a maioria xiíta, ramo do Islã ao qual pertencem 62% dos 27 milhões de iraquianos. A história de diferenças entre as duas seitas tem 14 séculos, embora hoje se baseie mais em razões políticas do que religiosas. O Islã sunita é predominante na maioria do mundo árabe, enquanto os xiítas dominaram a Revolução Islâmica triunfante no Irã em 1979. “É imperativo que atuemos agora para reverter essa decisão, ou as vidas das mulheres iraquianas estarão pior, por culpa da falta de ação dos Estados Unidos. Não devemos permitir que passe”, disseram os parlamentares na carta enviada a Bush. “Avizinha-se uma crise dos direitos da mulher no Iraque, e devemos tomar medidas urgentes. Sob seu antigo ditador, as mulheres gozavam de direitos básicos e tinham participação na sociedade. Mas no pós-guerra são brutalmente atacadas e excluídas das atividades cívicas’, afirmou Carolyn Maloney. O rascunho da constituição estabelecia que pelo menos 40% dos integrantes de um órgão legislativo devem ser mulheres, mas, portavozes do Conselho de Governo disseram que o documento definitivo estabelecerá um mínimo de apenas 20%. (IPS)

SRI LANKA

Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá de Fortaleza (CE) O domínio colonial britânico na distante ilha batizada pelos portugueses de Ceilão, e rebatizada por seu próprio povo de Sri Lanka, teve conseqüências nefastas que se refletem até os dias de hoje. A ilha, conhecida por sua exuberância natural, está localizada no continente asiático, a sudeste da Índia. Abriga famosa arquitetura medieval, reservas florestais e paisagens tropicais, mas é também palco de uma violência étnica interminável. Durante séculos os ingleses se preocuparam fundamentalmente com estratégias administrativas que lhes permitissem manter o status quo colonial. Pouco fizeram para prevenir um futuro de discórdia intergrupal em um país antes pacífico e promissor. Falada pela população local de mesmo nome, a língua tâmil só se tornou oficial quase quatro décadas depois que o povo do Sri Lanka conquistou sua independência, em 1948. Esse fato ilustra a complexa relação entre a população minoritária tâmil e a majoritária cingalesa, que foi se agravando no período posterior à independência da pequena nação do sul da Ásia. A falácia da boa colonização é facilmente identificada ao se analisarem seus resultados em qualquer região onde se tenha feito presente. O Sri Lanka não é uma exceção. Por mais de quatro séculos, portugueses, holandeses e ingleses se alternaram na exploração da ilha e de seu povo. A questão cultural, sempre subalterna aos interesses econômicos dos colonizadores, continuou sendo negligenciada nos anos que antecederam o abandono do território. Promover a paz e manter o progresso entre os povos do Sri Lanka teriam sido possíveis. Havendo duas línguas originais, o sinhala (cingalês) e o tâmil, além do idioma inglês do colonizador, perdeu-se a chance de se cultivar o respeito

Sena Vidanagama/AFP

Dois povos, duas línguas, uma guerra sem fim

SRI LANKA Capital – Colombo População – 18,8 milhões (em 2000) Idiomas – inglês, sinhala e tâmil (oficiais) Crescimento demográfico – 1% ao ano Moeda – rúpia cingalesa

Povo tâmil luta pela independência do Sri Lanka numa guerra esquecida pelo mundo

mútuo com o aprendizado multilingüístico bilateral. A política foi outra: dois povos, duas línguas, duas nações e um só comando, dificultando com isso a interseção de culturas e a integração de etnias. Beneficiou-se, portanto, apenas determinados grupos, fossem eles constituídos por uma reduzida elite local ou por estrangeiros.

IRRACIONALIDADE Há décadas não se sabe o que significa a paz naquele país. Presidente assassinado, ódio crescente, sentimento de impotência entre a população e vítimas civis de conflitos, tudo isso é a regra. Guerra demorada e esquecida pelo resto do mundo, na qual irracionalidade e erros repetidos têm caracterizado as ações dos dois lados em litígio. Os guerrilheiros

do grupo tâmil Tigres da Libertação do Tâmil Eelam (LTTE), que lutam pela criação de um Estado independente nas regiões norte e leste do país, afirmam fazê-lo por se sentirem preteridos política e socialmente pelo governo e pelo povo de maioria cingalesa. Os tâmeis representam 15% da população total e têm relativamente menos acesso aos postos de trabalho oficiais e às riquezas nacionais. Os tâmeis agem com ataques terroristas a aparelhos e pessoas ligadas ao governo, atingindo também a população civil, criando um clima de insegurança geral no país. Principalmente o turismo, uma importante fonte de receita, vem sendo duramente afetado em conseqüência desses ataques. O grupo impede ainda o trânsito para regiões do país por eles militarmente dominadas,

impossibilitando uma integração nacional e a livre movimentação das pessoas entre as regiões. Jaffna, cidade de maioria tâmil situada ao norte da ilha, faz parte do grupo de cidades disputadas. As respostas às ações terroristas são rápidas e precisas, acuando a população tâmil cada vez mais a uma remota região da ilha. Gera um ciclo de exclusão social e empobrecimento cruel com reflexos na economia de todo o país.

ANTIPATIA ESTADUNIDENSE Por se tratar de práticas ditas terroristas, desperta de imediato a antipatia do governo estadunidense. O processo de paz que se arrasta há anos buscou em certa altura reforço em uma visita do primeiro-ministro do Sri Lanka, Ranil Wickremesinghe, a Washington. Este obteve a

promessa pessoal do presidente dos EUA, George W. Bush, de incluir a questão do Sri Lanka como parte de sua luta global antiterror. O conflito do Sri Lanka tem características próprias e seria melhor resolvido em uma perspectiva doméstica ou regional. Essa dependência externa não existiria se a questão tâmil-cingalesa tivesse encontrado eco em seu fórum adequado, a Cúpula da Ásia do Sul. Talvez o comprovado engajamento do novo ministro de Estado para Refugiados e Repatriamento, Jayalath Jayawardana, indique um caminho mais político para o conflito. Afinal de contas em 2002, segundo o ministro, “nenhum ataúde com vítimas do conflito foi transportado do norte para o sul do país, tampouco tem se coibido o trânsito de pessoas entre as cidades”. Em conseqüência desta melhoria no clima político local, observa-se que a população, em sua maioria budista, já pode pelo menos se locomover com mais segurança para visitar os locais sagrados de adoração espalhados na ilha sem ser molestada ou vitimada pelo terror. Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá é professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará


12

De 12 a 18 de fevereiro de 2004

INTERNACIONAL ÁFRICA

Brasil e Angola assinam parceria em pesca

Pescadores em águas territoriais de Angola; acordo libera pesca para empresas brasileiras no local

