Ano 2 • Número 51
R$ 2,00 São Paulo • De 19 a 25 de fevereiro de 2004
Confisco de terra para punir escravidão France Presse
Em 2004, o Brasil ainda tenta criar leis mais duras para conter uma prática abolida legalmente há mais de 100 anos
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onos de terras flagrados explorando mão-de-obra escrava terão suas propriedades confiscadas e revertidas para assentamentos da reforma agrária. A aprovação do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 438, que estabelece essa punição, dia 11, pela Câmara dos Deputados, foi resultado da pressão exercida pela sociedade civil – em especial depois do assassinato de três fiscais do tra-
balho em Unaí (MG), dia 28 de janeiro. Os movimentos populares consideram a medida eficaz, uma vez que mexe com o bolso dos criminosos fazendeiros escravocratas. E esperam que a lei seja cumprida. “Demos um passo importante porque vamos colocar também o governo na berlinda”, avaliou o advogado Aton Fon, integrante do Movimento Humanos Direitos. Pág. 3
Empresário denuncia jogo sujo da Coca-Cola
Alderon Costa/ Rede Rua
Equatorianos realizam protesto contra o presidente Gutiérrez no dia de Mobilização Nacional pela Vida
Desemprego precisa de solução urgente Págs. 2 e 14
Com impunidade, a pistolagem é a cara do país Pág. 3
Emboscada com tiroteio atinge índio Pág. 6
E mais: PERU – Manifestantes querem antecipar as eleições e pôr fim ao mandato do presidente Alejandro Toledo, sob suspeita de manter ligações com a máfia peruana e responsabilizado pela crise do país. Pág. 10 VENEZUELA – Para “fomentar a democracia no mundo”, EUA admitem financiar a oposição que luta para validar as assinaturas do firmazo, sob suspeita de fraude, e revogar o mandato de Hugo Chávez. Pág. 9 CRISE NO PT – Em meio às comemorações dos 24 anos de fundação, a denúncia de tráfico de influência envolvendo o ex-assessor do ministro José Dirceu (Casa Civil) divide opiniões sobre ética e futuro do partido. Pág. 7
Há 16 anos, o bloco Oriashé apresenta um Carnaval alegre em São Paulo
Há meses, a Dolly Refrigerantes vem fazendo pesadas acusações contra a Coca-Cola, que mostram como a transnacional elimina a concorrência e as promíscuas relações que estabelece com o Estado. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Laerte Codonho, presidente da empresa, fala sobre o lobby que envolve a Secretaria de Direito
Econômico e parlamentares, que trabalha a favor da Coca-Cola. As acusações se tornaram públicas quando a Rede TV! veiculou uma fita na qual um ex-diretor de aquisições estratégicas da CocaCola, contava como comandava um plano para acabar com a Dolly, traçado pela matriz, sediada em Atlanta (EUA). Pág. 8
Mobilizações pela renúncia de Gutiérrez
Brasil é uma lavanderia de dinheiro ilegal
Marchas e bloqueios de estradas tomaram o Equador, dia 16, em defesa da renúncia do presidente Lucio Gutiérrez. Os protestos, liderados pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), querem o fim do pagamento da dívida externa e se opõem às negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Pág. 9
O Banco Central esconde da Receita dados sobre empresas e bancos investigados por sonegação, lavagem e desvio de dinheiro para o exterior, além de fraudes fiscais. Assim, o BC, autônomo, autoriza remessas ilegais de bilhões de dólares ao exterior, por pessoas não identificadas. E a Receita não sabe de nada. Pág. 5
No Carnaval, as ruas são o palco do povo
Pacifistas pedem fim da corrida bélica dos EUA
Na semana de Carnaval, o brasileiro bota o bloco na rua e recupera o verdadeiro sentido da festa popular, em oposição ao poder de uma indústria que movimenta milhões de reais. Em São Paulo, o Bloco Afro Feminino Oriashé, composto por mulheres, alia o trabalho social à música. Reúne cerca de 70 percussionistas, de sete a 70 anos, que homenageiam os orixás e líderes feministas, símbolos da resistência. No Rio de Janeiro, a alegria passa longe do Sambódromo e se espalha em dezenas de blocos, que se destacam pela irreverência e pela crítica política. Págs. 13 e 16
Em Porto Alegre (RS), os participantes do Encontro pela Paz e contra a Guerra condenaram os planos de guerra dos Estados Unidos. O evento, realizado dias 11 a 13, aconteceu no mesmo período em que o presidente George W. Bush, dos EUA, autoproclamou-se “senhor das guerras”. O Encontro propôs uma articulação internacional permamente dos movimentos sociais e pacifistas, pois, segundo o economista argentino Jorge Beinstein, “é necessário um projeto de superação do capitalismo que aproveite a riqueza dos movimentos de resistência do presente”. Pág. 11
Movimentos exigem trabalho para todos A luta por trabalho para todos os cidadãos será a principal bandeira dos mais representativos movimentos sociais brasileiros. Dias 11 e 12, as organizações definiram desafios e atividades da campanha para 2004. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) vai relançar a Semana Social, mobilização
para discutir os rumos do Brasil. “Temos de rearticular a sociedade. Muitos acharam que um governo iria cumprir a tarefa da cidadania”, diz dom Demétrio Valentini. Os bispos e o movimento negro anunciaram que vão integrar a Coordenação dos Movimentos Sociais. Pág. 6
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De 19 a 25 de fevereiro de 2004
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Tiago Rodrigo Dória • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Bernardete Toneto, 5555 Marilene Felinto, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, 5555 Natália Forcat, Nathan, Ohi • Diretor de Arte: Valter Oliveira Silva • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Bruno Fiuza e Letícia Baeta 55 Programação: André de Castro Zorzo 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: FolhaGráfica 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
CARTAS DOS LEITORES SAUDAÇÕES Parabéns pela iniciativa. Sou professora de História do ensino médio e recomendarei a leitura desse jornal corajoso. Wanda Regina Rodrigues por correio eletrônico BRASIL PRIVATIZADO O Brasil quase todo privatizado que Fernando Henrique legou a Lula apresentou, no final do ano passado, um crescimento econômico pouco maior que 0%, uma inflação de aproximadamente 10% e uma dívida pública que, apesar de todos os esforços do governo, se revelou sufocante e impagável. Enquanto isso, a China, o país mais estatizado do mundo, apresentou no mesmo período um crescimento de quase 10%, uma inflação de 1,2% e um nível de reservas em moeda estrangeira de mais de 400 bilhões de dólares (o segundo maior do mundo). Não fosse a permanência da Petrobras sob controle do Estado, fazendo crescer a produção mineral e renascer a indústria naval ao encomendar mais de 20 navios; e o Banco do Brasil financiando a agricultura, o desastre causado no Brasil por FHC e companhia teria sido ainda mais terrível. Benjamin Almeida Cezar São Paulo (SP) OPOSIÇÃO RADICAL Pessoalmente avalio o jornal Brasil de Fato muito azedo. Essa oposição radical e sistemática contra o governo Lula não ajuda a dar o “salto de qualidade” estrutural. O inimigo comum a malhar é o neoliberalismo. Com amigos
assim, não precisamos de inimigos. Os gorilas de sempre estão vibrando com vocês: eles nem precisam combater o governo atual. Já tem quem o faz, e competentemente. Análises e apreciações que vêm publicando no jornal deveriam ser documentação de uso interno, para busca de alternativas viáveis, progressivas, levando em conta a governabilidade do país. Espero não ter que dar razão ao povo que costuma dizer: “Todos os políticos são corruptos, Lula também”. Em mim ainda não morreu a confiança de um outro Brasil possível com Lula. Fraternidade São João Evangelista Santa Maria (RS) CONTAS DE ÁGUA O governo do PT precisa dar todo o seu apoio ao projeto que corre na Câmara Federal para individualizar as contas de água nos prédios de apartamentos. Com a escassez de água, que tenderá a aumentar daqui para a frente, urge que cada condômino pague pelo que consumir, estimulando a responsabilidade ecológica e rateio justo de gastos, valores que o PT sempre defendeu. O governo tem aí uma oportunidade de ouro para ensinar o nosso povo a viver em comunidade, eliminando a situação atual, em que alguns poupam sem prêmio enquanto outros esbanjam sem prejuízo. Com medidas desse gênero, o governo Lula também legará ao seu sucessor, quem quer que seja, um Brasil mais justo. Reny Barros Moreira São Paulo (SP)
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NOSSA OPINIÃO
Desempregado não pode mais esperar
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esta edição, Brasil de Fato traz na seção Debate (pág 14) duas análises sobre o desemprego no Brasil. Ambas mostram a gravidade de um problema para o qual o governo Lula não parece estar suficientemente atento, apesar da retórica de diversos integrantes do primeiro escalão e do próprio presidente. Se as estimativas de crescimento econômico para 2004 que estão sendo divulgadas forem corretas – taxas entre 3,5% e 4% do Produto Interno Bruto – , a verdade é que este será mais um ano perdido para os milhões de desempregados brasileiros. Vários economistas já apontaram que a capacidade ociosa de praticamente todos os setores da economia ainda é muito grande e que, desta maneira, as projeções de crescimento assinaladas acima não serão suficientes para gerar a abertura de vagas de trabalho na mesma proporção. No fundo, o centro da questão é que a atual política econômica adotada pelo governo Lula não tem entre as suas preocupações basilares o emprego, mas a taxa de inflação e o superávit primário, estipulados nas
metas acertadas com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Para cumprir essas metas, por um lado a autoridade monetária adota uma política contracionista, que impede um crescimento econômico mais arrojado; e, por outro, o governo desvia os recursos que poderia gastar em políticas de geração de emprego ou mesmo nas chamadas políticas compensatórias, para minimizar o sofrimentos dos que estão fora do mercado de trabalho, e os utiliza no pagamento de juros e serviços da dívida externa. Assim, enquanto o objetivo do governo Lula for cumprir as draconianas metas de inflação e superávit primário estabelecidas por burocratas do Banco Central, Ministério da Fazenda e FMI, metas que, na realidade, apenas agradam ao mercado financeiro local e internacional, não há a mais remota chance de o país conseguir sanar o problema do alto desemprego, que se desdobra em aumento da violência nos grandes centros urbanos, precarização do mercado de trabalho, aumento da informalidade e tantas outras chagas
que afetam o dia-a-dia dos brasileiros. A atual política de metas significa uma barreira intransponível para o desenvolvimento soberano e sustentado da Nação. O que o governo Lula precisaria fazer é inverter completamente a lógica da sua política econômica. As metas deveriam ser o pleno emprego e aumento da renda dos trabalhadores (e, decorrentemente, da poupança interna). O que o país precisaria debater – e sem hipocrisia – é qual a taxa de inflação aceitável para que o crescimento e a geração de empregos aconteçam logo. O desempregado não pode esperar. Cada dia sem trabalho representa não apenas a ruína financeira, mas a perda de auto-estima, o abatimento e a sensação de derrota permanente. O presidente Lula, que já esteve desempregado, conhece bem este drama. Precisa se convencer – ou ser convencido – de que não é retirando direitos trabalhistas e crescendo a taxas medíocres que vai resolver a questão do trabalho no Brasil. É mudando a política econômica, e com urgência.
FALA ZÉ
OHI
CRÔNICA
Cidade de Deus Luiz Ricardo Leitão Na abertura do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, as personagens estão à beira do rio, relembrando sua infância naquele que um dia fora o cenário idílico de tantas brincadeiras e aventuras, entre o bosque de eucaliptos e o goiabal, mas que agora parecia dissolver-se na bruma pesada da realidade. Busca-pé queria ser fotógrafo, mas a mãe insiste em convencê-lo de que o único futuro plausível para quem não tinha dinheiro era entrar para a Marinha ou a Aeronáutica. “Eram infelizes e não sabiam”, sentencia ele com rara lucidez, observando lá longe os edifícios imponentes da Barra da Tijuca. Enquanto o rico ia para Miami, eles chapinhavam nas valas abertas do conjunto e bebiam “laranjadas aguadas-açucaradas, que não eram tão gostosas assim”. Sob a fresta da ficção, o autor desconstrói o mais cínico dos lemas da pós-ditadura, propalado pelo PDS de Paulo Maluf & Cia. em seus programas eleitorais (“Eu era feliz e não sabia”). Na primeira cena de Cidade de Deus, o filme dirigido por Fernando Meirelles, não há espaço para nostalgia ou reflexão. A câmara segue, ágil e trepidante, a fuga alucinada de uma galinha, perseguida a tiros pela turma do traficante Zé Pequeno, por não aceitar o destino de ensopado que a panela lhe reservava. Busca-pé é surpreendido pelo episódio e se vê diante da buliçosa ave, com o bando
à sua frente, armado até os dentes, e os policiais às suas costas, também de armas apontadas em direção à quadrilha. O livro e o filme se insinuam por trilhas diversas em nosso imaginário. O romance pode ser lido pouco a pouco, com eventuais pausas para digestão. A película não nos permite contemplação. O fenômeno não é novo. Hollywood o conhece de sobra: Tarantino e seu badalado Pulp Fiction, ou o senhor governador Schwarznaeger e o Exterminador do Futuro. Se Glauber Rocha e o Terceiro Mundo geraram a estética da fome, os estúdios de Los Angeles também sabem ditar paradigmas da sétima arte. Indicado para quatro estatuetas do Oscar, fato absolutamente inédito para um filme de língua nãoinglesa, Cidade de Deus parece sucumbir a essa estética da violência, tão ao gosto do Império do Norte, cujos governantes se esmeram em promover guerras espetaculares em ritmo de videoclipe, sob a vigilância atenta das câmeras CNN de desinformação continuada. Afinal de contas, não foram em vão as décadas de Paidéia audiovisual de Washington e Hollywood: graças a ela, o senhor Colin Powell pôde entrar na ONU convicto de que uma simples projeção de slides seria suficiente para justificar qualquer mentira sobre as armas quími-
cas do Iraque, já que o público ianque, idiotizado ao longo de séculos, nada aprendeu com São Tomé: se a TV mostra, ele crê... Todavia, não sou daqueles que exorcizam o filme, acusando-o de reforçar visões estereotipadas sobre as favelas. A violência, hoje, é um fato indiscutível nas metrópoles da América Latina, conforme também o atesta a magnífica película mexicana Amores perros (Amores brutos), talvez ainda mais contundente do que a nossa Cidade de Deus. A indústria cultural sempre foi uma faca de dois gumes: se, por um lado, seleciona e difunde imagens distorcidas de nossos povos, por outro desperta uma curiosidade insaciável sobre os objetos que ela focaliza. Suspeito que não derrotaremos o poderoso Senhor dos anéis III (épico alienado e modorrento, ótimo para atenuar os maus fluídos da resistência iraquiana e do escândalo dos relatórios fraudulentos da CIA), mas sempre ficará uma pergunta no ar: quem é o grande responsável por essa catástrofe latino-americana, essa trágica metamorfose de países que em 20 anos deixaram de ser uma grande fazenda e se tornaram o pátio do caos urbano globalizado? Luiz Ricardo Leitão é editor, escritor, professor adjunto da UERJ, doutor em literatura latinoamericana e caribenha pela Universidade de La Habana
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De 19 a 25 de fevereiro de 2004
NACIONAL TRABALHO ESCRAVO
Governo endurece contra exploração Congresso aprova pacote de medidas de expropriação de fazendas autuadas por escravização de mão-de-obra salários irrisórios do que sustentálo, mesmo que em condições de escravidão. O resultado foi a camuflagem da escravatura, que hoje pode ser ainda pior do que a praticada no século 19. Relatos de fiscais dos grupos móveis do Ministério do Trabalho apontam que os trabalhadores escravos, hoje, bebem a mesma água suja do gado, dormem no chão ou em redes penduradas nas árvores, são freqüentemente ameaçados em caso de fuga ou desobediência, levam açoites de facão no dorso.
ABr
Larissa Barbosa de Brasília (DF)
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inda que sob a pressão da sociedade civil organizada, o parlamento brasileiro tomou a primeira atitude efetiva para impedir a escravização de trabalhadores no Brasil. É efetiva porque, para além da repressão, ataca o bolso de quem escraviza. Dia 11 de fevereiro, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 438, que determina a expropriação de terras onde for constatada exploração de mão-deobra escrava e as reverte em assentamentos da reforma agrária.
25 MIL ESCRAVOS
A NOVA REALIDADE Para pressionar o governo a votar a PEC 438 na convocação extraordinária do Congresso, que terminou dia 13, representantes do Movimento Humanos Direitos, da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho, da Rede Nacional de Justiça e Direitos Humanos e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) estiveram em audiências com o secretário de Direitos Humanos, Nilmário Miranda; o presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha; e o ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini. A pressão social cresceu depois do dia 28 de janeiro, quando foram
Agente Federal durante vistoria em uma fazenda em Goianésia (PA). Operação já identificou mais de 160 trabalhadores
assassinados três fiscais do trabalho (Eratóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva) e o motorista (Ailton Pereira de Oliveira), durante a fiscalização em fazendas em Unaí (MG) a apenas 160 km de Brasília. Depois das audiências no Congresso, o integrante do Movimento
Humanos Direitos e advogado do MST, Aton Fon, comentou que “a primeira batalha estava vencida, mas a segunda será fazer com que a lei seja aplicada. De qualquer modo, acho que demos um passo importante porque vamos colocar também o governo na berlinda”. O Brasil foi o país da América
Latina com o mais longo período de escravidão: mais de 300 anos. Oficialmente, a escravidão foi abolida há mais de um século. Porém, as razões da abolição atendiam mais ao sistema capitalista do que a uma garantia dos direitos humanos. Na época, compensava muito mais manter um proletariado a
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, o número de trabalhadores escravos no Brasil já chega a 25 mil, mas como ainda é difícil detectar esse crime, esse número pode chegar a 100 mil. As vítimas normalmente são homens jovens, adultos e analfabetos, cujo único bem é sua força do trabalho. Apesar desse quadro, em 2003 o Brasil foi considerado referência internacional na erradicação do trabalho escravo. Junto com a Organização Internacional do Trabalho e outras entidades, conseguiu resgatar, no ano passado, a mesma quantidade de vítimas do que em todo o trabalho de erradicação, desde 1995. Em 1996, foram libertados 425 trabalhadores, em 2003, esse número chegou a 4.932. Ao longo de todo o período foram libertados 10.726 trabalhadores.
