Nos embalos de 2014

Page 1


2

de 7 a 13 de março de 2013

editorial

2013 começa a mostrar sua força como ano de lutas UM CONJUNTO de iniciativas unitárias pautando interesses populares mostram que 2013 vai se configurando como um ano de lutas, em que os trabalhadores apontam soluções concretas e viáveis que permitem ao Brasil enfrentar a crise mantendo e aprofundando seu crescimento. A primeira delas é a marcha das centrais sindicais e dos movimentos sociais à Brasília. Exigindo “menos juros, mais produção, investimento, salário e emprego”, milhares de trabalhadores das centrais sindicais e dos principais movimentos sociais do país mostram a força de uma ação unitária. A linha definida é bem clara. Para que o Brasil continue crescendo é fundamental que a conquista de aumentos reais nas campanhas salariais e a valorização do salário mínimo se mantenham como os elementos decisivos para o fortalecimento do mercado interno, que vem assegurando o enfrentamento da crise internacional. Eis por que conquistas como a jornada de 40 horas semanais sem redução de salário; Fim do fator previdenciário; Reforma agrária; Igualdade de oportunidades entre homens e mulheres; Política de valorização dos aposentados; 10% do PIB para a educação; 10% do Orçamento da União para a saúde; Cor-

opinião

reção da tabela do Imposto de Renda; Ratificação da Convenção 158 da OIT – que impede a demissão imotivada; Regulamentação da Convenção 151 – que estabelece a negociação coletiva no serviço público e a Ampliação do investimento público são os onze itens que compõem a pauta da Marcha. A segunda iniciativa igualmente fundamental é a Jornada de Lutas da Juventude Brasileira, de 25 de março a 1º de abril. Com uma unidade surpreendente, as principais forças que atuam na juventude brasileira se mobilizam em torno de propostas que apontam soluções para a educação e os principais problemas nacionais. Também nestes dias, mais de 90 entidades de vários segmentos da sociedade civil assinaram a nota pública do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. O documento apoia o direito à comunicação a todos e rechaça a postura do governo em não colocar em debate a democratização da comunicação no país. Unitariamente, os signatários iniciam a elaboração de um Projeto de Lei de Iniciativa Popular para um novo marco regulatório das comunicações, que se converterá numa intensa campanha ao longo deste ano.

Com as iniciativas unitárias teremos um ano bastante promissor, com lutas e mobilizações onde as forças populares podem avançar muito

Recordemos que o 8 de março vai se consolidando em todo o país como uma data de mobilizações unitárias. Este ano o tema central é a luta contra a violência contra a mulher. Outra questão decisiva, que também confere unidade às forças populares é barrar a 11ª Rodada de Leilão do Petróleo. Também é importante destacar que o Grito dos Excluídos, que vem se construindo como uma referência

crônica

Larisse de Oliveira Rodrigues

Gama

Uma diversidade de mulheres em luta A LUTA ANTIPATRIARCAL é o que unifica o feminismo. Mas sabemos que o patriarcado, isto é, a relação de desigualdade social, política e econômica entre os gêneros, se expressa na realidade sob diversas formas. Cada gênero, classe, raça, sexualidade e geração vivencia os ditames patriarcais com certas particularidades. No feminismo, também se expressa uma diversidade de posições, análises, pautas, métodos, táticas e formas organizativas que se desenvolvem de acordo com a conjuntura, espaço, referência política e identidades dos sujeitos que se organizam. Neste mês tão representativo da luta feminista, devemos também visibilizar um grupo de mulheres por vezes deslocado do centro dos debates, pautas e políticas públicas: as mulheres lésbicas. Mulheres estas que vivenciam em seu cotidiano formas diferenciadas de opressão, marcadas pela violência em razão da orientação afetivo-sexual e/ou da performance de gênero desviante do padrão imposto de feminilidade. As mulheres lésbicas vivenciam uma forma particular de opressão patriarcal, pois questionam em suas vivências cotidianas o modelo de sexualidade que tem centralidade no homem e na heterossexualidade compulsória. A lesbofobia, como forma de opressão, discriminação e violência contra as mulheres que vivenciam a lesbianidade, vem sempre carregada da afirmação da necessidade de um homem na vida da mulher e da negação de qualquer forma de vivência afetivo-sexual entre mulheres. A auto-organização das lésbicas no Brasil é datada do final da década de 1970, marcada por conflitos e rupturas tanto com o movimento homossexual como com os movimentos de mulheres. Nos dois movimentos, as lésbicas pautavam a visibilidade de suas lutas afirmando a necessidade de contraposição direta à lesbofobia e à heterossexualidade enquanto norma. Muitas eram as dificuldades

Diante do avanço do conservadorismo temos o desafio de fortalecer a relação e unidade na construção das lutas nos diversos campos do feminismo

de garantir pautas que envolviam particularmente estas mulheres no feminismo e no próprio movimento LGBT, apesar de terem em comum a luta contra o patriarcado, a homofobia e o questionamento à família monogâmica-heterossexual. O movimento lésbico-feminista traz para o centro de suas lutas a contraposição à heterossexualidade obrigatória, além de alimentar a discussão sobre a sexualidade e o direito das mulheres ao seu próprio corpo. Outra contribuição foi o questionamento ao modelo binário de gênero feminino e masculino, afirmando que existem outras formas de se construir a relação entre os sexos. Portanto, o movimento traz cotidianamente a defesa do feminismo, diferenciando-se pela centralidade da pauta da liberdade sexual. Organiza-se pelo reconhecimento da sexualidade com uma dimensão para além da vida privada, afirmando seu caráter público e político. Por isso, a visibilidade lésbica tornou-se a

de lutas em todo o país, definiu como lema este ano “Juventude que ousa lutar, constrói o Poder Popular” Como se vê, avançam as iniciativas de mobilização e o elemento novo é que apresentam reivindicações de uma pauta comum. Quem não percebe isso e permanece com um discurso sectário vai se isolando do processo de lutas. Estamos assistindo à retomada das lutas unitárias em que as organizações da classe trabalhadora, cada vez de forma mais autônoma, ingressam no debate sobre o desenvolvimento enquanto projeto de nação. Apresentam uma pauta viável, possível de ser conquistada e o que é principal, a única que possibilita um enfrentamento da crise econômica internacional favorecendo as condições de vida do povo brasileiro. O momento atual cria as condições para debatermos a necessidade de um projeto nacional de desenvolvimento. O conteúdo desse projeto passa pelas reformas estruturais na sociedade; pela industrialização soberana, ou seja, uma industrialização fundada em tecnologia nacional e ao mesmo tempo de ponta, o que significa pesados investimentos em educação, ciência e tec-

principal estratégia política do movimento. A afirmação da lesbianidade tem se colocado como uma forma de contraposição às diversas formas de negação da sexualidade dessas mulheres, que é marcada pela invisibilidade (inclusive pelo lugar que a sexualidade feminina foi historicamente colocada). Em suas bandeiras específicas, as lésbicas feministas têm contribuído na luta mais geral das mulheres e do movimento LGBT quando pautam o direito ao próprio corpo, afetividade, sexualidade e prazer que envolve a luta por direitos sexuais amplos e contra a lés/ homo/bi/transfobia. Algumas pautas se destacam em suas lutas ao longo da história, como o pioneirismo na denúncia do estupro como crime (também a do estupro corretivo), a denúncia da propaganda heterossexual nos meios de comunicação, a pauta da saúde das mulheres (posteriormente, com foco na mulher lésbica) e a criação de estratégias de autodefesa. O movimento lésbico-feminista tem avançado na articulação com os demais setores do feminismo e outros movimentos sociais, mas ainda é uma relação frágil e pontual e em alguns momentos marcada por tensões que limitam a construção de agendas em comum. Mas diante do avanço do conservadorismo temos o desafio de fortalecer a relação e unidade na construção das lutas nos diversos campos do feminismo. Portanto, apresenta-se a necessidade de trazer para o centro do feminismo a luta pela liberdade sexual, compreendendo a ‘normatização’ do corpo e da sexualidade como um dos elementos centrais do patriarcado, que se expressa na dominação, opressão e violência. Precisamos fortalecer as lutas, os sujeitos e a unidade neste campo e envolver todos os setores do feminismo para a construção do projeto feminista e popular para o Brasil. Larisse de Oliveira Rodrigues é militante da organização Consulta Popular.

nologia; e, finalmente, o elemento da criatividade cultural. Os setores organizados da classe trabalhadora vão percebendo que são necessárias mudanças mais profundas na política macroeconômica acompanhadas de reformas estruturais na sociedade e aumento considerável da taxa de investimento do Estado no setor produtivo para gerar milhões de empregos. Além disso, o que realmente poderia garantir renda e emprego num momento de crise profunda seria um conjunto de reformas nacionais, democráticas e populares que dependem mais de um amplo movimento de massas do que de um governo de composição que concilia interesses de classes. O impasse no crescimento econômico imposto pela crise capitalista favorece essa proposta. O projeto nacional de desenvolvimento é um componente fundamental do que temos chamado de projeto popular para o Brasil. Com as iniciativas unitárias que estão sendo construídas teremos um ano bastante promissor, com lutas e mobilizações onde as forças populares podem avançar muito e superar o difícil período de descenso que marcou as últimas décadas.

Elaine Tavares

Transpondo o São Francisco APESAR DE TODAS AS VOZES que gritam contra mais um crime ambiental, o governo federal segue as obras de transposição do rio São Francisco, esse imenso manancial de vida e de beleza que percorre o norte de Minas e se vai até Pernambuco. O argumento para a obra é de que levará água para os pobres, mas, na verdade, o objetivo é oferecer água para o agronegócio, grandes fazendeiros e indústrias. Com a “mexida” nas águas, como dizem os sertanejos, o velho Chico corre risco de secar. As gentes ribeirinhas fizeram sua luta. Foram derrotadas. A obra já está quase 50% terminada. Para aqueles que se debruçam no cais do rio, espichando o olho para o profundo das águas, resta o medo de que tudo vire lenda, assim como as histórias de encanto que soem acontecer nas margens feiticeiras. Eu mesma tenho a minha. Foi lá, na beira do rio, que conheci uma mulher que não era gente. Era orixá. Vivi minha adolescência na beira do São Francisco, na cidade de Pirapora (MG), bem no ponto em que o gigante aquieta suas quedas e permite o navegar. Naqueles dias – e ainda hoje – era comum, ao final da tarde, as gentes passearem pelo cais, a ver o pôr do sol, coisa mágica. Assim, todos os dias eu pegava a magrela e, pedalando, percorria o cais, desde as duchas (pequenas cachoeiras), onde ficava o Xangô (um bar), até o final, lá onde descansavam os “gaiolas”, grandes barcos que navegam o rio, ainda movidos a carvão. Bem no final era a zona do meretrício, lugar proibido para as mocinhas “de bem”. Mas eu sempre fui curiosa e distraída. O rio me encantava e eu descia, descia, descia... Quando dava por mim, já estava em meio às pequenas casas de luz vermelha.

Hoje, pensando no destino do velho Chico lembrei-me daquela moleca, poucos anos mais velha que eu. Tão negra, tão linda, tão cheia do espírito do rio. Onde andaria? Foi lá que conheci Lucinha, uma linda negra pernalta, de riso solto e gestos largos. Era como uma flor de manacá, fresca e cheirosa. Lavava roupa para fora e passava o dia inteiro nas pedras do rio. “Tem problema não, branquinha. A gente fortalece os músculos e não cria barriga. Olha só... É só encolher o estomago... Sempre. A barriga não se cria”. Não ligava de morar na zona e não dava bola para fuxico. “Me deito com quem eu quero. Ninguém me paga as contas”. Gostava de ficar na calçada, ao fim do dia, com sua bacia de mangas ou tamarindos, repartindo, generosa, com meninos e gurias curiosas. Depois, banhava no rio e secava ao sol, como as roupas que lavava. “Têm dias que eu queria deitar na água e ir até Juazeiro, boiando. Será que existe céu? Conheci minha mãe não, acho que sou filha do cão”. Hoje, pensando no destino do velho Chico lembrei-me daquela moleca, poucos anos mais velha que eu. Tão negra, tão linda, tão cheia do espírito do rio. Onde andaria? Que teria sido feito de sua vida? Ainda posso ouvir sua risada de cristal enquanto corria pela areia da praia perseguindo um pássaro qualquer. Nossa amizade fugidia, de alguns minutos ao pôr do sol, de compartilhamento de frutas e pequenos sonhos se quedou lá, na beira do grande rio. O bom e velho São Chico, forjador de belezas em mim. A Lucinha, orixá das águas, força viva da natureza, deve andar por lá, de músculos duros e barriga sarada. Com certeza acompanhou as passeatas, os protestos, na luta pelo seu mundo. E espia o rio, assustada, todos os dias, com medo de perdê-lo. Porque ela sabe... Enquanto vejo as fotos das máquinas, rasgando a terra, criando canais artificiais, desviando o rio, desfigurando o gigante, assoma a tremenda impotência de saber que o crime vai se dar. A despeito de toda a luta das gentes. O rio vai secar, e Lucinha nunca mais poderá ir boiando até Juazeiro. Elaine Tavares é jornalista.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Renato Godoy de Toledo • Subeditor: Eduardo Sales de Lima • Repórteres: Aline Scarso, Michelle Amaral, Patricia Benvenuti • Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG), Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo (Roma – Itália), Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela), Marcio Zonta (Peru) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP), Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper (Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (in memoriam), Joka Madruga (Curitiba – PR), Leonardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ) • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Jade Percassi • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: S.A. O Estado de S. Paulo • Conselho Editorial: Angélica Fernandes, Alipio Freire, Altamiro Borges, Aurelio Fernandes, Bernadete Monteiro, Beto Almeida, Camila Dinat, Cleyton W. Borges, Dora Martins, Frederico Santana Rick, Igor Fuser, José Antônio Moroni, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Marcelo Goulart, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Pinheiro, Neuri Rosseto, Paulo Roberto Fier, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Rosane Bertotti, Sávio Bones, Sergio Luiz Monteiro, Ulisses Kaniak, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


de 7 a 13 de março de 2013

3

Frei Betto

instantâneo

Um conclave inusitado

iconoclasistas.com.ar

O PAPA BENTO XVI, ao renunciar ao trono de Pedro a 28 de fevereiro, deu sinal verde à abertura do novo conclave, que em março reunirá o Colégio de Cardeais para eleger seu sucessor. Serão 115 cardeais com menos de 80 anos a participar da eleição em Roma, mesmo que estejam sob censura ou tenham sido excomungados. Durante o tempo que durar a reunião ficarão isolados do mundo, recolhidos em aposentos especiais, próximos à famosa Capela Sistina, onde ocorrerá o processo eleitoral. O conclave é aberto com missa solene celebrada na Basílica de São Pedro. Cada cardeal faz o voto de manter a eleição em segredo, e todos rezam para que o Espírito Santo inspire suas escolhas. Em seguida, se recolhem. O verdadeiro motivo do isolamento dos cardeais, ocorrido pela primeira vez em 1268, por ocasião da morte de Clemente IV, é apressar a decisão. Aquele conclave esteve reunido durante quase quatro anos, sem que as divergências políticas abrissem caminho às luzes do Espírito Santo. Para apressar os cardeais a votar, foi preciso destelhar a sala em que se reuniam. Suas eminências temeram mais os rigores do frio que a claustrofobia. Por fim, em 1271, o conclave elegeu Teobaldo Visconti, que, aliás, era monge, mas não sacerdote. Adotou o nome de Gregório X. Antes de os cardeais se recolherem, as salas e os apartamentos são examinados para detectar possíveis microfones; as entradas são seladas, as janelas vedadas, as cortinas, fechadas. Na Capela Sistina, seis velas são acesas no altar, onde está o cálice sagrado. Nele serão colocados os votos. Os cardeais adentram à capela sem chapéu. As cabeças descobertas e os baldaquinos simbolizam que a autoridade suprema nasce apenas dessa reunião, e não pertence a nenhum deles, individualmente. O voto é secreto. Duas sessões de votação são realizadas a cada dia, uma pela manhã e outra à tarde. Cada cardeal deposita seu voto no cálice sobre o altar. Após cada sessão, os papéis da votação são queimados. Se a votação não foi conclusiva, uma substância química é adicionada aos papéis, para que produzam fumaça preta ao queimar. A fumaça que sai pela chaminé, no telhado do Palácio do Vaticano, é o sinal para a multidão que espera na Praça de São Pedro. Enquanto for preta, significa que a Igreja permanece sem a sua principal figura.