CONGO

REP. DEM. DO CONGO

Cabinda

José Fritsch, secretário da Aqüicultura e Pesca do Brasil

ANG

ibe

Ben

gue

la

OLA

Luanda

Nam

OCEANO ATLÂNTICO

O

s primeiros frutos da viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à África, em novembro último, já começaram a brotar. Desde o início de fevereiro, uma parceria inédita no setor pesqueiro une Brasil e Angola. Pelo lado brasileiro, o acordo de cooperação, firmado em Luanda (capital angolana), foi assinado pelo ministro José Fritsch, da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca. Pelo lado angolano, assinou o ministro das Pescas, Salomão Xirimbimbi. O governo angolano, como o brasileiro, está reestruturando seu setor pesqueiro, o que favoreceu a parceria com o Brasil. Segundo declaração do ministro Fritsch, a iniciativa cria possibilidades de desenvolvimento para o setor e vai gerar empregos em ambos os países. Cabe ao Brasil transferir tecnologia e estimular negócios de empresários brasileiros em Angola nas áreas de produção de camarão, pesca artesanal, pesca da lagosta, da sardinha, aqüicultura (tratamento do ambiente aquático para criação de peixes, mariscos e outros frutos do mar, bem como do cultivo de plantas) e construção de barcos pesqueiros. Em janeiro, o ministro José Fritsch chefiou uma delegação de empresários e políticos brasileiros em visita de uma semana a Angola. O grupo esteve nas províncias de Benguela e Namibe (sudeste de Angola), de alto potencial pesqueiro. O município de Baía Farta, em Benguela, é o terceiro maior parque piscatório de Angola, depois de Tombua, em Namibe, e Porto Amboim. Empresas do setor naval pesqueiro do Brasil devem construir

Agência Brasil

Marilene Felinto da Redação

Ricardo Peres/Agência Reflexo

Brasileiros vão transferir tecnologia pesqueira e naval, em troca do uso de águas territoriais angolanas

NAMÍBIA

cerca de 40 barcos de médio porte para pesca oceânica. A construção ficará a cargo de uma holding criada entre a empresa brasileira TWB e o grupo angolano “Polangol”. O Brasil disponibilizou 50 milhões de dólares para modernizar a frota pesqueira e construir um estaleiro de pesca artesanal naquele país africano. O Brasil também oferecerá cursos de graduação e pós-graduação em instituições brasileiras para formação de pessoal angolano. Em contrapartida, o acordo permite ao Brasil usufruir do pescado das águas territoriais angolanas. No caso da sardinha, há possibilidade de realizar a pesca no litoral

africano e promover a industrialização no Brasil. O ministro José Fritsch disse à Agência Brasil de notícias que os angolanos viram na indústria brasileira uma oportunidade de economizar, já que os equipamentos brasileiros são mais baratos que os comercializados em outras partes do mundo. “Um motor que custa 12 mil dólares na Europa sai por cerca de 7 mil dólares no Brasil”, informou Fritsch. A Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca mantém atualmente conversações para uma parceria semelhante com outro país africano, o arquipélago de São Tomé e Príncipe.

“As misérias de um país rico” Mario de Queiroz de Lisboa, (Portugal) Corrupção, falta de transparência, déficit democrático e uma população que sobrevive a duras penas enquanto assiste ao enriquecimento desmedido dos dirigentes. Essas são as acusações que mais pesam sobre o governo angolano de José Eduardo dos Santos. Passados quase dois anos do fim das guerras, que por quatro décadas destruíram quase completamente a infra-estrutura do país, e com a ex-rebelde União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita) agora ocupando o lugar de maior partido de oposição no Parlamento, os analistas afirmam que pouco ou nada mudou nessa ex-colônia portuguesa na África Austral. Com a morte em combate, em fevereiro de 2002, de Jonas Savimbi, líder histórico da Unita, a comunidade internacional previu o início de uma era de prosperidade em Angola, país de enorme riqueza mas devastado primeiro pela luta anticolonial contra Portugal, de 1961 a 1975, e, depois, por 27 anos de guerra civil. Entretanto, as previsões otimistas de observadores, analistas, diplomatas e funcionários internacionais não encontraram sustentação na realidade. O arranque para uma sociedade mais justa e democrática, na verdade, não dependia da vida ou morte do mítico líder da Unita. Os números da pobreza e riqueza em Angola continuam imutáveis. Hoje morrem tantas crianças quanto na década passada, a pior nos 41 anos de conflito armado. Os últimos dados divulgados pela Organização das Nações Unidas revelam que nesse país, com 13,3 milhões de

habitantes, um terço das crianças morre antes de completarem cinco anos de idade e, também, que três milhões e meio de menores de 18 anos sofrem de desnutrição. Apesar disso, Angola é um dos países mais ricos da África. É o segundo exportador de petróleo do continente, depois da Nigéria, e conta com uma das reservas petrolíferas mais importantes do mundo. O petróleo, que rendeu 17,8 bilhões de dólares para os cofres do Estado entre 1997 e 2002, constitui 85% da renda pública do país, cujo produto interno bruto é estimado em cerca de 6,5 bilhões de dólares. Apesar dessa riqueza, 68% da população sobrevive com menos de um dólar por dia e calcula-se que as dez pessoas mais ricas de Angola competem lado a lado com multimilionários de qualquer parte do mundo. Nesse país rico também em diamantes, os gastos com saúde e educação, entre 1997 e 2002, foram, em média, a metade da quantia que nações da região investirão nesse setor, como Camarões, Moçambique e República Democrática do Congo.

Os números da pobreza e riqueza em Angola continuam imutáveis; país é rico em petróleo Angola passou para as primeiras páginas depois do relatório divulgado no início de janeiro pela organização não-governamental Human Rights Watch (HRW), com sede em Nova York, no qual se indica que

entre 1997 e 2002 se esfumaçaram 4,22 bilhões de dólares de seus cofres públicos, cifra equivalente a todo o gasto social do período. Diante disso, Luanda se manifestou, no dia seguinte ao da divulgação, desmentindo o informe da HRW, que “não tem nenhuma base de sustentação” e é fruto da “fantasia e imaginação. Nunca existiu uma auditoria contábil independente que comprove a acusação”, ressaltava a nota oficial do Ministério das Finanças, acrescentando que as contas públicas do governo “são submetidas a auditorias do Fundo Monetário Internacional (FMI)”. Antonio Charuto, soldado do exército, que sobreviveu após servir dez anos nas frentes de guerra contra a Unita, e hoje, já distante da força, dirige a comunidade angolana, residente em Portugal, disse à IPS que “o que acontece é uma vergonha, não apenas para Luanda, como para todos os países cúmplices do que ali acontece”. Charuto concluiu recordando que todos esses negócios, “que enriquecem cada dia mais os dirigentes, têm seus sócios em nações democráticas, entre elas Portugal, que é o principal investidor estrangeiro em Angola, que sem escrúpulos olha para o outro lado diante da evidência do saque desmedido ao país”. O dirigente da opositora Frente para a Democracia (FDB), Filomeno Vieira Lopes, não esconde seu ceticismo sobre o baixo impacto mundial que o documento terá. “Não haverá nenhuma reação em nível internacional”, já que nestes círculos “esses dados são conhecidos há muito tempo”. As companhias estrangeiras que extraem petróleo em Angola “deveriam ser pressionadas para pôr fim à obscu-

ridade nas contas do Estado citadas no informe do HRW”, afirmou. Por sua vez, Ana Dias Cordeiro, analista portuguesa especializada em temas angolanos, afirmou que o maior obstáculo para uma auditoria nas contas de Luanda está nas próprias companhias petrolíferas. Entre as quatro empresas que operam no país – as norte-americanas ChevronTexaco e Exxon Mobil, a francesa Total e a British Petroleum –, apenas esta última “se mostrou disposta a declarar os pagamentos feitos ao Estado angolano, mas a iniciativa foi impedida por Luanda”, garantiu a analista.