VIOLÊNCIA NO CAMPO
Tatiana Merlino da Redação
Divulgação
Pistoleiros modernos praticam a “Justiça” Quem é Professora da UFCE, a socióloga Peregrina Cavalcante passou dois anos e meio no sertão nordestino para defender sua tese de doutorado, origem do livro Como se fabrica um pistoleiro.
Na linha de frente da violência no campo, estão personagens históricos no cenário brasileiro: os pistoleiros. Uma pesquisa da socióloga Peregrina Cavalcante, professora da Universidade Federal do Ceará (UFCE), mostra a versão moderna dos jagunços montados: rapazes treinados desde a adolescência, eles andam de moto e têm tabela de preço para os “serviços” prestados. “A pistolagem é uma grande ferida purulenta, que é a cara do Brasil”, analisa Peregrina. Em entrevista ao Brasil de Fato, a socióloga explica que o pistoleiro é utilizado pelo “grande capital, dono do dinheiro e das grandes propriedades”. Brasil de Fato - Como foi sua pesquisa nas comunidades onde há pistoleiros? Peregrina Cavalcante - Em 1984, ao penetrar no sertão do Piauí, da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Maranhão, vi como essa é a história de um Brasil real, do qual ninguém fala. Quando fiz doutorado, fui para a região do Vale do Jaguaribe, no Ceará, que é muito famosa por crimes de pistolagem. Fiz uma cartografia histórica da região desde o período colonial, para mostrar o que chamo de cultura da pistolagem. Essa questão não é só de delito, de uma morte qualquer, ela tem uma raiz histórica. Quando o gado chegou nessa região, a primeira grande violência foi a matança dos índios. O primeiro a ser morto era o pagé, pois detinha o saber da tribo. Depois do massacre dos índios foram distribuídas as sesmarias ao longo do rio, e começou a briga por limites de terra. Cada sesmeiro constituiu seu exército particular, alguns deles com até 100 “cabras”. Até o século 20, a
disputa pela terra e pelo poder político e econômico são os principais motivos.
briga significava mais terra para mais gado, mais dinheiro e poder político. As famílias casavam-se entre si para manter o poder e a propriedade. E o exército mantinha o status quo. Na política exercida no Ceará da República Velha, o Estado era separado do Estado federativo, e quem mandava era o coronel. Quando não foi mais possível manter esse “exército particular”, o dono da terra dispensou muita gente e passou a ter os seus vaqueiros, moradores da sua fazenda. Formavam sua guarda pessoal. Origem do fenômeno da pistolagem, na década de 30.
encontra por um intermediário e que aloca a mão-de-obra. Ele tem uma tabela de preços, e seu corpo é móvel – não fica sempre no mesmo local. O terceiro tipo é o pistoleiro bandido, ou high-tech: usa moto, não usa mais cavalo; não fica escondido atrás de uma moita, na tocaia – a tocaia é moderna, de alta velocidade; e sua arma é precisa. Esse tipo pode ser chamado de “pós-moderno”. 2004 será um ano de grandes crimes de pistolagem porque é um ano eleitoral. A pistolagem anda mano a mano com o poder político interiorano.
BF – Quais são os tipos de pistoleiros existente no Brasil? Peregrina – O primeiro é o pistoleiro de honra, que chama o dono da fazenda de meu pai, meu dono. Há um pacto de sangue, uma amizade religiosa, uma relação visceral. Ele começa a ser treinado cedo, aos 15 anos. Depois passa a ser o chofer, a fazer parte da guarda pessoal. O segundo é pistoleiro comercial, profissional: aquele que se
BF – Quem contrata os pistoleiros? Quais são os principais motivos das mortes? Peregrina – Ele é utilizado pela elite econômica. Recentemente, essa prática pistoleira tem se acirrado muito pela questão da terra. Há impunidade e isso é acobertado por um lobby de interesses políticos profundos. Todo grande político brasileiro das regiões Nordeste e Norte tem os seus esquemas de matadores. A
BF – Como começa essa profissão? Peregrina – O garoto adolescente é seqüestrado da sua família para ser treinado. Entra no mundo do crime com 17, 18 anos e sabe que sua vida é curta, que não tem lugar nesta sociedade. Na época do Nordeste arcaico, o pobre tinha dois caminhos: ou entrava para um grupo messiânico, ou virava bandido. Hoje, ou vira escravo do sistema, ganhando saláriomínimo, ou vai ser um bandido, assaltante, entrar num grupo de extermínio. No sertão, a escola é fraquíssima, não tem emprego, nem nas fazendas. Quando o garoto chega à adolescência, ganha uma arma do pai ou de um parente, é um ritual de passagem. BF – Como a comunidade convive com os pistoleiros? Há quem queira denunciá-los? Peregrina – Muitas vezes as pessoas querem denunciar, mas morrem de medo. Existe um pacto do silêncio. Quem denuncia um pistoleiro é um pretendente a jurado de morte – dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostram que 177 pessoas ligadas à questão agrária foram juradas de morte no Brasil, no ano passado. A pistolagem é uma grande ferida purulenta, que é a cara do Brasil. A figura dos vigários no sertão é muito importante, ele é o pára-raio de todos os segredos, do lugar. Há padres ameaçados e muitos deles são o que o Estado deveria ser.
BF – A pistolagem aumentou por conta da impunidade? Peregrina – Por conta dos fatores sociais, do desemprego, da baixa escolaridade, da impunidade. O pistoleiro pensa: “Posso viver dez anos de pistolagem, ganhar dinheiro e virar um cidadão legal, ser um pequeno proprietário de terra”. No sertão, os símbolos da honra são a terra e o gado. A comunidade, ao falar da pistolagem, está falando de si mesma. Não existe divisão entre o pistoleiro e a comunidade. Se um menino briga na rua, a mãe diz para ele ir lá se vingar.
Fatos do Brasil > Discurso e prática Em discurso via videoconferência, dia 16, durante reunião do Banco Mundial, Lula defendeu que o Fundo Monetário Internacional (FMI) mudasse suas políticas. “O FMI não pode ter uma única receita, um ajuste fiscal duro que muitas vezes não permite que os países cresçam”, disse Lula. O presidente acrescentou que é preciso diferenciar investimento produtivo do que é dívida. Resta saber se o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, que propõe um superávit primário por 10 anos, já conversou sobre o assunto com Lula. > Reforma trabalhista Em um concorrido jantar com jornalistas da grande imprensa, na casa de Teresa Cruvinel, funcionária da família Marinho, dia 11, o presidente Lula exibiu bom humor e comentou com os repórteres detalhes de uma possível reforma trabalhista. Lula disse que apenas as férias de 30 dias são inegociáveis, e abriu espaço para a eliminação de direitos, como a multa do FGTS. “Ele já havia tomado vinho demais”, comentou o presidente da CUT, Luiz Marinho, reafirmando que a central não vai aceitar propostas de redução de direitos.
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De 19 a 25 de fevereiro de 2004
NACIONAL PRIVATIZAÇÃO À BRASILEIRA
Bradesco leva o BEM e ainda terá troco Governo do PT doa o Banco do Estado do Maranhão; repete FHC, na liqüidação do patrimônio público Lauro Jardim de São Paulo (SP)
PRIVILÉGIOS LEGAIS
O que há por trás da privatização do BEM Ativo/Patrimônio total Patrimônio líquido (ativo total menos dívidas) Depósitos Agências Clientes Operações de crédito Receita média mensal Preço mínimo Preço pago pelo Bradesco (1) Créditos tributários Valor do ágio Ganho com moedas podres Valor final de créditos e outros benefícios (2) O troco do Bradesco (2-1)
M
R$ 766,6 milhões R$ 37,7 milhões R$ 360 milhões 76 201 mil R$ 95 milhões R$ 4,2 milhões R$ 77,2 milhões R$ 78 milhões R$ 44,4 milhões R$ 40,3 milhões R$ 7 milhões R$ 91,3 milhões R$ 13,3 milhões
queles bancos, que previa a injeção de recursos do Tesouro Nacional, via emissão de títulos públicos, para compra do controle dos bancos estaduais, a pretexto de recuperar sua saúde financeira. Nesta operação, os Estados que aderiram ao prograManifestação de funcionários contra a privatização ma transferiram as ações de seus banO BC conseguiu concretizar a cos para o Banco Central, que assuvenda depois de duas tentativas miu sua administração. Na maioria dos casos, tratou-se frustradas – a primeira, em 2000, por falta de compradores, e a se- de desmantelar as estruturas regiogunda, em 2002, por decisão da nais de financiamento criadas pelos Justiça, que questionou a privatiza- governos estaduais, chegando-se ção. O programa de liqüidação dos a fabricar prejuízos para justificar bancos estaduais foi literalmente a privatização. No Maranhão, em imposto pelo governo FHC aos go- valores de 1999, o Tesouro emitiu vernadores, durante o processo de R$ 331,9 milhões. Sem correção, já renegociação das dívidas estaduais seria mais de quatro vezes o valor com a União. A venda das insti- arrecadado com a venda, ou R$ tuições públicas estaduais era uma 254 milhões a mais, num evidente exigência para que aquelas dívidas prejuízo para o Estado. Explica-se: os títulos, embora emitidos pelo Tefossem renegociadas. souro, eram lançados, na contabiliSANEAMENTO dade oficial, como dívida dos goCriou-se, à época, um programa vernos estaduais, a ser abatida com de recuperação e saneamento da- o resultado da venda dos bancos.
Sindicato dos Bancários do Maranhão
aior banco privado do país, com um patrimônio total de R$ 140,9 bilhões, o Bradesco arrematou, na semana passada, o Banco do Estado do Maranhão (BEM), por R$ 78 milhões – apenas R$ 828 mil acima do preço mínimo definido pelo Banco Central. Os ativos do BEM eram de R$ 766,6 milhões. A privatização seguiu exatamente o mesmo modelo adotado pelo governo Fernando Henrique Cardoso, no passado, amplamente criticado pelo PT por ter patrocinado verdadeira doação do patrimônio estatal a grandes grupos nacionais e estrangeiros, concentrando ainda mais a renda no país. O Bradesco leva um banco com 76 agências, 201 mil clientes, quase R$ 360 milhões em depósitos e poderá receber de volta, sob a forma de créditos tributários e outras vantagens, perto de R$ 91,3 milhões, no mínimo. No balanço final, o Bradesco poderá ter um troco de pelo menos R$ 13,3 milhões – uma gota d’água para uma instituição que lucrou, no ano passado, R$ 2,306 bilhões, cerca de 145% acima do resultado de 2002, correspondente a um retorno de 17% sobre o capital dos acionistas. Isso significa dizer que os donos do Bradesco, mantido um lucro daqueles, poderiam dobrar seu capital no banco em menos de seis anos, graças à política de juros altos praticada pelo mesmo Banco Central (BC), que retoma agora, conforme promessa ao Fundo Monetário Internacional (FMI) o processo de liquidação dos bancos estaduais interrompido desde o último ano da administração FHC. Trata-se, como se percebe, de um verdadeiro negócio da China, sem os riscos chineses. Ou, antes, sem risco algum.
A engenharia financeira que permitirá ao Bradesco comprar o BEM sem, virtualmente, pagar nada e ainda receber algum trocado de volta é um retrato pronto de como as decisões, leis, resoluções, circulares e decretos são baixados no país para favorecer abertamente a grupos econômicos e, mais recentemente, a fortes interesses encastelados no mundo das finanças. Um dado raramente destacado pela imprensa, com suas raras exceções, tem permitido que os bancos, já amplamente favorecidos pela política de juros altos, consigam multiplicar seus ganhos a partir da compra de outros bancos, públicos e privados. A legislação fiscal permite, por exemplo, que impostos cobrados a mais de bancos (e de empresas em geral) possam ser lançados em uma conta específica dentro do balanço para compensação futura, quando a instituição voltar a ter lucros. Esses recursos podem ser utilizados para reduzir em um terço o valor dos impostos a pagar, a cada ano. No caso do BEM, o valor declarado dos créditos tributários chegava a R$ 44,4 milhões em setembro do ano passado. Algumas consultorias indicam que o valor total daqueles créditos poderá atingir perto de R$ 140 milhões, quase 80% mais do que o preço pago pelo Bradesco. Os créditos, obviamente, poderiam ser utilizados pelo BEM, caso permanecesse sob controle estadual, para ampliar lucros, que, por sua vez, ajudariam a expandir empréstimos a empresas regionais, movimentando a economia local.
MAIS PRIVILÉGIOS Agora, tais créditos serão usados pelo Bradesco para amortizar o gasto com a compra do BEM e acumular mais lucros, sem necessariamente favorecer o Maranhão. Para efeito de cálculo, tome-se apenas o valor declarado pelo BEM (R$
44,4 milhões). Além desse crédito, o Bradesco poderá descontar do Imposto de Renda o ágio registrado na operação. O valor do ágio, neste caso, é calculado com base na diferença entre o preço pago (R$ 78 milhões) e o patrimônio líquido do banco (R$ 37,7 milhões). Chegase, portanto, a R$ 40,3 milhões, que poderão ser usados pelo Bradesco para reduzir o IR. Numa manobra para facilitar a privatização, o BC aceitou que 90% do preço alcançado no leilão de venda sejam honrados com títulos federais de difícil recebimento (por isso mesmo, chamados de “podres” pelo mercado). Calcula-se que aqueles papéis venham sendo negociados no mercado com descontos de 30% a 10% (diante de 50% a 60% ou 70% há alguns anos). Tome-se, conservadoramente, o desconto de 10% – isso representaria uma redução efetiva sobre o preço oficialmente registrado na venda do BEM da ordem de R$ 7 milhões, em valores aproximados. Somando-se todos os créditos que o Bradesco herdou e os privilégios que a legislação reserva para o setor financeiro, chega-se a um valor de no mínimo R$ 91,3 milhões. A conta não inclui, por exemplo, os gastos que o BEM teve que enfrentar para enxugar seu quadro de pessoal, com pagamento de indenizações e verbas rescisórias. Entre a segunda metade da década de 90, quando empregava 1.742 funcionários, e o setembro de 2003 houve um corte de 70%, o que reduziu o total de empregados para 521. Detalhe final: o Bradesco assume o direito de movimentar a conta única do Estado do Maranhão, incluindo recolhimento de impostos, pagamento de servidores e fornecedores, por dez anos. Em outubro do ano passado, aquela conta movimentou um total de R$ 132,9 milhões se acrescidos os recursos da Previdência.
ORÇAMENTO 2004
Enfim, o orçamento “incortável”, conforme chegou a anunciar no final de 2003 o ministro do Planejamento, Guido Mantega, será cortado. O valor de R$ 7,4 bilhões entre gastos de custeio, despesas criadas por emendas de parlamentares e investimentos, é 85% maior do que o valor com o qual o governo teria trabalhado inicialmente, e 13,8% maior do que o total que chegou a ser anunciado no início da semana passada. Antes, trabalhava-se com a hipótese de um contingenciamento de R$ 4 bilhões. A variação entre os números indica a existência de divergências internas em relação não só ao tamanho dos cortes mas, principalmente, quanto aos rumos da política econômica sustentada pelo Ministério da Fazenda, Secretaria do Tesouro Nacional e Banco Central. Na distribuição dos cortes, os ministérios de alguma forma envolvidos com programas sociais e projetos geradores de emprego, renda e qualidade de vida para a população menos favorecida foram os mais atingidos. Na soma dos orçamentos de custeio e investimento dos ministérios da Educação, Saúde, Trabalho, Desenvolvimento Agrário e das Cidades, as despesas previstas baixaram de R$ 46,5 bilhões para R$ 43,9 bilhões (5,7% a menos).
DOURANDO A PÍLULA O contingenciamento, para possível gasto se e quando houver receita disponível no futuro, como adiantou o ministro Mantega, foi de
Fotos: Agência Brasil
Tesoura petista atinge programas sociais O ESPETÁCULO DOS CORTES As maiores reduções orçamentárias, divididas por ministérios R$ 856 milhões R$ 770 milhões R$ 694 milhões R$ 644 milhões R$ 630 milhões
tinados a custeio e investimentos. O orçamento da Saúde perdeu R$ 770 milhões, enquanto a Educação terá R$ 630 milhões a menos para financiar suas despesas de custeio e investimentos (10% a menos). Somados, os dois ministérios responderão por 23% do corte em custeio e investimentos.
ARGUMENTOS E REALIDADE
Cidades
Saúde
Transportes
Olívio Dutra
Humberto Costa
Anderson Adauto Ciro Gomes
R$ 2,7 bilhões, correspondendo a 44,6% dos R$ 6 bilhões cortados da conta de custeio e investimentos. Contingenciamento foi a palavra criada pela burocracia para dourar a pílula quando quer se referir a cortes de gastos e ao conseqüente agravamento da política de desmonte do setor público. Na prática, preserva-se a política de arrocho de despesas e investimentos estatais para economizar recursos e pagar juros a banqueiros e investidores/especuladores, numa transferência de renda sem precedentes do contribuinte para o sistema financeiro. Numa inversão completa de prioridades, para financiar a conta
Integração Nacional Educação
dos juros os cortes atingirão não só os investimentos (que o governo disse que preservaria), como programas sociais.