Beto Almeida

O PT e a regulamentação NOVAMENTE, O DIRETÓRIO Nacional do PT aprova resolução em favor da luta pela regulamentação da mídia. Demonstra a centralidade da comunicação na política e consciência sobre a atuação da mídia como partido principal da oposição conservadora. Resoluções são muito importantes, mas não resolvem o problema do PT não ter maioria no Congresso Nacional, sem o que é impossível estabelecer regras democráticas para assegurar a pluralidade, a diversidade e a democracia na comunicação. Aliás, como está na Constituição desde 1988, mas, sem que o campo progressista tivesse força para regulamentar o que lá já está. A novidade da resolução do PT está na convocação da militância para colher 1,5 milhão de assinaturas para um Projeto de Iniciativa Popular. Nos anos de 1990, a Fenaj também começou a colher assinaturas, abandonando por falta de força social. Hoje, após o PT ter eleito três presidentes, a relação de forças alterou-se. Mas não o suficiente dentro do Congresso, onde o PT tem que ter juízo para não romper uma aliança com o PMDB – que preside as duas Casas – e não tem interesse em pautar a regulamentação da mídia. Sozinho, o governo pode até enviar uma proposta, mas com poucas chances de aprovação. As 90

entidades que aprovam a medida tampouco têm força social para mudar esta relação de forças, especialmente em ano pré-eleitoral. Nem há unidade em torno de um programa que inclua alas empresariais não oligopólicas, como na Argentina. E o PMDB tem força parlamentar para travar o governo. Mas há o que fazer agora sem precisar mudar a Constituição. Defender o programa Voz do Brasil, experiência bem sucedida de regulamentação informativa. Pode e deve ser melhorada, expandida sua estrutura jornalística para todo o território, deixando de ser só a Voz de Brasília. Revitalizar a Telebrás estatal. E sem mexer na Constituição pode-se formar uma grande cooperativa, com milhares de sindicatos e entidades cotistas, para montar um jornal diário, nacional e popular, com tiragem inicial de 1 milhão exemplares, no mínimo. Ao invés da dispersão em milhares de jornais modestos, um jornal de massas, distribuído a preços módicos ou gratuitamente. O campo progressista que elegeu 3 presidentes e colocou milhões para comer e vestir melhor, não pode montar um jornal popular? Argentina, Bolívia, Equador e Bolívia já têm. E Vargas, montou o Última Hora.

Enfim, com dois papas vivos, a Igreja Católica será, agora, foco das atenções por muito tempo

Silvio Mieli

Votos nas estrelas NA ITÁLIA NÃO HOUVE um movimento como os indignados, nem algo como o occupy; muito menos alguma forma de “primavera árabe” ou manifestações semelhantes às da praça Syntagma, em Atenas. Por que? Intérpretes mais radicais, como o importante coletivo de escritores italianos Wu Ming, entendem que uma grande cota de indignação foi interceptada e capturada exatamente pelo comediante Beppe Grillo e pelo marqueteiro Gianroberto Casaleggio, principais lideranças do “Movimento 5 Estrelas”, que surpreendeu a todos com uma votação de 25,5% na Câmara dos Deputados e 23,81% no Senado italiano. Portanto para os críticos mais céticos desta ascensão meteórica, o “5 Estrelas” seria uma força controlada a partir de um vértice, que recicla reivindicações dos movimentos sociais, misturando-os com a visão de um capitalismo “light”, nem à direta, nem à esquerda. Um dos pontos fortes do seu programa é a reivindicação de uma cidadania digital com acesso gratuito à internet, assim como uma aposta nos referendos online (que muitos acham que é sinônimo de democracia direta). Para uma outra vertente de observadores da cena italiana,

dentre os quais o ativista e filósofo Franco Berardi, a ditadura financeira é o maior perigo para a vida social da Itália, assim como para toda a Europa. O capitalismo financeiro está produzindo miséria, fascismo e está criando as condições para a violência. Os movimentos foram importantes para uma tomada de consciência coletiva, mas não modificaram as políticas da classe financeira da União Europeia. Ainda que o “5 estrelas” não seja capaz de criar as condições para uma transformação social igualitária e libertária, ele teria quebrado, pela primeira vez, a ordem ultraliberal privatista do núcleo duro do poder europeu (vide os baixos índices de votação do exprimeiro ministro Mario Monti). Berardi não tem dúvidas de que as eleições italianas brecaram o trem da ofensiva financeira e abriram caminho para um processo de reconstrução social, que deveria interessar diretamente aos movimentos sociais de dentro e de fora da Itália. De qualquer forma o embate que emerge com toda a força é entre os valores da democracia representativa e a democracia direta. Em tempo: Beppe Grillo definitivamente não é o Tiririca italiano.

fatos em foco

da Redação

ONU discute estratégias para eliminar violência contra as mulheres

Com o tema “Eliminação e prevenção de as formas de violência contra as mulheres e meninas”, começou dia 4, na sede das Nações Unidas em Nova York, a 57ª Comissão sobre o Status da Mulher (CSW, na sigla em inglês). A cada ano, representantes dos estados membros, entidades da ONU, ONGs credenciadas no Conselho Econômico e Social (ECOSOC) e outros atores se reúnem na sessão anual da CSW. O evento deste ano irá até o dia 15 de março.

dia 1 de março, em São João del-Rei (MG), apresenta 541 casos que apontam mineradoras, hidrelétricas e imobiliárias como principais autoras dos conflitos existentes no campo. Cada caso possui um relatório, elaborado através de pesquisa em fontes institucionais e entrevistas com os movimentos de resistência. Participaram da elaboração do mapa a Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).

Universidades lançam mapa de conflitos ambientais em MG

Caminhoneiros são as maiores vítimas de acidentes de trabalho fatais

Grupos de pesquisa de três universidades mineiras lançaram um mapa que fornece informações sobre os impactos ambientais causados por setores empresariais. Após quatro anos de investigação, o Mapa de Conflitos Ambientais de Minas, lançado

Os caminhoneiros são os trabalhadores que mais morrem nos estados de Minas Gerais e São Paulo. Foi o que mostrou uma pesquisa inédita divulgada em fevereiro sobre acidentes de trabalho fatais nos dois estados, relativa aos anos de

2006 a 2008. De acordo com o estudo, 15% dos 823 trabalhadores que morreram em decorrência da atividade laboral em Minas Gerais nesse período eram motoristas de caminhão; outros 5,7% eram serventes de obras e 3,7%, trabalhadores da agropecuária em geral. No estado São Paulo, a pesquisa revelou números semelhantes. Os caminhoneiros foram maiores vítimas entre os 2.252 mortos equivalendo a 11%, seguidos pelos serventes de obras (3,7%) e trabalhadores de linha de produção (3,1%). O estudo relaciona os dados de declarações de óbitos com as Comunicações de Acidentes do Trabalho (CAT) e foram divulgados em uma pesquisa do órgão governamental Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), em parceria com a Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) de São Paulo.

Eleito o novo pontífice, com 2/3 dos votos, o decano ou o mais velho dos cardeais pergunta ao novo papa se aceita a eleição e por qual nome deseja se tornar conhecido. Esse costume vem desde o século 10. É uma lembrança de que Jesus mudou o nome daquele que viria a ser o primeiro chefe da Igreja, de Simão para Pedro. Nesse momento, todos os baldaquinos cor púrpura são levantados, menos o que cobre o assento do escolhido. Os papéis da votação são queimados e a fumaça branca avisa ao povo na praça e ao mundo que um novo papa foi eleito. O escolhido, conduzido a um quarto ao lado, veste as roupas de papa (os alfaiates as deixam prontas em três tamanhos). Os cardeais prestam a ele sua primeira homenagem. O decano vai até o balcão e proclama: “Habemus papam!” (Temos papa). E o novo pontífice aparece no balcão para abençoar a multidão. Como o conclave que se aproxima é inusitado, pois corre paralelo a um papa renunciante que continuará morando no Vaticano, não se sabe ainda em que momento o pontífice que se afastou saudará o eleito. O cerimonial da Santa Sé quebra a cabeça para criar rubricas que respondam a inúmeras questões: é o papa renunciante que deverá ir ao encontro do eleito ou o contrário? Os dois permanecem dotados de infalibilidade em questões de fé e moral ou apenas o novo pontífice? Já se sabe, porém, que Bento XVI perde o Anel do Pescador e os sapatos vermelhos, embora permaneça com direito às vestes brancas, adotadas desde o pontificado de Pio V, entre 1566 e 1572, e inspiradas no hábito dos frades dominicanos, a cuja família religiosa ele pertenceu antes de ser ordenado bispo. Enfim, com dois papas vivos, a Igreja Católica será, agora, foco das atenções por muito tempo. Tomara que saiba aproveitar para fazer transparecer melhor a mensagem de Jesus. Frei Betto é escritor, autor de Conversa sobre fé e ciência (Agir), em parceria com Marcelo Gleiser e Waldemar Falcão, entre outros livros.




6

de 7 a 13 de março de 2013

brasil

espaço sindical

No embalo para 2014

da Redação Ricardo Stuckert/Instituto Lula

POLÍTICA Precipitação do debate eleitoral pela mídia testa as estratégias para barrar “favoritismo” de Dilma Rousseff

Os presidentes da CUT, José Carlos Nunes, da Força, Alexandro Martins Costa, e da UGT, Ari George, no Espírito Santo, participaram, dia 4 de março, do lançamento do vídeo da Campanha “Trabalho Decente Antes e Depois de 2014”, elaborado pela Central Internacional dos Trabalhadores da Construção e Madeira (ICM) – considerado o maior sindicato global do ramo no mundo -- na sede do Sindicato dos Trabalhadores da Construção do Espírito Santo, no centro de Vitória. Também foram convidados dirigentes de 27 sindicatos das cidades-sede da Copa do Mundo.

Pedro Rafael de Brasília (DF) AS ÚLTIMAS semanas foram marcadas por episódios que acenderam o clima de disputa pelo governo federal, a mais de um ano da campanha presidencial de 2014. Entre atos públicos e declarações diversas, ao menos quatro dos prováveis protagonistas do próximo pleito movimentaram peças que podem influir no cenário eleitoral que apenas começa a se desenhar. No último dia 16 de fevereiro, a exministra e ex-senadora Marina Silva lançou seu partido, batizado de Rede Sustentabilidade. Para ter alguma viabilidade eleitoral, a agremiação precisa reunir 556 mil assinaturas em nove estados até setembro. Todo esforço dos primeiros dias do novo partido é justamente a coleta das assinaturas, tarefa que tem sido executada pessoalmente por Marina, na tentativa de constituir a força política institucional que lhe permita entrar na disputa, ou pelo menos intervir nela.

“A presidenta mexeu com interesses muito poderosos, ao reduzir a taxa Selic, e evitando que os juros voltem a subir” Tucanos antecipam No PSDB, a “agenda eleitoral” já havia sido inaugurada no fim do ano passado, quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso anunciou que o senador Aécio Neves é o nome da oposição de direita que travará a disputa com Dilma Rousseff (PT). Aécio, desde então, tem esboçado uma projeção nacional ao incidir em debates sobre as medidas do governo e, inclusive, assumir defesa do período tucano na presidência (1995-2002). No projeto que tratou da redução nas contas de energia elétrica, por exemplo, o senador e também ex-governador de Minas Gerais posicionou-se claramente contra a medida. No embate mais recente, há dez dias, “elegeu” os 13 fracassos do PT no governo, para se contrapor à festa de 33 anos de fundação do partido governista, no último dia 20. “Acho que Aécio e o PSDB estão fazendo a coisa certa, do ponto de vista de-

Trabalhadores das indústrias de Alimentação definem estratégias

Lula discursa em evento realizado no Anhembi, em São Paulo, que comemorou os dez anos de governo petista

les. Assumindo com clareza um delineamento ideológico, que começa resgatando a herança do governo FHC, passa por estimular o antipetismo e se conclui com a apresentação de um programa de governo que é a volta do malanismo [em referência à política econômica do ex-ministro da Fazenda, Pedro Malan]. Não se faz política sem núcleo duro de ideias. Eles têm força eleitoral, apoio institucional, uma candidatura competitiva e estão assumindo um programa claro. Um desastre total para a maioria do povo brasileiro, mas um programa claro”, avalia Valter Pomar, membro do Diretório Nacional do PT. O advogado Ricardo Gebrim, da Consulta Popular, entende que o movimento antecipatório serve, ao mesmo tempo, para testar o potencial do pré-candidato do PSDB e consolidar a aliança de classe necessária ao enfrentamento eleitoral. “A parcela da burguesia que o PSDB está tentando representar é o setor financeiro, que tem interesse grande na área de energia, um elemento motivador para a negativa dos governos tucanos em endossar a redução da eletricidade. É o setor que teria capacidade de bancar, juntar dinheiro”, argumenta. Na opinião de Eliana Graça, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Dilma “foi mais longe” que Lula no enfrentamento ao setor financeiro, o que pode desencadear a conformação dos apoios para as eleições. “A presidenta mexeu com interesses muito poderosos, ao reduzir a taxa Selic, e evitando que os juros voltem a subir. Esse setor vai querer peitar o governo”, prevê. Lula atiça a mídia Para o vice-presidente nacional do PSB, Roberto Amaral, coube a Lula o papel de insuflar a mídia na antecipação do debate eleitoral. “Podem juntar quem quiserem, vamos dar como res-

posta a reeleição [da Dilma]”, pronunciou o ex-presidente da República no ato que celebrou os 33 anos de fundação do PT. Presente à festa, Amaral não gostou do tom. “Lula detonou o clima eleitoral. Isto, a imprensa já vinha fazendo. Agora, por razões que ninguém sabe, só ele, o debate foi antecipado. Do meu ponto de vista, achei desnecessário, pois todo mandatário é candidato natural à presidência”, provocou, em entrevista ao Brasil de Fato.

“Lula detonou o clima eleitoral. Isto, a imprensa já vinha fazendo. Agora, por razões que ninguém sabe, só ele, o debate foi antecipado” Valter Pomar, da direção nacional do PT, reage à ideia de que o partido acelerou a própria sucessão. “Quem precisa antecipar a campanha eleitoral é a oposição. Marina precisa constituir seu partido, Aécio precisa ganhar seu partido e Eduardo Campos (PSB) precisa tomar partido, entre ser situação e oposição. Mas, para disfarçar seus problemas e fragilidades, a oposição acusa o governo de ter antecipado o debate eleitoral”, cutuca. Pomar lembra que a escolha pela reeleição havia sido deliberada ainda em 2010. “Nem o PT nem a Dilma podem ser proibidos de debater política com a sociedade. Nem podem nos privar do direito de reagir aos ataques. Quando eles nos atacam, dizem que é debate político legítimo, quando nós devolvemos, eles dizem que é campanha eleitoral antecipada”, complementa.

Oposição depende de racha na base aliada Vice-presidente do PSB rejeita cortejo para atrair partido à direita. Governistas acreditam que polarização ainda será a tônica de Brasília (DF) O PSB, um dos principais aliados na base de sustentação do governo, estuda a possibilidade de construir candidatura própria já em 2014, com Eduardo Campos, governador de Pernambuco e presidente nacional da legenda. O discurso, porém, ainda é comedido. “Quando ponho a discussão presidencial na pauta, eu encurto o mandato da presidência, que ainda tem dois anos”, afirma Roberto Amaral, vice-presidente nacional do partido. “Nós entendemos que 2012 não foi um ano bom e nada indica que 2013 será melhor. O mais importante é pensar o país e, portanto, apoiar a presidente Dilma”, indica. No cenário atual, para Valter Pomar, as cartas estão marcadas. “A preços de hoje, o PSB já decidiu que terá candidatura própria à presidência da República em 2014. E eles têm este direito. Agora, para justificar de maneira mais palatável a ruptura com o governo, é preciso antes que a situação econômica piore. E, como pega mal torcer pelo quanto pior melhor, eles têm adiado o anúncio formal de uma decisão que todos sabem já tomada”, acredita. Pomar, que

CUT, Força e UGT participam da Campanha “Trabalho Decente”

é membro da direção nacional do PT, pondera que Campos pode até recuar da decisão de não sair candidato, mas vê uma tentativa de gradual de descolamento do PSB. “Campos está buscando ser uma alternativa ao PT e, para isto, está assumindo um tipo de crítica ao PT e um tipo de programa que, a continuar nesta toada, vão fazer de sua candidatura um instrumento da direita”, aponta. Roberto Amaral reconhece o cortejo que setores da direita fazem em direção a Eduardo Campos, mas rejeita essa apropriação “conservadora”. “Como a oposição não tem candidato viável, há um desejo de que um eventual candidato do nosso partido corresponda a uma candidatura do campo da direita. Eles querem fazer graça com chapéu alheio”, critica.

Roberto Amaral reconhece o cortejo que setores da direita fazem em direção a Eduardo Campos, mas rejeita essa apropriação “conservadora” O modo como a antecipação do debate eleitoral tem sido conduzido pela mídia indica a necessidade de um racha na base aliada para que a oposição tenha chances reais de vitória em 2014. Surfando sobre uma popularidade que ultrapassa os 70% de aprovação, o go-

verno Dilma Rousseff tem, a seu favor, além de bons resultados na economia – o nível de desemprego é o menor da história –, uma frente política ampla e diversa de partidos e organizações. Por essa razão, Eduardo Campos passou a ser figura central no xadrez da própria oposição. É o que avalia o jornalista Altamiro Borges, do Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé e do Blog do Miro, e membro da direção nacional do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). “A primeira aposta da oposição é no quanto pior melhor, e a segunda aposta é romper o campo governista para poder ter chance de ir ao segundo turno. Para a direita pensante, quanto mais se diluírem as candidaturas, melhor”, explica. Altamiro reconhece a legitimidade do PSB em alçar candidatura própria à presidência, mas ressalta a dificuldade interna do partido. “É visível que há constrangimento, a declaração dos irmãos Gomes, por exemplo, que não há motivo para romper esse bloco que ocupa o Palácio do Planalto é um sinal. Mas a questão é que o crescimento do PSB e a liderança do Eduardo se deram muito nas mudanças que ocorreram no país. Tem uma dívida aí com o governo federal. Lula apostou muito na revitalização do nordeste, no combate à desigualdade social crônica, o que alavancou essas forças”. Ricardo Gebrim, da Consulta Popular, enxerga uma estratégia semelhante à de outros pleitos, em que candidaturas dissidentes compuseram um cenário de relativa fragmentação da esquerda, viabilizando um segundo turno. “É um esforço para esvaziar o bloco que apoia o PT”, afirma. (PR)

A Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação e Afins (CNTA Afins) realizou, dias 4, 5 e 6 de março, a 1ª Conferência do Secretariado Nacional da Alimentação, em Recife (PE). O objetivo do evento foi integrar os setores da categoria para definir estratégias de organização e fortalecer a mobilização de aproximadamente 1,6 milhões de trabalhadores em todo o país. A iniciativa prevê a busca constante de melhores condições de trabalho e salários para a categoria, com destaque para o setor frigorífico, que apresenta o maior número de trabalhadores e ocorrências de doenças e acidentes ocupacionais.

