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Ano 2 • Número 52

R$ 2,00 São Paulo • De 26 de fevereiro a 3 de março de 2004

Governo ameaça universidade pública Walter Astrada/AP/AE

Tarso Genro quer isenção de impostos para faculdades privadas, em troca de abertura de vagas para alunos pobres

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nquanto o ensino superior público agoniza, após anos de descaso, o ministro da Educação, Tarso Genro, propõe eliminar os impostos devidos por faculdades privadas, em troca da abertura de vagas para estudantes pobres. Defensores da educação pública qualificam a medida como uma política de mercantilização do ensino. “A isenção de impostos ajuda universidades privadas a conseguir alunos que, sozinhas, não teriam”, diz Luiz Lucas, do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes). Genro quer, ainda, legalizar o lucro das filantrópicas, teoricamente proibidas de distribuir dividendos. Maria do Rosário, deputada federal (PT-RS), e Gustavo Petta, da União Nacional dos Estudantes (UNE), discutem o assunto na seção Debate. Págs. 2, 7 e 14.

Mercado inventa mais uma: “risco” Requião As medidas de revisão de contratos de empresas estatais e de concessões de serviços públicos, propostas pelo governo do Paraná, levaram à criação da expressão “risco” Requião, em referência ao governador Roberto Requião (PMDB). Entre as decisões que motivam críticas do mercado financeiro está o cancelamento do reajuste de 25,3% da tarifa de energia elétrica, autorizado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Pág. 8

Haitianos protestam diante do Monumento dos Heróis Nacionais na cidade de Gonaives, pela renúncia imediata do presidente Jean Bertrand Aristide, Pág. 10

Pág. 9

Uma campanha em favor de água para todos

Homenagem aos 20 anos do MST Vermelho foi a cor dominante na Câmara Federal, durante sessão solene em homenagem aos 20 anos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “É um si-

Chico Alencar (PT-RJ). Para João Paulo Rodrigues, da coordenação do MST “foi um dia histórico para a luta camponesa no país”. Pág. 3

nal dos novos tempos. Normalmente, as instituições são fechadas aos movimentos sociais, ligados à parte mais pobre da população, como é o caso do MST”, disse o deputado

Laura Muradi

Coca-Cola é acusada de assassinatos

Pág. 13

Periferia, o palco do União e Olho Vivo Pág. 16

E mais:

MULHERES – Na luta por moradia e direitos humanos, elas enfrentam o crime organizado e a violência. Duas mulheres contam as dificuldades que encontram para conciliar militância e vida familiar. Pág. 7 INTEGRAÇÃO ALTERNATIVA – Movimentos sociais propõem a articulação de um modelo de integração alternativo para se opor à Alca, e o sociólogo Emir Sader analisa o futuro do continente. Pág. 10

Integrantes do MST participam de sessão solene na Câmara dos Deputados em homenagem aos 20 anos do movimento Maringoni

COSIPA – A morte inexplicada de um metalúrgico da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), no começo do ano, aumentou o clima de insegurança entre funcionários da empresa, que alertam para as precárias condições de trabalho. Pág. 6

Permissividade do BC facilita remessas ilegais Com a liberalidade do Banco Central, o Brasil é o paraíso da lavagem de dinheiro. Uma das torneiras da lavanderia são as contas CC-5, pelas quais saem recursos para o exterior, sem identificação do remetente. Ao permitir remessas sem identificação, o BC favorece o crime organizado e a lavagem de dinheiro, explica Maria Lucia Fatorelli, presidente da Unafisco, em entrevista ao Brasil de Fato. Pág. 5

Desempregados Lei de Falências protestam vai prejudicar contra Kirchner os trabalhadores Exigindo mudanças radicais na política econômica da Argentina, cerca de 50 mil piqueteiros (grupos de desempregados) bloquearam mais de 100 estradas em 22 das 24 províncias do país, dia 19. Querem do governo os subsídios suspensos pelo Ministério do Trabalho, que foram considerados irregulares. O presidente Néstor Kirchner tenta acabar com o enorme sistema de subsídios que o ex-presidente Eduardo Duhalde teve de montar quando ocorreu a desvalorização do peso, em janeiro de 2002. Pág. 9

O mesmo de sempre. A Lei de Falências, em tramitação no Congresso, beneficiará bancos e prejudicará trabalhadores. Se vingar a idéia de limite máximo para o pagamento de créditos trabalhistas aos funcionários de uma empresa falida, além de não evitar fraudes, impedirá uma das experiências mais revolucionárias do Brasil: a autogestão de um negócio. Isto é, um empreendimento sem patrões e empregados, com sócios que decidem em conjunto e dividem lucros entre si. Pág. 4


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De 26 de fevereiro a 3 de março de 2004

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Tiago Rodrigo Dória • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Bernardete Toneto, 5555 Marilene Felinto, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, 5555 Natália Forcat, Nathan, Ohi • Diretor de Arte: Valter Oliveira Silva • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Bruno Fiuza e Letícia Baeta 55 Programação: André de Castro Zorzo 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: FolhaGráfica 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

NOSSA OPINIÃO

Em defesa do ensino público

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proposta para ampliar o número de vagas “públicas” nas escolas privadas de ensino superior, apresentada pelo novo ministro da Educação, Tarso Genro, na última semana, é mesmo de arrepiar o mais conservador educador, e de deixar sem fôlego milhares de educadores e militantes que, durante anos, debateram e elaboraram inúmeras propostas do Partido dos Trabalhahdores para a educação. Em vez de investir pesado na ampliação de vagas nas universidades públicas, prioridade histórica dos movimentos educacionais e populares e da sociedade brasileira, o ministro pretende “comprar” vagas nas escolas particulares, ou seja, transferir recursos públicos para a atividade privada da educação. Mais do que isso, a proposta visa não apenas assegurar vagas nas escolas particulares em troca da isenção de impostos, mas, também, liberar o lucro para as universidades que operam atualmente sem fins lucrativos, como as fundações, as escolas comunitárias e confessionais. Levada ao pé da letra, a proposta

simplesmente fortalece e coloca como referência nacional da educação superior as escolas mercantis, de proprietários privados geralmente sem escrúpulos, que montaram verdadeiras fábricas de diplomas e que jamais se preocuparam com a qualidade do ensino, com a pesquisa, com o projeto de desenvolvimento do país e com a condição econômica e social do aluno e do povo brasileiro. Se quisesse uma alternativa mais decente, o ministro Tarso Genro poderia ter considerado a “compra” de vagas apenas e tão somente nas instituições sem fins lucrativos, e desde que se colocasse para elas a obediência a determinadas regras para assegurar a qualidade do ensino, a transparência de todas as contas, a participação democrática da comunidade e o respeito aos direitos dos trabalhadores administrativos e docentes. Mas não. O ministro petista não apenas quer promover o que há de pior no meio educacional, que são as grandes redes de supermercados do ensino (Unip, Uniban etc.),

como tenta arrastar para o mesmo esgoto as instituições filantrópicas, que são particulares, são sustentadas pelas mensalidades, mas não podem ter lucro (nem donos para se apropriar desse lucro) com a atividade educacional. Durante décadas, pelo menos, milhares de educadores brasileiros, muitos deles companheiros do ministro Tarso Genro, defenderam nas várias trincheiras da luta política a universidade pública e gratuita, que é a única que possibilita o acesso de todos, independentemente da classe social e da condição econômica. Por isso mesmo causa perplexidade geral no país que o governo federal, depois de um ano sem formular nada de sério na área da educação, faça essa inversão de valores através da proposta de Tarso Genro. Mais do que nunca, professores, educadores, entidades populares e de trabalhadores precisam se mobilizar e lutar contra essa nova tentativa de privatização no ensino. Em defesa da universidade pública e gratuita para todos.

FALA ZÉ

OHI

CARTAS DOS LEITORES SAUDAÇÕES Em tempos idos eu tinha a ocupação profissional de jornaleiro. Hoje, sou funcionário público e estudante de graduação em geografia na Universidade Federal de Goiás, e sempre tive o hábito da leitura. O contato é para demonstrar o meu profundo sentimento de agradecimento por este jornal existir. Desde que leio jornais impressos nunca tive a oportunidade de obter informações com tamanha clareza e verdade dos fatos. Luiz Carlos Alexandrino Lima por correio eletrônico Quero parabenizar a todos do jornal Brasil de Fato pelo excelente conteúdo que apresenta, tirando os brasileiros de uma verdadeira caverna (como a do mito da caverna, de Platão). Jordania Lindolfo por correio eletrônico TRABALHO ESCRAVO A mídia fala em trabalho escravo no Brasil, e o senhor Inocêncio Oliveira – aquele que fica ao lado do presidente da Câmara, Joäo Paulo Cunha – poderia nos informar melhor sobre esse assunto. Sergio Mainardi por correio eletrônico POLÍTICOS A política é uma ciência séria e, como tal, deveria ser tratada. Atualmente, em nosso país, a desmoralização devese à maioria dos senhores políticos que a ela não são fiéis. Política é essencialmente uma luta, um combate, já que o poder permite aos indivíduos e aos grupos que o detêm segurar o seu domínio sobre a sociedade e aproveitar-se dela, segundo os estudiosos. Para outros, também estudiosos, política é um esforço para fazer reinar a ordem e a

justiça, pois o poder pode assegurar o interesse geral e o bem comum contra a pressão das reivindicações pessoais. Nossos políticos, em especial os chamados de “velhas raposas”, encaixam-se perfeitamente na primeira parte. São indivíduos que fazem da política apenas um meio para o enriquecimento ilícito. Nossos políticos possuem duas caras. Além de desleais para com o eleitor, o são também para com seus partidos; trocam um pelo outro sem o menor constrangimento. Vendem seus votos para quem paga mais, pois são em grande parte elementos incapazes de fazer algo mais do que apenas acionar um botão eletrônico qualquer na hora em que é obrigado a votar. E vota sempre, pois seu voto vale dinheiro. João Carlos da Luz Gomes Porto Alegre (RS) EDUCAÇÃO Meu comentário é a respeito do programa Brasil alfabetizado e Sesi. Mas uma vez o governo nos decepciona. O Brasil tem diversas universidades federais que poderiam assumir esse compromisso. O Sesi não tem experiência nenhuma na área educacional. Eu sou professor e jamais aceitaria um admistrador de empresas vir dar aulas de investigação da prática pedagógica, por exemplo, como é o caso do Sesi, que entrou nessa como um cego em um tiroteio. Nós como comunidade jamais poderemos aceitar um grupo de empresários na educação. E a qualidade do ensino? Se essa verba fosse para as unversidades, iríamos ver investimento nos campus. Pois ninguém sabe onde o Sesi irá investir esse dinheiro. Emival Dalat Filho Miracema (TO)

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CRÔNICA

Política, futebol e cinzas Juarez Soares Outro dia estive reunido com os técnicos Roberval Davino, do América de São José do Rio Preto, e Giba – que recentemente chegou do Kuait –, mais os jogadores Marquinhos, do São Paulo, e Narciso, do Santos. Lá pelas tantas, perguntei a eles qual era a participação do técnico no êxito de um time de futebol. Os técnicos disseram que o percentual era absolutamente decisivo, na base de quase 70%. Os jogadores concordaram, mas diminuíram a porcentagem. Fiquei, na verdade, sem obter a resposta que desejava. Até agora, que me lembro, já mudaram de técnico o Oeste (de Itápolis), o Mogi Mirim, o São Caetano, o União São João, de Araras, e o Corinthians. E isso porque só tivemos seis rodadas do Campeonato Paulista! O exemplo está localizado em São Paulo, mas serve para todo o Brasil. É a irremediável dança dos técnicos. No espetacular filme Dança com Lobos, o ator Kevin Costner acende a fogueira e, em torno dela, baila uma coreografia autêntica e solitária. Ao redor, a imensidão da planície e, no céu, a lua fiscaliza a dança. Uma legião infinita de estrelas a tudo assiste, com indisfarçável brilho de curiosidade. Já a dança dos técnicos é um repetitivo arrasta-pé fora do compasso. Eles entram e saem, vão e voltam,

sem a menor cerimônia. Basta que consigam entrar na roda, no cordão dos preferidos. Depois disso, é só aceitar o corriqueiro rodízio. Vez por outra, chega um novo dançarino, aceito a contragosto pelo resto da turma. Quem chega, traz junto a apoteose da alegria e a esperança do seu domingo de Carnaval. Os que se despedem curtem a tristeza da quarta-feira de cinzas, até que seja convidado para outra folia. Agora chegou a vez de Oswaldo de Oliveira. Desembarcou no Corinthians quando todos esquentavam os tamborins. Com uma ressalva: no início do Carnaval, descanso para todos que caem no samba. Afinal de contas, até mesmo ele, o treinador, como bom carioca, tinha compromisso marcado com sua escola preferida: a Independente de Padre Miguel. Oswaldo é agora um convidado mais que ilustre com destaque. Afinal de contas, não é mais um técnico desempregado. Vira e mexe, o presidente da República, quando se vê apertado para explicar uma situação delicada, se socorre das imagens do futebol: “Vamos com precaução, com equilíbrio, no meio de campo é que se ganha o jogo”. Às vezes, fica mais atrevido: “Vamos atacar no momento certo, mas com cuidado, para não tomar uma bola nas costas”.

Em Brasília, a analogia com o futebol é um pouco diferente. Ninguém mexe no treinador, no técnico do time. Ao contrário: quando a coisa não vai bem, é o técnico quem muda os jogadores. Tira, põe, remaneja, faz de tudo para acertar o conjunto do time. Mas até o técnico, às vezes, é surpreendido no misterioso mundo do futebol. Acontece que, num determinado momento, o seu centroavante, o seu artilheiro, o seu goleador, o seu atleta de confiança faz lá uma grande besteira. Mas por ter tantas qualidades, esse craque não pode ser substituído. É verdade que a torcida tem vontade de vaiar, fica à espreita, desconfiada. Mas aí o técnico do time grita, do alto da imponência de seu cargo, diz: “Esse não! Esse é o meu craque e o boi não lambe”. Assim é a vida. Segue o cordão dos puxa-sacos, segue a escola de samba, o povo olha desconfiado e vai aos poucos perdendo o ritmo, o compasso e a confiança. Engraçados, o futebol e a política. Apenas com um detalhe: no campo, o jogo dura apenas 90 minutos. Na política, o jogo demora quatro anos. Aí então pode começar uma outra história que fica para uma outra vez. Juarez Soares é cronista esportivo e escreve uma vez por mês neste espaço

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De 26 de fevereiro a 3 de março de 2004

NACIONAL 20 ANOS DO MST

Dia 19, o plenário ficou vermelho, a direita ruborizada

Laura Muradi

Festa no Congresso Nacional Maurício Hashizume de Brasília (DF)

“COMPROMISSO DE VIDA” No mesmo dia em que a Câmara realizou sessão solene em homenagem aos 20 anos do MST, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva visitou o assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, em Campo Florido (MG), após inaugurar um trecho da BR-262, com a presença do vice-presidente José Alencar e do governador mineiro Aécio Neves. Em discurso aos assentados do MST, o presidente repetiu que tem um “compromisso de vida” com a reforma agrária e que concluirá o assentamento de 530 mil famílias até o fim de seu mandato, como prevê o Plano Nacional de Reforma Agrária lançado no final de 2003. “O compromisso de vida que nós temos com a reforma agrária é um compromisso que antecede à criação do PT, à criação da CUT, à criação do MST.” Além do compromisso, Lula destacou o aumento dos valores e a facilitação de desembolso do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) como avanços de seu governo. “Estamos estudando para que possamos ter a terra a um preço mais barato. Porque, se gastarmos todo o dinheiro da reforma agrária para comprar terra, não teremos dinheiro para a educação, para as casas, para assistência técnica, e para emprestar”, anunciou, pouco antes de ressaltar que “a revolução que vocês sonham não acontece como um passe de mágica”. (com agência Carta Maior: www.agenciacartamaior.com.br; colaborou Laura Muradi)

Elza Fiúza/ABr

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Repressão a rádios comunitárias Enquanto em Brasília o Ministério das Comunicações faz propaganda sobre nova forma de cadastramento de rádios comunitárias, agora via internet, em Passo Fundo (RS) três emissoras comunitárias (Engenho Novo, Rodeio Bonito e Sertão) foram fechadas pela Polícia Federal (PF) e tiveram seus equipamentos apreendidos, o que é ilegal. Quatro cidadãos puderam compreender na carne a política do governo federal para o setor: Armindo Lied Filho, Marcelo Lied, Volmar Souza Drog e Nazareno Nadario foram presos pela PF, agredidos a pontapés, mantidos algemados e em celas separadas por 8 horas, sem direito a alimentação ou a advogados. Ao serem libertados, recusaram-se a assinar documento preparado pelos policiais no qual negariam ter sofrido agressões no recinto da delegacia. O Brasil que não lê No Brasil, segundo dados do IBGE, em abril de 2001, existiam 5.506 municípios. Desses, apenas 1.927 contavam com alguma livraria. Isso significa que, em 3.579 municípios não havia onde comprar livros. A grande maioria da população não sabe se livro é comprado no açougue ou na farmácia. E isso não no longínqüo ano de 1603, 1703, ou 1803. As informações constam do livro Muralhas da Linguagem, de Vito Gianotti.

Muitos parlamentares compareceram à sessão em homenagem aos 20 anos do MST

PERNAMBUCO

Terras ocupadas podem ser desapropriadas

Nina Fidelis

plenário da Câmara Federal mudou de cor no dia 19, durante a sessão solene em homenagem aos 20 anos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “O plenário ficou avermelhado, e a ultradireita, que hoje já está bastante reduzida no Congresso, deve ter ficado ruborizada”, ironizou o deputado federal Chico Alencar (PT-RJ), um dos parlamentares que protocolaram o pedido de realização da cerimônia. A solenidade simbolizou, segundo Alencar, a relevância que o movimento tem no cenário político nacional. “É um sinal dos novos tempos. Normalmente, as instituições são fechadas aos movimentos sociais, especialmente aqueles ligados à parte mais pobre da população, como é o caso do MST”, destacou o deputado petista. “A sociedade já aceitou a luta pela reforma agrária e reconhece que ela é fundamental para resolver questões cruciais do país como a falta de empregos e o desequilíbrio ambiental.” Co-autora do requerimento da sessão no Parlamento, a deputada Luci Choinacki (PT-SC) destacou que essa foi a primeira vez na história que integrantes do movimento entraram no Congresso Nacional com bandeiras, para ser homenageados. “É um dia histórico não só para o MST como para a luta camponesa no Brasil”, afirmou João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional, um dos cerca de 200 integrantes do movimento que tomaram o palco das principais votações da Casa. Para o ex-ministro da Educação, senador Cristóvam Buarque (PTDF) a sessão foi tardia. “Temos de comemorar a abertura dessa sessão solene e lamentar que tenha demorado tanto. A própria necessidade de se ter um movimento de sem-terra já é uma coisa lamentável para o país. Faz cem anos que acabamos com a primeira parte da escravidão, que é não permitir a venda de pessoas, mas não completamos a libertação dos escravos que seria garantir terra para todos aqueles que querem trabalhar”, afirmou Buarque.

Espelho da mídia

da Redação Os trabalhadores rurais acampados na região da Zona da Mata venceram uma batalha. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) poderá continuar com os procedimentos de vistoria para desapropriar, para reforma agrária, os imóveis rurais Prado, Papicu, Tocos, Dependência e Taquara, no município de Tracunhaém, em Pernambuco, de propriedade da Companhia Brasileira de Equipamento (CBE). A decisão é do presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Nilson Naves, que suspendeu liminar concedida pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região à empresa no dia 11. Considerados os focos de conflitos de terra mais tensos da Zona da Mata pernambucana, a área dos engenhos foi ocupada pelos trabalhadores rurais sem-terra em janeiro de 1997. Após a deflagração do processo de desapropriação pelo Incra, a Companhia apresentou ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em março de 1997, um projeto de reflorestamento dos imóveis rurais, aprovado pelo órgão. Em dezembro, no entanto, decreto presidencial declarou a improdutividade dos imóveis e determinou sua desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária. Em 1998, o grupo João Santos entrou com um mandato de segurança junto ao Supremo Tribunal Federal sob a alegação de que a área havia sido destinada para reflorestamento. O pedido de desapropriação foi cancelado mesmo sem qualquer verificação para constatar a veracidade do mandato. Em 2003, o Ibama anulou o projeto de reflorestamento, e o Incra retomou os procedimentos para expropriação, chegando a realizar vistorias nas propriedades.

