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Ano 2 • Número 54

R$ 2,00 São Paulo • De 11 a 17 de março de 2004

Movimento critica o modelo elétrico Daniel Garcia/AFP

Organização dos atingidos por barragens alerta que novas hidrelétricas expulsarão mais de 100 mil famílias do campo

A

construção de 70 novas barragens, prometidas para o fim de 2007, desalojará mais de 100 mil famílias, número superior à previsão de assentamentos prometidos pelo Plano Nacional de Reforma Agrária. A denúncia é do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), cujos dados mostram que, nos últimos 40 anos, mais de 1 milhão de pessoas foram expulsas de suas terras por causa do modelo energético, voltado para as grandes empresas eletrointensivas. O MAB acusa o governo de omissão ante as privatizações e exige a revisão do preço da energia para a população. Pág. 8

Política de Palocci desagrada PT

Marcelo/MMC

RECUO – Apesar de a maioria dos argentinos apoiar o não-pagamento da dívida, o presidente Kirchner depositou 3,1 bilhões de dólares na conta do FMI. Pág. 9

“Essa foi a primeira reunião em que a esmagadora maioria criticou a política econômica, em vez de apoiar”, diz Valter Pomar, da executiva nacional do PT, sobre documento aprovado, dia 5, em encontro nacional do partido. O texto pede mudanças, refletindo o desconforto da militância. E pode representar um início do fim das práticas neoliberais no governo Lula. Pág. 3

Mulheres camponesas exigem política social No 8 de março, Dia Internacional da Mulher, 1.600 trabalhadoras rurais de 18 Estados apresentaram em vários ministérios, em Brasília, sua lista de reivindicações. A plataforma de luta foi assumida conjuntamente durante o 1º Congresso Nacional de Mulheres Camponesas. Entre as exigências do Movimento das Mulheres Camponesas (MMC)

está uma linha de crédito especial para as lavradoras, desvinculada do estado civil e de autorização do marido. A mobilização dos movimentos feministas cresce em todo o país, como destacam, no Debate, a senadora Fátima Cleide (PT-RO) e a deputada federal Clair da Flora Martins (PT-PR). Págs. 3 e 14

A “farsa” da paz no Haiti

E mais: ÍNDIOS - Em Roraima, liminar garante a presença de pessoas dentro da área demarcada para a reserva indígena Raposa/ Serra do Sol, justamente no dia em que é prometida a homologação da reserva pela União. Pág. 6 IMPERIALISMO - A tática estadunidense para impor a Alca mudou, mas o objetivo de criar uma ditadura se mantém. É o que diz o jornalista Miguel Urbano Rodrigues. Pág. 11 ZAPATISTAS - Ana Esther Ceceña conta que o movimento “luta para que não haja mais soldados” e denuncia 700 bases militares estadunidenses no mundo. Pág. 10

Marcio Baraldi

Mulheres camponesas realizam seu primeiro encontro em Brasília, no Dia Internacional da Mulher

Ao enviar ao Haiti 1.100 brasileiros para compor as tropas de paz da Organização das Nações Unidas, o Brasil aceita fazer parte de uma “farsa”. Em artigo exclusivo, José Arbex Jr. explica o interesse dos Estados

Unidos na queda do presidente Jean-Bertrand Aristide (que está refugiado na África), exatamente quando aumentam pressões sobre a Venezuela e crescem as ameças a Cuba. Pág. 9

Cooperativa da reforma agrária vira referência

Projeto do governo favorece grandes grupos

Responsável pela geração de renda para cinco mil famílias, a Cooperoeste é a segunda maior empresa do município de São Miguel do Oeste, em Santa Catarina. Mantida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e pelo Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), a Cooperoeste foi reconhecida como a mais bem-sucedida empresa da reforma agrária. A indústria envasa 220 mil litros de leite por dia, com 100% de sua capacidade. Além dos associados, 1.300 produtores da região desfrutam dos serviços. Pág. 7

EUA convocam reunião para emplacar a Alca

Pág. 5

Pág. 9

Rainha do Xaxado merece mais espaço na mídia Pág. 16

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De 11 a 17 de março de 2004

NOSSA OPINIÃO

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Tiago Rodrigo Dória • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Bernardete Toneto, 5555 Marilene Felinto, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, 5555 Natália Forcat, Nathan, Ohi • Diretor de Arte: Valter Oliveira Silva • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Bruno Fiuza e Letícia Baeta 55 Programação: André de Castro Zorzo 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: FolhaGráfica 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

Quando virão as mudanças?

N

as últimas semanas, foram revelados novos fatos políticos e dados econômicos. Talvez a notícia mais importante tenha sido a de que o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu apenas 0,2%, índice que diante do crescimento demográfico do país, de 1,8%, representa uma queda na renda per capita dos brasileiros. É o atestado de que a política econômica aplicada nesses 15 meses do governo Lula não condiz com a propaganda, de geração de estabilidade com crescimento. Esse dado soma-se a outros indicadores econômicos já conhecidos. A produção industrial não cresce; mantém-se nos mesmos níveis de 1999. O desemprego continua crescendo. A renda do trabalhador que ainda tem emprego caiu 15%. E o consumo interno de bens de consumo de massa despencou em relação a 2002. Do outro lado da balança, alguém está ganhando e acumulando. Os lucros do sistema bancário nunca foram tão altos. As 73 empresas brasileiras (uma minoria) que atuam na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) tiveram um aumento médio de seu lucro líquido, comparado a 2002, de nada menos que 700%. O governo pagou mais de R$ 60 bilhões de juros da

dívida interna pública (federal) aos bancos e, mesmo assim, a dívida total passou de R$ 630 bilhões para R$ 730 bilhões. Os fazendeiros do agronegócio estão exultantes com suas exportações. Pudera! Nunca ganharam tanto dinheiro, porque o dólar está nas alturas e porque o governo federal não tem coragem de revogar a Lei Kandir, que isenta os 17% de ICMSs sobre exportações agrícolas. Ou seja, todo o povo está subsidiando as exportações agrícolas. Nessas semanas, a novidade é uma só: a ficha começou a cair. E o todo-poderoso Antônio Palloci parece não ser mais tão unânime. Setores empresariais começam a criticar. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) fez duras críticas ao modelo econômico no lançamento da Campanha da Fraternidade. E – pasmem! –, até o ministro Ricardo Berzoini aceitou a tese da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), de que não basta o PIB crescer, pois mesmo assim os empregos não aparecerão. As vozes se completam com um artigo do insuspeito e até aqui satisfeito Delfim Neto. Ele revelou, na revista Carta Capital, estudos

FALA ZÉ

que comprovam que, pela estrutura da economia brasileira, a cada 1% de crescimento do PIB, o emprego cresce apenas 0,3%. Ou seja, se um dia a economia crescesse 10%, mesmo assim o emprego cresceria apenas 3%, um pouco mais que a população. E, finalmente, até a direção do PT lançou nota pedindo mudanças na política econômica. Essa é a hora de não apenas personalidades do governo e entidades se manifestarem. É hora de o tema ser discutido por todos os setores da sociedade, hora de refletir sobre a necessidade não apenas de baixar as taxas de juros, mas sim de mudar o modelo econômico neoliberal, que na sua essência continua intacto desde os tempos de FHC. Palloci havia pedido seis meses para colocar a casa em ordem. A casa foi pintada e reformada, e o povo, despejado. Alguém precisa passar os jornais ao presidente, avisar que ele já cumpriu 32% de seu mandato e dizer que a continuidade dessa política só agrava os problemas do povo brasileiro. E, aos mais “puxa-saco” do governo, um recado: com essa política, ninguém se reelege, a não ser FHC.

OHI

CARTAS DOS LEITORES BRASIL É claro que o mundo progrediu muito, em especial a partir da segunda metade do século recém-findo. Alegar que não nos beneficiamos como deveríamos de todo o progresso, devido aos portugueses, aos espanhóis ou à religião católica, entre outros fatores, é uma grosseira demonstração de ignorância histórica. Nossos erros foram e continuam sendo oriundos da alienação política, social, cultural e econômica de todos aqueles que compuseram e compõem a nossa própria história, isto é, de todos nós. Eis porque é necessário que olhemos nossos erros do passado e, em especial, do presente, para não repetilos, se é que pretendemos ter um futuro mais condizente com nossas potencialidades materiais e humanas. Desta forma é que devemos comemorar o que virá depois de muito trabalho e de muita luta: uma nação independente, livre e progressista, com igualdade de participação às suas imensas riquezas, com oportunidades iguais para todo o povo. Enfim, uma nação que poderá liderar sem explorar outras nações. João Carlos da Luz Gomes Porto Alegre (RS) CALA-A-BOCA Antes de pedir a cabeça do senhor José Dirceu, o senhor Arthur Virgílio (e o PSDB) devem explicações ao povo brasileiro sobre a CC-5, que foi o maior roubo já praticado sob orientação do governo; sobre o Proer, que foi o maior roubo (não o único) praticado pelos bancos, sob orientação do governo; sobre as doações a empresas estrangeiras para adquirirem patrimônio público brasileiro; sobre a exoneração do honrado e admirado Miguel Reale Jr., quando estava prestes a desmantelar uma das maiores quadrilhas (não

a única) instalada no Brasil, sob a alegação singela do senhor Fernando Henrique Cardoso, de que isso atrapalharia as eleições. Nós, eleitores, temos o direito e o dever de exigir explicações ao governo. O senhor Arthur Virgílio, não. Ele tem mais é que calar a boca. Nevile Vieira Curitiba (PR) SAUDAÇÕES Sou estudante de jornalismo da Universidade Metodista e um inconformado com a parcialidade da grande mídia. Mandei uma mensagem ao jornal O Estado de S.Paulo, criticando-os e à família Mesquita. Parabenizo-os pelo brilhantíssimo trabalho. Como alguém que tem a carreira como missão, e não como algo para ficar rico, afirmo que me espelho em vocês e recomendo a leitura de Brasil de Fato a todos. Sigam em frente. Eduardo Montesanti Goldoni por correio eletrônico

ERRAMOS Na edição 51, a matéria da página 3 intitulada “Governo endurece contra exploração” contém alguns erros. A Proposta de Emenda Constitucional nº 438/2001, que garantiria a expropriação de propriedades em que fosse comprovado o emprego de trabalho escravo, ainda não aprovada pelo Congresso, atualmente, tramita em Comissão Especial. O advogado Aton Fon Filho é diretor da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e não integrante do Movimento Humanos Direitos.

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CRÔNICA

A verdadeira Enciclopédia do Futebol Juarez Soares “Quem é aquele homem que toda manhã passeia solitário ao longo da praia, molhando os pés na areia?”, perguntou o menino. E a voz respondeu: “Aquele homem é um mestre. Seus pés molhados já encantaram o mundo. Por todos os lugares banhados pelo oceano seus pés já estiveram, dando aulas de classe e elegância”. O menino perguntou: “Ele, que já deu aulas e lições, ficou rico? Ganhou muito dinheiro?”. A voz respondeu: “Não, meu menino, ele não ficou milionário. Ganhou, no entanto, mais que riqueza. Conquistou batalhas e títulos, foi campeão do mundo, foi reverenciado por multidões, ganhou respeito, conquistou a glória, essas coisas que o dinheiro não pode comprar. Certa vez, um rei criança, emocionado, chorou no seu ombro. Recebeu dele compreensão, carinho e amparo”. E o menino perguntou: “É verdade que de manhã bem cedo ele acorda ouvindo os passarinhos?” E a

voz respondeu: “É certo, meu menino. Quando nasce o sol, ele ouve os pássaros, ecoa os seus cantos, conversa com a natureza. Depois, vai para a praia. Aquele rapaz de uniforme que caminha com ele é o gari, o encarregado da limpeza da praia. O mestre caminha com ele, troca idéias, ouve, escuta, fala, conversa, aprende. Para ele, é o prêmio da amizade simples e sincera”. O menino perguntou: “Esse homem que anda pela praia de Saquarema nunca trabalhou?”. E a voz respondeu: “Trabalhou, meu menino, sempre no mesmo emprego. Exercia sua profissão vestido com um uniforme preto e branco. Durante sua vida, vestiu só essa vestimenta, por 17 anos. Verdade que vez por outra era chamado para exercer seu ofício em outras missões. Era obrigado então a usar outro uniforme. Seu trabalho também encantou o mundo, foi campeão duas vezes”. E o menino perguntou: “E hoje, o que ele faz além de passear na

praia?” E a voz respondeu: “Hoje, meu menino, como um prêmio por uma vida de trabalho, ele tem o respeito do seu povo, a amizade pura dos amigos, todos o respeitam. É a recompensa que dá dignidade aos homens de bem”. E o menino perguntou: “Quantos anos ele tem?”. E a voz respondeu: “Ele tem 78 anos, uma lição de vida”. E o menino perguntou: “Afinal, o que ele fazia? Qual é o nome dele?”. E a voz respondeu: “Ele jogava futebol e seu nome é Nilton Santos”. E o menino perguntou: “Foi ele que o Pelé esqueceu de colocar na lista dos melhores do mundo?” E a voz respondeu: “Foi, meu menino, mas ele já perdoou o Pelé. Ele tem a sabedoria da Enciclopédia do Futebol. Sabe, meu menino, você também deve perdoá-lo. O Pelé às vezes fica meio bobo, não sabe o que faz”. Juarez Soares é cronista esportivo e escreve uma vez por mês neste espaço

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De 11 a 17 de março de 2004

NACIONAL MULHERES

Camponesas reivindicam seus direitos

MACHISMO E PEREGRINAÇÃO ‘‘Precisamos fortalecer nossas lutas pela transformação social e pela igualdade”, afirmou Loiva Rüi-

GOVERNO

PT pede mudanças na política econômica Anamárcia Vainsencher e Luís Brasilino da Redação Dia 5, após reunião da executiva nacional em São Paulo, o Partido dos Trabalhadores divulgou comunicado intitulado “Em defesa do patrimônio ético do PT”. É certo que a crítica pública do partido governista à política econômica conduzida pelo ministro Antonio Palocci Filho, da Fazenda, e Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, não resultou de tomada súbita de consciência dos estragos. Antes, foi conseqüência da soma de fatores como o escândalo “Waldomirogate”, os resultados da economia em 2003 e mesmo as próximas eleições municipais. “Vamos trabalhar para que o governo implemente as medidas necessárias para que 2004 marque o início de um novo e sustentado ciclo de desenvolvimento econômico e social do país, por meio de mudanças na política econômica necessárias à implantação e à consolidação de todos os nossos programas sociais, econômicos e administrativos”, diz trecho da nota do PT. O partido volta aos tempos da campanha, prometendo lutar “para realizar os compromissos assumidos: promover o desenvolvimento econômico e social com geração de emprego e distribuição de renda”. E, malgrado os resultados de um ano de administração do país, o documento da executiva nacional diz que “o PT é o partido do crescimento econômico, da distribuição de renda, da geração de emprego e da inclusão social”.

ELES FORAM AVISADOS? Talvez o PT precise avisar suas novas intenções ao ministro da Fazenda e ao Presidente Banco Central. Acontece que o partido foi a principal força de um governo que, em 2003, comandou uma economia em queda de 0,2%, não alterou a distribuição de renda no país (renda essa que sofreu queda de 12,9% entre os trabalhadores ocupados, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE), viu o desemprego subir

para 12,3% nas seis regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE e, em decorrência disso tudo, a inclusão social sair pelo ralo. Para Valter Pomar, da executiva nacional do PT e secretário da cultura de Campinas (SP), a aprovação do documento, por unanimidade, pode ser encarada como um importante começo no sentido de alterar a política econômica do governo. Ele explica que as atitudes tomadas até o momento foram construídas ao longo de sucessivas vitórias da ala moderada do partido. “Essa foi a primeira reunião em que a esmagadora maioria criticou, em vez de apoiar a Fazenda”, relata. Segundo o deputado federal Ivan Valente (PT-SP), se temos a pressão do Fundo Monetário Internacional (FMI) e dos setores conservadores da sociedade para perpetuar as práticas neoliberais, o documento do PT evidencia uma pressão contrária. “Existe na militância uma quase unanimidade de que a condução da economia está errada. O documento só poderia falar isso mesmo. Mas achei o conteúdo tímido. O partido precisa ser mais agressivo, sob a pena de desmoralizar o processo eleitoral (caso os indicadores sociais continuem piorando)”, explica.

Tanto no Distrito Federal (destaque) como em São Paulo (detalhe), o dia 8 foi de mobilizações por justiça social

Mobilização com acampamento e marcha Tatiana Merlino da Redação

O acampamento acontece pelo segundo ano consecutivo, de acordo com Neusa Lima, uma das responsáveis pelo Setor de Gênero da Secretaria Estadual do MST. “O fato de estarmos acampadas no Centro da capital é uma grande vitória”, disse. No Dia Internacional da Mulher, junto com organizações feministas, elas participaram de uma marcha, com cinco mil pessoas.