Certificação Digital para os Sindicatos começará em abril

Em 22 de fevereiro de 2013, foi publicado no Diário Oficial da União a Portaria nº 268, de 21 de fevereiro de 2013, que estabelece, a partir do próximo dia 2 de abril, a obrigatoriedade da utilização da Certificação Digital, emitida conforme a ICPBrasil, nas solicitações realizadas eletronicamente via internet no Cadastro Nacional de Entidades Sindicais (CNES). De acordo com o secretário de Organização da CUT, Jacy Afonso, a iniciativa é positiva pois traz mais segurança e transparência para a tramitação de documentação referente a registro sindical no Ministério do Trabalho e Emprego, e já é parte das mudanças da nova portaria do MTE, que será publicada nos próximos dias.

Trabalhadores rurais e urbanos se reúnem em Brasília

Cerca de três mil trabalhadores do campo e da cidade estão reunidos em Brasília para a realização do 11º Congresso Nacional de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (11º CNTTR), que acontece de 4 a 8 de março no Centro de Convenções Ulysses Guimarães. Com o tema “Fortalecendo o Movimento Sindical para melhorar a qualidade de vida no campo”, o 11º CNTTR da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), tem como propósito refletir sobre a conjuntura de vida e trabalho da categoria, bem como se constitui em um espaço formativo, avaliativo e propositivo, apontando novos rumos para fortalecer a luta da classe trabalhadora rural.

MT fixa nova regulamentação para registro de sindicatos

O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) publicou, dia 4, no Diário Oficial da União, a portaria que institui novas regras para os pedidos de registro das entidades sindicais de primeiro grau (sindicatos). O objetivo, segundo o ministério, é dar maior agilidade à entrega dos registros e evitar irregularidades, tornando mais rígida a criação de sindicatos. Para a solicitação de registro sindical ou de alteração estatutária, a entidade deverá possuir certificado digital e acessar o sistema do Cadastro Nacional de Entidades Sindicais (Cnes), disponível no site http://portal.mte.gov.br/ cnes/ e seguir as instruções para a emissão do requerimento do registro. Após a transmissão eletrônica dos dados, o interessado deverá protocolizar na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE), ou nas gerências da unidade da federação onde se localiza a sede da entidade sindical, os documentos necessários no prazo de 30 dias.

Marcha da centrais sindicais a Brasília

A classe trabalhadora, mais uma vez unificada e mobilizada por ‘Desenvolvimento, Cidadania e Valorização do Trabalho’, pressiona o Congresso Nacional e governo em defesa dos empregos, salários e trabalho decente. Assim foi a Marcha das centrais e movimentos sociais, realizada dia 6 de março. Fundamental para o desenvolvimento do país, sendo um importante instrumento de distribuição de renda e mais oportunidades de trabalho, a redução da jornada para 40 horas semanais sem redução de salários encontra dificuldades em avançar no Congresso Nacional. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 393/2001 está parada na Câmara dos Deputados. “Esta Marcha é um momento para fazermos avançar o projeto no Congresso, abrindo uma discussão na sociedade do que significa a redução na jornada de trabalho, uma oportunidade para gerarmos mais e melhores empregos. Trabalhador com renda significa mais consumo e economia em movimento”, afirmou Vagner Freitas, presidente nacional da CUT.


brasil

de 7 a 13 de março de 2013

7

Milene Valentir

Derrota da moradia SÃO PAULO Para dar lugar a centro cultural, Vila Itororó perde seus últimos moradores; despejadas, famílias não recebem atendimento habitacional Patrícia Benvenuti da Reportagem DEPOIS DE OITO décadas de vidas e histórias, a Vila Itororó está vazia. Em 20 de fevereiro, foram despejadas as últimas famílias que viviam no conjunto arquitetônico localizado no bairro do Bixiga, região central de São Paulo. Uma das vilas urbanas mais antigas de São Paulo (leia abaixo), a Vila Itororó foi cenário, nos últimos anos, de uma batalha envolvendo prefeitura e governo do Estado de São Paulo, que queriam transformá-la em centro cultural, e moradores, que lutavam para ter seus direitos reconhecidos. Por fim, venceu o poder público, e às famílias restou apenas sair do lugar onde viveram por tantos anos. Luta antiga A disputa teve início em 2006, quando a vila foi desapropriada pelo governo do Estado, por meio de um decreto de utilidade pública. Em seguida, o Estado repassou o imóvel à Secretaria Municipal de Cultura, que ficou responsável por elaborar um projeto de restauração para o local. Alegando que seria inviável manter os moradores depois da reforma, o poder público tomou as primeiras providências para tirá-los da Vila. Por meio de um acordo de cooperação entre município e Estado, ficou acertado que a Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) seria responsável pelo atendimento provisório às famílias, e a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), por sua vez, pelo atendimento definitivo – construção e financiamento de unidades habitacionais. Cerca de 80 famílias residiam na vila quando os primeiros moradores foram retirados, no final de 2011. Com a repercussão do caso, eles conseguiram algo raro em casos semelhantes: serem levados para prédios próximos de onde viviam, no próprio bairro. Remanescentes No entanto, ainda faltava atendimento para algumas famílias, que deveriam ser levadas para o conjunto habitacional Bom Retiro C, também no centro, cuja entrega deveria acontecer em abril deste ano. Em dezembro do ano passado, os moradores foram surpreendidos com uma notificação de despejo, programado para aquele mês. Depois de mobilização das famílias e de acordos com as secretarias envolvidas, conseguiram evitar o despejo e permanecer em suas casas até a entrega dos imóveis da CDHU. Em fevereiro deste ano, porém, a Justiça determinou a retirada das famílias, mesmo sem solução habitacional.

“O Estado só os removeu de lugar, mas não foi prestar outro tipo de atendimento que dialogasse com as necessidades dessas pessoas” Despejo Eram seis e meia da manhã de 20 de fevereiro quando os oficiais de Justiça foram à Vila Itororó cumprir a reintegração de posse do imóvel. A ação contou com forte aparato da Polícia Militar, que cercou todo o quarteirão e impedia o acesso ao imóvel. Sob pressão da PM, os moradores retiravam o que podiam de suas residências e levavam seus pertences para a casa de parentes e amigos. Segundo a Secretaria Municipal de Habitação, seis das oito famílias cadastradas no órgão recebiam auxílio-moradia no momento do despejo. A informação, porém, é contestada pelos moradores. Há 31 anos na Vila Itororó, Antonia Candido conta que o pagamento da primeira parcela da “bolsa-aluguel” no valor de R$ 300 mensais estava agendado para ocorrer em 28 de fevereiro – oito dias depois do despejo. “Até lá ferem-se os direitos humanos, fere-se a Constituição, fere-se o Estatuto da Criança, do Idoso; fere-se tudo”, afirma. Em 25 de fevereiro, ao procurar a Sehab, Antonia foi informada de que o prazo para o pagamento da bolsa-aluguel havia sido prorrogado para 7 de março. Segundo a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), responsável pelas futuras mo-

Despejo das últimas famílias que viviam na Vila Itororó, na região central de São Paulo

radias, o conjunto Bom Retiro C, para onde serão encaminhadas seis famílias, será entregue em março. O órgão, no entanto, não especificou quando as famílias receberão as chaves dos apartamentos. Enquanto isso, os antigos moradores da vila passam por dificuldades. A família de Antonia mudou-se para um hotel, mas não sabe até quando poderá pagar pela estadia. Seu neto mais velho, de três anos, perdeu a vaga na creche. “E a vila lá, fechada”, lamenta. O caso mais crítico é o de Maria Helena Catarinhuque, 58 anos. Por morar há menos tempo na Vila Itororó, ela não foi inserida no cadastro da Sehab para receber a bolsa-aluguel. Com problemas de saúde e sem ter para onde ir, Maria Helena foi levada na noite do despejo por voluntários para uma casa de acolhida na região central. Desde então, ela tem pernoitado por diferentes albergues e ainda aguarda uma solução definitiva. Projeto elitista Cerca de 250 pessoas habitavam a Vila Itororó, a maior parte formada por famílias de baixa renda. Para o advogado Caio Rioei Yamaguchi Ferreira, do Escritório Modelo da PUC-SP, que prestava assessoria jurídica aos moradores, a conduta do poder público só levou em conta o deslocamento das famílias. “O Estado só os removeu de lugar, mas não foi prestar outro tipo de atendimento que dialogasse com as necessidades dessas pessoas. É um projeto elitista e insensível à questão da popula-

ção de baixa renda”, diz. “Pode ser até bom ter um centro cultural lá, mas o direito adquirido à moradia deveria valer mais”, afirma João Sette Whitaker, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP).

“Para mim, soa como uma desculpa para esvaziar mais o centro e viabilizar investimentos altamente lucrativos” Tramita na Justiça um processo de usucapião urbano (direito que um cidadão adquire sobre um imóvel em decorrência de seu uso por determinado tempo) em favor dos moradores da Vila Itororó. De acordo com o Estatuto da Cidade, o instrumento dá direito de posse aos moradores que permaneçam em uma área por pelo menos cinco anos, utilizando-a para fins de moradia, sem contestação do proprietário. A tendência, porém, é de que o processo demore anos até ser concluído. Higienização A destinação da vila para fins estritamente “culturais” sempre foi uma das principais críticas ao projeto da Prefei-

tura. Um projeto alternativo para a Vila foi proposto pelo Escritório Modelo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie com o Grupo de Pesquisa em Habitação Vida Associada. A ideia consistia em recuperar o patrimônio, mas previa a permanência dos moradores no espaço. No entanto, o projeto nunca pode ser apresentado à Secretaria Municipal de Cultura. Para a arquiteta Aline Fidalgo, que ajudou a elaborar o projeto alternativo, a preferência pela opção de centro cultural não se justifica, na medida em que a região é tradicionalmente marcada por um grande número de atrações culturais. “Para mim, soa como uma desculpa para esvaziar mais o centro e viabilizar investimentos altamente lucrativos em uma quadra hipervalorizada da cidade”, afirma Aline. E emenda: “Ninguém ainda levou a público o que de fato, será o futuro da Vila Itororó”, alerta. Segundo a Secretaria Municipal de Cultura, o projeto de restauração está pronto, mas ainda não há previsão de início das obras. Ator e diretor da companhia teatral Impulso Coletivo, Jorge Peloso argumenta que a própria vila sempre foi um pólo cultural. Em 2009, a companhia lançou o espetáculo Cidade Submersa, baseado na história das famílias. Para ele, a Vila depende dos seus moradores. “É fato que ela [Vila] necessita de manutenção e reparos, mas a história da Itororó é indissociável dos moradores que ali moraram por décadas”, diz.

Uma vila cheia de histórias Viviane Ambrosio

Extravagante, local ganhou o apelido de “Casa Surrealista” da Reportagem Era difícil passar pela Vila Itororó e não ficar impressionado com a imponência de sua construção, que ocupa quase todo o quarteirão entre as ruas Martiniano de Carvalho, Monsenhor Passaláqua, Maestro Cardim e Pedroso no bairro do Bixiga, região central de São Paulo. Idealizada pelo tecelão português Francisco de Castro durante os anos 20, a vila foi concluída em 1929, dando origem a um palacete cercado por 37 casas de aluguel. Ao todo, são cerca de 4,5 mil metros quadrados. Em sua construção, foram utilizadas partes do antigo teatro São José (onde se situa hoje o Shopping Light, na República), incendiado em 1917, como carrancas, brasões, vitrais circulares e dois grandes leões que guardam a entrada do palacete, que serviu de moradia para o tecelão português. O palacete e algumas casas são as únicas edificações que podem ser vistas da rua Martiniano de Carvalho. Isso porque a vila foi construída em um desnível de dez metros – para acessar as outras casas, é preciso descer uma longa escadaria, que chega ao pátio central. A vila também foi a primeira na cidade a ter uma piscina residencial, utilizando-se do riacho do Vale Itororó, que passava onde, atualmente, está a Avenida 23 de Maio. Toda a extravagância lhe rendeu, na época, o apelido de ”Casa Surrealista”. Em seus tempos áureos, a vila sediava bailes, churrascos e outros eventos, que reuniam moradores e seus amigos.

Vista do palacete que permanecerá fechado por ordem da justiça

Imagens de 1978 mostram Adoniran Barbosa e Elis Regina caminhando na Vila Itororó durante um passeio pelo Bixiga antigo Na década de 1950, após a morte de Castro, a vila foi leiloada para o pagamento de dívidas da tecelagem. Arrematada por credores, duas décadas mais tarde o imóvel foi doado à Fundação Leonor de Barros Carvalho. Nessa mesma época, o conjunto, tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), ganhou seus primeiros planos de restauração. Em 1976, os arquitetos

Benedito Lima de Toledo, Cláudio Tozzi e Décio Tozzi desenvolveram um projeto que previa a transformação da vila em um centro cultural. Os moradores continuaram com seus contratos de locação até o início da década de 1990, pagando o aluguel regularmente a uma imobiliária que administrava o espaço. Em 1997, porém, a imobiliária parou de enviar os boletos de cobrança e a Fundação, que detinha o título de propriedade, deixou de se comunicar com os inquilinos. A partir do abandono, de acordo com os moradores, começaram a ocorrer problemas que levariam à deterioração da vila, como ocupações irregulares e construções improvisadas. A vila também foi cenário da gravação de novelas e da passagem de personagens ilustres. Imagens de 1978 mostram Adoniran Barbosa e Elis Regina caminhando na Vila Itororó durante um passeio pelo Bixiga antigo. (PB)


8

de 7 a 13 de março de 2013

brasil

Propostas, propaganda e dúvidas Prefeitura BH

VILA VIVA Projeto piloto da prefeitura de Belo Horizonte e do governo federal, implementado no Aglomerado da Serra desde 2005, é questionado por moradores

“Quando a comunidade é convidada a participar, é somente para legitimar um projeto”

Joana Tavares de Belo Horizonte (MG) PEDRO MARCIANO de Oliveira mora há 27 anos no Aglomerado da Serra, na região do Novo São Lucas, com oito pessoas em sua casa, que já foi reformada várias vezes para acomodar a família que aumentava. Ele era um dos moradores que participou de uma reunião promovida pela própria comunidade, em janeiro, para discutir a remoção de 120 famílias, para dar lugar a um parque. “Não queria sair da minha casa, mas se fosse para me darem outra, eu aceito. Mas ir pra prédio é muito difícil”, explica, argumentando que já alargou tanto seu espaço que seria complicado para ele comprar uma nova casa com o dinheiro proposto como indenização. A angústia não é só de seu Pedro. Já na sua segunda fase na Serra, o Programa Vila Viva rende muitas dúvidas e questionamentos na comunidade, a maior da cidade e piloto de um projeto que se espalha pela capital, chegando ao Morro das Pedras, Taquaril, Vila Califórnia, Vila São José, Pedreira Prado Lopes e Aglomerado Santa Lúcia. Ali no alto da zona sul, no final de 2005, começou o Programa Vila Viva 1, de pretensões louváveis e ousadas, como “integrar as vilas à cidade” e “melhorar a qualidade de vida de 50 mil pessoas”, como é descrito na apresentação oficial. Para isso, foi elaborado um Plano Global Específico (PGE), baseado em um diagnóstico da situação de cada vila a ser atendida. “O plano é um estudo aprofundado da realidade das vilas e favelas de Belo Horizonte, com participação direta da comunidade”, apresenta a Companhia Urbanizadora de Habitação de Belo Horizonte (Urbel), órgão da prefeitura responsável pelo programa. Apesar de ser “público e acessível a qualquer cidadão”, a Companhia argumenta que o plano é muito volumoso e só pode ser consultado pessoalmente, através de visita agendada.