PARÁ

Famílias são despejadas com violência da Redação Sob forte chuva, cerca de 1.500 sem-terra foram despejados na madrugada do dia 19 em São Francisco do Pará. Acampados desde novembro de 2003 em uma fazenda do município, 80 famílias ligadas ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais e 250 do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram surprendidas por cerca de 300 policiais fortemente armados, acompanhados, segundo os semterra, por 15 pistoleiros contratados pelos donos da propriedade. Além de não seguir os procedimentos legais, que exigem a leitura da liminar por um oficial de Justiça e proíbem despejos antes das 7h da manhã, os policiais agiram de maneira brutal, destruindo pertences e barracos das famílias e confiscando os alimentos cedidos ao acampamento pelo programa Fome Zero, do governo federal, como relatou o assessor de comunicação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), José Abucater.

“Fiquei chocado com a brutalidade e a ilegalidade da ação, da qual o Incra não tinha nenhuma informação prévia. Está chovendo muito aqui, e todas as crianças ficaram no tempo”, diz Abucater. Segundo ele, no momento as famílias estão precariamente abrigadas em barracos de lona e podem ser realocadas para terreno a ser alugado pelo órgão. Apesar disso, Raimundo Nonato, da direção estadual do MST, responsabiliza o Incra pela morosidade no processo de assentamento. “Para os trabalhadores rurais, a lentidão do órgão possibilita a ação da Justiça e os desmandos do governo estadual. Os trabalhadores não agüentam essa longa espera por um pedaço de chão para plantar e criar”. Após o Carnaval, a Ouvidoria Agrária do Estado, o Incra e os movimentos sociais do campo devem se reunir para discutir uma solução imediata para o problema das cerca de 1.300 famílias de sem-terra acampadas do nordeste paraense.

Pobreza cultural Apenas 13,4% das cidades contam com teatros, sendo que 10,9% com um único espaço para as artes cênicas. Menos de um município em cada dez (8,2%) dispõem de cinemas e, destes, 5,6% só relacionaram uma única sala de exibição. Cerca de um terço das cidades (35%) não possui nem mesmo um ginásio poliesportivo e em 65% dos municípios o interessado teria que viajar para comprar um livro, uma vez que lá não existem livrarias. Se quiser comprar CDs ou fitas cassete a sua chance será ainda menor, pois só 9,8% das cidades têm este tipo de loja. Já os provedores de acesso a internet estão em 15,3% dos municípios brasileiros, obrigando muitos internautas a arcar com os custos de ligações interurbanas. Inclusão digital Ainda como ministro das Comunicações, Miro Teixeira anunciou, dia 21 de janeiro, as metas para 2004. Segundo Teixeira, foi acertado com o Ministério da Fazenda que R$ 40 milhões do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST) serão descontingenciados ao longo deste ano para gastos em projetos de inclusão digital. O valor corresponde a menos de 1,5% do total de cerca de R$ 3 bilhões retidos por conta do acordo de superávit primário com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Não se sabe se esta meta será alterada com a chegada do novo ministro. Sociedade da informação “O que significa a ‘sociedade da informação’ para 75% da população do mundo subdesenvolvido? Para que servem as novas tecnologias da informação e das comunicações aos 1,2 bilhão de pessoas submetidas à pobreza extrema, aos 842 milhões de famintos e aos 2,4 bilhões de seres humanos carentes de saneamento básico? Que fariam com um computador os 854 milhões de adultos que não sabem ler ou escrever e os 115 milhões de crianças sem acesso à educação? Como o usariam os 2 bilhões de seres humanos que não dispõem de energia elétrica?”. Esse é um trecho do discurso de Ricardo Alarcón, presidente da Assembléia do Poder Popular de Cuba, durante a Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, em Genebra.


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De 26 de fevereiro a 3 de março de 2004

NACIONAL LEI DE FALÊNCIAS

Trabalhadores podem perder prioridade Marcel Gomes de São Paulo (SP)

Letícia Baeta

Limites baixos para o recebimento de créditos trabalhistas podem impedir a recuperação de empresas pelos empregados Com R$ 20 mil, ele teria direito a alguns poucos parafusos.

CRUZADA POR MUDANÇAS

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educador Luigi Verardo não tem poupado críticas à nova Lei de Falências. Para ele, a idéia de incluir um limite máximo para o pagamento de créditos trabalhistas a funcionários de uma empresa falida, em vez de evitar fraudes, vai impedir uma das experiências mais revolucionárias de que se tem notícia no Brasil: a autogestão de um negócio. Traduzindo, um tipo de empreendimento sem patrões e empregados, apenas sócios que decidem em conjunto e dividem os lucros igualmente entre si. Verardo entende do assunto. É técnico da Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária (Anteag), entidade que, nos últimos dez anos, ajudou a implantar esse modelo de administração em 261 empresas e cooperativas, que giraram R$ 370 milhões em 2003. Chaolin, da comissão de fábrica da indústria Flakepet (SP), ocupada após o abandono dos patrões, em dezembro de 2003

LOBBY DOS BANCOS ma de autogestão. Segundo Verardo, a proposta de limitar o crédito vai impedir o surgimento de outras Catendes. O lobby que defende a nova lei é poderoso. Parlamentares e representantes do sistema financeiro de-

fendem que, falida a empresa, seus funcionários só tenham prioridade para receber até um limite pré-definido. Já se falou em R$ 20 mil, em R$ 35 mil. O debate continua no Senado, e a tendência é que um limite seja

A força da Uniforja Outra deficiência que a CUT quer mudar no projeto de Lei de Falências já aprovado na Câmara diz respeito diretamente à autogestão. A entidade propõe a inclusão, no artigo 50, de um dispositivo que dê aos trabalhadores opção de arrendamento dos bens da empresa, sem que eles sejam obrigados a assumir a dívida anterior. Seria um primeiro passo para a recuperação do negócio. Nessa etapa, os antigos funcionários poderiam criar uma cooperativa, para avaliar se a empresa ainda é viável no mercado. Se for, lhes seria permitido trocar seus créditos trabalhistas pelos bens da empresa, tornando-se os novos donos do empreendimento. A atual Lei de Falências não prevê essa possibilidade, nem o arrendamento. “Hoje, para criar projetos de autogestão, acabamos dependendo de brechas na legislação e da boa vontade dos juízes”, diz Tarcísio Secoli, secretário-geral do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Ele cita o exemplo da cooperativa metalúrgica Uniforja, uma das experiências mais bem-sucedidas de autogestão no país. Localizado em Diadema (SP), esse empreendimento ressuscitou porque a Justiça permitiu que os trabalhadores continuassem fabricando conexões de aço para refinarias e maquinário agrícola, enquanto o processo de falência não é finalizado (segue tramitando desde 1999)

SALÁRIOS EM DIA Foi boa idéia? Uma passada de olhos nos resultados da cooperativa traz a resposta. Seu faturamento, de R$ 10 milhões em 1999, chegou a R$ 79 milhões em 2003. Dos 466 trabalhadores, 229 são sócios e decidem os rumos do negócio em assembléias mensais. Os outros 237, contratados com base na CLT, passarão por treinamento para se tornarem, em breve, novos sócios. A época do atraso de salários é passado. Recebem em dia e o lucro líquido, chamado também de “sobra”, é dividido, em partes iguais, pelos trabalhadores. Com isso, chegam a ganhar 15% a mais do que a média em outras empresas do ramo. “A autogestão torna mais lenta a tomada de decisões, e isso algumas

Projetos de autogestão ligados à Anteag*, até 2003 Setor

Número de empreendimentos

Abatedouro Agroindústria Alimentação Borracha Cerâmica Couro e calçados Metalurgia Mineração Móveis Plástico Reciclagem Serviços Têxtil e Confecção Transportes Vidros e cristais

2 48 14 2 3 36 49 6 4 9 17 35 30 2 4

Número de trabalhadores

169 6.652 652 170 665 3.774 6.754 665 227 571 534 13.578 3.550 2.050 270

*Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogeståo e Participação Acionária (www.anteag.org.br)

vezes atrapalha. Mas não importa. Participar de um negócio, sem ter patrão, é um privilégio”, diz o “patrão” da Uniforja, José Domingos dos Santos, que é diretor-presidente da cooperativa. Ele tem 26 anos de Uniforja, onde começou como ajudante-geral.

QUANDO O BNDES AJUDA Ao contrário de outros dirigentes em cargos semelhantes, ele não faz questão de esconder o salário. Ganha R$ 4 mil, menos de sete vezes o valor do menor salário na cooperativa, de R$ 600. “Aqui, todo mundo sabe o salário de todo mundo”, diz Zé Domingos, como é mais conhecido. A história da Uniforja virou tese em universidade e chamou a atenção do sindicalismo mundial. Mas só teve final feliz por causa de uma engenharia financeira bancada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em 2002, o banco emprestou R$ 25 milhões aos trabalhadores da Uniforja para que eles participassem do leilão da massa falida. Arremataram por R$ 17,6 milhões os barracões e as máquinas, que estavam virando sucata no número 210 da rua São Nicolau, em Diadema. O restante foi gasto com compra de matéria-prima e capital de giro. Mas

como o processo de falência não chegou ao final, os trabalhadores ainda não receberam seus créditos trabalhistas.

LEGISLAÇÃO PERVERSA A falida Conforja, que virou Uniforja, deve R$ 10 milhões aos trabalhadores. Quando receberem, o dinheiro virá do montante gasto no leilão. Resumindo, o empréstimo do BNDES chegou aos trabalhadores, entrou na massa falida e mais tarde voltará aos trabalhadores. Tudo porque a legislação não permite o atalho, ou seja, a simples troca dos créditos trabalhistas pelos bens da empresa. Uma das condições do BNDES para emprestar o dinheiro era que os trabalhadores, quando recebessem esses créditos, os reinvestissem na própria cooperativa. E assim foi feito, de papel passado. Em 2004, a Uniforja deve faturar R$ 100 milhões, incluindo 800 mil dólares em exportações para os Estados Unidos. Aos senadores que debatem a nova Lei de Falências, em Brasília, talvez valesse a pena uma visita a alguma Uniforja da vida. Há muitas no Brasil. Ali está a prova de que a ressurreição de um negócio é possível, mesmo sem ajuda da legislação. Imagine com ela a favor. (MM, Agência Carta Maior – agenciacartamaior.uol.com.br)

mesmo fixado. Verardo explica sua contrariedade. O raciocínio é simples, diz ele. Para o trabalhador assumir uma fábrica, com maquinário e barracão construído, precisa ter um bom crédito trabalhista a receber. Afinal, essa estrutura é cara.

Dinheiro versus força de trabalho Luís Brasilino da Redação

Folha Imagem

São negócios nas áreas têxtil, de serviços, açúcar, confecção, transporte e mineração. A maior experiência é a usina Catende, que mói cana e produz açúcar na Zona da Mata pernambucana. Tem 12 mil trabalhadores e opera no siste-

“Em pelo menos metade dos 261 negócios que acompanhamos, a empresa devia um bom dinheiro ao trabalhador, muito mais do que aqueles limites. Só assim é possível transformar o passivo da empresa em ativo para o trabalhador. Na Argentina, onde existe esse limite, há muita dificuldade em implantar projetos de autogestão”, diz o técnico, formado em filosofia e que pede para ser chamado de educador. A cruzada por mudanças na nova Lei de Falências ganhou força quando a Central Única dos Trabalhadores (CUT) falou à Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), onde defendeu várias alterações no projeto. Mas, ao contrário de Verardo, a central acredita que a fixação de um limite para os créditos trabalhistas inibirá fraudes – por exemplo, que testas-de-ferro com salários astronômicos sejam inseridos na folha. Mas esse limite deveria ser bem alto – R$ 120 mil. Conforme a CUT, esse patamar daria conta de 99% dos trabalhadores de uma empresa. Gente, por exemplo, que trabalhou 35 anos e chegou a ganhar, em fim de carreira, R$ 5 mil. (Agência Carta Maior)

O projeto da Lei de Falências não trouxe avanços para os trabalhadores e manteve privilégios do sistema financeiro no recebimento dos créditos das empresas em falência. Com esses argumentos, 18 integrantes da bancada petista na Câmara Federal justificaram seu voto contrário ao Projeto de Lei (PL) 4376/93, que estabelece novas regras para empresas quebradas. Mas não adiantou, o texto foi aprovado e agora tramita na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado. Pela legislação atual, as primeiras dívidas que uma empresa que está indo à falência deve quitar são as trabalhistas, em seguida as tributárias (aquelas onde o credor é a União). No entanto, a nova lei, se aprovada, dará prioridade aos banqueiros. Grijalbo Coutinho, presidente “Quem é mais importante, quem empresta o da Associação Nacional dos dinheiro ou quem oferece a força de trabalho?” Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), concorda com a em processo de falência, seus funintenção do PL de tentar encontrar cionários estarão sujeitos à redução maneiras de salvar empresas – no salarial, parcelamento dos débicaso, a prioridade no pagamento tos (inclusive salários atrasados) das dívidas encorajaria os bancos a em até doze meses e, no caso de emprestar dinheiro às empresas em falência ou recuperação judicial dificuldade. Entretanto, ressalta, o da empresa, o não pagamento de texto aprovado na Câmara apre- multas, como a de 40% do (Fundo senta excessiva preocupação com de Garantia do Tempo de Serviço) o mercado financeiro. FGTS”, explica. Segundo Marinho, a nova lei GOLPE NOS DIREITOS deveria continuar assegurando o “O tema em discussão não é a privilégio dos créditos trabalhisfamosa confiabilidade do mercado, tas e tributários (dívidas com a mas sim uma questão de juízo de União), e estender este privilégio valores: os parlamentares precisam às fases de recuperação ou falência decidir quem é mais importante, se da empresa. “Créditos trabalhistas quem empresta o dinheiro ou quem e tributários dizem respeito à coleoferece sua força de trabalho”, ex- tividade e devem prevalecer sobre plica Coutinho. Ele considera que, interesses privados. Ou, então, pela Lei de Falências aprovada na estaremos retornando às cavernas, Câmara, é mais importante o em- onde o que vale é a lei do mais forpréstimo, e o trabalhador perde. te”, conclui o presidente da CUT. Luiz Marinho, presidente da Outra proposta defendida por CouCentral Única dos Trabalhadores tinho é colocar na lei instrumentos (CUT), acredita que o trágico do para facilitar aos trabalhadores projeto são as restrições aos direi- assumir a empresa falida num sistos trabalhistas. “A prevalecer sua tema de auto-gestão. (Colaborou redação, caso uma empresa entre Agência CUT)


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NACIONAL CC-5

Jorge Pereira Filho da Redação Ano a ano, o

Unafisco

Banco Central deixa Brasil vulnerável Quem é

A

s movimentações financeiras das contas CC-5 são um pequeno exemplo do que pode ocorrer se o governo aprovar a autonomia do Banco Central (BC), como exige o Fundo Monetário Internacional (FMI). Mesmo com o pressuposto que, hoje, teoricamente, a instituição é subordinada ao presidente brasileiro, eleito pelo voto, o BC vem implantando, ano após ano, uma série de medidas que só favorecem a lavagem de dinheiro e a dependência econômica do país. De 1994 a 2002, 100 bilhões de dólares deixaram o Brasil inclusive de forma ilegal. Isso só foi possível porque o BC modificou norma editada em 1969, batizada de CC-5, que permitia a não-residentes no Brasil terem conta em bancos brasileiros, com uma série de restrições. Mas as mudanças foram muitas, ao passo que, com o tempo, a instituição facilitou a saída de dinheiro do país. Hoje, uma pessoa pode enviar recursos para o exterior sem dar seu nome. “As alterações, ao permitir o livre envio de recursos ao exterior, privilegiam o capital especulativo. E, ao permitir remessas sem identificação, favorecem o crime organizado e a lavagem de dinheiro”, explica Maria Lucia Fatorelli, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato. Se, hoje, a instituição facilita a vida do crime organizado e do mercado financeiro, imagine-se se tiver autonomia de direito. Brasil de Fato – O que é a CC-5 e qual seu impacto na economia do país? Maria Lucia Fatorelli – As contas CC-5, criadas por uma simples Carta Circular do Banco Central, em 1969, tinham o objetivo inicial de permitir a movimentação de contas correntes de estrangeiros em serviço no país (principalmente diplomatas). Até 1989, sua legislação impedia que fosse enviada ao exterior uma quantia superior à que entrasse no país, razão pela qual o volume movimentado nessas contas era pequeno. A partir de 1989, essas contas foram paulatinamente liberalizadas, permitindo o envio de recursos ao exterior, sem limite algum. Posteriormente, foi permitida a remessa sem a identificação do remetente. BF – Por que tantas facilidades? Maria Lucia – Esta opção reflete a crescente liberalização dos mercados financeiros globais, com a implementação das políticas neoliberais em diversos países do mundo. Essas políticas foram impostas, principalmente, pelos Estados Unidos e Inglaterra, que se aproveitaram do elevado grau de vulnerabilidade dos países do Terceiro Mundo quando negociavam suas dívidas externas, após a grande crise das dívidas do início dos anos 80. No Brasil, nos anos 90, o endividamento conjugado às medidas adotadas para conquistar a “estabilidade da moeda” e conter a inflação (abertura dos portos aos produtos importados, manutenção do dólar barato, elevação das taxas de juros, liberalização da movimentação dos fluxos financeiros) tornaram o país dependente da entrada de capital especulativo, sem o qual não fecharíamos nossas contas externas. BF – E onde entram as remessas anônimas de dinheiro para o exterior? Maria Lucia – Dependente do fluxo de capital especulativo, o país tem de conceder cada vez mais benesses a esse capital, materializadas na liberalização da legislação que rege as

Maria Lucia Fatorelli é presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco) e participa da Campanha Jubileu Sul e da Auditoria Cidadã da Dívida Externa. Entre outras propostas, ela defende o controle de fluxo de capitais como uma política para acabar com a dependência externa do país e permitir o desenvolvimento da economia nacional.

inferiores a R$ 10 mil pudessem ser realizadas com utilização de quaisquer instrumentos de pagamento em uso no mercado financeiro.

remessas para o exterior. Esta opção resultou, nos últimos anos – e continua resultando, no governo Lula – em baixo crescimento econômico, desemprego e piora dos indicadores sociais, visto que temos de praticar juros altos para manter o capital especulativo no país, já que este dispõe de liberdade absoluta de saída, a qualquer momento. Mantendo-se essa política, repetiremos a história vivida nas duas últimas décadas, consideradas “perdidas”. Esta opção de liberalizar as remessas para o exterior também escancara as portas para a lavagem de dinheiro de todas as procedências, especialmente do crime organizado, narcotráfico etc. BF – Quem são os principais beneficiados pela CC-5? Maria Lucia – Os investidores estrangeiros e nacionais, que podem, por meio deste mecanismo, chantagear o governo, exigindo

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taxas de juros cada vez mais altas em troca da permanência de seus capitais no país. As contas CC-5 também interessam ao crime organizado, como demonstrado na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Banestado. Nessa CPI, foram identificadas dezenas de bilhões de dólares em remessas ilegais, feitas por intermédio de laranjas, com vistas à lavagem de dinheiro, e se aproveitando das brechas legais que regem as contas CC-5. BF – Quais as principais alterações feitas pelo BC nas contas CC-5 e quem ganhou com elas? Maria Lucia – A liberalização dos fluxos de capital no Brasil começou em 1992, quando se permitiu o envio de qualquer quantia para o exterior. Posteriormente, em 1996, a circular 2.677, que normatiza as contas CC-5, passou a permitir operações sem identificação do remetente ao admitir que movimentações de valores