Intelectuais fustigam o regime de Luanda, denunciando ostentação de riqueza Em nível interno, o relatório da HRW tampouco terá grande repercussão, afirmou o diretor da revista Semanário Angolano, João da Graça Campos. “A oposição não teve uma reação imediata diante da divulgação do relatório e nem mesmo é previsível que o assunto seja levado a debate no Parlamento”, afirmou o diretor dessa revista independente. Entretanto, admitiu que “o governo não sai totalmente ileso de situações como esta e pode ser que sinta um certo incômodo por pressões externas”, mas recordou diversas vezes que “as organizações da sociedade civil solicitaram à Procuradoria Geral da República investigações sobre casos semelhantes, que nunca foram consideradas”.

Segundo o subdiretor do matutino independente Público, de Lisboa, Nuno Pacheco, o fim da guerra civil em Angola não trouxe nada de novo, porque o regime deste país “continua sem ceder um milímetro no único território que poderia aproximá-lo dos muitos que o criticam pela falta de democracia e transparência”. Há dez anos, o conflito de Angola dividia os políticos e intelectuais portugueses entre os de esquerda, que apoiavam o governo, e os de direita e setores mais conservadores do Partido Socialista que defendiam a Unita. Esta percepção mudou radicalmente e, agora, reconhecidos intelectuais de esquerda, como é o caso de Pacheco, fustigam o regime de Luanda, denunciando escândalos de negócios pouco claros e a ostentação de riqueza de seus altos dirigentes, que compram luxuosas mansões no sul de Portugal ou apartamentos em zonas exclusivas de Lisboa para seus filhos que estudam em universidades da capital lusitana. “Poderá haver alguma razão para que Angola, onde a filha do presidente teve um luxuoso casamento com cerimônia de Estado, ocupe o lugar mais baixo dos últimos sete anos no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, já com Savimbi morto e a guerra terminada?”, se pergunta Pacheco. (IPS/Envolverde)


13

De 12 a 18 de fevereiro de 2004

AMBIENTE CAMARÃO

Produtores querem cultivo sustentável Patrícia Wittenberg de Natal (RN) or cinco dias, de 3 a 7, a capital do Rio Grande do Norte foi sede da Feira Nacional do Camarão (Fenacam), evento que reuniu mais de mil participantes, entre produtores, industriais, fornecedores, estudantes e profissionais do setor. O evento, com mais de 70 expositores, tentou mostrar a força do país na produção mundial de camarão, apesar dos graves problemas originários com a prática da pesca industrial. No Brasil, a carcinicultura cresce a uma taxa anual de 50%, conforme Itamar Rocha, presidente da Associação Brasileira de Criadores de Camarão (ABCC). A produção brasileira pulou das 7,2 mil toneladas em 1998 para 90 mil toneladas em 2003. As exportações passaram de 2,8 milhões de dólares para 240 milhões de dólares no mesmo período. O país já desbancou o Equador e ultrapassou Bangladesh no que se refere à produção de camarões. No topo da lista está a China, seguida pela Tailândia, Vietnã, Índia, Indonésia, Brasil, Bangladesh, Equador, México e Honduras. Os números mostram que o camarão é o segundo item na pauta de exportação do Nordeste, perdendo apenas para o açúcar. Mas os produtores Dumping – Prática reclamam que considerada ilegal, é preciso dena qual um setor cobra preços abaixo senvolver podo mercado, para líticas públicas exportar mais que os para o setor, concorrentes especialmente com relação ao custeio da atividade e a necessidade de investimentos que permitam a agregação de valor ao produto final. Atualmente, 96% do camarão cultivado no Brasil são produzidos na faixa costeira que vai da Bahia ao Ceará. “A carcinicultura gera 3,75 empregos diretos e indiretos por hectare de cultivo, o que coloca o setor na liderança da geração de empregos na economia rural nordestina”, diz Rocha. Dos índices de emprego gerados pelo setor, 90% são de mão-de-obra

P

Fotos: Patrícia Wittenberg

Enfrentando pressão dos EUA, pescadores do Nordeste pedem políticas públicas para o desenvolvimento da carcinicultura

Acima à esquerda, fazenda de cultivo de camarões inundada no sul de Natal, RN; à direita, prato típico da região, cascata de camarões e abaixo, Alexandre Wainberg em sua fazenda orgânica, a primeira do país

blemas da carcinicultura nacional. Erroneamente considerada por muitos como a grande culpada pela destruição dos mangues, a carcinicultura brasileira começa a dar a volta por cima. Um exemplo disso é o de Alexandre Wainberg, biólogo e proprietário da Primar, a primeira fazenda de cultivo de camarão orgânica do Brasil e que está localizada no município de Goianinha, a 80 quilômetros de Natal.

MAIS TRABALHO

sem qualificação, proveniente da produção de sal no Rio Grande do Norte, da extração da cera de carnaúba no Piauí, do coco e da pesca artesanal e que hoje trabalham no setor da carcinicultura. Nas indústrias de processamento, 96% são mulheres.

CULTIVO SUSTENTÁVEL Mas a realidade a que o presidente da ABCC se refere nem sempre é assim. Como toda nova atividade que cresce, os problemas têm a mesma proporção. Além do

grande número de pessoas trabalhando por um salário mínimo ou menos, e até mesmo sem carteira assinada, ainda persistem algumas dúvidas em relação ao impacto social da atividade, principalmente sobre as comunidades tradicionais de pescadores, e também sobre o impacto sobre o meio ambiente. Ciente disso, a própria ABCC tem procurado disseminar entre os seus associados uma série de práticas de cultivo sustentáveis, além de financiar uma série de estudos como forma de melhor conhecer os pro-

Para receber o certificado de produção orgânica do Instituto Biodinâmico de Botucatu (SP), Wainberg não só teve de demonstrar que sua empresa respeita os funcionários e tem responsabilidade social, mas também que os camarões serão criados em perfeita sintonia com o ambiente. Ele não utiliza rações comerciais para alimentar seus camarões, que crescem junto a peixes, ostras, algas e pássaros. A fertilização dos viveiros, etapa fundamental para o sucesso do cultivo, é feita com húmus de minhocas produzido na própria fazenda. Ao lado dos viveiros de cultivo podem se encontrar caixas de abelha e vários hectares de mangue. Depois do aço, a próxima crise entre Brasil e Estados Unidos po-

derá ser a do camarão. A Aliança de Camarões do Sul, entidade que congrega empresas estadunidenses de pesca, acusa seis países, entre os quais o Brasil, de realizar práticas de dumping. Por causa disso, o governo dos EUA, através da sua Comissão de Comércio Internacional (ITC), fixou o dia 17 de fevereiro para se pronunciar sobre a existência de danos à indústria do país. Se a ITC avaliar que as exportações de camarão do Brasil, China, Tailândia, Vietnã, Índia e Equador não são danosas às empresas estadunidenses, a ação será engavetada. Caso contrário, o processo entrará na sua fase mais complexa, com a indicação das empresas brasileiras a serem fiscalizadas pelo Departamento de Comércio dos Estados Unidos. Para o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan, a acusação de dumping feita por pescadores dos Estados Unidos contra o camarão brasileiro pode levar a uma melhor organização da cadeia produtiva do crustáceo no país. No Brasil, o quilo do camarão cultivado com peso entre 10 e 12 gramas tem um custo de produção entre R$ 6 a R$ 8, enquanto nos Estados Unidos o mesmo produto é cotado a 4,40 dólares.