“O Vila Viva vem acontecendo sem a comunidade saber, e a gente foi atrás de informações, e eles não passavam” Segundo a assessoria de imprensa, “os principais problemas apontados no PGE foram a ausência de infraestrutura básica, falta de saneamento básico, estrutura viária e habitações precárias, degradação ambiental, áreas de risco geológico, dificuldade de acesso à educação e violência”. A partir desse levantamento, foram planejadas obras de “saneamento, remoção de famílias, construção de unidades habitacionais, erradicação de áreas de risco, reestruturação do sistema viário, implantação de parques e equipamentos para a prática de esportes e lazer”. Colocou-se também a promessa de emissão de escritura dos lotes aos novos ocupantes. Participação? O primeiro ponto questionado pelos moradores é a “participação direta da comunidade” na elaboração e implementação do programa. “O Vila Viva vem acontecendo sem a comunidade saber, e a gente foi atrás de informações, e eles não passavam. Só para algumas pessoas que foram reconhecidas pela prefeitura como lideranças comunitárias que tinham acesso a alguma parte das informações, mas elas também não passavam para a comunidade”, afirma Floricena Estevam Carneiro da Silva, professora e moradora da comunidade desde que nasceu. A auxiliar de serviços Márcia de Souza, que foi removida para um dos prédios, conta que também procurou a Prefeitura várias vezes, mas não encontrou as repostas que procurava: “No começo achei o programa bom, achei que eles iam nos atender se a gente precisasse, agora eu vi que não é bem assim, eles encobrem a parte negativa. A gente procura solução, e não tem resposta de nada”, reclama. Essa dificuldade de se obter informações é apontada também pelo professor e um dos coordenadores do Progra-

a associação de moradores representante da sociedade civil. Lila Monteiro Barbosa, presidente de três associações na Serra, não sabe informar com precisão se teve acesso ao Plano Global ou se faz parte do Grupo de Referência do programa. “Estou em três associações. Fundei uma em 1993, e a população não me deixou sair, fizeram uma ata com prazo indeterminado, enquanto eu viver eu sou presidente”, conta.

Obras do Programa Vila Viva no Aglomerado da Serra, região Centro-Sul de Belo Horizonte (MG)

ma Pólos de Cidadania da Faculdade de Direito da UFMG, André Luiz Freitas Dias: “Esse programa é pouco dialógico, é muito difícil conseguir o projeto. Isso não é só o Programa Pólos e os moradores que estão falando: é a Defensoria Pública, é o Ministério Público Federal. Todos esses atores – todos – reclamam da pouca transparência no fornecimento de informações”, atesta André.

“Quando a comunidade é convidada a participar, é somente para legitimar um projeto, que não contou com sua participação na elaboração. Essas reuniões são informativas, não são participativas, o projeto já chega pronto, a comunidade tem pouco a opinar”, descreve. A Urbel não informa quem são os moradores da comunidade que participam da gestão do programa, nem qual

Dona Lila já é uma mulher idosa e afirma que não tem condições de participar de reuniões com frequência, mas defende que o programa trouxe muitos benefícios para a comunidade. Ela lamenta que os próprios moradores não sabem cuidar do quem recebem, e por isso há tantos problemas nos apartamentos construídos para quem foi removido. Mas também reclama que a Prefeitura não atende aos chamados para recolher os entulhos das obras. “Tem muito apartamento aí que as pessoas moram, mas as próprias pessoas anarquizam, arrebentam tudo. Tem uns que foram feitos e depois não teve mais fiscalização. Toda reunião que tem o pessoal fala dos entulhos, mas não resolve não. E vai ficando aí, vai trazendo rato, escorpião, cobra”, descreve.

Prioridade às grandes vias Moradores desconfiam que intenção do projeto era passar uma grande avenida no meio da comunidade de Belo Horizonte (MG) Apesar do amplo leque de ações previstas, moradores questionam se a intenção de todo o programa não era apenas a construção de uma grande via, a Avenida Cardoso, que faz a ligação da avenida Mem de Sá, no Santa Efigênia, na região leste, à rua Caraça, no bairro Serra. “A avenida parte a comunidade no meio, e, em um lugar onde as pessoas andam a pé, fizeram uma avenida de trânsito rápido. Para colocar uma faixa de pedestre ali, foi uma briga de quase um ano. Então você vê que em momento algum eles fizeram essa via pensando na comunidade. Pensaram no acesso de quem ia da zona sul à zona leste, e viceversa”, avalia Floricena.

Floricena aponta que algumas famílias removidas realmente melhoraram de vida, mas questiona se o número elevado – 2.231 apenas na primeira etapa do projeto, segundo a Urbel – realmente teriam apenas essa opção para ter uma moradia mais digna. “A prefeitura justifica essa política como sendo de urbanização e melhoria das condições de vida dos moradores, mas estão expulsando as pessoas. É o desfavelamento, uma política antiga no Brasil”, aponta.

“O dinheiro captado para a cidade ‘informal’ é muito mais utilizado para atender os interesses da cidade formal, da especulação imobiliária” Como nem sempre o preço pago pelas indenizações – uma das opções oferecidas para quem é removido – permite a compra de uma casa do mesmo ta-

manho e na mesma região, muitas pessoas acabam se mudando de bairro ou mesmo de cidade. O professor da Faculdade de Direito da UFMG e um dos coordenadores do Programa Pólos de Cidadania, André Luiz Freitas Dias, também questiona os objetivos por trás do Vila Viva. “É um programa que diz ter como meta a melhoria das condições de vida das pessoas e coletividades, trabalhando com populações em situações de vulnerabilidade, principalmente em favelas e aglomerados. Para isso, tem dois grandes eixos: urbanização e regularização fundiária. No aspecto de urbanização, vemos que a lógica que fundamenta esses projetos privilegia a ampliação de sistemas viários – aquela coisa do foco no automóvel – em detrimento a outros modelos e outras propostas de se pensar a cidade”, coloca. “O dinheiro captado para a cidade ‘informal’ é muito mais utilizado para atender os interesses da cidade formal, da especulação imobiliária”, reforça, alertando que esse modelo está para se repetir no Santa Lúcia, onde uma grande avenida cortando a comunidade desde a Nossa Senhora do Carmo deve consumir de 40 a 50% dos recursos previstos no Vila Viva para a região. (JT)

Projeto com recursos e equipamentos públicos Vila Viva conta com R$ 218 mi do governo federal da Reportagem Segundo a Companhia Urbanizadora de Habitação de Belo Horizonte (Urbel), para as etapas 1 e 2 do Programa Vila Viva foram destinados R$ 218,1 milhões do governo federal. Destes, R$ 100 milhões via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), R$ 80, 7 milhões da Caixa Econômica Federal e R$ 37,4 milhões como contrapartida da Prefeitura. Outros R$ 19,7 milhões do programa Pró-Moradia, do governo federal, serão para a construção das 112 unidades habitacionais do Vila Viva 2, que vai reassentar famílias como a de seu Pedro. Entre os resultados da primeira fase do programa, a Urbel destaca: foram instalados 216 postos de iluminação pública, construídos 62 km de rede de esgoto; 2.500 casas foram ligadas à rede de esgoto; urbanizados 30 km de becos, 20 km de ruas, construída a Avenida Cardoso; criadas seis áreas de preservação ambiental; construídos dois centros BH Cidadania; três Unidades Municipais de Educação Infantil (Umei), e um estádio municipal, o Baleião, com quadra poliesportiva. Coloca ainda a diminuição da violência e do número de moradias em risco geológico.

Moradores da Serra e pesquisadores do Pólos questionam, no entanto, a aplicação dos recursos, que não foram destinados a todas as obras previstas no PGE, que contemplava inúmeros equipamentos de saúde e educação, além de ações de regularização fundiária. Um relatório de pesquisa do programa Pólos, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Pesquisa (CNPq), denominado Os efeitos do Viva na condição socioeconômica dos moradores afetados, demonstra que havia muitas obras previstas para a área da educação, como a construção de duas escolas, utilização de espaços ociosos nas escolas existentes para a realização de cursos de qualificação profissional, seminários e debates de combate à violência, transporte escolar para estudantes do curso noturno, criação de corredores de iluminação nas vias que circundam as escolas e assinatura de convênios com entidades e projetos de educação para cursos de informática e alfabetização. Algumas obras foram concluídas, mas pelo menos metade não, e não se sabe ao certo quais foram efetuadas com recursos do programa. O relatório demonstra que as propostas foram feitas de forma genérica, o que dificulta seu acompanhamento e monitoramento. “Eles prometiam com esse programa que ia ter posto de saúde, Centro de Assistência Social, centros de referência, vários equipamentos públicos que simplesmente não foram feitos. As Umeis Capivari e São João funcionam com capacida-

de reduzida e com horários que não atendem as mães da comunidade. Acabei de fazer matrícula para meu filho de 3 anos na Umei Capivari e fui informada que ele só ficaria lá das 7 às 11h”, aponta Floricena, que questiona ainda a efetividade de espaços de lazer como a Praça do Cardoso, uma praça no meio da avenida, sem sinalização, com chão concretado. “Não tenho coragem de deixar meus filhos brincarem ali”, diz. Dos poucos postos de saúde presentes na comunidade, três (Posto Cafezal, Vila Fátima e São Miguel Arcanjo) ainda estão em obras, apesar de as reformas terem começado há mais de dois anos, em locais alugados fora do Aglomerado, aumentando o tempo de deslocamento e o gasto com transporte. Em relação ao Baleião, o divulgado estádio de futebol, os moradores reclamam da distância e da burocracia para se marcar um jogo ali. A maioria dos ouvidos na pesquisa do Pólos gostaria de ter mais espaços de lazer e cultura na comunidade, e reclamam da falta de preservação e manutenção, além da falta de segurança. Wesley de Souza Santos, de 10 anos, sequer conhece o estádio. Antes, ele tinha um campo perto da sua casa, que foi transformado em terreno para um prédio. “Pra jogar na bola, é no meio da rua mesmo. Mas é difícil passar pelo beco, é muito sujo”, conta o garoto, que precisa passar pelo beco atrás do prédio para onde foi removido para se encontrar com amigos. (JT)


brasil

de 7 a 13 de março de 2013

9

Beto Monteiro/Secom-TO

Em TO, grandes empreendimentos e pouco desenvolvimento

Usina de açúcar e bioenergia da Bunge Brasil em Pedro Afonso, no Tocantins

ENTREVISTA Para pesquisador tocantinense, a presença das transnacionais do agronegócio e de uma elite agrária permanente desde sua criação confirmam a dominação territorial com vistas à Amazônia Marcio Zonta enviado a Palmas (TO)

Então, Tocantins foi criado conforme as pretensões econômicas e políticas do grupo de Siqueira Campos? Claro! Esse grupo liderado por Siqueira Campos só criou Tocantins quando tiveram certeza que seria um estado das elites agrárias desse país. São os mesmos que dominam o estado até hoje e que, durante esse tempo, ainda incorporaram a senadora Kátia Abreu (PSD-TO).

E o agronegócio? O agronegócio começa a ser fomentado também na esteira dos chamados projetos de desenvolvimento a partir da década de 1990 com a construção de barragens e a abertura de estradas. Começa a avançar pelo sudeste e norte do estado, com o plantio de soja.

Qual o prejuízo cultural e histórico? Especificamente falando da pesca capitalista, é obvio que não deu certo, porque é quebrado um ciclo de pesca natural, um aprendizado de convivência com a natureza. Neste caso, esses pescadores têm dificuldade para entender e se adaptar a essa nova lógica mecanizada. Fora que o rio vai sofrer uma alteração de atores, logo a moto aquática e grandes barcos vão tomando conta do cenário, logo a pesca simples vai ser trocada por barcos de motores e instrumentos de pesca diferentes e “profissionais”.

Quais são as transnacionais implantadas na região? Temos a Bunge e a Cargill, com a cadeia de soja; e a Monsanto, que produz semente transgênica. Tocantins hoje pode ser considerado o celeiro de semente transgênica do Brasil.

Ficou mais seleto o grupo de pessoas que frequentam o estado? Não, na verdade mudam os atores sociais, vem outras pessoas de fora que já têm o costume de outros lugares. As pessoas daqui mesmo desapareceram.

“Essas populações perderam sua função social, que era integrada à natureza respeitando períodos sazonais para pesca, caça, plantio e colheita”

“Claro! Esse grupo liderado por Siqueira Campos só criou Tocantins quando tiveram certeza que seria um estado das elites agrárias desse país” Brasil de Fato – Como surgiu o estado de Tocantins? Eliseu Ribeiro Lima – O estado de Tocantins vai acontecer em meio a uma disputa territorial entre diversos atores. Mas devemos esclarecer que é um processo histórico. Em 1821, por exemplo, foi a primeira emancipação da região que passa a se chamar província do norte, que durou apenas quatro anos de independência e passa novamente a ser anexada a Goiás. Mas desse processo nasce uma demanda histórica pela emancipação da região por diversos atores que pensavam uma organização social capaz de governar Tocantins, que vai ser totalmente distorcida por José Wilson Siqueira Campos, na década de 1960, e que vai culminar na criação de Tocantins em 1988.

nas. Todas essas transnacionais usufruíram de empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a construção dos empreendimentos de energia em Tocantins.

Qual a característica política desse grupo? Primeiro abrir o estado de Tocantins para o capital internacional e retomar algo que pensávamos que nunca mais voltaria: os projetos dos militares para região. Hoje são quinze projetos de barragens no rio Tocantins retomados por esse grupo político que dirige o estado, sendo dois realizados: as barragens nos municípios de Lageado e de Peixe, que interferiram em vários outros municípios. Só na cidade de Porto Nacional, a 160 km de Palmas, são aproximadamente 1800 famílias afetadas diretamente. Essas barragens beneficiam a quem? Justamente ao capital internacional, pois quem administra essa energia gerada são empresas de capital chinês, chileno, português, e um pouco de Fur-

“Todas essas transnacionais usufruíram de empréstimos do BNDES para a construção dos empreendimentos de energia em Tocantins”

Como ficou a situação do conjunto de indígenas, ribeirinhos, quilombolas e camponeses em meio ao avanço do capital sobre o rio Tocantins e as terras da região? Os indígenas perderam consideráveis glebas de seus territórios. Os quilombolas tiveram suas terras compradas pelas empresas, assim como os camponeses e os ribeirinhos expulsos de suas localidades pela construção das barragens. Ou seja, uma alteração nas relações sociais do que chamamos de comunidades tradicionais. Grande parte dessa população foi deslocada para a periferia de Palmas vivendo de “bicos”, conformando uma “reinteorização” em outros territórios. Além disso, essas populações perderam sua função social que era integrada à natureza, respeitando períodos sazonais para pesca, caça, plantio e colheita. E os grupos que foram atingidos indiretamente? Muitos barqueiros viraram alcoólatras e sequer receberam indenizações. Essa é

Aldemar Ribeiro/Secom-TO

A CRIAÇÃO do estado do Tocantins implementou as condições legais à implantação do agronegócio e à instalação de diversas transnacionais na região. “Temos a Bunge e a Cargill, com cadeia de soja, e a Monsanto que produz semente transgênica. Tocantins hoje pode ser considerado o celeiro de semente transgênica do Brasil”, revela o professor do departamento de geografia da Universidade Federal de Tocantins (UFT), Elizeu Ribeiro Lima. No livro A Gênese de Palmas, Tocantins – A Geopolítica de (Re)Ocupação Territorial na Amazônia Legal, editora Kelps, lançado em meados de 2012, o professor relata as nuances da formação desse novo estado e os conflitos desencadeados nesse processo que, segundo ele, começa com os bandeirantes e reiniciase com o primeiro e atual governador de Tocantins, José Wilson Siqueira Campos (PSDB-TO). Contexto que vai desencadear no crescimento desenfreado do agronegócio e da construção de barragens no estado, marginalizando a população de ribeirinhos, indígenas, camponeses e quilombolas, constantemente deslocadas para um ambiente descaracterizado de suas culturas tradicionais. “Essas populações perderam sua função social, que era integrada à natureza respeitando períodos sazonais para pesca, caça, plantio e colheita”, salienta Lima. Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor aponta Palmas como a síntese de toda essa degradação social, econômica e cultural de Tocantins. “Inclusive responsável de descaracterizar a cultura da região com a ideia do agronegócio a qualquer custo”, critica.

O que acontece a partir da aparição de Siqueira Campos? Ele dá um contorno diferente na luta de emancipação da região e começa a trabalhar isso nas esferas institucionais em Goiás e em Brasília. Quando ele ganha para deputado federal, cargo que vai exercer por quatro ou cinco mandatos, usa a bandeira da criação de Tocantins. Nesse espaço ele tem mais possibilidades de manobras políticas e jurídicas para estruturar o novo estado, além de ocupar outros cargos decisivos como a presidência da Comissão da Amazônia Legal. Eram nessas instituições que ocorria a disputa geopolítica de divisão territorial. Temos que recordar que ele é o primeiro governador do estado de Tocantins e também o criador da capital Palmas.

mais uma problemática porque quem recebe apoio mínimo do Estado e das empresas pelos danos sofridos pelos empreendimentos são os que moram em áreas afetadas, mas existe uma cadeia de pessoas vivendo nos arredores do rio que necessitam dele. Para este grupo, constituído principalmente por barqueiros e pescadores, a solução para “salvar” a situação foi a pesca capitalista em reservatórios artificiais, organizada por colônia de pescadores.