O RALO DA CC-5 Saldo das movimentações financeiras - em bilhões de dólares 21,2

20 15 9,1

10 5 0

5,2

1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 Fonte: Banco Central, citado por Cintra, Marcos e Farhi, Maryse (2003) Os limites da inserção internacional dos países emergentes no limiar do século 21

BF – E operações com valores maiores do que R$ 10 mil? Maria Lucia – Mesmo as operações acima deste valor estão livres de identificação. A mesma circular 2.677 autoriza que movimentações de valor igual ou superior a R$ 10 mil sejam efetuadas por meio de depósitos nominais no banco depositário, e não ao titular da conta. Em 2003, o BC, sob a presidência de Henrique Meirelles, abriu mais uma possibilidade para o envio de dinheiro ao exterior sem identificação do remetente. A circular 3.187 permite ao remetente enviar o dinheiro para a conta CC-5 via Transferência Eletrônica Disponível (TED), podendo fazê-lo em nome do banco, e não do pagador. Estas alterações, ao permitir o livre envio de recursos ao exterior, privilegiam o capital especulativo. E, ao aceitar remessas sem identificação, favorecem o crime organizado e a lavagem de dinheiro. BF – Quem fiscaliza as operações da CC-5? Como os bancos privados atuam nesse processo? Maria Lucia – Conforme consta no Relatório Final da CPI do Congresso Brasileiro sobre os Precatórios, em alguns casos, os bancos sequer comunicam ao Banco Central a existência de contas CC5. E, naquele caso, não era uma instituição financeira qualquer, mas um dos três maiores bancos do país. Conforme relatório do Sindicato dos Funcionários do Banco Central (Sinal), em 1999 houve uma reestruturação do BC que desmontou a fiscalização do câmbio. Como resultado, não há pessoal suficiente e os funcionários em atividade têm a atribuição de fiscalizar a movimentação cambial de Estados distantes, o

que inviabiliza a fiscalização. Desde 1998, cabe ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) formado por representantes do Banco Central, Receita Federal, Procuradoria da Fazenda Nacional, Polícia Federal, Ministério das Relações Exteriores, entre outros – a investigação sobre lavagem de dinheiro. O Coaf também sofre com a falta de pessoal, o que dificulta o acompanhamento efetivo dessas operações. BF – Há países que adotam uma política mais restritiva em relação à remessa de capitais ao exterior? Maria Lucia – Países como China e Índia, cujo crescimento econômico dos últimos anos é atribuído, pela imprensa conservadora, a medidas liberalizantes, devem seu sucesso, na verdade, aos controles sobre o fluxo de capitais, que lhes permitiram passar sem solavancos pelas crises financeiras globais. A Malásia também adotou, com sucesso, controles sobre as remessas para o exterior, após a crise financeira asiática de 1997. O Chile, por exemplo, não permite a saída de capitais de curto prazo sem a cobrança de uma forte taxa, o que também protegeu o país das crises. Infelizmente, com a assinatura de um acordo bilateral entre o Chile e os EUA – nos moldes da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) – aquela taxa deverá ser extinta. BF – Que propostas poderiam ser aplicadas no Brasil? Maria Lucia – Medidas como o controle sobre a movimentação de capitais – por intermédio da taxação e estabelecimento de prazos de permanência e identificação da operação – devem ser consideradas pela equipe econômica, para que possamos nos libertar das ameaças de fugas de capitais voláteis, e demais amarras geradas pela dependência de divisas. Além de controlar o fluxo de capitais alterando a legislação que rege as remessas ao exterior, temos de rever vários benefícios tributários ao capital financeiro concedidos pelo governo Fernando Henrique Cardoso, como a isenção de lucros remetidos para o exterior. Também deve ser revista a isenção de CPMF para os investidores estrangeiros – concedida no final do ano passado – e que favorece a lavagem de dinheiro. A política econômica como um todo deve ser alterada para que possamos nos tornar independentes do fluxo de capitais financeiros internacionais.

BC mantém juros ao gosto dos bancos Dia 18, o Banco Central (BC) reafirmou sua independência em relação às necessidades do povo brasileiro, ao decidir manter a taxa básica de juros (Selic) em 16,5%. Novamente, uma decisão prejudicial aos trabalhadores e ao setor produtivo da economia. Um dia antes, foram divulgados os balanços dos maiores bancos em 2003. Resultados bilionários num ano em que a economia brasileira ficou estagnada e que vários setores industriais amargaram recessão. Somados, os lucros das sete maiores instituições financeiras atingiram R$ 13,39 bilhões, segundo dados levantados pela consultoria Austin Asis. Os diretores do Conselho de Política Monetária (Copom) não informaram por que insistem na manutenção das mais altas taxas de juros do planeta. A decisão é mais uma prova contrária ao “espetáculo do cresci-

mento” prometido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para 2004. É também um sinal de manutenção de uma política que, desde 1994, transfere recursos dos trabalhadores para o setor financeiro e aumenta o desemprego. “Manter o mesmo patamar de juros de janeiro é colocar em risco todas as metas de crescimento, continuar sacrificando os trabalhadores e privilegiando apenas aqueles que vêm se locupletando com os juros altos, as instituições financeiras”,

criticou Luiz Marinho, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Ao manter a taxa de juros em níveis elevados, o governo dificulta o acesso ao dinheiro; diminue as moedas em circulação na economia, as empresas investem menos, as taxas de desemprego aumentam e os trabalhadores empregados passam a receber menos. O conservadorismo da política econômica, também não agrada à Federação das Indústrias do Estado

EFEITOS DAS TAXAS DE JUROS Renda do trabalhador (em R$ )

Lucros dos bancos (em R$ bilhões)

1.000,00

12,6

950,00

12,4

900,00

12,2

850,00

12

800,00

11,8

750,00

11,6 2002

2003

2002

2003

de São Paulo (Fiesp), cujo presidente, Horácio Lafer Piva, classificou a decisão como um “gol contra”. Desde o Plano Real, a economia brasileira vem registrando uma transferência recorde de renda dos trabalhadores para as instituições financeiras. Em 2003, balanços de 18 bancos apontaram lucro líquido de R$ 12,375 bilhões. Enquanto os bancos ganham, os trabalhadores perdem. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os salários na indústria ficaram 6,8% menores nos últimos dois anos. Entre março e dezembro de 2003, a renda média dos trabalhadores, em geral, caiu 12,92% em relação ao mesmo período de 2002. O desemprego também voltou a crescer em 2003 e atinge já a casa dos 20% da população economicamente ativa, segundo o Departamento Intersindical de Estudos Socio-Econômicos. (JPF)


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NACIONAL PARMALAT

Depois do roubo, a busca por reconstrução João dos Santos e Silva de Porto Alegre (RS)

A

falida Parmalat, oitavo maior grupo empresarial italiano, tornou-se um emblema de transnacional que se aproveitou da benevolência dos governos federal e estadual para aportar no Brasil. De um investimento tímido na década de 70, a empresa passou a aplicar pesado no país a partir dos anos 90. Empresa do ramo de leite in natura, a transnacional abocanhou uma fatia grande do mercado. Atualmente, possui oito fábricas e sete centros de distribuição, todos situados em locais estratégicos para processamento, armazenamento e distribuição dos produtos. São cerca de seis mil funcionários. A empresa também aplicou recursos no marketing esportivo, patrocinando clubes de futebol. O fortalecimento do parque industrial nacional com transnacionais ocorre através de uma aposta de risco. Os reflexos nas subsidiárias locais são os piores possíveis quando uma crise estoura em suas sedes, normalmente localizadas em países desenvolvidos. É contra essa lógica que entidades sindicais têm se manifestado. “A crise da Parmalat simboliza a derrocada de um modelo de desenvolvimento centrado no escancaramento do mercado interno à instalação de empresas transnacionais”, adverte Celso Woyciechowski, tesoureiro da Central Única dos Trabalhadores (CUT) do Rio Grande do Sul e integrante da Comissão em Defesa dos Produtores e Trabalhadores da Parmalat no Estado.

Lalo de Almeida/ Folha Imagem

Trabalhadores e organizações de classe fazem, no Brasil, o rescaldo do que sobrou da falida empresa italiana O ESCÂNDALO, PASSO-A-PASSO Em dezembro de 2003, a Parmalat admite um rombo de 4 bilhões de dólares e perde concordata. O fundador da empresa, Calisto Tanzi, é preso. Confessa o desvio de 500 milhões de euros para empresas de sua família. O governo italiano intervém e passa a administrar a Parmalat. A crise chega a filial brasileira. Há atrasos nos pagamentos de fornecedores das unidades de Itaperuna (RJ) e de Santa Helena (GO). Pressionada, a companhia estima que a dívida do grupo no Brasil é de 2,4 bilhões de dólares. Em meados de janeiro a subsidiária brasileira pede concordata. No Rio Grande do Sul é criada a Comissão em Defesa dos Produtores e Trabalhadores da Parmalat, com representantes da CUT do Rio Grande do Sul, Federação dos Trabalhadores na Alimentação, Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar, Movimento dos Pequenos Agricultores e Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Alimentação de Carazinho.

Falência da fábrica da Parmalat, em Jundiaí (SP), simboliza crise do capitalismo

42ª Vara Civil de São Paulo, Carlos Henrique Abrão, determinou o afastamento da diretoria da Parmalat Alimentos sob a alegação de que a empresa se encontra em crise financeira. Para justificar sua decisão, o magistrado disse que a diretoria da empresa cometeu abuso de poder de controle e inabilidade de gestão, comprometendo o interesse nacional. A primeira medida do interventor nomeado, Keyler Carvalho Rocha, ex-diretor do Banco Central, foi suspender a demissão de 200 funcionários do setor administrativo. Os empregos foram momentaneamente preservados, porém o ceifamento das vagas não está descartado. A advertência foi feita pelo advogado Carlos Casseb, membro do Conselho de Fiscalização da

Parmalat. Composto por seis integrantes, o Conselho vai trabalhar junto com os interventores. A situação dos cerca de seis mil funcionários da Parmalat brasileira tem provocado manifestações de toda ordem. No Rio Grande do Sul, o governador Germano Rigotto (PMDB), em audiência com a Comissão em Defesa dos Produtores e Trabalhadores da Parmalat no Estado, no dia 9, mostrou-se preocupado. “Qualquer encaminhamento requer a manutenção do funcionamento da planta instalada em Carazinho”, afirmou. A fábrica, localizada no noroeste gaúcho, tem 418 funcionários e é a maior e mais moderna das oito unidades da Parmalat instaladas no Brasil. Quatro dias depois da audiência e dois após a intervenção ter sido

O governo federal libera R$ 300 milhões em forma de empréstimos para o setor leiteiro e descarta uma intervenção. Na Câmara dos Deputados é criada uma comissão para acompanhar o caso. Sem dinheiro para honrar compromissos, o presidente da Parmalat no Brasil, Ricardo Gonçalves, admite vender a empresa. O juiz da 42ª Vara Civil de São Paulo, Carlos Henrique Abrão, destitui a administração da empresa e nomeia como interventor o ex-diretor do Banco Central Keyler Carvalho Rocha. Abrão cria, também, um Conselho de Fiscalização, para atuar junto ao interventor.

decretada, o governador, através de uma nota encaminhada à imprensa regional, divulgou que pretende pedir o arrendamento da planta gaúcha por pequenas cooperativas. A proposta de Rigotto se choca com a saída defendida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores

na Agricultura da CUT (Contac), que defende uma saída global para a crise, ou seja, sem o esquartejamento do espólio da Parmalat. “A concordata é imprescindível para que a empresa continue funcionando”, afirma o presidente da Contac, Siderlei Oliveira.

Arrendamento é apontado como saída

SOB INTERVENÇÃO Woyciechowski entende que numa futura gestão da Parmalat no Brasil deverão ser priorizadas a agricultura familiar, os assentamentos e as cooperativas. Proposta com esse conteúdo foi apresentada ao ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, durante reunião realizada, dia 11, em Brasília, com representantes de toda a cadeia produtiva de leite. A reunião aconteceu no mesmo dia em que, em São Paulo, o juiz da

O interventor da Parmalat no Brasil, Keyler Carvalho Rocha, admitiu a possibilidade de arrendamento das unidades da Parmalat no Brasil. O anúncio foi feito em Brasília, dia 18, ao ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, que no entanto descartou a hipótese de o governo federal investir recursos na empresa. Por outro lado, garantiu que o governo quer a manutenção da produção do setor e está preparado para apoiar

novos empreendimentos que queiram assumir plantas industriais da Parmalat existentes no Brasil. Esse apoio se dará através de financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Banco do Brasil. O governo está estimulando cooperativas a unirem-se nessa direção. Uma das negociações mais adiantadas envolve a unidade da Parmalat de Carazinho – a maior da empresa na América Latina. Dia 19, Rosset-

to recebeu em Porto Alegre (RS) a proposta criada pelos produtores de leite e representante dos trabalhadores preocupados com uma solução para a planta da empresa, com base em um documento produzido pelo ministério, denominado Proposta de Reestruturação do Setor Leiteiro do Rio Grande do Sul e Região Sul do Brasil. Um dia depois, em Caxias do Sul, a proposta foi entregue ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo Jeferson Miola, dele-

gado federal do ministério no Rio Grande do Sul, além de definir um ambiente comum de trabalho, os mais de 30 representantes dos setores interessados no assunto referendaram a proposta elaborada com a participação das cooperativas. “A discussão aponta para uma definição, em curto prazo, de que as cooperativas assumam a gestão da Parmalat, preservem empregos e a dinâmica econômica dos três Estados do Sul”, declarou. (JSS)

TRABALHO

O ano de 2004 não começou nada bem para os trabalhadores da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), empresa do Sistema Usiminas que fica no pólo industrial de Cubatão (SP). Na noite de 18 de janeiro, o metalúrgico Sebastião Silva Lima, 44 anos, foi encontrado morto numa galeria de água quente próxima a unidade de alto-forno da siderúrgica. Até agora não foram divulgadas as causas de mais esse acidente de trabalho na empresa. Sebastião Silva Lima era operador de locomotiva e funcionário da Cosipa desde 1989. Na hora do acidente, ele engatava, por intermédio de controle remoto, o terceiro carro-torpedo de gusa (material incandescente a mais de 1 mil graus centígrados). Depois do engate, a torre de controle do Tráfego Ferroviário da empresa perdeu comunicação com o operário. Horas depois, por volta das 20h, ele foi encontrado caído na galeria de água quente. Os trabalhadores do mesmo setor do operário morto não se conformam com o acidente. Eles apontam muitas condições inseguras, mas não sabem definir o que teria acontecido com o metalúrgico. No

Marcos Senhorães

Rosângela Gil de Santos (SP)

Arquivo do Sindicato dos Siderúrgicos e Metalúrgicos da Baixada Santista

Acidentes na Cosipa trazem insegurança

Desde a privatização, em 1993, já morreram 33 trabalhadores na área da empresa

Funcionários fazem manifestação na portaria da Cosipa, em Cubatão (SP)

local do acidente, como explicam os companheiros de Silva Lima, não havia iluminação adequada. O fato mais estranho é que a galeria estava sem tampa.

explosão na máquina de lingotamento contínuo da Aciaria 2 projetou aço líquido a mais de 1.600 graus centígrados. Os metalúrgicos Renato de Campos,32 anos de idade, e Alexandre de Abreu, 29 anos, morreram devido a queimaduras em mais de 90% do corpo. Mais três trabalhadores ficaram gravemente feridos, todos com queimaduras de primeiro e segundo graus espalhadas pelo corpo. Até hoje fazem tratamento.

MORTES INEXPLICADAS O acidente do dia 18 aumentou o clima de insegurança entre os trabalhadores da Cosipa, tanto entre os funcionários diretos como os das empresas terceirizadas. “Os acidentes não escolhem a cor do

uniforme”, observa o presidente do Sindicato dos Siderúrgicos e Metalúrgicos da Baixada Santista, Uriel Villas Boas. O ano de 2003, como lembra o sindicalista, foi muito triste para a categoria. “Perdemos quatro companheiros em acidentes trágicos”. No dia 26 de maio, o soldador José Carlos de Oliveira, 27 anos, da empreiteira NM, morreu após cair numa das unidades da Cosipa. Um mês depois, dia 19 de junho, uma

Outro acidente misterioso foi o que vitimou o cosipano Denis Henrique Oliveira da Silva, 27 anos. Ele foi encontrado morto às 18h14 do dia 25 de outubro, na área de redução (coqueria e altos-fornos). A área é de muitos gases, como monóxido de carbono que não tem cheiro. Desde que a Cosipa foi privatizada, em 20 de agosto de 1993, já morreram 33 trabalhadores na área da empresa, entre funcionários diretos e de contratadas.


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De 26 de fevereiro a 3 de março de 2004

NACIONAL REFORMA UNIVERSITÁRIA

Ministro apóia privatização do ensino Proposta de Tarso Genro desvia recursos públicos para instituições privadas e legaliza lucro de filantrópicas

O

s donos das universidades particulares são os maiores beneficiados pela primeira proposta do novo ministro da Educação, Tarso Genro, para o ensino superior. Essa é a análise de defensores da educação pública, que consideram a sugestão do ministro – reduzir impostos das instituições privadas, em troca de abertura de vagas especiais – uma ofensiva para ampliar a mercantilização do ensino no Brasil. Batizada de Programa Universidade para Todos, a proposta abre 25% das vagas nas instituições privadas para estudantes de baixa renda, os vindos de escolas públicas, negros, índios, portadores de deficiência física e ex-presidiários. Como contrapartida, as universidades teriam isenção de impostos.

cá-la via medida provisória ou se vai propô-la ao Congresso por um projeto de lei.

Victor Soares/ABr

Letícia Baeta da Redação

MERCANTILIZAÇÃO

“Aula de protesto” contra cortes nas verbas para o setor da educação

Genro quer mexer também com as instituições filantrópricas e sem fins lucrativos, hoje proibidas de terem lucros. O ministro argumenta que isso não ocorre, na prática, e propõe como solução a legalização da distribuição de lucros em troca

da abertura de vagas. Apenas a Associação dos Mantenedores de Educação Superior, representante das entidades particulares, participou do debate sobre a proposta. Dentro de dois meses, Genro disse que decide se vai apli-

Públicas agonizam com descaso Os investimentos em universidades públicas têm diminuído a cada ano, agravando a situação de instituições tradicionais do ensino brasileiro. Vera Lúcia Chaves, do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, diz que a política de mercantilização do ensino coloca em risco a “única chance de o país produzir conhecimento e construir um país soberano”. Ela explica: “A universidade pública é um dos pilares essenciais para a construção de um Estado soberano. Quem detém o conhecimento,

detém a política, a economia e a ideologia. Sem isso, somos levado à submissão”. Em 2004, o governo vai investir R$ 610 milhões nas universidades públicas, o que representa apenas 6% do total de investimentos em educação superior. Há 20 anos, o investimento público representava 20% do total. Sem verba, 11 instituições federais de ensino superior (Ifes) de Minas Gerais fecharam o ano com um déficit de R$ 42,8 milhões. Os efeitos do estrangulamento são hospitais universitá-

rios sem equipamentos básicos, laboratórios ociosos por falta de componentes químicos, prédios com infiltração, salas de aula deterioradas e pessoal terceirizado. Os professores não ficam fora do contingenciamento. O ano letivo começa com oito mil vagas nas universidades federais esperando por docentes. “Dinheiro há, mas está sendo gasto com juros da dívida externa”, afirma Vera Lúcia. Só esse ano, o governo desviou mais de 60% do orçamento para pagar R$ 144 bilhões de juros da dívida. (LB)

Os críticos argumentam que a proposta não favorece os alunos pobres, como parece à primeira vista, mas sim donos das escolas particulares. “A isenção dos impostos e o financiamento estudantil ajudam as universidades privadas a conseguir alunos que, sozinhas, elas não conseguiriam”, analisa o presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes), Luiz Lucas. Depois de um período de expansão, incentivado pelo governo Fernando Henrique, o ensino superior privado atravessa dificuldades financeiras. Hoje, há 37,5% de vagas ociosas nas instituições. Algumas possuem índice de inadimplência maiores que 40%. Se a sugestão for aprovada, o governo vai abrir mão de recursos que poderiam ser investidos no ensino gratuito e repassá-los para os donos das instituições privadas. Uma decisão que promete agravar a situação de universidades tradicionais, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que em 2002 não tinha recursos para pagar a conta de energia nem do hospital universitário (veja quadro).