HABITAÇÃO

Madeira apreendida é transformada em casas Historicamente, o Brasil não sabe o que fazer com a rica madeira apreendida em ações de fiscalização dos organismos governamentais. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) está tentando dar destino aproveitável aos estoques. Com aproximadamente 100 mil metros cúbicos de madeiras apreendidas, serão construídas cinco mil residências em assentamentos no Estado do Pará, em 2004. A iniciativa deve gerar pelo menos cinco mil empregos diretos em áreas com reconhecido déficit de moradias e de postos de trabalho. O protótipo da habitação popular em madeira foi desenvolvido pelo Laboratório de Produtos Florestais (LPF), do Ibama, em parceria com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB). O projeto é de uma casa com dois quartos, sala, cozinha, varanda e banheiro (52 metros quadrados), construída com 20 metros cúbicos de várias espécies de madeira, como itaúba, ipê, cumaru, maçaranduba, preciosa, pau-amarelo, muiracatiara e angelim. As soluções técnicas permitem que a construção tenha baixo custo, pouco mais de R$ 8 mil, maior durabilidade e montagem simples. A construção das casas será custeada pelo Instituto Nacional de Coloni-

declarou moratória total à exploração da espécie. Em novembro de 2002, a árvore passou a integrar a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas (Cites).

LPF Ibama

da Redação

UM BELO MECANISMO

Habitação popular em madeira antes e depois da reforma, a iniciativa deve gerar pelo menos cinco mil empregos diretos

zação e Reforma Agrária (Incra) e pela Fundação Nacional da Saúde (Funasa).

USO SOCIAL Entre 2001 e 2002, em locais como São Félix do Xingu e Altamira, no Pará, o Ibama apreendeu mais de 40 mil metros cúbicos de mogno, suficientes para carregar dois mil caminhões. Parte significativa dessa madeira está hoje sendo exportada e os recursos obtidos, revertidos em ações locais de cunho socioambiental. Em julho de 2003, foram repassadas seis mil toras de mogno à Federação das Associações de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), na cidade de Altamira

(PA). A madeira foi beneficiada pela madeireira certificada Cikel Brasil Verde. Associada à Fundação Viver, Produzir e Preservar, que congrega mais de cem entidades sociais, igrejas, sindicatos de trabalhadores rurais e povos indígenas da região da Transamazônica e do Xingu, a Fase reverteu a verba obtida com a exportação do mogno – cerca de R$ 4,7 milhões – para o Fundo Dema. Trata-se de um organismo, cujo nome homenageia Ademir Alfeu Fredericci, líder de movimentos sociais, assassinado em agosto de 2001. O Fundo Dema está beneficiando a população local com empregos, inclusão social e proteção à natureza por meio de projetos sustentáveis, não voltados

ao desmatamento. Todo o processo é acompanhado pelo Ministério Público Federal. Outros 12 mil metros cúbicos de mogno foram repassados à comunidade indígena caiapó de São Félix do Xingu, também no Pará. A madeira está sendo beneficiada por uma madeireira certificada e os recursos obtidos com a venda da matéria-prima serão depositados, no primeiro semestre deste ano, no Fundo do Patrimônio Indígena, da Fundação Nacional do Índio (Funai). Outra parcela do mogno apreendido aguarda decisões judiciais para sua liberação. Em 1996, em resposta à crescente exploração predatória e redução dos estoques de mogno, o Brasil

A Cites é um acordo firmado por 160 países para tentar impedir que o comércio de animais e de plantas coloque em risco sua sobrevivência. Como signatário da convenção, o Brasil deveria definir um destino adequado ao mogno apreendido até novembro de 2003. Encerrado o prazo, toda a exploração passaria a ser feita com base em planos de manejo, com cotas para corte anual, certificação florestal e rastreamento no transporte, da floresta ao porto ou indústria. Por meio do Decreto 4.722/2003, ficou definido que a exploração do mogno deveria se dar de forma sustentável. O governo declarou moratória por cinco anos para o abate da espécie em áreas com autorização para desmatamento. Cerca de 80% do mogno nacional, até 2001, eram exportado para Europa e Estados Unidos. Estimase que, desde os anos 70, o Brasil tenha enviado ao exterior 4 bilhões de dólares em mogno, referentes a cerca de um milhão e meio de árvores, obtidas na sua maioria de forma predatória e insustentável. (Com agências)


14

De 12 a 18 de fevereiro de 2004

DEBATE BANCO CENTRAL

Uma tragédia anunciada César Benjamin

O

governo federal prometeu encaminhar neste ano ao Congresso o projeto que prevê a concessão de autonomia legal ao Banco Central (BC), a mais importante reivindicação estratégica do setor financeiro, que não foi aceita nem mesmo pelos dois Fernandos – o Collor e o Henrique – responsáveis pela implantação do neoliberalismo no Brasil. Se levada adiante pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, será o ápice da operação-desmonte do Estado nacional, abrindo uma situação política qualitativamente nova no país, pois dificilmente se pode imaginar que a necessária retomada de controle sobre o BC possa ser feita fora de um contexto de ruptura institucional. A irresponsabilidade do governo do PT nas suas relações com o BC vem de longe. Começa na nomeação de Henrique Meirelles para a presidência da instituição. Anunciada por Lula em Washington ainda em 2002, a decisão foi justificada pela necessidade de manter a credibilidade do Brasil junto ao sistema financeiro internacional. Meirelles, como se sabe, era presidente mundial do Banco de Boston (EUA). Ao assumir seu novo cargo em Brasília, continuou a receber – recebe até hoje – 750 mil dólares anuais de seus empregadores estadunidenses, que não por acaso mantêm em carteira o segundo maior estoque de títulos da dívida externa brasileira. Quando Meirelles assumiu, os títulos brasileiros valiam menos da metade de seu valor de face. Um ano depois, o valor desses títulos mais do que dobrou. É a este presidente de Banco Central que agora se quer garantir mandato fixo, tornando o BC um poder autônomo, desvinculado do poder político na nação. SURREALISMO

A justificativa para isso, dada pelo ministro Guido Mantega, é quase surrealista: “Havendo autonomia há uma perda de comando, uma diminuição do grau de ingerência do Executivo sobre o Banco Central e, portanto, sobre a política monetária. A vantagem é que ela dá ao mercado [financeiro] uma garantia de que a inflação tende a ser mais baixa, pois não poderá acontecer uma situação de o presidente da República pegar o telefone, ligar para o Banco Central e dizer ‘eu tenho eleição no ano que vem, abaixa aí as taxas de juros; não importa que tenha mais inflação; eu quero crescimento, quero aumento de emprego’.” Se Guido Mantega não existisse seria preciso inventá-lo. Pois, como sempre, sua fala ingênua explicita a questão-chave que outros preferem dissimular: o Brasil pode ou não pode autogovernar-se? Qualquer um pode entender o que está em jogo: dada autonomia ao BC, os governantes brasileiros,

eleitos pelo voto direto de milhões de pessoas, deixam de comandar a mais importante instituição formuladora e executora da política econômica no país. A questão central diz respeito ao equilíbrio de poderes no interior da sociedade brasileira. Banco Central autônomo representa mais poder para o sistema financeiro e menos poder para o Estado nacional visto como um todo. ARGUMENTOS RISÍVEIS