“Vejo a universidade com muita vontade de agarrar o dinheiro das multinacionais” O que seu livro discute, professor? Contextualiza a gênese de Palmas e Tocantins até aparecer mais uma cidade planejada no meio do cerrado tanto tempo depois de Brasília. E descubro que Palmas retoma todo o anseio militar dos grandes projetos. O próprio Siqueira Campos era amigo dos militares. Portanto, no meu estudo mostro que Palmas é o fechamento do ciclo da ocupação e da entrada do grande capital na Amazônia, que começa com os bandeirantes e reinicia-se com o grupo político de Siqueira Campos. Palmas é a síntese disso tudo, inclusive responsável por descaracterizar a cultura da região com a ideia do agronegócio a qualquer custo. O exemplo é a vitória do colombiano Carlos Amastha (PP-TO) para a prefeitura de Palmas nas últimas eleições. E de onde surge Amastha? Siqueira Campos o lança. Ele vem da região sul do Brasil, é empresário do ramo da construção e administração de shoppings e resorts. Inclusive, Siqueira Campos vendeu uma universidade pública para Amastha à qual parte dela foi retomada pelo Ministério da Educação.

O governador Siqueira Campos (PSDB)

Por falar nisso, qual o posicionamento das instituições públicas de ensino em Tocantins? A universidade não está muito interessada em debater esses assuntos, justamente pela influência das transnacionais nesse universo universitário. Já tivemos um mestrado chamado Desenvolvimento Regional e Agronegócio,em que a coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) mandou tirar agronegócio do nome. Vejo a universidade com muita vontade de agarrar o dinheiro das multinacionais.


10

de 7 a 13 de março de 2013

cultura

Júlio César,

de Shakespeare, em presídio de segurança máxima Fotos: Divulgação

CINEMA Irmãos Taviani filmam obra de dramaturgo inglês em presídio Maria do Rosário Caetano de São Paulo (SP) O CINEMA italiano viveu sua era de ouro de 1945, com a emergência do neo-realismo (encabeçado por Rossellini-Zavattini-De Sica), até a década de 1960, quando Fellini, Visconti, Monicelli, Pasolini e Dino Risi, somados a atores da grandeza de Alberto Sordi, Vittorio Gassman, Ugo Tognazzi, Sophia Loren, Marcello Mastroianni e Claudia Cardinale encantaram o mundo. Depois dos anos da Dolce Vita, a Península viu seu espaço cinematográfico definhar nas telas planetárias. E no Brasil, em particular. Se hoje o cinema italiano não ocupa mais o espaço que lhe reservavam os exibidores brasileiros, isto não significa que inexistam filmes peninsulares de excelente qualidade e obrigatórios a quem aprecia obras mais reflexivas. Está em cartaz, em nosso circuito, o melhor dos filmes dos Irmãos Taviani, desde Allonsanfan e Pai Patrão: César Deve Morrer. Trata-se de registro originalíssimo de vigorosa encenação de Júlio César, um dos mais famosos textos de William Shakespeare, feita por detentos (assassinos, traficantes de droga e ex-integrantes da Máfia) do presídio de segurança máxima de Rebibbia, em Roma. Os irmãos Taviani – Vittorio (de 83 anos) e Paolo (de 81) – encontraram em outro grande nome do cinema italiano contemporâneo, Nanni Moretti, o apoio necessário para difundir o trabalho dos presidiários transformado em filme. O ator e diretor de títulos memoráveis como Caro Diário e Habemus Papam cuidou, através da Sacher Filmes, da distribuição do décimo-oitavo longa-metragem dos mestres toscanos. Um filme de orçamento modesto e rara síntese (apenas 76 minutos). Na Itália, César Deve Morrer foi visto por 740 mil espectadores. Número dos mais expressivos para um filme sem atores famosos, sem tramas amorosas e sem efeitos especiais.

Na Itália, César Deve Morrer foi visto por 740 mil espectadores. Número dos mais expressivos para um filme sem atores famosos César Deve Morrer causou sensação no Festival de Berlim, ano passado. Saiu de lá com o Urso de Ouro de melhor filme. E os octogenários Irmãos Taviani , que conquistaram a Palma de Ouro em Cannes (1977), com Pai Patrão, tiveram a satisfação de comemorar a conquista de mais um dos três prêmios mais importantes dos festivais internacionais (os outros são o Leão de Ouro, de Veneza, e a Palma de Ouro, de Cannes). Para completar, César Deve Morrer ganhou vários prêmios Donatello, o “Oscar” italiano. Inclusive o de melhor filme. Os presidiários que, sob o comando do encenador Fabio Cavalli, foram transformados em “atores”, são vistos em César Deve Morrer em suas celas, nos corredores ou no pátio de Rebibbia. São filmados, também, durante os ensaios do famoso texto de Shakespeare. Tudo em preto-e-branco. Quando a peça sobe ao palco do “teatro” da penitenciária, o filme ganha cores fortes. O “poder do discurso” O público ouvirá, ao longo dos enxutos 76 minutos da narrativa, os magníficos diálogos shakespereanos interpretados com paixão pelos detentos-atores. E reconhecerá duas expressões do texto que migraram para nossas falas cotidianas (e contemporâneas): “Até Tu, ó Brutus” (para expressar espanto com a traição de alguém muito próximo”) e “idos de março” (que até batizou filme dirigido por George Clooney, em 2011: The Ides of March, no Brasil Tudo pelo Poder, reflexão sobre a luta pelo poder político nos EUA). O espectador ouvirá, inclusi-

Cena de César Deve Morrer, adaptação de Júlio César, de William Shakespeare, encenada por detentos do presídio Rebibbia, em Roma

ve, a defesa de Júlio César feita por Marco Antônio, no que é considerado o ápice da tragédia (escrita em 1599). Marcus Brutus, um dos que conspiraram contra Júlio César e coletivamente o mataram, está no centro da tragédia, famosa por mostrar o “poder do discurso”. O dramaturgo concentra-se em quatro personagens principais (além do grande general, destacam-se Marco Antônio, que defenderá o legado de Júlio César, e os conspiradores Brutus e Cássio). Em papeis menores estão os senadores Cícero, Públio e Popílio Lena, além de outros conspiradores (Caska, Décio Brutus, Cinna, Címber, Trebônio e Ligário), e de Otávio César e Lépidus, que – após a morte de Júlio Cesar – formariam um triunvirato com Marco Antônio. E mais tribunos populares e duas mulheres (Calpúrnia, esposa de Júlio César, e Pórtia, esposa de Brutus). As duas não estão no filme dos Irmãos Taviani, pois o encenador Fabio Cavalli, nome fundamental na encenação que estrutura o filme, só trabalha – no Júlio César carcerário – com presos do sexo masculino. Em certo momento da tragédia shakespereana, Marcus Brutus sofre ao perceber que alguns dos assassinos de Júlio César podem ter agido por interesses pessoais. Não em nome da justiça e contra a tirania: “O grande Júlio não sangrou em nome da Justiça? Quem foi o vilão que lhe tocou o corpo e o apunhalou se não por justiça? Por que, se não para sustentar ladrões, iria um de nós, que atacamos o mais importante líder deste mundo, contaminar os dedos com propinas infames e vender nossos altos cargos de largas honras por tão vil metal quanto pudessem as suas munhecas agarrar? Eu preferia ser um cachorro e latir para a lua que ser romano”.

Marco Antônio, por sua vez, ao defender a memória de Júlio César, pronuncia os mais belos (e retóricos) trechos da peça e do filme. Um deles dá destaque ao manto do general morto, rasgado pelos punhais dos conspiradores: Se os senhores têm lágrimas, preparem-se para derramá-las agora. Todos conhecem este manto. Lembro-me da primeira vez em que César usou este manto: foi numa noite de verão, em sua barraca,

Um pano se faz de manto, uma espada de plástico ajuda a caracterizar este ou aquele personagem no dia em que ele derrotou os Nervii, os guerreiros belgas mais difíceis de vencer. Vejam, aqui entrou o punhal de Cássio. Vejam que rasgão fez Caska, pessoa maldosa. Aqui apunhalou o bem-amado Brutus, e quando ele puxou a maldita lâmina de volta, observem como o sangue de César correu atrás, como saindo às pressas de casa para a rua, para verificar se Brutus havia mesmo batido à porta de modo tão desumano, pois Brutus, como os senhores sabem, era o preferido de César. Julgai, ó deuses, o quanto César o amava. Esse foi o talho mais desumano de todos. Pois quando o nobre César viu Brutus apunhalá-lo, a ingratidão, mais forte que o braço dos traidores, derrotouo por completo. (...) Almas de bondade, por que choram os senhores, quando tudo que estão vendo é o traje machucado de nosso César? Olhem aqui, ei-lo aqui, ele mesmo, desfigurado, como os senhores podem ver, por traidores”.

Figurinos brechtianos A Itália indicou César Deve Morrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro. A Academia de Hollywood o preteriu. Todos sabem do peso do britânico Shakespeare junto aos acadêmicos. Mas sabem também que estes amam filmes de época, de alto orçamento e com figurinos rebuscados e luxuosos. No filme dos Irmãos Taviani, a Roma dos Césares e seus generais, senadores e conspiradores é vista com imenso despojamento. Os “atores” trajam figurinos modestos, brechtianos. Um pano se faz de manto, uma espada de plástico ajuda a caracterizar este ou aquele personagem.

O que importa aos Taviani é o empenho de seus presidiários investidos na função de “atores” O que importa aos Taviani é o empenho de seus presidiários investidos na função de “atores”. Num texto teatral que discute poder, ambição, traição e lealdade, os detentos encontram experiências intensamente vivenciadas em suas trajetórias criminosas. Quando eles se apoderam dos personagens que vão interpretar, saberemos, por legendas, que estão cumprindo pena por assassinato ou tráfico de droga. Durante seis meses de ensaios, cada “ator” pôde encontrar nos personagens de Shakespeare questões que iluminavam momentos-chave de suas existências. Quem tem ojeriza a filmes “teatrais” não deve preocupar-se, nem fugir de César Deve Morrer. Afinal, os Taviani construíram narrativa cinematográfica, sintética e poderosa. Um dos presidiários, Cosimo Rega, que interpreta Cássio, diz (no filme): “desde que eu conheci a arte, esta cela se tornou uma prisão”. É isto – sensibilizar os presos, tirá-los, mesmo que temporariamente, da vida bruta de um presídio de segurança máxima – o que desejavam os irmãos cineastas, de trajetória marcada pelo humanismo.

Serviço: César Deve Morrer (Cesare Deve Morire), de Vittorio e Paolo Taviani. Itália, 2012. Com detentos da Penitenciária de La Rebibbia. Duração: 76 minutos.

Os irmãos Vittorio e Paolo Taviani

Júlio César, de William Shakespeare. In: Shakespeare – Obras Escolhidas. L&PM Editores (Porto Alegre, 2008)


cultura

de 7 a 13 de março de 2013

11

O estado de exceção permanente Paula Sacheta

TEATRO A continuidade entre regime autoritário e estado de exceção deixa entrever uma questão central: por que as ditaduras e as violações contínuas de direitos humanos são necessárias?

justiça, como a Frente de Esculacho Popular, e com grupos nascidos de violações contemporâneas, como o Movimento Mães de Maio. “Movimentos sociais contemporâneos que fazem referência explícita ao período da ditadura, mesmo que se refiram especificamente a torturadores e empresários que foram coniventes ou apoiadores do regime, estão discutindo também qual sociedade queremos criar hoje”, aponta Kinas. O produtivo contato da Kiwi com esses parceiros extrapolou a simples troca de informações de pesquisa para a peça. “A partir de debates e reflexões conjuntas surgiram pontos de discurso em comum, e isso é transposto para a cena”, define o diretor.

Eduardo Campos Lima de São Paulo (SP) A PEÇA MORRO como um país – Cenas sobre a violência de Estado, da Kiwi Companhia Teatral, materializa pesquisas e reflexões feitas pelo grupo sobre as ditaduras do século 20, violações de direitos humanos e autoritarismo, relacionando tais elementos ao funcionamento padrão do modo de produção capitalista. A peça, que conta com a atriz Fernanda Azevedo, define como fundamental o conceito de estado de exceção permanente, a partir do qual todo um eixo temático é constituído. “Procuramos discutir a suspensão de direitos que acontece em momentos considerados de normalidade democrática. É o caso, por exemplo, da Lei Geral da Copa: trata-se de um quadro em que um pedaço do ordenamento jurídico entra em suspensão para atender a interesses econômicos e políticos”, aponta o diretor Fernando Kinas. “São abordados, nessa camada da encenação, aspectos da violência de Estado contemporânea, como a repressão a movimentos sociais e os abusos policiais cometidos em nome da segurança”, como lembra Luiz Nunes, produtor e assistente de direção. Outro bloco de assuntos é o da suspensão do regime democrático no sentido clássico. “Aí falamos sobre nosso último período ditatorial, de 1964 a 1985 – mas também ampliamos o enfoque para modelos autoritários de outros lugares e outras épocas”, explica Kinas. Um texto-chave desse eixo da peça é o que dá nome à montagem, Morro Como um País, de autoria do escritor grego Dimitris Dimitriadis, que se refere à ditadura dos coronéis, de 1967 a 1974, na Grécia. Igualmente importantes são os depoimentos de ex-presos políticos latino-americanos, como o do uruguaio Mauricio Rosencof, um dos fundados dos Tupamaros (ver quadro com trecho de seu depoimento incluído na encenação).

“Procuramos discutir a suspensão de direitos que acontece em momentos considerados de normalidade democrática” As ligações entre as ditaduras do passado e as violações do presente – ou seja, entre suspensão do regime democrático e estado de exceção permanente – são propostas por diferentes vias. Ao longo de toda a encenação, por exemplo, os episódios são pontuados por denúncias da histórica participação estadunidense no estabelecimento das ditaduras e das reverberações da presente hegemonia dos EUA. “Quando o público entra no espaço, o primeiro impacto que recebe é o de imagens relativas à invasão dos Estados Unidos ao Iraque. A projeção mostra o assassinato de vários civis em Bagdá, no ano de 2007, em imagens captadas por helicóptero Apache que vazaram das Forças Armadas estadunidenses”, afirma o diretor. “A presença dos Estados Unidos é central nesse modelo de violação de direitos.” Em um plano mais profundo, a continuidade entre regime autoritário e estado de exceção permanente deixa entrever uma questão central: por que as ditaduras e as violações contínuas de direitos humanos são necessárias? A peça deixa claro que o funcionamento regular do modo de produção capitalista é garantido de todos os modos quando há qualquer sinal de que ele pode ser ameaçado – seja em um plano mais amplo, da sociedade como um todo, seja em um setor mais específico, como um bairro de periferia, por exemplo. Tal mecanismo é isolado e exposto pela encenação. Devido a essa leitura, o grupo construiu parcerias com movimentos sociais que militam pela verdade, memória e

Trechos da peça Fala de Mauricio Rosencof “Meu nome é Mauricio Rosencof, eu tenho 38 anos e sou um dos fundadores dos Tupamaros, no Uruguai. Eu fui preso em Montevideo em 1973 – o ano em que eu, Fernanda, nasci [diz a atriz] – e fui torturado durante nove meses. Eu fiquei onze anos em solitárias. Em todos esses anos eu enxerguei a luz do sol, no máximo, durante oito horas. Oito horas em onze anos. Eu soube do golpe militar chileno com três anos de atraso. Eu nunca vi o rosto de outro prisioneiro. Eu vivi em celas de três metros quadrados [vai até o espaço marcado no chão] e perdi a noção das cores, muitas vezes eu tive que matar a sede com a minha própria urina. Eu resisti sonhando com passeios. Quando eu era levado para as sessões de tortura, eu me lembrava da minha filha, dos judeus do gueto de Varsóvia, e eu recitava: “Eu sou os que foram”.”

A atriz Fernanda Azevedo em cena do espetáculo desenvolvido pela Kiwi Companhia de Teatro

Serviço Morro como um país – Cenas sobre a violência de Estado De 1 de março a 28 de abril de 2013 – Sextas e sábados às 20h; domingos, 19h Teatro Grande Otelo, Sótão, Alameda Nothmann, 233, Bom Retiro, São Paulo SP (ao lado do Sesc Bom Retiro).

Diálogo entre Geisel e Dale Coutinho “Geisel: O Brasil hoje em dia é considerado um oásis. Dale Coutinho: Ah, o negócio melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar. Começamos a matar. Geisel: Porque antigamente você prendia o sujeito e o sujeito ia lá para fora. Ó Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser.” (ECL)

Depoimentos No palco, poucos objetos. Entre eles, um relógio de barbeiro e um projetor, que é operado ao longo da peça pela única atriz em cena. Ela entra em cena vestida de preto e usando várias camisetas sobrepostas e, logo no início, retira uma a uma, revelando a cada vez a fotografia de uma vítima da repressão do Estado. Vemos, por exemplo, Vladimir Herzog e Alexandre Vannucchi Leme. A peça é composta por diversas cenas independentes. Ao longo delas, numerosas fontes e referências demonstram que a barbárie, assim como a história, é cíclica e contínua. Vemos uma grande diversidade de imagens projetadas no palco (que vão desde documentos da CIA apoiando a ditadura militar brasileira, passando por fotos do papa João Paulo II com o ex-presidente Fernando Collor, até imagens de negros escravizados), gravações de rádio, canções e, não só depoimentos de vítimas de ontem e hoje, como também a transcrição de conversas do ex-presidente Ernesto Geisel (veja o trecho). Todos esses elementos tecem a grande colcha de retalhos que figura um estado de exceção, de violência e extinção da liberdade, que se tornou regra. Liga o incêndio da UNE em 1964 com os das favelas da cidade de São Paulo, em 2012. Liga as histórias das mães de vítimas da ditadura às histórias das mães que perdem seus filhos assassinados nas periferias. E aponta que toda esta situação foi e é apoiada e patrocinada por grandes empresas como a Rede Globo e a Ultragaz. A circularidade da peça e da história é reforçada em seu final. A atriz veste novamente as camisetas despidas no início da peça. E, assim como faz no início, diz que horas são e termina a peça afirmando ser os que foram – unindo, novamente, o passado e o presente. Maíra Malosso, pesquisadora de teatro

Morro Como um País faz uma importante investigação sobre a necessidade e a permanência da exploração e da opressão ao longo da história, a serviço de uma classe social. O espetáculo traz diversas referências verídicas e seus quadros são apresentados como em um jogo, de forma que todos os presentes sejam inseridos, convidados a uma reflexão mais ampla sobre a violência política. Através de suas cenas, dialoga com as inquietações que nos permeiam no exercício de análise crítica da realidade.