URGÊNCIA Para Vera Lúcia Chaves, coordenadora do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, essa proposta não surgiu à toa. Segundo ela, o novo acordo firmado com o Fundo Monetário Internacional (FMI) impõe ao país a privatização do ensino superior, por meio de uma reforma universitária. Um grupo de estudos

PRIVATIZAÇÃO NA AMÉRICA LATINA

matrícula no setor privado Rep. Dominicana El Salvador Colômbia Brasil Chile Paraguai Peru Venezuela Guatemala México Nicarágua Costa Rica Equador Argentina Honduras Bolívia Panamá Uruguai Cuba

71,2% 69,1% 64,1% 58,4% 53,6% 46,7% 35,9% 35,6% 28,8% 25,5% 34,2% 23,9% 23,2% 20,3% 12,5% 8,5% 8,4% 6% 0%

Fonte: Unesco - 1998

teria sido montado no governo para estudar a questão. “A reforma vem criar condições para que, em janeiro de 2005, o Brasil passe a incluir a educação como mercadoria na Organização Mundial do Comércio (OMC)”, afirma Vera Lúcia. Para a deputada Luciana Genro (sem-partido), o PT está legalizando a “pilantropia”. “As universidades filantrópicas cobram altas mensalidades, têm baixa qualidade e obtêm lucros que não sabemos para onde vai”, critica a parlamentar. A diretora da União Nacional dos Estudantes (UNE), Lúcia Stunpf, acredita que a proposta do governo “atende a demanda imediata de excluídos da educação superior”. Mas enfatiza que a reivindicação do movimento estudantil é pelo fortalecimento da educação pública, “e isso o projeto Universidade para Todos não prevê”.

MULHERES

Líderes combatem a violência e a impunidade ARTICULAÇÃO SOCIAL Essa situação provocou uma articulação da sociedade civil capixaba, que criou em 1999 o Fórum Permanente contra a Violência e a Impunidade-Reage Espírito Santo, do qual participam representantes de cerca de 100 entidades de todos os setores. No Natal de 2001, após denúncias contra o crime organizado, ela e outros representantes do Fórum foram ameaçados de morte, e não puderam sair de casa. Marta também trabalhava em parceria com a equipe de repressão ao crime organizado da qual fazia parte o juiz Alexandre Martins Castro Filho, assassinado em março de 2003, em Vila Velha, região metropolitana de Vitória (ES). A militante indigna-se: “Temos procurado proteção para essas pessoas e não encontramos. Aqui o crime afronta a Justiça”, diz, reafirmando, contudo, que não vai desistir, “a não ser que sejamos impedidos”.

de 2000 conheceu o MTST e há três anos realizou o sonho da casa própria: mora no assentamento urbano Anita Garibaldi, em Guarulhos. Lucimeire orgulha-se do fato de a maioria dos representantes da coordenação do movimento e dos chefes de família serem mulheres. “Elas são mais determinadas”, diz a líder, que foi ameaçada de morte diversas vezes. Em uma delas, um ocupante, que não precisava de moradia, levantou a camiseta e perguntou: “Você conhece isso aqui?”, mostrando um revólver. “A fábrica que fez isso aí, não fez só essa”, respondeu. Também já recebeu telefonemas anônimos ameaçadores e “muita borracha” em manifestações.

Analfabeta até cerca dos 20 anos, a coordenadora do MTST vai começar a cursar faculdade de pedagogia. E lembra um momento que marcou muito sua vida: o despejo do acampamento Carlos Lamarca, em Osasco, em janeiro de 2003. “Vi cenas muito fortes, mulheres que preferiram atear fogo em seus barracos a nos verem derrubados pela polícia”, recorda. Lucimeire diz que a maior dificuldade de ser uma militante não está na polícia, nem nos despejos, mas dentro de casa: a conciliação da luta com a vida familiar. “Agora trouxe meu marido para o movimento, mas antes tínhamos sérios problemas”.

Anderson Barbosa

a existência de grupos criminosos ligados e infiltrados nos principais poderes do Estado.

Jorge Pereira Filho

Ela tem 47 anos e há 30 trabalha na defesa dos direitos humanos no Espírito Santo. Marta Falqueto vive e trabalha no Estado onde o crime organizado mais se sofisticou no país. Há 30 anos ela defende causas relacionadas à violação dos direitos humanos no Espírito Santo, onde têm vindo à tona escândalos de lavagem de dinheiro, casos de violência e a possível ligação de políticos com o narcotráfico. Conselheira nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos e membro da coordenação do Fórum Reage Espírito Santo, Marta começou a militar nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), no município da Serra, na década de 70. Mes-

mo com a oposição da família, nunca pensou em desistir, até mesmo quando ouvia provocações como: “Por que não vai cuidar da sua casa e da sua filha? Isso aqui não é para você”, uma referência indireta ao fato de sua filha ser portadora de deficiência. O Movimento Nacional de Direitos Humanos há mais de dez anos tem acompanhado e denunciado as ações do crime organizado no Espírito Santo. No final do governo Albuino Cunha de Azeredo, do PMDB (1991-95), foi constatada Divulgação

Tatiana Merlino da Redação

LUTA POR MORADIA

Marta Folguedo (no detalhe) e Lucimeire encaram de frente a violência

Representante da coordenação estadual do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Lucimeire Freire Oliveira nasceu no Ceará e vivia numa casa com nove irmãos, dos quais sete mulheres. “Dois deles morreram de morte severina”, diz, falando da fome e fazendo referência ao poema “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto. Quando tinha 15 anos, mudouse para São Paulo. Nunca mais voltou. Trabalhou como empregada doméstica e metalúrgica e militou nas CEBs em Guarulhos. No final

São Paulo, 19 de fevereiro de 2004 - Militantes do Movimento dos SemTeto do Centro protestam contra o governo do Estado de São Paulo. Eles reivindicam solução para o problema de cerca de 500 pessoas despejadas do Edifício Ana Cintra, no centro de São Paulo, em janeiro. As 97 famílias estão acampada nas vizinhanças do prédio, onde aguardam uma resolução do governo de Geraldo Alckmin (PSDB-SP)


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De 26 de fevereiro a 3 de março de 2004

NACIONAL PARANÁ

Fator de “risco”, Requião contra-ataca Agência Estado

Governador afirma que “verdadeiro risco” seria o da conivência com irregularidades da gestão de seu antecessor PERIGO DEPENDE DO PONTO DE VISTA CASO COPEL/CIEN Como estava Contratos obrigavam a Copel a comprar 1,3 mil megawatts de energia elétrica da multinacional argentina Cien (Companhia Interconexão Energética) e das americanas El Paso e NGR Energy. A estatal precisava de apenas 100 megawatts. Uma cláusula previa o pagamento da energia mesmo que a Copel não precisasse dela. Outra irregularidade: os pagamentos eram fixados em dólar.

O que foi feito O contrato celebrado com a Cien, de 26 anos, que estabelecia a compra anual de 800 megawatts de energia, foi revisto pelo atual governo.

CASO SANEPAR Como estava Um pacto firmado entre o Estado e o consórcio Dominó Holding – formado pelo banco de investimentos Opportunity, a Andrade Gutierrez Concessões, o grupo francês Vivendi e a Copel –, durante o governo de Jaime Lerner, transferiu à iniciativa privada o controle operacional da Companhia de Saneamento do Paraná, apesar de o Estado possuir 60% das ações da empresa.

O que foi feito O pacto de acionistas que deu ao sócio minoritário o controle da Sanepar foi cancelado por Requião, através de um decreto. “Não pode haver lucro sobre a falta de água e esgoto, enfim, sobre a miséria do povo paranaense”, frisou. A medida está sendo questionada na Justiça.

Na contra-corrente, governador Requião (à dir.) mantém política que desagrada interesses de grupos econômicos

N

a última semana, o governador do Paraná, Roberto Requião (PMDB), fez duras críticas ao mercado financeiro e a setores da mídia brasileira, durante a abertura dos trabalhos deste ano da Assembléia Legislativa do Estado. Estimulados por alguns veículos de comunicação, analistas cunharam a expressão “risco Requião” como referência a supostos efeitos negativos das revisões de contratos de empresas estatais e de concessões de serviços públicos. Segundo esses analistas, as medidas, ensaiadas pelo governo paranaense desde o ano passado, seriam especialmente negativas aos olhos dos próprios interesses dos investidores no mercado de ações. Entre as medidas tomadas pelo governo e que motivaram essas críticas estão o cancelamento, em agosto de 2003, do reajuste de 25,3% da tarifa de energia elétrica, na época autorizado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e a retomada do controle operacional da Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) pelo Estado. Entram na lista de “ações de risco” a revisão de contratos milionários e lesivos aos cofres da Companhia Paranaense de Energia (Copel) e o processo de desapropriação das ações das concessionárias de rodovias, entre outras (veja quadro ao lado). “Contrariados, grupos econômicos, o tal do mercado e seus portavozes reagem de forma agressiva e despudorada e buscam confundir a opinião pública”, discursou Re-

quião. “O mercado que fique com os mercadores, porque o povo do Paraná e do Brasil não é mercadoria”. O governador disse ainda que a mídia, sobretudo a nacional, critica o seu governo, mas esquece de esclarecer ao público as razões que o levam a tomar determinadas decisões. De acordo com ele, o verdadeiro risco seria o da “omissão e da conivência” com irregularidades cometidas durante a gestão de seu antecessor, Jaime Lerner (PSB, ex-PFL).

DÍVIDA “IMPAGÁVEL” Após almoçar com Requião, em meados de janeiro, o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, viu-se obrigado a comentar os possíveis impactos das ações do governo do Paraná em relação à imagem do país no exterior. “Existe uma confiança internacional no Brasil”, declarou Dirceu, ao garantir a jornalistas que as decisões do governo do Paraná não iriam atrapalhar as chamadas “parcerias público-privadas” (PPPs).

PEDÁGIO

“As minhas posições são as clássicas do PT”, teria dito o governador, meses antes, em entrevista concedida à revista Amanhã, em sua edição de novembro. Requião afirma que, em 1994, o governo do Paraná possuía uma dívida de R$ 1,1 bilhão. Em 2002, após dois mandatos de Lerner, a dívida passaria para R$ 20,5 bilhões.”É (a atual dívida do Estado) rigorosamente impagável.” Requião declara ainda que Lerner foi o pior governador da história do Brasil – não apenas do Paraná –, e que o problema da corrupção no Estado é grave. Apenas de contratos “frios” na área de informática, cerca de R$ 500 milhões teriam sido economizados pelo atual governo. “Se é isso que o Rio de Janeiro quer, Jaime Lerner para eles”, provoca Requião, referindo-se ao fato de seu adversário político ter transferido o domicílio eleitoral para a capital fluminense, onde pretenderia disputar as eleições municipais de outubro.

Como estava As concessionárias obtiveram do governador Jaime Lerner o direito de explorar o serviço no Paraná em cerca de 2,5 mil quilômetros de rodovias. Calculadas pelas próprias empresas, as tarifas são apresentadas ao governo, que em apenas 5 dias deve se pronunciar sobre os valores.

O que foi feito O governo tenta desapropriar as ações de cinco das seis concessionárias que operam rodovias no Estado. Outra linha de ação é a busca de uma decretação da nulidade dos contratos, a partir de uma série de irregularidades constatadas em auditorias. Além disso, mantém uma briga na Justiça pela redução das tarifas.

FERROESTE (*) Como estava A gestão da Ferroeste – ferrovia de 248 quilômetros que liga Cascavel a Guarapuava – foi entregue à Ferropar, controlada pela iniciativa privada, após leilão realizado em 1996. Valor da privatização: apenas R$ 25 milhões. Custo da construção da ferrovia: quase R$ 1 bilhão.

O que foi feito O governo assinou dia 10 uma resolução que instaura processo administrativo para declarar a caducidade por inadimplência do contrato de arrendamento com a Ferropar, que foi afastada da gestão da Ferroeste. Motivo: falta de pagamento de uma parcela de R$ 3,2 milhões, vencida mês passado. O total da dívida deve chegar a R$ 25 milhões. Governo está chamando as entidades produtivas do Estado para a criação de uma nova forma de gestão para a Ferroeste.

TRANSGÊNICOS Como estava Marcos Borges/Gazeta do Povo/AE

Fernando César de Oliveira de Curitiba (PR)

Simplesmente não havia política própria do governo estadual a respeito do assunto.

O que foi feito O Estado luta para ser declarado pelo governo federal “área livre” de transgênicos. Aprovou lei que visava proibir a produção e comercialização de tais produtos, mas ela foi derrubada pelo STF. “A soja convencional nos dá 40% a mais de produtividade. A transgênica tem restrições”, diz Requião. “E se optássemos pela transgênica, ainda teríamos de pagar royalties pela semente, que é da Monsanto, e pelo mata-mato utilizado, que também é desta empresa. Não podemos ficar nas mãos de uma multinacional.”

UEG ARAUCÁRIA (*) Como estava

Sem-Terra acampam no pedágio da empresa Rodonorte, em Carambeí (PR)

Pelo contrato, a Copel arcou com a construção da Usina Termelétrica a Gás de Araucária (UEG), que, depois de pronta, deveria utilizar gás boliviano para a produção de energia. O grupo empresarial El Paso, dos Estados Unidos, era parceiro da Copel no empreendimento, mas nunca colocou recursos na obra. A usina custou 360 milhões de dólares aos cofres públicos, mas não pode entrar em funcionamento por erros do projeto.

O que foi feito

TRABALHO

Primeiro Emprego e PPP não criam vagas Luiz Antonio dos Santos do Rio de Janeiro (RJ) As perspectivas de redução do desemprego em 2004 não são otimistas, pois o governo federal não mostra sinais de que vai investir, avalia o economista João Sicsu, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A seu ver, não se deve esperar investimentos das empresas privadas, que vivem incertezas quanto à possibilidade de haver consumo. No ano passado, além da taxa oficial de desemprego de 12,3%, houve diminuição da renda de 14,5%, ou seja do salário real do trabalhador. Nesse quadro, Sicsu não crê que programas governamentais como o Primeiro Emprego ou a Parceria Público-Privada (PPP) possam melhorar expressivamente as condições da população em termos de trabalho e renda. Outro obstáculo ao crescimento que ele aponta são as elevadas taxas de juros. Apesar da queda observada em

2003, elas ainda estão altas. Sicsu lamenta que, em janeiro, o Banco Central (BC) tenha interrompido a diminuição do custo do dinheiro e mantido a taxa básica em 16,5%. Afinal, “o juro em queda é um indicador importante para se investir”, enfatiza o professor. Com juro alto, os que dispõem de dinheiro preferem comprar títulos do governo e esperar pela remuneração, do que investir na produção de bens ou serviços.

CONFIANÇA DEMAIS Para o economista é equivocada a atitude do governo federal de esperar muito de programas como a PPP ou o Primeiro Emprego, ao invés de reduzir o superávit primário de 4,25% do Produto Interno Bruto (PIB), o que resultaria em sobra de recursos para investir. Sobre a PPP, Sicsu assegura tratarse de “um plano de garantia de rentabilidade do capital (privado) investido”. Com a PPP, explica, o governo dá todas as garantias à empresa que

construir uma estrada, venham ou não a passar veículos por ela. Mesmo assim, “as empresas desconfiam muito da possibilidade de o governo pagar essa rentabilidade num ambiente de economia em baixa, o que não acaba com a incerteza dos empresários”. O Primeiro Emprego, de acordo com Sicsu, é importante, mas tampouco trará resultados tão expressivos quanto o governo quer fazer crer. Trabalho e renda, de forma sustentada e continuada, só são factíveis quando há investimento produtivo e consumo. João Sicsu também desmistifica a crença de que a redução dos encargos sociais vinculados à contratação de trabalhadores possa gerar maior oferta de postos de trabalho. “Os empresários sempre reclamam dos encargos sociais, mas quando a economia cresce, eles reclamam menos”, diz. A quebra de direitos trabalhistas não necessariamente aumenta a oferta de emprego, mas, com certeza, gera maior margem de lucro para os empresários.

O pagamento mensal de R$ 25 milhões à El Paso foi suspenso. Requião viajaria dia 17 para a Europa, onde iria acompanhar o julgamento, no Tribunal Arbitral de Paris, da ação movida pela empresa norte-americana que cobra do Estado uma indenização de 850 milhões de dólares pelo rompimento de sociedade na construção da UEG. “Vou lá para dizer que a legislação brasileira está acima de negociatas de grupos estrangeiros. Que o Paraná tem um governo que não se acovarda diante das pressões internacionais. Não será um tribunal privado internacional que irá atropelar a legislação brasileira”, declarou o governador um dia antes de embarcar.

BINGOS (*) Como estava Os bingos foram autorizados a funcionar em 1993, com a Lei Zico. Em 1998, a Lei Pelé regulamentou o funcionamento de tais estabelecimentos desde que parte do faturamento fosse repassada a alguma entidade esportiva – federações ou clubes –, visando a formação e manutenção de atletas. Entretanto, a partir de dezembro de 2001, por conta da falta do repasse e irregularidades na administração das “casas de jogos”, as licenças para funcionamento foram canceladas e a atividade passou a ser ilegal em todo o território nacional.

O que foi feito O Paraná é o Estado que mais tem lutado contra a atividade. O secretário de Segurança Pública do Estado, Luiz Fernando Delazari, preside a Comissão Nacional de Combate ao Jogo do Bingo. Após o feriado de Carnaval, a comissão deve se reunir com os ministros da Justiça, Casa Civil, Fazenda e Esportes. “Todo bingo aberto é uma ilegalidade. Essa atividade está servindo para a lavagem de dinheiro e contribuindo com o crime organizado”, afirma Delazari. (*) PARA SABER MAIS Mais informações sobre alguns desses assuntos podem ser obtidas através de três cartilhas editadas pelo governo do Paraná. Encomendas podem ser feitas, de todo o país, através do telefone 0800-6437444. Os temas são: “De caso com a Máfia”, sobre a ligação das casas de bingo com mafiosos italianos e espanhóis; “CopelUEG”, a respeito dos contratos da Usina Termelétrica a Gás de Araucária; e “Ferroeste”, que aborda a situação da ferrovia.


