Ano 2 • Número 53
R$ 2,00 São Paulo • De 4 a 10 de março de 2004
Leslie Mazoch/AP/AE
Encolhimento da economia leva as autoridades a pedir autorização aos EUA e ao FMI para investir no crescimento
Governo apela a Bush para reverter crise O
pífio desempenho da economia em 2003 – queda do PIB de 0,2% – parece ter assustado o governo. Além do encolhimento da riqueza produzida, a renda das famílias caiu e o desemprego disparou. Nada disso, porém, impediu que o Brasil fizesse o superávit primário de 4,25%, que o governo prometeu ao Fundo Monetário Internacional. Ano de eleições e críticas de aliados de primeira hora,
como a CUT, mudaram o discurso. Agora, Palocci e Lula pedem compreensão ao FMI para flexibilizar o superávit, ao mesmo tempo que o próprio presidente da República pede ao presidente dos EUA apoio à recente aspiração desenvolvimentista do governo. Paralelamente, o presidente do Banco Central garante que a política de ajuste continua. Os juros seguem nas alturas. Pág. 7
Na Venezuela, fraude para derrubar Chávez
Para dar apoio ao presidente Hugo Chávez, milhares de venezuelanos marcharam dia 29 de fevereiro, em Caracas
O presidente do Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela anunciou, dia 2, que são inválidas pelo menos 1,2 milhão das cerca de 3 milhões de assinaturas coletadas pela oposição para promover o referendo do mandato do presidente Hugo Chávez. Além dessas, mais 870 mil assinaturas foram colocadas sob suspeitas e terão de ser revalidadas, o que desagradou os antichavistas.
Hélvio Romero/AE
Contra a reforma agrária, volta o Banco da Terra O Banco da Terra, projeto financiado pelo Banco Mundial que prevê financiamento de lotes para assentamento de agricultores, está contemplado no Plano Nacional de Reforma Agrária do governo. Conforme o programa, 130 mil famílias serão assentadas, via concessão de crédito fundiário, sem desapropriação de latifúndios e com crescente endividamento do trabalhador. Pág. 8
Bancos privados ganham mais e rombo aumenta
Kerry não trará mudanças na política dos EUA Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o sociólogo estadunidense James Petras diz que as diferenças entre o virtual candidato democrata John Kerry e o presidente George W. Bush, em temas como guerra e economia, são “muito pequenas, ou inexistentes”. Pág. 11
AGÊ
Beneficiados por privatizações dos bancos estaduais, os bancos privados conseguiram recuperar no mínimo 80% do valor desembolsado nos leilões. E o Banco Central, antes de buscar soluções, optou por forjar prejuízos e criar falsos rombos para justificar o desmonte. Pág. 4
Estudantes do movimento Educafro reivindicam a implantação do sistema de cotas para negros na USP
E mais: TRANSGÊNICOS – Tribunal Internacional Popular julga, a partir do dia 11, a Monsanto e a Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), acusadas de serem as responsáveis pela introdução da soja transgênica no país. Pág. 3 DEBATE – Com a reforma trabalhista e sindical prevista para este ano, o senador Paulo Paim (PT-RS) e o deputado federal Vicentinho (PT-SP) discutem redução da jornada de trabalho. Pág. 14 CIDADE DE DEUS – Moradores da comunidade da zona oeste do Rio de Janeiro (RJ) fizeram um documentário que funciona de contraponto à produção de Fernando Meirelles. O vídeo não tem nenhuma cena de tráfico ou violência e procura valorizar a favela. Pág. 16
O vice-presidente José Rangel aponta o desgaste da oposição, que não tem mais militares para repetir o golpe de 2001, nem o apoio de grupos empresariais. Mas Roger Noriega, secretárioadjunto para a América Latina dos Estados Unidos, declarou que seu país “tem grande interesse em preservar e reerguer a democracia na Venezuela”. Pág. 10
Plínio Sampaio: grande decepção com rumos do PT Um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, o professor Plínio de Arruda Sampaio está decepcionado com o governo que, na sua opinião, está sem rumo, adotou uma política econômica “ingênua” e repete os erros de FHC. Coordenador do projeto original do Plano Nacional de Reforma Agrária, ele diz que a economia agrária mantém um equilíbrio perverso por gerar pobreza, miséria e dependência. Afirma também que o país vive uma crise e perde a oportunidade de se firmar no cenário mundial como nação soberana. Pág. 5
No Haiti, rebelião derruba o presidente Pág. 9
Rumos da Alca são definidos na surdina Pág. 10
Mulheres ainda sofrem com ações violentas Pág. 13
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CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Tiago Rodrigo Dória • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
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NOSSA OPINIÃO
Em defesa do povo venezuelano
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escobrir o que está ocorrendo, de fato, na Venezuela, se tornou uma tarefa difícil para qualquer cidadão brasileiro ou mesmo do restante do mundo. A julgar pelo retrato que faz a mídia alinhada com a elite venezuelana e com os Estados Unidos, o presidente Hugo Chávez está prestes a cair. Nada mais enganoso. Vamos aos fatos. A oposição se encontra, hoje, em uma situação complicada. Segundo manda a Constituição, são necessárias as assinaturas de 20% (2,4 milhões de venezuelanos) do eleitorado para exigir a convocação de um referendo sobre o mandato presidencial. Tal tarefa não seria difícil de ser atingida se realmente as mobilizações da oposição estivessem sendo massivas, como tenta mostrar a grande mídia, inclusive a brasileira. No entanto, como Chávez possui o apoio da imensa maioria da população, os grupos oposicionistas não estão conseguindo cumprir essa tarefa, nem com o apoio financeiro dos Estados Unidos. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE), uma instituição independente, avaliou que 1,2 milhão das 3 milhões de assinaturas recolhi-
das pela oposição foram forjadas e serão descartadas. Foram encontrados lances grotescos de fraudes, como nomes em duplicidade, assinatura de menores de idade ou de pessoas mortas e páginas em branco. Além dessas, cerca de outras 870 mil assinaturas – suspeitas de fraude por terem sido preenchidas pela mesma caligrafia – estão sob observação e poderão ser revalidadas. Ou seja, as assinaturas sob suspeita serão submetidas a uma confirmação a ser feita pelos próprios eleitores. Nada mais democrático. Mesmo assim, a oposição acusa o CNE de estar a serviço de Chávez. Logo depois do anúncio, Roger Noriega, assessor de Bush para a América Latina, disse que o presidente venezuelano, eleito pelo povo em 1998, ameaça a democracia. Noriega disse, ainda, que os Estados Unidos estão dispostos a defender os valores democráticos em todo o continente. Tudo isso mostra que se a oposição estivesse mesmo tão forte no país, não precisaria tanto alarde ou mesmo desencadear uma crise, com protestos violentos, por conta da validação das assinaturas. Prova de
que o governo Chávez segue firme, como mostraram os mais de 100 mil venezuelanos que, dia 29, tomaram as ruas de Caracas para defender seu governo contra a elite entreguista e a ofensiva imperialista de George Bush – que, por sinal, elegeu-se devido a uma fraude eleitoral. Outro exemplo da força do presidente venezuelano foram as mobilizações em defesa de Chávez que ocorreram em 29 cidades do continente americano, dia 1º de março. Milhares de pessoas, inclusive no Canadá, foram até as embaixadas estadunidenses protestar contra a política intervencionista de George Bush. O lema da manifestação foi “respeito às instituições democráticas latino-americanas” e deu provas de que, hoje, agir em solidariedade ao governo venezuelano é defender o direito de autodeterminação dos povos. Hoje, cabe a todos os militantes sociais, a todos os setores progressistas e de esquerda defender o processo popular da Venezuela, da sanha da política belicista de Bush que quer impedir os avanços populares naquele país.
FALA ZÉ
OHI
CARTAS DOS LEITORES CAMARÃO SUSTENTÁVEL Leio e divulgo o jornal Brasil de Fato desde o seu lançamento, e muito tenho me informado com vocês. Porém, levanto alguns questionamentos sobre vossas fontes. Li uma reportagem sobre a criação de camarão “sustentável” no Nordeste. Observo que é importante novas alternativas para a geração de emprego e renda no Nordeste, porém essa criação “sustentável” vai gerar renda e emprego para quem? A certificação dos biodinâmicos é o suficiente para atestarmos a “sutentabilidade”? Existem movimentos de redes de credibilidade na certificação, para fugir da dependência dos “gringos”, e do ganho fácil em cima da marca monopolizada? Sobre a “sustentabilidade”, questiono como ficam os catadores de carangueijos dos mangues. Onde vão os dejetos dos produtos químicos dessas criações e qual é a remuneração e a condição legal dos trabalhadores desses negócios? Somos (a esquerda) contra a introdução de espécies exóticas sem estudos de impacto ambiental? Não sei qual é vossa fonte nesse assunto, porém devem ficar mais atentos, pois o fato de ser alguém com histórico de luta não significa que a pessoa não possa ter uma visão deturpada. Não caiam facilmente na tentação de achar que “como há problema com os americanos, é bom para nós”. Que setores da oligraquia noderdestina estão transferindo capital para esses projetos? Felipe Banchic Garcia Neuwald por correio eletrônico SAUDAÇÕES Foi com muito prazer que renovei minha assinatura para o jornal. Guardo todos os números desde a edição número zero. De fato, já tenho uma biblioteca de referência em casa. Apesar de achar o jornal um tanto denso, continuo
apoiando o esforço de Brasil de Fato de apresentar a verdade – sempre reconhecendo que existem três verdades: a minha, a tua e a Verdade. Padre Tiago Thorlby Comissão Pastoral da Terra, por correio eletrônico TRABALHO TERCEIRIZADO Como se não bastasse o trabalho escravo existente por quase todo o território brasileiro, em especial nas regiões Norte e Nordeste, onde impera um coronelismo mais forte e atuante, por vezes até mesmo praticado por conhecidos políticos, enfrentamos um outro tipo de trabalho escravo, apresentado de forma disfarçada. Refiro-me ao chamado “trabalho terceirizado”. É uma intermediação, uma clara exploração da mão-de-obra, seja ela qualificada ou não. O trabalhador sabe que mesmo ganhando pouco estará momentaneamente empregado e, na mairia das vezes, sem maiores direitos. Infelizmente, o número dessas chamadas empresas – algumas verdadeiras arapucas – cresce cada vez mais. O próprio governo, desrespeitando o aproveitamento de concursados aprovados, é quem mais vem lançando mão dos chamados serviços terceirizados e, estranhamente, com custo superior ao que tem com o funcionário regular. João Carlos da Luz Gomes Porto Alegre (RS) ERRAMOS Na reportagem “Filiados históricos recebem homenagem”, página 7, edição 51, ao contrário do que diz o texto – por um erro na edição do texto e não na apuração da reportagem – o presidente do PT, José Genoíno, não tentou se justificar pela crise no partido, apenas comentou a situação.
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CRÔNICA
De Xuxa a Macunaíma Luiz Ricardo Leitão Uma parte deste país pensa que nasceu na Europa, com fumos de nobreza e fidalguia. Já os plebeus de Pindorama são ameríndios que nasceram negros e um dia ficaram brancos, depois de se banhar nas águas mágicas de um rio, mas continuam a gerar filhos escuros como a noite em suas andanças por este mundão de muitos caciques. Os dois Brasis vivem juntos há cinco séculos, a cada dia mais desiguais, porém às vezes se encontram na avenida, como sói acontecer nessa festa louca que se chama carnaval. Em um desfile de escola de samba, onde tudo é pura alegoria, o desencontro histórico passeia diante das câmeras com enorme sarcasmo e ironia. Vejam só a Caprichosos de Pilares, simpática agremiação suburbana que um dia ousou proclamar: “Brasil com Z jamais!” Para continuar no grupo especial do carnaval carioca, ela decidiu homenagear Xuxa, um ícone do shopping Brazil, cuja trajetória meteórica nas telas terminou por fazer da antiga modelo pornô uma verdadeira pop star do imaginário nacional. A “escolha” nada possui de inusitado. Há muito tempo as escolas do Rio de Janeiro vêm elegendo temas “rentáveis” para seus enredos. A própria Mangueira, um patrimônio do povo carioca, não resistiu à fórmula e exagerou na dose, quando resolveu mostrar no Sambódromo a vida (?) de Chico Recarey, um dono de casas
noturnas envolvidas em escândalos de lavagem de dólares. Outras saíram de pires na mão e foram bater às portas de governos e empresas estatais, vendendo seu nome em troca de pífias celebrações dos encantos de seus patrocinadores (basta recordar, neste ano, a apologia do álcool combustível, que rendeu ao Salgueiro a bagatela de R$ 1 milhão e 200 mil). O feitiço, de fato, costuma virar contra o feiticeiro, mas a Escola de Pilares nada aprendeu com a lição das “co-irmãs”. Apesar da projeção que obteve na mídia, seu desfile foi uma triste caricatura de carnaval. Mesmo com milhares de holofotes sobre a estrela, faltou emoção na passarela — e ela acabou em penúltimo lugar no grupo especial. A Globo, que há décadas vem lucrando com a sua mercadoria, procurou amenizar o desconforto da situação, mas as emendas — como sempre — saíram piores que o soneto: o desfile da “celebridade” serviu apenas para evidenciar o deslocamento do mundo virtual em meio a uma festa que, apesar da crescente comercialização, ainda resiste à sua conversão em mais um espetáculo da indústria cultural transnacional. Do outro lado de Pindorama, a Unidos de São Clemente decidiu contar a história do “171” (a “tramóia”) no Brasil, desde os tempos de Nassau, em Recife (o holandês ficou célebre por cobrar pedágio em uma ponte, prometendo aos incautos usuários exibir um “boi voador”
do outro lado do rio), até os dias atuais. É óbvio que uma só noite não bastaria para todas as mentiras oficiais; mesmo assim, a seleção feita pela irreverente escola foi um banquete de humor, a começar pelo carro abre-alas, com Macunaíma à frente. Preguiçoso, mulherengo e ladino, o “herói sem nenhum caráter” já foi visto como um símbolo de nossa gente, mas a História nos ensinou que oportunista e ociosa é a sua elite, os “coronéis” e banqueiros que subtraem a nossa pátria em tenebrosas transações. Como o sociólogo dos príncipes, FHC, pedindo com desfaçatez aos eleitores que esquecessem tudo quanto havia escrito. Ou um outro Fernando, alagoano que vive em Miami, prometendo justiça aos descamisados, para roubar-lhes até o pé de meia... A lista é longa, não é verdade? Por isso, apesar da leveza e originalidade, a São Clemente não logrou muito êxito. Ficou em último lugar no desfile, segundo o critério dos jurados, e foi rebaixada ao 2º grupo. Para que dizer que o rei está nu? Zombar dos poderosos em cadeia nacional pode custar caro ao folião... Luiz Ricardo Leitão é editor, escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-Americana e Caribenha pela Universidade de La Habana, é autor de ¿A dónde va la telenovela brasileña? El folletín electrónico en la sociedad del espetáculo (Editora Ciencias Sociales, Cuba)
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NACIONAL SOBERANIA ALIMENTAR
Vamos comer o que eles querem? A
tento a um cenário político onde o agronegócio domina as negociações e os discursos do Planalto, o engenheiro agrônomo Sebastião Pinheiro alerta: a tese de que o Brasil alimentaria o mundo, cunhada na ditadura militar, volta com força total. Só que, desta vez, ancorada pelos transgênicos e pelos interesses do livre comércio. “Quem administra o Brasil é um conjunto de condomínios de transnacionais dirigido pela Organização Mundial do Comércio”, afirma Pinheiro. Ao avaliar as conseqüências do plantio de transgênicos, ele aponta o caso da Argentina e conta que 2.700 pomares desapareceram, em menos de cinco anos, por causa das lavouras de soja geneticamente modificada. Brasil de Fato – As políticas de soberania alimentar passam pelas decisões da Organização Mundial do Comércio (OMC)? Sebastião Pinheiro – Plenamente, pois as transnacionais de sementes querem que aceitemos a segurança alimentar, definida pela OMC/Organização das Nações Unidas (ONU). Assim se garante a segurança de comer o que eles querem e não o que a nossa cultura determina. Os transgênicos, por exemplo, são a opção para os que não têm dinheiro. BF – O modelo de produção das últimas décadas no país é para alimentar a população? Pinheiro – Nos países ricos, soberania alimentar implica políticas públicas no âmbito da segurança de Estado. Nos Estados Unidos, o assunto é tratado como caso militar até mesmo pelos agricultores. Nos outros países, como o nosso, tivemos os “Alisson Paulinellis” – ministro da Agricultura na ditadura de Ernesto Geisel – parecidos com o nosso atual ministro, Roberto Rodrigues, que diziam que o Brasil ia matar a fome do mundo. Isso foi cunhado até na moeda brasileira. Nossa sorte é que a moeda não circulou por muito tempo por causa da inflação. O que fazemos agora? Pagamos royalties a transnacionais para vender sem impostos (sem pagar a depreciação da terra, seu envenenamento, esgotamento etc.). E ninguém pergunta o que significa isso. Os EUA sabem muito bem o que significa isso. Brigamos para não ter impostos, mas estamos pagando royalties. BF – Como garantir a produção de alimentos para a população sem enfrentar os interesses do agronegócio? Pinheiro – Os estadunidenses têm um ditado secreto da época da independência: “Onde o alimento é caro ou escasso, há rebelião”. Assim, os ricos sabem que a política de produção para o agronegócio (chamada cash crop), que transforma a produção em dinheiro, “não inibe rebeliões”. No Brasil, quem tem poder é o “ministério do cash crop”, ou seja, o ministro da Agricultura. Essa política é diferente da política de alimento na mesa. Quem planta alimento para a mesa não tem poder. BF – Quais as conseqüências da redução de áreas de plantio de alimentos básicos para o avanço de campos de monoculturas? Pinheiro – As conseqüências de mercado: alimentos escassos ou mais caros. O caso da Argentina é exemplar. Na Argentina existe uma campanha na qual a esposa do presidente da República distribui farinha de soja para mães
Plantação de transgênicos da Monsanto, em Santa Cruz das Palmeiras (SP) Símbolo de identificação de transgênico deveria constar nos produtos desde 26 de fevereiro Jornal Mundo Jovem
Claudia Jardim da Redação
Greenpeace/Rodrigo Petterson
Especialista alerta: estratégias de dominação estão por trás dos transgênicos
Quem é Sebastião Pinheiro – Esse engenheiro agrônomo e florestal, um dos principais especialistas na América Latina sobre agroecologia e transgênicos, é um crítico feroz dos transgênicos. Pinheiro é autor do livro Agricultura Ecológica e a Máfia dos Agrotóxicos e da Cartilha Sobre Transgênicos.
pobres fazerem croquete. O país que mais comia carne no mundo agora come soja, mas com soberania. Mantém sua soberania comendo croquete. É o que vai acontecer aqui. BF – Quais têm sido as conseqüências do plantio de sementes transgênicas? Pinheiro – Devemos falar de sementes de soja contrabandeadas e ilegais, pois não há outra. Há perda de produtividade, mas isso não interessa às lideranças rurais do Rio Grande do Sul. Todas estão interessadas em participar dos serviços que agora cooperativas, técnicos, comerciantes poderão executar para uma grande empresa. É a terceirização da agricultura em nome do agricultor. Pela minha ótica, o que está ocorrendo na Argentina e no Canadá com a expulsão de 617 mil pequenos agricultores familiares, no primeiro, e mais de 80 mil agricultores familia-
res, no segundo, aqui no sul do Brasil será uma grande catástrofe. Aqui eles primeiro deixarão de plantar milho, feijão, para aumentar a área de soja; depois, serão obrigados – pela vergonha da pequena “escala” – a vender suas terras aos vizinhos. A Argentina é o caso mais chocante, mas que ninguém quer ver. Foram 3 mil tambos leiteiros e mais de 2.700 pomares desaparecidos em menos de cinco anos por causa do plantio de transgênicos. Hoje os argentinos importam frutas e leite. BF – Outro exemplo da soja transgênica vizinha é a chamada “morte súbita”. Como isso acontece? Pinheiro – É a nova enfermidade do solo que faz desaparecer grandes áreas de soja saudáveis do dia para noite. Devido a uma vigorosa infestação de fungos do tipo Fusarium, que destrói toda a planta. O agricultor chega na lavoura e toda a produção está morta. BF – No Brasil, qual o grau de evolução das discussões sobre transgênicos?