Vale lembrar que nos últimos anos a Kiwi Cia. de Teatro tem participado amplamente de inúmeras lutas da classe trabalhadora organizada e não poderia deixar de associar essa pesquisa às barbáries e perseguições que a nossa classe tem sofrido nos últimos tempos. Por isso, citamos uma excelente cena em que a atriz/militante denuncia os incêndios criminosos em favelas ocorridos nas áreas mais visadas pela especulação imobiliária nas grandes capitais. É por meio da não contextualização de algumas das referências, passíveis de identificação direta, que se dá a maior provocação do trabalho: a violação de direitos humanos e as estratégias de controle social tornaramse intrínsecas à estrutura de Estado, seja em um regime autoritário, seja em um dito democrático de direito. Vivemos em um estado de exceção permanente. Osvaldo Pinheiro e Paula Cortezia – Cia. Estável de Teatro

Somos convidados a viajar a um país de mulheres estéreis e de crianças que são criadas para virarem comida, a um país sem língua, porque ela deixou de ser falada, foi proibida. Um país sem nome, mas que poderia muito bem ser a Grécia dos coronéis, a Argentina, o Chile, ou o Brasil. O Brasil da escravidão, do Estado Novo, da Ditadura Militar. O Brasil do Pinheirinho, dos incêndios em favelas e dos esquadrões da morte de ontem e de hoje. É assim a nova peça da Kiwi Companhia de Teatro, que como no relógio ao fundo do palco – que gira ao contrário – nos leva a uma viagem através do tempo, oscilando entre passado e presente de forma quase que natural. Leva a um país detestável e, tristemente, nos abre os olhos frente uma dura verdade: esse país pode muito bem ser o Brasil de hoje. Na contracorrente do esquecimento, do silêncio e daqueles que querem nos fazer acreditar que o passado fica no passado, faz relações que de tão pungentes nos parecem óbvias. Não, “não estamos em paz” e o “passado abandonado jamais se torna passado”. Constrói uma narrativa simbólica e real mostrando como foi montado o estado de exceção em que vivemos hoje. Um estado de exceção que ousamos não aceitar. Imperdível, angustiante e essencial. Para quem, como nós, tem vergonha de viver em um país sem memória. Paula Sacchetta, Frente de Esculacho Popular (ECL)


12

de 7 a 13 de março de 2013

cultura Divulgação

Filme de amor RESENHA É inevitável comparar a história vivida entre Gorz e Dorine com a de Georges e Anne, personagens do premiadíssimo Amour, de Michael Haneke Deni Ireneu Alfaro Rubbo “VOCÊ ESTÁ PARA fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca”. É com essas palavras que André Gorz inicia o seu último livro, Carta a D. – Uma história de Amor, que escreveu para homenagear sua mulher, Dorine, que estava com um câncer incurável. Assim, no dia 22 de setembro de 2007, ambos cometeram suicídio. É inevitável comparar a história vivida entre Gorz e Dorine com a de Georges e Anne, personagens do premiadíssimo Amour, de Michael Haneke. Em ambos, velhice, amor, doença, suicídio são a tônica do “enredo”. Mas diferentemente da carta-testamento de Gorz, que traça um balanço de seu longevo relacionamento, aliás, muito mais comovente do que milhares de poemas de “amor”, que

na maior parte das vezes nos arrematam de tédio, a narrativa de Amour prima por mostrar minuciosamente o cotidiano e a intimidade do casal a partir de uma enfermidade terrível, dolorosa, dura, sem qualquer rememoração de sua relação, decididamente “anti-poético”, por assim dizer. Amour opta pela lenta tempestade, não pela longa calmaria das águas.

Cena do filme Amour, do cieasta austríaco Michael Haneke

fessora. As palavras de otimismo de um futuro melhor, aos seus ouvidos, soam como piedade e, consequentemente, desafina o piano que toca. É como as pessoas insistissem em não entender sua real situação. Anne tem uma compreensão terrivelmente lúcida de que esta perdendo todas as suas básicas funções mentais e físicas. “Eu não quero mais”, dirá à Georges. O que assusta a todos – e me soa muito bem a hipótese da filha do casal ser uma metáfora do público, com soluções sempre institucionais – é a sua consciência simultânea de tudo o que a vida pode docemente oferecer (lembre-se a cena das fotos, a única rememoração do filme, em que ela diz “É bela. A vida. A longa vida.”) e de encarar a morte de maneira franca, imbatível. Não é preciso dizer que o comportamento de Georges comove, emociona, por sua dedicação, gentileza e delicadeza (“Eu lhe disse que você esta muito bonita hoje?”). Mas sabemos que essa escolha não significa que ele seja a encarnação de uma perfeição crística, um “príncipe encantado”. Basta ouvir as palavras de Anne: “Você é um monstro às vezes, mas gentil”. Humanos, temos – todos nós – nossa parte de sombra, nossos traumas pessoais e nossas pulsões bizarras. Seja em “amores de cachos” ou em “amores de casais”, somos perfeitamente imperfeitos com nós mesmos e com os outros, correndo o risco de petrificar as relações. Embora a princípio Georges reaja com negação à propos-

É inegável que Haneke conseguiu fazer um estonteante filme de amor juntando amargura e ternura, aço e a leveza de uma borboleta, submetendo o mistério do amor à “prova de tudo” “Isto é tudo emocionante”, confessa Georges com a mudança radical da rotina. A partir de então, o apartamento tornar-seá mais fechado, claustrofóbico, enclausurante. O entrelaçamento de duas vidas sob alguns cômodos e portas. Pouco depois do primeiro derrame Anne sentencia: “Não me explique nada, por favor”. É quase uma regra tácita não mencionar seu estado de saúde. Nem mesmo o aluno favorito escapa de sua sentença quando a visita. Não tanto por perguntar, mas por insistir no tema através do bilhete que vem junto ao CD que presenteia sua pro-

ta de Anne, sua escolha muda quando a imagina tocando piano. Ali, ele a enxerga como uma pessoa morta. Outros exemplos evidenciam isso, talvez mais explicitamente. Ele está a caminho de uma escolha difícil – altamente subversiva. Mesmo cada vez mais decrépita e senil, a rotina de “estar juntos” não é quebrada: exercitam-se, cantam, comem juntos. “Nada disso me cansa”, diz Georges. Ambos ainda estão em um processo de se conhecer. Amour opta pelas águas quentes de relações sociais qualitativas construídas historicamente e não pelas águas geladas do cálculo egoísta. Talvez tudo isso seja uma má compreensão das escolhas e das decisões que culminaram em um ato profundamente corajoso, para uns e decididamente covarde para outros. Não importa. É inegável, contudo, que Haneke conseguiu fazer um estonteante filme de amor (mormente sempre banais) juntando amargura e ternura, aço e a leveza de uma borboleta, submetendo o mistério do amor à “prova de tudo”. Não seria, afinal, o intransitivo amor isso, como anunciou melancolicamente o poeta francês André Breton em seu livro Nadja: “Só o amor no sentido em que compreendo – ou seja, o misterioso, o improvável, o único, o confundível e indubitável amor – que não pode ser senão à prova de tudo, teria podido permitir neste caso a realização do milagre”. Deni Ireneu Alfaro Rubbo é sociólogo.

www.malvados.com. br

dahmer

PALAVRAS CRUZADAS

Verticais: 1.Em Minas Gerais, são os próximos alvos a serem entregues à iniciativa privada pelo governo do PSDB. 2.Pronto Socorro (sigla) – O primeiro dos números internos. 3.Outra forma de designar d.C. (depois de Cristo) – “Leste”, em espanhol – Machuca. 4.Sílvio Santos é o dono deste canal. 5. Cerca de 175 mil é o número de crianças que não encontram vagas em (?) na capital paulista. 6. Um século é composto por (?) anos – Nota do tradutor (sigla). 7.Segunda nota na escala musical – Quando os portugueses invadiram Pindorama (terra a qual viriam a chamar de Brasil), já existiam por aqui 2 mil povos (?), num total estimado de 6 milhões de habitantes. 8.Para alguns, a parte imortal do ser humano – Posterga. 9.Agência Nacional de Águas (sigla) – Movimento de ajuda mútua internacional (sigla) fundado em 1935, em Ohio, nos Estados Unidos, para lidar com o alcoolismo. 10.Jornal (sigla), que circulou de 1963 a 2001, com a fama de que se fosse espremido sairia sangue – Desmoronar. 11.Segundo maior estado da região Nordeste (sigla) – A chamada Unidade de Polícia “Pacificadora” que tem ocupado os morros no Rio Janeiro. 12.Em inglês, diz-se “street”. 13.Abandono voluntário. 14.Vídeos que adquirem alto poder de circulação na internet. 15.Exata. 16.“Deus”, em italiano. 17.Divisão principal das peças de teatro. 18.Tática grevista.

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

11

12

13

14

15

16

17

18

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11

Horizontais: 1.Pastoral – Rap – AP. 2.PSDB – Él – ROTA. 3.TCC – Mãe – CNTE – Or. 4.Renan. 5.Sistema – Anuência. 6.Tá – PP. 7.Doe – Ida – Privados. 8.Enviar – Uai. 9.Destoa – Rio. 10.Suo – Ti. 11.Mídia – Revolução. Verticais: 1.Presídios. 2.PS – Um. 3.AD – Este – Dói. 4.SBT. 5.Creches. 6.Cem – NT. 7.Ré – Nativos. 8.Alma – Adia. 9.ANA – AA. 10.NP – Ruir. 11.MA – UPP. 12.Rua. 13.Renúncia. 14.Viral. 15.Precisa. 16.Dio. 17.Ato. 18.Paralisação.

Horizontais: 1.Zilda Arns foi uma das fundadoras da “(?) da Criança”, em 1983 – Um dos cinco pilares fundamentais da cultura hip hop – Por incrível que pareça este é o estado (sigla) pelo qual Sarney foi eleito senador. 2.Partido político brasileiro fundado em 1988 que tem um tucano como símbolo – “Ele”, em espanhol – Acrônimo de Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar. 3.Trabalho de conclusão de curso – Em alemão, diz-se “Mutter” – Confederação que convocou uma greve nacional para os dias 23, 24 e 25 de abril – “Ou”, em inglês. 4.Presidente do Senado recém-eleito que sofre uma campanha na internet pelo seu impeachment, que disse recentemente que criará uma trincheira sólida para defender os barões da mídia dos ares gelados que vêm dos Andes ao se referir aos marcos regulatórios dos meios de comunicação promovidos na Venezuela, Bolívia e Equador. 5.Do grego “sietemiun”, é um conjunto de elementos interconectados de modo a formar um todo organizado – Consentimento que implica aprovação. 6.Forma coloquial de dizer “está” – Partido brasileiro (sigla) que de “progressista” só tem o nome; partido de Paulo Maluf. 7.Dê – Ato de ir – Despossuídos. 8.Remeter – Típica expressão mineira. 9.Desafina – Em inglês, diz-se “river”. 10.Transpiro – Pronome pessoal de segundo grau. 11.Conjunto dos meios de comunicação social – Mudança brusca na estrutura econômica, social ou política de um Estado.


américa latina

de 7 a 13 de março de 2013

13

Correa e sua aposta integracionista Mauricio Muñoz E/Presidencia de la República

EQUADOR Após o triunfo eleitoral, Correa ressaltou a importância estratégica de avançar nos processos de integração para enfrentar as ameaças que pairam sobre a região Osvaldo León “OU MUDAMOS o país agora ou não o mudamos nunca”, visto que se impõe “tornar irreversíveis as mudanças nas relações de poder em função do ser humano e das grandes maiorias”, e nestas perspectivas “construiremos uma pequena pátria – Equador – e uma grande pátria – América Latina – para deixar para os filhos de nossos filhos”. Tais palavras fazem parte do agradecimento de Rafael Correa ao povo equatoriano, que no dia 17 de fevereiro ratificou nas urnas sua confiança de maneira contundente, com 57.78% dos votos válidos, enquanto seu imediato seguidor, o banqueiro Guilherme Lasso, alcançou apenas 22.26% . Há tempos que se confirma que a tenda governista contará com uma maioria qualificada na Assembleia Nacional.

Sintonia com Mercosul O Mercosul se mostra como o epicentro para consolidar a dinâmica de integração regional autônoma. Isso porque, com as perspectivas integracionistas, o Equador terá que jogar em um cenário que tende a ser mais complexo e desafiador com o anúncio da negociação de um tratado de livre comércio entre os Estados Unidos e a União Europeia e com o andamento da Aliança do Pacífico. Em um diálogo com a imprensa internacional, a Alai perguntou ao presidente se o Equador vai formalizar sua integração plena nesta instância. “Nos dão o motivo porque se pode viver sem tratados de livre comércio. Como puderam se desenvolver sem ter esse livre comércio? O livre comercio é uma grande falácia. Um dos grandes erros é o de tratar de fazer o que fazem os países desenvolvidos agora, que são os campeões mundiais da competitividade, e não terem feito quando tinham nosso nível de desenvolvimento. Todos os novos industrializados aplicaram políticas para proteger seu pleno emprego e sua produção nacional. Quando começam a empregar o livre comércio? Quando estão na fronteira tecnológica e ninguém os vence em produtividade e competitividade. Eu também o faria, mas é um absurdo que nossos países acreditemos nesses cantos de sereia”.

Entre os êxitos indiscutíveis do presidente Correa em seus seis anos de mandato destaca-se a sua decisão por recuperar a soberania nacional Entre os êxitos indiscutíveis do presidente Correa em seus seis anos de mandato destacam-se a sua decisão por recuperar a soberania nacional, que se expressa no fechamento da base estadunidense em Manta; a reversão das divisas das petroleiras (agora, 80% para o Estado e 20% para estas); e redução de parte da dívida externa, com o distanciamento dos organismos financeiros internacionais, por assim dizer. Do mesmo modo, coloca em sua agenda de prioridades a integração latino-americana. Tanto é assim que, assumindo a fundo a presidência pro tempore na nascente União de Nações Sul-Americanas (Unasul), contribui impulsionando para que tome a velocidade inicial; questão necessária para qualquer tentativa coletiva ou pessoal. Neste sentido, seu governo, com ímpeto para que nas dinâmicas integracionistas se contemple a necessidade de avançar rumo a uma nova arquitetura financeira regional, que entre outros componentes registra a criação do Banco do Sul e o estabelecimento do Sucre (Sistema Unitário de Compensação Regional de Pagamentos), como instrumento monetário virtual no comércio na região. De forma que, em sua mensagem, o mandatário equatoriano sinalizou que a tarefa é seguir aprofundando essa integração (Alba, Unasul, Celac), que “já não é um sonho”.

“Se há um atentado aos direitos humanos em um país latino-americano temos que esgotar todas as instâncias jurídicas”

O presidente equatoriano Rafael Correa

assinala Correa, para logo apontar: “Frente a isso, a região pode responder, e por isso uma de nossas prioridades é a integração, já que estão destroçando nossos países”. E dá como exemplo a investida da transnacional Chevron contra o Equador. Chevron vs Equador Alguns dias atrás, a Comissão das Nações Unidas para o Direito Mercantil Internacional (Cnudmi) defendeu a transnacional Chevron-Texaco, que exige do governo equatoriano a suspensão da sentença emitida por um tribunal do país para que pague uma multa de 18 bilhões de dólares por danos ambientais e à saúde da população na Amazônia equatoriana. Esta sentença corresponde a um processo que comunidades indígenas amazônicas interpuseram contra a transnacional há 15 anos. Nestas circunstâncias, declara Correa: “A Chevron desencadeou uma campanha em nível mundial para desprestigiar o país de forma impressionante, que somos corruptos, que o sistema de justiça não serve para nada, e nos pro-

cura ante ao tribunal das Nações Unidas, invocando o Tratado de Proteção Recíproca de Aplicações escrito em 1998. A Chevron, nesse tempo Texaco, saiu do país em 1992, e invoca o Tratado de 1998, e o pior de tudo é que o Tribunal se declara competente e nos ordena suspender a sentença contra a Texaco, como se o presidente pudesse suspendê-la. Aí sim não teríamos segurança jurídica nesse país”.