SUBMISSÃO AO MERCADO Mantega alega que o corte final corresponde a menos de 1,8% do orçamento total aprovado para este ano, que cai de R$ 413,5 bilhões para R$ 406,1 bilhões (R$ 7,4 bilhões a menos). A questão, no entanto, está nas implicações dessa decisão e por que foi tomada. Em primeiro lugar, o corte reafirma uma política de arrocho, que tem condenado a economia a taxas medíocres de crescimento. Em segundo, trocou-se a prioridade pelo
Tarso Genro
social pela submissão absoluta ao mercado financeiro. Uma continha simples mostra as implicações daquela decisão. Se a tesoura do governo tivesse competência semelhante para agir contra as taxas de juros, a economia poderia ser ainda maior, com ganhos de qualidade para a política econômica e para o lado real da economia. Uma queda de 16,5% para 10% nos juros básicos, fixados pelo BC, produziria, ao longo de 12 meses, uma economia de R$ 56,6 bilhões – 7,6 vezes mais do que o corte anunciado. Não seria preciso penalizar, por exemplo, o Ministério das Cidades, que perdeu 62,6% dos recursos des-
As despesas totais de custeio (diárias, passagens, material de consumo em geral, consultoria, serviços contratados de pessoas físicas e empresas, locação de mão-de-obra e instalações e obras) foram reduzidas de R$ 54,6 bilhões para R$ 51,6 bilhões (menos 5,5%), correspondendo a uma redução de R$ 3 bilhões (41% do total). Os investimentos baixaram de R$ 12,2 bilhões para R$ 9,3 bilhões, um tombo de 24,3%. Em defesa dos cortes, Mantega afirma que haverá crescimento e não redução dos investimentos. No ano passado, diz, o governo investiu R$ 6,5 bilhões. Nesta conta, portanto, o investimento cresceria 42,3% em 2004. Além disso, o ministro acrescenta R$ 2,9 bilhões que serão destinados a Estados e municípios para investimentos em saneamento básico em 2004. O valor final dos investimentos cresceria para R$ 12,2 bilhões, quase 87% mais do que o total investido em 2003. Mas o ministro não disse que aquele valor se aproxima do investimento previsto no orçamento para 2003. Esqueceu, ainda, que o governo investiu apenas metade do prometido. (LJ)
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De 19 a 25 de fevereiro de 2004
NACIONAL
O Brasil vira uma grande lavanderia
Maringoni/Agência Carta Maior
ANÁLISE
BC acoberta sonegadores, abre caminho para fraudes e remessas ilegais de dólares; já a Receita, parcela dívidas a perder de vista
H
á cerca de 10 anos, numa das salas das comissões do Congresso, os parlamentares, perplexos, colhiam surpreendentes informações em depoimentos de fiscais da Secretaria de Receita Federal (SRF). Por exemplo, que o Banco Central (BC) impedia o acesso dos fiscais da Receita a informações sobre empresas e bancos investigados por sonegação de impostos. E, autônomo, o mesmo BC alegava razões de sigilo bancário para esconder dados da Receita, mesmo diante de indícios de lavagem e desvio de dinheiro para o exterior, fraudes fiscais e sonegação. Na semana passada, descobriu-se que nada mudou desde então. O BC, a pedido da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga o escândalo do Banestado, envolvendo a fuga de quase 30 bilhões de dólares e conseqüente sonegação de impostos, entregou aos parlamentares um disquete de computador contendo 412,7 mil operações de remessas de dinheiro para fora do país, realizadas entre 1996 e 2002, num total de R$ 500,1 bilhões.
NINGUÉM VIU Desse total, perto de R$ 4,3 bilhões foram remetidos por 698 pessoas e empresas que sequer entregaram declarações do Imposto de Renda à Receita. Onze delas não estão identificadas nos registros do BC e nem na Receita. Simplesmente, não existem. Não têm CPF, nem carteira de identidade. Mas recorreram, livremente, aos caminhos legais para remessa de dólares para outros países. Suas
operações foram devidamente registradas (vale dizer, autorizadas e, portanto, acobertadas) pelo BC. O detalhe é que a Receita Federal não sabia de nada. Só descobriu o caso depois que o disquete foi encaminhado à CPI. “A impressão que temos é que o Brasil virou uma grande lavanderia. O Banco Central não fala com a Receita, os órgãos públicos não se comunicam”, disse, em entrevista à imprensa, um atônito Antero Paes (PSDB/MT), o presidente da CPI do Banestado. Isto mostra que, entra governo, sai governo, prevalece a mesma inapetência para cobrar impostos, combater a sonegação e recuperar recursos que fazem falta ao país.
FALSOS ESCÂNDALOS Os casos mostram, mais uma vez, que os supostos escândalos, no mundo financeiro e em outros setores, são assim apresentados para induzir a opinião pública a erro. Na verdade, no Brasil, nunca houve escândalos, mas políticas consentidas, decisões, resoluções e circulares, baixadas pelos vários governos, para legalizar fraudes e operações especiais contrárias aos interesses da nação. A CPI do Banestado é uma prova disso: as remessas agora investigadas foram todas realizadas porque o Banco Central as autorizou; a abertura e movimentação de contas, por meio das quais os dólares foram transferidos a paraísos fiscais no exterior, foram autorizadas pelo mesmo BC. O país não foi vítima de um complô, mas de ações sistemáticas e de decisões de governos que facilitam, autorizam e compactuam com as fraudes.
Nove mil séculos para pagar R$ 198 bilhões Como se vê, é longo o histórico de acobertamento e conivência com a sonegação, estimulada pela impunidade. Criado em 2000 a pretexto de solucionar a situação de milhares de empresas brasileiras às voltas com dívidas fiscais pelo não pagamento de impostos, o Programa de Recuperação Fiscal – Refis se transformou num prêmio aos reais sonegadores, como mostrou o jornal Folha de S.Paulo. Na verdade, o Refis foi mais uma medida para facilitar a vida dos sonegadores. Assim, inclui casos de empresas que terão até 890 mil anos para pagar o que devem, desembolsando meros R$ 12 por mês. Ou uma rede de supermercados que ganhou prazo de 171 mil anos.
DINHEIRO EXISTE No total, a dívida dos sonegadores atinge R$ 198 bilhões, dos quais R$ 40 bilhões foram reparcelados pelo Refis I e II, com prazos a perder de vista. Outros R$ 4 bilhões são considerados incobráveis porque o valor de cada dívida é menor do que o gasto para cobrá-la. Restam R$ 154 bilhões que poderiam ser recuperados, não fossem a omissão e a ausência de disposição para tal. Na mesma semana em que o governo petista decidiu cortar mais de R$ 7 bilhões em investimentos do orçamento de 2004, descobre-se que aquela dívida não é cobrada por falta de recursos e de pessoal. Cada
procurador da Fazenda Nacional responde, em média, por quase 7,5 mil processos, tornando humanamente impossível acompanhá-los.
PROIBIDO PUNIR Um esforço, qualquer esforço, poderia produzir resultados muito mais expressivos do que o novo arrocho decidido pelo governo sobre os gastos públicos. Em média, a recuperação de créditos pela Receita, provenientes de impostos sonegados, gera uma receita anual entre R$ 2 bilhões a R$ 3 bilhões. Se a Receita pudesse recuperar 5% da dívida, conseguiria uma receita de quase R$ 8 bilhões, mais dinheiro do que os cortes anunciados. Antes do Refis e suas benesses a fraudadores do IR, o governo FHC perpetrou duas leis que dificultaram o trabalho dos fiscais da Receita e do Ministério Público. No final de dezembro de 1996, foi sancionada a Lei 9.430, que literalmente proíbe a Receita de fazer qualquer representação contra sonegadores ao Ministério Público, sem antes concluir o processo administrativo que apura os indícios de sonegação. Em 1995, a Lei 9.249 já havia livrado sonegadores do processo criminal, bastando para isso que tivessem pago ou renegociado a dívida cobrada pela Receita. No primeiro caso, os sonegadores ganham tempo para liquidar seus bens e desaparecer. No segundo, escapam da cadeia. (LJ)
Juros consomem R$ 715,5 bilhões, quase metade do PIB Para entender e acompanhar as oscilações das taxas de juros, foi criado o esfihômetro, uma ferramenta sofisticada, que ajuda a medir o impacto daquelas variações sobre o orçamento doméstico. O esfihômetro ficou parado em janeiro, por decisão do Banco Central (BC), que achou que os juros já tinham caído demais. No ano passado, graças à generosidade do BC, os juros cobrados das pessoas físicas nos financiamentos para compra de bens duráveis (geladeiras, televisores e DVDs, por exemplo) saíram de um pico de 80,7% ao ano, em média, para 71,5%. Com isso, o consumidor comum anotou os seguintes ganhos: num financiamento de R$ 400, com prazo de 12 meses, obteve uma economia mensal de R$ 3,07, ou o equivalente a cinco esfihas (62 esfihas em um ano, portanto). Para quem arriscou mais e financiou um bem (uma televisão de 29 polegadas) no valor de R$ 1 mil, também em 12 vezes, o ganho mensal chegou a 13 esfihas, pouco mais de três esfihas por semana ou 156 em um ano. Com essa folga toda no orçamento, não surpreende que o consumidor, mesmo depois de ver seu salário encolher quase 14% em 2003, corresse às compras neste começo de ano, ameaçando a estabilidade dos preços e obrigando o BC a segurar os juros nas nuvens. Esta tem sido a política dos governos, ministros da Fazenda e presidentes do BC desde 1994, pelo menos. A preservação de taxas de juros estratosféricas, além de engordar os lucros de bancos e investidores/especuladores, desarranjou as contas do setor público, espetando uma conta do tamanho de R$ 715,5 bilhões quando somadas todas as despesas com juros pagas pela União, Estados e municípios entre 1995 e 2003.
TORRANDO RIQUEZAS Apenas para comparação, segundo o BC, aquele gasto correspondeu a praticamente 47% do Produto Interno Bruto (PIB) estimado para o ano passado. Ou seja, em nove anos, o país destinou quase metade de todas as riquezas que
Roosevelt Pinheiro/ABR
Lauro Jardim de São Paulo (SP)
O delegado da PF, Júlio de Castilho, chefiou o inquérito da máfia do Banestado
produz em um ano para o setor financeiro, alimentando a ciranda de lucros fáceis no cassino dos juros. No ano passado, os gastos bateram um recorde, atingindo R$ 145,2 bilhões ou 9,5% do PIB – mais de três vezes sobre os R$ 46,2 bilhões gastos em 1995. Comparados a 2002, houve um aumento de 27,4%. Ainda entre 1995 e o ano passado, o governo arrochou os gastos em outras áreas para economizar R$ 225 bilhões, destinados ao pagamento dos juros. Um esforço inútil, integralmente consumido pelos gastos com juros, três vezes maiores do que a “poupança” feita pelo governo, às custas da paralisia e desmonte do setor público.
ROMBOS SEM FIM Por culpa dos juros altos, o rombo nas contas do setor público (despesas superiores a receitas) continuou crescendo, acumulando, em nove anos, R$ 495,4 bilhões – exatamente a diferença entre a conta dos juros e os recursos que o governo conseguiu “poupar” para pagá-los. Assim, apenas 31,4% dos juros devidos foram pagos. Como re-
sultado, o governo teve que emitir títulos para vender ao mercado e arrecadar os recursos para honrar o restante da conta. A dívida pública mobiliária federal (ou seja, relativa àqueles títulos) cresceu quase 12 vezes nos últimos 10 anos, saindo de R$ 61,8 bilhões em 1994, para R$ 731,4 bilhões no ano passado. Tudo funciona assim: para facilitar a sonegação, a fraude, o desvio de recursos o governo cria leis, resoluções e circulares que contrariam a própria legislação em vigor; aumenta os juros, criando oportunidades de lucros fáceis na ciranda financeira; depois corta despesas, prejudicando, inclusive, os órgãos encarregados de combater a sonegação e cobrar dos sonegadores o que devem ao fisco, a pretexto de pagar juros a seus credores – o que exige novos cortes de despesas e avanço do desmonte. No final das contas, os impostos pagos pelo contribuinte terminam embolsados pelos grupos que participam da ciranda financeira e que não pagam impostos porque o governo não demonstra o menor interesse em cobrá-los. Ficou claro? (LJ)
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De 19 a 25 de fevereiro de 2004
NACIONAL MOBILIZAÇÕES
O desafio é conquistar trabalho para todos Em plenária nacional, CNBB e movimento negro aceitam convite para integrar Coordenação dos Movimentos Sociais
A
Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) saiu fortalecida da primeira plenária de 2004. Duas novas organizações anunciaram, formalmente, que vão compor a articulação criada em 2003: a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Coordenação Nacional das Entidades Negras (Conen). Ambas se somarão às outras entidades para o principal desafio do CMS: reivindicar do governo trabalho para todos os brasileiros, a partir de novo projeto de desenvolvimento já redigido pelos movimentos sociais. No encontro, realizado em São Paulo, nos dias 11 e 12, entidades de 20 Estados conseguiram consolidar uma estratégia comum e definir um calendário unificado de ações. A campanha em defesa do direito ao trabalho foi priorizada pelos movimentos. “A principal função da economia é oferecer oportunidades para todas as pessoas conseguirem se sustentar por meio do trabalho. Essa é uma motivação que pode levar a adoção de medidas políticas urgentes”, explica dom Demétrio Valentini, da CNBB.
UNIDADE A CMS pretende defender, também, um novo projeto de desenvolvimento nacional, elaborado em 2003, a partir de uma série de plenárias estaduais. O documento reforça tradicionais bandeiras de lutas, como o rompimento com o Fundo Monetário Internacional (FMI), a reforma agrária e a redução da jornada de trabalho sem diminuição dos salários (veja quadro). “Vamos tentar unificar as lutas de massas até as eleições”, prometeu Luiz Gonzaga, o Gegê, ligado ao movimento de moradia. Para 2004, outro objetivo da CMS será organizar uma grande mobilização, em Brasília, em defesa do trabalho. Antes disso, em 1º de maio, serão estimuladas manifestações nas capitais e principais cidades para levar cerca de um milhão de pessoas às ruas. Cartilhas, cartazes e materiais de divulgação estão sendo preparados para difundir a campanha.
CNBB lança semana social
Renato Stockler
Jorge Pereira Filho da Redação
Documento assinado pelos movimentos sociais pede o rompimento com o FMI
Até 20 de março, os movimentos discutirão, em plenárias estaduais, questões ainda em aberto, como a data do ato na capital federal. “Esse fórum trouxe uma qualidade nova. Saímos com um calendário de lutas concreto e remetemos para as discussões regionais a construção das atividades estaduais, apontando para a luta nacional”, analisa Antonio Carlos Spis, da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
NEOLIBERALISMO A crítica à política econômica do primeiro ano do governo Lula concentrou as intervenções na plenária da CMS. Elas enfatizaram a necessidade de mobilização para alterar a orientação política do primeiro ano do governo Lula. “A atual política mantém claro viés neoliberal e um caráter de classe perverso, subordinada ao capital financeiro e aos acordos com o FMI”, registra o documento divulgado ao final do encontro. Segundo a CMS, R$ 70 bilhões foram economizados na forma de superávit fiscal primário para honrar o serviço da dívida em 2003. Para este ano, os movimentos ava-
liam que o governo sinaliza com a continuidade do modelo ao anunciar o corte de R$ 7,4 milhões no orçamento aprovado pelo Congresso Nacional. Para dom Demétrio Valentini, a crítica é um alerta dos movimentos ao governo. “A questão é séria, complexa e não pode ser escamoteada. Como romper com essa dependência exagerada na qual entrou o Brasil?”, questiona. O bispo avalia que o cumprimento de todas as exigências do FMI só teria sentido se o governo quisesse conquistar autoridade moral para questionar o sistema financeiro de maneira mais eficaz do que a Argentina, hoje. Na avaliação de dom Demétrio, o Brasil não está dando o devido apoio e solidariedade a seu parceiro do Mercosul, quando todo o sistema financeiro internacional cobra da Argentina aumento do pagamento da dívida externa. “Vai chegar o momento em que viveremos momentos parecidos e vamos precisar do apoio dos cidadão e de outros países, como a Argentina está precisando agora”, alerta o bispo da CNBB.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) vai realizar, em 2004, a IV Semana Social Brasileira. O anúncio foi feito por dom Demétrio Valentini, na plenária da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS). A semana, batizada de Mutirão por um Novo Brasil, desencadeará um processo de reflexão e mobilização em torno do combate às desigualdades. A primeira atividade da campanha será a organização de um seminário nacional, de 6 a 9 de maio, em Brasília, que discutirá o papel do Estado na transformação da sociedade, dependência externa e direito ao trabalho. “Temos que rearticular a sociedade. Muita gente achou que um governo iria cumprir a tarefa da cidadania”, diz dom Demétrio. A Semana Social, na verdade, é uma atividade que se estende por longos períodos, às vezes anos. A primeira ocorreu em 1991; a segunda
entre 92 e 93; e a terceira, de 1997 a 2000. Desses processos, saíram movimentos conhecidos, como o Grito dos Excluídos e a Campanha Contra a Dívida Externa, que culminou com um plebiscito com a participação de 6 milhões de pessoas. Para 2004, o bispo avalia que o desafio é convocar uma reflexão para identificar os rumos que o país está tomando. “Precisamos de uma nova análise, as coisas estão se embaralhando”, explica. Depois do seminário, em Brasília, pastorais sociais e dioceses vão ampliar a discussão com as bases, aprofundando o debate sobre esse mutirão por um novo Brasil. No segundo semestre de 2005, está previsto um grande encontro nacional. “Os movimentos vão estimular esse processo, levando às bases o espírito de reflexão e mobilização para reconvocar a cidadania”, conta dom Demétrio. (JPF)
COORDENAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS (CMS) O que é: Espaço de articulação de diversas entidades regionais e nacionais Objetivos: Defender um novo projeto de desenvolvimento para o Brasil, definindo estratégias e mobilizações unificadas Principais Integrantes: Central Única dos Trabalhadores (CUT), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Marcha Mundial das Mulheres, União Nacional dos Estudantes (UNE) Principais atividades para março: 1º a 20 – Plenárias Estaduais da CMS para preparação da campanha pelo direito ao trabalho 08 – Mobilizações da Luta Internacional da Mulher 20 – Dia mundial de luta contra a militarização e a invasão do Iraque 29 – Jornada dos estudantes pela reforma universitária Principais bandeiras: > não economizar impostos pagos pela população para engordar os credores da dívida; > investir para gerar crescimento, emprego, distribuição de renda e valorização do serviço público; > recuperar a capacidade de o Estado garantir direitos sociais universais; > valorização do salário-mínimo; > reforma agrária; > redução da jornada sem redução de salários; > construção imediata de moradias; > não-ingresso na Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e o fortalecimento das relações com a América Latina; > romper com a tutela do Fundo Monetário Internacional (FMI).