Pinheiro – 90% são medíocres, principalmente as pretensamente acadêmicas. No país os professores falam de política comercial de empresa e chamam isso de ciência. 50% são corruptas, nem todos fazem a discussão de forma aberta. Seja por ideologia, ignorância ou oportunismo. BF – O símbolo de identificação dos transgênicos deveria estar nas embalagens desde 26 de fevereiro. O senhor já viu algum alimento rotulado? Pinheiro – Na Alemanha e na França, sim. O Brasil está sendo acusado internacionalmente por dificultar a rotulação. Quem está querendo proibir, se o codigo de defesa do consumidor exige a informação no rótulo? De repente, a Monsanto atua em lugares que não sabemos onde ela está. No Brasil, a burguesia sempre fez de conta que administrava o Estado para todos. Há muitas pessoas ingênuas que acreditam que isso acabou. Quem administra o Brasil é um conjunto de condomínios de transnacionais dirigidos pela OMC.
Tribunal julga Monsanto e Farsul A Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul) e a transnacional Monsanto vão para o banco dos réus. Como testemunhas do processo, organizações nacionais e internacionais. O júri será composto por parte da sociedade civil. Assim será instalado, dia 11 de março, o Tribunal Internacional Popular sobre os Transgênicos, promovido por movimentos sociais brasileiros empenhados em ampliar o debate sobre organismos geneticamente modificados e denunciar os responsáveis pela introdução da soja transgênica no país. O tribunal, realizado em Porto Alegre (RS), “será o momento de ouvir argumentos contra e a favor, de tirar dúvidas para que a sociedade possa participar de um processo até então pouco democrático”, segundo Glauci Arzua, da ActionAid Brasil, uma das organizações integrantes do Tribunal. Além de cientistas, agrônomos e juristas nacionais, farão parte do Tribunal representantes de organizações e universidades da Argentina
e do México – países que cultivam transgênicos. “A idéia é mostrar os efeitos dos transgênicos nesses países e informar a população que esse não é um problema exclusivo do Brasil”, esclarece Eduardo Faria, da Rede Nacional de Advogados Populares (Renap).
POUPADO, POR ENQUANTO Apesar de ter sido duramente criticado por beneficiar os produtores que descumpriram a legislação, o governo federal, a princípio, não será levado ao banco dos réus. “Se for concluído que o governo deve ser também responsabilizado, será feita uma menção de forma indireta”, explica Faria. O veredicto não terá caráter jurídico, mas político. A idéia é fazer com que as 4 mil pessoas que devem participar do encontro possam intervir nas discussões do Congresso sobre o tema. Na função de promotor, o procurador da República Aurélio Rios adianta que os principais pontos da acusação serão a omissão do governo federal, a prática ilegal de introdução das sementes e o lo-
bby feito pela Monsanto junto aos meios de comunicação e ao governo. “É bom não perder de vista o que está sendo atropelado com a polêmica da Lei de Biossegurança. Há um solene descumprimento da Constituição e das decisões da Justiça”, alerta Rios. A Farsul, acusada de facilitar a entrada das sementes no Estado; e a Monsanto, acusada por contrabando da soja transgênica, se negaram a receber, dia 17, as citações encaminhadas pelo presidente do Tribunal, juiz José Felipe Ledur, do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. O porteiro do prédio da transnacional informou que os funcionários estavam em férias coletivas. Na Farsul, um dos diretores da federação impediu que os “oficiais” do Tribunal entregassem a citação. Mas Faria garante que as citações serão enviadas por correio: “Eles devem trazer seus argumentos e indicar seus técnicos para participar da perícia”. Por enquanto nem a Monsanto, nem a Farsul não se manifestaram. (CJ)
Conselho da Europa condena manipulação de TVs públicas A Televisão Espanhola (TVE), a Radiotelevisão Italiana (RAI) e a BBC de Londres são algumas das redes públicas de TV citadas em uma Resolução da Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa que condena os respectivos governos pela prática de manipulação informativa. A emissora espanhola, sob pressão governamental, foi condenada por manipular informações na cobertura da greve geral da Espanha em 2002. O Conselho Europeu também acusa a RAI de excessiva politização, agravada por pressões do atual governo de Berlusconi. Com relação à BBC de Londres, a Resolução cita que a emissora foi fortemente atacada pelo governo de Tony Blair em razão de sua cobertura da guerra do Iraque. A Resolução conclama os governos a abster-se de ingerências políticas sobre a radiodifusão pública e defende que a mídia deve ser forte e independente. A TV árabe Al Jazeera volta a ser censurada no Iraque Confrontando a tese da democratização do Iraque, defendida pela aliança militar que ocupa o país, a TV árabe Al Jazeera voltou a sofrer censura em suas atividades. O comando militar estadunidense-britânico proibiu a emissora de fazer reportagens sobre qualquer ato oficial e de ingressar em edifícios governamentais durante um mês. A emissora já havia sido vetada em suas atividades jornalísticas em setembro do ano passado. Governo lança portal sobre os programas de computador gratuitos Na maior iniciativa mundial de adoção dos programas de computador gratuitos, chamados software livre, o governo federal lançou o portal www.softwarelivre.gov.br como instrumento de implantação do Planejamento Estratégico para Implementação de Software Livre. Na página da internet estão listadas as diretrizes do planejamento, as principais ações do governo, notícias e suporte para interessados. Apesar do lançamento, a implantação efetiva do software livre no Brasil, que poderia proporcionar enorme economia de recursos públicos hoje destinados ao pagamento de royalties para empresas como a Microsoft, está bastante lenta. Aliás, a implantação do software livre é um dos temas polêmicos no interior do governo, tendo causado divergências entre a Casa Civil e o Ministério da Educação, durante a gestão Cristóvam Buarque. TVs Câmara e Senado poderão ser transmitidas em canal aberto As programações da TV Câmara e da TV Senado poderão ser transmitidas gratuita e obrigatoriamente para todo território nacional, por canal aberto. A abertura do sinal viria superar uma grave contradição contida na atual lei da cabodifusão: as emissoras são sustentadas com recursos do contribuinte, mas só podem ser captadas mediante a compra de uma assinatura de tv paga. Ou seja, além do caráter elitista da lei, está configurada uma bi-tributação sobre o contribuinte. Para o autor do projeto, senador Paulo Otávio, “o fato de um brasileiro humilde do interior da Amazônia poder assistir a uma programação gerada em Brasília, no Congresso Nacional, é suficiente para aprovarmos essa proposta, que certamente dará maior visibilidade e transparência às atividades parlamentares”.
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NACIONAL FARRAS DA PRIVATIZAÇÃO
Como criar um rombo de R$ 133 bilhões Na venda dos bancos estaduais, o governo devolve aos bancos privados quase tudo o que desembolsaram
DINHEIRO RECUPERADO Num balanço preliminar e incompleto, que não leva em conta todas as vantagens fiscais desfrutadas pelos grandes conglomerados financeiros na compra de bancos estaduais, e mantidas sob conveniente sigilo pelo Banco Central, aqueles grupos privados conseguiram recuperar no mínimo 80% do valor desembolsado nos leilões de privatização. Em valores não atualizados, desde a venda do Banerj até o dia 10 de fevereiro de 2004, com o leilão do Banco do Estado do Maranhão (BEM), a privatização resultou numa receita de R$ 11,4 bilhões, total teoricamente desembolsado por
PREJUÍZOS INVENTADOS Na maioria dos casos, os governos foram levados a transferir seus bancos para o governo federal, como condição para terem suas
12.4
DE REPENTE, LUCROS De um momento para outro, o Banespa voltou a dar lucros, mas seu destino estava selado. O controle foi arrematado pelo Banco Santander Central Hispano (BSCH), da Espanha, por R$ 7.05 bilhões – 281% mais do que o preço mínimo estabelecido (R$ 1.85 bilhão), em leilão realizado em 22 de novembro de 2000, seis anos depois da intervenção. Naquela época, o Banespa tinha 2.8 milhões de clientes (quase o dobro do número de clientes do seu novo controlador), 573 agências, depósitos de R$ 19.5 bilhões e ativos totais de R$ 29.5 bilhões. O valor efetivamente pago pelos
58.9 bi
Receita com operações de crédito
No processo de liquidação do Banco do Estado de Goiás (BEG), comprado pelo Itaú em dezembro de 2001, o BC obrigou o BEG a considerar como perdidos até mesmo créditos garantidos pelo Tesouro, ou pelo próprio BC. O banco foi obrigado a lançar como prejuízo empréstimos de longo prazo, que só poderiam ser cobrados pelo BEG no futuro, quando vencessem as parcelas do financiamento. Voltando ao Banespa, a mesma exigência foi apresentada pelo
15,6%
** 41 empresas não-financeiras
45.3 bi 38.7 bi
Os maiores lucros financeiros
Receitas com tarifas Banco
17.5 bi 20.8 bi
Lucro líquido 11.9 bi 12.4 bi
Rentabilidade 25,4% 21%
Inadimplência 2,1% 1,3% * Balanços de 18 bancos
dívidas com a União renegociadas. Em troca, receberam novos financiamentos do Tesouro Nacional, a pretexto de cobrir rombos nos bancos estaduais, fabricados por expedientes e manobras adotadas pelo BC. O Proes liberou, considerando apenas os 12 bancos já privatizados, um total de R$ 143,1 bilhões, em valores atualizados com base
Evelson de Freitas/Folha Imagem
DEMISSÕES A RODO
10
Patrimônio
Representantes do Banco Santander comemoram compra do Banespa
espanhóis não passou de R$ 2.6 bilhões, pouco mais de um terço do preço declarado. Tudo porque o Santander pôde utilizar R$ 4.4 bilhões em créditos acumulados pelo Banespa enquanto ainda era estatal, correspondentes a prejuízos registrados no passado, ou a impostos recolhidos a mais pela instituição.
21%
2003
46.8 bi
Rentabilidade
Empresas
2002
Manobras para fabricar prejuízos Antes mesmo de buscar soluções para as dificuldades reais enfrentadas por alguns bancos estaduais, o Banco Central preferiu forjar prejuízos ainda maiores, criar falsos rombos para justificar o desmonte. O caso do Banespa foi um dos mais notórios, então. Ao intervir no banco, na virada de 1994 para 1995, o BC alegou que o banco tinha um rombo de mais de R$ 50 bilhões, correspondentes ao dinheiro que o governo de São Paulo devia ao Banespa. Meses depois, a União aceitou parcelar toda a dívida de São Paulo com o banco, àquela altura já transferido para o controle do BC. A dívida de R$ 52.5 bilhões do governo paulista, que serviu de pretexto para a intervenção, foi renegociada e transformada em títulos federais pela União. Os títulos foram transferidos ao Banespa e passaram a render juros ao banco.
Lucro Líquido
Bancos
(R$ bilhões)
Empresas
N
o ano passado, os sete maiores bancos do país, entre eles dois estrangeiros, registraram lucros recordes, coisa de mais de R$ 14 bilhões. Apenas para comparação, o valor corresponde a todo o orçamento definido para o poder Judiciário em 2004. Não por coincidência, com as honrosas exceções do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, todos os demais entraram na farra das privatizações dos bancos estaduais, patrocinada pelo governo federal – vale dizer, com o dinheiro do contribuinte. A política de juros altos e a cobrança de tarifas cada vez mais salgadas explicam, em grande parte, aqueles lucros. Uma outra parte deles, no entanto, tem sido turbinada, desde junho de 1997, quando o Banco do Estado do Rio de Janeiro (Banerj) foi literalmente doado ao Banco Itaú, conforme o figurino do desmonte dos bancos estaduais.
2003, um ano sem igual*
Mercado Financeiro X Produção ** (R$ bilhões)
Bancos
Itaú, Bradesco, ABN Amro (holandês) e Santander (espanhol) para assumir o controle de uma dúzia de bancos estaduais. Nesta operação, os grupos privados assumiram créditos de pelo menos R$ 9,1 bilhões, que puderam ou serão utilizados para reduzir ou cancelar impostos já apurados, ou que ainda serão incorridos nos anos seguintes. O resultado líquido dessa conta, que pode minguar ainda mais, quando toda a contabilidade das privatizações for aberta à sociedade, atingiu apenas R$ 2,3 bilhões, ou seja, menos de 20% do que foi arrecadado nos leilões de privatização. A receita paga algo mais do que 55% do patrimônio líquido somado dos doze bancos vendidos (R$ 4,1 bilhões). Isso quer dizer que perto de 46% daqueles recursos, ou quase R$ 2 bilhões, foram literalmente doados aos bancos particulares. O tamanho do papagaio espetado na conta do desmonte dos bancos estaduais, no entanto, não se resume a isso. Para obrigar os governos estaduais a entregar seus bancos, o governo Fernando Henrique Cardoso criou o Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária (Proes). O programa fez parte de uma operação mais ampla, criada para manipular informações, fabricar prejuízos e jogar a opinião pública contra aqueles bancos, facilitando sua privatização em condições ultravantajosas para seus compradores.
Lauro Jardim de São Paulo (SP)
BC em relação a títulos da dívida externa brasileira, que têm garantia plena da União – ou seja, não poderiam ser considerados como prejuízo. O modelo foi o mesmo em todas as privatizações. Com um detalhe: na fase anterior à venda, por conta de ajustes cobrados pelo BC, os bancos estaduais demitiram a rodo, a pretexto de reduzir despesas e entregar aos novos donos instituições enxutas, sem dívidas, prontas para lucrar. Só o Banerj, vendido por míseros R$ 150 milhões (os outros R$ 160 milhões foram pagos com moeda podre), demitiu 12,7 mil funcionários. No Banco do Estado do Maranhão (BEM), recém-privatizado, o quadro de pessoal foi reduzido em quase 70%, com 1,2 mil demissões. Despesas que ainda não estão relacionadas na contabilidade da privatização. (LJ)
LUCRO
Ano
Banespa
4.102
1997
Banco do Brasil
3.523
1988
Itaú
3.252
2001
. Itaú
3.152
2003
Itaú
3.084
1999
Banespa
3.034
2002
Bradesco
2.954
2001
Banco do Brasil
2.950
1987
Itaú
2.766
2000
Banespa
2.756
1996
Bradesco
2.615
2000
Itaú
2.559
2002
Banco do Brasil
2.381
2003
Bradesco
2.306
2003
Banco do Brasil
2.183
2002
(R$ milhões)
Fontes: Austin Asis e Economática
na variação do dólar. A conta sobe para R$ 152,2 bilhões se forem somados os créditos fiscais, dinheiro em caixa e outros recursos transferidos aos novos donos dos bancos estaduais. Também em números atualizados até o início deste ano, a venda das ações dos bancos estaduais pelo BC rendeu R$ 18,8 bilhões. A diferença entre os dois valores
alcançou, até aqui, perto de R$ 133,4 bilhões – somados à dívida dos Estados, que hoje se aproxima de R$ 280 bilhões. Na prática, a conta tem sido paga pelos governos estaduais e seus contribuintes, já que uma parte não desprezível das receitas dos impostos está sendo desviada para o pagamento de juros e das prestações daquela dívida.
Vale-tudo pelos lucros dos bancos privados Na campanha arquitetada pela equipe econômica do governo FHC, esqueceu-se deliberadamente que os bancos estaduais foram forçados, ao longo de anos, a financiar atividades de baixo retorno, cumprindo uma função recusada pelos bancos privados, assim como tiveram que engolir dívidas dos governos estaduais e de suas estatais. Aquelas operações trouxeram, claro, prejuízos para os bancos estaduais, o que não significava dizer, no entanto, que sua situação era insolúvel. Os prejuízos acumulados no passado geraram créditos que poderiam, nos anos seguintes, quando os bancos voltassem a ter lucros, ser utilizados para reduzir impostos a pagar, deixando mais recursos em caixa para financiar o crescimento daquelas instituições. Paradoxalmente, os créditos tributários gerados pelos bancos estaduais, como resultado de prejuízos passados e impostos pagos a mais, foram transferidos a seus novos donos, permitindo-lhes abater substancialmente os valores alcançados nos leilões de privatização. Este tipo de informação não está ao alcance do cidadão comum, e tampouco é apresentada nos editais de venda dos bancos estaduais.
MAROTAGENS ESCONDIDAS É preciso escarafunchar balanços para descobrir o que está por trás dos números e descobrir as marotagens feitas pelo Banco Central. Para evitar perdas, os bancos fazem provisões, ou seja, reservam
um pedaço de seus recursos para cobrir atrasos no pagamento de empréstimos, bancar eventuais prejuízos em operações mal realizadas. Quando os devedores acertam suas dívidas, as provisões ficam liberadas, transformam-se em lucros. Além disso, quando o valor de venda dos bancos estatais (e de outras empresas públicas) supera o seu patrimônio líquido, essa diferença pode ser usada pelos compradores para abater impostos, no futuro, alargando seus ganhos. A próxima estrela do desmonte deve ser o Besc, Banco do Estado de Santa Catarina. Com ativos de R$ 3.3 bilhões, a instituição tem créditos fiscais de R$ 536 milhões – o que significa novas possibilidades de lucro fácil para os bancos privados que têm disputado os leilões de privatização. Para completar, o BC voltou a admitir o uso de moedas podres na privatização dos bancos dos Estados de Goiás, Amazonas, Maranhão (todos já vendidos), Santa Catarina, Ceará e Piauí. Compradas com desconto, aquelas moedas permitiram que o Bradesco, por exemplo, tivesse um ganho estimado em R$ 7 milhões na compra do BEM. O detalhe final: para facilitar a venda do BEM, o BC reduziu o preço mínimo da instituição estadual de R$ 87,2 milhões, conforme havia fixado no leilão frustrado de 10 de junho de 2002, para R$ 77,2 milhões em fevereiro deste ano. (LJ)
5
De 4 a 10 de março de 2004
NACIONAL CONJUNTURA
O Brasil perde o bonde da história
Brasil de Fato – O senhor acha que a desesperança está vencendo a esperança? Plínio de Arruda Sampaio – Acho que estamos em uma encruzilhada muito difícil da história do país. É o momento que o Brasil tem para se firmar como nação. Mas, para isso, deveria realizar reformas estruturais, para ficar mais autônomo. Nesse momento, é realizada no mundo uma nova divisão internacional do trabalho. O capitalismo está definindo quem vai fazer as coisas que dão dinheiro e quem vai fazer as coisas secundárias, que não dão dinheiro. Agora, o Brasil deveria firmar-se com um projeto próprio. Entretanto, perde tempo com uma visão puramente financeira da economia e com essa idéia ingênua de que pode se inserir soberanamente na globalização mundial. BF – O posicionamento do Brasil na conjuntura mundial deve-se a algum tipo de ingenuidade? Sampaio – Pode ter gente ingênua, mas há enormes interesses por trás disso. O que existe é o desejo das elites brasileiras de se inserir, de qualquer maneira, no mundo globalizado. E há a ilusão do governo, de admitir que pode ser uma inserção autônoma, independente, pois será necessariamente subordinada. BF – Há uma ilusão por parte do governo? Sampaio – Eu acho que há uma tremenda ingenuidade do PT, do governo, da equipe econômica de imaginar que é possível se inserir soberanamente neste mundo globalizado. Aliás, isso já foi tentado pelo Fernando Henrique Cardoso. A tentativa (de FHC) foi exatamente essa: acreditar que, cedendo ao imperialismo, os capitais estrangeiros para o país dinamizariam a economia. E o PT está repetindo exatamente a mesma coisa, cumprindo tudo o que o Fundo Monetário Internacional (FMI) quer. Pensa que os capitais estrangeiros vêm para cá, modernizam a nossa economia, colocam-na dentro do nível
Plínio de Arruda Sampaio é ex-deputado federal constituinte, promotor público, consultor da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), professor universitário, ex-secretário Agrário do Partido dos Trabalhadores (PT) e diretor do jornal Correio da Cidadania. da globalização e o Brasil cresce. Isso é uma ilusão, nós temos de romper com a globalização.
no governo, ela só está usando a política econômica. Mas quando surge um problema, como agora, a burguesia ataca sem piedade.
BF – Existe força política no governo para fazer essa ruptura? Sampaio – Eu acho que o governo não quer jogar esse jogo. Se quisesse jogar, teria força. Acho que as massas populares serviriam a um governo que propusesse uma firme política contrária à pressão externa, ao FMI. Eu tenho a impressão de que, no fundo, hoje estão se revelando os problemas da longa involução do PT. Era um partido que desafiava a ordem e foi se tornando um partido da ordem.
BF – Que caminho deveria ser seguido? Sampaio – Eu não conheço nenhum país que conseguiu se tornar independente e desenvolvido sem romper com a ordem econômica internacional. O governo, o Brasil têm que dizer: não aceito o FMI, não aceito esse tipo de jogo econômico. Deve estar preparado para aceitar as sanções que virão e reorganizar o país, apesar delas. Isso é perfeitamente possível. O país tem todos os recursos para um processo de crescimento equilibrado, de desenvolvimento cultural, social e político da sua população.