“Frente a isso, a região pode responder, e por isso uma de nossas prioridades é a integração, já que estão destroçando nossos países” Neste momento, “está em cassação essa sentença e é terrível o que está fazendo esse Tribunal, que é só um mensageiro destas transnacionais. Ante a isso, a América Latina pode se proteger. Sim, podemos fazer nossas próprias instâncias de arbitragem realRainforest Action Network

Após o triunfo eleitoral, Correa ressaltou a importância estratégica de avançar nos processos de integração para enfrentar as ameaças que pairam sobre a região. A respeito, em um intercâmbio com a imprensa internacional ocorrido no país em 20 de fevereiro, destacou que os países da região não têm força suficiente para incidir nas relações de poder em nível global – que estão sob o domínio do capital e, portanto, onde os mercados dominam a sociedade –, se não podem atuar para frear nem os abusos do mercado transnacional, quanto mais os tratados de proteção recíproca de aplicações. “Se há um atentado aos direitos humanos em um país latino-americano temos que esgotar todas as instâncias jurídicas para, então, levar esse caso às instâncias internacionais. Mas quando é um “atentado” aos interesses do capital, qualquer transnacional pode levar um Estado soberano a estes tribunais, que são uma procuração, sempre em função das transnacionais. Estão aí para defender os interesses dos intervencionistas, do capital transnacional”,

mente equilibradas. Esses tratados são tão assimétricos que as transnacionais podem ordenar ao Estado, mas o Estado não pode ordenar às transnacionais. É um horror!”, aponta o recém-reeleito presidente equatoriano. Do mesmo modo, ressalta: “Estamos denunciando todos esses tratados de proteção recíproca, uma das heranças mais letais da larga e triste noite neoliberal, uma antologia do ‘entreguismo’, uma antologia do neocolonialismo”. E se refere também ao caso da Oxy “que descumpriu a lei equatoriana e o tribunal do Centro Internacional de Arranjos de Diferenças Relativas às Aplicações (Ciadi) concede mais do que pediu a petroleira e, reconhecendo que havia descumprido a lei, o que faz é julgar a lei, expondo que é muito dura, como se o intervencionista não conhecesse a lei equatoriana. Imaginem se o fariam nos Estados Unidos”.

Ativista examina vazamento de óleo da Chevron-Texaco no Equador

“Respeitamos muito a visão destes países, mas não a compartilhamos, compartilhamos a visão do Mercosul” “E há uma razão para que haja um eixo do pacífico para o livre comércio”, afirma Correa, “e por isso a importância do Mercosul, que tem uma visão totalmente distinta, coincidente com a do Equador. Por exemplo, o Mercosul é muito reticente a estes tratados de livre comércio e aos tratados de proteção recíproca de investimentos. O Eixo do Pacífico é muito inclinado a essas coisas e o Equador está no meio disso e é o único que o quebra, por isso o interesse é mútuo: Equador se aproximar do Mercosul e Mercosul integrar o Equador”. O Equador está analisando questões como deveres e outras medidas afins pelo fato de não ter moeda nacional. Correa é enfático ao assinalar: “ratificamos nosso grande interesse de ingressar como membro do Mercosul porque a visão comercial do Mercosul se aproxima muito mais da visão do Equador, que nada tem a ver, com todo respeito, com a visão do Eixo do Pacífico que é neoliberal; não nos enganemos, livre comércio, esses tratados de proteção de investimentos, o ‘salve-se quem puder’. Respeitamos muito a visão destes países, mas não a compartilhamos, compartilhamos a visão do Mercosul”. Nas eleições, as propostas dos candidatos da direita giraram em torno de um restabelecimento das políticas neoliberais, para colocar o mercado como eixo regulador e, portanto, reduzindo a presença do Estado: com a desregularização econômica; a flexibilidade trabalhista; menos impostos aos ricos; abertura ao “investimento estrangeiro” e a tratados de livre comércio; a saída de Equador da Alba; e um alinhamento irrestrito com os Estados Unidos, nas circunstâncias de uma incorporação à Aliança do Pacífico. Não cabe dúvida que com o triunfo de Rafael Correa ganham os processos de integração nas esferas governamentais. Mas multiplica-se o desafio aos movimentos sociais no que tange à formulação de propostas e iniciativas, vale dizer, para fazer realidade a proclamação: “passar do protesto à proposta”, e assim apontar para uma correlação de forças favorável à construção da Pátria Grande. Osvaldo León é diretor da Alai.


14

de 7 a 13 de março de 2013

internacional

O banco dos Brics em março Fotos: Roberto Stuckert Filho/PR

OPINIÃO Em Durban (África do Sul) deverá ser anunciada a decisão de fundar um novo banco de desenvolvimento Carlos Tautz AO LONGO DA 5ª reunião de chefes de estado dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que acontece em finais de março em Durban (África do Sul), deverá ser anunciada a decisão de fundar um novo banco de desenvolvimento, o banco dos Brics. Tudo indica que ali vão se iniciar os estudos finos sobre a nova instituição, com o anúncio oficial de criação ficando para a 6a Cúpula, a realizar-se no Brasil em 2014. Confirmadas essas possibilidades, estará aberta uma enorme janela histórica de oportunidade para incidência da sociedade civil internacional. Afinal, não é todos os dias que se criam instituições com essa natureza e missão, nem que organizações do campo popular podem se articular para garantir que os critérios de financiamento incluam a obediência a uma ampla gama de direitos.

Não é todos os dias que se criam instituições com essa natureza e missão, nem que organizações do campo popular podem se articular para garantir que os critérios de financiamento Não se teve oportunidade semelhante em 1945/6, na criação do Fundo Monetário Internacional, o FMI, e do Banco Mundial. Nem em 1950, quando o Brasil fundou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. Agora, o cenário é outro. Há consenso sobre a necessidade de tais instituições incorporarem mecanismos de transparência e controle social, para garantir que os projetos por elas viabilizados distribuam renda e respeitem culturas e o ambiente. Além de nascer da crítica que os Brics fazem ao antidemocrático sistema que garante a hegemonia eterna dos EUA e da Europa no Banco Mundial e no FMI, o banco dos Brics, que nascerá com aportes totais de 50 bilhões de dólares (2 bi cash e 8 bi em garantias de cada sócio) é justificado pela nova realidade

Reunião dos Chefes de Estado e de Governo dos Brics em Los Cabos, no México, em junho de 2012, em encontro que antecedeu a cúpula do G20

econômica internacional, que possibilita maior raio de ação a essas nações. Desde o início dos anos 2000, com o aumento da demanda e dos preços internacionais de commodities e demais matérias-primas, mercados em que os Brics são especializados, esses países acumularam expressivas reservas em moeda forte (cerca de 5 trilhões de dólares em dezembro de 2011). Capacidade Assim, capitalizadas, essas nações recuperaram parte de sua capacidade de conduzir internamente políticas públicas e de transitar com razoável autonomia no fechadíssimo clube das finanças internacionais, onde predominam, por ordem, o dólar (EUA), o euro (Europa) e o iene (Japão).

O Brasil postula a adoção do sistema de cotas iguais, com direito a voto, para os fundadores principais, cabendo a diversos tipos de países participantes diferentes modos de aportar e acessar os recursos, mas sem direito a voto Foi nesse cenário que nasceu a ideia, em 2010, na segunda cúpula dos Brics, realizada no Brasil, de criar um fundo de fomento ao desenvolvimento, quando a África do Sul ainda não integrava

o bloco. O acordo foi capitaneado pelo BNDES, instituição que tem tido papel importante na criação do novo banco. O fundo servirá para fazer reservas em moedas próprias dos Brics, dispensando dólares e euros, e atender aos cinco países em caso de futuras crises do capitalismo globalmente interconectado. O banco teve sua ideia vocalizada pela Índia, que sediou a terceira cúpula dos Brics em 2011 e também integra a estratégia de isolamento diante das crises. Mas, está sendo desenhado para atuar especificamente no apoio às oportunidades comerciais abertas pela crise climática, conforme paper dos economistas Nicholas Stern e Joseph Stiglitz que circula entre governos do bloco desde setembro de 2011 (ver a íntegra em www.maisdemocracia.org.br). Sistema Os estudos preliminares detiveram-se até agora sobre o sistema de governança e os esquemas comercial e financeiro do novo banco. O governo brasileiro, em consonância com o texto Stern-Stiglitz, defende que a instituição tenha o menor número possível de funcionários e não promova políticas públicas a serem exigidas dos tomadores de empréstimos. O local da sede ainda não está definido. O Brasil postula a adoção do sistema de cotas iguais, com direito a voto, para os fundadores principais, cabendo a diversos tipos de países participantes diferentes modos de aportar e acessar os recursos, mas sem direito a voto. A África é apontada como campo de interesse particular da nova instituição, por deter grandes quantidades de terras férteis, água e subsolo riquíssimo.

Essas nações recuperaram parte de sua capacidade de conduzir internamente políticas públicas e de transitar com razoável autonomia no fechadíssimo clube das finanças internacionais Foto oficial da 4ª Cúpula do Brics, realizada em Nova Delhi, na Índia, em março de 2012

Carlos Tautz é jornalista e coordenador do Instituto Mais Democracia – Transparência e controle cidadão de governos e empresas (www.maisdemocracia.org.br). Monitora políticas públicas para organizações da sociedade desde 2001.

Uma cunha na hegemonia de EUA e Europa

Uma janela histórica para a sociedade civil

A criação de um banco como o dos Brics não deve ser encarada como uma decisão apenas da esfera econômica. Ela também se fundamenta no espaço político aberto pela fragilidade conjuntural de EUA e Europa diante das recentes crises cíclicas do capitalismo globalizado. A mais recente delas, a de 2008/09, fragilizou esses dois gigantes diante de um momento relativamente privilegiado para as chamadas economias emergentes, em termos de balanço de pagamentos e de suas reservas geradas pela alta dos preços e da demanda nos mercados internacionais de produtos primários. Nesse cenário, tanto instituições como o FMI, hegemonizado pela Europa, e o Banco Mundial, pelos EUA, quanto fóruns como o G-20, liderados pelos dois, tiveram sua existência e eficácia confrontadas pela incapacidade de prevenir e de lidar com as fragilidades cíclicas de um modelo de desenvolvimento hegemônico que volta e meia se aproxima do abismo. Além, é claro, de não abrirem qualquer espaço efetivo para o aumento da influência na governança dessas instituições por parte de novos e importantes jogadores no cenário internacional, como pleiteiam os Brics. É nesse enquadramento que se precisa olhar a oportunidade e a decisão de os Brics criarem um novo banco de desenvolvimento que seja governado por um grupo especial de países. Entre esses países estão dois com assento permanente no Conselho de Segurança (CS) da ONU e que também são grandes produtores, exportadores e consumidores mudiais de petróleo e gás natural (Rússia e China); outros três são pleiteantes históricos de inclusão no CS (Brasil, Índia e África do Sul); e três declaradamente possuem armas nucleares (Rússia, China e Índia). Em seu conjunto, os cinco abrigam perto de 40% da população mundial. Ainda que a economia dos Brics cresça abaixo do esperado, uma coalizão como essa coloca um ponto de interrogação para EUA e UE, pólos tradicionais de poder. Tudo isso ainda não ameaça a hegemonia de estadunidenses e europeus, mas cria uma pertubadora cunha na geopolítica global. (CT)

Em se confirmando a fundação de um banco com a escala e a natureza deste dos Brics, é urgente a intervenção articulada, propositiva e incisiva de organizações da sociedade civil para garantir que o banco se fundamente sobre pelo menos cinco critérios que caracterizariam algum lampejo de democracia no mundo das finanças. Os critérios seriam: 1. uma ampla política de informação pública e adoção de normas internacionais de transparência; 2. critérios internacionais de controle e accountability; 3 anterior aos seus desembolsos, um processo aberto de discussão e decisão com as populações direta e indiretamente impactadas pelos projetos a serem financiados; 4. um espaço público de deliberação geral sobre a nova instituição; e 5. a adoção de uma norma internacional contra violações de direitos humanos a ser respeitada por toda cadeia produtiva dos projetos apoiados. No caso do banco dos Brics, a falta de acesso público e amplo aos documentos sobre as negociações oficiais para sua criação demonstra a premente necessidade de ação cidadã sobre esta poderosa instituição que está prestes a ser fundada. Afinal, se a criação do banco dos Brics se fundamenta, entre outras razões, em um déficit de legitimidade do FMI e do Banco Mundial, o novo banco precisa, para ser legítimo, basear-se em critérios democráticos sobre a utilização de recursos públicos. O Instituto Mais Democracia realizará, em articulação com a Fundação Heinrich Böell, uma oficina sobre o banco dos Brics, em março, na África do Sul, em paralelo à cúpula oficial para levantar questões críticas sobre o banco, como o respeito ao meio ambiente e direitos humanos, e, a partir daí, construir uma rede internacional de organizações da sociedade civil que monitore e incida sobre o banco. (CT)


internacional

de 7 a 13 de março de 2013

15

Tensão crescente na Palestina palestinesolidarityproject.org

ORIENTE MÉDIO Morte de Arafat Jaradat em cárcere israelense intensifica protestos de palestinos Baby Siqueira Abrão de São Paulo (SP) A MORTE do palestino Arafat Jaradat, 30 anos, na prisão de Meggido, em Israel, no dia 23 de fevereiro, foi a gota d’água num “copo até aqui de mágoa”, como na canção de Chico Buarque de Holanda. As autoridades carcerárias de Israel e o Shin Bet (serviço de segurança interna do país) alegaram que a morte se deveu a uma parada cardíaca durante o interrogatório. Mas a autópsia revelou uma história muito diferente. Realizado em Israel, com a presença de oficiais do governo palestino, o procedimento mostrou que Jaradat foi vítima de tortura pesada. Ele tinha seis ossos quebrados no pescoço, na coluna, nos braços e nas pernas, além de ferimentos na musculatura e manchas roxas na pele. “Isso corrobora nossas suspeitas de que a morte foi resultado de tortura”, disse o ministro palestino das Questões Prisionais, Issa Qaraque, numa coletiva de imprensa em Ramala. “A autópsia mostrou que o sistema cardíaco de Jaradat era saudável, sem sinal de derrame, plaquetas ou equimose, o que desqualifica a alegação inicial de Israel, de que ele morreu em função de um ataque cardíaco”. Essas evidências levaram as autoridades israelenses a mudar o discurso sobre as causas da morte. O ministro da Saúde de Israel apressou-se a explicar que os ferimentos descobertos na autópsia podem ter sido causados pela equipe médica que tentou ressuscitá-lo. “Esse resultado inicial não é suficiente para determinar a causa da morte. É preciso fazer exames mais aprofundados”, declarou o ministro. Uma porta-voz da polícia israelense anunciou que a investigação sobre a morte de Jaradat – preso sob a acusação de atirar pedras que feriram um cidadão israelense – ainda está em andamento. Kameel Sabbagh, advogado do Ministério das Questões Prisionais da Palestina, presente à última audiência de Jaradat em 21 de fevereiro – adiada, naquela data, em 12 dias – confirma a hipótese de morte por tortura. “Quando entrei no tribunal, vi Jaradat sentado diante do juiz. Ele tinha as costas arqueadas e parecia doente, fraco. Sentei-me a seu lado e ouvi suas queixas sobre fortes dores nas costas e em outras partes do corpo em consequência dos golpes que sofreu e por ter sido obrigado a ficar numa posição desconfortável durante muitas horas”, disse o advogado.