POVOS INDÍGENAS
da Redação Lideranças indígenas pediram ao governo agilidade na regularização dos seus territórios. O assunto foi um dos temas discutidos durante a instalação da Mesa Permanente de Diálogo, que será um fórum permanente de discussão entre governo e índios. Contudo, na primeira reunião da mesa, o diálogo já saiu truncado: as autoridades da principal pasta relacionada ao tema, o Ministério da Justiça, não compareceram. De acordo com o coordenador geral das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Jecinaldo Sateré Mawé, a questão emergencial para os índios se refere à regularização fundiária. “Pedimos que o governo regularize imediatamente os territórios invadidos e em conflito como Xavante, no Mato Grosso, o povo Cintalarga, Raposa/ Serra do Sol e Guarani Kaiowá”, explicou. A reunião contou com a presença de um representante da Fundação Nacional do Índio (Funai) e de várias entidades como a Associação dos Povos Indígenas do Nordeste e Norte de Minas Gerais (Apoinme), Warã Instituto Indígena, além de representantes das mulheres e dos
Ademir Almeida/Diário MS/AE
Aberto fórum de diálogo com o governo federal Índio é ferido em área de conflito Rosália Silva de Campo Grande (MS)
Lideranças indígenas saíram frustradas da primeira reunião com o governo
parlamentares indígenas. Apesar de a reunião ter sido realizada para organizar a pauta e definir um calendário de trabalho, os representantes das entidades indígenas apresentaram uma pauta de reivindicações. Eles querem que na reunião marcada para março o governo apresente um plano de ação para 2004 com relação à demarcação e homologação de terras com a indicação de recursos. Os indígenas exigem que o governo adote uma estratégia para
que todos os povos recebam o cartão-alimentação. Hoje, apenas uma minoria recebe o benefício por causa da dificuldade de acesso às aldeias. As entidades voltaram a pedir a criação da Secretaria Especial para os Povos Indígenas, com status de ministério. De acordo com o coordenador da Coiab, assim como existe o Ministério do Meio Ambiente e o Ibama, “é necessária uma secretaria para definir as políticas, e a Funai irá executá-las”, defendeu. (Com agências)
A situação em Mato Grosso do Sul continua tensa. No domingo, dia 15, um tiro acertou pelas costas o índio Décio Lemes, que estava na área ocupada em Japorã (MS), região Sul do Estado. Desde 17 de dezembro de 2003, 3.800 índios ocupam partes dos nove mil hectares que devem ser remarcados como territórios tradicionais indígenas, a Tekha Yvy Katu (Terra Sagrada). A Polícia Federal procura agora esclarecer se os disparos vieram mesmo de homens ligados ao fazendeiro Pedro Fernandes Neto, controlador do grupo Agrolak. Também está sendo investigado quem feriu no braço a dona de casa de 52 anos, Cícera Mota Marinho. Os movimentos sociais e populares do Estado, sabendo do perigo de um conflito maior na área, começam a se organizar para buscar outras maneiras de apoiar a luta indígena. No dia 9, uma caravana com mais de cem pessoas ligadas a
várias entidades fizeram uma visita de solidariedade à aldeia Porto Lindo, palco dos conflitos. Durante duas horas os movimentos sociais participaram de uma cerimônia com o cacique e o restante da comunidade, contando a situação vista de fora e ouvindo como isto refletia no local. Apesar das acusações de fazendeiros e autoridades de Mato Grosso do Sul, os movimentos perceberam que ninguém incita a invasão ou destruição de bens, porque foram os próprios índios que, cansados de esperar pela demarcação de seus territórios, resolveram lutar pelos seus direitos. Na despedida, duas bandeiras do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram fincadas no chão da fazenda a pedido da comunidade indígena, uma vez que aquela área também foi ocupada pelos sem-terra. Para o cacique da aldeia Jaguapiru de Dourados, o guarani Pirita, a visita foi um “exemplo de organização para nossa aldeia”.
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NACIONAL PARTIDO DOS TRABALHADORES
CPI da corrupção divide opiniões U
ma crise atinge o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, depois da acusação de que o ex-assessor da Casa Civil Waldomiro Diniz negociava com bicheiros o favorecimento em concorrências, em troca de propinas e contribuições eleitorais. As denúncias, reveladas pela edição do dia 13 da revista Época, provocaram a demissão do assessor da Presidência. O senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT), que levou as fitas que geraram as denúncias, afirma que a abertura da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) é necessária: “Temos de apurar um fato grave como esse da melhor maneira possível”. O senador tucano começou a coletar assinaturas para entrar com o pedido de abertura da CPI no Senado. São necessárias 27 adesões ao documento mas, até dia 16, o partido tinha contabilizado 12. Em declaração pública, o ministro da Casa Civil José Dirceu disse que a negociação ocorreu antes do início da gestão Lula, e que não houve qualquer irregularidade no governo atual. Para o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), o episódio é “muito sério e grave. Não imaginávamos que o Waldomiro tivesse esse comportamento”. Suplicy é favorável à instalação de uma CPI, “para que o governo mostre que não tem receio”. Dia 17, a bancada do PT decidiu que só apoia a investigação do caso Diniz, por meio de uma CPI, se também forem analisadas pela Comissão todas as campanhas eleitorais acusadas de irregularidades nos últimos anos. A líder da bancada, Ideli Salvatti (PT-SC), disse que o caso pode ser apenas um dentre vários a serem apurados. “Aceitamos investigar tudo. Não se pode querer apenas olhar um caso de corrupção eleitoral”, comentou, lembrando casos como o processo de privatização do governo FHC. O líder do governo no Senado, senador Aloizio Mercadante (PT-SP), afirmou: “Não podemos aceitar que, sendo maioria,
Denúncia envolvendo ex-assessor do ministro José Dirceu vem sendo considerada como uma jogada da direita, mas também sinal de alerta para o PT
investiguemos apenas aquilo que a oposição quer investigar”.
INVESTIDA DA DIREITA Para o sociólogo Francisco de Oliveira, a resistência do PT em abrir uma CPI é reflexo de que “está se parecendo cada vez mais com os outros partidos”. Ele afirma que a obrigação do governo é investigar a fundo o caso. “Ao tentar evitar investigações se comporta de forma
anti-republicana e como os partidos convencionais”. O sociólogo explica que a corrupção é endêmica ao sistema capitalista, e que qualquer partido está sujeito a isso. Por isso, “o futuro do PT pode ser desastroso se essa história não for apurada e colocada nos devidos termos”. Para ele, se a história não for bem esclarecida, o PT vai ser “avacalhado permanentemente”.
Oliveira ressalta o fato de que o PT trata a esquerda “como inimigos”. Lembra os “radicais” que foram expulsos do partido em dezembro do ano passado, e aqueles que saíram do PT para “não serem cúmplices do desgaste”. Ele defende a tese de que há uma grande chantagem por parte da direita, que quer colocar o PT na “vala comum”, junto com os outros partidos. “A revista Época é do gru-
po Globo, que está endividado e chantageia o governo para ter troco”. Para o sociólogo, que se desligou do partido no final do ano passado, o PT se recusa a fazer a CPI porque sabe que “vai ficar prisioneiro dos achaques da direita”. “Esse é um bom recado para que o PT não invente inimigos à esquerda. Agora eles vão ver o que vem por aí: uma ampla maioria de chantagens”.
Filiados históricos recebem homenagem Nestor Cozetti do Rio de Janeiro (RJ) “Não se pode pensar o socialismo como algo que se crie da noite para o dia. Parece que nos afastamos, mas estamos apenas preparando a realização dos nossos ideais”. Com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na noite da comemoração do 24º aniversário do Partido dos Trabalhadores (PT), dia 13, no Hotel Glória do Rio de Janeiro, essas frases foram pronunciadas pelos dois principais homenageados no evento: Apolônio de Carvalho, 92 anos e portador da ficha de filiação nº 1, e Antônio Candido, 85 anos. O ato comemorativo reuniu mais de 2 mil, além do presidente, 13 ministros, governadores, senadores, deputados, prefeitos, lideranças de outros partidos e militantes petistas. O presidente do partido, José Genoíno, afirmou que o PT agora
Apolônio de Carvalho, militar que lutou na Guerra Civil espanhola também participou da Resistência Francesa contra o nazismo. No Brasil, Carvalho lutou na clandestinidade contra a ditadura, e recentemente foi anistiado como tenente do Exército, deixou seu recado: “Queremos uma sociedade sem explorados e sem exploradores. Uma ruptura contra o neoliberalismo abrindo espaço para uma sociedade inteiramente nova. Não se pode pensar o socialismo como algo que se crie da noite para o dia. Quem manda na sociedade é o povo com um determinado nível de consciência”. Antônio Candido, crítico literário e sociólogo, intelectual ligado ao PT desde a fundação, afirmou: “Os que acham que o PT está deixando o socialismo, não está. Parece que nos afastamos, mas estamos apenas preparando a realização dos nossos ideais: sairá daqui a formação da democracia socialista”.
Mauricio Scerni
Tatiana Merlino da Redação
Fotos: Mauricio Scerni
A denúncia de tráfico de influências e cobrança de propinas abrem discussões sobre ética e futuro do partido
Apolônio de Carvalho: socialismo não se cria da noite para o dia
vive um momento crucial e tentou justificar: “Temos a responsabilidade de ganhar as eleições de 2004. Somos um partido de esquerda e a esquerda só é revolucionária se mobilizar idéias e forças como um partido aliancista”. Valendo-se do exemplo dos homenageados, o presidente Lula afir-
mou que “o PT foi criticado mais por seus acertos do que por seus erros”. Sobre a experiência de governar o país, disse que “a responsabilidade é grande, não a administrativa, mas a histórica. Onde não podemos errar é na política e no comportamento ético”, numa referência indireta ao caso Waldomiro Diniz.
TERRA
A falta de terras e a ineficácia da política aumentam o desemprego urbano e criam o caos nas grandes cidades. Essa foi a tônica do seminário sobre reforma agrária e desemprego urbano, realizado dia 7, na cidade de Embu, região Sudoeste da Grande São Paulo. Um outro seminário, também organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), acontecerá em 24 de abril, sobre a questão ambiental. Segundo Geraldo Cruz, prefeito de Embu, “as cidades cresceram demais, sem planejamento, o que levou à total falta de moradia, ou com gente morando debaixo dos viadutos ou em cima de córregos. É preciso fazer esta ponte entre a reforma agrária e a reforma urbana, que têm de andar juntas”. Com ele concordou o deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), que alertou para a necessidade de o governo Lula dar um salto de qualidade na área social. “Este ano e o próximo têm de ser os anos do avanço no social. E o avanço social significa escola, significa saúde, significa reforma agrária e significa emprego. Aliás, reforma agrária tem o mesmo significado de emprego”, disse.
Seminário analisa plano de agricultura da Redação
Debate constata que falta de terras é uma das causas do caos na cidade
Para Gilmar Mauro, da coordenação nacional do MST, o Brasil é um dos países com maior quantidade de terras férteis do mundo – mais de 300 milhões de hectares. “Apesar disso, nós plantamos hoje, com toda a supersafra, com a propaganda que está se fazendo, em não mais de 50 milhões de hectares de terra; dados do Ministério da Agricultura”. Mauro lembrou que “a burguesia brasileira tem nojo de pobre, ojeriza de pobre e raiva de pobre or-
ganizado, porque pobre organizado é um perigo de fato para eles. Essa é a história desse país”. E apontou a saída: “Nada virá de cima para baixo. Se nós não tivermos a capacidade de nos organizar, de desenvolver a consciência de que quem tem de fazer as mudanças somos nós mesmos, nada acontecerá. E a reforma agrária só virá se nós continuarmos multiplicando o número de gente, multiplicando as formas organizativas, a produção, e desenvolvendo a consciência do nosso povo.”
A Via Campesina realizou, dias 9 a 11, em Brasília (DF), o seminário “Políticas do Banco Mundial para a Estrutura Agrária Brasileira e o Plano de Agricultura Camponesa”. O evento contou com a participação de representantes de movimentos de diversos Estados, professores e pesquisadores. O encontro serviu para discutir estratégias de desenvolvimento campesino e para socializar experiências e conhecimentos dos participantes. O economista e assessor dos movimentos sociais, Plínio Sampaio, abordou as políticas do governo para o campo e seus impactos para os movimentos sociais. Já o representante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Roberto Malvezzi, mais conhecido como Gogó, falou do processo de privatização da água. “A água é um recurso renovável e sua escassez é uma questão ideológica”, constatou. De acordo com Malvezzi, nos últimos anos a população mundial cresceu 20% e, do total de habitantes do planeta, 40% não têm saneamento básico. “A água é um bem da humanidade mas os serviços não são públicos”, disse. O sociólogo e engenheiro
João Roberto Ripper
Márcio Amêndola de Embu (SP)
Paulo Godoy
Reforma agrária gera emprego
Reforma agrária em debate
agrônomo Horácio Martins analisou a atual conjuntura brasileira e as lutas reivindicatórias. “É preciso definir o adversário de classe para tentar vencê-lo”, afirmou. Também foram apresentadas experiências bem-sucedidas de assentamentos no país. O relato das experiências faz parte do estudo elaborado pela professora Mônica Martins junto a representantes dos movimentos. De acordo com a pesquisa realizada pelo Assentamento Conquista (SC), a população local aceita os agricultores assentados por unanimidade. O Assentamento Conquista conta com 60 famílias que, além de produzirem para o auto-sustento, ainda, abastecem alguns mercados da região.
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NACIONAL CIDADANIA
Contratos apresentados pela concorrente Dolly mostram alguns dos principais envolvidos no forte esquema da transnacional no Congresso
Prakash Singh/AFP
O poderoso lobby da Coca-Cola no Brasil documento, de 19 de novembro, referente à contratação da empresa Idéias, Fatos e Textos, de propriedade do cunhado da atual namorada de Paes dos Santos, o jornalista Luis Costa Pinto. Conforme o documento, Pinto teria como missão o “monitoramento dos trabalhos da Comissão Permanente de Defesa do Consumidor em relação à tentativa de se marcar uma audiência pública para debater ‘evasão de divisas’ e relacionar tal assunto à Coca-Cola”.
Anamárcia Vainsencher, Bruno Fiuza e Otavio Maia da Redação
RELAÇÕES PROMÍSCUAS
N
a sessão ordinária do dia 3 de dezembro de 2003, o requerimento apresentado pelo deputado Celso Russomano (PP-SP) que pedia uma audiência pública com a Coca-Cola na Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias da Câmara Federal foi tirado da pauta de votação sem a sua presença. O deputado Givaldo Carimbão (PSB-AL), presidente da comissão, confirmou a versão da assessoria de imprensa de Russomano, segundo a qual a pressão exercida para que o requerimento não fosse votado teria sido feita, entre outros, pelo deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP). O petebista teria argumentado que o requerimento estava prejudicado por reeditar outro, semelhante, apresentado também por Russomano e que fora rejeitado por unanimidade na reunião anterior da comissão.
“Coca-Cola não”, protestam os indianos contra a transnacional, acusada de produzir refrigerantes com pesticida
Brasil, contou a Laerte Codonho, presidente da Dolly Refrigerantes, detalhes do plano que estava coordenando para tirar a concorrente do mercado através da corrupção de órgãos públicos e estratégias de concorrência desleal. O especial interesse de Faria
de Sá, ainda inexplicado, por um caso de uma comissão da qual nem faz parte, é um dos indícios que levantou a suspeita de que o deputado estaria agindo em favor de um lobby da Coca-Cola no Congreso. O coordenador da manobra seria o lobista Alexandre Paes dos Santos,
com quem Faria de Sá tem contato já conhecido. Em 2001, o petebista forneceu a Paes dos Santos uma credencial autorizando sua livre circulação pelo plenário da Câmara, e ainda declarou à Revista Época que fazia parte da bancada de Santos na casa. Entretanto, não está comprovada a relação entre Paes dos Santos e Faria de Sá no lobby pró-Coca-Cola.
LIGAÇÕES PERIGOSAS MANOBRA ESPECIAL Essa seria apenas mais uma manobra política, entre tantas outras que acontecem todos os dias na Câmara dos Deputados, não fossem algumas peculiaridades interessantes: Arnaldo Faria de Sá, líder do PTB na Câmara, não faz parte da Comissão de Defesa do Consumidor e, ainda assim, também esteve presente na sessão da mesma Comissão em 27 de novembro. Na ocasião, Russomano apresentou as fitas de vídeo com a gravação de trechos da conversa em que Luiz Eduardo Capistrano do Amaral, ex-diretor da Spal, maior engarrafadora da Coca-Cola no
Procurado pela reportagem, o deputado disse não ter mais ligações com o lobista. Sobre a sua participação na sessão ordinária da Comissão de Defesa do Consumidor, em 3 de dezembro, limitou-se a dizer “nada a declarar”. Em entrevista coletiva realizada dia 11, a assessoria de imprensa da Dolly Refrigerantes forneceu um documento, datado de 1º de setembro, que provaria a contratação do Instituto de Projetos Avançados S/C (IPA), empresa de Paes dos Santos, pela Coca-Cola, via Recofarma, uma das fábricas do sistema Coca-Cola no Brasil. Também foi distribuído outro
Documentos apresentados pela Dolly que comprovariam contratação do lobby
Um dos principais objetivos da Coca com a contratação do lobista, segundo o documento apresentado pela concorrente, é evitar que as investigações sobre as denúncias de Laerte Codonho sejam realizadas na Câmara dos Deputados. A multinacional quer que as apurações sejam feitas pela Secretaria de Direito Econômico (SDE). A outra missão de Luis Costa Pinto é realizar um monitoramento da mídia, em especial um “acompanhamento do caso junto aos repórteres que cobrem a rotina da Secretaria de Direito Econômico”. A Dolly possui ainda um outro documento que poderia explicar o interesse da Coca-Cola em transferir as investigações para a SDE. Trata-se de um pedido de reembolso de Daniel de Carvalho Mendonça, gerente de assuntos governamentais da Coca-Cola Internacional Limitada, à multinacional, referente a um almoço com Alexandre Paes dos Santos, no dia 12 de dezembro, e um jantar com um “assessor técnico da SDE”, dia 19 de novembro, ambos em Brasília. Segundo o presidente da Dolly, a empresa teve acesso aos documentos fornecidos à imprensa por meio de um endereço eletrônico criado exclusivamente para receber denúncias sobre o caso. As investigações, entretanto, podem chegar em breve à Câmara Federal. O deputado Givaldo Carimbão já afirmou que, no máximo até a semana seguinte ao Carnaval, irá apresentar, junto com Celso Russomano, novo requerimento pedindo uma audiência pública com os envolvidos nas denúncias.