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ARGENTINA

Piqueteiros fazem bloqueios em estradas

France Presse

SEGUNDO CADERNO

Em protestos contra o corte de subsídios a trabalhadores desempregados, argentinos isolam Buenos Aires da Redação

E

m uma manifestação absolutamente pacífica, dia 19, centenas de desempregados argentinos interromperam o tráfego numa das principais pontes de acesso a Buenos Aires, praticamente isolando a capital da Argentina. Durante as sete horas que duraram as manifestações, que conseguiram bloquear o trânsito em 22 das 24 províncias do país, a população das regiões da periferia de Buenos Aires dispuseram apenas de poucas alternativas de comunicação entre a capital e as cidades vizinhas. Os chamados “piqueteiros” querem que o governo restabeleça os

250 mil subsídios a trabalhadores desempregados, benefício concedido pelo ex-presidente Eduardo Duhalde, em 2002, e suspenso pelo Ministério do Trabalho no ano passado. O coordenador nacional do Movimento Independente de Excluídos e Desempregados, Raúl Castells, estimou que cerca de 50 mil pessoas saíram para protestar nas ruas, e lamentou que “o poder executivo se negue a dialogar e não queira escutar o povo”. Em compensação, Castells destacou, em declarações à imprensa, que a reunião com representantes da Comissão de Trabalho, no Senado, foi “muito amável, muito demo-

Mulher com filha participam de marcha na cidade de La Plata, província de Buenos Aires, em protesto pacífico

crática”: “Escutaram nossos argumentos, apresentamos um projeto alternativo de lei trabalhista em um clima de muito respeito”, contou. De acordo com as organizações piqueteiras, às 12 horas do dia 19 já estavam sendo realizados 107 bloqueios. Entre as várias ações pro-

COLÔMBIA

Coca-Cola é acusada de matar As recentes denúncias feitas pela empresa Dolly Refrigerantes contra a Coca-Cola no Brasil se projetam, em caráter muito mais grave, na Colômbia. A transnacional está sendo acusada por diversas organizações sociais e sindicais colombianas de ter matado, de 1994 até hoje, oito trabalhadores ligados ao Sindicato Nacional de Trabalhadores da Indústria Alimentícia (Sinaltrainal). O sindicato também acusa a Coca-Cola e suas subsidiárias de serem responsáveis pela expulsão de 48 trabalhadores do seu local de trabalho ou moradia, por dois exílios, 67 ameaças de morte a operários e cerca de 150 prisões sem provas ou processos formais. Um dos casos de maior repercussão foi o assassinato do sindicalista Isidro Segundo Gil, morto por um grupo paramilitar que entrou na engarrafadora Bebidas y Alimentos, dia 5 de dezembro de 1996. Ariosto Mosquera, diretor da engarrafadora é acusado de ter convidado os assassinos a entrar na fábrica como parte de uma conspiração que envolveria a empresa e grupos paramilitares de extrema direita, com o objetivo de acabar com a atividade sindical dentro da fábrica. A suposta ligação da Coca-Cola com grupos paramilitares na Colômbia é a principal acusação de uma ação que Dolly Refrigerantes desde 2001 - Na edição 51 (19 a 25 de fevereiro), Bra- corre na Jussil de Fato denuntiça estaduniciou o jogo sujo da dense, movida Coca-Cola contra a pela União dos Dolly Refrigerantes, a partir de relações Operários Siprosmícuas com o derúrgicos dos Estado. Em entrevisEstados Unita exclusiva, Laerte dos contra a Codonho, presidente da Dolly, revelou a transnacional. existência de uma Daniel Kovaestratégia que enlik, procurador volvia fornecedores, Ministério Público, do sindicato Receita Federal e estadunidenespionagem, com o se, representa objetivo de minar a concorrência. quatro trabalhadores do Sinaltrainal vítimas de ataques supostamente promovidos pela CocaCola na Colômbia.

CONTAMINAÇÃO NA ÍNDIA Dia 4 de fevereiro, uma investigação parlamentar aberta pelo governo indiano em julho de 2003, a pedido do Centro para Ciência e Meio Ambiente, de Nova Délhi (Índia), concluiu que os refrige-

CRIANÇAS FAMINTAS

Scott Olson/AFP

da Redação

movidas durante o dia, duzentos piqueteiros interromperam totalmente o trânsito na Ponte Pueyrredón, que dá acesso à capital, em ambas as mãos. Mil e quinhentos manifestantes do Bloqueio Piqueteiro Nacional pararam a estrada Panamericana, na altura da fábrica Ford em General Pacheco, ao Norte da Grande Buenos Aires. Outros duzentos manifestantes do Movimento Territorial de Libertação bloquearam uma importante avenida da cidade de Corrientes, mas deixaram alguns caminhos alternativos.

Os piqueteiros ocuparam, ainda, bilheterias de várias linhas de trem – uma das reivindicações é a abertura de frentes de trabalho genuínas. Antes da privatização, 140 mil pessoas trabalhavam nas ferrovias estatais; hoje, são apenas 16 mil empregados no setor porque as empresas privadas Piqueteiros - Grususpenderam o pos de trabalhadores funcionamento desempregados que de uma quancomeçaram a se organizar em meatidade enorme dos da década de de vias férreas 90 e ganharam força e de serviços. com o agravamento da crise que levou à Uma fiscal pobreza metade da federal de San população argentina. Isidro, Rita MoSuas manifestações lina, ao visitar costumam incluir a participação de muo local onde lheres e de crianças. os piqueteiros

bloquearam a estrada Panamericana, foi contundente: “Não vou reprimir jamais crianças famintas”. Mas o chefe de gabinete do governo, Alberto Fernández, ressaltou a existência de alguns grupos radicais: “Eles buscam a reação do Estado para depois se converterem em vítimas. Não vamos dar esse gosto a eles porque estamos mais interessados na tranqüilidade social argentina”. O presidente Néstor Kirchner tenta acabar gradualmente com o sistema de subsídios criado por Duhalde quando ocorreu a desvalorização do peso, o que fez disparar a inflação e deixou milhares de argentinos na pobreza. Hoje o sistema beneficia cerca de 2 milhões de famílias. Kirchner garantiu recentemente que são gerados 70 mil postos de trabalho por mês no país. E que pretende que esses 2 milhões de planos de auxílio de 50 dólares mensais sejam substituídos por postos de trabalho, gerados pela reação de uma economia que cresceu cerca de 8% no ano passado. Projeções públicas e privadas estimam um crescimento de 4% a 6%, em 2004. Porém, o desemprego chega a 16,3% e mais da metade da população argentina vive na pobreza – ou seja, não consegue comprar, com sua renda, a cesta básica de alimentos, produtos de higiene e serviços. (Com agências internacionais)

EQUADOR

Pressão em Cotopaxi obriga governo a ceder da Redação

Protesto de colombiano em frente à sede da Coca-Cola em Chicago

rantes da Coca-Cola contêm um “coquetel mortal de resíduos de pesticidas”. Substâncias tóxicas que tornam a bebida imprópria para o consumo, foram encontradas em taxas 30 vezes maiores do que o padrão permitido pela União Européia. Testes realizados nos Estados Unidos com amostras dos mesmos refrigerantes mostraram que lá os produtos da Coca-Cola são considerados seguros. A produção indiana dos refrigerantes da Coca-Cola causa outro “efeito colateral” grave: pelo menos cinco comunidades próximas a engarrafadoras do sistema Coca-Cola enfrentam sérios problemas de falta de água. A transnacional é acusada de poluir e consumir importantes reservatórios do país. A reação à exploração dos recursos naturais tem gerado grandes protestos, como os que aconteceram na cidade de Kerala, no início de setembro de 2003, quando treze ativistas foram presos

após uma manifestação pacífica. Casos como o da Índia e da Colômbia são apenas alguns entre a enorme lista de crimes e irregularidades atribuídas à Coca-Cola pela campanha “Stop Killer Coke” (pare a Coca-Cola assassina, em português). O endereço da campanha na internet (www.killercoke.org) traz uma lista dos abusos. Com base nas denúncias de crimes contra trabalhadores na Colômbia, um comitê internacional encabeçado pelo Sinaltrainal lançou a Campanha Mundial de Boicote à Coca-Cola, dia 22 de julho de 2003, data que foi escolhida também como o Dia Mundial de Boicote à Coca-Cola. Detalhe curioso: antes do 22 de julho, o Dia de Ação Global contra a Coca-Cola era 17 de outubro, um dia de mobilização mundial contra a recusa da Coca-Cola em pagar tratamento médico contra o vírus da Aids para seus trabalhadores no continente africano.

Uma delegação de indígenas de Cotopaxi se reuniu com representantes do governo do Equador das 17h30 do dia 19 até as 6h30 do dia 20. O saldo da noite foi positivo: dos quatorze pontos de reivindicações, treze foram resolvidos. O tema mais polêmico diz respeito à municipalização da Empresa Elétrica, medida com a qual o governo finalmente concordou, uma vez que a companhia estava na lista de privatizações. Durante toda a noite, a população aguardou atenta a comissão que negociava em Quito, a capital, e até a manhã do dia 20, a circulação de veículos que permanecia quase totalmente suspensa. Carlos Espín, presidente do Movimento Indígena e Campesino de Cotopaxi se declarou satisfeito com 80% dos acordos feitos, mas advertiu que “a última palavra sobre isso será do povo”. Ao mesmo tempo em que a delegação de Cotopaxi negociava com o governo, os movimentos sociais da província de Zamora Chinchipe, ao sul do país, também chegaram a acordos com as autoridades locais. Os povos Kichwa acusaram o

governo de Lucio Gutiérrez pelo assassinato de Maria Lalvay, morta dia 16 durante as manifestações contra o governo, na cidade de Cuenca, em Azuay. Com 69 anos, Maria estava descansando quando se iniciou um enfrentamento entre os manifestantes e o exército, que fez vários disparos com o objetivo de desocupar a rua. Além de ela ter sido alvejada por duas balas, quatro pessoas ficaram feridas e dezenove foram presas no conflito. “Com o coronel Gutiérrez, vivemos uma ditadura militar”, disse o padre Francisco Jara, vigário de Cantón Nabón, em Azuay. O religioso contou que os militares não apenas dispararam contra os indefesos manifestantes mas também lançaram bombas de gás lacrimogêneo e provocaram incêndios com o objetivo de amedrontar e encurralar as pessoas para capturá-las. O presidente da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), Leonidas Iza, e o coordenador nacional de Pachakutik, Guilberto Talahua, entre outros dirigentes, foram a Cuenca exigir que as autoridades se responsabilizem pela apuração do crime e punam os culpados. (Com agências internacionais)


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AMÉRICA LATINA LIVRE COMÉRCIO

Movimentos querem integração alternativa Jorge Pereira Filho da Redação

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ovimentos sociais de todo o continente estão discutindo uma proposta de integração alternativa para se contrapor ao acordo da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). A decisão de debater um projeto comum foi tomada em Cuba, durante o III Encontro Hemisférico de Luta contra a Alca, no final de janeiro. O objetivo é reunir as diversas experiências das organizações em cada país e sintetizar a discussão no Fórum Social das Américas, no Equador, em julho. Hoje, esboços de duas propostas circulam no continente. O primeiro contém estudos elaborados pela Aliança Social Continental (ASC), espaço de articulação dos movimentos sociais criado, em 1997, para combater a Alca. O segundo é a Alternativa Bolivariana das Américas (Alba), encabeçada pelo presidente venezuelano Hugo Chávez. (Veja quadro)

INTERESSE POPULAR Ambos os textos servem de base para a formulação de um projeto de integração popular e defendem, em sua essência, o combate às desigualdades sociais e regionais, em sintonia com o interesse da maioria dos povos americanos. A proposta, ainda em discussão, caminha na direção contrária do projeto de integração sugerido pelo governo dos Estados Unidos por meio da Alca. Dono da maior economia do planeta, os estadunidenses querem o acordo para ampliar os privilégios das maiores transnacionais no continente. Mesmo se ficasse restrito a mais uma rodada continental de abertura comercial – o que não é o caso –, o acordo da Alca favoreceria os grandes monopólios econômicos, que esmagariam as pequenas e médias empresas do continente. A Alca restringe, ainda, o direito de autodeterminação dos povos e impede o Estado de cumprir suas responsabilidades sociais, como investir em educação e saúde, independentemente da vontade das empresas. Pelos rascunhos divulgados até o momento, a integração dos movimentos sociais teria como uma de suas orientações gerais estabelecer

Renato Stockler

Proposta será formulada para se contrapor à criação da Alca; próximo debate ocorrerá no Equador, em julho

ANÁLISE

O futuro do continente Emir Sader

OUTRA AMÉRICA É POSSÍVEL (Propostas em discussão pelos movimentos sociais) Garantia da soberania nacional sobre qualquer acordo bilateral ou multilateral; Ampliação dos direitos básicos dos trabalhadores; Abandono dos ajustes propostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial; Defesa da soberania alimentar e nacional. Cada país deve criar medidas que protejam projetos de financiamento à agricultura, pesca, meio ambiente e, sobretudo, a reforma agrária; Incentivo ao investimento na geração de empregos; Prioridade ao mercado interno; Utilização dos recursos naturais de acordo com as necessidades das populações, e não com o interesse das transnacionais; Utilização do poder de compra dos Estados para estimular a produção das micro e pequenas empresas; Países mais ricos devem arcar com custos da integração continental. Fonte: Aliança Social Continental (ASC) e Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba)

uma política de cooperação entre as nações, e não de subordinação. Uma das propostas, por exemplo, diz que acordos de propriedade intelectual não podem restringir o desenvolvimento de um país nem limitar o acesso a determinado produto.

POLÍTICA DE COOPERAÇÃO Hoje, segundo a Organização Não-Governamental (ONG) Médicos Sem Fronteiras, 36 milhões de pessoas são infectadas pelo HIV, mas apenas 500 mil têm acesso aos medicamentos. Isso ocorre porque as empresas fabricantes, protegidas por acordos internacionais como o da Alca, detêm o monopólio da industrialização e cobram caro pela comercialização destes remédios. Os movimentos querem também que nenhum acordo bilateral ou regional interfira na soberania dos países, garantindo o direito dos povos de proteger sua biodiversidade e de definir sua política de serviços básicos, como saúde e educação. Já

para a redução das desigualdades regionais, sugere-se a criação de fundos compensatórios que deveriam apoiar o desenvolvimento dos países mais pobres. No tocante ao endividamento externo – problema comum a todos países latino-americanos – uma integração poderia contemplar a prioridade da dívida social sobre a dívida econômica. Mas, para quem pensa que as propostas são inviáveis, um exemplo de como o sonho não está tão distante é a proposta de que países com abundância em determinado recurso, possa trocá-lo por um serviço escasso no país. É o que já acontece, hoje, no acordo existente entre Venezuela e Cuba. Os andinos fornecem petróleo a custo baixo para a ilha caribenha e recebem, em troca, assistência nas áreas de medicina e educação popular. Atualmente, há milhares de médicos cubanos trabalhando nas periferias das grandes cidades venezuelanas. Basta querer.

A nova etapa de internacionalização do capital – chamada de “globalização”, correspondente à hegemonia neoliberal – levou a um enfraquecimento dos Estados nacionais, especialmente na periferia do sistema capitalista. Conforme esses Estados adotaram as políticas do Fundo Monetário Internacional (FMI), favoreceram a financeirização de suas economias, transferindo para os mercados especulativos a chave de seu destino. Processos de privatização, de desregulação, de incentivo a políticas sociais focalizadas no lugar da afirmação dos direitos universais, levaram à idéia de que a crise atual desses Estados deveria levar à sua desaparição. Essa idéia se choca, em primeiro lugar, com as novas funções que os Estados nacionais passaram a ter no centro do capitalismo, em que eles passaram a ser os instrumentos de criação de instâncias supranacionais, sem deixar de ter o papel de construção e de consolidação da integração social, política e cultural no plano interno. Choca-se, em segundo lugar, com os projetos dessas mesmas regiões, em que processos de integração serviram para conquistar posições mais favoráveis no mercado internacional. Entre as lições que devem ser tiradas pelos países da periferia do capitalismo está a dupla função dos Estados nacionais na atualidade: por um lado, afirmar os direitos universais de todos, como conquista incontornável da democracia e que só os Estados nacionais, democratizados, podem levar a cabo. Por outro, ser instrumentos para a construção de processos de integração supranacionais, que fortaleçam a posição dos Estados periféricos. Esses princípios devem orientar o Brasil. Por um lado, fortalecer o Estado, no sentido de capacitá-lo para estender e garantir os direitos de cidadania para toda nossa população e, por outro, levar adiante e fortalecer a atual política externa, para multiplicar nossa força para obter uma reinserção internacional em melhores condições, tanto

em termos de soberania quanto de possibilidades econômicas mais favoráveis. No momento atual, conforme Celso Amorim, ministro de Relações Exteriores do Brasil, reafirma que “ceder na Alca é hipotecar o futuro do país e suas políticas de desenvolvimento”, evidencia consciência de que os impasses atuais nas negociações da Alca apontam para um limite nas possibilidades de que esta se inicie em janeiro de 2005. Os Estados Unidos, apoiados pelos países com os quais já dispõem de alguma forma de acordos bilaterais, pressionam o Brasil e os países do Mercosul para concessões maiores do que os acordos da Alca “light”, decididos anteriormente. O problema político é que os EUA não farão maiores concessões do seu protecionismo interno antes das eleições presidenciais de novembro deste ano, ainda mais quando o pleito se torna indefinido. O governo Bush não pode permitir-se a perder, por exemplo, votos no Texas, cujos produtores de suco de laranja enfrentam a concorrência de produtos brasileiros mais baratos e melhores em qualidade. Portanto, a nova ofensiva de Washington virá em janeiro de 2005, quando se inicia o novo período presidencial. O Brasil e seus aliados no continente dispõem, assim, deste ano, para avançar na integração alternativa, no espaço sulamericano, para enfrentar essa situação em melhores condições. Os movimentos sociais e políticos que lutam por um “outro mundo possível” se preparam, por seu lado, para elaborar e lutar por um modelo de integração alternativo, de caráter econômico, social, político e cultural, mas também tecnológico, educacional, sindical, informativo, no Fórum Panamericano a ser realizado no Equador, em julho deste ano. Da conjunção entre essas forças e os governos que lutam igualmente por uma política de soberania e justiça social depende o destino da América Latina no novo século. Cientista político

HAITI

da Redação Enquanto avança a ofensiva dos oposicionistas armados que querem derrubar o presidente Jean Bertrand Aristide, os Estados Unidos anunciaram, dia 19, que vão enviar “um punhado de efetivos” para o Haiti, com a missão de “proteger os interesses estadunidenses”. O contigente militar do Comando Sul chegarà à ilha para “avaliar a segurança do país”, como informou o Departamento de Estado dos EUA, que descartou a hipótese de intervenção militar. Não é a primeira vez que tropas dos Estados Unidos entram no país. Em 1915, os marines invadiram o país insular para obrigar os haitianos a pagarem a dívida externa. Por 20 anos, mandaram no país. Em 1994, os Estados Unidos enviaram 20 mil soldados para recolocar Aristide no poder, que era presidente e havia sofrido um golpe em 2001. Desta vez, os Estados Unidos retornam ao país atendendo ao chamado do primeiro-ministro haitiano, Yvon Neptune, que dia 17 pediu à comunidade internacional o envio de soldados para interromper

a onda de violência no país. Washington justificou a decisão sob o argumento de que há uma “crise humanitária” no Haiti e enfatizou que qualquer substituição do presidente Bertrand Aristide deve se dar dentro da lei. “Não podemos permitir que criminosos nas colinas, ou inclusive a oposição, venham e o peçam para (Aristide) deixar o poder de uma maneira não-democrática ou inconstitucional”, disse o secretário de Estado, Colin Powell. Antes da decisão, o tradicional jornal americano The Washington Post criticou o presidente Georg W. Bush por “deixar a outros a tarefa de socorrer o Haiti, um país que possui estreitos laços com Estados Unidos”.