Cerca de 300 mulheres do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MTST) acamparam, dias 8 a 10, no Centro de São Paulo, lembrando a capacidade de mobilização feminina na luta por terra, moradia e justiça.

Despejos de assentados nas cidades de Americana e Taubaté (SP), na manhã do dia 9, mudaram a programação do acampamento. A mobilização contra transgênicos foi adiada e as militantes resolveram marchar até a Secretaria Estadual de Justiça, “para protestar contra os despejos violentos que sofremos”, conforme Márcia Merisse, da Secretaria Estadual do MST.

MORADIA

Justiça barra despejo de 50 sem-teto Rodrigo Brandão do Rio de Janeiro (RJ) Cinco desembargadores do Tribunal de Justiça (TJ) fluminense rejeitaram, dia 3, liminar impetrada pela ordem cristã-católica do Santíssimo Sacramento da Candelária, que pedia o despejo de 50 sem-teto de um dos edifícios da irmandade no Centro do Rio. Os sem-teto poderão permanecer no prédio – que ocupam há três meses – pelo menos até 14 de abril, quando o mérito da ação de reintegração de posse será julgado em última instância. A decisão da Justiça – que já havia favorecido os sem-teto em primeira instância – foi recebida como “vitória parcial” pela coordenação do Comitê de Resistência Popular (que lidera os sem-teto) e encarada como resultado dos quatro dias de greve de fome dos militantes Maycon de Almeida, de 28 anos, e Vanda Brito, de 24. Acorrentados à fachada da igreja da Candelária, os dois protestaram contra a decisão da irmandade

Adriana Medeiros

E

m Brasília (DF), o 8 de março, Dia Internacional da Mulher, foi marcado por uma série de manifestações de mulheres camponesas. Depois de três dias reunidas no 1º Congresso Nacional das Mulheres Camponesas, as 1.600 militantes apresentaram uma série de reivindicações. As propostas de ações e bandeiras assumidas pelo Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) foram elaboradas no domingo, dia 7, quando também aconteceu a posse da coordenação nacional do movimento, com representação de vários Estados. O Congresso reuniu trabalhadoras rurais de 18 Estados. Entre os convidados estiveram o ministro das Cidades, Olívio Dutra, que lembrou “a luta histórica e determinada das mulheres camponesas”. A secretária Especial de Política para as Mulheres, Nilcéia Freire, falou do compromisso do governo de criar políticas públicas que atendam às reivindicações do movimento feminista.

benich, uma das coordenadoras do MMC. O que faz diferença para as camponesas que montaram acampamento no Albergue da Juventude é a criação de uma linha de crédito especial para as mulheres. Para Luciana Piovesan, da coordenação do MMC, o Pronaf-Mulher, variação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, é excludente, patriarcal e machista porque apenas as casadas podem solicitá-lo, com a concordância do marido. “Não conseguimos aprovar o crédito especial para as mulheres na safra 2003-2004”, ressaltou. No Ministério do Desenvolvimento Agrário, elas reivindicaram a implementação da proposta, apresentada em abril de 2003, de abertura de linha de crédito especial para as mulheres. “Acessar o crédito especial é fundamental”, destaca Ângela Piovisani, uma das coordenadoras do congresso. Na Previdência, as mulheres exigiram que se mantenham as atuais regras para o acesso aos benefícios dos rurais e reivindicaram a implantação do cartão do segurado especial, a fim de facilitar o encaminhamento de benefícios. No Ministério da Saúde, cobraram a efetiva implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). Anderson Barbosa

Laura Muradi de Brasília (DF)

Elza Fiúza/ABr

No Dia Internacional da Mulher, 1.600 camponesas vão ao Palácio do Planalto cobrar a implantação de políticas sociais

Manifestantes permaneceram os quatro dias e as quatro noites em vigília

de despejá-los do edifício junto com dezenas de famílias. A ordem decidiu, após meses de infrutíferas negociações, entrar na Justiça com uma ação de reintegração de posse. “Só vamos descansar quando eles desistirem da ação e negociarem com a gente”, diz Almeida, coordenador do Comitê de Resistência Popular. “Daqui a um

mês voltaremos à carga com novas mobilizações”, promete. Dia 4, o encerramento da greve e a decisão favorável da Justiça foram comemorados com ato em frente à Candelária. Líderes do Comitê de Resistência agradeceram o apoio e a solidariedade de todos os que permaneceram em vigília junto aos sem-teto.

JUSTIÇA E CIDADANIA

Observatório sofre ameaça de processo Janaína de Paula de Fortaleza (CE) Representantes de entidades que compõem o Observatório da Justiça e Cidadania estão sendo alvo de representação criminal sugerida por quatro desembargadores do Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça (TJ) do Ceará. Eles propõem que a representação seja movida pela Procuradoria Geral da República (PGR). O deputado federal João Alfredo (PT/CE) e sete representantes de entidades estão sendo indiciados por crime de denunciação caluniosa, baseado no artigo 339 do

Código Penal. As pessoas militam em organizações como a Comissão Brasileira de Justiça e Paz do Ceará, Associação dos Parentes e Amigos de Vítimas da Violência (APAVV) e Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca). Membros do Observatório consideram que a ameaça de processo é uma tentativa de intimidação, já que, em 2002, encaminharam notícia-crime ao Superior Tribunal de Justiça, acusando o Conselho de Magistratura do TJ de prática de crime de prevaricação, por não apreciar as representações formalizadas pela rede. Os quatro desembargadores que movem a ação

foram denunciados pela rede. “Em uma situação como essa, a denunciação caluniosa é absolutamente impertinente. A Constituição garante a todo cidadão, ao tomar conhecimento de um crime, ainda que em tese, fazer o encaminhamento”, interpreta Deodato Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-CE), entidade que também integra o Observatório no Ceará. “Há uma tentativa clara e determinada desses membros do Tribunal de Justiça de intimidar o trabalho do Observatório, que hoje é uma referência nacional”, disse o deputado João Alfredo. Segundo

ele, o modelo de fiscalização adotado no Ceará tem servido de referência para o Rio Grande do Norte e Distrito Federal, entre outros. “A Secretaria Especial de Direitos Humanos adotou o Observatório como projeto piloto que poderá ser seguido para o país. Portanto, em vez de nos sentirmos intimidados com essa ação, fomos encorajados”, afirmou. O processo ainda não foi formalizado. A PGR tomou uma decisão administrativa, pedindo a abertura de um inquérito, em função da representação dos desembargadores. Só haverá processo caso opte por apresentar a denúncia junto ao Supremo Tribunal Federal.


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NACIONAL BALANÇO 2003

Resultados são os piores desde 92

A Argentina não é modelo para o Brasil, declarou o presidente do BC brasileiro durante uma reunião que teve como pauta principal a ameaça da Argentina de não pagar a dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Elogiado pelos líderes dos países ricos, Meirelles afirmou que não havia risco de o Brasil seguir o mesmo caminho do vizinho. Estima-se que o BankBoston perdeu 2 bilhões de dólares, só em juros, com a decisão argentina de não pagar credores privados em 2003. Meirelles, ex-presidente do BankBoston, recebe 700 mil dólares anuais da instituição pelos serviços prestados. Armínio Fraga é candidato à diretoria do Fundo Monetário Internacional (FMI). O cargo está vago desde que Horst Köhler anunciou que vai disputar o governo alemão, em uma chapa da direita. O ex-presidente do Banco Central já conta com a poderosa influência de George Soros, seu ex-patrão, e de Joseph Stiglz, ex-Prêmio Nobel de Economia. Assinaturas falsas foram encontradas em um documento enviado pela Associação Nacional de Biossegurança (Anbio) a senadores para pedir revisão do projeto de lei de Biossegurança. O documento tinha como objetivo fragilizar os controles da liberação dos transgênicos. Foram forjadas assinaturas da Sociedade Brasileira de Genética, da Sociedade Brasileira de Microbiologia e da Sociedade Brasileira de Ciência e Tecnologia de Alimentos (SBCTA). O escândalo ainda repercute na comunidade científica e questiona a autoridade moral da Anbio para posicionar-se sobre questões fundamentais para a sociedade brasileira, como a dos transgênicos. A Polícia Militar está governando São Paulo há algum tempo, na opinião do virtual candidato pelo PSDB à prefeitura de São Paulo, o secretário de Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho. Na visão dele, são os policiais que resolvem os problemas da cidade. Durante a gestão linha-dura de Saulo, a PM nunca matou tanto. Em 2002, último relatório divulgado pela Ouvidoria, foram mortos 725 civis – 22,8% a mais do que em 2001. Saulo também ficou conhecido por manter o torturador Capitão Ubirajara, codinome de Aparecido Calandra, em um cargo de chefia no Departamento de Inteligência da Polícia Civil. Para intimidar manifestações populares, o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, decidiu copiar a doutrina Bush. Vai recomendar a delegados que acusem os participantes de protestos populares de ligação com o narcotráfico, passível de prisão inafiançável. A medida foi anunciada depois do confronto entre moradores da favela da Mandela e policiais militares. A comunidade acusa a polícia de ter assassinado cinco trabalhadores. A PM alega que os mortos estavam envolvidos com o tráfico.

Lauro Jardim de São Paulo (SP)

N

em 0,8%. Nem 0,4%. Nem 0,2%. Nem mesmo zero. A economia brasileira, literalmente, andou para trás no ano passado, no pior desempenho já registrado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) desde 1992 – ano de crises na política, com impedimento do então presidente Fernando Collor de Mello; e na economia, com fuga de investidores, retração das vendas, queda na produção das fábricas, desemprego e disparada de preços. Há, obviamente, diferenças entre os dois períodos. A inflação deixou de ser o bicho-papão que representava, embora o Banco Central (BC) continue acreditando que o país estaria eternamente condenado a taxas de juros infernais, para evitar o retorno do imaginário dragão inflacionário. Não houve crises políticas em 2003, e até a conjuntura mundial ajudou, graças à retomada do crescimento nas principais economias do planeta.

PAÍS MAIS POBRE Mas o governo do Brasil decidiu desperdiçar a oportunidade para voltar a crescer. Em 2003, os juros altos, o arrocho nos gastos públicos e nos salários fizeram a economia encolher 0,2% (em 1992, a queda foi de 0,54%) e vinha de taxas medíocres em 2001 (1,3%) e 2002 (1,9%). A disputa entre os ministérios do Planejamento e Fazenda, com apoio do BC, por um décimo a mais ou a menos na variação do Produto Interno Bruto (PIB), que mede o total de riquezas produzidas pelo país em um ano, não tinha sentido. Afinal, o Brasil ficou mais pobre, em conseqüência de uma política econômica recessiva, baseada unicamente na cobrança de juros escorchantes. Nas contas do IBGE, o PIB per capita, que corresponderia, mal comparando, ao total de riquezas produzidas individualmente pelos brasileiros, encolheu 1,5%. Ou seja, cada brasileiro ficou um pouco mais pobre.

Trabalhadores sem emprego procuram por uma vaga no Centro de São Paulo

Isto para não falar da extrema injustiça na repartição da renda e da riqueza no Brasil e do fato de que a retração penaliza muito mais os menos favorecidos, agravando as desigualdades. É o que pode ser percebido no consumo das famílias, que recuou 3,3% no ano passado (ao contrário do que aconteceu com a parte da renda nacional desviada para o pagamento de juros e lucros de bancos e empresas).

REPARTIÇÃO INJUSTA Foi o pior resultado desde que o IBGE passou a acompanhar aquele consumo, em 1990. Foi, ainda, o segundo ano consecutivo de baixa porque, em 2002, as famílias brasileiras já tinham reduzido seu consumo em 0,4%. A partir de 1998, só houve resultados positivos em duas ocasiões, e retração em quatro dos

seis últimos anos. Mesmo assim, o governo petista decidiu manter a mesma política econômica desastrosa da administração Fernando Henrique Cardoso.

ATÉ A CUT COBRA Mas é ao governo passado que o atual continua atribuindo o ônus da culpa pela situação da economia, como fez o ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini. Ele não deve ter reparado que o governo Lula preservou a mesma política, indo até além, aumentando o arrocho nos gastos e investimentos públicos. Não poderia, portanto, colher resultados diversos daqueles dos últimos oito anos – recessão e desemprego. A situação é tal que, mesmo a Central Única dos Trabalhadores (CUT), que até então apoiava incondicionalmente o governo,

começou a cobrar. Em entrevista à imprensa, o secretário-geral da central, João Felício, desabafou: “Não podemos aceitar crescimento pífio da economia, aumento do desemprego e redução da massa salarial (total de salários pagos pelas empresas e governos), que foi exatamente o que aconteceu no ano passado. O governo tem que tomar providências urgentes e mudar o rumo da política econômica”. A direção da central anunciou que prepara para 16 de abril uma série de atos de protesto contra a política econômica. “Será um dia nacional de luta por emprego e salário”, define Felício. A entidade defende a rediscussão do acordo com o FMI, o que significaria rever o aperto sobre o crédito e as despesas do setor público, e uma redução mais acelerada dos juros.

Construção desaba 11% no último trimestre Um dos setores mais sensíveis a variações de pressão e temperatura na economia, por onde transitam virtualmente quase todos os investimentos de um país, a indústria da construção civil encerrou o último trimestre de 2003 em queda vertical de 11,1% em relação aos mesmos três meses de 2002. A perda coloca em cheque as perspectivas de recuperação antevistas pela equipe econômica, ao sinalizar novos retrocessos para os investimentos em geral. No ano, a construção civil fechou com um tombo de 8,6% diante de 2002, um resultado direto da baixa taxa de investimentos e da redução da renda da população. A indústria do setor fechou 38,3 mil vagas, agravando o desemprego, que voltaria a crescer no começo de 2004. Os maus resultados da construção civil, que responde por 21% da produção industrial, foram responsáveis pela retração de 1% na indústria como um todo. O setor de serviços, também altamente gerador de empregos, com peso de 59,2% no cálculo das riquezas produzidas no país, experimentou recuo de 0,1%, influenciado pela redução de 2,6% no comércio e de 0,5% no segmento de transportes.

INVESTIMENTOS DESPENCAM O salto de 14,2% nas exportações de mercadorias e serviços, que explica o bom desempenho de setores específicos, não conseguiu

Marlene Bergamo/Folha Imagem

Os juros altos têm justificativa: “Em estratégia que está ganhando, não se mexe”, disse o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, parafraseando o lema dos técnicos de futebol em reunião com outros presidentes de bancos centrais, na Suíça. Em tempo: o desemprego bateu recordes, a renda do trabalhador continua caindo e o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro ficou menor em 2003. Bons resultados, mesmo, só os bancos tiveram. Alguém tem dúvidas do time em que Meirelles está jogando?

Anderson Barbosa

Desempenho desagrada aliados do governo petista; a CUT programa manifestações

Pedreiro trabalha em obra de escola no Jardim Angela, na periferia de São Paulo

salvar a indústria do desastre. Mas ajudou a sustentar uma taxa de crescimento de 5% para a agropecuária, estimulada pela valorização dos preços dos produtos exportá-

veis, como soja em grão, farelo e óleo de soja, carnes bovina, suína e de aves. Nos dois últimos anos, apenas a agropecuária tem mantido taxas

vistosas de aumento, acumulando um salto de 10,8%, muito acima da média dos demais setores. Mas o restante da economia está em estado tão precário que a agropecuária não consegue mais funcionar como motor do crescimento, como no passado. Diante de números tão ruins, as empresas puxaram o freio dos investimentos, que, em 2003, desabaram 6,6%, segunda maior retração desde 1992. O resultado só foi pior em 1999, quando os investimentos recuaram 7,2%, refletindo a crise provocada pela disparada do dólar e fuga de capitais do Brasil. Sem investimentos, a economia não se move, as empresas param de crescer. No ano passado, as compras de novas máquinas e equipamentos, que poderiam reforçar a capacidade de produção do setor industrial, sofreram baixa de 1,6%. Na construção, os investimentos murcharam 10,4% – não só porque a construção de residências e edifícios e as obras públicas foi virtualmente paralisada, mas também porque as empresas passaram a investir menos em novas instalações, adiando ou cancelando planos de expansão por falta de perspectivas de crescimento futuro, e porque os custos do dinheiro mantinham-se elevados – o que desencorajou a tomada de empréstimos de longo prazo para financiar investimentos e ajudou a empurrar a economia ladeira abaixo. (LJ)


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De 11 a 17 de março de 2004

NACIONAL CRESCIMENTO

Parceria público-privada favorece os grandes Mônica Zarattini/AE

Projeto não elimina riscos de acertos entre administradores e empreiteiras e de uso político dos recursos públicos Lauro Jardim de São Paulo (SP)

O

s últimos ajustes incluídos pelo deputado Paulo Bernardo (PT/PR) no projeto de lei que cria as chamadas Parcerias Público-Privadas (PPP) não foram suficientes para aplacar dúvidas e afastar os riscos de manipulação e desvios do dinheiro público embutidos no texto que deve ser votado, este mês, pelo Congresso. O projeto autoriza o setor público a licitar e contratar parcerias com empresas privadas para execução de obras, e confere ao administrador “uma margem muito maior e mais arbitrária do que as regras normais de contratação de obras pelo setor público”, adverte o primeiro coordenador do Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE), Mário Ernesto Humberg. Na prática, o projeto literalmente atropela a Lei nº 8.666 que, desde 1993, regula o processo de licitações no setor público e abre espaço para arranjos e negócios especiais em favor de grandes grupos econômicos e financeiros. A Lei nº 8.666 determina que serão declaradas vencedoras em licitações e concorrências públicas as empresas que propuserem o menor preço pelo serviço ou obra a ser executados. O projeto das PPP, encaminhado em novembro do ano passado pelo governo e aprovado, com alterações, pela comissão especial do Congresso em fevereiro deste ano, autoriza o administrador público a contratar a melhor proposta técnica, mesmo que esta não corresponda ao menor preço apresentado pelas concorrentes. “O risco de favorecimento a este ou aquele grupo ainda permanece”, comenta Humberg.