Relações promíscuas entre empresa e Estado Desde agosto do ano passado, a empresa Dolly Refrigerantes vem fazendo pesadas acusações contra a líder de mercado Coca-Cola. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o presidente da Dolly, Laerte Codonho, conta como a concorrente estaria operando um lobby que controlaria segmentos do aparelho de Estado a seu favor, e detalha um suposto plano de eliminação da empresa brasileira. As acusações começaram quando a Rede TV! veiculou uma fita fornecida por Codonho na qual Luiz Eduardo Capistrano do Amaral, ex-diretor de aquisições estratégicas da Coca-Cola, contava ao próprio Codonho como comandava o plano de eliminação contra a Dolly, ordenado pela matriz da transnacional, sediada em Atlanta (Estados Unidos). Brasil de Fato - Como funcionava o esquema que o senhor diz que a Coca-Cola colocou em prática para tirar a Dolly do mercado ? Laerte Codonho – A estratégia, segundo o próprio diretor da Coca-Cola, envolvia fornecedores, Ministério Público, Receita Federal, sabotagem e espionagem. BF - Como funcionava essa estratégia junto aos fornecedores? Codonho – Através da pressão em cima dos fornecedores para que paralisassem o fornecimento para a Dolly. Isso em outubro de 2000, para que a Dolly entrasse
Quem é Laerte Codonho preside a Dolly Refrigerantes, primeiro fabricante a lançar um refrigerante diet no Brasil. Filho do compositor de jingles Odécio Codonho, Laerte se formou em economia e trabalhou no mercado de capitais antes de montar a primeira planta da Dolly, em 1987.
no verão sem insumos. BF - E como a Coca-Cola sabia quem estava vendendo para a Dolly? Codonho – Isso é do conhecimento de mercado, mas em relação aos volumes o Capistrano disse que tinha acesso aos dados da Receita Federal. BF - O senhor denuncia a existência de uma “portaria Capistrano”, editada pela Receita Federal em 1999, e atualizada em 2000. Como funcionava isso? Codonho – Era uma portaria determinando que todos os fornecedores eram obrigados a informar os volumes à Receita, e ele (Capistrano) disse que tinha o controle disso. Essa portaria teria sido feita justamente para a Coca-Cola ter controle sobre todo mundo.
BF - Como funcionava o esquema com o Ministério Público? Codonho – Segundo Capistrano, eles acionavam o Ministério Público para criar problemas, estratégia que chamava de “perturbação”: entra com uma ação aqui, outra ação ali. Você tem que perturbar o camarada para não deixá-lo trabalhar, que era o caso da Dolly, não deixá-la trabalhar. BF - Com essa estratégia, o senhor acha que a Coca-Cola tentava controlar o Estado brasileiro? Codonho – Não apenas tentativa... Com certeza eles imaginam que controlam tudo. Com essas revelações de agora, o próprio diretor da Coca-Cola diz que não quer que as denúncias sejam apuradas na Câmara dos Deputados, mas na Secretaria de Di-
reito Econômico (SDE) Nós mostramos que o gerente de assuntos governamentais da Coca-Cola estava jantando com um assessor técnico da SDE, e o assessor técnico da SDE, nesse caso, funciona como juiz, é como o Judiciário. Então você imagina a parte jantando com o assessor técnico que vai julgar uma causa dessa envergadura. Quer dizer, é uma vergonha, né ?
e foi durante a ausência do deputado (Celso) Russomano que votaram (o requerimento pedindo audiência pública com a CocaCola na Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias da Câmara Federal). Um absurdo. E agora ninguém sabe quem votou. BF - Em entrevista ao Pasquim21, o senhor disse que, no ano passado, veio a público fazer as denúncias às 18h30 e que às 23h00 o empresário Nelson Schincariol foi morto. Haveria alguma ligação entre esses fatos? Codonho – Não. Não posso afirmar isso. Só posso dizer que a própria Coca-Cola, através do Capistrano, disse que no México não tem concorrência porque eles assassinam a concorrência, matam, eliminam fisicamente. E são as mesmas pessoas que controlam a Coca-Cola em São Paulo. (AMV, BF, OM)
BF - Na conversa entre o senhor e Luiz Eduardo Capistrano do Amaral, ele diz que a Coca-Cola teria ligação com uma empresa que consta da lista das lavanderias fiscais da Operação Anaconda, é isso? Codonho – As pessoas que eles plantaram dentro da nossa empresa, que pegaram dinheiro dos nossos impostos e não recolheram, um deles é sócio do (Jorge) Giganti (ex-presidente da Coca-Cola para o Brasil, Argentina e México), e está envolvido na Operação Anaconda.
Nota da Redação
BF - Onde o senhor acha que o lobby da Coca-Cola está mais ativo ? Na SDE? Codonho – Eu acho que na SDE e no Congresso, porque eles conseguiram rejeitar um negócio de maneira irregular. Você viu na reportagem da Isto é Dinheiro que nunca aconteceu isso no Congresso: quem apresenta a queixa tem que estar presente
A reportagem do Brasil de Fato entrou em contato com a CocaCola, com a empresa Idéias, Fatos e Textos e com Alexadre Paes dos Santos. A Coca-Cola retornou o contato, mas por problemas de prazo não foi possível agendar entrevista. A Idéias, Fatos e Textos não retornou a ligação. Paes dos Santos disse não ter informações sobre o caso.
Ano 2 • número 51 • De 19 a 25 de fevereiro de 2004 – 9
SEGUNDO CADERNO EQUADOR
Povo quer mudanças e pressiona Gutiérrez Movimento popular exige fim do pagamento da dívida externa e da participação do país na Alca
RENÚNCIA O atentado contra o atual presidente da Conaie, Leonidas Iza, em janeiro, foi o estopim que desencadeou a nova onda de mobilizações no país. “Os protestos estão
ocorrendo em defesa da soberania e dignidade do povo, contra as negociações de um acordo de livre comércio com os Estados Unidos e contra a privatização dos campos petroleiros, das empresas elétricas e de telecomunicações”, explicou Iza. Segundo o líder indígena, as mobilizações não têm como objetivo fundamental derrubar Gutiérrez, mas “estamos dizendo que ele de-
veria renunciar para o bem do país”. A promessa é que os protestos evoluam progressivamente até que o presidente atenda às reivindicações. O apoio ao presidente é cada vez menor. Pesquisas indicam que o descontentamento com Gutiérrez chega a 71% nas regiões serranas do Equador e a 67% no litoral. As principais estradas que ligam a capital Quito ao Norte e Sul do país
foram bloqueadas, nas províncias de Cotopaxi, Chimborazo e Imbabura. Os manifestantes encontraram um forte efetivo policial e militar, destacado por Gutiérrez para reprimir as manifestações. Na província de Nabón, os militares dispararam contra os indígenas, além de lançarem bombas de gás lacrimogênio e atearem fogo na vegetação para amedrontar a população. “Vivemos uma ditadura militar com o coronel Lucio Gutiérrez. Os militares reinam neste país”, acusou o padre Jara, em entrevista a uma rádio local.
DIÁLOGO
Movimentos sociais realizam bloqueio de estradas e passeatas para protestar contra política neoliberal de Gutiérrez
MOBILIZAÇÃO NACIONAL PELA VIDA Objetivos do movimento indígena no Equador > Denunciar a política terrorista do governo de Lucio Gutiérrez contra dirigentes populares; > Defender a reativação da produção nacional; > Rechaçar as negociações do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos e do acordo da Alca; > Pedir o arquivamento, pelo Congresso Nacional, do projeto de “Lei de Biodiversidade”; > Exigir a suspensão do pagamento da dívida externa e a realização de sua auditoria; > Reivindicar o fim da lei de Responsabilidade e Transparência Fiscal, introduzida pelo FMI para garantir o pagamento da dívida; > Pressionar o governo para não privatizar o setor petrolífero, as telecomunicações, a energia elétrica, e outros setores; > Defender os direitos trabalhistas lesados pela política neoliberal de Lucio Gutiérrez.
CUBA
O ministro do Governo, Raul Baca, tentou minimizar a importância dos protestos populares e afirmou que o governo tem todo o interesse em retomar o diálogo com a Conaie e as outras organizações que participaram das mobilizações. O líder indígena Leonardo Iza disse que aceita conversar, mas propõe que o encontro ocorra em um lugar neutro, e não na sede do governo, em Quito. “Queremos dialogar em um lugar onde se garanta que o que falaremos seja realidade. As alternativas seriam as sedes da Organização das Nações Unidas (ONU) ou da Organização dos Estados Americanos (OEA)”, indicou. (Com Agência de Notícias Plurinacional do Equador e Adital)
VENEZUELA Andrew Alvarez/AFP
O
ano começou quente no Equador. Milhares de indígenas, estudantes, agricultores e trabalhadores saíram às ruas para protestar, dia 16, contra a política econômica neoliberal do presidente Lucio Gutiérrez. As manifestações, batizadas de “Mobilização Nacional pela Vida”, foram lideradas pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie). A entidade, durante assembléia dia 9, decidiu reforçar a pressão contra Gutiérrez. Com o apoio de 50 organizações populares, o movimento indígena bloqueou estradas e marchou em cidades do interior do país. A Conaie entregou ao governo uma lista de exigências, como a suspensão do pagamento da dívida externa, a realização de sua auditoria e o rechaço à Área de Livre Comércio das Américas (Alca). (Veja quadro). Essas reivindicações não são recentes. Já foram entregues, em outras ocasiões, a dois presidentes equatorianos: Abdalá Bucaram e Jamil Mahuad. Ambos não ouviram as reclamações do movimento popular e acabaram depostos. O próprio Gutiérrez foi eleito, há um ano, defendendo essas bandeiras, com o apoio dos indígenas. Uma vez no cargo, no entanto, o presidente abandonou suas promessas e
adotou uma política de orientação neoliberal, privilegiando alianças com setores da direita. Em agosto de 2003, os indígenas retiraram o apoio ao governo.
France Presse
da Redação
Presidente Chávez apresentou provas de que governo dos Estados Unidos financiam oposição
Economistas propõem EUA apóiam ataque da oposição saídas contra globalização da Redação Terminou, dia 14, o 6º Encontro Internacional de Economistas sobre Globalização e Problemas do Desenvolvimento, realizado na cidade de Havana, Cuba. Durante o encontro cerca de 1.400 especialistas de 50 países discutiram os impactos negativos da globalização neoliberal na formação da identidade nacional. Pela primeira vez foi debatida em um fórum desse tipo a relação entre economia e cultura. As discussões apontaram para o fato de que esses dois aspectos têm afinidades na medida em que o conceito de economia engloba o de indústria, e tudo o que esta produz contém uma mensagem cultural, seja nos alimentos, no vestuário ou na arte, entre outros. Um dos intelectuais de maior destaque foi o cientista político estadunidense James Petras, que em sua participação no painel “O imperialismo e a transição do neoliberalismo ao colonialismo” afirmou que a humanidade vive uma época de grandes perigos, mas também de grandes oportunidades. Segundo Petras, os perigos vêm da agressividade e do triunfalismo dos grandes centros de poder, ba-
seados em uma configuração de mundo supostamente unipolar. As oportunidades, no entanto, estariam representadas pela mobilização de setores sociais que tanto em âmbito nacional como internacional, configuram uma séria oposição àquilo que definiu como “projeto de dominação imperial dos Estados Unidos”. Petras destacou como exemplo do avanço das forças progressistas, em especial na América Latina, o exemplo permanente da Revolução Cubana, a oposição dos povos latino-americanos à Área de Livre Comércio das Américas (Alca), o processo de transformação em curso na Venezuela e a emergência do movimento social e indígena na Bolívia. No encerramento do encontro, o presidente cubano Fidel Castro alertou para os planos dos Estados Unidos contra a ilha e declarou que o povo de seu país está disposto a defender a segurança social e as conquistas da revolução. As declarações de Fidel foram uma resposta à decisão, anunciada pela Casa Branca, de “acelerar a transição em Cuba”, para a qual a administração Bush instaurou uma comissão com o objetivo de preparar uma mudança de governo na ilha. (Prensa Latina)
Claudia Jardim da Redação Com apoio declarado do governo dos Estados Unidos, a oposição na Venezuela lançou uma nova ofensiva contra o presidente Hugo Chávez. Dia 16, o secretário-adjunto do Departamento de Estado para Assuntos Hemisféricos dos EUA, Peter Deshazo, em companhia do embaixador estadunidense Charles Shapiro, admitiu que a Casa Branca financia organizações não-governamentais (ONGs) na Venezuela, como uma de suas estratégias para “fomentar a democracia no mundo”. O anúncio foi feito após Hugo Chávez ter apresentado documentos no programa “Alô Presidente”, que comprovam o financimento do governo dos EUA a grupos de oposição no país.
REEDIÇÃO DO 11 DE ABRIL As provas mostram que o governo Bush, por meio do Departamento de Estado e Fundo Nacional para a Democracia (FND), repassou à Sumáte e à Frente de Justiça e Direito Internacional (FJDI), organizações da oposição, cerca de 1 milhão de dólares. Esses recursos foram usados, de acordo com Chávez, para organizar o golpe de 11 de abril de 2003 e o firmazo.
A oposição contou com apoio da mídia para organizar a marcha, que ganhou as ruas do Leste de Caracas, dia 14. A manifestação tinha como objetivo pressionar o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) para validar as assinaturas que estão sendo reavaliadas em razão dos fortes indícios de irregularidades. O coordenador do CNE, Oscar Bataglini, qualifica como “exagerada” a postura da oposição, que passou a questionar a legitimidade da instituição. “Não somos atores políticos deliberantes nem beligerantes. Somos árbitro e qualquer que seja o resultado da revisão das assinaturas, daremos em seguida uma resposta ao país”. A decisão deve ser divulgada no final deste mês. Se o CNE admitir as fraudes denunciadas pela população e por observadores internacionais da América Latina Referendo – Se a oposição conseguir as assinaturas, será convocado um referendo para a população decidir entre a continuidade do governo Chávez ou a convocação de novas eleições. Golpe de 11 de abril – Com o apoio da mídia, a oposição organizou um golpe em 2003, tomou o poder e divulgou que Chávez havia renunciado. Em 48 horas, o povo saiu às ruas para exigir a volta do presidente, que estava preso. Carlos Ortega e Pedro Carmona, mentores do golpe, fugiram do país.
e Europa, cerca de metade das 3,4 milhões de assinaturas que a oposição alega ter recolhido será descartada. Para convocar o referendo, são necessários 2,4 milhões de assinaturas.
CNE “PARALELO” Já o Centro Carter – observador internacional ligado aos Estados Unidos – anunciou que o CNE não tem que se ater aos “procedimentos legais do firmazo, e sim à vontade do povo”, o que desrespeitaria as normas previstas na Constituição. “Não podemos aceitar em nenhum momento que a assinatura de um morto seja tecnicismo eleitoral, ou o caso de um estrangeiro que não pode votar, ou que um menor de idade assine”, rebate o vice-presidente venezuelano, José Vicente Rangel. Para ele, a opinião do Centro Carter e da Organização dos Estados Americanos (OEA) não pode estar acima das decisões do CNE. No encontro com o Peter Deshazo, Rangel qualificou de inaceitável a proposta dos EUA de criar um CNE “paralelo”, com poderes superiores ao Conselho venezuelano. “Isso não aceitamos e que fique muito claro para os EUA, França, Inglaterra e a comunidade internacional”, reitera. (Com www.aporrea.org)
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AMÉRICA LATINA PERU
Oposição insiste em renúncia de Toledo da Redação
O
ano começa mal para o presidente peruano Alejandro Toledo: diante da pior crise política desde que assumiu a presidência, em julho de 2001, questiona-se se ele conseguirá completar seus cinco anos de mandato. Às várias manifestações públicas e massivas de desagrado com sua gestão, traduzidas em exíguos 7,2% de apoio popular, soma-se o desmoronamento da aliança governamental Peru Possível (PP) com a Frente Independente Moralizadora (FIM) e a renúncia de militantes, alguns parlamentares. Até agora, Toledo mantinha 39 votos no Congresso – quase um terço –, insuficientes para assegurar a governabilidade. Nesse cenário, a oposição, encabeçada pelo Partido Aprista Peruano (PRA), analisa inclusive a possibilidade de pedir a renúncia de Toledo e convocar eleições antecipadas. Porta vozes do governo anunciaram, na semana passada, a formação de um novo gabinete onde estarão representados todos os setores da sociedade. Mas a tarefa não parece fácil – o PRA e a Ação Popular se negaram a integrar o Conselho de Ministros reformado e insistem nas novas eleições. A crise começou com a revelação da existência de “negociações” entre um colaborador do presidente
Alejandra Brun /AFP
Com o agravamento da crise política, presidente perde terreno e as eleições podem ser antecipadas de 2002 o militar se apresentou às autoridades judiciais, entregou seu depoimento e foi detido. Mas dia 29 de agosto desse ano a pena de prisão foi substituída por detenção domiciliar devido “à importância da informação prestada e pela qualidade das provas concedidas”. Vidal reconheceu ante a Justiça as aquisições indevidas por um montante superior a 22 milhões de dólares, admitiu ter desviado fundos do Exército e do Ministério do Interior para o Serviço Nacional de Inteligência – comandado por Montesinos – e apontou onze generais e duas dezenas de oficiais corruptos implicados em delitos. Suicidou-se dia 1º de setembro de 2002.