Roberto Schmidt/AFP

Estados Unidos vão enviar tropas ao país

RECUO MOMENTÂNEO Bush tomou a decisão quando outros governos e organismos internacionais já estudavam saídas para a crise. França, Canadá, Comunidade das Nações do Caribe e Organização dos Estados Americanos (OEA) pressionam Aristide para que realize reformas e dialogue com a oposição. No mesmo dia do anúncio das tropas estadunidenses,

Garoto haitiano se protege de pedras jogadas em protesto em Porto Príncipe

o presidente Aristide declarou a um jornal mexicano que aceitava antecipar um processo eleitoral. Comandado por várias forças sem coordenação unificada, o le-

vante acusa Aristide de corrupção, violação de direitos humanos e de praticar uma política neoliberal. No início da ofensiva, grupos armados que apoiavam Aristide rebeleram-

se e passaram a apoiar os oposicionistas, que não reconhecem o resultado eleitoral de 2000 e acusam partidários do atual presidente de terem fraudado o processo. Mais de 50 pessoas já foram mortas nos confrontos. Marchas e protestos tomam a capital, Porto Príncipe. As cidades de Gonaives e de Cap-Haiten, no interior da ilha, estão sob comando dos rebeldes. O líder opositor Gerard Pierre Charles, da organização Povo em Luta, força majoritária dos partidos que integram a Plataforma Democrática, espera que a ameaça de um levante violento faça a comunidade internacional exigir uma solução urgente para o Haiti, forçando a renúncia de Aristide e de seu gabinete. “A cada semana, milhares de haitianos saem às ruas, em quase todas as cidades, para protestar com os estudantes”, diz Charles. Dia 16, grupos armados controlavam o Norte do Haiti e anunciavam a queda da cidade de Hinche, no Nordeste. Choques violentos entre rebeldes e forças do governo também ocorreram na cidade vizinha, Saint Marc, a 95 quilômetros da capital. (Alai)


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INTERNACIONAL HOLANDA

Governo de centrodireita decide repatriar 26 mil asilados, provocando reação em massa da população em êxodo

France Press

Determinada expulsão de exilados Alberto D´Argenzio de Bruxelas (Bélgica)

F

Mehdy Kavousi costurou a boca em protesto contra a decisão do governo holandês de deportar os imigrantes iranianos

primeira diz respeito a uma determinação do final do ano 2001, que não foi capaz de dar uma definição legal ao status desses estrangeiros no país. Assim, agora deve deixar o país tanto quem vive na Holanda há um ano quanto quem está lá há uma década. A segunda distorção é que a nova lei concede muito pouco tempo, apenas 48 horas, para a validação do pedido de asilo. “A determinação de 2001, originalmente criada para eliminar os pedidos sem fundamento, está sendo utilizada atualmente para tratar 60% da demada. Além disso, o governo pretende usar esse

“Os expulsos devem aceitar que se trata de uma decisão tomada de maneira democrática”, disse o primeiro-ministro, após reprovar a atitude de Kavousi.

mecanismo para examinar 80% dos casos”, denuncia Rachel. Segundo ela, mesmo os 30% de crianças solicitantes devem se submeter a essa determinação, o que contraria a Convenção sobre os direitos das minorias.

SEM SOLIDARIEDADE São milhares de pessoas que deverão voltar aos locais de onde fugiram, tanto que há alguns dias começaram os protestos entre a comunidade de refugiados. Protestos como o do engenheiro iraniano Mehdy Kavousi, que literalmente costurou sua boca e suas pálpebras.

IRAQUE Marwan Naamani/AFP

alta pouco para os Países Baixos perderem a imagem de sociedade aberta e tolerante. A Holanda decidiu repatriar 26 mil asilados, um êxodo programado para se completar em três anos. O governo de centro-direita levou adiante determinação proposta pelo primeiro-ministro democrata cristão Jan Peter Balkenende, pela ministra de Imigração e Integração, Rita Verdonk, do partido liberal; e pelos sociais liberais do partido D66. O porta-voz da ministra, Maud Bredero, afirmou: “Nos centros para refugiados, centenas de pessoas esperam um alojamento e não temos espaço para isso”. “Enviar essas pessoas a lugares onde poderão estar em perigo não só compromete a segurança delas, como é uma atitude ilegal”, contra-ataca Rachel Denber, diretora da Human Rights para a Europa. Com exceção sobretudo dos iraquianos e afeganistãos, a maior parte daqueles que pediram asilo chegaram à Holanda nos três últimos anos. Essas pessoas sofrem as conseqüências de duas distorções geradas nos governos anteriores. A

Isto é, os meios justificam os fins. E o pior é que nenhum organismo internacional se atreve a censurar o governo da Holanda. A Comissão Européia “expressa amargura pelo aspecto humano” mas ao mesmo tempo não pode fazer “juízo de mérito sobre a decisão, pois o assunto é de competência nacional”. Até o alto comissário da Organização das Nações Unidas (ONU) para refugiados, Deaderlich Kramer, não se compromete: “Estamos um pouco preocupados. A nova lei é muito rápida e a velha, lenta demais. Mas a decisão envolve pessoas a quem foi recusado o pedido, não se trata de asilados. Esse é um problema da Europa inteira. Falta uma norma comum, o que leva as pessoas a ficarem no limbo”. Aos interessados em se asilar na terra das tulipas, não resta outra alternativa senão apelar ao Tribunal de Strasburgo, empunhando a convenção européia de direitos humanos. O problema é que eles não têm muito tempo para buscar essa solução antes de serem expulsos do país. (Envolverde/IPS)

ESTADOS UNIDOS

Especialistas criticam o desarmamento nuclear de Bush Thalif Deen de Nova York (EUA) O chamado dos Estados Unidos à comunidade internacional para evitar a proliferação de armas de destruição em massa é essencialmente hipócrita, segundo acadêmicos, analistas militares e pacifistas estadunidenses. “O presidente George W. Bush parece decidido a escrever um novo capítulo na grotesca saga da política nuclear norte-americana: ‘Faça o que digo, não o que faço’”, disse Norman Solomon, diretorexecutivo do Institute for Public Accuracy, voltado à análise política, com sede em Washington. Solomon respondeu dessa forma ao anúncio de Bush, dia 12, na Universidade Nacional de Defesa, de que seu governo pretende limitar o número de países autorizados a produzir combustível nuclear, num suposto esforço para restringir a proliferação de armas de destruição em massa. “Os Estados Unidos não permitirão que terroristas e governos perigosos o ameacem com as armas mais perigosas do mundo”, afirmou o presidente. Bush citou como exemplos o Irã e a Coréia do NorRompe-bunkers: te e se referiu Essas armas são longamente ao cabeças nucleares que podem entrar caso do cientisprofundamente ta paquistanês na terra, inclusive Abdul Qadeer através da rocha, e Khan, acusado de destruir abrigos ou centros de comando transferir ilesubterrâneos galmente tecnologia nuclear a esses dois países e à Líbia. Atualmente há cinco potências nucleares declaradas, que são os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas: Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, China e Rússia.

Iraquianos resistem à ocupação estadunidense e exigem eleições democráticas

ONU não avaliza eleições locais antes de julho Peyman Pejman de Dubai (Emirados Árabes)

Bush lançou a guerra contra o Iraque em março de 2003, com o argumento de que o regime de Sadam Hussein tinha armas nucleares, químicas e biológicas, mas as forças invasoras nada encontraram. “O governo Bush é hipócrita ao criticar outros países pela proliferação nuclear enquanto continua desenvolvendo suas próprias armas nucleares”, disse Natalie Goldring, diretora-executiva de programas sobre segurança mundial e desarmamento da Universidade de Maryland. “Prevenir a proliferação de armas nucleares é um assunto vital de segurança nacional”, disse. Para Francis Boyle, professor de direito internacional da Faculdade de Leis da Universidade de Illinois, a “hipocrisia de Bush”quanto à

não-proliferação nuclear não poderia ser mais evidente. Os Estados Unidos não podem explicar razoavelmente “porque Israel tem direito a possuir cerca de 200 ogivas nucleares, mas nenhum outro país do Oriente Médio pode tentar adquirir tecnologia nuclear”, acrescentou. Além disso, os EUA “violaram suas próprias obrigações em virtude do Tratado de Não-Proliferação, não só por não promover o desarmamento nuclear, mas por continuar desenvolvendo armas atômicas ainda mais avançadas, incluídas as “rompe-bunkers”, afirmou o analista. O desenvolvimento de tais ogivas “reflete o interesse do Pentágono em utilizar armas nucleares para combate”, conclui Solomon. (IPS/ Envolverde)

Tudo indica que a equipe de especialistas eleitorais das Nações Unidas no Iraque dirá ao secretário-geral da organização, Kofi Annan, que realizar eleições antes de 30 de julho não é possível. Essa é a data em que, supostamente, as forças que ocupam esse país árabe, lideradas pelos Estados Unidos, entregarão a soberania a um governo iraquiano. “A demanda de eleições é legítima. Mas o povo iraquiano deve saber que eleições representam um processo complexo e, a menos que haja uma preparação adequada, não terão os benefícios esperados”, afirmou o diplomata argelino Lakhdar Brahimi, representante pessoal de Annan no Iraque. “Realizar eleições em uma data inadequada e sem preparação originaria diferenças e pioraria a situação”, acrescentou. Brahimi e sua equipe visitaram em primeira instância o Iraque por iniciativa do líder espiritual do Islã xiita, aiatolá Seyyede Ali al-Sistani, que exigiu que o próximo governo seja escolhido por eleições gerais em todo o território nacional. A força ocupante liderada pelos Estados Unidos e o governo interino iraquiano sugeriram a realização

de eleições limitadas através de um complexo sistema de convocação de assembléias locais em cada uma das 18 províncias. Sistani insistiu durante meses que apenas atenderá ao parecer de uma equipe da ONU, devido à independência do fórum.

OPOSIÇÃO DO CONSELHO As perguntas ainda sem resposta são: se as eleições se realizarem antes de 30 de junho, os Estados Unidos entregarão a soberania? E a quem? O enviado da ONU afirmou que ninguém sugeriu atrasar a entrega do poder, e que, como as negociações a respeito ainda não terminaram, não caberia à ONU interferir. “A melhor forma de sair do atual bloqueio é ampliar o conselho de governo para torná-lo mais representativo do país, de modo a continuar seu trabalho até que um corpo permanente representativo ocupe seu lugar”, disse Adnan Pachachi, presidente de turno do Conselho Provisório de Governo iraquiano, formado por 24 membros, um dos quais foi assassinado no ano passado. Como ocorre com a população do país, 60% de seus integrantes são xiitas. Como muitos no Iraque, Sistani não reconheceu o órgão porque seus integrantes foram designados pelas forças de ocupação estadunidenses. (IPS/Envolverde)


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INTERNACIONAL ÁFRICA

A paz possível entre Etiópia e Eritréia Etíopes discordam do novo traçado da fronteira, conforme acordo do ano 2000; ONU manda novo enviado à região Marilene Felinto da Redação

(1998-2000), que deixou 120 mil mortos e milhares de refugiados. As negociações foram suspensas quando, em 2002, a Etiópia interrompeu a demarcação física da nova fronteira de 1.000 quilômetros entre os dois países. O governo etíope rejeitou o traçado da fronteira estabelecido pela Comissão Internacional Independente, encarregada de arbitrá-lo por ocasião do Acordo de Argel (2000), que resultou no cessar-fogo entre as duas nações. Os confrontos na linha de fronteira continuam. O roubo de gado é

E

Argel, aceito pela Eritréia mas contestado pela Etiópia, que reivindica soberania sobre os territórios das cidades de Badme e Trob. A Eritréia recusa-se a conversar com o vizinho enquanto a fronteira não estiver demarcada. Uma força de paz da ONU está no local, com 4.200 homens, desde o ano 2000. Especialistas da Comissão Internacional Independente alegam que a fronteira foi definida de acordo com antigos tratados coloniais e também com as práticas internacionais de demarcação, incluindo

evidências sobre qual dos lados administrava as várias cidades e vilas historicamente. O conflito opõe dois países que cooperaram durante anos. Antes do impasse, a Etiópia, que não dispõe de saída para o mar, comprava mais de 60% das exportações da Eritréia em troca do uso do porto eritreu de Assab, no mar Vermelho, para escoar a maior parte de seu comércio externo. O regime de colaboração começou a ruir em 1997, quando a Eritréia adotou sua própria moeda, o nakfa. Até então usava o birr etíope. Pedro Ugarte/AFP

tiópia e Eritréia, dois países em conflito pela demarcação de fronteiras desde 1998, receberam na semana passada a visita do novo enviado especial da Missão das Nações Unidas para a Etiópia e a Eritréia (UNMEE, na sigla em inglês), o canadense Axworthy Lloyd, ex-ministro do Exterior do Canadá. O processo de paz entre Etiópia e Eritréia já se arrasta por três anos, depois de uma guerra sangrenta

freqüente no local. Os serviços de correio e telefonia continuam interrompidos entre os dois países, bem como os vôos entre as duas capitais, Adis Abeba e Asmara. Apesar da tensão, o enviado especial da Organização das Nações Unidas (ONU) disse à imprensa estrangeira que “não há percepção de que vai haver uma mudança ou operação maior no sentido de descartarmos o que foi acertado no Acordo de Argel”. A missão do novo enviado da ONU é fazer valer o Acordo de

HISTÓRIA

Países já foram um só A monarquia etíope data do ano 1000 antes de Cristo (a. C.), fundada por Menelik I, que seria filho do rei Salomão e da rainha de Sabá. Caso raro entre as nações africanas, a Etiópia sempre se manteve livre do domínio colonial europeu, com exceção do período em que foi invadida pela Itália fascista de Mussolini (1936-1941). Também resistiu ao Império Árabe, no século 7, mantendo ainda hoje a tradição cristã introduzida ali pelos egípcios. A história antiga da Etiópia (então chamada Abissínia) tem estreita ligação com a do Egito, pois os dois países mantiveram intenso intercâmbio comercial. Na época da invasão italiana, estava no poder o imperador Haile Selassie, que foi expulso e só reocuparia o cargo com ajuda dos ingleses em 1941. Sob seu governo a Etiópia anexou a Eritréia a seu território. A população etíope é eminentemente rural e se dedica às atividades agrícolas. A agricultura de subsistência, que sofre com as secas freqüentes e é tecnologicamente uma das mais atrasadas do mundo, ainda assim é o carro-chefe da economia do país. A terra na Etiópia é propriedade do governo, que dá concessões de uso por períodos determinados. Etiópia e Eritréia estão entre os países mais pobres do mundo.

ERITRÉIA Localização: Chifre da África (ponta leste do continente) Nacionalidade: eritréia/eritreu Cidades principais: Asmara (capital); Assab, Keren, Massawa Línguas: tigrínia e árabe (oficiais), afar, tigre, inglês, bilein, entre outros Divisão política: seis regiões Regime político: república presidencialista População: 3,6 milhões de habitantes Moeda: nakfa Religiões: cristã (50%); islâmica (44%) Hora Local: + 6 ETIÓPIA

Tropas da Etiópia deixam a cidade de Shilalo, em cumprimento a acordo de paz assinado em 2000. Conflito matou 120 mil

ERITRÉIA

Local do conflito

A Eritréia tornou-se independente da Etiópia em maio de 1993, um mês depois do plebiscito que encerrou o movimento separatista iniciado no fim dos anos 50. Antiga parte do reino Aksum, que também incluía a atual Etiópia, nos séculos 4 e 5, a região passou a integrar depois o reino da Etiópia, mas conservou a independência até cair sob poder dos otomanos, no século 16. Nos três séculos seguintes, o controle do território foi disputado entre oto-

Localização: Chifre da África (ponta leste do continente) Nacionalidade: etíope Cidades principais: Adis Abeba (capital), Dire Dawa, Harrar, Nazret Línguas: amárico (oficial), tigrínia, oromo, afar, inglês, entre outras Divisão política: 9 Estados e 2 áreas de administração autônoma (Adis Abeba e Dire Dawa) Regime político: república parlamentarista População: 70 milhões de habitantes Moeda: birr Religiões: cristã (60%) e islâmica (30%) Hora Local: + 6

manos, etíopes, Egito e Itália. Em 1952, a Eritréia, por um acordo entre etíopes e ingleses, tornou-se unidade autônoma confederada da Etiópia, para ser anexado depois pelo imperador etíope Selassie.

Por Martti Ahtisaari de Helsinque (Finlândia) A passagem de uma crise para outra no Chifre da África está ficando insuportável para seu povo, para a comunidade internacional e também para os doadores. O desenvolvimento nessa região africana deve ser conduzido em uma base mais sustentável porque a freqüência de fortes secas parece ter aumentado. Como resultado da falta de chuvas em 2002, tanto a Etiópia quanto a Eritréia ainda enfrentam uma séria escassez de alimentos e as conseqüências de uma crescente miséria entre os segmentos mais vulneráveis da sociedade. Entre seis e dez milhões de pessoas requerem atualmente alimentos e outras formas de ajuda no Chifre da África, embora uma situação ainda mais grave de emergência tenha sido evitada nesta oportunidade, graças à advertência antecipada sobre a iminente crise e a rápida ação dos doadores, dos governos locais e da comunidade humanitária. Na Etiópia, um país enorme com mais de 70 milhões de habitantes, um desastre maior foi evitado em 2003 através de um destacado esforço coletivo. Mas, a necessidade de uma significativa ajuda humanitária continua existindo. Será imprescindível continuarem, em 2004, os esforços humanitários a

Anthony Morland/AFP

Crise após crise no Chifre da África

Campo de refugiados perto da cidade de Senafe, na fronteira com a Etiópia

longo prazo e manter o atual impulso na coleta de fundos. É necessário continuar atendendo às necessidades substanciais, especialmente nas áreas mais afetadas, onde a malária e uma série de enfermidades infecciosas estão golpeando mais fortemente do que o costume. Também existem problemas políticos muito difíceis, como a questão da terra. O tamanho médio de uma propriedade rural familiar é de um hectare, superfície que não é suficiente para alimentar uma família de cinco pessoas nem nos bons anos. O governo da Etiópia, agora, está pondo em prática planos para colocar as pessoas em outros lugares, a fim de dar-lhes o dobro de

terra para trabalhar. Contudo, como mostra a experiência em outros países, este é sempre um enfoque polêmico. A terra de propriedade estatal não é privatizada por completo, sendo concedidos aos agricultores direitos de posse de longo prazo, que podem inclusive transferir para seus filhos. Desta maneira, se comprometem muito mais com a terra e desejam fazer melhorias em suas propriedades. O governo etíope está pouco disposto à privatização completa por temer que as pessoas vendam as terras, seu único bem, e fiquem totalmente à mercê da ajuda externa. Na Eritréia, com 3,6 milhões de

habitantes, há vários indicadores preocupantes. Cerca de dois terços da população vivem atualmente abaixo da linha da pobreza e pelo menos a metade se encontra em situação de extrema pobreza. A desnutrição infantil é alta, e mais de 53% das famílias são encabeçadas por mulheres. No Chifre da África, a situação exige tratamento urgente e adequado para as causas subjacentes desses problemas. No caso da Eritréia, três áreas requerem atenção a fim de haver progressos na intenção de atingir resultados a mais longo prazo: 1) satisfação das importantes necessidades de fundos para objetivos humanitários que formem a base da recuperação e do desenvolvimento; 2) melhoria do diálogo entre o governo e os doadores e, 3) finalização do processo de demarcação de limites na disputada fronteira com a Etiópia. O governo da Eritréia informou que um sentimento de insegurança impede uma desmobilização mais rápida das tropas. Devido ao considerável impacto que a escassez geral de mão-de-obra e a ausência dos camponeses de suas terras está gerando na situação humanitária, será decisivo realizar a demarcação dos limites de forma urgente. Os dois países combateram uma amarga e desastrosa guerra entre 1998 e 2000 por causa da linha fronteiriça em Badme, que ainda

está em disputa. Existe acordo para que, chegada a hora, o Banco Mundial assuma a liderança nos esforços por um desenvolvimento a longo prazo nessa região e que a comunidade internacional de doadores concentre seus esforços no Chifre da África. Os esforços serão muito mais eficazes quanto a custos e aos resultados se cada vez mais se fomentar independência na produção de alimentos e na segurança alimentar. Uma vez que tenhamos identificado os programas necessários (o processo é bem longo), a comunidade internacional deve estudar como financiá-los com uma perspectiva de longo prazo, em um período mínimo de cinco anos, e se comprometer a cumprir esses objetivos para conseguir um verdadeiro progresso na área. Se falharmos em agir agora, a situação se tornará mais difícil. (IPS/Envolverde) Martti Ahtisaari é ex-presidente da Finlândia (1994 a 2000), e enviado especial do secretário-geral das Nações Unidas para a crise no Chifre da África.