Na defesa da proposta há os argumentos risíveis e os mais sofisticados. Alguns ressaltam, por exemplo, que falam em “autonomia” e não em “independência”, pois o governo definiria a meta de inflação a ser perseguida em cada período, outorgando ao BC liberdade para persegui-la. João Sicsú, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, responde: “Os argumentos que contrapõem independência e subordinação são meros ‘bodes’. Nenhum economista sensato os defende. A alternativa à autonomia do BC é uma ação coordenada deste com o governo central, ação que teria o objetivo de auxiliar o Executivo a manter a estabilidade monetária e buscar o pleno emprego”. Um segundo argumento risível é o que associa BC independente e atração de capitais internacionais. A China não preenche esse requisito, mas recebe, de longe, a maior fatia de investimentos externos no mundo. A Argentina adotou uma versão radicalizada de BC independente e sofreu uma gigantesca fuga de capitais. Os argumentos mais sofisticados favoráveis à autonomia do BC podem ser divididos em dois grupos: aqueles que lançam mão das experiências estadunidense e européia, e dizem pretender nos aproximar delas; e aqueles que buscam razões na teoria econômica. Comecemos pelos primeiros, descrevendo as arquiteturas institucionais que prevalecem nos EUA e Brasil. NOS EUA E NO BRASIL

Nos Estados Unidos, o Banco Central (chamado Sistema de Reserva Federal, ou FED) é formalmente independente, mas essa independência é definida em lei de uma forma que o força a operar todo o tempo em articulação com o Departamento do Tesouro (correspondente ao nosso Ministério da Fazenda). O arranjo é muito inteligente. O FED é obrigado por lei a perseguir simultaneamente três objetivos: utilização plena da capacidade produtiva instalada, pleno emprego da força de trabalho e estabilidade de preços. O Tesouro, por sua vez, também por lei, é obrigado a cumprir o orçamento da União votado pelo Congresso e aprovado pelo presidente da República. Para isso, por meio de contas bancárias, recolhe tributos da sociedade e paga as despesas previstas no orçamento. Se, por qualquer motivo, as despesas orçamentárias superam o recolhimento de tributos, as contas ficam negativas, mas permanecem sendo movimentadas. Nesses casos, o Tesouro estará operando em déficit, coberto

por meio de conta de compensação alimentada pelo FED. As ordens de pagamento do Tesouro serão sacadas pelo público ou recolhidas às reservas bancárias. O aumento das reservas pressionará para baixo a taxa básica de juros. Agindo em estrita observância daqueles três objetivos acima definidos, cabe ao FED decidir se prefere enxugar essa liqüidez aumentada ou sancioná-la. Ele faz isso manejando a compra e venda de títulos no open market: vende títulos para recolher dinheiro ou compra títulos para injetar dinheiro. Assim, o FED regula a liqüidez da economia estadunidense e com ela a taxa de juros, de modo a buscar aqueles três objetivos, sempre dando cobertura à execução, pelo Tesouro, do orçamento aprovado pelos poderes democráticos da República – a Presidência e o Congresso. Isso mostra que, na prática, o FED permanece submetido ao poder político dos Estados Unidos. O caso brasileiro é o exato oposto. Embora o nosso Banco Central não seja formalmente independente (ao contrário do FED!), ele já é independente de fato (ao contrário do FED!!) e atua de forma permanentemente pró-cíclica (ao contrário do FED!!!), de modo a impedir a execução do orçamento da União (ao contrário do FED!!!!) e tendo como objetivo formal apenas a estabilidade de preços (ao contrário do FED!!!!!). ORÇAMENTO ESQUARTEJADO

Falamos em objetivo formal, pois a preocupação fundamental do BC brasileiro é garantir condições para rolar as dívidas financeiras do Estado. Aqui, tudo começa na definição das taxas de juros que o sistema financeiro considere adequadas para aceitar essa rolagem. Como o próprio BC garante a livre movimentação de capitais, os aplicadores financeiros ameaçam fugir a qualquer momento para o dólar. Assim, podem impor um alto prêmio para aceitar permanecer com seus ativos denominados em reais. Esse prêmio significa taxas de juros atrativas. Para suportar essas altas taxas, que realimentam a própria dívida, o Estado brasileiro necessita retirar do seu orçamento vultosos recursos. Assim, parte dos tributos cobrados pelo Estado à sociedade se esteriliza na forma do famoso superávit primário, que comprime todas as demais despesas previstas e o orçamento da União nunca pode ser cumprido. É esquartejado na boca do caixa para caber nos recursos que sobram depois que o Estado paga aqueles juros acordados entre o BC e o sistema financeiro. Para completar, o BC brasileiro (também ao contrário do FED!!!!!!) está proibido de financiar o Tesouro, que por isso não tem a possibilidade de operar em déficit. Resultado: o Brasil não pode fazer políticas econômicas anti-cíclicas e funciona sem orçamento.

Ao longo do ano, estabelece-se uma permanente briga de foice para definir quais gastos serão de fato efetuados pelo poder público e quais serão “contingenciados”. Dono da chave do cofre, o Ministério da Fazenda apequena e subordina os demais ministérios, e o Executivo apequena e subordina o Legislativo. Na prática, o Estado brasileiro já é comandado por um Banco Central independente, opaco, intimamente ligado ao sistema financeiro, permanentemente contracionista, inimigo do crescimento e socialmente irresponsável. ARGUMENTOS TEÓRICOS

Vamos olhar agora para os argumentos teóricos favoráveis à autonomia do BC. Eles defendem que o crescimento econômico não é influenciado por variáveis monetárias e que os agentes agem segundo as chamadas “expectativas racionais”, sendo por isso capazes de antecipar (e neutralizar) as ações das autoridades econômicas. Deixada livre de interferências, a economia de mercado tenderia a um ponto de equilíbrio em que oferta e demanda globais se encontrariam, ponto correspondente à plena utilização dos fatores de produção disponíveis, inclusive a força de trabalho. Nessa concepção, políticas monetárias expansionistas não têm efeito a longo prazo sobre as variáveis reais – produto e emprego –, mas apenas sobre as variáveis nominais, como o nível de preços. Daí a idéia de subordinar a ação do BC, apenas, a metas de inflação, isolando-o das pressões da sociedade por crescimento e emprego. Estabelece-se então a seguinte seqüência: (a) o único parâmetro relevante para a ação do BC é a estabilidade de preços; (b) o único instrumento relevante para obter a estabilidade de preços é o manejo da taxa de juros; (c) as taxas de juros, por sua vez, devem ser usadas tendo em vista, apenas, o controle dos preços. O melhor instrumento para operar dessa forma é, de fato, um BC independente que realize políticas monetárias sempre com viés contracionistas, definidas unilateralmente,

de modo a retirar graus de liberdade das demais autoridades econômicas. Problemas de crescimento e emprego desaparecem do horizonte. São deixados para o mercado. INTERESSES DO MERCADO