BF – Como se deu esse retrocesso? Sampaio – O PT formou-se com dois pés: um deles era a política direta de pressão de massas, de mobilização popular, de rompimento com o sistema estabelecido. O outro pé era a política institucional, a presença nas instituições do Estado, as eleições etc. O pé da pressão direta de massa enfrentou dificuldades quando o capitalismo deu a volta por cima e criou o desemprego estrutural. A força da classe trabalhadora foi quebrada. E o pé eleitoral desenvolveu-se exageradamente. O PT cresceu como uma alternativa eleitoral, não como uma alternativa política. Na cabeça dos militantes e dos dirigentes não se desenvolveram conceitos, conhecimentos necessários para uma ruptura política. Quando chegou na hora, o imediatismo prevaleceu, com essa verdadeira paranóia, esse medo de que o mercado vire um caos.
BF – Como o senhor classifica esse plano? Sampaio – Se quiser uma linguagem do Banco Central, eu diria que é um programa de assentamentos com viés de reforma agrária. Com a pressão das massas é possível chegar à reforma agrária BF – Pode-se dizer que o governo aprovou apenas uma política compensatória? Sampaio – Vai depender da execução. Certos princípios, apresentados pela equipe que elaborou
A burguesia não confia no governo, só está usando a política econômica. Mas quando surge um problema, ataca sem piedade BF – Há possibilidades para que isso aconteça hoje? Sampaio – Eu acho que o governo renunciou a esse caminho, não construiu as condições necessárias para esse passo. Agora, não é possível. Poderia ter dado vários passos que não implicariam em rompimento, mas que seriam preparatórios. Por exemplo, não precisa aceitar esse superavit primário brutal. Tinha toda a força para chegar no FMI e dizer que não aceitava essa orientação, que precisava usar parte dos recursos que recebe não para pagar credores, mas para atender às necessidades básicas da população.
BF – Há possibilidade de caos? Sampaio – Nesse primeiro ano, todas as medidas do governo foram para evitar o caos. Mas qual caos? Aquele que o mercado poderia provocar. Mas o mercado é a força do capitalismo e o PT se diz um partido socialista, que veio para mudar o capitalismo, para substituir o capitalismo por uma ordem socialista. Então, realmente o PT perdeu o seu rumo.
BF – O senhor foi um dos fundadores do PT. Como se sente nessa conjuntura? Sampaio – Sinto-me mal, marginalizado, sem diálogo com a direção, com o governo. Eles até me convidaram para fazer o programa de reforma agrária. Aí eu também pude notar essa grande diferença de visões. Em todos os setores, o grande problema é não cutucar o mercado com vara curta. Isso não é possível, e eu não me sinto representado por esse tipo de política.
BF – O Partido dos Trabalhadores ainda pode ser considerado um partido socialista? Sampaio – Eu acho que o PT está passando por uma enorme crise. E toda crise tem dois sinais: um sinal de morte e um sinal de vida. Neste momento estamos na turbulência dessa contradição. BF – Alguns intelectuais de esquerda avaliam o PT hoje como um partido da burguesia. Sampaio – Ele não é um representante da burguesia, até porque a burguesia não tem confiança
BF – Qual sua opinião sobre o Plano Nacional de Reforma Agrária aprovado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário? Sampaio – A meta do Plano Nacional de Reforma Agrária era assentar um milhão de famílias, e a do plano aprovado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário foi de 400 mil famílias, sendo que, dessas, 130 mil serão assentadas por crédito fundiário, exatamente um resíduo do chamado “novo mundo rural”, do Banco da Terra. A reforma agrária a partir da desapropriação do latifúndio que não cumpre com a sua função social foi considerada, no governo anterior, uma proposta anacrônica. Em substituição a essa proposta, se fez essa reforma agrária de mercado. Se há uma meta de um milhão de assentados, 130 mil por crédito fundiário é um programinha complementar. Se são 400 mil assentados, e 130 mil deles com crédito fundiário, significa quase um terço do orçamento.
o plano, foram adotados pelo ministério e fazem parte das diretrizes políticas, tais como a forma de fazer um assentamento, a forma de entregar a terra. Ao que sei, isso foi incorporado. O que houve foi a diminuição da meta por causa de recursos, e ao meu ver isso foi equivocado porque a diferença não é quantitativa, mas sim qualitativa. A quantidade vira qualidade. Quando há a meta de um milhão de famílias há a quantidade que pesa, e esse foi o grande corte. O que o ministério não vai ter é o apoio dos fatos, das alterações objetivas, para fazer a reforma agrária. Teria uma pressão de massas enorme, uma quantidade muito grande de alimentos produzidos, mudança de comercialização, sistema de crédito agrícola da sociedade. Provocaria mudanças progressivas. Isso que é uma reforma agrária: uma mudança estrutural para provocar uma mudança na economia, na sociedade e na política. A reforma agrária visa fortalecer a base camponesa e dar para ela poder econômico, social e político, sem o qual não se muda esse modelo político agrícola, que é ruim. Temos que mudar esse modelo agrícola, e fazer uma agricultura que alimente sua população autonomamente, e aumente a renda do agricultor. BF – O senhor acha que será possível mudar a concentração fundiária no Brasil? Sampaio – A meta de 400 mil não causa muito impacto. O problema da meta é que é preciso provocar um desequilíbrio virtuoso na economia agrária. Atualmente ela está equilibrada, mas é um equi-
líbrio perverso, que gera pobreza, miséria e dependência. Se há um volume grande de desapropriações, temos um trabalhador rural – para quem hoje o mercado e os vendedores não dão bola – que passa a ser um grande comprador. Os intermediários que comercializam passariam a ter interesse nos trabalhadores porque a safra começa a aumentar. BF – Hoje existem condições reais e objetivas para a pressão popular? Sampaio – Objetivamente, temos visto que não há muita condição de mobilização popular, a massa não está respondendo. E, por outro lado, há grandes sinais de insatisfação. Objetivamente, há condições, a população está desempregada ou com salários baixíssimos. Em São Paulo, por exemplo, o centro do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, um bóia-fria ganha R$12,50 por dia, uma situação de pobreza absoluta. Ele tem objetivamente condições de reclamar e pressionar. Mas falta a esse homem perceber que ele não foge desse salário diário se não lutar contra o sistema. Essa é a luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que cria essa consciência. Essa é a luta da Comissão Pastoral da Terra (CPT), das igrejas, das forças populares. E essa deveria ser a força prioritária do PT. BF – Houve uma apatia dos movimentos no último ano? Sampaio – Acho que houve uma grande expectativa com o novo governo que provocou a desmobilização. É perfeitamente explicável, justificável e até salutar. A mentalidade era: “Entrou governo meu, então vou esperar, não tenho por quê enfrentar o latifúndio, o jagunço, se o governo está comigo”. Mas também houve mobilização, porque 200 mil famílias foram para a beira da estrada, de forma tranqüila. BF – O senhor dizia que esse era um governo “em disputa”. Ainda é? Sampaio – Eu sou da teoria de que a esperança é a última que morre. Eu estou lutando. BF – E a questão da ética no governo? Sampaio – Nós estamos numa encruzilhada. Eu vejo o PT perplexo, os petistas históricos estão desanimados, não estão entendendo nada. Eu percebo uma grande desorientação, uma grande desorganização. BF – A saída é a criação de um novo partido? Sampaio – Eu acho prematuro discutir essas coisas. Sabe quando chove muito e você sabe que vem lama no rio, mas não vê? Então, é preciso esperar a lama baixar para ver o que tem. Eu acho que esse momento não é de grandes decisões, mas de reflexão. Está na hora de repensar tudo, mas vamos deixar para tomar posições quando as coisas estiverem mais claras.
Elza Fiúza/ABr
O
governo está perdendo tempo com a visão ingênua de que o país pode se inserir soberanamente na globalização mundial. Essa é a opinião do professor Plínio de Arruda Sampaio que acredita que “toda inserção do país no mercado mundial será necessariamente subordinada”. Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor critica a postura do PT, que “perdeu o rumo” e está repetindo erros do governo anterior. Ele acredita que o país está “numa encruzilhada”, e afirma que essa é a hora de o Brasil se firmar com um projeto próprio de nação. Entretanto, Sampaio afirma que falta vontade política do governo que, se quisesse, teria apoio das massas populares para enfrentar a pressão externa.
Quem é
Renato Stockler
Bernardete Toneto e Tatiana Merlino da Redação
Arquivo JST
Professor Plínio de Arruda Sampaio compara governo de Lula ao governo de FHC e critica submissão aos interesses do FMI
O Plano Nacional de Reforma Agrária apresentado pelo governo não agradou
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De 4 a 10 de março de 2004
NACIONAL PODER JUDICIÁRIO
Credibilidade depende de saneamento
Dia 1º, em missa em homenagem ao aniversário da cidade, dom Eusébio Oscar Scheid, cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, criticou sem meias palavras a política de segurança pública vigente. “Ao anunciar que morreram 84 pessoas durante o carnaval, o secretário de Segurança Pública argumentou que, no ano passado, ocorreram mais mortes. Isso é consolo? A segurança pública não está atendendo aos cariocas do jeito que devia. Acho um absurdo terem morrido 84 pessoas. Isso não é respeito”, afirmou o prelado. A imprensa tradicional e os defensores dos transgênicos não comentaram, mas a mídia internacional registrou que, em 22 de fevereiro, as autoridade japonesas confirmaram mais um caso da vaca louca. O mal da vaca louca, que ataca bovinos e é transmissivel a pessoas, já levou à morte dezenas de pessoas na Europa e na Ásia. Ele resulta do uso intensivo de restos de osso e de sangue na ração de vacas leiteiras. Quando a Inglaterra lançou essa ração, todos aplaudiram, inclusive muitos cientistas que agoram apoiam os transgênicos. Recentemente, circulou a informação de que o governo dos EUA gastou 23,9 milhões de dólares com medidas de segurança contra os manifestantes, durante a reunião ministerial da Alca em novembro, em Maimi. Já no encontro de ministros da OMC, em 1999, em Seattle, a repressão às manifestações hostis custaram aos cofres públicos estadunidenses 9 milhões de dólares. Do jeito que a coisa vai, a indústria de material de segurança vai ser a principal beneficiária das negociações da Alca. O acesso ao ensino superior vira um pesadelo! Segundo o Dieese, nos últimos sete anos, enquanto o Índice de Custo de Vida acumulou alta de 72,05% na capital paulista, a média das mensalidades das universidades pagas subiu 124,32%, mais do que o dobro da inflação. E continuam aumentando os preços, a exemplo do curso de engenharia da Universidade Mackenzie, cuja mensalidade era R$ 600 em janeiro/2003, e passou para R$ 1.027 em janeiro/ 2004 – alta de 71% ! Alunos da rede pública de pelo menos 50 municípios mineiros estão sem transporte escolar. A situação continuará até que o governo de Minas defina o valor do repasse para custear parte do serviço. Mesmo com o início das aulas, algumas prefeituras suspenderam o transporte e alegam não ter dinheiro para manter os ônibus escolares sem um reforço financeiro da Secretaria de Estado de Educação (SEE). Se o impasse continuar, cerca de 368 mil alunos do ensino fundamental, residentes na zona rural, ficarão sem transporte. De acordo com a Associação Mineira de Municípios, seriam necessários R$ 50 milhões para resolver o problema, mas, até agora o Estado só assegurou R$ 20 milhões.
André Deak de São Paulo (SP)
Quem é
E
le foi o segundo colocado no concurso para juízes de 1983 e, por merecimento, poderia escolher qualquer comarca para trabalhar – menos aquela escolhida pelo primeiro colocado. Elegeu a comarca de Pitangueiras, próximo a Ribeirão Preto (SP), onde morava. Pouco depois, recebeu um telefonema em que o interlocutor dizia: “Essa comarca é minha. Sou sobrinho de desembargador, ele vai me mandar para lá, a qualificação não importa. Escolha outra”. Não arredou pé de sua escolha e depois soube que, coincidência ou não, o dono da voz daquele telefonema foi indicado, em lista tríplice do Tribunal de Justiça do Estado, para titular em Pitangueiras. Então com 24 anos, mas com a mesma “personalidade forte” que demonstra ter até hoje, o juiz Edison Vicentini Barroso lutou até que seu caso chegou aos ouvidos do então governador paulista Franco Montoro. Pela primeira vez na história, Montoro mudou a indicação. “À revelia da vontade do Tribunal, restabeleceu a justiça da coisa, nomeando-me – e não ao colega – àquela comarca”, conta Barroso. Desde esse episódio, o Judiciário brasileiro aumentou de tamanho e ganhou muitos novos problemas. Se em 1989 a Justiça de primeiro grau tinha um processo para cada 604 habitantes, dez anos depois essa relação era de um para cada 151 habitantes. Em meio a esse trabalho, julgando mais de quinze processos por dia, o juiz Barroso falou ao Brasil de Fato sobre Poder Judiciário e Justiça no país.
Edison Vicentini Barroso é juiz titular da 3ª Vara Cívil de São Miguel Paulista, na comarca da cidade de São Paulo (SP), e está há quase 20 anos na magistratura. tre o governo Lula e o anterior? Edison Barroso – Embora tenha votado no Lula, por falta de opção, não vejo nesse novo governo quase nenhuma diferença com o anterior, de Fernando Henrique Cardoso. Acredito que eles não têm competência e adequação para transformar o quadro em que o Judiciário se encontra. Observo, sobretudo, o mesmo desrespeito às instituições. Para o bem do país, elas precisam ser preservadas. Para que tenha credibilidade, é preciso que o Judiciário seja saneado. BF – De que forma? O controle externo do Judiciário seria uma solução? Barroso – Controle externo por quê? Quem será o agente controlador? Quem tem, hoje, condição ética para controlar o Judiciário? E por que não o controle do Legislativo e do Executivo? O que temos visto no Congresso é de pasmar qualquer criatura. São verdadeiros bandidos. Não têm o mínimo preparo ético, moral e técnico para aquele papel. E não se pode nem mesmo falar em votação para eleger um suposto “conselho de controle do Judiciário” porque historicamente o povo brasileiro tem elegido pessoas despreparadas. O povo vive algemado por políticas mal-in-
Brasil de Fato – Há alguma diferença sensível, no Judiciário, en-
tencionadas, que não dão possibilidade de se andar com as próprias pernas, de pensar por conta própria. Subsiste, sabe-se lá como. E a maior parte dessa culpa está naqueles que, mesmo tendo condições de transformar o povo, sugam-lhe o sangue. BF – O controle interno, como a corregedoria, é uma boa idéia? Barroso – Depende muito da cabeça de quem está administrando as corregedorias. Tenho visto que elas não têm a funcionalidade que era de se esperar. Deveriam ter uma mão firme, um braço capaz de se estender. Mas o que temos visto é que procuram atuar apenas para os juízes de primeira instância, não fiscalizam o alto escalão. Uma reforma do Judiciário teria de visar pontos nevrálgicos do funcionamento da máquina. Desde que o mundo existe há os corruptos e os honestos, em qualquer parte. A necessidade daqueles que não se corromperam é se unirem para modificar a sistemática da corrupção e limpar todos os vasos ruins que existam no sistema. BF – Quais suas críticas à ma-
neira pela qual os juízes são promovidos? Barroso – O acesso dos juízes aos tribunais superiores não tem a ver com merecimento, mas com política. Muitas vezes, não é promovido o mais capaz, mas o mais amigo. Em todos os setores há profissionais bons e ruins: existem juízes e juízes, advogados e advogados, garis e garis. Há o joio e o trigo; pessoas preparadas e outras menos preparadas. Como não existe critério objetivo, o tribunal tem um leque, uma gama de opções, para promover aqueles que mais lhe interessem. O ideal é a criação de critérios objetivos para a aferição de merecimento; o menos ruim é a promoção por antiguidade, para que se evite injustiças. BF – Como deveria agir um magistrado? Barroso – O magistrado verdadeiro, idealista, em cujas veias corre o sangue do amor à instituição, deve saber que está a serviço da população. Jamais servir-se da população. Por culpa de juízes subservientes ao poder, que não servem à Justiça, há uma conotação negativa ao trabalho do juiz, não há mais o respeito da população. Parece que a intenção não confessada dos governos, atual e anterior, é tornar o poder jurídico apenas uma retórica, um apêndice do Executivo. Seria preciso criar mecanismos de transparência para enfrentar esse sistema anacrônico e corruptor. As organizações não-governamentais, aparentemente, seriam um aglutinador de esforços das pessoas de bem. É preciso incentivar isso, porque a maioria delas está emudecida, não se manifesta.
COCA-COLA
Secretaria investiga denúncias Bruno Fiuza e Otávio Maia da Redação Durante todo o segundo semestre de 2003, o presidente da Dolly Refrigerantes, Laerte Codonho, recorreu a diversos órgãos da Justiça para formalizar as acusações de concorrência desleal e abuso de poder econômico contra a Coca-Cola. Entre as instituições procuradas por Codonho estão a Corregedoria da Receita Federal, a Corregedoria do Ministério Público Federal e a Secretaria de Direito Econômico (SDE). Em pelo menos dois desses órgãos já há processos investigando as práticas denunciadas por Codonho: na Corregedoria do Ministério Público Federal e na Secretaria de Direito Econômico. Dia 18 de fevereiro, a Dolly Refrigerantes divulgou uma nota informando que o processo de investigação na SDE já havia sido instaurado, tendo inclusive passado pelas mãos do secretário Daniel Goldberg, pelo despacho 1421, de 15 de dezembro. Segundo a nota, foi aberta uma averiguação preliminar e o documento final que instala a investigação foi assinado pela diretora Mariana Tavares de Araújo, dia 22 de dezembro. Após a assinatura desse documento, a Coca-Cola recebeu uma citação da SDE para apresentar sua defesa. Há divergências, porém, entre as versões do processo fornecidas pela Dolly, pela Coca-Cola e pela SDE, no que se refere aos prazos para a defesa. Segundo a Dolly, a CocaCola recebeu a citação dia 5 de janeiro e tinha 15 dias para apresentar sua defesa. Na mesma nota, no entanto, a empresa afirma que esse
INDRANIL MUKHERJEE-STR
Fábio Konder Comparato, professor de Filosofia do Direito da Universidade de São Paulo, em artigo na Folha de S.Paulo, explica por que não desanimar diante do lamaçal em que parece se atolar o governo federal. “A ruína moral que se abateu sobre o governo Lula e o Partido dos Trabalhadores, abalando sobretudo o coração da juventude, não nos deve conduzir ao abismo da indiferença e do ceticismo. O que está em jogo é o bem comum de todos nós, e não apenas a reputação dos governantes e dos partidos. Importa, pois, antes de tudo, tirar do episódio a lição necessária, e saber introduzir, na prática e nas instituições políticas, as mudanças indispensáveis que o bom senso aconselha”.
Divulgação
O juiz Edison Vicentini Barroso aponta problemas que não são novos, mas estão maiores
No 4º Fórum Social Mundial, ativista veste a camisa contra a Coca-Cola no protesto contra a postura econômica estadunidense
prazo venceu dia 18 de fevereiro, 44 dias depois do recebimento, e que a transnacional não se manifestou. A assessoria de imprensa da SDE esclarece, em parte, o desencontro dos prazos. Como o processo é dirigido a duas empresas, a Coca-Cola Internacional Limitada e à Spal, sua principal engarrafadora, ele se caracteriza como um instrumento jurídico chamado lits consórcio, o que faz com que o pra-
zo de defesa seja dobrado, contado a partir do recebimento da citação pela parte acusada. A data do recebimento da citação não foi confirmada. A SDE explica que não tem como confirmá-la pois essa informação diz respeito aos advogados das partes envolvidas e não cabe à Secretaria cobrar tais prazos. Mas a assessoria de imprensa da SDE assegura que a Coca-Cola apresentou sua defesa
durante o prazo previsto e que “o processo está seguindo a tramitação normal, com todas as partes entregando os documentos requeridos dentro do prazo legal”. Recusando-se a comentar as acusações, a Coca-Cola garantiu, por meio de sua assessoria de imprensa, que já apresentou sua defesa e “continuará prestando todos os esclarecimentos necessários à Secretaria, como já vem fazendo”.