EXTRADIÇÃO DE FUJIMORI
Manifestantes em Lima protestam em frente ao Congreso, pedindo a renúncia do presidente por incapacidade moral
e um militar da chamada “máfia fujimontesina”. Os protagonistas: o advogado César Almeyda Tasayco, o principal assessor e advogado pessoal de Toledo, e o general (da reserva) Oscar Villanueva Vidal, considerado “o caixeiro” de Vladimiro Montesinos. O encontro entre eles aconteceu dia 10 de dezembro de 2001, quando o primeiro era chefe do Conselho Nacional de In-
teligência (CNI) e o segundo estava foragido da Justiça.
ACORDOS SUSPEITOS Chefe do Escritório Geral de Administração do Ministério do Interior, entre 1996 e 1999, Vidal autorizou, em 1997 – com anuência de Montesinos – a compra de três helicópteros por cerca de 12 milhões de dólares. Em 2002, a procuradoria
do setor o denunciou penalmente por ter supervalorizado o preço das aeronaves que, além de tudo, estavam em péssimo estado de conservação. Em 2001, depois da renúncia de Fujimori, Vidal reuniu-se com Almeyda para negociar um acordo com as autoridades anticorrupção: entregaria informações sobre delitos da máfia em troca do benefício da lei de colaboração. Dia 31 de maio
Uma missão jurídica peruana foi a Tóquio requerer a extradição do ex-presidente Fujimori – refugiado naquele país desde novembro de 2000, depois de ter abandonado o Peru e enviado seu pedido de renúncia por fax. Os peruanos querem poder processar Fujimori, acusado de corrupção e desvio de dinheiro, e responsabilizado por assassinatos e desaparecimentos de pessoas. Em julho do ano passado, a Justiça do Peru pediu a extradição de Fujimori pelos massacres de Barrios Altos e da universidade La Cantuta, em 1991 e 1992, que resultaram em 25 mortes. (IPS/Envolverde)
COLÔMBIA
Visita do presidente Uribe fracassa na Europa A visita do presidente colombiano, Álvaro Uribe, ao Parlamento Europeu em busca de apoio político fracassou. Os partidos de esquerda boicotaram a sessão por considerar o visitante como chefe de um governo que viola direitos humanos. Dos 626 deputados, compareceram apenas 250, dia 10. Destes, alguns receberam-no acenando com lenços brancos com a inscrição Paz e Justiça na Colômbia. Dias antes, Yolanda Pulecio, mãe da ex-candidata à presidência Ingrid Betancourt, prisioneira das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), criticou Uribe, acusando-o de não manifestar interesse pela sorte dos prisioneiros ao fechar as portas do diálogo para um acordo humanitário. O presidente reafirmou essa posição no discurso em Estrasburgo, sede do Parlamento. Uribe pediu apoio, financeiro e militar, para organizar uma nova conferência em defesa de sua política interna na Colômbia, batizada de segurança democrática. Ouviu um rotundo não de Romano Prodi, presidente da Comissão Européia. O comissário Chris Patten aproveitou a oportunidade para criticar o projeto colombiano de anistia aos paramilitares. Afirmou, ainda, considerar que não é sensato dar poderes judiciais aos militares, como quer Uribe.
DISCURSO INÓCUO Os grandes meios de comunicação europeus mostraram que a Colômbia é um país traumatizado, com um governo de extrema direita incapaz de superar a crise social e de encontrar solução para uma guerra civil de quatro décadas. A oratória de fachada democrática de Uribe não convenceu nem as forças políticas mais conservadoras da União Européia. Uribe é ideologicamente um fascista que não pode se assumir como tal. A derrota no referendo popular, de 25 de outubro – quando foi derrotado em 14 das 15 perguntas
local. Ex-ministra de Andres Pastraña e ex-candidata à presidência, Noemi Sanin sabe que o Congresso rejeitou projeto similar, em outra ocasião. Hoje, são poucas as chances de aprovar uma emenda constitucional que viabilize a candidatura do atual mandatário. Mas Noemi não desiste. Admitindo a impossibilidade da reeleição, implora que, pelo menos, lhe prorroguem por dois anos o mandato.
Pedro Armestre/AFP
Miguel Urbano Rodrigues
VASSALAGEM
Protesto de exilados colombianos em frente à embaixada do país, em Madri, dia 13
submetidas à consulta – demonstrou a falsidade das pesquisas que lhe atribuíam grande popularidade. O povo, ainda, rejeitou candidatos uribistas a governadores e prefeitos nas grandes cidades, incluindo Bogotá, nas eleições do dia seguinte. A situação financeira colombiana é grave: déficit de 7,5 bilhões de dólares e dívida externa de metade do Produto Interno Bruto (PIB). O povo aperta o cinto, o desemprego atinge índices alarmantes, os indicadores da saúde, educação e outros setores sociais pioram.
APARELHO DE REPRESSÃO Uribe insiste na estratégia que faz do aparelho de repressão a alavanca da chamada política de segurança democrática global. A retomada da velha e desacreditada tese segundo a qual a vitória militar sobre a insurgência é possível reforçou, na prática, a subordinação da Colômbia aos ditames de Washington. Bogotá não é apenas o melhor aliado da administração
Bush no continente. O Plano Colômbia, reformulado conforme as exigências da Casa Branca e do Pentágono, aparece hoje como a ponta de lança na América Latina de um sistema de dominação imperial que configura ameaça mortal a todos os países da região amazônica. A rede de bases militares
implantadas na Colômbia e nos Estados vizinhos (Equador e Panamá) emerge como instrumento dessa política belicista de recolonização. Inesperadamente, nesse ambiente desfavorável, a embaixadora da Colômbia na Espanha relançou a idéia da reeleição de Uribe, possibilidade vetada pela Constituição
Fica claro que o governo de Bogotá desempenhará o papel que Washington lhe atribuir. Como o Chile, assinará um tratado de livre comércio (TLC), inspirado pela Área de Livre Comércio das Américas (Alca) dura, rejeitada em Miami, ou um acordo sub-regional no espaço andino – sem a Venezuela –, similar ao criado para os países da América Central. Esta política de vassalagem, apoiada pela oligarquia, tem sido denunciada e combatida com firmeza pelas forças democráticas e progressistas. As tensões sociais aumentam, sobretudo nas grandes cidades, e a resposta do governo é a repressão contra os trabalhadores, os estudantes e os camponeses. O fracasso de Uribe na sua visita à Europa talvez sirva para assinalar o início de um recrudescimento da luta de massas contra um governo que não consegue mais ocultar seus contornos neofascistas.
Fatos da América Latina > Estudantes vão às ruas no Haiti
> Nicaraguenses X transnacionais
Milhares de jovens protestaram, dia 16, nas principais vias da capital Porto Príncipe, exigindo a renúncia do presidente Jean-Bertrand Aristide. Os estudantes acusam Aristide de desrespeitar direitos humanos, de corrupção e de ter fraudado as eleições de 2000. Grupos oposicionistas já controlam a quarta maior cidade do país, Gonaive, desde 5 de fevereiro. O presidente ameaça fazer nova ofensiva militar para reassumir o controle da cidade.
Mais de dois mil trabalhadores de plantações de banana da Nicarágua caminharam 140 quilômetros para chegar à Assembléia Nacional, dia 10, e exigir do governo apoio no conflito com transnacionais estadunidenses. Os agricultores acusam empresas Shell e Dow Chemical, entre outras, de usarem, em 1998, pesticidas proibidos nas plantações por causarem câncer, esterilidade, abortos e má formação congênita. Os trabalhadores exigem 17 bilhões
de dólares de indenização e querem tornar o caso exemplar para evitar novos abusos das transnacionais. > Violência policial na Guatemala Uma organização de direitos humanos conhecida como Grupo de Apoio Mútuo denunciou que, só em janeiro, 109 guatemaltecos foram assassinados. A Anistia Internacional alerta para a violência no país e suspeita que defensores de direitos humanos estão sendo ameaçados pelas próprias forças do Estado.
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INTERNACIONAL ENCONTRO PELA PAZ
Movimentos articulam-se contra guerra Miguel Stédile de Porto Alegre (RS)
A
guerra é apenas um mecanismo de garantir a sustentação de um projeto dominador e de um modelo econômico excludente e opressor. Esta foi a tônica do Encontro pela Paz e contra a Guerra, realizado em Porto Alegre (RS), nos dias 11 a 13. Segundo João Verle, prefeito de Porto Alegre, o encontro serviu para preparar o próximo Fórum Social Mundial, que retorna à capital gaúcha em 2005. Entre os desafios está a articulação permanente e internacional dos movimentos sociais. Na pauta das discussões, os planos de guerra dos Estados Unidos. “Os articuladores da doutrina de (George W.) Bush falam de uma guerra de 40 anos, portanto devemos estar preparados para lutar por 40 anos”, lembrou o filósofo francês Daniel Bensaid, painelista na abertura do encontro. Bensaid define a situação atual como de “guerra imperial”, parte de um processo de reordenamento geopolítico global, no qual “a disputa por novos mercados e territórios, pelo controle das principais rotas de energia e de comércio, de formação de novos blocos, normalmente ocorrem de modo violento”.
Fotos: Leonardo Melgarejo
Em Porto Alegre, ativistas debatem estratégias para combater políticas belicistas no novo reordenamento político global
O Encontro pela Paz e contra a Guerra reforça a importância da sociedade civil no posicionamento contra os planos dos Estados Unidos
ra também foi consenso, inclusive a oposição interna à política de Bush na sociedade estadunidense. Para o economista argentino Jorge Beinstein, não basta apenas resistência. “É preciso articular um projeto de superação do capitalismo que não repita mecanicamente experiências do passado, mas aproveite a riqueza dos movimentos de resistência do presente”, disse. Beinstein definiu esse projeto com uma palavra: “Socialismo”.
À SOMBRA DO FSM MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA O enfrentamento da Área de Livre Comércio das Américas e a defesa da biodiversidade e dos recursos naturais da América Latina também foram apontados como estratégicas na luta contra os planos dos Estados Unidos. A cientista política Ana Esther Ceceña, da Universidade Autônoma do México (Unam), explica que as bases militares estadunidenses são instaladas em áreas de reservatórios petrolíferos na Ásia e Oriente Médio e naquelas ricas em minérios essenciais para a indústria, biodiversidade e água, na África, América Central e na Amazônia. Mais tarde, essas estruturas militares são adaptadas e repassadas para a iniciativa privada. “Isso justifica, por exemplo, o astronômico orçamento militar dos EUA. O retorno à iniciativa privada é garantido” denunciou Ana Esther. O peso da sociedade civil organizada no movimento contra a guer-
A comparação entre o Encontro pela Paz e as edições anteriores do Fórum Social Mundial foram inevitáveis, mesmo porque os organizadores do evento sempre o definiram como uma “ponte” entre as discussões realizadas este ano em Mumbai, na Índia. No entanto, apesar do conteúdo dos painéis, o resultado final não deixou de ser pretensioso. Alguns painéis tiveram um público constrangedoramente pequeno. Nos bastidores, era visível a predominância da Prefeitura de Porto Alegre e a ausência de um número significativo de movimentos populares. Entre os seminários oficiais programados, um em especial chamou a atenção: “2004 - O desafio das eleições municipais”. Um tema bastante deslocado do eixo “Pela paz e contra a guerra”, mas muito importante para os partidos políticos, em especial o Partido dos Trabalhadores, que administra Porto Alegre há 16 anos.
DIREITOS HUMANOS
Mutilação genital feminina atinge filhas de imigrantes no Hemisfério Norte Emad Mekay de Washington (EUA) Apesar dos esforços para acabar com a mutilação genital feminina, agora não apenas meninas da África, do Oriente Médio e da Ásia sofrem essa prática, mas também filhas de imigrantes em países ricos do Hemisfério Norte. O problema está deixando de ser estritamente local e nacional, segundo representantes de governos e da sociedade civil reunidos em uma conferência em Washington. O procedimento está começando a ser constatado entre meninas e adolescentes dos Estados Unidos, Europa e Austrália, segundo ativistas e funcionários dos serviços de imigração que participaram da reunião. “Existe evidência crescente de que os pais levam suas filhas para a África para circuncisá-las”, disse a diretora do Centro de Saúde para Mulheres Africanas do Hospital Brigham de Boston (EUA), Nawal Nour, ginecologista nascida no Sudão. Especialistas e ativistas avaliaram em Washington os sucessos obtidos desde o Dia Internacional de Tolerância Zero contra a Muti-
lação Genital, em 6 de fevereiro de 2003, quando delegados da sociedade civil e de governos africanos se comprometeram a combater o fenômeno. A prática, que remonta há cinco mil anos, pode causar a morte por hemorragia, infecções crônicas, esterilidade e complicações no parto. Com freqüência, é feita por pessoas sem qualificação médica em meninas e adolescentes que não recebem anestesia. Os ativistas consideraram que tais mutilações ainda são feitas nas meninas africanas, apesar do acordo dos governos para acabar com ela. Trata-se de um procedimento usual em 28 países da África, Ásia e Oriente Médio. A avaliação coincide com os resultados preliminares de um estudo encomendado pela Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (Usaid) à empresa Macro International Inc., a ser divulgado em março.
GARANTIA DE FIDELIDADE Cerca de 130 milhões de meninas e mulheres em todo o mundo foram submetidas à mutilação genital feminina, e a cada ano cerca de
dois milhões de meninas e adolescentes somam-se a elas. O relatório da Macro International, do qual alguns detalhes foram revelados à imprensa, indica que mais de sete em cada dez mulheres sofreram o procedimento em Burkina Faso, Egito, Eritréia, Etiópia, Guiné, Mali, Mauritânia e norte do Sudão. Em países onde essa prática está profundamente arraigada, como Eritréia e Sudão, muitas mulheres são submetidas a uma modalidade conhecida como infibulação. Os pais submetem cada vez mais suas filhas, desde as primeiras semanas de vida até a idade de 1 a 3 anos, segundo o relatório. Conforme a crença popular, as meninas mutiladas não serão infiéis aos seus futuros maridos. Em algumas comunidades, inclusive, é um requisito para o matrimônio. A Usaid indicou que investe 1,3 milhão de dólares para combater essa prática na África. A ativista Rhonda R. Smith, do Escritório de Referência de População, afirmou que essa quantidade “não é nada” comparada com o que gastam organizações da sociedade civil. (IPS/Envolverde)
TIMOR LESTE
Thalif Deen de Genebra (Suíça) A Organização das Nações Unidas prepara a retirada de sua força de manutenção da paz de Timor Leste para maio. Contudo, a capital Dili pediu formalmente que 800 dos 3.500 integrantes da força de manutenção da paz continuem no país depois de terminado o mandato da missão. “Também pedimos assessoria em matéria financeira, econômica, de polícia e judicial. Necessitamos ajuda da ONU para consolidar o processo de reconciliação nacional e para conseguir um país estável”, disse José Luis Guterres, embaixador timorense na ONU. O coordenador de imprensa da ONG Rede de Ação em Timor Leste (ETAN), John M. Miller, afirma que “a ONU não completou sua tarefa de preparar o país para que assuma seus assuntos”. Para ele, a organização “deverá dar toda ajuda que o governo requer para pôr fim à transição”. A missão das Nações Unidas foi criada em maio de 2002, quando Timor Leste se converteu na mais nova nação independente do planeta. Além de soldados, o contingente internacional conta com 495 guardas civis, 439 funcionários civis e 890 funcionários ti-
Kemal Jufri/AFP
ONU promete retirar suas forças até maio
Timorenses querem punição pelos crimes de guerra cometidos pela Indonésia. Há insegurança sobre intenções do país vizinho
morenses. Seu orçamento para este ano é 195 milhões de dólares. Segundo Miller, o governo timorense também tem incertezas a respeito de atitudes da vizinha
Indonésia, que invadiu o Timor Leste depois da independência de Portugal, em 1975, e o anexou no ano seguinte. “A Indonésia parece estar testando Timor Leste, agora
que os pacificadores se retiraram das áreas fronteiriças”, disse o ativista, que alertou que deve ser “enviado um forte sinal à Indonésia e aos remanescentes milicianos”
pró-Indonésia a respeito da impossibilidade de que esse país volte a ser conquistado. O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, afirmou recentemente que, “obviamente, todas as operações de manutenção da paz devem chegar ao fim em um momento ou outro. O que queremos é assegurar que os êxitos obtidos não se percam quando nos retirarmos”, acrescentou. Quanto à possibilidade de distúrbios, como os registrados depois do referendo que decidiu pela independência do país, em 1999, Annan disse que a ONU está “trabalhando muito duro” para treinar a polícia e as forças de segurança de Timor Leste, “que serão capazes de manter a lei, a ordem e os êxitos obtidos”. O chanceler timorense José Ramos Horta disse estar convencido de que a ONU continuará de algum modo no país depois de maio, pois “as condições de segurança e paz no país ainda são frágeis”. O Conselho de Segurança das Nações Unidas se reune, dia 20, para analisar o futuro da missão. Enquanto isso, continua a campanha pela criação de um tribunal penal internacional para processar as violações de direitos humanos e os crimes de guerra cometidos durante a ocupação indonésia. (IPS/Envolverde)
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INTERNACIONAL ÁFRICA
Países unificam combate a corrupção A
primeira reunião de chefes de Estado e autoridades de países africanos signatários do Mecanismo Africano de Avaliação pelos Pares (Maap) — instrumento que permite a investigação de um país pelo outro em questões como corrupção e respeito aos direitos humanos — aconteceu no último fim de semana, dias 13 e 14 de fevereiro, em Kigali, capital de Ruanda (África Oriental). O Maap é um instrumento criado pela Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (Nepad, sigla das iniciais em inglês), iniciativa lançada em 2001 pela África do Sul, pelo Senegal e pela Nigéria, como plano global de recuperação econômica e desenvolvimento do continente. A diferença entre outros planos de recuperação e este é que o Nepad foi concebido pelos próprios africanos e é dirigido por eles, sem a interferência de organismos internacionais com suas tentativas de impor uma reforma. O objetivo do Maap é criar condições para a adoção de leis, políticas, padrões e práticas apropriadas a conduzirem à estabilidade política, ao crescimento econômico e ao desenvolvimento sustentável. Com isso, as lideranças africanas pretendem combater as percepções negativas da África e torná-la mais atraente para investidores privados. Os países industrializados exigem princípios de boa governação e mecanismos anticorrupção para investir no continente. Os países signatários do Mecanismo de Avaliação vão se abrir à investigação de agências independentes, tais como a Comissão Econômica para a África, órgão das Nações Unidas, em quesitos como governação, corrupção, transparência, direitos humanos, democracia e ambiente interno para investimentos. Até agora, 17 países assinaram o acordo: Angola, Argélia, Burkina Fasso, Camarões, Etiópia, Gana, Gabão, Quênia, Mali, Maurício, Moçambique, Nigéria, Ruanda, Re-
Paul Kagame, presidente de Ruanda (à direita), recebe convidados do Nepad
pública do Congo, Senegal, África do Sul e Uganda. Durante a reunião, foram apresentados os resultados dos trabalhos de sete entidades encarregadas, em maio de 2003, de definir os critérios de avaliação para o Maap. Os chefes de Estado aprovaram a agenda das avaliações, acertaram o calendário e o formato dos procedimentos de monitoração individual, um questionário padrão e o regulamento interno
do secretariado do órgão. O primeiro grupo de países a ser avaliado, ao longo de 2004, é formado por Gana, Quênia, Ruanda e Maurício.