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De 26 de fevereiro a 3 de março de 2004

AMBIENTE ÁGUA

Campanha debate mercantilização Lançada na quarta-feira de cinzas, Campanha da Fraternidade, da CNBB, mobiliza milhões de pessoas sobre o problema do “ouro azul” Divulgação

da Redação

“O

Brasil precisa ser coerente com seus princípios constitucionais e nenhuma forma de privatização, ainda que seja dos serviços ou sob a forma de transferência de outorgas, pode retirar a soberania do Estado e da sociedade sobre nossas águas”. O recado, dirigido aos articuladores dos projetos de privatização das águas brasileiras, é dado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que acaba de lançar a Campanha da Fraternidade (CF) 2004. Neste ano, ao abordar a questão da água, a campanha da entidade da Igreja Católica – e que atinge comunidades cristãs de todo o país – opta por um tema de forte conotação política, que já gerou preocupação de grupos privatizadores. Quando escolheu discutir a questão da água, a CNBB botou a mão no vespeiro. Logo depois da eleição do tema, em meados de 2002, começaram as pressões para a elaboração de um texto-base (principal subsídio de reflexão) ameno. Sem citar nomes, uma fonte da CNBB revela que quantias vultuosas foram oferecidas, ou para a mudança de assunto, ou para a preparação de uma CF “ecologicamente correta mas inócua ideologicamente”. A preocupação era com a discussão, em milhares de comunidades cristãs, de um assunto que gostariam de ver no ostracismo. A pressão não deu resultado. O texto-base da CF-2004, elaborado por uma equipe de especialistas, entre eles o professor Aldo Rebouças, da Universidade de São Paulo, faz uma dura crítica ao discurso sobre o valor econômico da água, que funciona como mecanismo de

SITUAÇÃO MUNDIAL 1,2 bilhão de pessoas sem água de qualidade para beber 2,4 bilhões não têm serviços sanitários adequados 2 milhões de crianças mortas devido a doenças provocadas por água contaminada Países pobres – 1 a cada 5 crianças morre antes dos 5 anos por doenças relacionadas à água Metade dos leitos hospitalares está ocupada por doenças relacionadas à água Segundo a ONU, faltará água para 40% da humanidade em 2050 SITUAÇÃO BRASILEIRA 20% da população brasileira não têm acesso à água potável 40% da água das torneiras não têm confiabilidade 60% (105 milhões) vivem em estado de insegurança em relação à água que consomem 90% das população rural não têm acesso à água encanada 50% das casas (urbanas) não têm coleta de esgotos 74,4% das residências (rurais) não recebem tratamento de esgoto 80% do esgoto coletado são lançados diretamente nos rios, sem tratamento 54,4% das crianças (0 a 6 anos) vivem em residências sem saneamento Fonte da situação mundial: Whead (Water, Health, Energy, Agricultural and Diversity) – Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio +10) – Johanesburgo, 2002 Fonte da situação Brasileira: Organização Pan-Americana de Saúde (Opas)/IBGE/ Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS)

Igreja católica promove mobilização nacional contra a privatização da água

gerenciamento de recursos hídricos. Também fragiliza o discurso contemporâneo de que existirão guerras pela água. “Quando se fala em guerra pela água, não se pode deixar de dizer que há aí uma preparação dos espíritos para cimentar interesses de empresas e países poderosos sobre as águas de outros países”, diz o documento da CNBB.

INTERFERÊNCIA EXTERNA Segundo o cientista social Roberto Malvezzi, a questão da água em nível mundial revela o agra-

vamento da exclusão dos povos pobres. Membro da coordenação executiva da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Malvezzi questiona a atitude de Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio (OMC) e Fundo Monetário Internacional (FMI) a respeito do assunto, porque têm favorecido a privatização e mercantilização das águas. De olho no “ouro azul” do século 21, as multinacionais, os governos aliados a elas e o Banco Mundial já tramam a repartição das fontes e dos mercados.

Japão reconhece: cupulate é brasileiro Mario Osava do Rio de Janeiro (RJ)

Rotulagem também vale para carnes de animais alimentados com ração que contenha soja transgênica; no detalhe, o símbolo da rotulagem

Lei de Biossegurança na Câmara Federal, dia 5, a bancada ruralista pressionou os parlamantares do governo para que a rotulagem fosse suspensa no texto da nova lei. Contudo, o decreto foi preservado.

NADA A DECLARAR As indústrias que utilizam a soja como matéria-prima resistem em esclarecer qual procedimento pretendem adotar e se, efetivamente, vão mudar as embalagens. A Sadia, por meio de sua assessoria de imprensa, garante que não utiliza transgênicos e que faz testes de rastreabilidade para identificar a origem do produto. A Unilever, por meio de uma nota oficial, admite que “as empresas da Unilever podem utilizar ingredientes derivados de sementes modificadas que forem aprovadas pelas autoridades reguladores”. No entanto, “no Brasil, a política da Unilever é a de não-utilização de Organismos Geneticamente Modificados”, diz o documento. A Bunge, que industrializa os óleos de soja Soya, a margarina Allday e a maionese Maionegg´s – produtos que estão na lista vermelha do Guia do Consumidor do Greenpeace – foi procurada pela reportagem du-

rante duas semanas e não respondeu ao pedido de entrevista. A empresa mantém 46 silos no Rio Grande do Sul, Estado em que cerca de 90% da produção de soja na safra 2003 eram transgênicos. O procurador da República Aurélio Rios alerta que as indústrias que forem flagradas desrespeitando a lei terão seus produtos retirados das prateleiras. Porém, diante do descaso com que o governo federal tem tratado a lei que assegura ao consumidor o direito de informação, há quem não acredite que, dessa vez, a lei será cumprida. “Duvido muito. Se as indústrias não rotularem rápido, faremos uma onda de análises nos supermercados para verificar os alimentos”, anuncia Jean Marc Von deir Weid, da Assessoria em Projetos e Técnicas de Agricultura Alternativa (AS-PTA). O Greenpeace também alerta que vai brigar pela implementação da lei. “Vamos fazer o controle da fiscalização nos supermercados e na cadeia alimentar”, diz Mariana Paoli. A lista de produtos transgênicos já disponíveis no mercado virou cartilha da organização não-governamental Greenpeace, que pode ser encontrada através do endereço: http://www.greenpeace.org.br/ .

O Brasil conseguiu neutralizar uma das tentativas da empresa japonesa Asahi Foods, de se apoderar do cupuaçu, fruta amazônica da mesma família do cacau. Mas a luta continua. Agora, o escritório de propriedade intelectual do Japão negou à companhia a inscrição como proprietária do processo de produção de cupulate, espécie de chocolate feito com a semente do cupuaçu. A negativa baseia-se no princípio da anterioridade, já que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) havia pedido antes, em 1999, a patente internacional do processo, conforme afirmou Mônica Cibele Amâncio, advogada da instituição. A decisão das autoridades japonesas, atendendo pedido da Embrapa, foi oficialmente comunicada no início do mês. Mas resta outro obstáculo para que o Brasil possa dispor livremente de seu próprio recurso natural. O nome cupuaçu foi registrado pela mesma Asahi Foods como marca comercial sua nos órgãos especializados da Europa, Estados Unidos e Japão.

APROPRIAÇÃO INDÉBITA A companhia, com sede central na cidade de Kyoto, chegou até a criar uma subsidiária com o nome de Cupuaçu Internacional. Pequenos produtores brasileiros de doces e balas feitas com a fruta foram advertidos por importadores alemães: não podem mencionar o nome “cupuaçu” em seus rótulos, porque se trata de “marca da empresa japonesa”.

Agência Estado

Agência Brasil

Produto sem rótulo sai da prateleira A partir de hoje (26) todos os alimentos que contêm percentual de transgênicos acima de 1% devem trazer no rótulo o símbolo-padrão criado pelo Ministério da Justiça. O símbolo – a letra T dentro de um triângulo – terá de ser usado nas embalagens de produtos destinados a consumo humano e animal. O mesmo vale para as carnes de animais alimentados com ração que contenha soja transgênica. Ou seja, da lavoura à prateleira, o alimento tem que ser identificado. Embora a rotulagem padrão só entre em vigor agora em fevereiro, os fabricantes de alimentos estavam obrigados a informar o consumidor sobre a presença de organismos geneticamente modificados (OMGs) nos seus produtos desde abril de 2003, quando foi sancionado o decreto sobre o tema. Após a regulamentação do símbolo, em 26 de dezembro do ano passado, foi dado o prazo de 120 dias para que as indústrias modificassem suas embalagens. Mas, por enquanto, tudo continua igual nas gôndolas dos supermercados. A Associação Brasileira das Indústrias Alimentícias (Abia) afirma que os custos para a mudança das embalagens ainda não foram estimados e que caberá a cada indústria calcular se o acréscimo será repassado ao consumidor. A polêmica sobre a rotulagem, assim como tudo que se refere a transgênicos, se estendeu no ano passado. Diante da falta de fiscalização do Ministério da Agricultura e da demora da Justiça para regulamentar o decreto, as indústrias, por sua vez, também não cumpriram a lei. Durante a votação do projeto de

maiores do mundo e que fica no subsolo de Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai – que promoveu a organização. Segundo Petrella, o Bird também apoiou a criação da Global Water Partnership (GWP), ou Parceria Mundial pela Água, que tem como tarefa favorecer a aproximação entre as autoridades públicas e os investidores privados. Conforme Petrella, a nova “conquista da água” está sendo conduzida, desde o fim dos anos 70, a partir de três princípios, como a mercantilização, a privatização e a integração oligopolista mundial entre os diversos setores: água potável, água engarrafada, tratamento de água e bebidas gaseificadas. “Isto tudo num contexto de lutas pela hegemonia do mercado e de conflitos entre os Estados”, afirma.

CUPUAÇU

TRANSGÊNICO

Cláudia Jardim da Redação

O fundador e secretário do Comitê para o Contrato Mundial da Água, Ricardo Petrella, alerta para o interesse cada vez maior de grupos econômicos sobre a “mercadoria água”, e comenta resultados do Fórum Mundial pela Água, organizado por iniciativa do Conselho Mundial da Água. Conforme Petrella, essa organização foi criada em 1994 com o auxílio do Banco Mundial, de alguns governos (França, Holanda, Canadá etc.) e de empresas (tal como a Suez-Lyonnaise des Eaux). Em 1996 “se atribuiu o objetivo de definir uma visão global sobre a água de longo prazo, que serviria de base a análises e propostas visando uma política mundial de água”, diz. Foi o Banco Mundial – o mesmo que está financiando o projeto de conservação do Aqüífero Guarani, um dos

Produtores brasileiros ganham causa na Justiça japonesa

Um grupo de organizações nãogovernamentais envolvidas com as comunidades tradicionais da Amazônia tenta cancelar essa anormalidade segundo as regras internacionais, já que o nome genérico de um produto natural não pode ser monopolizado como marca de uma empresa. O Ministério das Relações Exteriores participa do pedido de cancelamento, feito em abril do ano passado, para o qual se espera uma resposta do Japão em abril. A informação é de Eugênio Pantoja, advogado da ONG Amazonlink, que apóia o desenvolvimento sustentável da Amazônia, divulgando sua realidade e seus produtos.

EXPORTAÇÕES SUSPENSAS Enquanto isso, os produtores amazônicos suspenderam suas exportações de derivados do cupuaçu ou os vendem sem nome, afetando programas de desenvolvimento de comunidades que tentam explorar os recursos naturais amazônicos de forma sustentável, lamentou Pantoja. (IPS/Envolverde)


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DEBATE REFORMA UNIVERSITÁRIA

Universidade para todos Maria do Rosário ensino superior brasileiro está no centro do debate político com a proposta de que a reforma universitária aconteça este ano. A crise no setor demanda um intenso processo de discussão que deve envolver a comunidade universitária, bem como o conjunto dos governos e sociedade. A implementação de um novo modelo de universidade compatível com as exigências da sociedade contemporânea é uma tarefa democrática essencial para o Estado brasileiro. Um novo elemento agregado ao tema é a proposta do ministro da Educação, Tarso Genro, de criar 250 mil vagas através do Programa Universidade para Todos. As universidades não-estatais que aderirem ao programa fornecerão bolsas de estudos equivalentes a 25% de sua capacidade de oferta de vagas e, em troca, receberão benefícios fiscais. O principal objetivo da medida é a democratização do acesso ao ensino superior, uma vez que beneficiará setores sociais tradicionalmente excluídos: afro-brasileiros, indígenas, portadores de deficiências e altas habilidades, egressos ou internos do sistema carcerário e estudantes de baixa renda. O projeto tem aspectos bastante positivos desde que, ao ser adotado, não comprometa o objetivo principal de um governo democrático e que tem compromisso popular: fortalecer a universidade pública. Podemos destacar quanto ao

alunos e acompanhamento de qualidade dos cursos, estaremos constituindo mais um instrumento para melhoria da universidade brasileira. Não há dúvida de que a responsabilidade social das instituições privadas de ensino será

fiscalizada, superando o fato da maior parte dessas verdadeiras empresas esconderem-se atrás da filantropia, não pagando devidamente impostos. Neste processo há de se tomar bastante cuidado ao gerir a mudança. O estatuto da nova personalidade

jurídica das instituições de ensino deve enquadar-se na concepção de educação como direito e não como prestação de serviços, conforme estabelece a Constituição Brasileira. É necessário também analisar se o volume de recursos que deixarão de ser arrecadados pelo governo é significativo. O Ministério da Educação (MEC) estima que o valor não seja expressivo em relação ao impacto positivo da abertura de vagas, no entanto, considerando a necessidade de recursos para as universidades públicas que agonizam em uma crise de custeio sem precedentes, qualquer desoneração do setor privado deve ser muito bem calculada. O governo precisa dar respostas objetivas para a situação vivida pelas instituições federais de ensino superior, que tem um déficit previsto de R$ 202 milhões neste ano de 2004. Seria oportuno que a Previdência Social assumisse a responsabilidade do pagamento dos inativos das universidades públicas, liberando-as de despender R$ 2,8 bilhões anuais para esse fim. Esta medida resolveria boa parte dos problemas da rede pública habilitando-a para um novo ciclo de expansão. Se o MEC, sobre o comando do ministro Tarso Genro, conseguir combinar essas duas iniciativas estruturais, terá promovido a universidade brasileira a um patamar, quanto ao acesso, nunca antes alcançado. Maria do Rosário é deputada federal pelo PT do Rio Grande Sul

Kipper

O

mérito da proposta seu caráter inclusivo, bem como o fato de ampliar significativamente as vagas gratuitas disponíveis em um curto espaço de tempo. Além disso, se o projeto determinar a responsabilidade das instituições federais de ensino superior na seleção dos

Queremos mais Gustavo Lemos Petta projeto Universidade para Todos, apresentado pelo ministro da Educação, Tarso Genro, que prevê a destinação de 25% das vagas de instituições particulares do Ensino superior para estudantes de baixa renda, por meio do incentivo de isenção fiscal, é visto com ressalvas pela União Nacional dos Estudantes. A UNE acredita que a ocupação das vagas ociosas das universidades privadas é uma boa iniciativa. No entanto, o uso do mecanismo de isenção fiscal, como forma de viabilizar esse aproveitamento, gera um conflito de interesses e de prioridades. Recursos como estes poderiam e deveriam ser investidos na abertura de novas vagas nas universidades públicas, ao invés de serem destinados a instituições privadas. Afinal, a valorização da universidade pública é condição essencial para a tão desejada melhoria da educação e, como conseqüência disto, para o desenvolvimento nacional. Reconhecemos que a situação de dificuldades pela qual passa o ensino superior exige medidas das mais variadas. Mas reafirmamos que o principal debate a nortear a reforma universitária deve ser sobre os desafios da ampliação de vagas nas universidades públicas. A democratização do acesso a universidade é uma medida essencial. Por isso, a ampliação de vagas no ensino superior é fundamental. No entanto, es-

O

sa necessidade não deve ser utilizada como artifício para a concessão de subsídios, com dinheiro público, para as empresas privadas de educação. Uma vez que tal medida não soluciona o ponto principal do problema, que é a criação de novas vagas na rede pública, imprescindível para o crescimento do ensino superior e do Brasil. É preciso criar programas, destinar verbas, contratar professores, fazer um estudo criterioso das maiores demandas, principalmente no que diz respeito aos cursos noturnos, que ocupariam uma capacidade ociosa enorme e permitiriam o acesso de estudantes que precisam trabalhar durante o dia. A ampliação de vagas deve obedecer a uma visão estratégica dos setores em que o país mais precisa de profissionais qualificados, seja para ampliar e melhorar a qualidade do ensino fundamental, seja para fazer frente a novos desafios tecnológicos da indústria ou a formação de cientistas. Para isso, é essencial que o governo assuma o papel estratégico da universidade no desenvolvimento de um novo projeto nacional, e reconheça que é papel do Estado financiar a universidade pública, com os aportes de recursos necessários para que ela ofereça mais vagas, mais qualidade, mais serviços e mais ciência. Ao longo da história das instituições universitárias, a busca por um ensino superior comprometido com o avanço social

mobilizou e sensibilizou milhares de estudantes. Sem medo de errar, podemos dizer que nosso momento histórico é especial. Pode-se afirmar, também, que o grau de transformação a ser alcançado no ensino superior depende, em grande medida, dos avanços obtidos na mudança do país – nos rumos da sua política econômica, ainda herdada dos anos de neoliberalismo; da afirmação do papel do Estado; da afirmação e do fortalecimento da nova política externa já em curso, fundada em bases soberanas e comprometida com os interesses nacionais. Tal como a disputa que acontece em relação aos rumos do país, na universidade vários projetos e

interesses se confrontam, e desse combate deve surgir a proposta que vai nortear as mudanças no ensino superior brasileiro. A depender das idéias que prevalecerem, a reforma pode ser limitada, composta de medidas paliativas e secundárias. Pode até mesmo ser regressiva, se forem vitoriosos aqueles que apontam como saída o descomprometimento do Estado, o público não-estatal, o atendimento aos interesses do mercado em detrimento da sociedade. A UNE irá trabalhar, debater e lutar juntamente com aqueles que defendem a universidade pública, gratuita, democrática e comprometida com os interesses sociais e nacionais. A universidade pú-

blica brasileira é sobrevivente da década de 90. Mesmo com todo o trabalho sistemático feito pelos governos neoliberais para restringir sua autonomia, privatizar sua pesquisa, sufocar seus recursos e impedir avanços democráticos, esta universidade que temos hoje ainda é responsável pelo melhor ensino de graduação do país, pela quase totalidade das pesquisas desenvolvidas, por projetos de extensão de grande relevância, por serviços de ponta como os hospitais universitários. Reforçar e ampliar esse sistema é fundamental para o país. E este deve ser o objetivo primordial do governo e o principal desafio no debate sobre a reforma universitária. A nova universidade deve surgir comprometida com um novo país. Um país onde o trabalho, a ciência e a tecnologia sejam valorizados. Um país em que a economia não seja dirigida por manuais de política monetária capazes de promover um processo de “financeirização” que corrói a renda do trabalho e engorda aqueles que vivem da agiotagem oficial, como ainda acontece. Um país em que as políticas públicas caminhem no sentido da universalização, condição central para a construção da cidadania, e não gaste tempo, energia e dinheiro tentando separar os “menos” pobres dos “mais” pobres. Um país que dialogue com o mundo de forma soberana e defenda os interesses do seu povo. A universidade pública brasileira pode e deve contribuir para construir esse país. Gustavo Petta é estudante de Comunicação Social da PUCCampinas e presidente da União Nacional dos Estudantes


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AGENDA

agenda@brasildefato.com.br

LIVROS

Louzada, e sob a direção de Vicente Maiolino. As Rosas Não Falam, Quem me Vê Sorrir, Tive Sim, entre outros sucessos do compositor, são interpretados ao vivo no palco. Ingressos a R$ 10. Local: R. 1º de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 3808-2020