PROJETO X LEI Em seu artigo 14, o projeto estabelece que a licitação será julgada com base na melhor proposta econômica e segundo a “melhor combinação entre proposta técnica e a econômica”. Mas não fixa qualquer hierarquia entre as duas possibilidades, deixando o administrador livre

CONTRA FRAUDES

Operários tapam buracos na altura do km 337 da Rodovia Régis Bittencourt, em São Paulo

para utilizar o critério que melhor lhe convier, desde que observe “o disposto no caput e no § 3º do art. 46 da Lei nº 8.666”. Esse dispositivo admite a licitação, por meio de avaliação técnica, nos casos de compra de bens, execução de obras e prestação de serviços “de grande vulto, majoritariamente dependentes de tecnologia nitidamente sofisticada e de domínio restrito”. Para isso, a lei exige justificativa circunstanciada fornecida por autoridades do mais alto escalão do órgão ou setor da administração pública promotora da licitação e atestado de autoridades técnicas qualificadas e independentes.

PARA ESTRANGEIROS Uma obra de engenharia para a construção e exploração de estradas ou ferrovias, e mesmo projetos de saneamento básico, com tecnologia amplamente dominada pela engenharia nacional, portanto, não poderiam ser enquadrados naquela hipótese. Mas o projeto das PPP foi concebido exatamente para facilitar, principalmente, a execução de obras de infra-estrutura nos setores de transportes (rodovias, ferrovias e hidrovias), energia elétrica (usinas e

PPP com dinheiro do contribuinte? O governo brasileiro não estava reinventando a roda quando lançou o projeto de parcerias entre empresas privadas e o setor público. A fórmula é utilizada há anos, com variados níveis de sucesso e fracasso, por vários países, entre os quais Inglaterra, Espanha e mesmo a China, informa Mário Ernesto Humberg, primeiro coordenador do Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE). A proposta surgiu para enfrentar a alegada escassez de recursos públicos para financiar investimentos em setores considerados chaves dentro da economia – como a construção e manutenção de rodovias (detonadas pelas chuvas das últimas semanas); implantação de ferrovias (que permitiriam o escoamento da produção a custos mais baixos e com impactos ambientais menos severos), a ampliação da rede básica de tratamento de água e esgotos e outros.

RECURSOS E REMUNERAÇÃO Assim, numa parceria entre setor privado e Estado, empresas privadas, associadas ou não a bancos, trariam os recursos financeiros para bancar os projetos de interesse do governo, sendo remuneradas por isso. No caso de uma estrada, por exemplo, venceria a licitação a empresa que apresentasse o menor valor para a tarifa de pedágio a ser cobrada no futuro, tirando daí sua receita. Mas o governo pode

não poderão concorrer em condições de igualdade com as gigantes do setor. Na visão do SindusCon-SP e do PNBE, a possibilidade de desvios cresce à medida em que a proposta de PPP exige a realização de préqualificação das empresas privadas interessadas em participar do processo. “Esta etapa permite a eliminação de concorrentes por meio de nota técnica, o que abre campo maior à subjetividade de julgamento”, afirma Humberg.

simplesmente pagar pela obra ou serviço, com recursos públicos. Para garantir esses pagamentos, o projeto de lei das PPP prevê a criação de fundos especiais, formados por recursos dos impostos, ou por ações de empresas estatais (como Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal ou Petrobras), a pretexto de atrair investidores privados. Neste caso, como o governo pagará uma parte do investimento, a empresa poderia cobrar tarifas de pedágio mais baixas, levando em conta apenas o custo de manutenção da obra. “Qualquer que seja o tipo de operação, ela deve ser feita com muita transparência”, insiste Humberg.

linhas de transmissão) e saneamento básico (captação e tratamento de água e esgoto).

SINDUSCON CRITICA Temendo o risco de favorecimentos e operações ilícitas, diante da insegurança jurídica gerada pelo dispositivo, o Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (SindusCon-SP) sugere a aplicação exclusiva da Lei nº 8.666 na formulação das concorrências e no julgamento das propostas. “Deixar para o administrador a escolha do critério de melhor técnica para decidir uma licitação de PPP é de um subjetivismo inaceitável, que anula uma das maiores conquistas da Lei de Licitações”, afirma Artur Quaresma

Filho, presidente do SindusConSP. A entidade teme que, mantidas as normas propostas pelo governo federal, somente “megaempreiteiras, associadas a grandes bancos”, sejam favorecidas.

FALTA TRANSPARÊNCIA Por isso mesmo, sugere que somente obras e projetos de valor superior a R$ 150 milhões deveriam ser objeto de contratação por meio de PPPs. Além disso, num documento aprovado no final de janeiro pela direção da entidade, o SindusCon-SP defende a participação de consórcios na disputa, de forma a assegurar o acesso às obras de um número maior de empresas, favorecendo pequenas e médias empreiteiras – que, de outra forma,

O coordenador do PNBE admite que fraudes e desvios de recursos públicos para outras finalidades, incluindo o financiamento de campanhas políticas, acontecem em todos os países, mas frisa que o Brasil tem um histórico pouco recomendável nesta área. Por isso mesmo, qualquer precaução jamais será excessiva. “A primeira e mais importante delas seria assegurar transparência total a todo o processo, permitindo que a sociedade tenha acesso a todos os dados e propostas”, defende Humberg. Ele sugere que as propostas, assim que abertas, e antes da realização da concorrência, fossem colocadas na internet e publicadas em veículos de grande circulação para apreciação de especialistas e leigos, que avaliariam as chances de o serviço ou obra ser executado dentro dos parâmetros propostos pelas empresas. Esta seria uma fórmula de evitar, ainda, o superfaturamento de preços, acrescenta o coordenador do PNBE.

Tarifa pode encarecer em até 93% Numa eventual parceria entre o setor público e grupos privados para o desenvolvimento de projetos no setor de saneamento básico, as tarifas cobradas pelos serviços de água e esgoto poderão subir entre 58% e 93%, se comparadas aos custos de serviços semelhantes prestados por empresas públicas. Os números estão num estudo comparativo encomendado pela Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae). Insatisfeita com as normas que deverão orientar as PPP, a Assemae decidiu contratar os serviços de uma empresa especializada em avaliar os custos embutidos na implantação e operação de projetos de saneamento básico realizados em regime de PPP. A JBP Consultoria e Gestão de Saneamento Ltda, de Poços de Caldas (MG), responsável pela avaliação, comparou aqueles custos com projetos tocados por empresas públicas do setor de saneamento e chegou a resultados preocupantes.

CUSTOS MAIS ALTOS Tarifas médias, em reais por m*

Alternativas PPP 100 mil habitantes 0,826 10 mil habitantes 1,049 50 mil habitantes 0,871

Empresa pública 0,428 0,594 0,460

Diferença +93,0% +76,6% +89,3%

(*) Projeto de implantação de rede de captação e estação de tratamento de esgotos Fonte: Assemae

ção indiscriminada de soluções do tipo daquelas propostas neste regime não será a panacéia que resolverá os problemas enfrentados pelo setor de saneamento. As conseqüências, principalmente para a população usuária, poderão ser danosas e desastrosas”, diagnostica o economista e consultor João Batista Peixoto, responsável pelo levantamento. A JBP leva em conta quatro hipóteses básicas, aplicadas a cidades com 10 mil, 50 mil e 100 mil habitantes. As diferenças de custos são mais expressivas quando o investimento envolve a instalação de uma estação de tratamento e da rede de captação de esgotos.

RESULTADOS DESASTROSOS

GRANDE DIFERENÇA

O trabalho levou a Assemae a propor que os serviços de saneamento sejam excluídos da relação de obras públicas que poderão ser executadas no regime de PPP. “A ado-

As tarifas médias encontradas para cidades com 100 mil habitantes, no caso de uma parceria público-privada, variam entre R$ 0,507 e R$ 0,826 por metro cúbico. Implementado por

uma empresa pública, com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), os custos cairiam para R$ 0,288, sem a rede básica de coleta, e R$ 0,428, incluindo a estação e todo o sistema de captação. A diferença de custos explicase, entre outros motivos, porque empresas públicas recebem um tratamento tributário diferenciado, já que são imunes à taxação do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e das contribuições sobre movimentação financeira (CPMF), sobre o lucro líquido (CSLL) e para a seguridade social (Cofins). Adicionalmente, eventuais vantagens financeiras obtidas seriam destinadas a novos investimentos no setor. No caso de uma PPP, aponta Peixoto, os ganhos financeiros seriam integralmente apropriados pelos grupos privados, gerando mais concentração da renda e da riqueza no país. (LJ)

IMPROPRIEDADES O problema aqui, segundo o Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (SindusCon-SP), é que boa parte dos financiamentos deverá sair dos cofres do bom e generoso Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ou de fundos estatais. Para o SindusCon-SP, haveria uma impropriedade e uma incoerência: “O próprio governo contratará obras de interesse público com recursos que ele, governo, emprestará à iniciativa privada, quando o conceito da PPP prevê o uso de financiamentos privados nacionais ou internacionais”, critica Artur Quaresma Filho, presidente do sindicato. (LJ)

Para driblar os limites de endividamento Ao contrário de outras formas de contratação de obras e serviços pelo setor público, no caso das PPPs, as empresas privadas estarão encarregadas de realizar também os projetos técnicos e de engenharia, quando deveria ocorrer o contrário. “O correto seria o setor público especificar o tipo de projeto que deseja, e definir os parâmetros para que as empresas se adequassem a eles”, afirma o coordenador do PNBE, Mário Ernesto Humberg. Sem esse instrumento, o setor público não saberá os custos reais do que estará con-

tratando, perdendo o controle sobre o processo e abrindo brechas para aditivos contratuais que contribuirão para encarecer o custo final das obras. “O ideal seria a realização de duas concorrências; uma para a escolha do projeto de engenharia, e uma segunda para a execução do projeto”, propõe Humberg. Tanto o PNBE quanto o SindusCon-SP temem que o sistema de PPP seja utilizado para driblar a Lei de Licitações e os limites de gastos impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Bastaria, para isso, realizar licitações para qualquer tipo de compra ou contratação no regime de PPP – automaticamente, o processo passaria a se submeter a regras menos rigorosas do que as previstas na legislação atual. Para evitar esse tipo de expediente, Humberg defende que as PPPs sejam limitadas a projetos de infra-estrutura “que não gerem tarifas ou pedágios”, já que estes estariam contempladas na legislação que prevê a concessão de serviços de caráter público. (LJ)


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Espelho da mídia

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NACIONAL RAPOSA/SERRA DO SOL

Juiz tumultua homologação Ministro da Justiça promete homologação e juiz de Roraima permite comércio na área

Após denunciar os malefícios do monopólio informativo do Hemisfério Norte, na reunião dos países que formam o G-15 o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, propôs a criação de um canal de televisão dos países do Hemisfério Sul, para transmitir para todo o mundo as imagens, os valores e as raízes dos povos oprimidos. “Não pode haver uma dominação mais perfeita do que quando se consegue fazer com os que os dominados pensem nos mesmos termos dos dominadores”, disse Chávez. O presidente venezuelano acusou o “monopólio informativo do grande capital” de semear na mente dos cidadãos do Sul informações, valores e padrões de consumo que são essencialmente alheios às suas realidades. No mesmo pronunciamento, ele também propôs a criação da Universidade do Sul e do Banco do Sul. “Em vez de uma competição suicida entre nós, devemos nos unir”, argumentou.

Mostre a Venezuela O Sindicato dos Jornalistas de Brasília (DF), em carta-aberta ao presidente da Radiobrás, jornalista Eugênio Bucci, apelou para que a estatal de comunicação faça um “esforço de reportagem” visando compensar a campanha de desinformação que a grande mídia privada internacional, inclusive a brasileira, realiza sobre o processo político na Venezuela, também chamado de “Revolução Bolivariana”. O sindicato pede que a Radiobrás mostre ao povo brasileiro o trabalho no país vizinho para erradicar o analfabetismo, a distribuição de terras, a prioridade aos investimentos em saúde e na participação popular, incluindo uma unidade cívico-militar.

Globalização editorial A mercantilização do mundo não poderia poupar o chamado “mercado editorial”. Em artigo deste mês do Le Monde Diplomatique, o escritor francês Pierre Lepape afirma que, no momento em que se abre o Salão do Livro de Paris, as Edições du Seuil anunciam a compra da Editora La Marnière, dando nascimento ao terceiro grupo editorial do país, em seguida à batalha entre a número dois, Hachette (do grupo Lagardière) e a número um, Editis (antigo grupo Vivendi Universal Publishing), para controlar 80% do mercado francês.

Segregação em marcha O estudioso brasileiro Emir Sader lembra que o Salão do Livro francês não se compara à Feira de Frankfurt, na Alemanha, com seus 6 mil expositores, representando a mais de 115 países, onde são apresentadas mais de 400 mil obras, das quais 100 mil lançamentos, anualmente. Mas essa fachada, segundo o escritor Lepape, não deve levar a ilusões, nem esconder um duplo movimento que afeta o mundo da leitura em escala mundial. Por um lado, a diminuição clara da edição nos países pobres, incluindo aqueles do ex-mundo soviético. Por outro, no interior do mercado editorial ocidental, os intercâmbios cada vez mais desiguais entre os EUA e a Grã-Bretanha – esta como satélite daquele –, e as outras nações.

Sexo versus TV Baseados em pesquisas, estudiosos dos efeitos nocivos do consumo excessivo de televisão apresentam algumas razões para desligar a TV. Uma delas prova que, com menos televisão, o telespectador terá mais imaginação e vai namorar mais. Segundo comprovou um estudo da sexóloga Ethel Hite, a duração e a potência das ereções masculinas diminuem percentualmente a partir da segunda hora de contemplação televisiva. Nas mulheres, registra-se uma diminuição proporcional do desejo face às doses excessivas de imagens.

A

Advocacia Geral da União vai recorrer da decisão da primeira Vara da Justiça Federal de Roraima, que no dia 4 suspendeu alguns itens da portaria nº 820/ 98, sobre a demarcação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol. Entre outras coisas, a liminar assinada pelo juiz Hélder Girão Barreto suspende a proibição de entrada e a presença de pessoas em estabelecimentos rurais e urbanos dentro da área. Segundo o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Mércio Gomes Pereira, a decisão do juiz Girão Barreto merecia mais reflexão. “Era preciso mais serenidade para que a homologação da Raposa/Serra do Sol se faça do melhor modo preciso”, disse. Em nota à opinião pública, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) lamentou a liminar, que “apenas serve a interesses políticos e econômicos locais e regionais”. Segundo o Cimi, estranhamente trata-se de uma decisão extemporânea, já que a ação popular que deu origem à decisão tramita desde 1999. “Somente agora, ante o anúncio do governo federal de que homologaria a demarcação da terra indígena, tenta-se utilizar a ação popular para tumultuar mais ainda a perspectiva de assinatura do decreto homologatório pelo presidente da República”, acusa. A acusação do Cimi refere-se ao pronunciamento do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que no mesmo dia 4 revelou a in-

tenção do governo de homologar, em área contínua, a terra Raposa/ Serra do Sol. Bastos garantiu que o processo só será implementado após o anúncio de uma série de medidas legais e jurídicas para viabilizar a regularização fundiária em Roraima.