SUBSÍDIO INJUSTO Especialistas questionam se o Maap, por se tratar de um mecanismo de adesão voluntária, será de fato eficaz em países africanos que detêm os piores índices em democracia e direitos humanos.
Os líderes africanos reunidos em Kigali ocuparam a agenda do dia 14 tentando buscar maneiras de conseguir convencer europeus e estadunidenses a diminuir os subsídios à agricultura em seus mercados internos. Segundo declaração de Claver Gatete, um dos coordenadores do Nepad, à imprensa africana, os subsídios aos produtos agrícolas nos países desenvolvidos chega a 1 bilhão de dólares por dia, num total de 300 bilhões de dólares por ano. O subsídio (ou ajuda governamental) permite que os produtos cheguem ao mercado mais baratos. A produção agrícola africana, não subsidiada, acaba impedida de competir nos mercados ocidentais. Segundo Claver Gatete, a agricultura, uma das principais indústrias do continente africano, é minada pela política de subsídios dos países ricos. Participaram da reunião em Kigali os presidentes da Nigéria, Olusegun Obasanjo, de Ruanda, Paul Kagame, Gana, John Kufuor, Gabão, Omar Bongo, Senegal, Abdoulaye Wade, Moçambique,
Seyllou/AFP
Marilene Felinto da Redação
Gianluigi Guercia/AFP
Desrespeito aos direitos humanos também será alvo do regulamento para fiscalização entre países definido dia 14
Empregado de centro nacional eleitoral, na Mauritânia, produz títulos de eleitor
Joyce Mulama de Mumbai (Índia) Há crescente pressão sobre os governos na África para não pagar suas pesadas dívidas estrangeiras. Ativistas africanos dizem que o dinheiro deveria ser usado para desenvolver o setor da agricultura, que é a espinha dorsal das suas economias, e no qual 70% da população trabalham. Os ativistas, membros de organizações da sociedade civil, dizem que é preciso desenvolver a agricultura para fortalecer o poder econômico da África. Numa sessão acalorada no Fórum Social Mundial (FSM – em janeiro, na Índia), mais de 300 delegados da África discutiram a política econômica para o continente e chegaram à conclusão de que uma das principais razões que levaram as nações africanas a boicotar a reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em setembro de 2003, em Cancún, foi a agricultura. Naquela ocasião, membros africanos da OMC abandonaram a reunião em protesto, devido às posições tomadas pelos países do ocidente a respeito da agricultura e que tiveram um impacto negativo nos países do terceiro mundo. “A África precisa pensar em dei xar a OMC, caso a organização continue perturbando o continente. Nós
Desirey Minkoh/STR
Nações do continente são aconselhadas a não pagar suas dívidas
Jovem vendedora de rua em Libreville, Congo; trabalho infantil é freqüente
temos o direito de nos unir e decidir sobre nossa política nacional nas áreas de saúde, comércio ou agricultura. A OMC simplesmente não
deve interferir”, declarou Dot Keet, da África do Sul, membro da Africa Trade Network (Rede de Comércio da África), numa entrevista. “Nós
temos capacidade de transformar nossas economias se trabalharmos juntos. Também temos de nos unir para rejeitar políticas de comércio que não são amigáveis. Reformas do tipo liberal e a privatização dos nossos serviços precisam parar”, continuou. Grupos da sociedade civil estão exigindo que governos descartem políticas ruins. Freqüentemente acusam os governos de estarem comprometidos com os grandes doadores internacionais de tal maneira que as reformas implementadas levam o continente a uma pobreza maior. Agora, no entanto, dizem os ativistas, os governos estão em perigo se aceitam as imposições do Ocidente, porque estão sendo vigiados. “Nossos governos sabem que estamos fiscalizando. Mesmo indo a reuniões com o Ocidente, devem ter em mente que estamos junto, olhando com bastante atenção tudo que fazem”, acresentou Keet. Um colega do Quênia, Oduor Ong’Wen, disse: “Estamos seguindo o rastro das ações do governo. Queremos trabalhar juntos, ajudá-lo na formulação de posições que refletem os interesses do povo”. “Vamos continuar nosso diálogo, criticando o governo quando erra, especialmente nos assuntos importantes com impacto na economia”, acrescentou. (IPS/Envolverde)
Joaquim Chissano, Congo, Denis Sassou Nguesso, da África do Sul, Thabo Mbeki, e o primeiro-ministro etíope, Meles Zenawi. Argélia, Burkina Fasso, Camarões, Ilhas Maurícias, Angola e Mali, foram representados por delegações ministeriais e diplomáticas.
A corrupção na África O processo de avaliação entre países, chamado Mecanismo Africano de Avaliação pelo Pares (Maap), permite que nações africanas investiguem umas às outras quanto a diversos itens que conduzam à democracia, a mecanismos de governo saudável e ao desenvolvimento econômico. Um dos itens a serem avaliados é o grau de corrupção dos países signatários do acordo. A adesão ao Maap é voluntária, e vai depender do diálogo muito mais do que de medidas de censura a países que deixem de cumprir as regras estabelecidas no acordo. O combate à corrupção é um dos principais focos do Maap, instrumento de controle interno instituído pela Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (Nepad), plano de recuperação econômica do continente. Um dos mais graves empecilhos ao investimento estrangeiro na África é a corrupção que se abate sobre as nações africanas, atravancando o processo de crescimento e relegando a maioria das populações à pobreza absoluta. No último relatório (de 2003) da Organização Não-Governamental (ONG) Transparência Internacional sobre os índices de corrupção no mundo, os países africanos aparecem em posições francamente desfavoráveis. A Nigéria, por exemplo, é o segundo país mais corrupto do mundo, só perdendo para Bangladesh. Na classificação geral, de 133 países, a Finlândia é o menos corrupto, conseguindo a pontuação de 9.7. Entre os países da África, o menos corrupto é Botsuana, que ocupa o trigésimo lugar na classificação geral. O Brasil está na classificação 54, cinco posições mais corrupto que a África do Sul (48º colocado), país de grau de desenvolvimento semelhante ao brasileiro. CLASSIFICAÇÃO GERAL 2003 País Pontos 1 Finlândia (menos corrupto do mundo) 9.7 133 Bangladesh (mais corrupto do mundo) 1.3 CLASSIFICAÇÃO ÁFRICA 2003 País 30 39 41 48 70 83 86 88 92 106 113 118 122 124 132
Pontos Botsuana (menos corrupto da África) Tunísia Namíbia Ilhas Maurício, África do Sul Egito, Gana, Marrocos Malauí Moçambique Argélia, Madagascar Etiópia, Gâmbia, Tanzânia, Zâmbia Sudão, Zimbábue Congo (Brazzaville), Serra Leoa, Uganda Costa do Marfim, Líbia Quênia Angola, Camarões Nigéria (mais corrupto da África)
Fonte: Transparência Internacional (www.transparency.org/cpi/2003)
5.7 4.9 4.7 4.4 3.3 2.8 2.7 2.6 2.5 2.3 2.2 2.1 1.9 1.8 1.4
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NACIONAL MULHERES
Bloco afro leva resistência às ruas Bernardete Toneto da Redação
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a sexta-feira véspera de Carnaval, em meio à confusão do trânsito que antecede o feriado prolongado, um grupo de mulheres resolve botar pra quebrar no Centro da capital paulista. No início da noite, cerca de 70 mulheres do Bloco Afro Feminino Oriashé se concentram embaixo de um decadente viaduto no tradicional bairro italiano do Bixiga e, dali, em um trajeto de quase três horas, fazem pelas ruas um espetáculo de música e dança afro-brasileiras. Há 16 anos, o bloco Oriashé apresenta um Carnaval alegre e comprometido. Vestidas com camisetas, sem fantasias, mulheres negras e brancas, de sete a 70 anos, empunham seus instrumentos de percussão para homenagear os orixás e mulheres guerreiras, símbolos da resistência. No primeiro desfile, em 1988, a homenageada foi Winnie Mandela, na época casada com o líder sul-africano Nelson Mandela. Em 2004, elas contam um sonho, com o enredo “Os arco-íris de Bessen”. A música da cantora Girlei Miranda fala de um sonho em que crianças e esperanças se reúnem e na qual há uma invocação a Oxumarê, no candomblé o arquétipo das pessoas pacientes e perseverantes nos seus empreendimentos e que não medem sacríficios para atingir seus objetivos.
Fotos: Alderon Costa / Rede Rua
Criado há 16 anos, o Oriashé reúne 70 mulheres percussionistas que homenageam líderes feministas no Carnaval
PODER FEMININO O Oriashé foi criado em 1988, dentro do salão de beleza Orilê, especializado em cabelos afro. Localizado no antigo bairro italiano do Bixiga, hoje com predomínio de negros e migrantes nordestinos, o salão era comandado por Penha e Kika, que tinham muita vontade de fazer algo parecido com o lendário bloco africano Malê de Balê, da comunidade de Itapoã, em Salvador (BA) e que leva perto de 15 mil pessoas às ruas no Carnaval. A bateria foi formada pelas percussionistas Beth Beli e Girlei Miranda. A intenção inicial, de criar um bloco apenas com negras, deu lugar à ampla participação de mulheres, que para ingressar na agremiação precisam apenas levar o instrumento e muita vontade de aprender e partilhar conhecimento. Depois de uma frustrada participação de homens, que incluiu brigas e até agressão de maridos, hoje o Oriashé é reduto feminino.
O bloco Oriashé faz barulho no Bixiga, reunindo mulheres de sete a setenta anos. A alegria do Carnaval é a mostra pública de uma organização cultural que mantém projetos ambientais e até uma cooperativa, entre outras atividades
A bateria do Oriashé passeia por vários ritmos, entre o samba-reggae, samba-afro, ijexá, samba de roda, afoxé, aguerê de Iansã e aguerê de Oxóssi. A cantora oficial é Girlei Miranda, mas outras vozes femininas se fazem ouvir, sempre cantando músicas compostas especialmente para a agremiação. Engrossando o coro estão feministas, donas de casa, trabalhadoras, ativistas homossexuais e adolescentes.
AÇÃO SOCIAL As atividades não se resumem ao período de Carnaval. Devido à sua vocação cultural, o Oriashê acabou se transformando, em março de 2003, na Sociedade Brasileira de Cultura e Arte Negra, que mantém o Espaço Lilás, em Cidade Tiradentes, bairro de maior exclusão social na zona leste da capital paulista. Ao longo do ano o grupo realiza oficinas de canto, dança afro e teatro. Mantém também um grupo de promotoras legais, projetos ambientais e cooperativa de costureiras. Uma das metas do grupo é conseguir trazer o trabalho social para o Centro da cidade, no berço do Oriashé. Por enquanto, o bloco se reúne num espaço sob o viaduto Santo Antônio, em meio a carros e trânsito. “Queremos mostrar o prazer de estar na rua, que ultimamente tem sido bastante perigosa. Queremos mostrar que pode ser diferente”, diz a produtora cultural Sandra Campos. Ela acredita que as mulheres negras, devido ao papel que desempenharam durante a escravidão, têm uma visão de mundo distinta, fundamental para que a sociedade se torne mais humana. “Para nós a família é um clã”, explica. “Queremos agregar, ser solidárias”.
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DEBATE RUMOS DO GOVERNO
A urgência das frentes de trabalho Luiz Marinho Brasil vai continuar patinando se não se debruçar seriamente na solução de seu maior flagelo social: o desemprego. As imagens mostradas nos noticiários, de filas de desempregados em busca de qualquer oportunidade, são cada vez mais constantes. Uma das mais recentes foi a de inscrições para a Frente de Trabalho da Prefeitura de Mauá, na Grande São Paulo, que juntou quase 20 mil pessoas na disputa por 600 vagas. Semanas atrás, foi a de inscrições para o concurso para policial no Rio de Janeiro e para merendeiras de creches em Brasília. Há anos a Central Única dos Trabalhadores (CUT) vem batendo na tecla de que é preciso agir. Vem formulando propostas aos governos, seja para a adoção de iniciativas emergenciais ou para uma política de desenvolvimento econômico que torne consistente e segura a criação de postos de trabalho. Para nós e para o conjunto dos trabalhadores, a hora é de agir, antes que o índice de desemprego atinja patamares ingovernáveis e antes que, por maior que seja o crescimento econômico, a recuperação do nível de emprego pareça lenta demais. Por isso, a CUT avalia que a geração de emprego e renda deve pautar não apenas o discurso, mas efetivamente as ações do governo.
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E para minimizar a situação e dar um pouco de alento a todos aqueles em busca de oportunidades no mercado de trabalho, propusemos ao governo a implementação das frentes urbanas de trabalho. Documento nesse sentido foi entregue ao presidente Lula em outubro de 2003. Na ocasião, o presidente comprou a idéia e disse que criaria um grupo de estudos com especialistas e sindicalistas para viabilizar a proposta. No entanto, nada aconteceu até este momento e a proposta não andou (aliás, não entendemos por que o ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini, fez críticas recentes a ela). MEDIDAS ESTRUTURAIS
No documento entregue ao presidente, pedimos a adoção das frentes de trabalho em cidades com mais de 200 mil habitantes, onde não só o desemprego é mais sentido, mas também onde
existe toda a sorte de problemas urbanos. Essas frentes poderiam gerar até um milhão de postos de trabalho. E o exemplo de Mauá – onde a prefeitura mantém o programa há quatro anos, com 750 trabalhadores ganhando saláriomínimo, vale-transporte, cesta básica e convênio médico por até 24 meses, para serviços diversos – só comprova que todos os lados têm a ganhar: a administração, os desempregados e a população, porque pequenos serviços urbanos melhoram a vida dos municípios. A direção da CUT tem a certeza de que o principal caminho para a solução do desemprego é a adoção de medidas estruturais para a recuperação do nível de emprego. Mas enquanto elas não acontecem, não se pode ficar de braços cruzados. A nossa central sindical está fazendo a sua parte, formulando propostas como a que fizemos a Lula.