PEDRO POMAR, UMA VIDA EM VERMELHO Neste livro, lançado pela Editora Xamã, o escritor Wladimir Pomar recupera e retrata a vida do militante Pedro Ventura Felippe de Araújo Pomar. O revolucionário, nascido em 1913, em Óbidos, no Pará, foi assassinado pelos órgãos de repressão do Exército em 16 de dezembro de 1976, numa casa da rua Pio XI, no bairro da Lapa, em São Paulo. Pomar foi um dos principais responsáveis, durante a ditadura Vargas, pelo trabalho clandestino de reorganização do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que teve como ponto alto a realização da Conferência da Mantiqueira (1943), e exerceu atividades de direção em muitas frentes, como a imprensa partidária e os contatos com a intelectualidade. Pedro Pomar, uma vida em vermelho procura repor a verdade dos fatos e traçar um amplo painel tanto da evolução histórica do Brasil no século 20 quanto dos dilemas, contradições, erros e acertos dos dois partidos em que Pomar militou por décadas – o PCB e o PCdoB. Mais informações: vendas@xamaeditora.com.br A FALÁCIA GENÉTICA Do jornalista Cláudio Tognolli, o livro analisa o comportamento da mídia em face do genoma. Tognolli, que é mestre em psicanálise e doutor em Filosofia das Ciências pela Universidade de São Paulo (USP) apresenta sua tese de doutorado com um texto repleto de citações, relações entre ciência e filosofia, sociologia e jornalismo. Lançado pela editora Escrituras, o livro tem 336 páginas e custa R$ 14,50. Mais informações: (11) 5082-4190

Divulgação

SÃO PAULO

SÃO PAULO

DOCUMENTÁRIO - “O ESPETÁCULO DEMOCRÁTICO” 7 de março, às 17h30 Produção independente de estudantes, funcionários e professores da Universidade de São Paulo, o documentário busca refletir sobre os últimos 15 anos da história política do Brasil, a partir do registro da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O “Brasil democrático” é discutido através de imagens de cam-

CEARÁ 16ª ASSEMBLÉIA GERAL DOS CRISTÃOS LEIGOS E LEIGAS DO CEARÁ De 27 a 29 de fevereiro

O capitalismo e a condição feminina Dos dois textos que constituem esta obra, o primeiro, escrito em 1918, é uma crítica à situação da mulher na sociedade burguesa de então, espremida em um código moral em que a propriedade era – e ainda é – prioridade, a ela tudo se sujeitando. Inclusive, e principalmente, a mulher, coadjuvante do homem no casamento, pouco mais que uma simples serviçal. Entretanto, o próprio desenvolvimento do capitalismo incumbiu-se de criar as condições para que a mulher contestasse essa situação, forjando as bases para a negação da mulher submissa, buscando sua transformação em sujeito. Mas, em sua luta, a autora bem sabia que a construção dessa mulhersujeito somente seria possível com a transformação das bases econômicas da sociedade. O segundo texto, escrito em 1921, trata da necessidade de uma reorientação no comportamento do homem e da mulher, partícipes da nova estrutura social que a revolução bolchevi-

EXPOSIÇÃO - 20 ANOS DE GREVE NA COSIPA Dia 27, às 19h A Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) comemora os 20 anos da greve de 1984 com a inauguração de exposição fotográfica e de notícias de jornal da época. A mostra recorda a ação de 28 de fevereiro de 1984, quando cosipanos dos turnos da linha de produção e do setor administrativo cruzaram os braços. Era o fim do “jejum” forçado imposto pela ditadura militar aos trabalhadores da companhia. Local: Sindicato dos Metalúrgicos de Santos, Av. Ana Costa, 55, Santos. Mais informações: (13) 3235-1904 e 3221-3575

que engendrou. Para Kolontai, o amor de ética da burguesia deveria dar lugar a um amorcompanheiro, com direitos e responsabilidades iguais, com respeito à individualidade, com apoio mútuo. CONFIRA A nova mulher e a moral sexual Alexandra Kolontai 176 páginas R$ 8 Editora Expressão Popular R. Abolição, 266, Bela Vista, São Paulo,SP Tels. (11) 3105-9500 / 3112-0941 www.expressaopopular.com.br

TRIBUNAL INTERNACIONAL POPULAR SOBRE TRANSGÊNICOS 11 de março Por iniciativa da Coordenação dos Movimentos Sociais, da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap) e da campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos, o principal objetivo da atividade é garantir a participação ativa da sociedade no debate sobre os alimentos geneticamente modificados. Também quer denunciar todos os responsáveis pela introdução e pela disseminação ilegal das plantas geneticamente modificadas no Brasil, principalmente no Rio Grande do Sul. O tribunal será antecedido por atividades de mobilização, realizadas em diversos espaços públicos e privados, de 8 a 10 de março. Mais informações: www.transgenicosnotribunal.org

Marcio Baraldi

RIO GRANDE DO SUL

panhas eleitorais, entrevistas com parte da velha e da nova burocracia estatal e de brasileiros pertencentes a diferentes movimentos sociais. Entre os entrevistados estão figuras como Fernando Henrique Cardoso, Fernando Collor de Mello, José Dirceu, João Pedro Stedile, Antônio Palocci, Heloisa Helena, Gilberto Gil e Benedita da Silva.

O questionamento que norteia o trabalho é: “Qual é o desafio da sociedade brasileira frente ao primeiro governo teoricamente popular, socialista e de esquerda?”

Durante a assembléia haverá debate sobre a Campanha da Fraternidade 2004, que tem como tema “Fraternidade e Água”, e discussão sobre biodiversidade. Estarão reunidas cerca de 70 pessoas, representantes das nove dioceses do Estado. Às 20h do sábado, haverá apresentação da Companhia Balé Baião, com o espetáculo “Bonança, Corpo e Água em Poesia”. Realização: Conselho Nacional dos Leigos e Leigas Local: R. Hildeberto Barroso, 27, Itapipoca Mais informações: (85) 236-6441

idade, é organizado pela Secretaria de Políticas Sociais da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado do Ceará (Fetraece) e tem apoio da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais e Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura (Contag). Estarão presentes parlamentares, a superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Estado do Ceará (Cogerh). Local: Av. Cruzeiro do Sul, KM 12, Caucaia Mais informações: (85) 231-5887, (85) 9973-4586

SEMINÁRIO: V ENCONTRO DA CIDADE Dia 28 de fevereiro, das 14 às 18h O evento será a primeira etapa preparatória ao V Encontro da Cidade que, nos dias 16 e 17 de abril, discutirá “Os desafios da gestão democrática na Fortaleza do século XXI”. A primeira etapa consiste na realização de 13 seminários com o tema “O Bairro e o Direito à Cidade” e envolve os 114 bairros de Fortaleza. O objetivo é sensibilizar a população para os conceitos de democracia e de participação na administração de uma cidade. Na ocasião, serão mobilizadas diversas comunidades destas regiões. Local: R. Mozart Pinheiro de Lucena, 93, e R. Angélica Gurgel, 186, Fortaleza Mais informações: (85) 224-5250 I PLENÁRIA ESTADUAL DOS TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS 2 e 3 de março, a partir das 9h O evento, que irá debater a terceira

Local: Rua Pelotas, 141, Sesc Vila Mariana, São Paulo Mais informações: oespetaculode mocratico@hotmail.com, (11) 3672-3661

DISTRITO FEDERAL 1º CONGRESSO NACIONAL DO MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS De 5 a 8 de março O objetivo do congresso é avançar na formação da base, na continuidade das lutas específicas e gerais, no processo de construção da identidade das mulheres camponesas e na luta de gênero e classe. Local: Albergue da Juventude de Brasília, Setor Recreativo Parque Norte, Quadra 2, Lote 2D, Brasília Mais informações: (61) 323-6538

RIO DE JANEIRO TEATRO - OBRIGADO, CARTOLA! Até 28 de março O espetáculo conta a história do fundador da Estação Primeira de Mangueira, em texto de Sandra

OFICINAS DE TEATRO E ROTEIRO PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA O Instituto Pró-Cidadania, em parceria com a Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo e apoio cultural do Senac - Unidade Penha, oferece oficinas gratuitas de roteiro e teatro voltadas para pessoas com necessidades especiais. Os cursos pretendem formar e especializar os participantes na área artística. As aulas acontecem de março a junho, num total de 48 horas. Mais informações: www.institutop rocidadania.org.br, (11) 3277-0337 PROJETO - SÃO PAULO EM VERSOS FEMININOS Inscrições até 15 de abril Promovido pela Coordenadoria Especial da Mulher, pela SPTrans e pela Secretaria Municipal de Transportes, o projeto pretende incentivar as mulheres a produzir poesia sobre a cidade de São Paulo, por ocasião de seus 450 anos. O projeto está dividido em duas fases. Na primeira, que ocorre no mês de março, serão expostas no Jornal do Ônibus (Interligado) quatro poesias, sendo que uma por semana de escritoras consagradas da literatura nacional. A etapa seguinte vai divulgar poesias selecionadas. Serão escolhidos 22 textos inéditos que poderão ser apreciados semanalmente pelos usuários dos ônibus municipais entre os meses de abril e agosto. Mais informações: www.prefeitur a.sp.gov.br, (11) 3113-9761 CICLO AUDIOVISUAL - 40 ANOS DO GOLPE MILITAR DE 1964 Acompanhando os 14 dias da programação, estruturada cronologicamente, o público verá uma parcela significativa do acervo cinematográfico e televisivo relacionado com o período do regime ditatorial. Serão transmitidos filmes como A Grande Feira (1961) ou Cinco Vezes Favela (1962), que antecederam o golpe e anunciaram as preocupações da intelectualidade de esquerda. Através do ciclo, pode-se conhecer o conjunto de trabalhos realizados pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, cujo objetivo era atacar o comunismo e o governo do presidente João Goulart, ou acompanhar a falta de perspectivas em decorrência do levante militar, retratada nos filmes A Derrota (1966) e Terra em Transe (1967). Na continuidade da mostra, perceberá em Hitler Terceiro Mundo (1968), Orgia (1970) ou nos curtas-metragens rodados em super-8 o estilhaçamento da oposição com a proclamação do AI-5 e o experimentalismo como forma de rebeldia. Local: R. Vergueiro, 1000, Paraíso São Paulo Mais informações: (11) 3277-3611


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CULTURA Fotos: Claudia Pucci

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TEATRO

União e Olho Vivo leva arte à periferia Mais antigo grupo de teatro popular do Brasil comemora 38 anos encenando a história da revolta da Chibata Bernardete Toneto da Redação

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Cenas da peça “João Cãndido do Brasil – A Revolta da Chibata”, a ser apresentado no Municipal de São Paulo, dia 1º de março

Chibata a partir da ótica de João Cândido, marinheiro negro que morreu aos 84 anos. Cândido, cuja história é ocultada nos livros, foi expulso da Marinha, preso político depois anistiado e chegou a ser “colega” de hospício, durante dois anos, do artista Bispo do Rosário. Terminou a vida vendendo peixe no cais do Rio. “Durante nossa pesquisa, nos deparamos com incríveis dificuldades, impostas por órgãos governamentais, tanto civis quanto militares. Algumas vezes, formos agressivamente rechaçados. Em outras, nos aconselhavam, simpaticamente, a buscar temas ‘tão mais interessantes na história’”, conta Vieira.

HISTÓRIA ESQUECIDA “A história de João Cândido tem tudo a ver com o Brasil de hoje, onde existem os explorados e os exploradores. Essa história fala de racismo, de preconceito e de exclusão social”, diz César Vieira, nome artístico do advogado Idibal Piveta, um dos fundadores do União e Olho Vivo. Através de músicas, a peça conta a história do levante da

Debate sim, panfleto não

Divulgação

nome é comprido: Teatro Popular União e Olho Vivo. A carreira também: são 38 anos, a serem completados dia 27, levando arte de qualidade às periferias da grande cidade. Formado por trabalhadores liberais, estudantes, operários e desempregados, o TUOV carrega o orgulho de ter encenado, com rigor técnico e extrema beleza, episódios esquecidos da História brasileira. Em pouco menos de quatro décadas, conseguiu a façanha de protagonizar cerca de 3.800 sessões, para um público estimado em 4 milhões de pessoas. O mais recente espetáculo do União e Olho Vivo é João Cândido do Brasil – A Revolta da Chibata, que na festa de 38 anos do grupo será apresentado em um local incomum, pelo menos para os padrões do teatro popular: o sisudo Teatro Municipal de São Paulo, cujas portas serão abertas gratuitamente ao público, dia 1º, no contexto das

comemorações pelos 450 anos de São Paulo. João Cândido do Brasil – A Revolta da Chibata conta a epopéia dos negros marujos liderados por João Cândido, ocorrida em 1910 no Rio de Janeiro (RJ) e que até hoje é vista como tabu. Resultado de dois anos de pesquisa, a obra foi estruturada em um grande mutirão de dramaturgia, que envolveu pesquisas em mais de 50 livros. Jornais e revistas da época foram estudados, para fazer um levantamento minucioso dos costumes, músicas e, principalmente, da situação social, econômica e política do período.

Ética comanda a cena “Sou como a soca da cana, me cortem que eu nasço sempre”. A frase é do espetáculo O Evangelho Segundo Zebedeu, de 1970, a primeira peça que levou a estética do Teatro Popular União e Olho Vivo à periferia das grandes cidades. Em 38 anos de atividades, o grupo já acolheu centenas de integrantes, encenou 9 peças e vários shows musicais-teatrais e, principalmente, desenvolveu a tática “Robin Hood” em que se cobra de quem pode pagar para garantir lazer aos sem-cultura. O União e Olho Vivo surgiu do Teatro do Onze, criado na efervescente década de 60 por seis futuros advogados, que desejavam criar um teatro popular na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. O primeiro espetáculo foi com o texto Corinthians, Meu Amor, de 1967, que teve uma montagem com Antonio Fagundes no elenco. Depois, seguiram-se os espetáculos O Evangelho Segundo Zebedeu (que conta a luta entre mouros e cristãos), Rei Momo, Bumba meu Queixada (sobre a greve dos operários do cimento em Perus), Morte aos Brancos (sobre a lenda do líder indígena Sepé Tiaraju). Barbosinha Futebó Crubi – Uma história de Adonirans, Us Juãos e us Magalis e, no ano 2000, Brasil Quinhentão!?, uma visão crítica dos 500 anos do país. “O União e Olho Vivo é o grupo teatral que há mais tempo persegue o ideal de que a ética deve cami-

nhar sempre junto com a estética, em busca de uma arte popular, independente e participante”, diz o dramaturgo César Vieira. As encenações têm sempre como estrutura a arte popular brasileira, como o Carnaval, o bumba-meu-boi, o circo, o futebol ou o cordel. O grupo conta com uma organização extremamente democrática. É composto por trabalhadores de várias áreas, de empregadas domésticas ao ex-secretário de Justiça de São Paulo, Belisário dos Santos. Todos são responsáveis pela manutenção da sede, um galpão cedido em sistema de comodato que chegou a ser invadido e depredado por grupos de direita. Os textos e as montagens são desenvolvidos em sistema de mutirão. Desde o início, segue-se uma orientação: pelo menos 70% das apresentações têm de ser feitas na periferia.

PANDEIRO NA PRISÃO Das quase 3,8 mil apresentações, algumas marcaram a história do grupo. Uma delas foi a peça Rei Momo, apresentada em 1978 aos presos políticos do Presídio Barro Branco, em São Paulo. Em um sábado, cada ator assumiu a condição de único visitante dos perseguidos políticos. Dentro da prisão, vestiram suas camisetas coloridas e, utilizando os instrumentos musicais que existiam no local, improvisaram o espetáculo, aplaudido até pelos carcereiros. (BT)

Brasil de Fato – Depois de 38 anos, ainda é válida a opção do Teatro União e Olho Vivo, de unir elementos da cultura popular com temas políticos? César Vieira – Acho que é absolutamente válido, não só por aquilo a que o grupo se propõe, que é ressaltar a cultura popular através do debate político, através de um teatro popular participante e não panfletário, mas também em função da reação do público. A João Cândido completa 90 sessões, sendo que 60 foram em bairros populares e 30 espetáculos convencionais, para o público que pode pagar. Nos bairros operários, a peça é feita para um público que praticamente nunca viu teatro. E a Divulgação

Cena da peça “O Evangelho Segundo Zebedeu”, de 1978

O Teatro Popular União e Olho Vivo pode entrar no livro dos recordes brasileiros: em 38 anos, apresentou mais de 3.800 sessões de teatro, para um público estimado em 4 milhões de pessoas. Por trás desse fenômeno, está César Vieira, codinome de Idibal Piveta, advogado que na época do regime militar defendia presos políticos e que hoje defende causas sociais e operárias, “nunca de patrão”. Em conversa com Brasil de Fato, ele diz: “Ainda dou um voto de confiança ao governo e espero que o Ministério da Cultura acerte o passo”.

reação é de total compreensão, discussão. Conseguimos levantar problemas e suscitar a participação, o desejo de fazer teatro.

já tinham visto teatro. Uma delas tinha ido ao Teatro do Sesi. As outras quatro tinham visto o Olho Vivo há 20 anos. É doloroso.

BF – O que é esse teatro panfletário que você condena? Vieira – É aquele teatro maniqueísta, que coloca o patrão como um branco sacana e os operários sempre perseguidos. Nós recusamos o maniqueísmo e o panfleto. Não queremos impor idéias, mas sim suscitar discussões.

BF – Qual sua avaliação da política cultural do país hoje? Vieira – Ainda sou otimista, espero que Lula saia dessa crise, que o ministro Gilberto Gil (da Cultura) supere a crise de sua pasta. Acho o programa do PT para a cultura, coordenado pelo Antônio Cândido, muito bom. Se o Ministério da Cultura seguir o que diz o documento, haverá um salto de qualidade.

BF – Em quase quatro décadas, quais mudanças o grupo viveu? Vieira – Começamos com uma visão de teatro convencional, já que eu era um autor de teatro montado por alguns atores famosos. Depois, devido à peça Corinthians, meu amor, começaram a convidar para os bairros, e o espetáculo ficou itinerante. Adquiriu essa característica que marca o Olho Vivo até hoje, de não contar com luzes fixas, em um lugar fechado. Passamos a ocupar os espaços livres. Tivemos de nos adequar a esse público completamente diferente. Para ter idéia, em 2003 fizemos dez espetáculos na periferia de Guarulhos (SP), com debate. Em um dos bairros, das 200 pessoas que assistiram à peça, apenas cinco

Quem é? César Vieira é o nome artístico do advogado de presos políticos Idibal Piveta. Antes de ser preso, em 1973, César Vieira já tinha escrito várias peças teatrais, encenadas no circuito comercial. Em 1967, fundou o Teatro do Onze, do Centro Acadêmico 11 de Agosto da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, que deu origem ao Teatro Popular União e Olho Vivo. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT) e integra a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)-São Paulo.

BF – E sua avaliação do trabalho do ministério? Vieira – Para mim, o caminho não está em destinar R$ 20 milhões para construção de centros culturais. O caminho é ouvir as necessidades culturais do povo, região por região, conseguir mais verbas para o ministério e estabelecer parcerias. Antes da eleição, um grupo de umas 50 pessoas, o União e Olho Vivo entre elas, encaminhou ao Lula o projeto Núcleo Autônomo de Cultura e Esporte (Nace), um calhamaço de mais de 40 páginas, que basicamente faz uma inversão de valores. Em vez do governo construir locais suntuosos, investiria em estruturas culturais já existentes, como escolas de samba, associações comunitárias, clubes de cultura. Através de projetospiloto, seria oferecida uma vasta programação de teatro, capoeira, musica, rap, tudo bem feito. BF – É mais fácil fazer teatro social hoje ou na época da ditadura? Vieira – Antes, tinha muito mais gente fazendo esse trabalho dirigido. Durante uns dez anos, ninguém fazia espetáculos para bairros populares nesse país. Hoje, o teatro popular virou um certo modismo, mas é bom, porque as pessoas pelo menos estão fazendo algo. Se estão certos ou errados, só a prática vai mostrar. É melhor acender uma vela do que ficar reclamando da escuridão.


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