BUSCA DE SOLUÇÕES

Manifestantes ocuparam em janeiro a sede da Funai, reivindicando demarcação

Segundo Bastos, a complexidade da questão torna impossível apresentar solução única para o problema. “É necessário pensar propostas que atendam às situações específicas de cada caso”, disse. Ele também lembrou a criação, em Roraima, de um Grupo de Trabalho Interministerial, coordenado pela Casa Civil, e de um Comitê de Viabilização Econômica, liderado pelo Ministério da Justiça. A homologação é o último passo para que as terras sejam destinadas apenas aos índios. Na reserva Raposa/Serra do Sol, a população urbana total de não-índios é de 665 pessoas, distribuídas nas cinco vilas localizadas na área (Surumu, Água Fria, Uiramutã, Socó e Mutum). A população indígena soma 14.719 pessoas que vivem em 148 aldeias na área de 1,751milhão de hectares. A região está demarcada e declarada como terra indígena desde 1998. A Raposa/Serra do Sol é a 13ª maior área indígena do Brasil e a 12ª da região Norte, ficando atrás de terras como Parque Indígena do Xingu (MT), Vale do Javari (AM) e Alto Rio Negro (AM). (Com agências)

MATO GROSSO DO SUL

Povos indígenas ganham aliados Rosália Silva de Campo Grande (MS) A luta pela demarcação das terras indígenas em Mato Grosso do Sul ganhou dois importantes aliados. De um lado, a Igreja Católica, junto com o lançamento da Campanha da Fraternidade no Mato Grosso do Sul – que reuniu mais de quatro mil pessoas no Ginásio de Esportes Guanandizão, em Campo Grande –, iniciou a arrecadação de cestas básicas para os indígenas que moram na região Sul do Estado, em especial os da região de Japorã. Dom Vitório Pavanello, arcebispo de Campo Grande, disse

que o governo “foi malandro, consciente ou inconscientemente”, quando usou terra indígena para a colonização. “É justo que os índios tenham reservas para o sustento, desenvolvimento e cultura”, disse. O prelado ainda criticou a atitude de fazendeiros que acusam o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Igreja Católica de insuflar os índios. O outro apoio veio através de Salvador Soler, oficial do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Ele esteve em Mato Grosso do Sul para divulgar o Relatório Crianças Indígenas no Mundo”, lançado em Madri, Espa-

nha, dia 25. O relatório vai estudar comunidades de 70 países e tem como objetivo tentar assegurar os direitos da criança indígena. Dados do Unicef mostram que as crianças indígenas formam o grupo mais vulnerável e marginalizado do mundo. Conforme o documento, há aproximadamente 300 milhões de índios no mundo divididos em 70 países e que falam pelo menos seis mil idiomas. O documento aborda ainda a necessidade de paz para as crianças indígenas que vivem em meio a conflitos de terra, situação registrada em Mato Grosso do Sul. Estatísticas da Fundação Nacional do Índio (Funai)

apontam que no Estado vivem aproximadamente 80 mil índios. Soler visitou uma área indígena em Juti (MS), a 313 quilômetros de Campo Grande. Ele defendeu a distribuição de terra, essencial para garantir a qualidade de vida das comunidades indígenas. Na aldeia Taquari, “o capitão do local me afirmou que a mata é vista como pai e a terra, como mãe. Como o pai já está perdido, devido ao desmatamento, eles querem garantir a mãe, a terra”, comparou. No local foram identificadas 108 crianças, metade delas fora da escola, sem água potável e com carência nutricional.

TRABALHO ESCRAVO

Projeto prevê punição a fazendeiros Luís Brasilino da Redação Tramita na Câmara Federal um projeto de lei que, se aprovado, atingirá diretamente os fazendeiros que utilizam trabalho escravo. Trata-se da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001, que estabelece a perda da propriedade onde for constatada a existência de escravos, revertendo a terra para o assentamento dos colonos que já trabalhavam na área. Dia 11 de fevereiro, a PEC foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. Ricardo Berzoini, ministro do Trabalho, explica o esforço do governo para aprovar o projeto: “Os acontecimentos de Unaí, em Minas Gerais (onde, dia 28 de janeiro, foram assassinados três fiscais do trabalho e o motorista durante fiscalização contra a escravidão em fazendas a apenas 160 km de Brasília) chamaram a atenção da sociedade. Esse fato viabilizou politicamente a inclu-

ABr

Chavez propõe a TV do Sul

Marcello Casal Jr/ABr

da Redação

Auditores do Trabalho ouvem depoimentos de trabalhadores encontrados em barraco, na Fazenda São Luiz.

são dessa proposta e sua possível aprovação”, disse. Segundo o advogado Aton Fon Filho, diretor da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, a aprovação da proposta na CCJ representou apenas o primeiro passo. “A sociedade, agora, precisa se manter

atenta e pressionar para a aprovação da emenda constitucional e, depois, para a lei ser aplicada. Não é isso o que vem acontecendo no caso do artigo da Constituição federal, que determina a expropriação e destinação, para fins de reforma agrária, de áreas utilizadas para o

plantio de plantas psicotrópicas”, esclarece Fon. Por ato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi criada uma comissão especial na Câmara Federal que, desde dia 4, tem o prazo de 40 sessões para apresentar emendas ao projeto. No final deste prazo, o relator Tarcísio Zimmermann (PT-RS) deve apresentar seu parecer que, se aprovado, passa ao plenário. Como o projeto já passou pelo Senado, se aprovado sem emendas, dependerá apenas da sanção presidencial para entrar em vigor.


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De 11 a 17 de março de 2004

NACIONAL PEQUENOS PRODUTORES

Exemplo em industrialização de leite Mais de 5 mil famílias garantem sua renda por meio da Cooperoeste, a mais bem-sucedida empresa da reforma agrária Marcelo Alberto/Cooperoeste

Dirceu Pelegrino Vieira de Florianópolis (SC)

E

TRABALHO

Latifundiário Southall viola leis trabalhistas da Redação Dia 4 de março, o deputado estadual Frei Sérgio Görgen (PT-RS) denunciou, na tribuna da Assembléia Legislativa, mais uma irregularidade nas terras de Alfredo Southall, proprietário de um latifúndio improdutivo de 13.222 hectares, em São Gabriel (RS). Conforme investigação do Ministério do Trabalho, que apreendeu documentos na sede da fazenda, Southall mantém trabalhadores em seus estabelecimentos com contrato de trabalho assinados pelos funcionários, mas com o conteúdo totalmente em branco. “Isso permite ao latifundiário pagar o quanto quer, e pelo tempo que quiser, pois preencherá o contrato apenas na hora que despedir o trabalhador. Mas como em São Gabriel há um grande desemprego, até como conseqüência da brutal concentração da terra lá existente, os humildes trabalhadores se submetem a trabalhar para o senhor Southall, renunciando a todos os direitos consagrados nas leis trabalhistas”, revela Frei Sérgio. Mesmo depois de comprovada a improdutividade, as terras da fazenda Southall tiveram a desapropriação cancelada pela prima da mulher do latifundiário, no Supremo Tribunal Federal. Southall também tem dívidas de mais de R$ 26 milhões com bancos estatais e com os cofres públicos. Em 2003, o latifundiário foi condenado a prestar serviços comunitários pelo desvio de 433 toneladas de arroz pertencentes à Conab. Em seu pronunciamento, Frei Sérgio indagou: “O que faz o senhor Southall? Super-exploração do trabalho? Relações similares ao trabalho escravo? Ou coação direta das relações de trabalho?” O deputado cobrou investigações: “Aguardemos uma apuração rigorosa do Ministério Público, da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia. E que a justiça seja feita no Poder Judiciário, condenando exemplarmente o latifundiário Southall que, além de sonegar impostos, negar contas, agora fere de morte os direitos trabalhistas”, completou.

EM DEFESA DOS ASSOCIADOS

Chegada do leite à cooperativa, que ocupa o segundo lugar em arrecadação no município e gera emprego para mais de 5 mil famílias

à cooperativa desfrutam dos serviços – oito técnicos e um veterinário – e se beneficiam da Agropecuária Cooperoeste, que permite a compra de produtos com qualidade e economia. As obras de construção da Indústria de Leite Longa Vida iniciaram-se em 1998. Os recursos para as instalações foram oriundos do Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária (Procera). No ano seguinte estava em funcionamento, com o objetivo de ajudar no

desenvolvimento dos agricultores da região – a maior bacia leiteira do Estado. Iniciou com uma máquina que envasava 30 mil litros por dia. Como a embalagem era importada, a alta do dólar inviabilizou as atividades. A saída, então, foi fazer uma parceria com outras empresas da região: a Lacticínios Cedrense; a Auriverde, dona da marca Realta, e a Uruguaia Conaprole. Essa junção possibilitou a aquisição de uma máquina da Tetra Pak, que tem em-

balagens nacionais, permitindo um maior crescimento da indústria. Celestino Persch e Euclides dos Santos Rodrigues, assentados e dirigentes da Cooperoeste, lembram que no ano em que a indústria entrou em funcionamento, no governo FHC, foram cortados os créditos para os assentados e pequenos agricultores, o que dificultou a produção de leite. “Sem créditos subsidiados, não tem como progredir na agricultura”, diz Rodrigues.

Defensora irrestrita dos seus associados e integrados, a Cooperoeste exerceu e exerce também o papel de reguladora de preço do leite na região. O associado é o grande beneficiado, pois aumentando o patrimônio da Cooperativa é o seu patrimônio que aumenta, além de ter acesso às sobras no final de cada ano. É visível a diferença entre a Cooperoeste e as outras indústrias da região: é a única que questiona a Normativa 51 da nova lei do leite, por entender que esta provocará uma grande exclusão de produtores e acelerará o êxodo rural. A normativa exige um alto índice de produtividade e muito investimento em infraestrutura, o que favorece somente os grandes produtores. Os sócios e os integrados da Cooperoeste enchem os olhos ao dizer: “Esta é nossa!”.

BANCO DA TERRA

Por que Covas também disse “não” Claudia Jardim da Redação Depois de implementado em cinco Estados do Nordeste, o programa de venda de terras agrícola Banco da Terra se expandiu pelo restante do Brasil. Quando a proposta chegou a São Paulo (19981999), o então governador Mário Covas (PSDB) não aderiu ao programa. De acordo com a agrônoma Tânia de Andrade, que dirigia o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), as deficiências no projeto impossibilitavam sua viabilização. Devido às condições desfavoráveis para que o agricultor arcasse com a dívida, à ausência de crédito e assistência técnica para o plantio, segundo Tânia, Covas não aceitou responsabilizar-se pela implementação do programa em São Paulo. “Só produtores capitalizados, o que não era a realidade da maioria, teriam condições de assumir essa dívida e conseguir, na primeira produção, arcar com os custos”, explica Tânia, que atuava no interior paulista quando os projetos foram desenvolvidos, amparados pela Força Sindical.

Renato Stockler

m São Miguel do Oeste, extremo Oeste de Santa Catarina, está sediada a Cooperoeste, uma cooperativa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA) que enche de orgulho os assentados e pequenos agricultores da região. Com um importante papel no desenvolvimento auto-sustentável, a Cooperoeste gera empregos e renda para mais de 5 mil famílias. Fundada em 1996, a Cooperoeste tem 420 sócios. É a segunda maior empresa do município e a primeira no ramo do leite. Os trabalhadores são também os gerentes e administradores da cooperativa, formada por três pequenas agroindústrias – duas de pepino em conserva e uma de leite tipo C – e mais a Indústria de Leite Longa Vida. Reconhecida como a mais bem-sucedida empresa da reforma agrária, a Cooperoeste industrializa e comercializa os produtos com a marca Terra Viva da Cooperativa Central de Reforma Agrária de Santa Catarina. Com produtos de qualidade, essa cooperativa ocupa o segundo lugar em arrecadação de impostos do município, responsável por grande parte da economia da região. Além dos associados, 1.300 produtores integrados

Hoje a indústria envasa 220 mil litros de leite por dia com 100% de sua capacidade, gerando 250 empregos, diretos e indiretos. São 60% da produção com a marca Terra Viva e 40 % terceirizado para a Lacticínios Cedrense e a Auriverde. O objetivo é aumentar cada vez mais a produção com a Marca Terra Viva, que é a marca da Reforma Agrária em Santa Catarina. Até o final de abril será instalada a terceira máquina de envase, que aumentará a capacidade produtiva para 350 mil litros por dia.

Projeto deficiente foi apadrinhado para fazer frente aos movimentos sociais do campo

Apadrinhar o projeto no interior de São Paulo, onde até então a central sindical exercia pouca influência, foi estratégico. “Entrar no campo e ‘distribuir’ terra é uma forte campanha política”, critica Danilo Prado Filho, coordenador do Crédito Fundiário do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). “A estratégia do governo (Fernando Henrique Cardoso) era utilizar a Força Sindical para fazer frente aos movimentos sociais do campo”,

acrescenta Sérgio Sauer, especialista em concentração agrária. “Não concordava em dar dois alqueires para cada família, as coisas não são assim. As áreas eram insuficientes. Qualquer um via que esse projeto não tinha como dar certo”, critica Braz Agostinho Albertine, presidente da Federação dos Trabalhadores Rurais do Estado de São Paulo (Fetaesp). De acordo com Albertine, a federação participou inicialmente do projeto, antes de

romper com a Força Sindical. “Uma das razões para nos desligarmos foi o Banco da Terra. Os agricultores foram enganados. Paulinho (Paulo Pereira da Silva) queria fazer política”, afirma o presidente da Fetaesp. A função da central sindical era a de mobilizar os beneficiários, ajudar a elaborar o projeto e capacitar os agricultores para a produção. Depois de mobilizados e organizados em uma associação, os projetos eram encaminhados para uma Câmara Técnica, que analisaria sua viabilidade e, se aprovados, seguiam para o Conselho de Desenvolvimento Rural do município. “Na Câmara técnica as pessoas eram ligadas à Força Sindical e no conselho municipal eram indicados pelos prefeitos. Não havia uma análise rigorosa. Eles aprovavam seus próprios projetos”, denuncia Tânia. “Não havia técnica, eram números. A lógica é do quanto mais, melhor, depois a gente vê o que faz”, critica Danilo Prado Filho, coordenador do Crédito Fundiário do atual governo, referindo-se à meta do então ministro da Agricultura, Raul Jungmann, que pretendia inflar os números de assentados no país.