O que está nos angustiando neste início de ano é que, por mais que a geração de postos de trabalho esteja praticamente em todos os discursos do presidente, quase nada está ocorrendo. O que vimos até o momento são medidas isoladas, como o Modercarga (estímulos para a compra de veículos de carga) e incentivos ao setor de máquinas e equipamentos, só para citar os mais recentes, e que infelizmente não vinculam os benefícios concedidos às empresas a benefícios sociais, especialmente a geração de empregos. Ou seja, embora demonstre preocupação com o desemprego, o governo, em ações como esta, não chama a atenção
dos empresários para a sua responsabilidade social. AÇÃO DO GOVERNO
Na nossa avaliação, mesmo que haja uma retomada da atividade econômica no país neste início de 2004 e a adoção urgente de mecanismos estruturais, como queremos, os impactos positivos no mercado de trabalho só serão sentidos a partir do segundo semestre deste ano. Por isso, defendemos a necessidade de iniciativas urgentes como as frentes emergenciais de trabalho. Quanto tempo eles durarão? Se o exemplo de Mauá servir, serão dois anos, um fôlego para aqueles que estão nas filas do desespero e não querem perder a esperança de que um dia as coisas vão melhorar, não porque Deus quer, mas porque o governo agiu. Luiz Marinho é presidente nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT)
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O flagelo do desemprego no governo lula Ricardo Antunes Estamos iniciando o segundo ano do governo Lula. O que temos para comemorar? desemprego se ampliou, a perda salarial vem corroendo ainda mais as condições de vida já degradadas dos trabalhadores. Em vez de iniciarmos uma nova era, de desmontagem do neoliberalismo, atolamos e chafurdamos na continuidade do nefasto projeto de desertificação social e política do país, iniciado por Collor, desenvolvido por FHC e agora mantido pelo governo do PT. Consolida-se, mais uma vez, o triste processo de cooptação do que de melhor as classes trabalhadoras criaram nas últimas décadas. É entristecedor presenciar, num governo recrutado no mundo do trabalho, tanto desemprego, tanta precarização, tanto destroçamento social. E tanto deslumbramento! A política econômica, por exemplo, é de destruição do mundo produtivo, em benefício dos capitais financeiros, reiterando vergonhosamente a dependência aos ditames do FMI. A desumana concentração da terra se mantém intacta e aumentam os assassinatos no campo. O sentido público e social do Estado está sendo, passo a passo, desmantelado. A maior virulência praticada pelo governo do PT foi o desmonte da política de previdência pública e sua privatização boçal. Se isso já não bastasse, Lula acaba de defender a flexibilização das leis de trabalho, como
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os capitais transnacionais estão exigindo. A política salarial está ao sabor do que poderia ser chamado de governo contingente: corte brutal na educação, saúde e previdência públicas, no salário-mínimo, paralelamente ao pagamento desmedido e servil dos juros da dívida. Ou seja, o melhor dos mundos da especulação, responsável por uma política econômica tão desmesurada que mereceu recentemente a crítica do Soros, esse saqueador da era global. Tudo para controlar o “risco-Brasil” e agradar aos mercados internacionais. Não é difícil perceber que essa política vai soçobrar na primeira crise internacional mais profunda e aí não sobrará mais nada, nem a nefasta manipulação da era do Duda Mendonça. Enquanto isso, o tucanato está dando gargalhadas, uma vez que Lula está indo além de FHC no projeto de desmonte do país. Outra conseqüência das mais nefastas desse quadro é o desemprego, que é explosivo no Brasil, ultrapassando os níveis de 20% em São Paulo e em outras capitais. Há bairros em São Paulo onde as taxas de desemprego ultrapassam 70%. E Lula, da fase paz e amor, nos diz que podemos dormir tranqüilos que esse ano será muito bom... LÓGICA DO DESEMPREGO
Se quisermos enfrentar o desemprego (o que, em minha opinião, não mais podemos esperar mais do governo do PT), teremos que combater tanto seus
elementos estruturais, quanto os conjunturais que estão na sua raiz. Como o objetivo basilar das empresas é acumular capitais a qualquer preço, isto as leva a produzir suas mercadorias com um número cada vez menor de trabalhadores, obtendo, desse modo, um aumento de produtividade e de lucros. O resultado é transparente: quanto mais “moderna” é a empresa, maior é o desemprego. Ou se combate essa lógica, ou se torna parte dela e aí não há alternativa. Além desta causa estrutural, há outro elemento central, mais conjuntural, responsável pelo desemprego: as políticas econômicas vigentes (e o Brasil não é exceção), seguem o receituário neoliberal, imposto pelo FMI, pelos EUA e pelos capitais financeiros. O resultado é o aumento do desemprego em praticamente todas as partes do mundo, além da criação de uma monumental sociedade dos precarizados e dos chamados “excluídos”, da qual o Brasil é campeão. Para combater o desemprego seria necessário avançar na elaboração de uma política econômica alternativa, contrária ao neoliberalismo, cujos pontos centrais podem ser resumidos: primeiro, a eliminação da superexploração do trabalho, iniciando por uma política de salário-mínimo que resgatasse em alguma medida a dignidade dos trabalhadores; segundo, a realização de uma reforma agrária ampla e profunda que desmontasse a estrutura altamente concentradora e elitista
da propriedade da terra; terceiro, contrapor-se corajosamente à hegemonia do capital financeiro e especulativo, incentivando as experiências de produção voltadas para a produção de valores de uso, coisas úteis e socialmente necessárias; quarto, recuperar o sentido público, coletivo e social das atividades estatais, contra a lógica privatista que se encontra em vigência desde o governo Collor. REDUÇÃO DA JORNADA
Há, por fim, ainda uma outra bandeira central: a luta pela redução da jornada de trabalho, sem redução de salário. A redução da jornada de trabalho certamente não eliminará, num só golpe, o flagelo do desemprego, mas poderá minimizar seus efeitos devastadores sobre a classe trabalhadora. Se esses pontos fossem minimamente iniciados, poderíamos ter presenciado uma real redução do desemprego no Brasil em 2003. Ele, entretanto, somente se acentuou, porque a política econômica e o projeto político do PT, que estão se con-
solidando, caminham na direção do nefasto social-liberalismo, que é tão neoliberal quanto profundamente anti-social. No começo do ano passado, aqui mesmo no Brasil de Fato, perguntávamos se, com o início do governo Lula, não teria chegado a hora de honrar os compromissos com as classes trabalhadoras, com os assalariados do campo e das cidades, que fazem a riqueza do país e que dela não participam nem nas suas sobras. Pelo que se pode ver neste primeiro ano do governo do PT, é triste constatar, os “de cima”, as classes dominantes, continuam melhor do que estavam, enriquecendo-se com os juros altos e a especulação, e “os de baixo”, nosso povo trabalhador, continua pagando uma conta brutal, da qual nunca foi responsável.
Ricardo Antunes é professor de sociologia da Unicamp e autor, dentre outros livros, de Os Sentidos do Trabalho (Boitempo) e Adeus ao Trabalho? (Cortez/Unicamp)
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA CEARÁ
Brito – amiga pessoal e biógrafa da artista – e painéis com a biografia da cantora também podem ser vistos por quem quiser relembrar ou conhecer um pouco da história de Carmen. O artista plástico Zéllo Visconti participa da homenagem com uma montagem especial instalada na parede de abertura da mostra. O grafiteiro Cirilo Quartim faz uma releitura da obra em painéis. Filmes e vídeos, realizados por Carmen, serão exibidos. Local: Galeria do primeiro andar do Conjunto Cultural da Caixa, SBS, Q. 4, lotes 3/4 anexo do Edifício Matriz, Brasília Mais informações: (61) 414-9450
FESTIVAL DE JAZZ & BLUES DE GUARAMIRANGA Até dia 24 Oito bandas foram selecionadas, entre 78 inscritas, para a quinta edição do festival. Dessas, três são de jazz, três de blues e duas de música instrumental. Entrada gratuita. Local: Palcos instalados na região do Maciço de Baturité, Guaramiranga Mais informações: www.viadecomunicacao.com, (85) 264-7230. ENCONTRO - VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER Até final de março, às 8h O Centro Socorro de Abreu de Desenvolvimento Popular e Apoio à Mulher promoverá cafés da manhã para discutir temas ligados à violência contra a mulher. Os encontros acontecerão quinzenalmente, em diversos bairros de Fortaleza. Os encontros fazem parte da preparação para o dia 8 de março (Dia Internacional da Mulher). A intenção dos organizadores é formar uma rede comunitária de combate à violência contra a mulher, que faça o intercâmbio de idéias e experiências entre as associações comunitárias. Outro objetivo é avançar nas discussões da criação, na Justiça Estadual do Ceará, de uma vara especial para crimes contra a mulher. O Centro Socorro de Abreu de Desenvolvimento Popular e Apoio à Mulher é uma ONG que presta atendimento jurídico e psicológico às mulheres vítimas de violência, além de apoiá-las em projetos de saúde e de geração de renda.
CANTORIA DE VIOLA Aos domingos, a partir das 18h A cantoria tradicional “pé-deparede” acontece todos os domingos na sede da União dos Cantadores, Repentistas e Apologistas do Nordeste (Ucran). Apresentam-se improvisadores como Sebastião Marinho e Dedé Laurentino, e há também a contribuição do repentista paulistano César Obeid. A cada semana se apresenta uma dupla diferente Local: R. Teixeira Leite, 263, Baixada do Glicério, São Paulo Mais informações: (11) 3208-0819
Local: Av. Francisco Sá, s/n, Fortaleza Mais informações: (85) 8809-3175, (85) 236-2826, csabreu@fortalnet.com.br FÓRUM INDEPENDENTE DE CULTURA DE FORTALEZA A iniciativa pretende ser um espaço permanente de debates e intercâmbio de experiências e informações, onde se buscará alternativas para as políticas culturais em Fortaleza, com a participação efetiva da sociedade civil, procurando articulações com as demais políticas públicas e institucionais. O Fórum vai reunir artistas, gestores, estudiosos, produtores culturais, entre outros grupos de interesse. Local: Associação dos Docentes da Universidade Federal do Ceará, Av. da Universidade, Fortaleza Mais informações: (85) 9944-4602, (85) 241-0201, nilzecosta@terra.com.br
Christian Montagna/UCRAN
SÃO PAULO
Zé Cândido, que faz parte do grupo de cantadores e repentistas
DISTRITO FEDERAL MOSTRA - CINEMA E CARNAVAL De 25 a 29 A mostra, em duas sessões diárias, às 18h30 e às 20h30, exibe seis vídeos documentais e de ficção sobre amor, humor e carnaval. Os filmes são do cineasta Marco Altberg, realizados a partir de 1995. Foi nesse ano que a Estação Primeira de Mangueira encomendou a Altberg um vídeo sobre a escola de samba e a comunidade mangueirense - O Menino da Mangueira. Em 1996, o cineasta registrou todo o processo do carnaval da Mangueira: da escolha do enredo da escola ao desfile e julgamento das campeãs, passando por ensaios, confecção de fantasias e tudo o mais. O trabalho resultou em dois documentários: G.R.E.S. Concentração e Mangueira Documental – partes 1 e 2. O envolvimento com a Mangueira
também foi o ponto de partida para um projeto pioneiro na TV a cabo brasileira: a série Joana e Marcelo. Neste carnaval de 2004, Marco Altberg está produzindo um documentário sobre o cantor e sambista Jamelão, a voz da Mangueira – Jamelão, 90 anos. Local: SCES Trecho 2, conjunto 22, Brasília Mais informações: (61) 310-7087 EXPOSIÇÃO - NO TIC-TAC DE CARMEN MIRANDA Até 21 de março, de terça a domingo, das 9h às 21h A vida da cantora Carmen Miranda, que completaria 95 anos no dia 9 de fevereiro, está sendo lembrada com a exposição. O visitante pode conhecer duas réplicas de figurinos, pertencentes ao Museu Carmen Miranda, do Rio de Janeiro. Adereços, partituras, revistas de época, 124 ampliações fotográficas do acervo da jornalista Dulce Damasceno de
RIO DE JANEIRO APOIO A JOVENS GESTANTES O Centro de Orientação e Assistência Social Henri Wallon está abrindo vagas para jovens de 12 a 17 anos em período de gestação e que sejam moradoras do Complexo de São Carlos, morro situado no bairro do Estácio. O Projeto Canguru, como é conhecido, beneficia jovens que sofrem com o problema da gravidez precoce. Durante um ano, a gestante receberá atendimento psicológico e cognitivo, orientação familiar, enxoval para o bebê, apoio alimentar e nutricional, cesta básica, vale-transporte. Além disso, poderá participar de diversas oficinas, como artesanato, teatro e ginástica para gestantes. O programa funcionará de segunda a sexta, das 9 às 16 horas. As interessadas devem ir ao Centro para fazer a inscrição. Local: R. Barão de Ubá, 438, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 9946-4621 e (21) 2557-8549
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CULTURA
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CARNAVAL
Folia sobrevive longe do Sambódromo Rodrigo Brandão do Rio de Janeiro (RJ)
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omeça sábado, dia 21, no Rio, o chamado “maior espetáculo da Terra”. Mas não na pomposa e exuberante Passarela do Samba, projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer. O verdadeiro show está no Carnaval do povo, que acontece nas ruas da cidade, feito por milhões de anônimos foliões que enchem os bairros cariocas de alegria, irreverência e muita criatividade. Desde 1984, quando o então governador Leonel Brizola (PDT-RJ) inaugurou a passarela do samba, a folia vinha minguando no Rio. O valor médio do ingresso para assistir aos desfiles das principais escolas, em torno de R$ 80, contribuiu para esfriar a brincadeira. Custando cerca de R$ 10, há os ingressos para as arquibancadas populares, os espaços das chamadas concentração e dispersão do desfile. Os homens e mulheres simples do povo deram um jeito de continuar a se divertir fora do Sambódromo. Primeiro, começaram a lotar os shows do “Terreirão do Samba”, localizado ao lado da passarela. O espaço foi encampado pela prefeitura, que reestruturou o local e hoje cobra R$ 3 de entrada. Dona Marlita Barbosa, 67 anos, e dona Jane Marcos, 68, são vizinhas em Madureira, subúrbio carioca, berço de três das mais emblemáticas escolas de samba da cidade: a Portela (recordista de títulos do Carnaval, com 21 troféus de campeã), a Império Serrano e a Tradição. As duas mulheres, no entanto, se confessam torcedoras da Beija-Flor de Nilópolis, na Baixada Fluminense. Fazem a confissão enquanto assistem ao último ensaio da escola do coração, no Sambódromo, aproveitando uma novidade instituída em 2004: nos últimos finais de semana antes do Carnaval, alguns setores da arquibancada são abertos ao público para que assistam, de graça, aos chamados “ensaios técnicos”.
Adriana Medeiros
Cariocas driblam a falta de dinheiro e brincam nas ruas, em blocos que se destacam pela irreverência e crítica política
No alto, à esquerda, bloco do “Galo da Madrugada”, de Olinda (PE), que inspirou o bloco da “Galinha do MeioDia”. Os blocos são alternativas à folia de R$ 80 da Marquês de Sapucaí
FOLIA ALTERNATIVA “Antigamente era muito melhor, cansamos de virar a madrugada nos desfiles da Praça Onze e da (avenida) Presidente Vargas. Agora, a gente consegue ver ensaio, concentração, e olhe lá”, dizem Marlita e Jane. Elas abrem largos sorrisos ante a passagem dos primeiros componentes da Beija-Flor, para depois confessar que planejam brincar no Bola Preta, centenário bloco do Centro que arrasta milhares de foliões nas manhãs de sábado de Carnaval. O Bola Preta é um das dezenas de blocos de rua cariocas. Há desde os blocos antigos, que remontam ao início do século passado, aos mais jovens, que nasceram em meio a uma febre do samba de raiz e do Carnaval que contagia a cidade desde os últimos anos da década de 1990. O movimento começou com a revitalização da Lapa, o bairro mais boêmio do Rio, que viu proliferarem casas de samba por todos os cantos. E desaguou no surgimento de novos blocos com sugestivos nomes, como o “H. Romeu”, no Andaraí; o “Meu bem, volto já”, no Leme; e o “Vem ni mim que sou facinha”, em Ipanema. No início dos anos 90, surgiu em Santa Tereza (localizado entre as zonas norte e sul, o local é reduto de artistas e intelectuais) o “Bloco das Carmelitas”, cujo nome foi inspirado em um convento do bairro. Toda noite de sábado de Carnaval, artistas plásticos, atores, fotógrafos, pintores, músicos e moradores das favelas saem, com um chapéu de freira na cabeça, sambando e cantando. Chegam a atrair milhares de foliões. Beto Monteiro, compositor e fundador das Carmelitas e co-autor
do samba de 2004 do bloco, diz que nunca saiu do Rio no Carnaval e garante que a verdadeira folia é a das ruas. “Não sei que graça vêem essas pessoas (refere-se aos que deixam a cidade no feriado) em passar oito horas em um engarrafamento, para depois chegar a Cabo Frio (cidade da Região dos Lagos que atrai muitos turistas cariocas) e ouvir música baiana. Carioca gosta mesmo é de samba”, diz. Monteiro reconhece a importância do Carnaval do Sambódromo,
mas é “para turista ver”. “É claro que gera muitos empregos, envolve as comunidades, mas o daqui também traz empregos”, afirma, apontando para as dezenas de barracas instaladas nas calçadas da rua por onde passa o bloco. No pequeno comércio, se vende de tudo, de adereços para fantasias a refrigerantes e cervejas.
JOVENS NAS RUAS Há também o pessoal que confecciona os adereços, os instrumenos musicais, as camisetas
dos blocos – é de lei, cada um tem que ter a sua – e, muitas vezes, até CDs com os sambas-enredo. “Além de gerar empregos, o Carnaval de rua recupera no carioca a confiança de sair de casa à noite, para brincar sem medo”, diz Monteiro, referindo-se à insegurança sentida por toda a cidade. A média de idade entre os que participam e assistem aos blocos vem baixando. Carolina Fiuri, figurinista de 27 anos e ritmista das Carmelitas, é uma delas. Moradora de Santa Tereza, ela toca rocar – espécie de conjunto de chocalhos – há dois anos. “O Carnaval de rua é uma doença, no bom sentido, claro”, diz, aos risos. “Depois que ela te pega, é difícil se livrar”. Assim também pensa Dulce da Silva, 76 anos (“muito bem vividos”, ela garante). Vestida e produzida como para um baile de
Os ingressos para o sambódromo só têm preço popular (R$ 10) para concentração e dispersão
gala, ela não parava um minuto de sambar enquanto acompanhava a concentração da “Galinha do Meio-Dia”. Trata-se de um bloco de frevo do Centro da cidade, inspirado no famoso “Galo da madrugada” de Recife (PE) e fundado há dez anos pelo sexagenário Nelson do Couto. Enquanto se acabava de tanto dançar, dona Dulce lembra-se, com nostalgia, dos antigos carnavais. “Tinha muito lança-perfume, bailes glamorosos, mas tudo na maior inocência, sem essa quantidade de mulher pelada de hoje”, diz. Mas reconhece que o povo voltou a pegar gosto pela folia. “Acho que ainda vou viver para ver a Avenida Presidente Vargas cheia outra vez.”
POLÍTICA NO SAMBA A qualidade da folia na “Galinha” foi comprovada até por um casal insuspeito, Carlos de Abreu e Fátima Guedes, ambos funcionários públicos, ele carioca e ela pernambucana. O dois, que este ano passam pela primeira vez o Carnaval no Rio depois de casados, curtiam o frevo da “Galinha” e aproveitavam para elogiar nossa folia popular. “Está tudo muito lindo, o Rio merece ter de volta seu Carnaval”, comemora Fátima. No final de semana anterior ao Carnaval, outras festas levaram milhares de pessoas às ruas. No dia 19, saíram às ruas os “Escravos da Mauá”, bloco cujo nome é uma referência aos entrepostos comerciais, armazéns e vendinhas que havia no período escravagista próximo à Praça Mauá, sede do bloco. No dia 14, cerca de 30 mil pessoas seguiram pelas ruas de Ipanema ao “Simpatia é quase amor”, bloco fundado em 1985, no calor da campanha pelas eleições diretas e auge da redemocratização do país, e que costuma cantar temas políticos. Outros dois blocos, não menos politizados, o “Suvaco do Cristo” e o “Monobloco”, fundado pela banda Pedro Luís. A política, brasileira ou internacional, é o tema de muitos sambas e marchinhas. Máscaras do presidente Lula e do ex-ditador Sadam Hussein estão entre as mais encomendadas. Assim, o povo sempre encontra um jeito de se divertir, e o que é melhor, sem pagar caro.