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NACIONAL POLÍTICA ECONÔMICA
Para crescer, o governo apela ao FMI Desempenho da economia acende a luz vermelha; em ano de eleições, Palocci quer dourar a pílula
PALAVRAS, PALAVRAS Palocci apresentou duas propostas de mudança de cálculo do superávit primário (receitas menos despesas), de modo a angariar mais recursos para investir em infra-estrutura. Uma, excluir investimentos do setor público e das estatais do cálculo, outra, condicionar a obtenção do superávit prometido ao FMI ao crescimento econômico – superávit anticíclico. Quanto ao presidente Lula, dia
ADEUS SOBERANIA
O ministro Palocci, da Fazenda, com o diretor-gerente do FMI, Horst Köhler. (Ao fundo, foto do ex-ministro Pedro Malan)
2 começou a ligar para diversos líderes do mundo capitalista, dentre eles George W. Bush (Estados Unidos) e José Maria Aznar (Espanha), em busca de apoio às propostas de Palocci ao FMI. Meirelles, por seu lado, em palestra na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo, anunciou que o Brasil entrava numa “série histórica de crescimento econômico”. Ao mesmo tempo, garantia que a rígida política de ajuste fiscal será mantida ao longo de 2004.
SUPERÁVIT As solicitações do governo ao FMI, no entanto, não alteram, no essencial, a política econômica vigente, avisa o economista José Car-
los de Assis, coordenador da campanha Desemprego Zero. Para ele, a proposta de flexibilizar a taxa de superávit primário de acordo com o crescimento do país é “uma bobagem”, porque em uma situação de alto desemprego como vive o país ((12,3%, ao longo de 2003), antes de mais nada é necessário eliminar o superávit. Vale ressaltar que se o governo, de fato, estivesse interessado em reduzir o superávit de 4,25%, teria apoiado a emenda do senador Roberto Saturnino (PT-RJ) ao relatório do Plano Plurianual de Investimentos, propondo a redução da taxa nos próximos anos, ao invés de tirar o senador da função de relator. É importante lembrar que o
MOBILIZAÇÃO
Maurício Scerni
Mais de 1.500 integrantes do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) participaram de três marchas simultâneas, em direção à cidade industrial de Santa Cruz (RS), para protestar contra o fim das negociações do preço do fumo para a atual safra. A mobilização, que aconteceu entre os dias 16 e 18 de fevereiro, começou nos municípios de Venâncio Aires, Candelária e Rio Pardo; e terminou com uma reunião dos agricutores com a direção do Sindicato das Indústrias do Fumo (Sindifumo). Na reunião, o MPA apresentou as oito reivindicações do movimento. A principal delas é o aumento do preço da arroba do tabaco do tipo Virgínia BO1, de R$ 62,85 para R$ 137,01 por 15 quilos. As indústrias propõem R$ 76,20 por arroba. “O
ECONOMIA ASFIXIADA Para o economista Plínio de Arruda Sampaio Jr., professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IEUnicamp), os pedidos de apoio ao FMI significam o reconhecimento do governo de que o acordo com o Fundo asfixia a economia brasileira. Por isso, qualifica o anúncio de crescimento feito por Meirelles como pura propaganda. “Só há um jeito de crescer: endurecer as negociações do pagamento da dívida”, afirma. Ele explica que a contração de débitos é uma coisa normal.
FUNCIONALISMO PÚBLICO
Produtores de fumo marcham contra fim das negociações Suzane Durães de Porto Alegre (RS)
aumento do superávit primário, de 3,75% para 4,25%, foi feita pelo governo Lula.
Para Iara, é o FMI que define a política econômica brasileira. “Que soberania é essa?”, indaga. O diagnóstico de que o país está perdendo autonomia sobre a formulação do seu próprio modelo econômico é compartilhada por Assis. Deveria ser o contrário, argumenta: cabe ao país formular uma nova política e depois negociá-la com o FMI. “Não é pedir, antes, autorização do Fundo. Isso é cretinismo. É uma coisa humilhante”, diz. A insatisfação com a política econômica passa a se tornar pública por setores do próprio Partido dos Trabalhadores. Seu presidente, José Genoíno, do dia para a noite, começou a defender a redução do superávit primário. E o senador petista Eduardo Suplicy, reapresentou, dia 2, em co-autoria com o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), um requerimento de audiência com Pallocci e Meirelles, na Comissão de Assuntos Econômicos da casa para que ambos expliquem as conseqüências da renovação do acordo com o FMI e da manutenção da alta taxa de juros.
agricultor recebe uma injusta remuneração pela produção do fumo. Somos obrigados a produzir cada vez mais para nos sustentar”, afirma Wilson Rabuski, coordenador do MPA. Outra reivindicação é a mudança do modelo tecnológico para produção orgânica. “Enquanto existirem os dois modos de produção do fumo, exigiremos o pagamento da insalubridade para o modelo convencional”, diz Gilberto Tuhtenhagen, do MPA. Para ele, a mobilização foi positiva. “Conseguimos retomar o diálogo com o Sindifumo, que se mostrou mais flexível quanto à classificação do tabaco”, diz, referindo-se à exigência de redução do número de classes, de 48 para doze espécies. Somente no Brasil o fumo é classificado pelos produtores. No país, mais de 200 famílias gaúchas produzem sem adubos químicos e agro-
tóxicos. Enquanto isso, as indústrias exploram os produtores, fornecendo insumos com preços superiores aos disponíveis no mercado. O trabalho realizado pelas famílias camponesas trouxe bons frutos. Segundo dados da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), nas últimas safras o Brasil passou de terceiro para o primeiro lugar na lista de líderes de exportação mundial de fumo em folha, vencendo Estados Unidos e Zimbábue. Na reunião extraordinária da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Fumo, dia 17 de fevereiro, no Ministério da Agricultura, continuou o debate das entidades produtoras do fumo sobre o comércio ilegal de cigarros e a distribuição da renda gerada pelo tabaco. Na ocasião, o MPA ressaltou o descontentamento dos agricultores com a remuneração recebida pela produção do fumo.
FAMÍLIAS NA RUA A ordem cristãcatólica do Santíssimo Sacramento da Candelária ameaça despejar quase 20 famílias (cerca de 30 pessoas) que há três meses ocupam um edifício abandonado vizinho à rodoviária do Rio. A irmandade desativou suas últimas instalações no prédio há 12 anos mas, após meses de infrutíferas negociações iniciadas pelo Comitê de Resistência Popular (que lidera os semteto) decidiu entrar na justiça com uma ação de reintegração de posse.
Governador do RS parcela pagamento de salários Luiz Carlos Barbosa de Porto Alegre (RS) Os funcionários públicos estaduais do Rio Grande do Sul não receberão o salário integral de fevereiro. O anúncio foi feito pelo governo de Germano Rigotto (PMDB-RS), que alegou não ter dinheiro em caixa e invocou, junto ao governo federal, o envio de créditos do Rio Grande do Sul junto à União. “O governo federal corre e está agilizando o repasse desse dinheiro, referente a compensações previdenciárias, de exportação e de obras estaduais em estradas federais”, anunciou o deputado Estilac Xavier (PT-RS), líder do governo federal na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Vários deputados se solidarizaram com os funcionários públicos estaduais. Eles se reuniram com representantes de diversas categorias de trabalhadores e buscaram uma solução de emergência. Juçara Dutra, presidente do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (Cpergs/Sindicato), sintetizou o sentimento geral: disse estar indignada com a situação, pois o parcelamento dos salários decorre de uma opção feita pelo governo Rigotto, de proteger interesses financeiros em detrimento dos trabalhadores. “O governo está aprofundando, agora, a conduta lesiva inaugurada em dezembro, com a transformação do 13º salário em dívida bancária”, falou. O funil financeiro do Estado foi acentuado quando o governo editou dois programas de incentivo à indústria. O primeiro é o Fundo Operação Empresa (Fundopem- Integrar), de incentivo à expansão e implantação da grande indústria no Estado do Rio Grande do Sul. O outro é o Programa de Recuperação de Créditos Tributários (Refaz 2), lançado em dezembro de 2003 por Rigotto para beneficiar
Rose Brasil / ABr
O
ano de 2003 foi o pior da economia brasileira desde 1992. O Produto Interno Bruto (PIB – soma de todas as riquezas do país no período) caiu 0,2% em relação a 2002, conforme levantamento preliminar do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) anunciado dia 27 de fevereiro. Dois dias depois, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os ministros Antônio Palocci (Fazenda) e José Dirceu (Casa Civil), e Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, patrocinaram, na Granja do Torto, em Brasília, churrrasco domingueiro com a presença do diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Horst Köhler. Com exceção de Dirceu – ocupado com os desdobramentos do caso de seu ex-assessor Waldomiro Diniz – , os outros três integrantes do governo começaram a tomar providências para tentar remendar os péssimos resultados da economia no ano passado.
O problema surge quando eles se tornam impagáveis e, conseqüentemente, escravizantes. Em 2003, o pagamento das amortizações da dívida consumiu R$ 412.9 bilhões da União, em relação a R$ 1.8 bilhão em investimentos. “Estamos conseguindo pagar as dívidas, mas a economia está degringolando”, analisa Iara Pietricovsky, do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Ana Nascimento/ABr
Bruno Fiuza e Luís Brasilino da Redação
Governador do RS, Germano Rigotto
pequenas e médias empresas em dívida de ICM e ICMS, com benefícios como a quitação dos débitos em prazos que vão de seis a 120 meses. No Estado, os débitos com a Fazenda estadual chegam a R$ 11.2 bilhões.
SOLUÇÃO PALIATIVA Os repasses previdenciários do governo federal resolvem a situação só a curto prazo. “O governo Rigotto tem de apresentar uma proposta para enfrentar o déficit estrutural das finanças, com uma proposta de desenvolvimento e abandonando a política de renúncia fiscal”, propõe o deputado Ivar Pavan (PT-RS). Ele assinala que o atraso de salários foi uma surpresa, assim como o repentino estouro da situação financeira do Estado. “A receita aumentou, as despesas continuam iguais. O que mudou, então?”, indagou. Ao apresentar o projeto de Orçamento para 2004, o governo peemedebista assegurou que as contas eram equilibradas e realistas. A realidade foi outra: o 13º salário de 2003 foi convertido em empréstimo bancário, imposto compulsoriamente. “Ao optar por investir na guerra fiscal, concedendo benefícios de bilhões de reais, e proporcionar anistia para grandes devedores, o governo produziu as próprias dificuldades”, acusa.
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NACIONAL BANCO DA TERRA
De novo, uma reforma agrária às avessas Claudia Jardim da Redação
D
eterminar políticas sociais e ter o Brasil como vitrine de um futuro mercado de terras na América Latina era um dos objetivos do Banco Mundial (BM) ao financiar o programa Cédula da Terra que, em 1996, instituía um novo modelo de reforma agrária às avessas. A distribuição de terras por meio de desapropriações de propriedades improdutivas e devolutas, como determina a Constituição, foi substituída pela compra de áreas rurais. “A intenção do Banco Mundial era criar mercados de terras onde havia demanda por reforma agrária. Os recursos utilizados no governo (Fernando Henrique Cardoso) substituíram o mecanismo de desapropriação legal, com o intuito de desmobilizar os movimentos sociais”, avalia o sociólogo Sérgio Sauer. Para ele, além de criar um mercado de terras, o BM aumenta seu controle sobre as políticas públicas: “De um lado, empresta recursos ao Brasil para impor a mesma fórmula a outros países como uma experiência ‘bem-sucedida’. De outro, continua a determinar os cortes nos recursos públicos”, analisa Sauer.
ALIMENTANDO O INIMIGO Para Marcelo Resende, da Via Campesina, e ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), além de disseminar a idéia de que não é preciso fazer a reforma agrária, o BM tem outros objetivos. “Há interesse na exploração do patrimônio genético e de recursos minerais do país”,
Renato Stockler
Figurino do Banco Mundial: reforma sem desapropriação de latifúndios e com endividamento crescente do agricultor
A verdadeira intenção do projeto do Banco Mundial seria demarcar o território rural brasileiro, e não distribuir a terra
afirma Resende, explicando que um dos próximos passos do Banco Mundial é financiar o projeto de georeferenciamento (rastreamento e demarcação de propriedades rurais) do governo. Tal levantamento é capaz de detalhar as regiões onde há posseiros, terras devolutas e onde é possível expandir o mercado imobiliário – seja pelos campos de soja ou na fronteira da exploração de madeira. “A malha fundiária de um país é estratégica. Não se pode permitir que um organismo internacional conheça esse mapa”, alerta Resende.
GANHOS FÁCEIS Além de privilegiar o proprietário, que recebe integralmente o valor de sua terra, muitas vezes su-
pervalorizadas, o Cédula da Terra, que na segunda gestão FHC passou a se chamar Banco da Terra, criou uma nova e rendosa profissão: a dos especialistas em projetos do Banco da Terra. Danilo Prado Filho, coordenador de Crédito Fundiário do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), conta que, quando os engenheiros agrônomos passaram a receber 2% do valor total de cada projeto a ser financiado, foram criadas empresas especializadas neste trabalho. Com o empréstimo máximo de R$ 40 mil por família, os técnicos inflavam o número de pessoas em cada propriedade para aumentar o seu lucro. “Em fazendas onde cabiam 10 famílias, eram feitos projetos para 15. Isso reduzia o
espaço de plantio de cada família e aumentava o valor total do projeto a ser pago pelos agricultores”, critica Prado Filho. Ele conta que raramente os projetos eram recusados, já que os próprios interessados – associações e centrais sindicais – faziam a análise técnica (leia reportagem abaixo). “Quando o governo Lula suspendeu o programa (janeiro de 2003), vinham a Brasília prefeitos e donos de empresas de projetos para pressionar a liberação dos projetos”, comenta o coordenador do MDA.
DÍVIDAS, MAIS DÍVIDAS Como o BM financiava apenas a compra da terra e a infra-estrutura básica, os agricultores preci-
sariam ter alguma fonte de renda para sua subsistência. Mas não tinham. Nascia, então, uma nova categoria de trabalhadores, dependentes do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). “A família vai para a propriedade e tem que sobreviver, mas não pode trabalhar para pôr comida na mesa e, ao mesmo tempo, no projeto agrícola ao qual foi incorporada. Aí, corre para o Pronaf. Para pagar a dívida do projeto, os trabalhadores rurais assumem uma nova dívida”, explica Danilo Prado Filho. Ele diz que o governo terá de se responsabilizar pelos resultados do programa. O Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) anunciado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva prevê o assentamento de 130 mil famílias, via concessão de crédito fundiário, aos moldes do Cédula da Terra. Mas o coordenador do Crédito Fundiário do MDA garante que não serão cometidos os mesmos erros. “Com a compra direta do produtor para o Fome Zero, assistência técnica qualificada e acompanhamento da produção, aqueles erros não serão cometidos. Só o fato de as pessoas estarem na terra já é uma mudança considerável no seu padrão de vida”, afirma Danilo Prado Filho. Marcelo Resende discorda. “Isso é um subterfúgio para não fazer o que está previsto na legislação. Não adianta comprar terra de banco quando a questão central é o latifúndio. Os fazendeiros enchem os bolsos de dinheiro, enquanto os agricultores se endividam. Será uma irresponsabilidade o governo reproduzir este modelo de desgraça no campo”, critica.
Os interesses que regem o mercado de terras O sonho da “maior reforma agrária do mundo” do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se tornou uma espécie de assunto proibido entre as pessoas que, de alguma maneira, participaram do programa Banco da Terra. Força Sindical, Associação dos Municípios do Vale do Paranapanema (Amvapa) e técnicos ligados à Casa de Agricultura de Itaberá são personagens de denúncias de irregularidades do programa que, em todo o país, estimulou a supervalorização de terras e a exploração de trabalhadores rurais. Em abril de 2001, o motorista Rubens de Moraes, corretor da Fazenda Tofani, de 42 alqueires, em Itaberá (SP), denunciou Luiz Carlos Godinho, técnico da Casa de Agricultura do município, por, supostamente, ter se beneficiado na compra da Tofani pela Associação de Trabalhadores Rurais de Itaberá. De acordo com Moraes, a propriedade custava R$ 300 mil. Segundo o corretor, o processo se arrastava há pelo menos um ano, e mesmo com a liberação dos recursos do Banco da Terra para a compra da propriedade, alguns empecilhos dificultavam a concretização do negócio. “Me disseram que se eu não dividisse a corretagem com o responsável (Luiz Carlos Godinho), a transação não caminhava. Disse a ele que se esse era o motivo da demora daria metade da minha corretagem (3%) e ele aceitou. Eu recebi dois cheques do fazendeiro (Osvaldo Maia), no valor de R$ 4.500, e dei um ao Godinho”, conta Moraes.
Fac-símile da feita por Morae e da carta que o descredenci Godinho da Fo por conta da a
daço de terra, os agricultores aceitaram comprar a proprieda- de, mesmo com o preço superior ao que havia sido acordado. “Nós precisávamos da terra e aceitamos mesmo assim. Até hoje a gente não sabe por que isso aconteceu”, justifica Dirceu Lourenço, um dos agricultores da associação. Esse acréscimo significou para cada uma das 11 famílias, que mal têm dinheiro para seu sustento, aumento de R$ 4.546 na dívida, cuja primeira parcela terá de ser quitada no início de 2005. O técnico agrônomo, Luiz Carlos Godinho, responsável pelo projeto da associação, afirma que durante o andamento do processo o preço da terra subiu, o que, a seu ver, justificaria o valor pago.
GATO POR LEBRE Depois disso, quase tudo foi resolvido. Mas na hora de os trabalhadores rurais assinarem o contrato, uma surpresa: o valor da propriedade saltara de R$ 300 mil para R$ 350 mil. Temerosos de perder a oportunidade de conquistar seu pe-
PANOS QUENTES Procurado pelos agricultores, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itaberá, José Mariano de Oliveira, encaminhou a denúncia feita pelo corretor à Força Sindical, braço do Banco da Terra
em São Paulo, responsável por intermediar o projeto entre o governo federal e a associação. “Me disseram para eu ficar de fora que eles cuidariam do caso. Alguns indícios levam a crer que houve superfaturamento, mas não posso afirmar. Lamento a Justiça não ter se pronunciado, nem sei se ela foi acionada”, diz Oliveira. Logo depois de receber a denúncia, a Força emitiu um documento assinado pelo presidente da central, Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, que determinava o “descredenciamento temporário do agrônomo responsável pela assessoria para o grupo de assentados, até que se esclareçam as dúvidas que envolvem recebimento de comissão para compra do referido imóvel”. Em entrevista por telefone, Godinho disse que nunca foi procurado por ninguém e que só “ouviu falar sobre uma tal denúncia”. Questionado se teria se beneficiado ou participado da venda da Fazenda Tofani, o técnico disse que “minha função não é fazer negócio. Não quero ficar ressuscitando defunto. Não tenho que dar explicação a
ninguém. Minha versão dos fatos está com o prefeito de Piraju” declarou Godinho, que se negou a responder mais perguntas. Na prática, nada aconteceu com o técnico. Ele continuou responsável pelo projeto da Fazenda Tofani e por outros projetos aprovados desde 2001.
PREFEITO DESCONHECE O prefeito de Piraju, Maurício Pinterich (PSDB), afirma desconhecer qualquer denúncia relacionada à Tofani, e tampouco ter arquivado a justificativa de Godinho. “Nunca conversei com ele, não sei desse caso. Ele deve ter falado com o gerente da Amvapa, não comigo” afirma o prefeito, ao se referir a Lair Azevedo Silva. De acordo com Pinterich, que também preside a Amvapa (agência do Banco da Terra), Silva soube de boatos sobre o caso e foi até a promotoria da região, onde não havia nenhuma denúncia contra Luiz Carlos Godinho. O promotor público de Itaberá, Fábio Rodrigues, informa que nenhuma ação ou denúncia foi encaminhada à promotoria da cidade.
Pinterich, que também está envolvido no processo da Fazenda Ceres, onde há suspeita de superfaturamento (veja quadro), alega que se envolveu com o Banco da Terra porque era uma idéia interessante. “Sou jovem e fui em busca de uma alternativa para trabalhar com as comunidades agrícolas. Infelizmente, aqui não deu certo e por causa desse processo (Fazenda Ceres) ficamos de mãos atadas”, explica o prefeito. A reportagem do Brasil de Fato procurou Paulinho para saber por que o técnico não foi descredenciado, ou nenhuma denúncia foi encaminhada à promotoria da região, mas o presidente da Força Sindical alegou “não poder falar”, nas cinco vezes em que foi procurado. A assessoria de imprensa da Força passou o contato de um dos responsáveis pelo Banco da Terra, João Pedro Moura, que também não respondeu às chamadas.