SOJA

A planta que mais causa prejuízos ao solo da Redação A principal fonte de poluição da atmosfera é a queima de combustíveis fósseis, responsável por mais de 60% da emissões de dióxico de carbono (CO²), substância que causa danos ambientais como o aquecimento global e problemas respiratórios. Em segundo lugar na emissão de CO² está a agricultura, tanto pelo uso de combustíveis na mecanização, quanto pelas técnicas de manejo do solo. Nesse contexto, a soja é uma das culturas que mais dependem da concentração de carbono no solo, ao mesmo tempo em que aparece como a maior causa de emissão de CO² na agricultura. A informação foi divulgada pelo pesquisador do Departamento de

Agricultura Americano (Usda), Don Reicosky, na VII Conferência Mundial da Soja que terminou dia 6, em Foz do Iguaçu (PR). O carbono é um nutriente natural do solo, cuja função é garantir a ciclagem dos componentes físicos, químicos e biológicos que servem de alimento às plantas durante todo o desenvolvimento vegetativo. A conservação do carbono no solo garante menor demanda por insumos, maior retenção da água e menor compactação. “O carbono funciona como uma esponja que minimiza os impactos na compactação. A estrutura do solo sofre a pressão, mas volta ao seu estado normal em pouco tempo”, avalia Reicosky. Segundo ele, a soja causa efeitos dramáticos no solo, já que se

decompõe mais rapidamente do que qualquer outra cultura. “Na remoção do solo, a soja representa um valor 24 vezes maior de perda de carbono. No solo sem plantio, a perda de carbono e emissão de CO² fica em 100%; no trigo, é de 196%, mas na soja essa perda representa 264% “, contabiliza Reicosky. Sem carbono no solo, é preciso investir em insumos. Nos cálculos do pesquisador, são necessárias 10 unidades de carbono para produzir uma unidade de nitrogênio, e para gerar uma unidade de fósforo, são consumidas 60 unidades de carbono. “O carbono é muito importante para manter a biodiversidade e a fertilidade do solo”. Como se não bastasse, a soja ainda tem menor capacidade de in-

filtração de água em relação a outras culturas, gerando uma erosão de 778 quilos de solo por hectare ao ano (no milho é de 350 kg/ha). “Estudos mostram que a perda de carbono implica na redução de água no solo, prejudicando o desenvolvimento da soja”, diz Reicosky. Para ele, os solos brasileiros são muito deficientes em nutrientes, com os produtores mais preocupados em manter os benefícios do carbono no solo do que com a questão ambiental da emissão de CO². “Os produtores brasileiros não estão mais conscientes da conservação do que os estadunidenses. O que existe é a necessidade de cuidados especiais, já que nos países tropicais chove mais, resultando na lixiviação dos nutrientes do solo”. (Agência Embrapa)


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De 11 a 17 de março de 2004

NACIONAL ATINGIDOS POR BARRAGEM

Modelo energético é fábrica de sem-terra Ubirajara Faria de Brasília (DF)

QUEM CONSOME A ENERGIA BRASILEIRA Setores

Indústria Pesada* Residencial Comércio/Serviços Serviços Públicos Agropecuária

O

Brasil de Fato – O que está errado nos rumos do modelo energético do governo Lula? Gilberto Cervinski – O problema vivido pelas populações atingidas por barragens decorre do atual modelo energético do país. Desde o início do governo Lula, quando o MAB e outras entidades tivemos as primeiras conversas com a ministra Dilma Roussef, levamos todas as denúncias sobre o que estava acontecendo ao longo dos rios e sobre o que a população sofre com a privatização do setor elétrico e com o modelo energético baseado na matriz da hidreletricidade. Naquela oportunidade, o Ministério das Minas e Energia se comprometeu com os atingidos por barragens a resolver o problema social, a dívida social deixada pela construção das barragens, que alcança 1 milhão de pessoas expulsas de suas terras ao longo dos últimos 40 anos em todo o Brasil. A ministra também assumiu conosco o compromisso de tentar evitar a repetição desses problemas no futuro. Mas, com o passar do tempo, houve uma mudança de rumo na relação entre o governo e os atingidos. BF – O que acontece? Cervinski – O Ministério das Minas e Energia tem uma parceria com o setor privado, com os grandes grupos econômicos transnacionais, com a Tracbel, a Camargo Correia ou o Bradesco, com empresas que dominam o setor elétrico brasileiro. Essa é a parceria público-privada, que nada mais é que a continuação daquilo que vinha acontecendo, antes de forma aberta, com o nome de privatização, e agora vem sob o nome de parceria público-privada. Isto fez com que o ministério recuasse em seus compromissos sociais e passasse a priorizar os compromissos com os grandes grupos econômicos. Para se ter uma idéia do que isso significa, normalmente no orçamento de uma barragem o item sócioambiental gira em torno de 0,5% a 3% do valor total da obra. Nas regiões onde houve mobilização e reivindicação das populações, o quesito sócio-ambiental saltou para algo em torno de 30%, em média. Contudo, numa medida provisória recentemente enviada pelo governo ao Congresso Nacional, fica definido que a empresa vencedora das licitações para a construção da barragem será aquela que oferecer o menor preço. Assim, como nos itens técnicos não há como reduzir custos, vai sobrar para as populações atingidas e para o meio ambiente.

Percentual

48,4 25,3 13,5 8,7 3,8

*Indústrias de cimento, siderúrgica (aço), metalurgia (ferro-ligas e alumínio), química, papel e celulose. Fonte: MAB

A população sofre com o modelo energético baseado na matriz da hidreletricidade e com a privatização do setor energético

Quem é Gilberto Cervinski é membro da direção do Movimento de Atingidos por Barragens, organização não-governamental que realizou seu primeiro congresso nacional em 1991. Neste encontro ficou decidido que 14 de março é o Dia Nacional de Luta contra as Barragens. BF – É uma espécie de economia criminosa, que penaliza apenas a população e o ambiente? Cervinski – Exatamente. E nós fazemos uma pergunta central: para que e para quem é essa energia? Na realidade, o aumento na produção de energia tem como destino o atendimento das grandes empresas eletrointensivas, ou seja, é uma forma de atender à exportação de energia para que os países centrais do capitalismo façam o seu estoque de reserva. BF – Há exemplos concretos disso? Cervinski – Um exemplo: a Alcoa, na Amazônia, é dona da Alumar e da Albrás, que juntas produzem um milhão de toneladas de alumínio por ano. Cada tonelada de alumínio consome 15 mil kw de eletricidade, o que corresponde ao consumo de uma família durante nove anos. Além disso, é preciso considerar que um gigawatts (mil megawatts) produz apenas 0,8 emprego, menos de um novo emprego. Então, a verdade é que a população está sendo penalizada, pois 850 mil pessoas estão ameaçadas com os projetos de construção de bar-

ragens que vão oferecer energia aos grandes grupos econômicos, a um preço abaixo do custo de produção, energia que será exportada, entregando ainda o subsolo brasileiro, sem produzir um emprego sequer! Aqui temos uma questão central de exploração do capitalismo internacional! A partir da crise do petróleo na década de 70, os países capitalistas centrais transferiram para países da periferia as empresas de consumo intensivo de energia e de pouca geração de emprego. O Brasil é dos países que mais constrói novas barragens, para atender a essa necessidade do grande capital internacional. Para nós está claro que, pelo menos no modelo energético, há uma continuidade política dos governos anteriores. É o terceiro mandato do governo FHC.

abrir canais para que a população brasileira conquiste isso. É um absurdo que a água e a energia continuem sendo privatizadas e tratadas como mercadoria. No campo social há questões urgentes que precisam ser resolvidas: pagar a dívida que já existe com essas populações, resolver o passivo existente e criar políticas para que não se continue a produzir novos sem-terras. Esse modelo energético é uma fábrica de sem-terra, pois 300 mil famílias já foram expulsas de suas terras e de cada dez famílias atingidas, sete não recebem qualquer indenização por seus prejuízos. O governo deve assumir sua responsabilidade e garantir que o problema social das famílias atingidas terá solução, definindo responsabilidades e políticas.

BF – Mas como ocorreu essa guinada? Cervinski – De fato, a ministra Dilma abriu um canal de diálogo, que continua, mas é um diálogo sem resultados concretos, pois prevalece a linha de restringir ao máximo o direito das populações atingidas. E como o problema dos atingidos por barragens ainda não encontrou espaço definido no governo, ficamos nesse empurra-empurra. BF – Quais as medidas urgentes para o setor? Cervinski – Em primeiro lugar, água e energia não podem ser tratadas como mercadoria! Elas devem estar a serviço da população brasileira e sob o seu controle. E é obrigação do governo arquivo / MAB

escritório do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Brasília (DF) é simples, limpo e claro, assim como buscam ser as análises e as propostas deste movimento social, criado há duas décadas para defender o lema “Águas para vida, não para a morte” perante a sociedade brasileira. Gilberto Carlos Cervinski, membro da direção do MAB, usa expressões contundentes para afirmar que o novo modelo energético desaloja mais famílias do que o Plano Nacional da Reforma Agrária calcula assentar nos próximos três anos. Mesmo assim, o movimento ainda tem esperanças no governo Lula. Mas denuncia a omissão ante as privatizações irregulares do passado, afirma que há no setor energético “um terceiro mandato de FHC” e alerta que, para atender ao grande capital internacional, nos fios de transmissão da rede elétrica também está correndo sangue de brasileiros.

“Águas para vida, não para a morte” é o lema do MAB, criado há duas décadas

BF – Que outras medidas são reivindicadas? Cervinski – Outra medida urgente para a mudança de rumo é a revisão do preço da energia para a população. Hoje, segundo dados do próprio governo, uma família paga em média cerca de R$ 400 por megawatt, enquanto as grandes empresas eletrointensivas pagam em média apenas R$ 40 por megawatt. Ou seja, a população paga 10 vezes mais que as grandes empresas. Como o atual modelo privilegia o setor privado, as empresas, quando vão construir uma barragem, repassam seus investimentos para as tarifas cobradas da população em geral. E o mais grave é que todas as barragens são financiadas pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), ou seja, por recursos públicos. Outra questão central é que o setor seja controlado pelo Estado. É fundamental que haja o fortalecimento do Estado, que se interrompa a privatização da geração de energia. BF – Quais as divergências em relação à matriz energética? Cervinski – Nós achamos que não há necessidade de construir mais barragens, pois é possível dobrar a produção de energia no Brasil sem novas obras. Há usinas que estão com capacidade ocio-

RETRATO DA DESIGUALDADE No Brasil, 92% da energia produzida vêm de fonte hídrica 20,3 milhões de brasileiros não têm acesso à energia elétrica No país, há 2 mil barragens construídas, alagando uma área de 34 mil km² (o Estado de Alagoas tem 29 mil km²) Do potencial brasileiro, estimado em 260,3 mil mw, o Brasil aproveita 61 mil mw (25%) Praticamente 2/3 (63,6%) desse potencial encontram-se na região amazônica, principalmente nos rios Tocantins, Araguaia, Xingu e Tapajós, onde a geração é de alto impacto ambiental e de elevado custo de transmissão Do potencial hidrelétrico brasileiro, 20% encontram-se nas bacias dos rios Paraná e Uruguai, onde atingiria áreas de grande densidade populacional e inutilizaria terras férteis A energia hidrelétrica já expulsou mais de um milhão de pessoas de suas terras O Plano 2015, do governo federal, prevê a construção de mais 494 usinas hidrelétricas, tendo como estimativa a expulsão de 800 mil pessoas de suas terras O governo Lula vai construir mais 70 barragens, mas não tem política para as famílias a serem atingidas Mais 100 mil famílias deverão ser expulsas de suas terras até 2006 De cada 100 famílias deslocadas, 70 não receberam qualquer indenização do governo Há famílias que receberam R$ 39 de indenização por seu terreno e casa inundados A energia consumida nas residências custa 10 vezes mais caro que a energia consumida pelas grandes empresas

Douglas Mansur

Cerca de 100 mil famílias serão expulsas de suas terras se o governo insistir na construção de 70 novas barragens sa, com instalações depreciadas, com turbinas velhas. Com esses procedimentos, a um custo cinco vezes menor, seria possível ter um acréscimo de 7 mil megawatts no Brasil. Além disso, seria possível evitar a perda de energia existente na área de transmissão, no Brasil estimada em 15% da energia gerada, quando o padrão internacional é de 6%. Essa correção permitiria um acréscimo de mais 6 mil megawatts de energia. O Brasil poderia ainda produzir energia a partir da biomassa, do bagaço de cana etc, que gerariam grande quantidade de empregos, além de permitir um acréscimo de mais 18 mil megawatts de energia. Para se ter uma idéia do que isso significa, Itaipu, maior usina do mundo, produz 12 mil megawatts. Outra fonte que deveria ser explorada é a da energia eólica, que, segundo os estudos, permitiria um acréscimo de mais 20 mil megawatts. BF – E por que o governo não explora essas fontes renováveis e limpas de energia? Cervinski – Falta decisão política do governo, que tem de enfrentar a pressão que recebe. Sabemos que o nosso inimigo não é o governo, e sim o grande capital internacional que o pressiona. É isso que a sociedade brasileira precisa entender. Nós temos de combater as empresas e precisamos retomar o setor elétrico para o controle do Estado. BF – O governo pode convocar os movimentos para uma revisão desse modelo? Cervinski – Mas ele nem tentou fazer isso. Ao contrário, pediu calma nos momentos em que deveria pedir ao povo que agisse, que apoiasse uma outra política. Aliás, os movimentos sociais do campo estão sentindo, a todo momento, que há uma tentativa de estrangulamento, de isolamento. Nós do MAB sentimos isso, pois há uma ofensiva das empresas contra os interesses da população atingida, com o consentimento do ministério. Parece que há interesse no isolamento e na destruição dos movimentos. BF – Isso significa que já não se acredita mais no governo Lula? Cervinski – Avaliamos que o governo é um parceiro, entendemos as condições em que se instalou e sabemos quais são as relações de forças. Nós temos de atuar nessas condições, denunciando o que está ocorrendo. Temos, sim, esperanças de que o governo Lula possa ser um governo de mudanças profundas neste país. Mas não podemos caminhar para trás. BF – Mas o novo modelo energético foi atacado pela grande mídia como sendo estatizante. Cervinski – O governo assumiu com o setor energético entregue nas mãos da iniciativa privada, uma situação extremamente difícil. E o governo está no caminho certo quando sinaliza retomar o planejamento para as mãos do Estado. Isso é positivo, como também é o programa de universalização de energia. Mas apresenta uma série de problemas, entre eles o de que o custo do dinheiro a ser empregado para oferecer energia para quase cinco milhões de famílias sem eletricidade, a um investimento de R$ 2,3 mil por família, terá um subsídio bancado em até 85% pelo Estado, beneficiando as empresas distribuidoras. Porém, espertamente essas empresas cobram um investimento de R$ 16 mil por família, praticando um superfaturamento evidente.


Ano 2 • número 54 • De 11 a 17 de março de 2004 – 9

SEGUNDO CADERNO LIVRE COMÉRCIO

Kirchner recua e paga dívida Depois da liberação de novo empréstimo pelo FMI, presidente argentino confirma pagamento de 3,1 bilhões de dólares Daniel Vides/AFP

Jorge Pereira Filho da Redação

D

epois de muito ameaçar, o presidente argentino, Néstor Kirchner, recuou e anunciou, dia 9, o pagamento da parcela de 3,1 bilhões de dólares referente à dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI). No mesmo dia, antes da decisão, movimentos sociais organizaram uma passeata no Centro de Buenos Aires, pela suspensão do pagamento da dívida. “Queremos dizer ao presidente que, se decidiu não pagar, não volte atrás”, pedia Nora Cortiñas, representante das Mães da Praça de Maio. Os ativistas defendiam que, se a Argentina deixasse de pagar o fundo, o dinheiro poderia ser investido na economia, descartando a necessidade de novos empréstimos. Kirchner havia condicionado o pagamento da dívida à liberação pelo FMI de cerca de 3 bilhões de dólares da segunda parcela do acordo firmado em 2003. Em fevereiro, diretores do FMI estiveram na Argentina para conferir se o governo havia cumprido as metas impostas, mas não havia sinalização de aprovação. O lance que determinou o pagamento foi um telefonema da diretora-interina do FMI, Anne Krueger, prometendo liberar o empréstimo para a Argentina.

EQUÍVOCO Foi a segunda vez que Kirchner utilizou a suspensão do pagamento como instrumento de pressão contra o FMI. Em 2003, a Argentina ficou um dia sem pagar para tentar arrancar melhores condições no acordo com o fundo. Desta vez, o FMI ameaçava liberar o empréstimo só se o país pagasse tudo o que os credores privados cobram. Em 2002, com a crise que arruinou o país e deixou mais da metade da população abaixo da linha da pobreza, esse pagamento foi interrompido. Kirchner aceita pagar 25% do endividamento de cerca de 90 bilhões de dólares, mas o grupo

A Central de Trabalhadores Argentina (CTA) organizou uma marcha contra o pagamento da dívida externa

dos sete países mais ricos do mundo (G-7) querem mais dinheiro do povo argentino. “A decisão foi um grande engano. Mobilizou-se a opinião pública, o governo buscou apoio para as negociações, mas seguiu respeitando o acordo com o FMI, uma instituição que continua sendo um credor privilegiado do país”, analisou Beverly Keene, da Campanha Jubileu Sul na Argentina. Pesquisas feitas pela imprensa local constataram que mais de 70% da população argentina apoiava a suspensão do pagamento. “O governo deixou passar uma enorme oportunidade para avançar no questionamento da ilegitimidade da dívida externa”, constata a ativista. O endividamento argentino já foi declarado ilegal, em 1999, por um processo movido pelo advogado Alejandro Olmos. A decisão judicial, que se refere aos débitos

contraídos entre 1976 e 1983 – período da ditadura militar –, nunca foi posta em prática. “Kirchner não quer encarar essa ilegitimidade da dívida. Por um lado, afirma que não

vai pagar a dívida com a fome do povo. Por outro, mantém o superávit”, avalia Beverly. Em 2003, a Argentina aceitou fazer uma economia de gastos públicos equivalente

a 3% do Produto Interno Bruto (PIB) – o maior da história. Beverly elogia, no entanto, a atitude de Kirchner em questionar o pagamento da dívida. “Por que privilegiar um credor privado em vez de um desempregado argentino? Isso tem de ser questionado”, afirma, levantando a bandeira dos movimentos sociais locais que defendem a realização de uma auditoria da dívida. Beverly acredita que uma aliança da Argentina com o Brasil para negociar com FMI poderia ter bons resultados. “O Brasil responde por mais de 50% da dívida do fundo”, contabiliza. Dia 16, Kirchner vai ao Rio de Janeiro para discutir com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva políticas comuns em relação às instituições financeiras multilaterais. Lula felicitou Kirchner pela negociação com o fundo. A imprensa internacional especulava, dia 9, que George W. Bush, presidente dos Estados Unidos, teria determinado a Anne Krueger que ligasse para Kirchner. Assessores de Bush avaliaram que o não-pagamento prejudicaria interesses estadunidenses na região. Outros países poderiam endurecer a política com o FMI – algo indesejável para Bush, em disputa eleitoral e ocupado em isolar a Venezuela na América do Sul.