Todas as afirmações teóricas feitas acima sempre foram contestadas e são politicamente orientadas para fazer prevalecer os interesses do sistema financeiro sobre os interesses da sociedade. As diferentes políticas monetárias não são neutras, pois alteram a rentabilidade relativa das diversas formas de ativos em que a riqueza se distribui. Isso conduz a economia real a assumir diferentes configurações. É clara essa necessidade de coordenar as políticas monetária, cambial e fiscal, todas elas subordinadas a metas de desempenho econômico e social definidas pelo poder político da nação. Por isso o Banco Central não pode ser autônomo. Dizemos mais: ele nunca é autônomo. Subtraído do controle do Estado, ele passa a gravitar na órbita do sistema financeiro nacional e internacional. Impedir que isso seja fixado em lei, tornando-se a partir daí um padrão impermeável à decisão política da sociedade, é o mais importante foco de resistência, hoje, ao avanço do neoliberalismo no Brasil. A estabilidade de preços é um dos parâmetros relevantes para a ação do BC; o manejo das taxas de juros é um dos instrumentos para obtê-la; portanto, o uso desse instrumento deve ser calibrado e levar em conta as demais variáveis da economia nacional. Entre os economistas não vinculados ao mercado financeiro há uma esmagadora opinião contrária à autonomia legal do BC. Se, à revelia dessa opinião qualificada, o governo enviar o projeto ao Congresso, todas as fronteiras da prudência e da decência terão sido ultrapassadas. É de alta traição aos interesses da nação que se trata. César Benjamin é pesquisador do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e integrante da Consulta Popular


15

De 12 a 18 de fevereiro de 2004

AGENDA NACIONAL

A linguagem escravizada

PERNAMBUCO CENSO CINEMATOGRÁFICO A Cinemateca Brasileira coloca à disposição, em sua página na internet (www.cinemateca.com.br), os dados obtidos no Censo Cinematográfico Brasileiro no período de 1897 a 1970. O trabalho de pesquisa foi concluído em dezembro. São 21.300 registros, com informações sobre longas e curtas-metragens, cinejornais e filmes domésticos do país. O Projeto Censo possibilitou o exame técnico de seis mil rolos de filme e a duplicação de 240 mil metros de matrizes preto e branco, em 35mm, que corriam risco de desaparecer.

2º ENCONTRO INTERNACIONAL SOBRE O TRÁFICO DE SERES HUMANOS Dias 18 e 19 de março O evento terá a presença de diversos especialistas no tema. A organização está sob responsabilidade do Instituto Latino-Americano de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, em parceria com o governo de Pernambuco e a Fundação Joaquim Nabuco. As inscrições vão até 12 de março. Mais informações: (81) 3221-3872, iladh@hotmail.com

CEARÁ SEMINÁRIO - MOVIMENTO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS Dia 18, das 8h30 às 17 h Promovido pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), o seminário estadual “Encare o MNDH” tem como objetivo fortalecer a rede de organizações sociais de defesa e promoção dos direitos humanos no Ceará, bem como a disseminação dos valores éticos e solidários. Também será definida a pauta política para a Assembléia do MNDH-NE, que acontecerá em Recife, dias 4, 5 e 6 de março. Durante o seminário, o presidente da regional Nordeste, Manoel Messias da Silva, fará uma análise de conjuntura sobre os Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (Dhesc). Estarão presentes representantes de 30 entidades filiadas ao movimento no Estado. Local: Auditório da Assembléia Legislativa do Ceará, Av. Desembargador Moreira, 2807, Fortaleza Mais informações: (85) 497-2162, 9131-0137

MINAS GERAIS EXPOSIÇÃO SOBRE CANUDOS Até 25 de abril A mostra reúne imagens da região de Canudos, na Bahia, realizadas por diversos fotógrafos. Há imagens feitas desde Flávio de Barros – único profissional a registrar a Guerra de Canudos, em 1897 – a Cristiano Mascaro, que documentou o local em 2002. Grátis. Local: Instituto Moreira Salles, Avenida Afonso Pena, nº 737, Belo Horizonte Mais informações: (31) 3213-7900

PERNAMBUCO TEATRO PARA JOVENS A Organização Graúna realiza oficinas de teatro e dança com jovens de 13 a 16 anos matriculados na rede pública de ensino. As aulas de dança acontecem pela manhã e as de teatro, à tarde, todas com quatro horas de duração. As pessoas interessadas devem ir à Graúna, que fica na Rua da Boa Hora, 142, Viradouro, para fazer a inscrição. É preciso levar cópia de certidão de nascimento ou identidade, uma declaração da escola e cópia do comprovante do Bolsa Escola para

quem nele está inscrito. Mais informações: (81) 3494-2086

RIO DE JANEIRO CURSO - ESPECIALIZAÇÃO EM ATENDIMENTO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA De 18 de março a 15 de julho Curso de especialização teóricoprática sobre violência doméstica contra crianças e adolescentes, proporcionando a capacitação de profissionais para atuar junto a essa realidade. Local: R. Marquês de São Vicente, 225, casa XV, Gávea, Rio de Janeiro Mais informações: 0800-909556 FOTO-DOCUMENTÁRIO “FOME DE ÁGUA” Até 29 Imagens que associam seca, miséria e fome são mostradas no foto-documentário idealizado pelo ambientalista e fotógrafo Henrique Cortez. Através de 70 fotografias, Henrique quer sensibilizar a população para os programas de desenvolvimento do semi-árido, erradicação da miséria e, em especial, o Programa Fome Zero. Outro objetivo é oferecer maior entendimento sobre as questões que atingem a região do agreste, como as discussões relativas ao Projeto de Transposição do Rio São Francisco. As imagens foram registradas a partir de expedição ao longo da bacia do rio Piranhas-Açu, que nasce na Serra do Bongá, na Paraíba, e é o mais importante do Rio Grande do Norte. Represado pela Barragem Engenheiro Armando Ribeiro Gonçalves, forma um grande lago que abastece várias cidades da região, irrigando áreas de cultivo de frutas tropicais. A bacia hidrográfica do Rio Piranhas-Açu será uma das receptoras na transposição das águas do São Francisco. Local: Centro Cultural dos Correios, Rua Visconde de Itaboraí, nº 20, 3º andar, Centro, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2503-8770

SÃO PAULO MOSTRA “CARUSO ENCONTRA PRESTES MAIA E PEDE PASSAGEM”

agenda@brasildefato.com.br

Até 24, de segunda a sábado, das 11h às 17h A mostra marca a retrospectiva dos 35 anos de trajetória do cartunista Paulo Caruso. Desenhos originais e reproduções em plotters estarão reunidos, retratando o humor característico do autor. Entrada franca. Local: Galeria Prestes Maia, Praça do Patriarca, s/nº - Centro, São Paulo Mais informações: (11) 3101-7666 PROJETO ARTETERAPIA Até 28 O projeto é desenvolvido no Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP e atende atualmente 60 pacientes por semana (crianças, adultos e idosos), com os mais diversos diagnósticos, inclusive pacientes portadores de deficiência física. Na mostra, o público pode conhecer o trabalho desenvolvido no projeto e é convidado a interagir em oficinas de arte, visitas monitoradas e palestras sobre “o que é arteterapia”. A mostra conta com cerca de 100 trabalhos realizados não só por pacientes, mas também por médicos e demais componentes do projeto, como forma de integração e redução do preconceito em relação à doença mental. Local: Biblioteca Alceu Amoroso Lima, Avenida Henrique Schaumann, nº 777, São Paulo Mais informações: (11) 3069-6267 e 3081-7233 SEMANA JURÍDICA De 1º a 5 de março, às 19h Durante a atividade promovida pelo departamento de cultura e eventos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) - secção São Paulo serão debatidos temas como reforma sindical e comercialização de alimentos transgênicos Inscrição: duas latas de leite em pó integral Local: Salão Nobre da Ordem dos Advogados do Brasil, Praça da Sé, 385, 1º andar, Centro, São Paulo Mais informações: www.oabsp.org.br CURSO “LEGISLAÇÃO PARA TERCEIRO SETOR” De 26 a 29 de março. Inscrições até dia 1º Promovido pelo Centro Brasileiro de Biologia da Conservação (CBBC), do Instituto de Pesquisas