DE QUEM É A CONTA? Depois do fracasso do Banco da Terra, tanto Força Sindical como Amvapa, se eximiram de qualquer responsabilidade sobre os projetos. Famílias como as da Fazenda Tofani, estão espalhadas pelo país. Sem crédito, produção e com uma enorme dívida a pagar. De acordo com dados do governo FHC, de 1999 a 2001, 40 mil famílias foram incorporadas ao programa. Na avaliação do coordenador de Crédito Fundiário do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Danilo Prado Filho, a responsabilidade é do governo federal, que aprovou projetos mal concebidos. “Agora, o atual governo vai arcar com isso. O Ministério vai fazer uma varredura para saber como andam esses assentamentos e, em casos excepcionais, os contratos poderão ser cancelados” afirma. (CJ)
Ano 2 • número 53 • De 4 a 10 de março de 2004 – 9
SEGUNDO CADERNO HAITI
País é tomado por tropas internacionais, que tentam conter os conflitos, enquanto analistas vêem dificuldades em superar a crise
Ricardo Mazalan/AP/AE
Levante depõe Aristide do poder REPÚBLICA DO HAITI Localização: América Central Capital: Porto Príncipe Idiomas: Francês e crioulo (oficiais) Moeda: Gourde População: 8 milhões de habitantes 80% abaixo da linha de pobreza 80% católicos 95% negros
Jim Lobe de Washington (EUA)
HISTÓRICO No final do século 18, a população de quase 500 mil escravos, liderada pelo ex-escravo Toussaint L’Ouverture, se revolta contra os franceses. Em 1804, depois de uma década de lutas, o Haiti se torna a primeira república negra a conquistar sua independência. A ilha é governada por uma série de ditaduras violentas até 1990, quando o padre progressista Jean-Bertrand Aristide é eleito. No entanto, seu governo sofre um golpe militar em oito meses. A situação se estabiliza em 1995, quando René Préval é eleito. Aristide é reeleito com o apoio dos Estados Unidos em 2000.
E
nquanto o caos se espalha pelo Haiti, após a derrubada do presidente Jean-Bertrand Aristide, no dia 29, a comunidade internacional se vê diante de um problema: depois de deixar a democracia haitiana completamente abandonada à própria sorte durante três anos, terá de ajudar a reconstruir uma nação, de pouco mais de 8 milhões de habitantes e totalmente devastada. Os Estados Unidos facilitaram – ou, segundo denúncia, obrigaram – a partida de Aristide para a República Centro-Africana. Ele partiu escoltado por soldados estadunidenses e espera a aceitação do pedido de asilo na África do Sul. Os EUA também coordenaram o envio de tropas próprias, francesas e canadenses para manter a ordem na capital Porto Príncipe e abrir o que Bush chama de “um novo capítulo” para o país caribenho. O presidente da Corte Suprema de Justiça, Boniface Alexandre, assumiu a presidência, como indica a Constituição. Mas fica a dúvida: como convocar eleições medianamente legítimas em 90 dias, conforme estabelece a carta magna?
Criar um governo interino será muito complicado, opinam analistas. Eles destacam o perigo das intenções dos rebeldes, conduzidos por ex-militares que já derrubaram Aristide em seu primeiro mandato, em 1991. E alertam para a ação de chefes paramilitares como Louis Jodel Chamblain e Jean Tatoune, da Frente para o Avanço e o Progresso do Haiti, que semeou o terror na última ditadura (1991-1994).
O líder aparente desse grupo é Guy Philippe, que hoje a imprensa burguesa mundial chama de “chefe dos insurgentes”. Trata-se de um oficial de polícia, treinado pelos Estados Unidos e que ficou conhecido por sua brutalidade como chefe de polícia nas cidades de Delmas e Cap Haitien. Foi ele quem conduziu o falido golpe de Estado de dezembro de 2001, quando ex-militares armados en-
traram na sede do governo e mataram 12 pessoas.
EXÉRCITO DE VOLTA Philippe e seus seguidores, muitos deles ex-soldados, não escondem o desejo de recriar o exército. Para isso contam com o respaldo da elite econômica para a qual governaram na última ditadura. Contudo, outros grupos de oposição a Aristide, como organiza-
ções civis, sindicais e camponesas, se sentiriam ameaçadas por uma ressurreição militar. Esses e outros grupos internacionais pedem à Força Multinacional Interina (nome do contingente de manutenção de paz enviado pela Organização das Nações Unidas, a ONU) um particular esforço para desarmar completamente tanto os rebeldes quando as milícias pró-governo. (IPS/Envolverde)
Miguel Enrique Stédile de Porto Alegre (RS)
Diana Cariboni de Montevidéu (Uruguai) Jean-Bertrand Aristide, presidente haitiano que saiu do país, no dia 29, vive agora um novo exílio. Deixou para trás uma nação devastada pela pobreza e mais de 80 mortes nas últimas semanas. Símbolo da democracia contra a dinastia da família Duvalier, não conseguiu sustentar, no poder, as mudanças que propôs. Aristide foi o primeiro presidente democraticamente eleito do Haiti. Seu partido, o Lavalas, ganhou as eleições de 1990, 1995 e 2000, por maiorias absolutas. Nove meses depois de assumir seu primeiro mandato, foi derrubado por um sangrento complô militar. Centenas de vítimas caíram nessa ditadura, até que, em 1994, farto do constante fluxo de haitianos para a Flórida, o governo dos Estados Unidos decidiu intervir com tropas e recolocar Aristide no poder, porém obrigando-o a considerar os anos de ditadura como parte de seu período presidencial. A operação que levou Aristide de volta ao poder contou com 21
mil soldados estadunidenses e custou 1 bilhão de dólares ao governo do então presidente Bill Clinton. Porém, a ajuda estava condicionada a um severo programa de ajuste econômico, que deteriorou ainda mais a agricultura do país. Além disso, nos últimos anos, tanto Washington como o Banco Mundial retiveram a ajuda prometida, à medida em que se agravava a crise política. Aristide aceitou tudo, de cabeça baixa. A maioria dos problemas continua: o exército foi dissolvido mas não desarmado. Os grupos armados ilegais nunca deixaram de existir. E os assassinatos políticos, tanto do lado oficial quando de opositores, foram uma prática corrente. A oposição civil apostou no perigoso jogo de recusar qualquer acordo. Desde 2002, queria a queda de Aristide. E os grupos de Phillipe e de Chamblain estavam fazendo seu trabalho, enquanto matavam policiais e abriam as prisões de cada cidade que tomavam. Washington aderiu ao jogo: deixar que os rebeldes acabassem com o governo, enquanto ensaiava um discurso contrário à mudança de regime. (IPS/Envolverde)
Brasil de Fato – Há um projeto político que unifique os setores de oposição ao presidente Aristide? Pierre Mouterde – O que unifica a oposição haitiana atual é sua oposicão a Aristide, e nada mais. Essa oposição é de dois tipos: política (a Plataforma Democrática) e civil (o Grupo dos 184). A oposição mudou muito desde 1994, está composta em menor parte por ex-partidários macoutes ou por exgolpistas, mas sobretudo por gente de direita e de centro. Há gente de esquerda também, ex-membros de Lavalas. Em seu conjunto, essa oposição, sem projeto político comum, está muito marcada por seu caráter tradicional e seu distanciamento das grandes camadas populares do Haiti, especialmente as que vivem no campo. Paralelamente há as organizações civis, muito numerosas e diversificadas, e as associações patronais, que jogam um papel determinante no curso atual. BF – O senhor vê possibilidades, hoje, de a esquerda no Haiti apresentar um projeto alternativo para o país?
Presidentes em fuga ARGENTINA
Considerado aluno modelo do Fundo Monetário Internacional (FMI), o país é levado às ruínas em dezembro de 2001. Manifestações populares tomam as ruas e condenam a política neoliberal. Trinta pessoas são mortas pela polícia do presidente Fernando de la Rúa, que foge da Argentina, deixando a Casa Rosada (sede do governo) de helicóptero.
BOLÍVIA
Indígenas e cocaleiros se insurgem contra o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada. El Gringo, como era conhecido por seu sotaque estadunidense, é acusado de desrespeitar o interesse nacional ao vender gás natural aos Estados Unidos, por meio de um acordo desvantajoso com o Chile. Lozada deixou a capital de helicóptero e fugiu para a terra de George W. Bush.
EQUADOR
Rebelião de indígenas e militares destituem os presidentes Abdalá Bucaram, em 1997, e Jamil Mahuad, em 2000, acusados de corrupção e de praticar uma política que se opunha aos interesses da maioria dos equatorianos. Atualmente, os indígenas organizam uma série de protestos contra o atual presidente Lucio Gutiérrez.
PARAGUAI
Em março de 1999, uma marcha popular derruba o governo de Raúl Cubas, acusado de planejar, junto com o ex-general Lino Oviedo, o assassinato do vice-presidente Luis Maria Arganã.
Jornalista canadense, doutor em sociologia, professor de filosofia e especializado em movimentos sociais na América Latina, Pierre Mouterde é autor de Reiventando a Utopia (192 páginas, Camp/Tomo Editorial), em que analisa a experiência de diversos movimentos sociais latino-americanos e a trajetória de Aristide, desde o golpe que derrubou a ditadura Duvalier até os primeiros anos após sua recondução ao poder. Mouterde assistiu a esse período de forma privilegiada, como assessor de Aristide em seu exílio nos Estados Unidos e nos primeiros meses do novo governo haitiano, em 1994. Mouterde – A esquerda haitiana tem que se reconstruir sob novas bases. O que, sem dúvida, é um desafio no contexto de crise global e do neoliberalismo pela qual passa o Haiti. O fato de a oposição ser dirigida por políticos de centro ou de direita é sintomático da debilidade da esquerda. Devemos entender que não será fácil propor uma nova alternativa sociopolítica de esquerda a um país em que cerca de 70% da população não têm trabalho e onde os desafios econômicos, sociais, políticos e ecológicos de reconstrução são gigantescos. BF – Qual é o papel dos Estados Unidos nesta crise que o país vive hoje? Mouterde – Em 1994, os EUA fizeram Aristide voltar ao Haiti, porque pensavam que ele não representava mais um perigo para eles e para a estabilidade geopolítica na região. Os EUA pretendiam reorganizar o aparato central do governo, a polícia e a Justiça, impondo medidas neoliberais na economia. O problema para os Estados Unidos é que, diferente de 1986, quando impulsionaram a saída de Jean-Claude Duvalier, em 1994 existia um aparato militar que podia garantir, do seu ponto de vista, a ordem institucional. Ho-
Stella Pastore/Camp
Rebeldes atacam e Corrupção e neoliberalismo levam à crise Estados Unidos observam Quem é
je, se conta apenas com um corpo policial muito débil e não existe homem na oposição que tenha o carisma de Aristide. É a razão pela qual preferiam protegê-lo e resistiam à única reivindicação da oposição: sua saída imediata. BF – O caso do Haiti é um isolado ou pode ser um exemplo também para outros países? Mouterde – Fala-se que o Haiti é um caso à parte, o que é verdade apenas em parte. Aristide caiu em um populismo delinqüente muito particular. Contudo, hoje é muito difícil um governo centroamericano ou sul-americano, que aceita os ditames neoliberais ou que segue as políticas do Fundo Monetário Internacional (FMI) ou do Banco Mundial, responder, de maneira mínima, às necessidades básicas dos setores populares. No marco neoliberal, não há sequer possibilidade de dar migalhas a esses setores. É o que explica a dificuldade de numerosos governos da América Latina, que estão entre a espada e a parede. A razão de fundo reside nas políticas impostas por elites financeiras dos países industrializados avançados, profundamente injustas e que penalizam, em primeiro lugar, os países do Sul e os cidadãos empobrecidos do mundo.
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AMÉRICA LATINA VENEZUELA
Assinaturas são fraudadas pela oposição Conselho eleitoral constata golpe e campanha por referendo fica enfraquecida
SOLIDARIEDADE POPULAR
Partidários de Chávez se manifestaram dia 29 em Caracas contra a intervenção estadunidense em assuntos nacionais
desqualificar o CNE, acusando-o de chavista. Segundo Andrés Velasquez, da Coordenadoria Democrática, o processo de revalidação não está previsto pela convocatória do referendo. A grande mídia local e internacional, inclusive a brasileira, como o jornal Folha de S. Paulo, sustenta a tese de que respeitar os trâmites legais do CNE – convocando os eleitores para validar assinaturas suspeitas – seria submeter o processo a “tecnicismos” para
bloquear a democracia. Pouco antes do anúncio, Roger Noriega, secretário-adjunto para a América Latina dos Estados Unidos, acusou Chávez de ser antidemocrático e declarou que “os Estados Unidos têm grande interesse em preservar e reerguer a democracia na Venezuela”. Não seria a primeira vez que os EUA fariam esse tipo de intervenção. Em 11 de abril de 2003, o grupo anti-Chávez, que reúne apoio formal dos Estados
Sem alarde, quase na surdina, duas reuniões em Buenos Aires, na Argentina, poderão definir o futuro da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). A primeira ocorreu, dia 2, com os países sulamericanos que se encontraram para unificar uma posição sobre o acordo – participaram chanceleres e representantes dos países do Mercosul, da Comunidade Andina (Colômbia, Equador, Peru e Venezuela), além de Chile e Bolívia. A declaração final da reunião pede “flexibilidade para considerar as necessidades e sensibilidades de todos os países participantes, particularmente as pequenas economias”. Outro encontro, com representantes dos Estados Unidos, Canadá, Costa Rica e dos países caribenhos, está marcado para os próximos dias. Essas minirreuniões ministeriais são uma tentativa de superar, com urgência, o bloqueio que paralisou as negociações da Alca. No último encontro do Comitê de Negociações Comerciais (CNC), em Puebla, no início de fevereiro, os diplomatas chegaram a um impasse. O Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) só aceitava um acordo em que os Estados Unidos se comprometessem a reduzir a zero seus subsídios agrícolas, dentro de um prazo pré-estabelecido. O grupo liderado pelos Estados Unidos, Chile, Canadá e México – contrário à proposta – defendia um acordo mínimo entre todos os temas. Além disso, excluía países que não aceitassem propostas mais avançadas de vantagens posteriores em outras negociações. Como não houve acordo, os negociadores agendaram a próxima reunião, prevista para os dias 18 e 19, em Puebla. Ao que tudo indica, o Mercosul deve recuar de sua posição. O secretário de Comércio Internacional da Argentina, Martín Redrado, afirmou que “não é viável pedir a eli-
Juan Barreto/AFP
Reuniões “discretas” vão definindo o futuro da Alca
Unidos e dos principais meios de comunicação, realizou um golpe de Estado e aprisionou Chávez. O povo foi para as ruas e exigiu o retorno do presidente eleito democraticamente em 1998.
OPOSIÇÃO GOLPISTA Desde a reunião do G-15 (veja reportagem abaixo), dia 26 de fevereiro, quando chefes de Estado e chanceleres de diversos países se encontraram em Caracas, a oposição está armando uma nova ofensiva. Nesse dia, com o objetivo de criar um clima de instabilidade no país, uma marcha de 10 mil pessoas tentou chegar até a cúpula dos presidentes. Os manifestantes levantaram barricadas, queimaram pneus e houve confrontos com a polícia. Duas pessoas morreram e dezenas ficaram feridas. Nos outros dias, os protestos se repetiram. Dia 2, o deputado Ismael Garcia alertou que a oposição planeja um
No dia 29 de fevereiro, houve uma reação popular. Cerca de 100 mil venezuelanos, a maioria proveniente de comunidades pobres e descendente de indígenas, saíram às ruas para defender o governo. Em discurso para os manifestantes, Chávez lançou um desafio a Bush: “Vamos ver quem dura mais, se você na Casa Branca ou Chávez, na Venezuela. Faço a aposta em dólares ou em bolívares. Você decide”. Grupos de solidariedade à Venezuela em diversos países ampliam as ações em defesa do mandato de Chávez. Nos primeiros dias de março, ocorreram manifestações em frente às embaixadas estadunidenses em 29 cidades dos países latino-americanos, entre eles Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai. Na Espanha, centenas de pessoas convocadas por grupos de solidariedade à Venezuela pediram “respeito às instituições democráticas venezuelanas” e criticaram a política imperialista de George W. Bush. O vice-presdente José Vicente Rangel rebateu a propaganda da mídia local, que tenta vender a Venezuela como um país em chamas. “Vemos o desgaste da oposição. Eles não têm militares para repetir o golpe, não têm o mesmo apoio de grupos empresariais, não têm mais a rua porque suas manifestações somam 10 mil pessoas”, analisou Rangel, para quem o conflito está localizado. “Os protestos ocorrem em alguns bairros de Caracas, particularmente onde vive a classe alta e a classe média, e nos municípios governados por gente ligada à oposição”, explicou. O governo aposta que a própria população dessas cidades acabará por colocar fim às manifestações.
G-15 propõe união de países endividados Representantes de 19 países subdesenvolvidos se encontraram dia 26 de fevereiro, em Caracas, Venezuela, para a 12ª Cúpula do G-15, com o objetivo de fortalecer a cooperação Sul-Sul. No final da reunião, as nações defenderam um sistema de comércio mais justo. O presidente venezuelano, Hugo Chávez, lançou a proposta de criar uma articulação de países endividados. “Continua válida a idéia de criarmos um fórum de devedores para dizer ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e a todos credores que vamos pagar a dívida, mas não podemos mais pagá-la como estamos fazendo há 20 anos”, discursou. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva participou da cúpula e teve um encontro reservado com Chávez e o presidente argentino Néstor Kirchner. O conteúdo da conversa entre os três não foi divulgado. Depois, a Durante manifestação em Caracas, partidário do governo mostra cartaz
minação de susbsídios em um ano eleitoral”. Foi uma clara referência à disputa presidencial nos Estados Unidos, em que George Bush é candidato – e, pelas pesquisas, não está se saindo bem. Em Puebla, movimentos sociais e críticos da Alca já haviam cobrado o Mercosul por não aproveitar a fragilidade momentânea do governo Bush. Em entrevista ao jornal argentino Clarín, Redrado disse que o Mercosul poderia rever sua exigência de eliminação dos subsídios agrícolas se Bush acenasse com
uma proposta de redução progressiva dos impostos sobre os produtos da América Latina. O funcionário do governo argentino disse que não se pode acusar o Mercosul de inflexibilidade ou de não fazer concessões para “chegar a um equilíbrio”. “Vamos reafirmar o espírito da Declaração de Miami para construir a Alca, evitando conflitos entre as nações, e solucionar os problemas para facilitar o acesso a mercados”, disse o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim. (JPF)
sós com Kirchner, Lula acertou um novo encontro com o argentino, em 10 de março, para ambos discutirem abordagens comuns em relação às instituições financeiras internacionais, como o FMI. Segundo o chanceler argentino, Rafael Bielsa, os países pretendem formular um programa para se contrapor à política do fundo. Bielsa deixou claro que cada país fará as negociações de acordo com suas possibilidades. Segundo a imprensa argentina, tal declaração é necessária uma vez que Lula havia se mostrado, em diversas ocasiões, reticente a uma política contraposta ao fundo. Em 2003, a Argentina acertou um superávit fiscal de 3% do Produto Interno Bruto (PIB) e afirmou que só pagaria 25% do que cobram os credores privados. O Brasil, por iniciativa própria, elevou o seu superávit de 3,75% para 4,25%. (JPF)
Ricardo Stuckert/PR
O
Conselho Nacional Eleitoral (CNE) constatou que a oposição fraudou quase 40% das 3 milhões de assinaturas recolhidas para realizar um referendo do mandato do presidente venezuela no Hugo Chávez. Dia 2, em cadeia nacional, o presidente da instituição, Franscisco Carrasquero, anunciou que 1,2 milhão de assinaturas foram consideradas inválidas, enfranquecendo a campanha pelo referendo. O CNE analisa, ainda, a validade de outras 876 mil assinaturas suspeitas, que também apresentam fortes indícios de fraudes, com milhares de nomes preenchidos com a mesma caligrafia. Segundo Carrasquero, os venezuelanos terão dois dias, no final de março, para validar sua participação no abaixo-assinado. A oposição precisa conseguir que pelo menos 70% das assinaturas suspeitas sejam consideradas legais. Dessa forma, atingiria o número de 2,4 milhões de pessoas, representando 20% do eleitorado, como exige a Constituição venezuelana. O CNE vai colocar 2,7 mil centros à disposição, em todo o país, para os venezuelanos ratificarem suas assinaturas. O eleitor poderá validar sua participação, mesmo se estiver entre as assinaturas consideradas inválidas, ou excluir seu nome do abaixo-assinado. Observadores internacionais poderão estar presentes aos centros. Os oposicionistas não aceitam a verificação das assinaturas e tentam
atentado contra a embaixada dos Estados Unidos. O objetivo seria criar um incidente diplomático que pudesse desencadear uma intervenção internacional no país. “Queremos alertar a comunidade internacional, além dos próprios estadunidenses, e dizer que se trata de um atentato terrorista da oposição”, afirmou Garcia.