EUA convocam reunião para definir Alca Uma reunião convocada pelos Estados Unidos pode decidir o futuro da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). A pedido de George W. Bush, representantes de dez países encontraram-se em Buenos Aires, dias 9 e 10, para superar as divergências que bloqueram as negociações na última reunião do Comitê de Negociações Comerciais (CNC), em fevereiro. Representantes da Campanha Continental contra a Alca criticaram o encontro fechado, similar

ao que ocorreu em Washington, antes da reunião ministerial de Miami, em novembro de 2003, e que definiu princípios gerais da Alca light. Até o fechamento desta edição, dia 9, especulava-se que os EUA ofereceriam redução em subsídios agrícolas a longo prazo e, em troca, pediriam maior abertura no setor de serviços no Mercosul. “Há uma pressão forte para o Mercosul mudar sua posição. E a pressão está caindo quase exclusivamente sobre o Brasil”, relatou Milton Viário,

diretor da Federação dos Metalúrgicos do Rio Grande do Sul. Exemplo disso foi a declaração da embaixadora Donna Hrinak, dia 7, que “aconselhou” o governo Lula a calibrar sua oposição aos EUA para preservar o diálogo com Bush. A reunião, em Buenos Aires, foi convocada no dia do vencimento da parcela da dívida da Argentina com o FMI. Para Viário, não foi coincidência. “Será que isso também está na mesa de negociação?”, questiona o metalúrgico. (JPF)

HAITI

O Brasil aceita a “farsa da paz” O Brasil enviará 1.100 militares ao Haiti. A tropa vai liderar a força internacional de paz (integrada por contingentes estadunidenses, franceses, canadenses e dos países do Caribe) que vão atuar no Haiti, daqui a três meses, na chamada “segunda fase da ajuda multinacional”, aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. “O presidente Lula disse que o Brasil fica honrado com essa indicação e que está à disposição das Nações Unidas tanto para o envio de tropas como para o comando”, disse o porta-voz da presidência, André Singer, dia 4 de março. Qual o significado do papel que o Brasil é levado a assumir, do ponto de vista de sua estratégia de política externa? Para responder, é necessário identificar os interesses de outros países sobre a região, em particular o jogo dos Estados Unidos. Não por acaso, a revolta no Haiti eclode agora, quando Washington aumenta as pressões sobre a Venezuela e multiplica as ameaças de invasão de Cuba. O Haiti ocupa um lugar central no mapa geopolítico do Caribe: é o cenário ideal para uma base militar permanente dos Estados Unidos. Nem é preciso teorizar muito sobre o asunto. Basta olhar o mapa. Além disso, a localização do Haiti permite o controle mais efi-

Dario Lopez-Mills/Associated Press/AE

José Arbex Jr. de São Paulo (SP)

Protesto pelo assassinato de simpatizante de Aristide. Repúdio geral favoreceu o golpe de Estado, patrocinado pelos EUA

caz do narcotráfico. Como observa o economista canadense Michel Chossudovsky, desde que o euro se tornou uma moeda de referência internacional, boa parte dos narcodólares tornou-se narcoeuros, assim contribuindo para enfraquecer a hegemonia mundial da moeda estadunidense. A criação de uma eventual “narcodemocracia” no Haiti, sustentada pela Casa Branca, garantiria aos barões de Wall Street o controle do “corredor da

cocaína” produzida na Colômbia e nos vizinhos.

GOLPE DE ESTADO Claro que o povo do Haiti tem suas razões para se revoltar: fome, miséria, brutalidade policial. O Departamento de Estado de George Bush soube aproveitar-se do repúdio generalizado a Jean-Bertrand Aristide para patrocinar um golpe de Estado, enviar os seus soldados ao país e garantir a posse de um

novo governo, mais eficaz e útil aos propósitos da Casa Branca. Nesse quadro geral, o Brasil é chamado a liderar a “força multinacional de paz”. Guardadas as devidas diferenças, e feitas todas as ressalvas, o Brasil se sentiu “honrado” por fazer parte da grande farsa, tanto quanto a Polônia, ao topar liderar uma parte das “forças de paz” que ocupam o Iraque, como reconhecimento pelo apoio sem hesitação que o país deu à invasão de Bagdá (os

outros dois “líderes” são os Estados Unidos e a Grã-Bretanha). Os diplomatas do Itamaraty não podem alegar “desconhecimento” dos óbvios objetivos estratégicos dos Estados Unidos, nem da participação da CIA na articulação do golpe que depôs Aristide. Caso o façam, que peçam demissão por incompetência. Por que, então, o Brasil aceitou um papel tão infame? A resposta está nos objetivos estratégicos da política externa de Lula, que vê o Brasil como uma potência regional, com vocação para liderar um bloco do Terceiro Mundo, no quadro da economia globalizada. O norte dessa estratégia, o eixo que dá coerência ao conjunto das ações diplomáticas do Brasil, é a obtenção de um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas (no caso da Polônia, para manter a nossa analogia, a cartada é outra: Varsóvia procura mostrar-se um parceiro “confiável” de Washington, no quadro da disputa entre Estados Unidos e Alemanha pelo controle da Europa central, cuja vocação “natural” é ser zona do euro). Assim, em nome de supostos “interesses de Estado”, o governo brasileiro aceita apoiar o disfarce de um golpe de Estado promovido pela CIA. E mais: finge acreditar, de forma totalmente ridícula, que de fato vai “liderar” uma força multinacional. Impossível, nesse ponto, não parafrasear o nosso grande poeta: “Existe um governo que a bandeira empresta”.


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De 11 a 17 de março de 2004

AMÉRICA LATINA CUBANOS

Caso dos cinco cubanos chega à grande mídia Às vésperas de mais uma audiência, o New York Times publica anúncio sobre os agentes acusados de espionagem

C

om nova audiência marcada para dia 10 de março, a campanha pró-liberdade dos cinco cubanos presos nos Estados Unidos ganhou espaço nos grandes meios de comunicação. No início do mês, o jornal New York Times publicou um anúncio de página inteira sobre o caso. Mas isso é fruto da nova estratégia do Comitê Nacional Liberdade para os Cinco, dos EUA, que começou uma campanha de doações para comprar espaço na grande imprensa. O Comitê contratou uma publicitária de Nova York, por tempo integral, para trabalhar em conjunto com outros voluntários na campanha pu-

A campanha para juntar 50 mil dólares para o anúncio foi lançada, oficialmente, em outubro de 2003. Desde então, têm chegado apoios dos Estados Unidos e de vários lugares do mundo. Os amigos alemães da rede Já Basta! conseguiram 10.800 dólares; a Comunidade Cubana Progressista de Miami conseguiu mais 10 mil dólares; também foram recebidas doações provenientes da Es-panha, Bélgica, Itália, França, Colômbia, Argentina, África do Sul, Inglaterra, Porto Rico, Equador, Austrália, Canadá e muitos outros países. Além dos anúncios em jornais importantes, estão sendo produzidos centenas de pacotes de imprensa, ou seja anúncios combinados com outros meios, como folhetos, vídeos,

divulgação/campanha free the five

da Redação

Panfleto aponta a contradição de os EUA perseguirem anti-terroristas

blicitária. “Como dissemos em algumas ocasiões anteriores, o objetivo principal de nossa campanha publicitária é elevar o nível de divulgação sobre a luta dos cinco prisioneiros

políticos cubanos. A luta política é essencial para conseguir a liberdade deles”, afirma o Comitê, num comunicado à imprensa.

rádio etc. Também está sendo preparada uma produção maciça de cartazes e outros materiais de leitura. Gerardo Hernández, René González, Antonio Guerrero, Ramón Labañino e Fernando González, detidos em 1998, são acusados de conspiração e espionagem. Depois de permanecerem detidos numa prisão federal de Miami durante 39 meses, os cinco cubanos foram injustamente acusados de crime de espionagem para o governo de Cuba e condenados a duras penas de prisão em dezembro de 2001. Para acompanhar as etapas do caso dos Cinco Cubanos e participar da campanha por sua libertação, consulte a página da internet www.freethefive.org. (Adital)

MÉXICO

Uma das maiores especialistas no movimento zapatista, a economista Ana Esther Ceceña explica a essência do exército que representa os interesses das comunidades mexicanas, composto por “um grupo de soldados que lutam para que não seja mais necessário haver soldados”. Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, concedida em Porto Alegre, durante o Fórum pela Paz e Contra a Guerra, de 11 a 13 de fevereiro de 2004, Ceceña explica a estratégia de militarização dos Estados Unidos e defende a tese de que “o Estado está perdendo suas atribuições econômicas, suas fronteiras, e começa a conformar uma nova divisão político-territorial mais ligada a linhas dos projetos estratégicos”. Brasil de Fato – Dez anos depois do seu surgimento, o que significa o movimento zapatista? Ana Esther Ceceña – Há dez anos os zapatistas estão mudando as regras do fazer político. Com a queda do muro de Berlim, com o desastre nos países socialistas, a partir de 1994 se começa a pensar que é possível fazer algo. A população mexicana, tão castigada, ousa desafiar o governo. Aí surge o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que ultrapassou as próprias fronteiras porque se converteu em patrimônio da humanidade. O EZLN é percebido como exército, como defensor das comunidades, como um grupo de soldados que lutam para que não seja mais necessário haver soldados. De algum modo, foi o zapatismo que começou o movimento altermundista. BF – É possível situar o zapatismo como um sintoma da emergência dos povos indígenas de todo o planeta? Ceceña – Na Ásia, na África, na Oceania, não só na América, os povos nativos exigem o que lhes corresponde. Além da vinculação com a problemática global, a capacidade de penetração do zapatismo se deve também por questionar aspectos da vida privada, último espaço que as comunidades têm para defender suas cosmovisões. A exclusão, própria do neoliberalismo, provoca reação de mulheres, de jovens, de grupos defensores da liberdade de manifestação sexual, de universitários prejudicados pela privatização do ensino ou por sua precarização, com a desvalorização das ciências humanas. Ou seja, além de ser uma revolta dos povos indígenas, é de todos os excluídos. BF – Como o poder é encarado dentro da proposta zapatista?

Quem é Ana Esther Ceceña é coordenadora do projeto Neoliberalismo e Resistência, do Instituto de Investigações Econômicas da Universidade Nacional Autônoma do México e diretora da revista Chiapas. Fundou o Grupo de Trabalho e Economia Internacional do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais. É organizadora e co-autora do livro Guerra Infinita (Editora Vozes). Gerardo Chavez/El Tiempo/AFP

Bolívar Almeida de Porto Alegre (RS)

Leonardo Melgarejo

Movimento zapatista mudou as regras da política

Sacos contendo explosivos para ataques terroristas, segundo a Polícia Militar

Ceceña – Quando chega ao poder, a esquerda tem adotado práticas similares às que costumava criticar. Durante muito tempo se pensou que a tomada do poder resolveria todos os males. Mas ao mesmo tempo é parte dos princípios da revolução, que tem tratado da tomada do poder sem ter claro como resolver questões de gênero, de raça. O poder tem sido exercido por alguns, não por todos. As empresas transnacionais têm mais poder que muitos Estados. E a internet, que foi criada para tornar mais eficaz a dominação, tem servido para a revolta. O poder não é um lugar. O poder passa por uma mudança no modo de fazer política. A partir do zapatismo, passou-se a pensar na natureza das nossas relações, que são essencialmente políticas. Fazemos política no cotidiano, nas relações com os vizinhos, dentro da família. Por que delegar a outro o poder de decidir, quando somos os diretamente interessados? BF – Na América Latina, a relação entre civis e militares tem sido muito dura, mas há algumas experiências fora do comum – Velasco no Peru, Chávez na Venezuela e, embora com especificidades, Prestes e Lamarca no Brasil. Nas revoluções, sempre se busca a participação dos homens armados, fardados. Esse é o modelo do EZLN? Ceceña – No México, temos uma cultura antimilitar. Embora não como na América do Sul, foram cometidas muitas atrocidades. O estilo militar não se afina com os nossos propósitos, a lógica militar é vertical, autoritária. A proposta do EZLN é não ter exército. E tem a ver com a construção do processo da revolução. O caso de Velas-

co, no Peru, pouco tem a ver com o dos militares argentinos. O de Chávez tampouco, pois tem sido fundamental sua luta pelo controle do petróleo, pela soberania do Estado. Passa pelo nacionalismo nossa luta de emancipação. O EZLN abre espaço para a palavra, para que as comunidades exerçam sua autonomia. Isso não existe nos exércitos. Outro risco que tentamos evitar é o do culto à personalidade, como é o caso de Fidel e talvez de Chávez. Militar está acostumado a mandar, e o que vemos não é o povo gritando “liberdade, democracia”, mas “Chávez, Chávez”. Na Venezuela se discute como superar isso, essa relação autoritária, na relação com as pessoas nos povoados, nos bairros, quem sabe até a dissolução do militarismo. BF – Como a senhora vê o crescimento das bases militares dos Estados Unidos? Ceceña – Há mais de 700 bases militares, de diferentes tipos e tamanhos. A novidade é a maneira como essas bases foram se implantando, uma vez que a questão da hegemonia não implicava mudar as regras do jogo do mercado, mas as regras da sociedade. Assim que as fronteiras foram abertas, as populações tiveram de aceitar a nova realidade, com as grandes corporações se apropriando das riquezas. Mas havia resistência em todas as partes do planeta e diferenças de sistemas de governo nos diversos países, o que podia provocar a ingovernabilidade – e, segundo o olhar dos EUA, são áreas ingovernáveis o Iraque de Sadam Hussein, a Venezuela de Hugo Chávez, ou seja, governos que não se submetem. Portanto, foi necessário fazer com que as

regras do jogo fossem aceitas por meio de órgãos supranacionais como a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), que propõem acordos quase imutáveis após a aceitação. No caso das regiões energéticas, por exemplo, como o México, o Oriente Médio ou a Venezuela, existem resistências. E, como as necessidades dos EUA são urgentes, ele se vêem obrigados a tomar providências. Nesse contexto, prodigiosamente aparece Bin Laden, fornecendo o pretexto para a potência hegemônica desembarcar no Oriente Médio. O mesmo acontece com o Plano Colômbia, do qual talvez só o México se salvasse, por ter uma fronteira enorme com os EUA, por estar tão endividado, pelos imigrantes clandestinos, por ter uma percentagem tão grande de seu comércio exterior com os EUA. Enquanto o Plano Colômbia é militar, o Plano Puebla Panamá é econômico, e ambos se complementam. O Plano Colômbia se irradia para a América Latina, junto com bases de telecomunicações, de treinamento de militares. BF – Na Argentina, o presidente Kirchner retomou o controle estatal de serviços privatizados. Qual é o papel do Estado nacional? Ceceña – Houve uma mudança promovida pelo neoliberalismo, pela necessidade de romper fronteiras, de reforçar a liberdade de movimentos do capital e ao mesmo tempo de levantar barreiras ao movimento de populações. Na América Latina, o controle exercido pela dívida externa é facilitado por conta da corrupção, pela qual nossos dirigentes se mostram facilmente acusáveis. O contraponto disso é o crescimento dos movimentos sociais que o Estado, debilitado, já não consegue controlar. A população se pergunta: “Se o Estado não nos atendia antes, por que vai atender agora?” Isso está vinculado ao poder coletivo que somos e, se somos nações,

como o capitalismo nos fez crer, ou um conglomerado de nações, ou ainda comunidades separadas por fronteiras, como o povo maia (parte em Chiapas e outra parte na Guatemala). Isso para a esquerda é muito complicado. Penso que o Estado está perdendo suas atribuições econômicas, suas fronteiras, e começa a conformar uma nova divisão político-territorial mais ligada a linhas dos projetos estratégicos – por exemplo, como os canais que se quer construir na América do Sul e na América Central, até o México. BF – Quem quer construir? Ceceña – Os EUA, o Banco Mundial, os governos nacionais. Com isso, seriam extintas as atuais fronteiras. Por exemplo, a Colômbia poderia ficar parte com a Venezuela, parte com o Equador e o Peru, porque aí passaria outro canal. A longo prazo, haveria uma nova reagrupação política. BF – Quais as intenções dos EUA na tríplice fronteira entre o Paraguai, a Argentina e o Brasil, acusando a população árabe aí residente de terrorismo? Ceceña – Quando caíram as torres gêmeas, em 11 de setembro de 2001, documentos do departamento de Estado estadunidense informavam, e não era a primeira vez, que havia parentes de Bin Laden na Tríplice Fronteira. Por isso era uma área de risco. Muito estranho... Comecei a investigar: desde há algum tempo, os Estados Unidos buscavam pretexto para se meter naquela região, fundamental para controlar as relações entre o Brasil e o resto da América do Sul. Como essa é uma fronteira indisciplinada, os EUA querem estabelecer um controle direto. Trata-se de um projeto anterior à queda das torres gêmeas. A população árabe dali não tem condições de financiar qualquer rede terrorista, até porque é formada, na maioria, por pessoas pobres. Na verdade, o que está em jogo é o Aqüífero Guarani. BF – Como a senhora vê a atuação do governo Lula no plano internacional? Ceceña – A eleição de Lula não foi só brasileira, foi latino-americana. Todo o povo da América Latina tinha expectativa, pensava nele como um líder do continente, pelo peso enorme do Brasil na economia, pelo território, pela população. Pensávamos que ele teria uma atuação mais ativa, não só no Mercosul, mais propositiva, um impulso forte contra a Alca pois, embora alguns governos da América Latina sejam favoráveis, os povos são contrários. O Brasil e o México são países-chave para definir os rumos da Alca.