“As nações imperialistas lutam para impor suas línguas e, através delas, impor seus valores às nações dominadas, assim como as classes dominantes esforçam-se para que os dominados submetam-se plenamente a uma ditadura lingüística, que facilita e consolida a ditadura social e econômica.” É possível que isso nunca tenha acontecido de forma tão contundente. No mundo, o imperialismo estadunidense impõe, em todos os cantos, sua cultura, seus costumes, suas crenças religiosas e filosóficas, sua língua. No nosso país, os meios de comunicação buscam padronizar os conceitos, os costumes, os falares, a cultura, destruindo o que antes existia como manifestação popular autêntica. Além disso, “... as classes dominantes apóiam-se sobretudo no consenso sobre a justiça, a eqüidade, a inevitabilidade e a naturalidade da sociedade de classes para manterem os explorados na submissão”, tentando fazer com que acreditemos que a sociedade de classes seja eterna e que não haja mais condição de lutas por mudanças. Neste contexto inserem-se

Ecológicas (IPÊ), o curso terá carga horária de 16 horas. As aulas pretendem enfatizar os pontos mais importantes para a boa administração das organizações não-governamentais, expor as principais ferramentas, bem como esclarecer quais são as obrigações legais para a sua atuação. Local: Rodovia Dom Pedro I, km 47, em Nazaré Paulista Mais informações: (11) 4597-1327 CURSO “GESTÃO E MEDIAÇÃO DE PROJETOS SOCIOEDUCACIONAIS” De março a novembro - inscrições até dia 13 O curso é destinado a profissionais do terceiro setor, instituições privadas e públicas, que desenvolvem trabalhos educativos nas comunidades ou têm interesse na área. O método de ensino privilegia as técnicas vivenciais, como os jogos cooperativos, dramatizações, simulações, dinâmicas de grupo, visitas, estudos de caso, elaboração de projetos e ainda workshops, debates e seminários. Mais informações: (11) 6647-5151 - ctg@sp.senac.br. EXPOSIÇÃO COM OBRAS DE PABLO PICASSO Até 2 de maio, de terça a sextafeira, das 9h às 21h; sábados e domingos, das 10h às 21h A exposição apresenta o percurso de Pablo Picasso, pontuado cronologicamente: 125 trabalhos pertencentes ao Museu Picasso de Paris, representativos de todos os momentos de sua produção. A pintura predomina, mas há também desenhos, guaches, gravuras e cerâmicas, que compõem um

dois ensaios que tratam da linguagem como meio de submissão do trabalhador, perpetuando-o numa situação análoga à escravidão e mostrando que “... a língua é palco privilegiado da luta de classes...”. A linguagem pode e deve ser transformada em uma ferramenta de luta. CONFIRA. A linguagem escravizada Florence Carboni – Mário Maestri Editora Expressão Popular 96 páginas – R$ 6 Rua Abolição, 266 – Bela Vista, São Paulo, SP – Fones (11) 3105.9500 – 3112.0941 www.expressaopopular.com.br

itinerário que se inicia nos anos de juventude, transita na maturidade e atinge até os últimos anos de sua produção. Cada um dos oito módulos é antecedido por um texto. O público conta também com o auxílio de monitores presentes em todas as salas da exposição. Preços: R$ 10/ R$ 5 (meia entrada). Entrada gratuita para menores de cinco anos, pessoas com mais de 65 anos, aposentados e deficientes físicos. Local: Parque do Ibirapuera, Pavilhão da Oca, São Paulo Mais informações: (11) 3253-7007 EXPOSIÇÃO - ARTE DA ÁFRICA Até 28 de março Objetos da cultura africana podem ser apreciados nas 150 peças de arte, criadas entre o século 15 e 20 em 31 países africanos. Entre as obras expostas foram escolhidas cinco peças que serão estudadas pelos visitantes: a Harpa da República do Kongo (século 19), a Estátua de Nkishumweno (século 19), a Porta Arcos de Luba (século 19) e a Cabeça Humana da Nigéria (entre os séculos 12 e 15). Para aproveitar melhor a visita, cada estudante receberá um caderno de anotações que contém um glossário e questões a serem discutidas durante o percurso. A exposição conta com a ajuda dos 12 monitores, todos estudantes universitários, explicando a história de cada peça e sua importância. As informações vieram do Museu Etnológico de Berlim. Entrada gratuita. Local: R. Álvares Penteado, 112, Centro, São Paulo Mais informações: (11) 3113-3649


16

CULTURA

De 12 a 18 de fevereiro de 2004

TEATRO

Semear um amanhã sem exclusão social Tatiana Azevedo da Redação

E

ra 21 de dezembro, dia do primeiro mutirão. Ali, perceberam que naquele chão argiloso não se poderia plantar coisa alguma. Em pouco mais de um mês, aquelas mesmas pessoas, depois de adubar o solo, plantam finalmente a primeira muda das muitas árvores que vão embelezar aquele terreno abandonado no Jardim Triana, zona leste de São Paulo. Porém, mais que um simples enfeite, elas terão outra função. O “Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes”, como a grande maioria dos grupos de teatro no país, luta contra a falta de espaço e oportunidade para desenvolver sua arte e devolvê-la à sociedade. Há cerca de três anos trabalhando na zona leste de São Paulo, conquistou uma sala na Escola Municipal José Bonifácio, no Jardim Triana, onde ensaia e ministra oficinas. “Como ocupamos um espaço público, a nossa contrapartida vem em forma de aulas de teatro e canto, além dos debates com a comunidade. Acreditamos em uma dinâmica social transformadora”, explica Luciano Carvalho, um dos atores do Dolores. Fundado em 1999, o grupo procura suprir a deficiência da arte na região. “Da Mooca até a Cohab 2, existe apenas um teatro”, revolta-se

Fotos: Erika Viana

Na periferia da capital paulista, atores unem-se à comunidade para plantar árvores que abrigarão futuro teatro

Mutirão da Arena Arbórea, no Jardim Triana, zona leste de São Paulo

Luciano. “Na zona leste, a região mais populosa da cidade, não existe vida cultural.” Nesse sentido, a proposta do Dolores é descentralizar a oferta artística, a produção cultural e mesmo o pensamento sobre a arte.

PLANTANDO ÁRVORES As atividades do grupo vão além dos ensaios. Entre saraus e eventos voltados para o público infantil, a comunidade é sempre chamada para participar. “Nas festas juninas, nós apenas organizamos a quadrilha. Convidamos os moradores a levarem as suas barracas e a festa acontece com a cooperação de todos”, conta a atriz Erika Viana.