Andrew Alvarez/AFP
Jorge Pereira Filho da Redação
Lula, Chávez e Kirchner na Abertura da 12ª Cúpula de Presidentes do G-15
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INTERNACIONAL
PALESTINA
O muro da discriminação vai a julgamento Thalif Deen de Genebra (Suíça)
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ma sentença do Tribunal Internacional de Justiça (TPI) contra Israel, pela construção de um muro em território palestino, seria ineficaz se não forem estabelecidas sanções para garantir seu cumprimento, afirmam ativistas e especialistas no conflito entre Israel e Palestina. “Israel não se prenderá a nenhuma decisão do Tribunal contra o muro, a menos que ela traga consigo algumas conseqüências”, afirmou o professor de Ciência Política Stephen Zunes, presidente do Programa de Estudos sobre Paz e Justiça da Universidade de São Francisco, nos Estados Unidos. “Isso requer que Washington esteja disposto a reter sua ajuda militar e econômica ao governo israelense, ou a não vetar uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas impondo algum tipo de sanção a Israel por não cumprir a sentença”, disse Zunes. Mas nenhuma das duas possibilidades parece provável, segundo avaliação do professor, autor do livro A política dos EUA no Oriente Médio e as raízes do terrorismo. Ainda assim, uma sentença contra a construção do muro cercando a Cisjordânia “isolaria ainda mais
Eitan Abramovich/AFP
Tribunal Internacional de Justiça avalia legalidade do muro que separa Israel da Cisjordânia
Palestinos andam ao lado da polêmica “barreira de segurança” que separa a cidade palestina de Abu Dis de Jerusalém
Israel da opinião pública mundial, animaria os defensores dos palestinos que sofrem a ocupação e os lembraria que não estão sozinhos”, acrescentou Zunes.
DECISÃO DA ONU O TPI, com sede na cidade holandesa de Haia, realizou uma série
de audiências para poder emitir uma decisão consultiva, dirigida à Organização das Nações Unidas (ONU), sobre a legalidade do muro de mais de 600 quilômetros de extensão. A Assembléia Geral da ONU pediu a sentença no final de dezembro, em uma resolução que obteve 90 votos a favor e 4 con-
tra, com forte oposição dos EUA e de Israel. O governo israelense não reconhece a jurisprudência do TPI para decidir essa questão e negou-se a enviar representantes para participarem das audiências, em um claro desafio ao mais alto tribunal mundial. “Levar o caso ao TPI constitui uma estratégia seme-
lhante às pressões pela aprovação de resoluções da ONU em favor dos direitos palestinos”, afirma a especialista Catherine Cook, do Projeto de Investigação e Informação sobre o Oriente Médio. Poucos acreditam que uma eventual sentença contra o muro signifique a paralisação das obras, devido à realidade geopolítica. “Mas esse não é um exercício fútil. Uma decisão que apóie a posição palestina em um corpo respeitado como o TPI pode ser útil para alertar a opinião pública internacional sobre as políticas de Israel e tornar mais vergonhoso o apoio que este país recebe de outros Estados, devido às suas flagrantes violações do direito internacional”, avaliou Catherine. O impacto potencial de uma sentença do TPI pode ser medido pelos grandes esforços israelenses para minar a autoridade do tribunal para julgar o caso. Em janeiro, o TPI rejeitou, por 14 votos contra um, o pedido israelense de desqualificar o juiz egípcio Nabil Elaraby, membro do tribunal. O voto discordante foi dado por um magistrado estadunidense. O primeiro-ministro israelense Ariel Sharon reprovou publicamente a Jordânia por sua “ativa participação” nas audiências do tribunal. (IPS/Envolverde)
ESTADOS UNIDOS
Bush baseia campanha eleitoral no medo e na guerra A sucessão presidencial nos Estados Unidos não reserva nenhuma boa surpresa. Segundo o sociólogo estadunidense James Petras, pouca coisa vai mudar, a se confirmar a tendência atual, com o senador John Kerry como candidato democrata que vai enfrentar o presidente George W. Bush nas eleições de novembro. As diferenças entre ambos sobre grandes temas de guerra e economia são muito pequenas ou inexistentes. Kerry “apóia a Área de Livre Comércio das Américas. Ele é um neoliberal que usa uma retórica populista durante a campanha eleitoral para disfarçar sua política neoliberal”, afirma Petras. Nesta entrevista ao Brasil de Fato, o sociólogo também comenta a invasão do Iraque que, dia 19, completa um ano. Para ele, enquanto a resistência local está preparada para um longo conflito, o exército estadunidense perde força na região. Esse quadro pode obrigar os Estados Unidos a diminuir sua presença e dividir o Iraque em Miniestados coloniais para os curdos, os xiitas e os sunitas. Brasil de Fato – Como o senhor avalia a conjuntura pré-eleitoral nos Estados Unidos? James Petras – O período préeleitoral está caracterizado por uma apatia dos eleitores. Apenas 20% deles participam de algum partido político. Entre esses, entretanto, há uma polarização que divide quem está contra e a favor da política de Bush para assuntos econômicos e para a guerra do Iraque. BF – Há algum pré-candidato que represente os movimentos sociais? Petras – Apenas dois candidatos representam os movimentos sociais organizados: o democrata Dennis Kucinich e o independente Ralph Neder. Ambos são contra a corrida armamentista e a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), apóiam mobilizações sociais, mas não oferecem nenhuma alternativa econômica para
tilo. Por exemplo, ele diz que Bush deveria ter consultado os europeus antes de invadir o Iraque e critica o déficit comercial e o aumento do desemprego, mas não tem proposta. Sobre a América Latina, Kerry apóia a Alca, se opõe à relação com Cuba e cala-se sobre o Haiti. Os latino-americanos não podem esperar mudanças significativas de políticas neoliberais e imperialistas com John Kerry.
Renato Stockler
Paulo Pereira Lima da Redação
Quem é James Petras é sociólogo e professor de Ética Política na Universidade de Binghamton, em Nova York, Estados Unidos. Publicou diversos ensaios sobre economia política, globalização e direitos humanos, entre eles Brasil e Alca e Política antiimperialista - formação de classe e formação sociopolítica. Seu último livro, América Latina, a esquerda devolve o golpe, está disponível na internet. Petras também é membro do Tribunal Bertrand Russel de Direitos Humanos e idealizador da revista Ajoblanco, publicação do Centro Superior de Investigação Cientifíca (CSCI), sediada em Madri, Espanha. a América Latina. O candidato democrata que lidera a alternativa a Bush é John Kerry. Ele apóia a Alca, a guerra do Iraque e o repressivo Patriot Act (lei adotada após os ataques de 11 de setembro de 2001). Ele é um neoliberal que usa uma retórica populista durante a campanha eleitoral para disfarçar sua política neoliberal. BF – As pesquisas mostram que Kerry pode derrotar Bush. Qual a estratégia de Bush para reverter essa desvantagem? Petras – Ele vai mobilizar fundamentalistas cristãos para atacar
homossexuais. Vai assegurar o apoio dos abastados sionistas por meio de um incondicional apoio a Israel. E irá receber aproximadamente 300 milhões de dólares em contribuições de 80% da classe capitalista, que se beneficiou da sua política econômica – mesmo que os ricos também façam doações para os democratas em menor escala. O mais importante é que Bush vai manipular uma ameaça ou ato terrorista para mobilizar apoio por meio do medo. Em suma, a campanha de Bush está baseada em medo, fundamentalismo e guerra. BF – Como os movimentos sociais e outras organizações populares podem barrar esse projeto? Petras – Os movimentos populares estão se mobilizando em larga escala para manifestações antiguerra dia 20 de março. A mídia alternativa local e os portais de internet estão informando uma parte do público. Mas, de fato, a maioria das pessoas está entusiasmada em apoiar Kerry porque eles detestam Bush e têm um slogan: “Qualquer um menos Bush”. BF – Quais as diferenças entre eles? Petras – As diferenças nos grandes temas de guerra e economia são muito pequenas ou inexistentes. Kerry apoiou Bush nas guerras do Afeganistão e do Iraque. Ele apóia livre comércio e o repressivo Patriot Act. Ele difere de Bush em es-
BF – Bush enviou ao Congresso proposta de orçamento que inclui 731 milhões de dólares para a Iniciativa Antidrogas Andina, dos quais 463 milhões irão para o Plano Colômbia. O que o senhor acha dessa nova ação para aumentar a militarização na América Latina? Petras – Esses 731 milhões de dólares serão direcionados para aumentar as forças militares na Colômbia, no Equador e no Peru, com o objetivo de pressionar o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, e destruir os movimentos populares nesses países. O Plano Colômbia é parte de uma estratégia militar para isolar as guerrilhas. Os Estados Unidos utilizam o Plano Colômbia para estreitar laços com a extrema direita nesse país e na Venezuela. A proposta de militarização é para defender a transição do neoliberalismo para o colonialismo da Alca. BF – Dia 19, a invasão do Iraque completa um ano e Bush se declarou “presidente da guerra”. Petras – As declarações de Bush são mais para consumo interno. Sua esperança é unificar o país durante a eleição de novembro, mas até agora ele não teve sucesso. O país está polarizado na sua candidatura e na guerra. Fora dos Estados Unidos, ele tem apoio dos governos da Inglaterra, da Espanha e da Itália, mas não das pessoas desses países. Ele tem apoio de países da Europa Oriental. Polônia, República Checa, Hungria e Bulgária também oferecem pequenas brigadas militares para apoiar o imperialismo estadunidense no Iraque. Mas a guerra não
é popular em nenhum lugar na Europa ou no Terceiro Mundo. Os Estados Unidos só têm apoio popular entre a maioria judia em Israel. BF – Até hoje, mais de 500 soldados estadunidenses morreram no Iraque. A resistência iraquiana vem ganhando força? Petras – O imperialismo estadunidense se fortaleceu e, ao mesmo tempo, se enfraqueceu com a guerra do Iraque. Eles ganharam bases militares, mas foram enfraquecidos pela resistência popular no Iraque – que está gerando acontecimentos que impossibilitam os Estados Unidos de entrar em novas guerras. BF – Há relação entre as guerras do Iraque e do Vietnã? Petras – Tanto atualmente no Iraque quanto no Vietnã, no passado, a resistência popular armada tem apoio da população e está preparada para uma guerra longa. Os Estado Unidos tentam criar um exército mercenário de marionetes. Mas o exército de fantoches não está motivado a lutar pelo imperialismo e é impopular entre a população iraquiana, que conta com 80% de desempregados, sofreu com um preconceito violento e até mortes. Os militares estadunidenses estão abandonando suas patrulhas e as atividades de segurança. Diversas cidades estão nas mãos da resistência e os Estados Unidos só controlam as estradas e subúrbios durante o dia. A grande diferença, no entanto, é que no Vietnã o esforço da Libertação Nacional foi feito por socialistas revolucionários, enquanto no Iraque ele é conduzido por nacionalistas islâmicos e por nacionalistas seculares. Em todo caso, quanto maiores são a resistência iraquiana e as baixas estadunidenses, maior é a insatisfação política com a guerra nos Estados Unidos. Mais cedo ou mais tarde, o governo estadunidense será forçado a diminuir sua presença e dividir o Iraque em Miniestados coloniais para os curdos, os xiitas e os sunitas.
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INTERNACIONAL ÁFRICA
Marrocos varre as cinzas do terremoto Marilene Felinto da Redação
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ão é a primeira vez que o Marrocos (noroeste da África) enfrenta os desafios de um terremoto. O abalo que atingiu o país na madrugada de 24 de fevereiro foi pequeno se comparado com o maior de sua história, ocorrido em 1960, que sacudiu a cidade de Agadir, na costa atlântica, causando a morte de 12 mil pessoas. O terremoto da semana passada atingiu 6,3 graus na escala Richter (que nunca registrou abalos superiores a 9), matou 572 pessoas e deixou 427 feridos, de acordo com o último balanço divulgado pela agência de notícias Maghreb Arabe Presse (MAP). A MAP informou ainda que milhares de pessoas ficaram desabrigadas. No sábado (28 de fevereiro), o rei Mohamed 6º visitou hospitais e vítimas da região de Al Hoceima, a mais atingida. A embaixada do Marrocos em Brasília disse ao Brasil de Fato que a presença do rei no local foi “moralmente importante” para acalmar os ânimos da população. Nos dias seguintes ao tremor de terra, a população das vilas de Ait Kamara, Tamassint e Imzouren,
Abdelhak Senna/AFP
Vítimas protestaram nas ruas por lentidão da ajuda; embaixada vê importância moral na visita do rei à zona atingida
Mulheres observam restos de seus pertences em Ait Belaziz, sul da cidade de Al Hoceima, região mais atingida
nos arredores de Al Hoceima, saiu às ruas protestando contra a demora ao acesso à ajuda internacional. Os manifestantes chegaram a bloquear estradas por onde trafegavam os caminhões carregados de suprimentos enviados por França, Espanha, Grã-
Bretanha, Bélgica, Estados Unidos e por diversos países africanos, entre os quais Mauritânia (membro da União do Magreb, como o Marrocos) e Tunísia. A ajuda se deu em forma de equipes de socorro para busca de sobreviventes, remédios,
roupas, cobertores, barracas e alimentos. O governo marroquino alegou que a população não estava “facilitando” a distribuição dos produtos da ajuda humanitária com o bloqueio das estradas, e que o acesso
aos suprimentos estava melhorando a cada dia. O epicentro do tremor foi no Estreito de Gibraltar, no Mar Mediterrrâneo, a 180 km da capital do Marrocos, Rabat. Al Hoceima, na costa mediterrânea do país, é uma cidade turística de 100 mil habitantes, montanhosa e de estradas ruins. O terremoto foi sentido a centenas de quilômetros de distância, em cidades como Fez (a 150 km do epicentro) e também no sul da Espanha, na província de Andaluzia e em Murcia. A vila de Imzouren, com suas casas de tijolo de barro e pedra (inadequadas para uma zona de terremotos freqüentes), foi totalmente destruída. Enquanto o rei Mohamed 6º visitava as vítimas no hospital de Al Hoceima, um outro tremor de magnitude 4 na escala Richter foi sentido, sem conseqüências. O rei caminhou pelo acampamento da vila de Imzouren, a 18 km de Al Hoceima, confortando desabrigados, inteirando-se do estado das vítimas e dos danos causados à área onde viviam 30 mil pessoas. No acampamento de 320 barracas, ocupadas por 552 famílias, Mohamed 6º pediu a seus assessores militares e civis rapidez na distribuição da ajuda humanitária e urgência na reconstrução do lugar.
Nome oficial: reino do Magreb Localização: África do Norte Nacionalidade: marroquina Cidades principais: Rabat (capital), Casablanca, Fez, Marrakech, Meknes Línguas: árabe (oficial); berbere; francês e espanhol Divisão política: 7 regiões e duas prefeituras Regime político: monarquia parlamentarista População: 30,5 milhões (ONU, 2003) Moeda: dirham marroquino Religiões: islâmica (98,3%), cristã Hora Local: + 3 Domínio internet: ma DDI: 212
A população da África do Norte tem características físicas e humanas semelhantes às do Oriente Médio. A região de clima desértico é ocupada desde o século 7 por povos árabes, responsáveis pela difusão do islamismo e da língua e da cultura árabes. A porção mais ocidental, conhecida como Magreb (“poente”, em árabe) compreende o Marrocos, a Argélia e a Tunísia. Os demais países árabe-africanos são Líbia, Egito e Djibuti. O Marrocos está separado da Europa por apenas 15 quilômetros, no Estreito de Gibraltar. É banhado tanto pelo oceano Atlântico quanto pelo mar Mediterrâneo. O interior é bastante montanhoso, fato que serviu de proteção
natural ao país, que permaneceu independente por séculos enquanto desenvolvia uma rica mistura cultural de árabes, berberes, europeus e africanos. A região onde hoje se localiza o reino do Marrocos foi disputada, entre os séculos 15 e 19, por portugueses, franceses e espanhóis. O Marrocos foi um protetorado francês de 1912 a 1956, quando o sultão Mohammed se tornou rei e o país se tornou independente. O sudoeste do país, atual Saara Ocidental, ficou sob controle da Espanha (era colônia espanhola desde 1884). Em 1961, o rei Mohammed foi sucedido por seu filho Hassan 2º, que reinou por 38 anos, o mais longo reinado do mundo árabe. Depois de sua morte, em 1999, foi sucedido por seu filho Mohammed 6º, atual rei da monarquia marroquina. As cidades de Casablanca, Fez, Marrakech e Meknes, com seus antigos mercados e monumentos, atraem cerca de 3 milhões de visitantes por ano ao Marrocos, tornando-o o país mais visitado do Magreb.
SAARA OCIDENTAL A proximidade com a Europa e a presença de milhares de imigrantes marroquinos naquele continente (especialmente na Espanha, Holanda e Alemanha) levam o Marrocos a pleitear uma entrada a membro da União Européia (UE) bloco com o qual o país realiza a maior parte de suas trocas comerciais. Os europeus, no entanto, não têm demonstrado
Mehdi Fedouach/AFP
País fica no Magreb, o “poente” africano
Vista geral de Casablanca, uma das cidades que mais atraem turistas ao Marrocos
interesse nessa inclusão. A região sul do Marrocos é ocupada pelo deserto do Saara e compreende o território do Saara Ocidental, cuja anexação pelo Marrocos não é reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU). Durante a Segunda Guerra Mundial, a Espanha invadiu e anexou as áreas de Ceuta e Melilla no litoral norte do país. Em 1975, o Marrocos anexou dois terços da colônia espanhola do Saara Ocidental, e o restante em 1979, quando a Espanha entregou ao Marrocos dois terços da colônia e à Mauritânia, um terço. O Saara Ocidental é rico em fosfato, ferro, urânio e cobre.
Em 1973, surgiu no Saara Ocidental a Frente Polisário, grupo guerrilheiro que luta por um Estado independente (a República Árabe Democrática Saarauí) na região e é apoiado pela Argélia. Em 1979, a Mauritânia abandonou a região e o Marrocos ampliou sua ocupação. O conflito continua sem solução mesmo depois de várias interferências e tentativas de uma força de paz da ONU para realizar um plebiscito popular pela autonomia ou não. O mais recente conflito entre marroquinos e espanhóis aconte-
ceu em 2002, quando soldados marroquinos ocuparam a ilha desabitada de Leila (nome árabe) ou Perejil (salsa, em espanhol), supostamente pertencente à Espanha, localizada a 200 metros do continente, próxima do enclave espanhol de Ceuta. Doze homens permaneceram na ilha de Leila, ato interpretado como uma resposta às pressões exercidas pela Espanha, desde 2001, acusando o Marrocos de incentivar a imigração ilegal para a Europa via Estreito de Gibraltar.
Notas da África MOÇAMBIQUE Missionária brasileira assassinada A polícia de Moçambique prendeu no dia 1º de março seis pessoas supostamente envolvidas no assassinato de Doraci Edinguer, 53, religiosa brasileira da Igreja Evangélica Luterana. Ela foi encontrada no dia 24 de fevereiro em seu apartamento de Nampula (norte do país), com a cabeça esmagada por um martelo que estava ao lado da cama. O crime pode ter relação com uma denúncia realizada por freiras católicas sobre tráfico de órgãos na região. Segundo a agência de notícias Panapress, em 2001, a missionária teria enviado uma carta a seus superiores queixando-se de receber ameaças de morte.
Citando informação da agência Lusa, a agência All Africa disse que entre os detidos estão dois seguranças do prédio onde Doraci morava e três membros da congregação luterana local. Os seguranças teriam sido coniventes com o crime. Também de acordo com a agência All Africa, citando a Agência de Informação de Moçambique, a autoridade de segurança de Nampula, Xavier Tocoli, disse que a missionária “tinha estabelecido uma regra de segurança impedindo qualquer pessoa de entrar em sua casa sem antes comunicar aos guardas, o que nos faz pensar que eles estariam envolvidos no crime, ou sabem quem o praticou.”