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INTERNACIONAL ISRAEL

Judeus e árabes caminham rumo à colisão Ferry Biedermann de Jerusalém (Israel)

“I

sso não é uma democracia, é uma etnocracia”, queixou-se Assad Ghanem, professor de ciência política da Universidade de Haifa, em Israel. Ghanem é um árabe-israelense, descendente de habitantes ancestrais que não fugiram nem foram desalojados durante a guerra de 1948-1949, quando foi fundado o Estado de Israel. Os árabes israelenses constituem cerca de 20% dos mais de seis milhões de habitantes de Israel. Em um país que se define como judaico e que sempre esteve em conflito com seus vizinhos árabes, a posição dessa minoria sempre foi incômoda. Desde a deflagração da segunda “intifada” palestina, em setembro de 2000, as relações entre árabes e judeus israelenses pioraram. A minoria árabe reagiu com indignação quando a polícia matou 13 membros de Intifada — Revolta sua comunidapopular palestina contra a ocupação de nas manifesisraelense. A primeitações dentro ra intifada começou de Israel, duem 1967, a partir da Guerra dos Seis rante os primeiDias. A segunda ros dias da reintifada começou em volta popular. setembro de 2000. Do outro lado, a comunidade judaica ficou impressionada com as manifestações própalestinas e o conseqüente incremento no número de árabes israe-

Hossam Abu Alan/AFP

Além do conflito palestino-israelense, cresce perigosamente a tensão entre cidadãos árabes e judeus dentro do Estado lenses que haviam colaborado com ataques terroristas palestinos contra alvos israelenses. Na semana passada, o Grupo Internacional de Crise (GCI), uma organização não-govermanental que tenta ajudar a resolver situações de conflito, emitiu uma nota sobre as tensões entre Israel e seus cidadãos árabes. Concluiu que o problema foi ignorado e advertiu que, a longo prazo, essa situação pode ameaçar a estabilidade de Israel.

ISRAEL PARA JUDEUS Assad Ghanem ri de sua condição de “cidadão” de Israel. “Não somos cidadãos plenos, esse país é apenas para os judeus”, disse. A decepção de Ghanem cresceu nos últimos dois anos. “A forma com que a polícia massacrou nossa gente em 2000 demonstra que nós não contamos, que não temos sequer a possibilidade de exigir nossos direitos”, queixou-se. O informe do GCI advertiu que o problema “afeta a essência da autodefinição de Israel como Estado judaico e democrático, devido à complexa natureza das relações: uma minoria árabe que vive em um Estado judeu que, por sua vez, está em conflito com os vizinhos árabes, muito mais numerosos”. Ghanem concorda em certa medida. O acadêmico acredita que a única solução é uma “mudança de regime”, que significaria “o fim da hegemonia judaica em Israel”. Segundo ele, a natureza judaica do Estado poderia ser

Palestino divide rua com soldado israelense. “Não somos cidadãos plenos”, diz Ghanem

expressa simbolicamente através de sua bandeira e o hino nacional. Além dessa mudança de regime, Ghanem não vê outra solução, já que a minoria árabe carece de interlocutores. Yithzak Reiter, professor de ciência política da Universidade Hebraica de Jerusalém, concorda até certo ponto. Nem os judeus nem os árabes estão dispostos, no momento, a ceder em suas demandas, e isso significa uma inevitável colisão. A maioria judaica não está disposta a ceder no que considera os atributos essenciais de um Estado judeu,

enquanto a minoria árabe pretende eliminar todas as expressões práticas do judaísmo do Estado.

BUSCA DE SOLUÇÕES Reiter acredita que o problema poderia ser resolvido se, como recomenda o GCI, os dois grupos começassem um diálogo construtivo. O resultado final poderia ser um Estado que mantivesse os símbolos do judaísmo, como sugere Ghanem, e alguns meios práticos “mínimos” que garantissem a condição do país como refúgio de judeus. O

país conservaria a maioria judia, o que implica o controle da política imigratória, disse Reiter. Ghanem, Reiter e o informe do GCI coincidem em um ponto: reconhecem que os árabes israelenses sofrem graves discriminações. Ghanem criticou as campanhas de “judaização” em algumas partes do país, como a Galiléia, onde o governo considera importante estabelecer maioria judaica . Por outro lado, os cidadãos árabes de Israel “gozam de direitos políticos desconhecidos em outros países da região, como o voto e a liberdade de expressão e associação”, destacou o GCI, observando, porém, que a minoria árabe está politicamente sub-representada. Reiter considera que essa sub-representação deve-se ao fato de que os partidos sionistas nunca aceitam árabes em um governo de coalização e acrescentou que os árabes também estão sub-representados entre os funcionários públicos. O professor propôs a criação de um organismo árabe formal para representar a comunidade, de forma que suas queixas possam ser atendidas mais rapidamente. É claro que um acordo de paz entre Israel e os palestinos facilitaria a reconciliação dentro do país, assinala o GCI. “Sem um acordo de paz, não vejo de que maneira a situação poderia melhorar”, disse Reiter. “O fato de que não haja violência não significa que estejamos satisfeitos. Significa que temos medo”, declarou Ghanem. (IPS)

ESTADOS UNIDOS

Persistem novas formas de escravidão e exploração da Redação As novas formas de escravidão persistem nos Estados Unidos e, apesar do sistema de segurança nas fronteiras, os traficantes de seres humanos introduzem centenas de estrangeiros a cada ano na Flórida, no sul dos Estados Unidos. Segundo denúncia do Centro para o Fomento dos Direitos Humanos

da Universidade do Estado da Flórida, o território é considerado um dos três principais pólos de atração de migrantes dos EUA, junto com Nova York e Texas. Conforme a denúncia, mulheres são obrigadas a prostituir-se e trabalhadores agrícolas e empregadas domésticas trabalham sob novas formas de exploração. “Apesar das várias investigações criminais so-

bre o tráfico humano, não há dados precisos sobre o número de pessoas sob o controle dos novos escravagistas”, disse Terry Coonan, diretor executivo do centro pró-direitos humanos. No sul do Estado, fiscais federais constatam centenas de trabalhadores agrícolas vítimas dos traficantes. Também identificaram perto de 40 mulheres trazidas do México e

Resistir ao imperialismo é lutar pela humanidade O governo estadunidense pretende criar uma ditadura planetária e perpétua para conter a crise estrutural do capitalismo. A opinião é do jornalista português Miguel Urbano Rodrigues, para quem resistir ao imperialismo é lutar pela sobrevivência da humanidade. Segundo ele, as opções são claras: “Socialismo ou barbárie.” Brasil de Fato – Qual é sua avaliação da luta contra o neoliberalismo nas Américas? Miguel Urbano Rodrigues – O 3º Encontro Hemisférico de Luta contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) é um perfeito exemplo de como está a resistência. Os movimentos sociais têm maior combatividade, espírito de rebeldia e confiança, além de um melhor conhecimento dos mecanismos nos quais se fundamenta o neoliberalismo. Naquele encontro, soubemos fazer uma radiografia muito lúcida das estratégias dos dominadores no continente. Isso levou a uma intensificação da luta dos povos na América Latina, mas também a uma mudança de tática do governo estadunidense. BF – Qual é essa mudança de tática? Rodrigues – Precisamos estar

atentos a isso. Washington encontrou dificuldades para impor a Alca a galope e age como se estivesse satisfeita com um acordo que chama de light, ou suave. Por baixo do tapete, entretanto, a estratégia é a mesma, e tudo o que estava na proposta inicial vai ser realizado, só mudou a forma. Ao mesmo tempo, a mobilização aumentou, basta ver o que ocorreu em Cancún, onde milhares de pessoas, principalmente camponeses, impediram as negociações no quadro da Organização Mundial do Comércio (OMC). A estratégia do governo estadunidense é, agora, tornar mais complexos os mecanismos de dominação. BF – Há exemplos? Rodrigues – Os acordos bilaterais com o Chile são um bom exemplo: pega-se uma potência regional para transformá-la em um agente do neoliberalismo. Por outro lado, Washington quer meter a América Central no bolso, chantageando governos para que assinem acordos bilaterais. Os EUA recuaram para atacar por outras frentes e continuam esperando a definição da posição do Brasil, que será determinante para suas pretensões no continente. BF – Quais são as pretensões do governo dos Estados Unidos?

ajuda federal para incrementar a proteção dessas vítimas, muitas das quais ingressaram legalmente nos Estados Unidos, mas são exploradas pelos traficantes devido à sua pobreza e inabilidade para falar inglês. “Alguns dos novos escravos inclusive são estadunidenses”, afirmou Thompson, que listou casos de sem-teto, dependentes de drogas ou fugitivos. (Com agências)

Quem é Miguel Urbano Rodrigues é jornalista, escritor e analista político internacional. Atualmente vive em Havana, Cuba. João Peschanski

João Alexandre Peschanski de Havana (Cuba)

forçadas a exercer a prostituição. Contudo, o problema não se limita a essas áreas ou a algumas indústrias, de acordo com Robin Thompson, diretor de projetos de pesquisa. “Tudo o que se tem de fazer é olhar onde existe mão-de-obra barata e onde há potencial para a exploração profissional”, disse Thompson. A entidade organizou um grupo de trabalho que tem

Rodrigues – A pretensão dos Estados Unidos é resultado de uma crise interna extraordinariamente profunda do capitalismo, basta ver o déficit comercial, o déficit de conta corrente, o buraco na balança de pagamentos, absolutamente insustentáveis. A dívida externa dos Estados Unidos é maior que a soma das dívidas externas de todos os países do mundo. A dívida total da América Latina, por exemplo, varia de 650 bilhões de dólares a 700 bilhões de dólares. A dívida dos Estados Unidos é mais de três vezes superior, e representa hoje 60% do Produto Interno Bruto do país. Diante desse quadro, a única forma que os EUA encontram para tapar o buraco é pelo fluxo contínuo de capital, vindo das remessas das transnacionais e da venda de títulos do Tesouro. Como agora a taxa de juros é baixíssima e ninguém mais compra títulos, não há mais investimentos diretos nos Estados Unidos.

BF – Como o senhor classifica a política estadunidense? Rodrigues – Neofacista. Diante dessa crise, a única solução que aparece para Washington são as guerras preventivas e o saque dos recursos naturais de outros países. Essa é a expressão máxima do neofascismo. Estamos vivendo o 4º Reich, que é o regime de dominação do planeta pelo governo dos Estados Unidos. Os crimes cometidos pelas Forças Armadas deste país desde a Guerra do Golfo, a intervenção na ex-Iugoslávia, a invasão aos povos do Afeganistão e do Iraque são monstruosos. No Afeganistão, os soldados dos Estados Unidos torturaram, cortaram os seios das mulheres, fizeram as maiores barbaridades. BF – Quais são as alternativas? Rodrigues – Socialismo ou barbárie. Mas não podemos nos perder na armadilha de elaborar sistemas fixos de alternativas, como se pudéssemos desenhar de antemão uma sociedade do futuro. Temos de encarar os problemas do presente. Estamos diante de um inimigo formidável e temos de concentrar nossas forças para derrotá-lo. Dia 20 de março acontece a Jornada de Luta contra a Guerra, uma

jornada de toda a humanidade. É o momento de resgastar o espírito de 10 milhões de pessoas que, em fevereiro de 2003, se manifestaram contra a guerra. A maré da resistência precisa subir e abalar os alicerces do sistema. As frentes de batalha já estão expostas, em Bagdá, em Cabul, em Gaza e na Cisjordânia. Os povos do Iraque, Afeganistão e Palestina nos dão uma lição, pois estão lutando pela humanidade inteira. E precisamos nos incorporar à luta. BF – O que é preciso dizer nessa luta? Rodrigues – A bandeira única dos povos é: “O capitalismo não serve, não pode ser humanizado”. Não há reforma possível do capitalismo. Por isso, é um erro achar que, por não termos força suficiente para derrotar os EUA, devemos fazer mudanças comésticas. Como caminhamos para o abismo, a tendência reformista não serve. Também não podemos achar que estamos à beira da revolução. Como o capitalismo não tem reforma, precisamos nos organizar para golpear em todas as frentes, e somando esforços. As massas que saíram na Europa para protestar contra a guerra recusam o projeto de sociedade que nos querem impor.


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INTERNACIONAL ÁFRICA

Brasil conta com África para vaga na ONU Embaixador avalia importância do apoio africano ao país para membro permanente do Conselho de Segurança Marilene Felinto da Redação

Quem é

E

Brasil de Fato — O senhor viajou em fevereiro para alguns países da África. Foi buscar apoio para a candidatura do Brasil a membro permanente do Conselho de Segurança da ONU? Pedro Motta Pinto Coelho — Nós conversamos também sobre isso. Mas fomos numa missão exploratória, diplomática, com motivos específicos em cada país. Eu fui à República Democrática do Congo, o Congo-Kinshasa, porque nós temos a intenção de reabrir a embaixada lá, que foi fechada em fins de 1996 por causa da guerra civil. Em função da melhoria das condições do conflito e da situação política, estimamos que vale a pena. O Congo tem uma presença importante em toda a África. É um país com 60 milhões de habitantes e uma quantidade enorme de recursos. Já tem acordos com o FMI, com o Banco Mundial, e um crescimento hoje de mais de 5% ao ano, está com a economia estabilizada. Os conflitos são limitados à região leste, nas fronteiras com os países vizinhos. Merece uma atenção maior do Brasil, sobretudo dentro dessa nova política brasileira de aproximação com a África. BF — Há relações comerciais entre Brasil e Congo? Coelho — No momento, o comércio é pequeno, mas há possibilidade de um aumento extraordinário, sobretudo na área de serviços de reconstrução do país, de infra-estrutura, construção civil, de estradas. Há perspectivas de negócios de empresas brasileiras na área de construção de casas, com acordos bastante importantes sendo no momento examinados pelas duas partes. Já é uma coisa concreta. A área de mineração também é importante. Mas o Congo também é um país importante do ponto de vista político. Além disso, a conexão com o Brasil é relativamente fácil, porque o vôo de Luanda para Kinshasa é de 50 minutos. As Nações Unidas atuam no Congo com uma força de operação e manutenção de paz. A referência da República Democrática do Congo no contexto mais amplo de política africana e das Nações Unidas sem dúvida entra em consideração.

Pedro Motta Pinto Coelho, embaixador, chefe do Departamento da África (DEAF), do Ministério das Relações Exteriores (MRE) do Brasil. O DEAF, sob a orientação e supervisão da Subsecretaria-Geral de Assuntos Políticos (SGAP), coordena os trabalhos da Divisão de África I e II (DAF-I e DAF-II) e propõe diretrizes de política exterior relativas à África.

Arquivo pessoal

m recente missão diplomática a quatro países africanos, o chefe do Departamento da África (DEAF) do Ministério das Relações Exteriores (MRE), Pedro Motta Pinto Coelho, manteve conversações sobre diversos temas de interesse bilateral com autoridades de Angola, Burkina Fasso, Gana e República Democrática do Congo. Embora o objetivo principal da visita não tenha sido a busca do apoio destes países à candidatura do Brasil a um assento permanente no Conselho de Segurança (CS) da Organização das Nações Unidas (ONU), o embaixador admite que este assunto também esteve em pauta. “O voto africano é muito importante, não tenha dúvida. Nós já temos apoios importantes na África. Para mencionar um só deles, é o da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa”, disse Coelho em entrevista ao Brasil de Fato por telefone, de Brasília. O Brasil é o membro não-permanente que mais vezes foi eleito para o CS da ONU desde a fundação deste organismo. Pedro Motta Coelho também falou da importância de o Brasil estimular relações com organismos econômicos africanos regionais e sobre a reabertura da embaixada brasileira na República Democrática do Congo, prevista para este ano.