Agora, os integrantes do Dolores e a comunidade local estão em ação com um novo projeto. No mesmo terreno da escola onde o grupo atua, ao fundo, um semicírculo de

12 metros de diâmetro está sendo demarcado por árvores. As mudas, originárias da Mata Atlântica, servirão de isolamento acústico para o projeto Arena Arbórea. Trata-se de

um teatro de arena ao ar livre, com uma pequena arquibancada de toras de madeira. Uma metáfora justifica a iniciativa: as árvores crescerão com o grupo, e entre as espécies não existirá competição, mas cooperação. Além disso, esse reflorestamento trará os passarinhos que se escondem do caos urbano. A integração total com o espaço não será sentida apenas pelos atores. Membros da comunidade também podem se enxergar como parte da Arena, pois o projeto só é possível graças aos mutirões em que todos trabalharam o solo, adubaram-no e plantaram suas pequenas mudas. “Queremos fomentar essas ações para que as pessoas da região se apropriem tanto de seu espaço quanto de seus direitos”, diz Erika. José Roberto Machado, jardineiro e morador local, acha gratificante essa participação. “Gosto de fazer alguma coisa pelo próximo, e gosto de sentir na pele a terra crescer”. É um projeto de parceria entre entidades locais, como o Centro Cultural Vento Leste e o Centro Desportivo Municipal Cidade Patriarca, a que pertence o terreno, e com o apoio da subprefeitura da Penha, que cedeu algumas espécies para serem plantadas. Assim, o Dolores dá vida a um teatro e, mais que isso, a uma comunidade carente de iniciativas culturais.

ARTES PLÁSTICAS

Sérgio Ferro transforma tortura em formas e cores Tatiana Merlino da Redação

BF – Quando e como começou a sua militância política? Ferro – A militância política efetiva começou nos primeiros anos de faculdade, no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Mas já torcia pela esquerda antes.

um trabalho artístico de espírito sóciopolítico durante a ditadura militar? Ferro – Influenciou duplamente. Na temática, fiz quadros sobre greves, revolução etc. Mas o que mais me ocupou foi a questão da linguagem: como chegar aos excluídos da cultura erudita – mas sem ceder e cair num populismo fácil. Por respeito a eles, havia que ser exigente quanto a racionalidade dos meios plásticos. A forma é a aparicão do conteúdo, sua essência. Seu rigor impõe o rigor da forma. Esta questão continua norteando meu trabalho: a procura de uma linguagem popular consciente de si mesma, sem as facilidades que escondem desprezo. Por isso virei marginal para a pintura oficial.

BF – De que forma ela influenciou a sua produção? Como era fazer

BF – Você produziu durante o tempo em que esteve preso? Co-

Brasil de Fato – Como começou a sua carreira de artista plástico? Sérgio Ferro – Não me lembro de ter começado; algum vírus me mordeu no berço. Sempre desenhei.

Quem é Arquiteto de formação, o artista plástico paranaense Sérgio Ferro vive há mais de 30 anos na França, onde leciona História da Arte na École d´Architecture de Grenoble, tendo sido professor de pintura na École de Beaux Arts de Grenoble, em 1979 e 1980. Militante da organização de esquerda Aliança Libertadora Nacional (ALN) durante a ditadura militar, foi preso em 1970 em São Paulo, e cumpriu pena no Presídio Tiradentes. Estudioso da obra de Michelangelo, Ferro é um dos artistas brasileiros de maior reconhecimento internacional.

mo a prisão e a tortura afetaram sua obra? Ferro – Depois do pesado tempo das torturas, foi possível pintar um pouco, apesar das condições dificeis. Tínhamos um ateliê quase coletivo no Tiradentes. A tortura deixa lesões, algumas no corpo, muitas mais para dentro. É dificil dizer como isso se manifesta. Mas sei que faço muitos corpos atormentados, partidos – mais próximos do peso que do ninho. BF – A dor é um tema sempre presente em seu trabalho. Esse sentimento é fruto da sua trajetória pessoal? Ferro – Não somente. Penso que arte é o nome do trabalho livre – e todo trabalho, qualquer um, pode ser livre. Pode e deveria. Mas não é assim. Só o que chamamos arte Arquivo JST

O artista plástico Sérgio Ferro exilou-se na França desde que foi libertado do presídio Tirandentes, em 1971. Quando foi preso, ele era arquiteto, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e tinha uma atuação marcante na produção de idéias e de experiências em arquitetura nos anos 60 e 70, presentes em suas publicações Arquitetura Nova e O Canteiro e o Desenho. Em entrevista ao Brasil de Fato, Ferro conta como a tortura sofrida durante a prisão influenciou seu trabalho – ele passou um ano preso e levou choques por um mês seguido –, como foi produzir durante a ditadura militar, e fala sobre “como chegar aos excluídos da cultura erudita” . O artista representou em parte de sua obra a tortura em formas e cores. “A tela é uma projeção do corpo e as suas feridas também estão em meus quadros”.

Ilustrações de Sérgio Ferro realizadas especialmente para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

é, hoje, teoricamente livre. Ora, liberdade no meio da não-liberdade não é liberdade, mas privilégio. A arte consciente sabe (ou deveria saber) que sua liberdade se corrompe por isso. Daí, na arte que se respeita, a dor de não poder corresponder honestamente a seu próprio conceito, dor da contradição amarga e corrosiva.

uma forte influência do Renascimento, e continua a trabalhar a pintura com vigor. Qual é a sua avaliação a respeito? Ferro – Quando o concretismo avançou no seu proselitismo agressivo, Drummond compôs um poema irônico: a máquina de escrever não abolira a poesia escrita a mão. Os inquisidores que condenam tudo o que não é instalação e companhia, ficarão (no melhor caso) na história como o Torquemada, um pobre fanático obtuso e monstruoso –, só que mais ridiculos: são, sem o saber (talvez) os representantes de uma ofensiva comercial em que só a nova diferença conta. Uns coitados. Ao contrário do que dizem, toda história (da arte também) se inscreve no presente, cheia de possibilidades. Nosso trabalho não é enterrála – mas recolher criticamente, o que poderá nos servir, separando o racional das deformações que o privilégio provocou.

BF – Qual o papel que a sua experiência política no Brasil teve no seu trabalho desenvolvido na França? Ferro – Quando lá cheguei, fiz um grande mural em memória de Marighella, Lamarca, Yara, Toledo etc. Antes de sua instalação na rua, foi exposto no Museu de Arte de Grenoble. Ganhei estima como artista, artigos, entrevistas – e me senti como um urubu. Meu mural não serviu para nada aqui. Não pintei mais muitos quadros “políticos”. Fiquei na procura da linguagem popular rigorosa, afiando meus instrumentos para depois.

BF – A arte pode ter uma função política e social ou ela é um fim em si mesma? Ferro – Acho que não há razão para o “ou”. Só é efetivamente livre o que contém seus fins em si mesmo, sem nenhuma heteronomia. O que não significa se isolar. Ao contrário. Para ser livre, também há que sair de si, perder-se no outro. E voltar a si incorporando o outro, que assim se faz parte de si. Só é livre quem assume por si a liberdade de todos. Tudo isto está contido no trabalho livre que deveria ser a arte. Essa é a sua dimensão política maior – que só corresponderá a seu conceito com a liberdade radical de todos. Sua essência é, necessariamente, social. Por isso hoje mostra dor, esta deformada, desfigurada.

BF – Muitos críticos afirmam que na arte contemporânea, a pintura é uma expressão superada. Você é um estudioso da obra de Michelangelo, sua produção tem

BF – E hoje, você continua atuando politicamente? Ferro – Só através da pintura. E do apoio distante, mas entusiasmado ao MST.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.