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NACIONAL MULHERES
Campanha pede o fim da violência Às vésperas do 8 de março, Anistia Internacional lança movimento mundial em defesa dos direitos das mulheres
A
Anistia Internacional lança, dia 5, às vésperas do Dia Internacional da Mulher (8 de março) uma campanha para combater a violência contra as mulheres. Com o lema “Não mais violência contra as mulheres”, o objetivo é mobilizar as pessoas de todos os gêneros para que se esforcem em cumprir os direitos humanos. A campanha, com duração de dois anos, está centrada na violência contra as mulheres no âmbito familiar e em situações de conflito. Segundo a Comunicação e Informação da Mulher (Cimac), os 370 assassinatos de mulheres e os quatro mil desaparecimentos na Ciudad Juárez e Chihuahua, no México, reportados pela organização mundial, serão um dos casos destacados na campanha. Com a campanha, a Anistia busca também analisar a relação existente entre a violência contra as mulheres e a pobreza, assim como a relação entra a discriminação e a militarização. Na atualidade, as mulheres entre 15 anos e 44 anos de idade morrem mais por conta da violência de gênero do que por câncer, acidentes de trânsito ou malária. Segundo um relatório da Anistia, as principais formas de violência intrafamiliar são as brigas de casal, abusos sexuais de meninas no lar, violência relacionada com o dote de casamento, violação conjugal e mutilação genital feminina e outras práticas tradicionais lesivas para a mulher. Os abusos contra as trabalhadoras domésticas – reclusão, brutalidade física, condições de escravidão e agressão sexual – também podem ser incluídas nesta categoria.
Na comunidade, a violência adota as formas de violação, abusos sexuais, agressão sexual no trabalho, escolas e outros lugares. Incluem-se nesta lista a prostituição e o trabalho forçado, assim como abusos por grupos armados.
Antônio Milena/Agência Brasil
da Redação
INDÚSTRIA DO SEXO
No 4º Fórum Social Mundial, em Mumbai (Índia) as mulheres se manifestaram contra vários tipos de injustiça que as atingem
Agressões ocorrem no mundo todo Em alguns países, a violência é mais branda. Em outros, mais dura. Mas em pleno século 21, a mulher é tratada com desprezo pela magistratura, religião, instituições e sociedade. Alguns dados comprovam isso: Em Quito, Equador, 80% das mulheres já sofreram algum tipo de agressão física por parte dos homens. O Banco Mundial estima que, em cada cinco ausências de trabalho feminino, uma é por violência doméstica. Em algumas cidades das Américas, a quantidade de mulheres atendidas em emergências de hospitais por violência doméstica é maior do que as vitimas de acidentes de automóvel, assalto e câncer somadas. A cada 4 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. Meninas que vivem em bordéis como escravas sexuais na Índia, Filipinas, Nepal e Tailândia são vendidas por seus pais por quantias que variam de 30 dólares a 50 dólares. Mais de um milhão de mulheres são escravizadas a cada ano pelas máfias da prostituição. Em todo o mundo, metade dos casos de agressões sexuais contra meninas são praticados por pais e padrastos. No Kuwait, as mulheres não podem votar.
Um relatório elaborado pelo Parlamento Europeu revela: a indústria do sexo movimenta entre 5 bilhões e 7 bilhões de dólares anuais. O produto usado pela tal indústria é basicamente formado por mulheres jovens e imigrantes, principalmente da América do Sul. O estudo foi elaborado pela especialista sueca Marianne Eriksson para a Comissão de Direitos da Mulher e Igualdade de Oportunidades do Parlamento Europeu. A Espanha já começou a mobilizar-se contra esse tipo de comércio, através de uma reforma de governo que está tirando o sono de muitos donos de pubs, clubes, bordéis, casas de massagem, feiras eróticas, entre outros. A reforma permite a perseguição a todo aquele que lucra com a exploração sexual de uma pessoa, ainda que seja com o consentimento da mesma. O documento do Parlamento Europeu ainda informa que a Europa recebeu, em 1996, mais ou menos 450 mil “trabalhadoras do sexo” e que o papel da internet é fundamental nessa indústria polêmica e milionária. Nos Estados Unidos, por exemplo, segundo o Departamento de Estado, a cada ano ingressam 700 mil mulheres traficadas, um fenômeno que estende-se por todo planeta. Em um extremo existe uma mulher sem oportunidades, no outro um governo sem vontade política para enfrentar o problema. (Adital)
Rosângela Gil de Santos (SP) Ela nasceu em Gijón há 77 anos, cidade que já existia há dois mil anos antes de Cristo com o nome de Gijia. Sua cidade natal fica ao norte da Espanha, no principado de Astúrias. Mas Maria Dolores Muñiz Junquera, ou simplesmente irmã Dolores, escolheu há 37 anos o Brasil para viver, onde faz o que mais gosta: trabalhar com os pobres. Pequena – pesa apenas 38 quilos –, ela vive em uma das regiões mais pobres da Baixada Santista, no litoral paulista. Trata-se do Quarentenário, área de ocupação transformada em bairro que viu nascer. Irmã Dolores lembra como tudo começou: “Os dois primeiros barracos foram montados em 1991, com autorização do Incra (Instituto Nacional de Colonização e ReNo pasarán - “Não passarão”, palavra forma Agrária). de ordem de DoloComeçamos res Ibárruri Gómez (1895-1989), pronun- do zero. Não tínhamos água, ciada em discurso na Rádio Republicaluz, transporte, na de Madri quando nada. Fomos estourou a Guerra conquistando Civil Espanhola, na década de 30. No tudo com orgadiscurso, ela diz:: “É nização e momelhor morrer em bilização”. Na pé do que viver de joelhos. Eles (os seépoca, ela moguidores de Franco) rava no bairro não passarão!” de Samaritá, em São Vicente, e ia a pé para a área de ocupação todos os dias. “Levava 30 minutos andando pela linha do trem”. Hoje, o bairro, com mais de 20 mil pessoas, tem água, luz e transporte. “Mas precisamos de mais”, observa. A partir do trabalho de irmã Dolores, juntamente com a organização não-governamental Vila Ponte Nova Instituição Promocional (VIP) foram construídos a igreja Nossa Senhora da Esperança, um
Rosângela Gil
Irmã Dolores condena o sistema neoliberal Quem é Maria Dolores Muñiz Junquera, ou simplesmente irmã Dolores, nasceu em Gijón, na Espanha, há 77 anos e está no Brasil desde 1967. Reconhecida liderança popular, vive em um dos bairros mais pobres de Santos (SP).
posto de saúde, a Escola de Ensino Fundamental Raul Rocha do Amaral, a Escola Profissionalizante Irmã Dolores, uma escola infantil que virou Escola Municipal de Educação Infantil e “a menina dos olhos” da religiosa, o Centro de Parto Normal “David Capistrano Filho”. Ela não pára um minuto. Sua jornada começa às 7h e se estende até onde a luta necessitar. As pessoas que trabalham com irmã Dolores dizem que ela não dorme. Seu trabalho ultrapassa as fronteiras da Baixada Santista, o que lhe valeu, em novembro de 2000, o Prêmio Santo Dias, concedido pela Comissão Permanente de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de São Paulo. Com doçura, mas muita firmeza, ela diz que uma das “chagas” deste mundo é o neoliberalismo. Faz discursos inflamados e se emociona muito quando o assunto é a exclusão social. Ela fala, denuncia e se agita, repetindo a palavra de ordem de uma conterrânea sua, Dolores Ibárruri, mais conhecida como “La Pasionaria”: “Os neoliberais não passarão”. Brasil de Fato – Por que a opção pela vida religiosa? Irmã Dolores – Porque desde menina eu sempre quis lutar e trabalhar pelos pobres. Eu achava que as religiosas eram aquelas pessoas que consagravam a vida inteira à luta por uma causa. Só
que eu sempre falava que a minha causa teria de ser a dos pobres, que se fosse para ficar num convento e trabalhar com outras pessoas, por exemplo em colégios de classe média, eu iria embora. BF – Quem são os injustiçados a quem a senhora quer servir? Irmã Dolores – Penso que não dá para servir ao Deus dos cristãos, talvez a outros deuses, se não estamos ao lado do oprimido e do injustiçado. Primeiro de tudo porque a Bíblia diz que só conhece a Deus quem pratica a justiça e porque o filho de Deus se fez homem e se fez pobre para abraçar a causa dos pobres e injustiçados. Pobre é aquele que não tem o necessário para viver uma vida digna. O pobre é aquele que vive uma vida constrangida, bem apertada. Ele é o injustiçado do sistema. BF – A miséria, a fome e outras injustiças são problemas para serem superados aqui e agora, ou devese esperar o reino dos céus? Irmã Dolores – Precisam ser superados aqui e agora. Seria um comodismo muito grande pensar que a solução está no futuro. BF – Do que o povo brasileiro precisa hoje: de fé ou política? Irmã Dolores – A fé verdadeira é
uma fé política. Não se pode separar a fé da política. Se eu tenho fé, eu vou lutar pela justiça, vou estar ao lado do pobre, do menor, do oprimido, do injustiçado. É a minha própria fé que me leva a lutar pela justiça. Não há fé verdadeira se não lutarmos pela justiça. BF – E o que é a justiça? Irmã Dolores – A justiça se faz quando todos têm o suficiente para viver com dignidade, quando todos têm moradia digna e não moram em barraco, muito menos num mangue ou embaixo de uma ponte. Tenham atendimento de saúde com qualidade e quantidade suficiente. Tenham trabalho com salário digno. O suficiente para poderem se alimentar, se vestir e para terem uma boa educação. E lazer também. BF – E o neoliberalismo nisso tudo? Irmã Dolores – O sistema neoliberal é o capitalismo selvagem. É a coisa mais injusta que a gente poderia conceber. É um sistema no qual o que tem valor é o lucro, e a vida humana não vale nada. Escutei um sociólogo neoliberal falar que, para o Brasil chegar ao
primeiro mundo, não tinha como não criar desemprego, fome e outros “acidentes de percurso”. BF – Por que a senhora escolheu o Brasil para desenvolver o seu trabalho como religiosa? Irmã Dolores – Realmente eu não escolhi o Brasil. Eu queria ir para um país bem pobre. E na Espanha, quando se fala em países pobres, se pensa na África. Mas a congregação manda você para o lugar mais necessitado de religiosas. Então, acho que dentro do terceiro mundo, naquele momento (final da década de 1960), o Brasil precisava mais. BF – Quando a religião é o ópio do povo? Irmã Dolores – A religião é o ópio do povo quando não se situa no lugar social do pobre, quando converte a religião em emoções. Hoje vemos muita gente dizendo que segue uma religião mas que não quer nada com política, como se a única coisa a fazer é rezar. E reza e canta. E reza e canta, mas não coloca a mão na luta. De alguma maneira, se conforma, se aliena. Cristo morreu lutando pela justiça, foi condenado pelo poder civil e pelo poder religioso. Foi um autêntico revolucionário de seu tempo. BF – Para quem a senhora dá o grito de indignação da também espanhola e guerreira Dolores Ibárruri, o “No pasarán”? Irmã Dolores – Eu diria “no pasarán” para os neoliberais, para os capitalistas, para a gente que só sonha com o lucro. Apesar de tudo o que está acontecendo, eles “no pasarán” porque Deus é maior. Vocês, os neoliberais, podem ter até a riqueza, mas nunca dominarão o mundo.
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DEBATE REFORMA TRABALHISTA
Pela redução da jornada de trabalho s transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas nos últimos anos em todo o mundo mudaram profundamente as relações entre o capital e o trabalho, com profundos reflexos no Brasil. Pagamos até hoje um preço muito elevado pela súbita abertura da economia brasileira, com uma amarga taxa de desemprego estacionada na marca de 13% . Esta situação de desemprego, a mais grave em toda a nossa história, recomenda a revisão da legislação trabalhista para adequá-la aos novos tempos. Mas isso deve ser feito com o devido cuidado para não aumentar ainda mais as dificuldades de um trabalhador tão desprotegido como o brasileiro. Afinal, a flexibilização da legislação trabalhista aumentou o desemprego nos países onde ocorreu. Na Alemanha, o desemprego aumentou de 4,8% para 8,7%; na França, de 9% para 11,3%; no Japão, de 2,1% para 4,7%; na Argentina, o aumento foi de 7,5% para 14,3%. Aqui no Brasil, com a mudança que criou as comissões de negociação nas fábricas, o contrato temporário, a demissão temporária e acabou com a política salarial, o desemprego subiu naquela ocasião de 3% para 9,6%. Uma reforma na CLT precisa levar em conta que nos dias de hoje a relação capital-trabalho é cada vez mais desfavorável ao trabalhador. Antes de reduzir direitos, deve buscar a redução dos custos da contratação, enxugando os penduricalhos da folha de pagamento, transferindo para o faturamento das empresas a contribuição previdenciária. Estamos numa época de automação, de robótica, de cibernética. Empresas altamente automatizadas têm lucros fabulosos, enquanto o reajuste salarial de seus empregados não corrige a inflação do período. Os postos de trabalho estão sendo eliminados. A renda do trabalhador está sendo achatada veloz e progressivamente. Só nos últimos doze meses o ganho do trabalhador despencou 16%. Essa compressão da renda já pressiona os gastos do trabalhador com alimentação.
A
Os supermercados vendem cada vez menos, segundo informação oficial da Associação Brasileira de Supermercados (Abras). No centro da questão está o desemprego, que agora avança de forma assustadora sobre a classe média. Hoje temos 40 milhões de trabalhadores informais e 20 milhões de trabalhadores com carteira assinada que passam pelo maior achatamento de renda jamais vivido em nossa história. Esse quadro não favorece o desenvolvimento. Nenhuma economia cresce espoliando o trabalhador. Por isso, entendo que uma reforma trabalhista deve perseguir a geração de empregos. Eliminando o trabalho infantil.
Proibindo as horas extras. E reduzindo a jornada de trabalho. A jornada de trabalho no Brasil ainda é uma das mais elevadas do mundo e não encontra paralelo em países de situação econômica semelhante. Enquanto o operário brasileiro trabalha em média 2.100 horas por ano, em países da Europa esse número
cai para 1.400 horas. São 700 horas a menos. Reduzir a jornada de trabalho, objeto de projeto de lei de minha autoria já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, significa criar mais postos de trabalho. Temos estudos que estimam a criação de três milhões de empregos se estabelecermos a
jornada de 40 horas semanais. A redução da jornada valoriza a força de trabalho, aumenta sua renda. Com mais dinheiro no bolso, o trabalhador consome mais, aumenta as vendas do comércio, puxa a produção da indústria e restabelece o círculo virtuoso do crescimento econômico. Mas não basta reformar a legislação trabalhista e sindical ou reduzir a jornada de trabalho para gerar novos empregos. Precisamos reduzir substancialmente as taxas de juros, o maior obstáculo ao crescimento econômico do país. Paulo Paim é senador pelo Partido dos Trabalhadores (PT) do Rio Grande do Sul
Kipper
Paulo Paim
Flexibilização sem redução de direitos Vicente Paulo da Silva aralelamente aos debates sobre as reformas previdenciária e tributária, a Comissão Especial da Reforma Trabalhista tem trabalhado intensamente, a fim de propor ao Congresso Nacional mudanças que transformarão as arcaicas regras nas quais se sustentam as relações de trabalho e a estrutura sindical brasileiras. Fundamentamo-nos na certeza de que a desregulamentação não é panacéia para fomentar o desenvolvimento nacional. Ao contrário, a proteção ao mercado de trabalho, sendo garantidos os direitos fundamentais dos trabalhadores, contribui para uma maior estabilidade política e social, incentivando o capital humano e o crescimento da produtividade. A precarização dos direitos fundamentais dos trabalhadores não serve de vantagem comparativa para atrair investimentos. Trata-se, portanto, de atualizar a legislação trabalhista, sem o dogma de ter que flexibilizar para simplesmente reduzir direitos, compreendendo estes eixos:
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reforma sindical, assegurando autonomia e liberdade sindical positiva; reforma do Direito Individual do Trabalho, eliminando dispositivos anacrônicos e preservando direitos fundamentais; criação de uma legislação de incentivo à geração de emprego e renda, alcançando áreas de trabalho não subordinado, para expandir a formalização, principalmente nas pequenas e médias empresas; reforma do processo
do trabalho; e disciplina das relações de trabalho no serviço público por meio da negociação coletiva nos moldes da Convenção 151 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A reforma sindical necessária tem que eliminar interferências indevidas do Estado na organização sindical (aspecto negativo), criando mecanismos que fortaleçam a organização sindical autônoma e a negociação coletiva
(aspecto positivo). Somente com a liberdade sindical positiva, que incentive os sindicatos, poderá haver negociação coletiva. Para isso, há instrumentos a serem inseridos no artigo 8º da Constituição Federal (organização sindical): reconhecimento pleno das centrais sindicais e das organizações nos locais de trabalho; eliminação da unicidade sindical (os conflitos pela legitimidade para negociar serão resolvidos
pelas centrais sindicais ou pela mediação e arbitragem); eliminação da conduta anti-sindical, com reintegração do trabalhador despedido por participação em atividade sindical; extinção gradual da contribuição sindical à base de 20% por ano a partir da promulgação da reforma; obrigatoriedade de desconto e repasse aos sindicatos das contribuições voluntárias dos empregados; e substituição processual sem limitações. Com esses elementos, apresentei, com o deputado Maurício Rands (PT/PE), vice-presidente da Comissão da Reforma Trabalhista, a Proposta de Emenda Constitucional 29/2003, na Câmara dos Deputados, a fim de que a Comissão Especial da Reforma Trabalhista possa encaminhar as discussões a partir de uma proposição que já incorpora alguns dos princípios de liberdade sindical positiva preconizados pela OIT e já praticados nos países de relações trabalhistas mais modernas. Vicente Paulo da Silva, Vicentinho, é deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT) de São Paulo
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA
SÃO PAULO Dia 8 Manifestação articulada por sindicatos ligados à Central Única dos Trabalhadores (CUT), por movimentos de mulheres, partidos políticos e organizações não-governamentais. As principais bandeiras do ato serão os protestos contra a violência e a discriminação; e revindicações por mais empregos, reforma agrária, melhores condições de saúde. Artistas de teatro farão uma dramatização para contar a história do dia 8 de março. No final da manifestação, a cantora Leci Brandão se apresenta na Praça da Sé. Local: Concentração às 11h, na Pça. Ramos de Azevedo, Centro, São Paulo Mais informações: (11) 3819-3876, marchamulheres@sof.org.br
TOCANTINS Até 12 de março O Fórum de Articulação de Mulheres Tocantinenses preparou uma série de atividades para comemorar a data. Dia 8: lançamento da segunda edição da Cartilha sobre os Direitos das Mulheres; dia 9: encontro municipal de profissionais do sexo; dias 10 e 11: curso sobre gênero e direitos humanos para policiais civis e militares; dia 12: encontro de profissionais domésticas e servidoras do lar sobre direitos trabalhistas, direitos previdenciários e dúvidas de empregadas e empregadores. Mais informações: (63) 224-3645
lização; diálogo com a sociedade; promoção da cidadania, por um auxílio ao detento no conhecimento dos seus direitos e deveres; e justiça, por meio de um trabalho pela recuperação e pelo exercício de valores morais, pessoais, coletivos e sociais. Local:R. Matos Vasconcelos, 426, Damas Mais informações: (85) 225-0321, passerini@fortalnet.com.br
CEARÁ DISCUSSÃO: DIA DO TRABALHADOR Dia 5, a partir das 8h Representantes de várias categorias trabalhistas do Estado se reúnem para discutir a programação do 1º de Maio. Participam a Central Única dos Trabalhadores (CUT), pastorais sociais, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), União Nacional dos Estudantes (UNE), Federação de Bairros e Favelas de Fortaleza (FBFF) e Central de Movimentos Populares (CMP). Local: sede da CUT, R. Sólon Pinheiro, 915, Fortaleza Mais informações: (85) 226-7277, cutceara@cutceara.org.br
I ROMARIA DAS ÁGUAS Dia 13 Realizada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), pelas paróquias da região praia e pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Beberibe e com base na Campanha da Fraternidade 2004, cujo lema é “Água fonte de vida” – a romaria quer contribuir para que a população conheça e discuta a problemática da água. As discussões vão abordar a importância das mobilizações populares contra a mercantilização e a privatização da água, assim como a conscientização sobre o desperdício da água. Os organizadores esperam que esse seja um ponto de partida para o engajamento da sociedade civil e do poder público na construção de políticas públicas que garantam o acesso à água para a população rural. Local:(endereço a confirmar), Beberibe Mais informações: (85) 272-8357
RIO DE JANEIRO EXPOSIÇÕES: IMAGENS DA EXCLUSÃO SOCIAL Dia 15, às 18h Organizadas pelo Centro Cultural da Saúde no evento denominado Imagens da Exclusão Social, as exposições fotográficas “Trópicos do Abandono” e “Sua Rua, Minha
Vida” são produzidas pela Organização Internacional Médicos Sem Fronteiras. São imagens que narram a rotina de indivíduos de posições geográficas distintas mas que têm na pobreza e no descaso das autoridades um inimigo comum. Até 1º de maio, de terça a sábado, das 10h às 17h. Entrada gratuita. Local: Centro Cultural da Saúde, Pça. Marechal Âncora, s/n, Centro, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2240-5568
SÃO PAULO Centro de Imprensa Alternativa Empenhados em expandir o debate sobre a democratização da mídia e mostrar que um outro jornalismo é possível, estudantes e jornalistas da Faculdade de Comunicação Social (Facos) da Universidade Católica de Santos (UniSantos) fundaram, dia 1º de março, o Centro de Imprensa Alternativa (CIA). O projeto pretende incentivar a criação e fortalecer a veiculação de veículos independentes. O Diretório Acadêmico Júlio de Mesquita (DA Facos), que encabeça as atividades, está reunindo um acervo para resgatar a história dos grandes títulos alternativos que circularam no Brasil nos anos 70 e 80. Dia 5, o Coletivo Intervozes promove debate sobre o projeto conhecido como Pró-Mídia, que tramita no Congresso Nacional, e diz respeito à liberação de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para socorrer grandes grupos de comunicação. Durante a semana, haverá outras atividades. Local: Campus Pompéia, R. Euclides da Cunha, 264, José Menino, Santos Mais informações:
Experiências de luta
Divulga ç
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ASSEMBLÉIA DA PASTORAL CARCERÁRIA Dia 6, das 8h às 17h A assembléia vai analisar a cartilha da Pastoral Carcerária de São Paulo e elaborar propostas para a formação de uma cartilha nacional. Será debatida, também, a transformação da Pastoral Carcerária em pastoral regional. Foram convidadas as dioceses de Itapipoca, Crato, Limoeiro do Norte, Tianguá e Sobral. A Pastoral Carcerária, ligada à Arquidiocese de Fortaleza, trabalha com os encarcerados em quatro linhas de atuação: evange-
Se, na esquina da história, os torturadores e assassinos continuam emboscados, urge reforçar
obra. Frutos da experiência concreta dos trabalhadores, colhidas e condensadas por combatentes que não se furtaram a cumprir seu papel nas batalhas pela autodeterminação dos povos e pelo socialismo, as lições de Julius
“Reportagem ao pé da força”, de Julius Fucik, foi escrito na prisão da Gestapo, em Pankrac, durante a primavera de 1943); de Henri Alleg, “A tortura” foi escrito há mais de quarenta anos, ainda na época da guerra de libertação da Argélia; “O que todo revolucionário deve saber sobre a repressão”, de Victor Serge, explica que nós devemos conhecer os meios do inimigo e devemos conhecer também toda a extensão da nossa própria tarefa. CONFIRA
chegam ao peito como um golpe pode parecer demolidor, aos combatentes da causa dos trabalhadores resulta como o desfibrilador impacto que excita o músculo e renova o pulsar do coração
DA REGIÃO CENTRO Dia 13, a partir das 11h O Movimento de Moradia da Região Centro (MMRC) vai comemorar seu primero ano com uma festa beneficente, na ocupação Plínio Ramos. Haverá espetáculo teatral, concurso de forró, shows de MPB, jazz, rap, reggae e apresentação do músico Zé Geraldo. O evento vai angariar fundos para a construção de uma brinquedoteca e de uma sala de informática na ocupação, além de dar visibilidade para os movimentos de luta por moradia. Local: R. Plínio Ramos, 112, Luz, São Paulo Mais informações: (11) 228-4854, 9891-6039
extenuado. A existência desses livros é a prova de que os homens que têm a ciência da necessidade da transformação fazem-se livres ao conquistar a certeza de sua possibilidade.