“A autópsia mostrou que o sistema cardíaco de Jaradat era saudável, sem sinal de derrame, plaquetas ou equimose” Assim que o juiz decidiu adiar a audiência, Jaradat “pareceu extremamente assustado”, declarou ainda Sabbagh. Seu estado psicológico era péssimo, e o advogado avisou o juiz que ele vinha sendo torturado. O juiz, segundo Sabbagh,

Milhares de palestinos foram às ruas protestar contra a morte do jovem Arafat Jaradat

ordenou um exame, que nunca ocorreu. Issa Qaraque, ministro palestino, acrescentou que os homens que interrogaram Jaradat utilizaram técnicas de “esticamento” do corpo (uma delas, a “banana”, consiste em manter as costas do preso no assento de um banquinho, com pés algemados de um lado e mãos de outro, o que obriga a pessoa a ficar de costas, com a cabeça para baixo) e de privação de sono para torturá-lo, na prisão de Jalameh, um dia antes da morte. Arafat Jaradat trabalhava num posto de gasolina em Hebron, era casado e tinha dois filhos: uma menina de 4 anos e um garoto de 2. O terceiro está a caminho, com nascimento previsto para junho. O enterro, na vila de Sair, região de Hebron, onde ele nasceu, foi acompanhado por milhares de pessoas. O número só não foi maior porque o exército israelense cercou Sair e impôs severas restrições à movimentação de pessoas nas entradas de Hebron e dos vilarejos próximos. Também em Gaza milhares de manifestantes protestaram contra a morte de Jaradat.

são interna e internacional. As audiências nos tribunais de Israel indicam endurecimento, a despeito de os juízes estarem cientes da deterioração acelerada da saúde dos prisioneiros. Jafar e Tareq estavam sob detenção administrativa – isto é, sob acusação não formalizada, sem direito a processo e, portanto, sem direito a defesa. Samer e Ayman são acusados de violação dos termos do acordo que os libertou em outubro de 2011, na troca pelo soldado israelense Gilad Shalit, mas Israel se nega a dizer que violações foram essas. Os prisioneiros negam a acusação. Além disso, Samer e Ayman enfrentam o artigo 86 da Ordem Militar 1651, de 2009, que permite a uma comissão militar israelense obrigar prisioneiros

já libertados a voltar às celas para cumprir a totalidade da sentença a que foram condenados antes da libertação. Isso afeta de perto as pessoas soltas pelo acordo firmado entre o governo de Israel e o Hamas quando da troca de Gilad Shalit por mais de mil detentos políticos palestinos. Samer, por exemplo, cumprira 10 dos 30 anos de sentença quando foi libertado pelo acordo de outubro de 2011. Especula-se que ele será obrigado a cumprir os 20 anos restantes – se suspender a greve de fome, evidentemente, algo que ele já anunciou que não fará. Em 22 de fevereiro, apoiadores da causa palestina e ativistas de direitos humanos fizeram um jejum simbólico pela libertação dos quatro grevistas e dos mais de 4,8 mil prisioneiros políticos palestinos. O evento foi marcado e organizado pelas redes sociais, e envolveu milhares de militantes de todas as partes do mundo. Em 23 e 24 de fevereiro, foi a vez de os presos palestinos suspenderem a alimentação por 48 horas. Em vários países, petições e manifestações são realizadas semanalmente para pressionar o governo israelense a libertar Samer e seus companheiros, única maneira de salvar a vida do grupo. No Brasil, a Frente em Defesa do Povo Palestino, composta por mais de 60 entidades sociais e populares – ONGs, sindicatos, federações de trabalhadores, grupos pró-Palestina, partidos políticos – preparou um documento a ser entregue às autoridades brasileiras e israelenses. Em Gaza e na Cisjordânia, as manifestações, diárias, são reprimidas pelo exército de Israel com bombas de gás, granadas, balas de metal maciço recoberto de borracha e balas comuns, letais. São dezenas de feridos todos os dias, alguns – quase todos menores, muito jovens – gravemente. Mortes também já foram registradas. Segundo Ahmed Betawi, da Fundação Thadamon por Direitos Humanos, de Ramala, só em fevereiro foram mais de 350 detentos, dezenas de feridos e dois mortos em toda a Palestina (Cisjordânia e Gaza).

International Solidarity Movement

“Quando entrei no tribunal, vi Jaradat sentado diante do juiz. Ele tinha as costas arqueadas e parecia doente, fraco” Protestos de rua multiplicam-se Os palestinos não esperaram o resultado da autópsia para sair às ruas. No domingo, assim que a notícia da morte se espalhou, os protestos começaram. Ou melhor, continuaram, porque manifestações diárias já vinham sendo realizadas pela libertação de Samer Issawi, Ayman Sharawneh, Jafar Azzidine e Tareq Qa’adan. Os dois primeiros estão há mais de seis meses sem ingerir alimentos sólidos. Em 22 de fevereiro, Samer também cessou de tomar água e vitaminas. Jafar e Tareq suspenderam a greve em 28 de fevereiro, depois de 93 dias, ao receberem garantias de que serão libertados em 21 de maio, quando termina a atual ordem de detenção. Todos correm risco de morte. As autoridades judiciárias israelenses, no entanto, têm negado sistematicamente a libertação dos grevistas, apesar da presReprodução

Soldados israelenses disparam bombas de gás e balas de borracha em manifestantes

Israel teme a terceira Intifada Governo israelense sinaliza com liberação de verba; Abbas pede para palestinos não fazerem “jogo do ocupante” de São Paulo (SP)

O jovem palestino Arafat Jaradat

Receoso de uma revolta generalizada, o governo israelense ordenou à Autoridade Nacional Palestina (ANP) a manter a população sob controle. Como “estímulo”, prometeu liberar o dinheiro palestino de janeiro – Israel coleta os impostos devidos à Palestina e depois os repassa à ANP, que não tem nem mesmo como saber se os valores correspondem às taxas efetivamente pagas. O governo sionista congelou esses repasses em dezembro, em represália ao reconhecimento da Palestina como Estado observador das Nações Unidas. Embora obediente à ordem – mesmo porque não lhe resta alternativa –, Mahmoud Abbas, presidente da ANP, já declarou que o objetivo de Israel é “instaurar o caos” no Estado palestino, e pediu à população que não faça o jogo do ocupante. Em outras palavras: que não responda às provocações. Mas já houve enfrentamentos até mesmo entre soldados israelenses e a polícia palestina, um fato raro. E o próprio Fatah, partido de Abbas, apoia as novas ofensivas da resistência não violenta, como a retomada de ter-

ras palestinas por meio de acampamentos e a postura mais ativa, com manifestações diárias pela libertação dos presos políticos, particularmente os que estão em greve de fome. A Brigada dos Mártires de Al-Aqsa, ligada ao Fatah, já não descarta a resistência armada caso Israel continue a intensificar a violação dos direitos do povo palestino. A violência também vem de parte da sociedade israelense. Além dos colonos, cidadãos comuns de Israel se lançam ao ataque físico contra os palestinos. Há cerca de uma semana, uma palestina usando o hijab (lenço que cobre cabeça e pescoço das muçulmanas) recebeu socos e tapas de jovens mulheres israelenses enquanto esperava o trem, em Jerusalém, e teve o hijab arrancado. Ativistas internacionais que passavam pelo local fotografaram a agressão, que ocorreu às três da tarde da data em que os judeus comemoram o Purim, relato bíblico segundo o qual as artimanhas de Esther salvaram do extermínio a comunidade judaica da Pérsia. De acordo com as testemunhas, um policial israelense que estava por perto apenas assistiu à cena, sorrindo. Hamas e Fatah, que estão acertando as bases do acordo para a união dos partidos e facções palestinos, embora encorajem a resistência não violenta, pedem para a população evitar a terceira Intifada. Temem as consequências de uma revolta generalizada neste momento, politicamente delicado. No entanto, a agenda dos partidos não corresponde à do povo palestino, farto de violência e repressão. (BSA)


16

de 7 a 13 de março de 2013

áfrica

Neoimperialismo e a arrogância da ignorância U.S. Army Africa

OPINIÃO A presença continuada e o envolvimento crescente do Comando dos EUA na África só fará inflamar cada vez mais o relacionamento dos EUA com o Islã Franklin C. Spinney MUITOS ESTADUNIDENSES não veem o quão profundamente os EUA estão se envolvendo militarmente no turbilhão de conflitos que varrem a África Saariana e Subsaariana. Embora relatos recentes tendam a se concentrar na tentativa dos franceses para expulsar do Mali a Al Qaeda no Magreb Islâmico [Al Qaeda in Islamic Maghreb] Aqim - esforço que pode já estar se convertendo em complexa guerra de guerrilhas, a operação francesa não passa de versão, em pleno século 21, de disputa, à maneira do século 19, pelos recursos da África. É política que, do ponto de vista dos EUA, relaciona-se, bem provavelmente, ao “pivô em direção à China”, dado o crescimento do mercado e a presença chinesa na África na área de ajuda humanitária. Juntos, a disputa feroz e o “pivô” bastarão para desencadear no Pentágono um movimento de sequestro, no curto prazo, de todos os conflitos, com a correspondente cascata de dinheiro antevista no longo prazo. Ano passado, Craig Whitlock, do Washington Post, ofereceu um mosaico do envolvimento dos EUA na África. Publicou uma série de excelentes reportagens. É uma espécie de resumo das matérias de Whitlock (e outros), com informes para serem distribuídos às populações muçulmanas na África Central. Considerem-se as distâncias envolvidas nesse enxame de bases (os pontos vermelhos): só a distância entre as bases distribuídas no eixo noroeste-sudoeste no continente africano é maior que a distância entre Nova Iorque e Los Angeles. Consideremse as diferenças étnicas e tribais entre Burkina Faso e Quênia, sem contar as diferenças internas, dentro desses países. E lembrem que praticamente todo o norte da África, do Marrocos ao Egito, é mais de 90% muçulmano.

Bem poderão interpretar a corrente de bases do Africom na África Subsaariana como os tijolos iniciais de um covil gigante Por mais que a correlação entre populações muçulmanas e as atividades de intervenção estadunidense nesse mosaico de diferenças culturais sugira um leque de diferentes mensagens para diferentes públicos, só uma generalização é absolutamente garantida, dada a história recente das intervenções dos EUA: a presença continuada e o envolvimento crescente do Comando dos EUA na África (Africom), só fará inflamar cada vez mais o relacionamento dos EUA com o Islã militante e, talvez, também, com o número imensamente maior de islamistas moderados. Mas consideremos outras possibilidades, para que a loucura se generalize. Por exemplo: considerado o resultado da recente aventura líbia, os islamistas de mentalidade conspiracionista do norte da África (e, por que não, também muitos moderados), com inclinações para ler tendências a partir do formato das nuvens, bem poderão interpretar a corrente de bases do Africom na África Subsaariana como os tijolos iniciais de um covil gigante, que lá estará para acomodar uma nova geração de neocolonialistas europeus, que atacarão do norte, obedecendo à doutrina do presidente Obama que manda “liderar pela retaguarda”. Claro, dadas as distâncias envolvidas e a porosidade que aquelas distâncias implicam, tais divagações de mentes paranóicas não passam de tolices, de um ponto de vista militar. Mas, se se considera a trilha de mentiras assassinas que os EUA deixaram no Iraque; de incompetência, no Afeganistão; e de arrogante indiferença à sorte dos palestinos, que os EUA comprovaram, ao construir processos de paz que só facilitaram o crescimento de colônias israelenses ilegais, num roubo continuado de terras por Israel, que se

O envolvimento crescente do Comando dos EUA na África (Africom), só fará inflamar cada vez mais o relacionamento com o Islã

arrasta já por 40 anos, esse tipo de caracterização será moída no moinho da propaganda, como reles fulminações de mentes paranoicas. E, lembre: você é paranoico, mas, nem por isso, os EUA deixarão de sair, armados até os dentes, para acabar com você. Fronteiras artificiais Outro sentido da natureza metastática do envolvimento dos EUA na África pode ser inferido da carregada, terrorista-cêntrica, embora cuidadosamente construída verborragia das “respostas preparadas” que o general de exército David M. Rodriguez entregou à Comissão dos Serviços Armados do Senado, como material de apoio ao que disse, dia 12 de fevereiro deste ano, ao ser confirmado como novo comandante do Comando dos EUA na África, Africom. As “ameaças” terroristas na África Subsaariana, evidentemente tão tentadoras para os neoimperialistas do Africom, não existem isoladamente. Todas são intimamente conectadas à insatisfação étnico/tribal na África – tema ao qual Rodriguez alude, mas que absolutamente não analisa; nem o general nem seus ‘sabatinadores’ senatoriais, naquele jogo cuidadosamente coreografado de perguntas e respostas. Muitas dessas tensões, por exemplo, são, em parte, legado das fronteiras artificiais criadas pelos intervencionistas europeus no século 19. Aqueles intervencionistas deliberadamente traçaram fronteiras para misturar grupos étnicos, tribais e religiosos; assim contavam facilitar as políticas coloniais de “dividir para governar”. Os colonialistas do século 19 seguidamente exacerbaram deliberadamente as animosidades locais, impondo grupos minoritários em posições política e economicamente vantajosas, o que fazia crescer as ondas de descontentamento e revide. Stálin, aliás, usou a mesma estratégia nos anos 1920 e 1930 para controlar as repúblicas soviéticas muçulmanas, na região antes conhecida como Turquestão, na Ásia Central. Na URSS, o posicionamento dessas fronteiras artificiais entre aqueles novos “-stões” era amplamente conhecido como “pílulas de veneno” de Stálin.

As “ameaças” terroristas na África Subsaariana, evidentemente tão tentadoras para os neoimperialistas do Africom, não existem isoladamente A crise dos reféns na usina de gás no leste da Argélia, em janeiro passado, ilustra algumas dessas complexidades de profundas raízes culturais que sempre há nesses conflitos. Akbar Ahmed escreveu sobre isso, em mais um de uma série de ensaios fascinantes publicados pela Al-Jazeera. Essa série de matérias – que considero muito importantes – baseiam-se nas pesquisas para seu novo livro, no prelo, The Thistle and the Drone: How America’s War on

Terror Became a War on Tribal Islam [O cacto e o drone: como a Guerra ao Terror dos EUA converteu-se em guerra contra o Islã tribal], a ser publicado em março, nos EUA, pela Brookings Institution Press. Inimigos multiplicados O embaixador Akbar Ahmed é ex-alto comissário do Paquistão no Reino Unido, e ocupa agora a cátedra, apropriadamente batizada Cátedra Ibn Khaldun de Estudos Islâmicos da American University, em Washington, D.C. Considerado um dos pais da moderna historiografia e das ciências sociais, Ibn Khaldum é um dos especialistas mais influentes, no campo da historiografia, da natureza espontânea do tribalismo e de seu papel na construção da coesão social. O núcleo duro do trabalho do professor Ahmed acompanha essa inspiração. Visa a explicar porque a insatisfação espalha-se tão amplamente em todo o antigo mundo colonial, e como, parcialmente, tem raízes numa complexa história da opressão de grupos étnicos e em rivalidades tribais, em toda aquela região. Assim se criou uma teia de tensões entre os fracos governos centrais dos países ex-colônias e os grupos e tribos minoritários que os cercam.

Muitas dessas tensões, por exemplo, são, em parte, legado das fronteiras artificiais criadas pelos intervencionistas europeus no século 19 Ahmed diz que essas tensões foram exacerbadas pela resposta militar que os EUA deram ao 11/9. Explica por que as intervenções militares pelos EUA e outras potências europeias ex-coloniais só farão crescer a tensão que já existe entre os governos centrais daqueles países e os grupos oprimidos. Dentre outras coisas, Ahmed, talvez inadvertidamente, constrói uma crítica devastadora ao fracasso dos EUA, que não souberam respeitar os critérios de qualquer grande estratégia sensível, na reação ao 11/9. Ao confundir um crime horrendo com ato de guerra, e declarar guerra global ao terror, sem final previsto; e ao conduzir aquela guerra nos termos de uma grande estratégia classicamente falha, que assumia que “quem não está conosco está contra nós”, os EUA não apenas criaram inimigos que se multiplicam mais depressa do que seria possível matá-los; também, ao fazê-lo, os EUA, sem avaliar qualquer consequência, exacerbaram conflitos locais altamente voláteis, incrivelmente complexos, de raízes locais profundíssimas; assim, os Estados Unidos contribuíram para desestabilizar porções gigantescas da Ásia e da África. Sem avaliar consequências? É dizer pouco. Considere, leitor, o seguinte: muitos aqui já ouviram falar de Aqim e, provavelmente, também dos tuaregues. Mas quantos algum dia ouviram falar dos berberes cabila e de sua história na

Argélia? (Eu, nunca.) Pois, como ensina o professor Ahmed, os berberes cabila são os fundadores da Aqim – fundação que tem raízes profundas nos seus padecimentos históricos. Assim sendo, a Aqim é mais do que simples ‘desdobramento’ da Al-Qaeda. Nada disso aparece nas respostas do general Rodriguez, apesar de fazer repetidas referências à Aqim e à Argélia. Tampouco se aprenderão essas coisas daqueles senadores, ou de suas perguntas. Pode-se confirmar pessoalmente, em casa.

Assim se criou uma teia de tensões entre os fracos governos centrais dos países ex-colônias e os grupos e tribos minoritários que os cercam Faça uma pesquisa de palavras no “pacote de perguntas e respostas” do general Rodriguez: ninguém jamais encontrará ali nem vestígios da complexa história que Ahmed explica em seu ensaio para Al Jazeera, The Kabyle Berbers, Aqim, and the search for peace in Algeria [Os berberes cabila, Aqim, e a busca de paz na Argélia].(Tente, por exemplo, encontrar as palavras Aqim, Kabyle, Berber, history, Tuareg, tribe, tribal conflict, culture, etc. Ou use a própria imaginação). Além de perceber o muito que não se discutiu, observe também como o contexto centrado em ameaças que cerca todas as palavras sempre salta à vista. Compare a esterilidade de tudo que Rodriguez diz e a riqueza da análise de Ahmed. E tire suas próprias conclusões. E lembre: “Aqim” é apenas um dos verbetes, no portfólio de ameaças com que o Africom trabalha. E o quanto nós não sabemos, sobre os outros verbetes?

Assim sendo, a Aqim é mais do que simples ‘desdobramento’ da Al-Qaeda Como Robert Asprey mostrou em seu clássico War in the Shadows [Guerra nas sombras], em que estuda 2000 anos da história das guerras de guerrilha, o erro mais frequente, sempre cometido por quem pretenda intervir, vindo de fora, numa guerra de guerrilha, é sucumbir à tentação de deixar que a “arrogância da ignorância” modele seus esforços militares e políticos. Apesar de a arrogância da ignorância já afirmada e reafirmada no Vietnã, no Afeganistão, no Iraque e na Líbia... já começa a parecer que a conclusão intemporal de Asprey será mais uma vez reafirmada na África. (Counterpunch) Franklin “Chuck” Spinney é ex-analista militar do Pentágono, autor incluído na coletânea Hopeless: Barack Obama and the politics of illusion [Sem esperança: Barack Obama e a política da ilusão].


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.