A hora obscura 304 páginas R$ 13,00 Editora Expressão Popular R. Abolição, 266, São Paulo Tel. (11) 3105-9500 www.expressaopopular.com.br
Divulgação
Arquivo JST
DOCUMENTÁRIO: FLORESTAN FERNANDES O MESTRE Dia 6, 16h e 21h; dia 7, 15h e 20h Produzido pela TV Câmara, o filme mostra a trajetória do engraxate, garçom, professor e deputado que se tornou um dos maiores nomes da sociologia brasileira. Durante 50 minutos o espectador percorre os caminhos da infância de Florestan Fernandes no Brás, em São Paulo, por onde carregava sua caixa de engraxate. Florestan trabalhava de garçom quando, aos 17 anos, resolveu fazer um curso de madureza hoje, supletivo. Quase duas décadas depois, ele integrou a primeira geração de professores brasileiros da Universidade de São Paulo. Ao morrer, era considerado o maior sociólogo brasileiro e referência internacional na sociologia. Eleito duas vezes pelo PT, transformou-se em um ícone na Câmara dos Deputados. Foi aluno de Roger Bastide e Claude Lévi-Strauss, professor de Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni, colega de Antônio Cândido e Hermíno Sachetta. Suas primeiras grandes obras, das mais de 50 que publicou, foram sobre a sociedade dos índios Tupinambá, tribo da faixa litorânea praticamente extinta desde o século 17.
DIA INTERNACIONAL DA MULHER
Divulgação
NACIONAL
II ENCONTRO NACIONAL DE VIOLEIROS Dia 14, das 9h às 24h O encontro, que ocorre junto com a Festa do Milho Verde em Louvor a São José Operário, vai reunir companhias de Folias de Reis, grupos de dança de Catira e violeiros de vários Estados. Já estão confirmadas as presenças dos violeiros Pereira da Viola, Ivan Vilela, Chico Lobo, Rubinho do Vale, Levi Ramiro, Roberto Correa, Gedeão da Viola, Bilora, da dupla Zé Mulato e Cassiano e a Orquestra de Viola de São Paulo, entre outros. Uma parceria entre a Diocese de Ribeirão Preto, os violeiros e o MST, a festa popular promete repetir o sucesso de sua primeira edição, em março de 2003. Entrada gratuita. Local: Sítio Pau D’Alho, Via Anhanguera, entrada sentido Jaboticabal/ Sertãozinho. Chegando na Rodovia Anel Viário Contorno Norte, o Centro de Formação fica no km 328, Ribeirão Preto Mais informações: (16) 3975-2343
(13) 9783-8165, imprensa.alternativa@uol.com.br. SEMINÁRIO: HOMENS PELO FIM DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER Dia 6, das 10h às 16h Promovido pela Casa de Cultura da Mulher Negra, o evento tem o objetivo de conscientizar o público masculino sobre a questão da violência contra a mulher. Só homens poderão participar, de preferência jovens, negros, de 18anps a 25 anos. Local: R. Prof. Primo Ferreira, 22, Santos Mais informações: (13) 3223-0738 ccmnegra@uol.com.br ANIVERSÁRIO DO MOVIMENTO DE MORADIA
A CIDADE DE SÃO PAULO NO CINEMA BRASILEIRO Até 31 de março O ciclo de filmes e debates vai exibir filmes em que a cidade de São Paulo esteja representada, em ficção e documentário. Entre os convidados para as sessões de debates estão alguns dos principais criadores do cinema nacional e pesquisadores da arte e da cultura. O módulo “Malandros, Otários, Ricos, Excluídos” traz filmes em que a observação da vida na cidade se faz pelo ponto de vista social: a riqueza, a pobreza e as atitudes e comportamentos tomados em vista dessa distinção inicial são o centro. “Maneiras de Amar” trata de concepções do amor em São Paulo, a partir da obra de três cineastas centrais: um no período do cinema mudo, e dois no cinema sonoro. “Ser Paulistano” aborda quatro maneiras de pertencer à cidade, desde os bandeirantes e suas mulheres, passando pela vida em uma casa de cômodos dos anos 50. “A Cidade Vista pelo Cinema” mostra filmes em que aspectos particulares ou momentos de São Paulo foram registrados pelo cinema. O módulo “Os Esquecidos” homenageia, pelo título, o grande filme mexicano de Luís Buñuel, mas ao mesmo tempo o grande cineasta paulista do terror, José Mojica Marins, aqui num filme atípico e raro, Meu Destino em Suas Mãos. Local: Biblioteca Mário de Andrade, R. da Consolação, 94, 3º andar, São Paulo Mais informações: (11) 3241-3459, imsantos@prefeitura.sp.gov.br OFICINAS DE LITERATURA De 10 de março a 30 de junho Promovidas pela Secretaria Municipal de Cultura, as oficinas são gratuitas e abordarão os temas “Um Passeio Por Grandes Obras” e “Texto: Pensamento e Linguagem”. O curso é dirigido a estudantes do ensino médio ou a qualquer pessoa interessada em aumentar seu repertório de leituras ou em aprimorar suas habilidades na linguagem escrita. Os encontros terão duração de duas horas e cada livro será objeto de dois encontros: no primeiro, serão abordados aspectos históricos e literários fundamentais para seu entendimento; no segundo, serão lidas detalhadamente as passagens mais representativas. Inscrições de 4 a 10 de março. Local: Centro Cultural São Paulo, R. Vergueiro, 1.000, São Paulo Mais informações: (11) 3277-3611, ramal 229
CONFEDERAÇÃO DAS COOPERATIVAS DE REFORMA AGRÁRIA DO BRASIL CONCRAB CGC 68.342.435/0001-58 - Fone/Fax: (021)11.222.91.74/223.91.35 Alameda Barão de Limeira, 1232 - Campos Elísios – 01202-00 - São Paulo - SP Edital de Convocação O presidente da Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil- CONCRAB, no uso das atribuições que lhe confere o Estatuto Social da mesma, vem por meio deste CONVOCAR todas as suas afiliadas para a Assembléia Geral Ordinária que se realizará no dia 19 de março de 2004, na Escola Nacional Florestan Fernandes, sito na rua Poá nº. 1140, Bairro Parateí, no município de Guararema, - CEP 89900-000 - São Paulo/SP, às 10 horas e trinta minutos da manhã , em primeira convocação, com a presença mínima de 2/3 (dois terços)dos associados, e em segunda e última convocação às 11 horas (onze horas ) com 50%, mais um, dos sócios, com a seguinte ordem do dia: a)Prestação de contas anual; b)Destinação dos fundos e sobras, e ou prejuízos; c)Avaliação das atividades em geral; d)Plano de atividades para o ano de 2004; e)Eleição do conselho de Administração e Eleição dos Membros do Conselho Fiscal da CONCRAB; f)Outros assuntos de interesse da sociedade. Sendo só para o momento, Saudações cooperativistas, Francisco Dal’Chiavon Presidente São Paulo (SP), 01 de março de 2004.
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CULTURA
De 4 a 10 de março de 2004
CINEMA
Vídeo mostra a outra Cidade de Deus Carlos Collier do Rio de Janeiro (RJ)
“A
gente quer respeito, se você quer falar de nós, vê se fala direito”. O trecho da música do rapper MC Cidinho dá o tom do filme Cidade de Deus. Não a megaprodução codirigida por Fernando Meirelles e Kátia Lund e que concorreu – e não venceu – em quatro categorias do Oscar 2004. O Cidade de Deus em questão é um documentário realizado em vídeo, com produção, direção e edição dos próprios moradores da comunidade da zona oeste do Rio. No documentário, o público pode conferir uma Cidade de Deus sem violência ou tráfico. Trata-se de um trabalho em que os novos videastas valorizam a favela em que vivem. O vídeo é resultado de uma oficina realizada em quatro comunidades de baixa renda do Rio – contrapartida social do Festival Curta Cinema de 2003 –, em que foram beneficiadas também as favelas Terra Encantada (Jardim América), Cantagalo/Pavão-Pavãozinho (Ipanema e Copacabana) e o Morro da Mineira (Catumbi). O lançamento dos quatro documentários foi no Cine OdeonBR, no final de 2003. Depois disso, os vídeos vêm percorrendo um circuito alternativo internacional e já foram exibidos no Fórum Social Mundial, na Índia, no Canadá e no México. “Esse aqui é o melhor lugar do mundo”, dizem vários moradores sobre a comunidade da zona oeste carioca. Eles também mostram projetos sociais como o pré-vestibular comunitário e as aulas de
Carlos Collier/Viva Favela
Documentário feito em quatro favelas do Rio de Janeiro desvenda o universo da solidariedade e da organização social
Aula da turma de vídeo da Terra Encantada, documentários valorizando a favela
dança e capoeira oferecidas na favela. Roberta Greice Barbosa, 17 anos, que participou da produção, explica: “Mostramos a Cidade de Deus da forma que nós a vemos. Pela primeira vez pude ver isso no vídeo. Nem tenho como descrever a felicidade que senti”, diz a garota.
A SOPA VEM AÍ As aulas duraram pouco mais de um mês – de 31 de outubro a 3 de dezembro de 2003. Nelas, os alunos tiveram noções de criação e concepção de roteiro, pré-produção, produção e finalização de um vídeo. O objetivo final era mostrar, do início ao fim, o processo de produção. Um dos idealizadores e coordenador do projeto, Sérgio Duque Estrada, deseja dar continuidade ao trabalho nas favelas. Tanto que ele e os outros coordenadores
Luciana Silva e Fabíola, alunas
estão criando o projeto Social de Produção Audiovisual (Sopa), para formar uma espécie de rede de produção de vídeo em comunidades pobres. “Queremos que eles deixem de assistir as produções para atuar nelas”, diz Duque Estrada. Para o coordenador, o mais importante na realização dos documentários era deixar os alunos completamente à vontade. “Queríamos gravar a comunidade sem nenhuma interferência do asfalto. Eles que decidiram tudo. Viemos só para dar uma base, mas sem qualquer proposta”, explica. A idade dos alunos oscila dos 12anos aos 44 anos, o que serviu para ampliar a troca de experiências. No Jardim América, a aluna mais nova e um dos alunos mais velhos tinham muitas coisas em comum: eram pai e filha. “Tomo cuidado para não querer mandar nela, aqui somos colega de sala”, diz
Paulino Pereira dos Santos. A filha, Cíntia Lima Santos, completa: “Até gosto quando ele está por perto, me sinto mais segura”.
NOVA ESTÉTICA Como a maioria dos jovens praticamente não freqüenta salas de cinema, a referência principal em termos de produção em vídeo era a Rede Globo. Para estimular os alunos a arriscar novas linguagens, a equipe de professores exibiu filmes experimentais para a turma. “Acredito que a nova estética do audiovisual venha das comunidades. Podemos perceber isso no enquadramento e na abordagem dos fatos. Eles colocam muita emoção em seu trabalho”, diz Duque Estrada. As oficinas aconteceram em parceria com outros projetos das comunidades. Na Cidade de Deus, o escolhido foi o Projeto Educação pelo Movimento (PEM). Maria
do Socorro, psicóloga do PEM, ressalta a importância de deixar aos moradores da comunidade a responsabilidade pela produção do documentário. “A receptividade é bem diferente. Afinal, são os jovens que viram crescer. Isso os deixa mais à vontade para falar o que pensam”, diz a psicóloga. Ângelo Márcio da Silva, presidente da organização Centro Integrado de Ação e Desenvolvimento Social (Ciads), que atua no Jardim América (zona norte carioca) e foi parceira do projeto na Terra Encantada, também destaca a importância de dar voz aos jovens de comunidades. “Aqui ninguém usa ninguém. Nós nos juntamos. E é assim que tem que ser daqui pra frente”, diz. No vídeo Vamos juntos comunidade, do grupo da Terra Encantada, os entrevistados foram as “celebridades” locais, que desenvolvem trabalhos importantes na comunidade. Entre eles estão um escultor de madeira, um músico, um luthier (profissional que fabrica instrumentos) e uma parteira. Um dos alunos, Paulo Roberto Murras, diz ter se identificado bastante com os entrevistados. “Cada pessoa com quem falei tinha um pouco a ver comigo. A história deles parece com a minha também”, diz. Nas turmas da Terra Encantada, se misturavam alunos de várias comunidades. Além de Jardim América, havia jovens da Pavuna (zona norte) e de Duque de Caxias e Belford Roxo (na Baixada Fluminense). No início, a idéia era fazer um filme de ação. Mas eles acabaram mudando o foco para o social. (Portal Viva Favela, www.vivafavela.com.br)
LITERATURA
Latino-americanos lembram 20 anos sem Cortázar ‘’É o argentino de que todos gostam’’, na definição do colombiano Gabriel García Marquez. ‘’É o Simón Bolivar da literatura latino-americana, que nos libertou libertando-se, usando como arma uma linguagem nova’’, celebra o mexicano Carlos Fuentes. ‘’É o Che Guevara da arte literária’’, sentencia o autor andaluz José Manuel Fajardo. ‘’Lendo sua obra, não aprendemos só a escrever melhor, mas também a viver”, recomenda José Saramago. No plano profissional, pessoal ou político, são muitos os quesitos que apontam Julio Cortázar, argentino nascido em Bruxelas, como figura ímpar das artes. Escritor recluso e excêntrico, autor cuja matéria-prima era o mais convencional cotidiano, que ele mesclava com seus devaneios numa poção inebriante. Artista dado às causas políticas, mas que tinha horror ao rótulo de ‘’comprometido’’, que lhe tirava ‘’liberdade de escrever sobre o que quiser’’. Em 2004, quando se celebram SAIDEIRA
20 anos de sua morte, por leucemia, os governos da Argentina e Espanha, e o Mercosul Cultural, definiram o “Ano Julio Cortázar”. No centro das diversas celebrações, uma mostra está rodando países da América Latina e Europa, incluindo o Brasil. A exposição multimídia, que passará pelo Museu da Imagem e do Som (MIS), na cidade de São Paulo, reúne parcerias de Cortázar com artistas visuais (fotógrafos, pintores e escultores), suas músicas preferidas (tango e jazz) e documentários sobre sua vida. No México, a Universidade de Guadalajara inaugurou, em fevereiro, a Casa Cortázar, sede do Centro de Estudos de Literatura Latino-Americana, uma iniciativa da qual participarão Carlos Fuentes, García Márquez e Saramago.
RAÍZES LATINO-AMERICANAS Professor, Cortázar lecionou em cidades pequenas – enquanto publicava, sob o pseudônimo “Julio Denis”, sua primeira obra, a coletânea de poesias Presencia. Em 1951, com Bestiario – seu livro mais famoso – já publicado, foi
Villareal
Daniel Merli e Natalia Alvarez de Buenos Aires (Argentina)
morar em Paris, trabalhando como tradutor para a Unesco, o órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) para educação e cultura. Mais tarde, admitiu que um de seus descontentamentos com a vida em Mendoza, na Argentina, era o governo do presidente Juan Domingo Perón, o militar que industrializou
o país, tornou-se herói dos pobres e cujo legado até hoje divide a esquerda argentina. Em Paris, a distância forçou-o a uma descoberta de sua identidade latino-americana. Passou por uma guinada ideológica e começou a apoiar abertamente Cuba e Nicarágua, durante o governo da Frente Sandinista de Libertação Nacional. Com o socialismo cubano, nutria uma relação especial. Visitou o país seguidamente, já a partir de 1961, apenas dois anos após a revolução. Sua primeira obra de cunho político, Reunião, é narrada em primeira pessoa por um guerrilheiro misterioso, instrospectivo e conflitivo. Ao longo do texto, percebe-se a referência: seu conterrâneo Ernesto Guevara. No ano seguinte, escreveria um pequeno poema a Che, sob o impacto da notícia de seu assassinato: ‘’Não nos vimos nunca/mas não importa/Eu tive um irmão’’.
POLÍTICA E ARTE Cortázar voltou ao tema político outras vezes, sempre carregado de talento. Em 1973, lançou o romance Libro de Manuel, ambientado na luta armada latino-americana. A obra
denunciava o horror das ditaduras, mas polemizava com os guerrilheiros. ‘’Conheci pessoalmente alguns deles em Paris, e, em seu semblante fechado, não havia a menor brecha nem para um sorriso. Percebi que, com todos seus méritos e sua coragem, se essa gente chegasse ao poder, não seria a revolução que eu queria ‘’, disse. Recebeu um prêmio pela obra, cujo valor foi doado aos chilenos que resistiam ao ditador Augusto Pinochet. A postura pública de Cortázar só teve o peso que lhe foi atribuído pela criatividade e talento com que desempenhou suas funções de escritor. E no campo literário, agiu com ainda mais gana contra as forças conservadoras. ‘’Temos que lutar contra o idioma, para que não nos imponha suas fórmulas, clichês e frases feitas, tudo isso que caracteriza tão bem a um mau escritor’’, recomendava. E não se preocupava muito com as críticas à sua obsessão inventiva: ‘’É muito fácil advertir que cada vez escrevo menos bem, mas essa é precisamente minha maneira de buscar um estilo’’. (Portal Planeta Porto Alegre, www.planetaportoalegre.net)