BF — O Congo apoiaria a candidatura do Brasil a membro permanente do CS? Coelho — Esperamos que sim. Nós conversamos também sobre isso. Havia na nossa missão um funcionário aqui da divisão das Nações Unidas. Fomos muito bem recebidos lá, tivemos contato com diversas áreas do governo. E conversamos naturalmente sobre aspectos ligados às Nações Unidas, sobretudo tendo em vista a importância de nós termos um conhecimento mais específico sobre a realidade regional e dos conflitos que estão hoje sendo objeto de negociações e acordos. Acho que é importante essa aproximação do Brasil com os países africanos no contexto mais amplo do plano multilateral das Nações Unidas. Esperamos que eles apóiem a candidatura do Brasil, mas nós não chegamos a trabalhar especificamente sobre a questão de pedidos de apoio à entrada do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. O mesmo nós conversamos em Acra, Gana. BF — Como foi a conversa? Coelho — Estivemos em Gana retomando a dinâmica das nossas relações. Gana é um país hoje estabilizado, quase que exemplar na região da África Ocidental, do Golfo da Guiné. Vamos ter aqui no Brasil uma nova reunião da comissão mista com eles. A última foi há muito tempo atrás. Virá aqui o chanceler de Gana. Terá encontro com nosso chanceler para tratar de temas bilaterais. Gana faz parte de alguns organismos regionais importantes no atual contexto da política externa brasileira. Nós temos que trabalhar com os organismos regionais africanos, que são muitos e são desconhecidos no Brasil. BF — Quais organismos? Coelho — O Cedeao, por exem-

O que é O Conselho de Segurança (CS) é o organismo encarregado de manter a paz e a segurança internacional de acordo com os princípios e propósitos da Organização das Nações Unidas (ONU). O CS é composto por 15 membros, cinco permanentes e dez eleitos pela Assembléia Geral para períodos de dois anos. Só os membros permanentes (Estados Unidos, Rússia, Grã-Bretanha, China e França) têm direito a veto nas decisões da ONU — foram países que lutaram na Segunda Guerra Mundial contra o eixo composto por Alemanha, Japão e Itália, e que fundaram a ONU ao assinar a Carta das Nações Unidas, em 1945. O Brasil foi eleito pela nona vez ao Conselho em 1º de janeiro de 2004, e permanecerá até 31 de dezembro de 2005. A ONU está passando por um processo de reforma institucional, que deverá resultar na ampliação dos assentos permanentes do CS. O Brasil pleiteia uma dessas vagas. plo, que é a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental. Ou a Cedeac, que é a Comunidade Econômica dos Estados da África Central. Ou a Sadec, Comunidade de Desenvolvimento da África Austral. Ou a Uemoa, que é a União Econômica e Monetária dos Estados da África Ocidental. São organismos ativos, que funcionam, e têm um papel dos mais importantes na política africana de desenvolvimento e relações internacionais. BF — O senhor esteve também em Burkina Fasso? Coelho — Exatamente. Em Uagadugu, a capital, fica a sede de um desses organismos, a Uemoa, que reúne vários países da África Ocidental, oito ou nove, que têm moeda em comum, estável, que se troca livremente. Estava vinculada ao antigo franco francês. É o chamado franco CFA. Hoje em dia, está ligado ao euro, naturalmente. São países de influência francesa, francófonos, à exceção de Guiné-Bissau, que é lusófono, e foi aceito como membro da Uemoa numa espécie de ajuda que os outros países-membros prestam à Guiné-Bissau. BF — Há um acordo de cooperação em saúde com Burkina Fasso? Coelho — Exato. Nós fomos lá avaliar e manifestar nosso apoio a um projeto piloto de cooperação na questão da Aids. Está em fase ainda de implantação.

PAÍSES VISITADOS

Eles tinham dúvidas sobre vários aspectos do projeto relacionados com custos Também reafirmamos o nosso compromisso de desenvolver projetos de cooperação com eles, não só esse. Na área agrícola, eu acho que há boas possibilidades de trabalharmos. Eles têm muito interesse em receber ajuda nossa para alguns tipos de cultivos próprios da região, que é semidesértica. BF — O senhor esteve em Angola. Coelho — Estive em Angola de passagem, porque, por enquanto, Kinshasa é cumulativo com Angola (a mesma embaixada é encarregada dos assuntos do Brasil nos dois países). O embaixador de Angola foi conosco. Angola tem uma participação política intensa na questão dos conflitos congoleses. Discutimos também, nesse quadro conjunto, Angola e Congo, a questão da Conferência dos Grandes Lagos, que está sendo articulada com vistas não só à solução dos conflitos, mas ao equacionamento da região numa situação pós-conflito, porque ali é uma região realmente muito sensível. Os países vizinhos são de população muito grande, Ruanda, Uganda. Então, é uma fronteira viva muito importante, com muitos recursos. BF — O Brasil vai participar da Conferência dos Grandes Lagos? Coelho — Essa Conferência está sendo articulada sobre a égide das Nações Unidas. E o Brasil poderá ser observador. Nós estávamos lá justamente examinando a eventualidade de pleitearmos o status de observador. A Conferência deve ocorrer ainda este ano. Está em processo preparatório. BF — O Brasil parece bem-visto na África hoje. Mesmo em países que não falam português, como Burkina Fasso, Congo e Gana essa percepção existe? Coelho — Sem dúvida nenhuma. Você tocou num ponto aí muito importante. É impressionante a boa vontade, a admiração que esses países têm pelo Brasil. Pelo fato de nós termos chegado onde já chegamos, por mais pobreza, por mais dificuldade que nós tenhamos do ponto de vista de crescimento, de organização da sociedade etc. Há também uma identidade cultural importante. Vou dar um exemplo. Nós, lá em Acra, fomos visitar a comunidade dos “tabon”, com “n” no fim, mas, na verdade, é com “m”, porque vem de “tá bom”, “você tá bom?”, “ele tá bom?”. É uma comunidade descendente de ex-

escravos brasileiros que voltaram para a região do Golfo da Guiné quando libertos. Eles foram para vários lugares, para a Nigéria, o Benin, e são chamados de “agudás”, os retornados. Há uns dois anos, uma escola de samba do Rio pegou isso como tema do desfile de Carnaval. Lá em Acra, na velha Acra, que se chama Jamestown, tem o Brazil House (Casa do Brasil), uma construção hoje em ruínas, uma casa onde os retornados eram acolhidos ao chegarem. Eles formaram lá, em torno dessa casa, uma comunidade, estruturada em termos africanos, com rei, rainhas-mães, guerreiros. O encontro foi muito bonito. Eles nos recepcionaram lá como se nós fôssemos da comunidade, como príncipes. Foi um momento muito emotivo. Acho que é um compromisso do governo brasileiro, junto com o governo de Gana, de tentar restaurar essa Brazil House, porque simbolicamente representa essa identidade cultural, além do fato de que, no passado, muitos ajudaram a construir o Brasil. BF — Ao final dos quatro anos de governo Lula, as relações Brasil-África estarão de fato mais próximas? Coelho — Sem dúvida. Por exemplo, o nosso comércio com Gana estava, há coisa de dois anos, em 30 milhões de dólares. Hoje está em 104 milhões de dólares. Ou seja, em dois anos, triplicou. E há uma possibilidade enorme. Eles compram de tudo no Brasil. É um comércio multifacetado, de produtos acabados, de produtos perecíveis, carne resfriada, frutas tropicais, que processam e já exportam para a Europa. E outros produtos, gêneros alimentícios de forma geral, grãos, açúcar etc. O problema é a falta de infra-estrutura de transporte. Nós estamos trabalhando em torno do aumento da nossa capacidade de ligação aérea e marítima. BF — Seriam criados vôos para Gana? Coelho — Nós queremos. Há uma companhia de transporte de carga de Gana, que se chama MK Airlines. Eles querem voar para o Brasil, mas aqui há sempre essa questão da reserva de mercado, as negociações são lentas. Eu entendo a necessidade de reciprocidade, mas é importante que nós estejamos preparados para um aumento de tráfego aéreo em função realmente dos interesses do Brasil e desses países em diversificar o seu comércio. BF — Até mesmo o Ministério das Relações Exteriores da África do Sul já indicou que este país votaria no Brasil para o Conselho de Segurança, ainda que não descartem a candidatura deles próprios. Que peso tem o voto africano no final das contas? Coelho — Eu não estou acompanhando muito de perto o debate sobre esse tema no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas, porque isso evolui a cada momento, é um processo dinâmico, mas que há uma enorme disposição, uma enorme boa vontade com relação ao Brasil, há. O voto africano é muito importante, não tenha dúvida. Nós já temos apoios importantes na África. Para mencionar um só deles, é o da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, os países membros da CPLP (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe). Sempre que possível nós desenvolvemos consultas políticas. Angola, por exemplo, é um país que nos tem apoiado em todas as circunstâncias.


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AMBIENTE DEVASTAÇÃO

Contaminada, América Latina está doente População perde até 11 anos de vida por causas relacionadas a problemas ambientais, segundo estudo da ONU Jesus Carlos/Imagenlatina

Diego Cevallos de Cidade do México (México)

O

s latino-americanos perdem, em média, até 11 anos de vida por problemas relacionados a questões ambientais. E, se a América Latina e o Caribe seguirem o caminho da liberalização de mercados sem mudança de valores nem rupturas estruturais, em 2032 o meio ambiente estará em situação alarmante. A advertência é de uma ampla pesquisa patrocinada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), cujos resultados são confirmados por Kaveh Zahedi, coordenador do estudo GEO América Latina e Caribe 2003. O estudo afirma que, nos últimos 30 anos, “a deterioração ambiental se aprofundou”. Lista problemas como a perda de florestas e de biodiversidade, a degradação dos solos e da água, a poluição urbana, o alto nível de vulnerabilidade existente e o efeito de tudo isso na saúde da população regional. “A atual realidade nos leva ao pior futuro”, prevê Zahedi, também coordenador da divisão de Avaliação e Alerta Prematuro do Pnuma. Segundo dados do GEO, com base em informação da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), 225 milhões de latino-americanos viviam na

O México é um dos países que detêm os piores índices de poluição ambiental do planeta

pobreza em 2003. Entre 1990 e 2000, a América Latina perdeu 4,6% de sua cobertura vegetal, isto é, 46,7 milhões de hectares. Nessa década, o desmatamento anual da região foi de 0,5%, mais que o dobro da média mundial. Por esse e outros motivos, como a crescente poluição, “um quinto da população regional está exposta a poluentes aéreos, que ultrapassam os limites recomendados, sobretudo nas megalópoles regionais e nas grandes áreas metropolitanas, embora este

problema esteja se expandindo para cidades médias e pequenas”, indica o estudo.

DEVASTAÇÃO EM CURSO A poluição atmosférica afeta de maneira permanente a saúde de mais de 80 milhões de pessoas, provoca a cada ano 2,3 milhões de casos de insuficiência respiratória em crianças e cerca de cem mil casos de bronquite crônica em adultos. A diversidade biológica, uma das riquezas particulares da Amé-

rica Latina, também enfrenta condições difíceis. O estudo aponta pressões devido à perda de habitat, extinção de espécies e variedades, introdução de espécies exóticas, fragmentação de ecossistemas e tráfico de flora e fauna ameaçadas. Brasil, Colômbia, Peru e México, quatro dos países de maior diversidade regional e mundial, possuem 75% das aves ameaçadas do continente. Além disso, diversas estimativas indicam que a América do Sul proporciona 47% dos

animais ilegalmente capturados no mundo.

CRISE DA ÁGUA Sob os padrões de consumo atuais, adverte o GEO, a água “se converterá em um dos assuntos críticos que a região enfrentará na próxima década”. Essa perspectiva se projeta apesar de a região, que compreende 15% do território e 8% da população mundiais, contar com mais de 30% dos recursos hídricos do planeta. Os litorais tampouco se salvam. Um terço das costas da subregião da Mesoamérica, que compreende o sul do México e América Central, está sob sérias ameaças, da mesma forma que a metade das costas da América do Sul. Apesar de uma situação difícil na maioria dos itens ambientais, o GEO aponta sinais positivos, pois nos últimos 30 anos se registrou um processo ascendente de “internalização” da agenda ambiental. A América Latina tem agora novos recursos legais e institucionais para atender a esses assuntos, e a participação civil vem aumentando. “O aumento da transparência e o acesso à informação, tanto quanto a deterioração ambiental propriamente dita, facilitam o crescimento dos níveis de consciência pública sobre o impacto dos atuais padrões de produção e consumo, bem como uma maior participação dos cidadãos na busca de soluções”, afirma o estudo. (Terramérica)

ÁGUA

Um líquido que se tornou mais caro que o petróleo Com uma inesgotável sede de novos mananciais, os gigantes do setor transnacional de alimentos e bebidas estão drenando rapidamente as reservas públicas de água potável em todo o mundo, para convertê-las em líquido engarrafado. Ao mesmo tempo em que fazem propaganda de seu produto, anunciando-o como a alternativa saudável para as bebidas açucaradas, companhias multinacionais como Perrier/Nestlé (com 30% do mercado), Danone (15%), Pepsi e Coca-Cola criaram uma indústria global de 35 bilhões de dólares, que, segundo previsões, aumentará 30% ao ano durante um futuro indefinido. A água se tornou tão cara que atualmente supera o petróleo em preço, na relação de três para um, em alguns países. Nos Estados Unidos, a água é cotada em cerca de 4 dólares o galão, enquanto o galão de gasolina custa 1,5 dólar, a água filtrada 18 centavos de dólar e a água corrente, 0,003 dólar. Com esses preços, a água engarrafada custa 13,2 mil vezes mais do que água corrente, o que constitui uma margem de lucro sem precedentes na história. As companhias precisam apenas comprar ou alugar a terra onde fica a fonte e pagar um direito nominal para obter acesso ilimitado às minas públicas de água doce. Na zona rural de Wisconsin (EUA), o governo estadual concedeu à Perrier, francesa, licença para bombeamento ilimitado de mais de 500 galões por minuto durante 24 horas por dia, em troca de um pagamento redondo de 100 dólares. Atraído pela promessa de criação de postos de trabalho, o governo de Wisconsin também ofereceu à Perrier 10 milhões de dólares em incentivos e 12 anos de isenção de impostos. O que permite às empresas obter termos tão favoráveis às custas dos bens públicos, além da influência comprada por muito dinheiro, são as leis sobre as águas subterrâneas, que datam de épocas

em que o recurso era abundante, a população escassa e a demanda por irrigação limitada.

engarrafada, em geral, não se ajusta às rigorosas exigências das normas municipais. Em um estudo para o qual foram tomadas milhares de amostras de água engarrafada estadunidense, a Natural Resources Defense Council, organização de defesa dos recursos naturais, constatou que “um quarto das águas engarrafadas não passa de água corrente engarrafada, algumas filtradas, outras não”. Além disso, o rótulo e a publicidade freqüentemente são enganosos, já que fazem supor que a água engarrafada provém de fontes puríssimas, quando, na realidade, não é assim. Por exemplo, uma marca de “água

QUALIDADE EM QUESTÃO A indústria da água engarrafada não está restrita às nações ricas ocidentais. Desde Gana até a Índia, a Coca-Cola e outras transnacionais encontram forte resistência por parte dos habitantes locais, que denunciam que seus poços estão secando, a plantação morrendo e a saúde das pessoas decaindo por falta de água, já que essas companhias estão esgotando suas fontes ancestrais. Por outro lado, apesar de seu alto preço e sua reputação de pureza, a água

de manancial” cujo rótulo mostra uma paisagem com um lago e uma montanha, na verdade provém de um poço situado em um terreno para estacionamento de veículos que fica perto de um perigoso lixão.

AGRESSÃO AMBIENTAL Segundo o World Wildlife Fund (WWF), a água engarrafada satisfaz à elite, mas o grosso da população não tem acesso à água potável. Conforme Birksham Gujja, chefe do programa de água Doce do WWF, não será surpresa se o próximo símbolo antiglobalização for as águas engarrafadas. O WWF classifica a água engarrafada em três tipos de

produtos: água mineral, água spring (protegida contra poluição, mas não tratada com minerais) e água purificada (tratada para consumo humano). O WWF alerta para estragos ambientais do comércio internacional de água engarrafada. Mais de 23 bilhões de garrafas, 25% do consumo global, são vendidas fora do país de origem. Além disso, a cada ano, 1,5 milhão de toneladas de plásticos são usados. O Brasil é o campeão mundial desse tipo de embalagem; praticamente 100%. No outro extremo está a Alemanha, onde 97% das garrafas de água mineral são de vidro. (Terramérica)

AMAZÔNIA

Pecuária é a principal causa de desmatamento da Redação Grande parte do desmatamento recente na Amazônia brasileira tem como principal causa a pecuária de médio e grande porte. Essa é a principal conclusão do estudo “Causas do desmatamento da Amazônia brasileira”, do economista ambiental Sérgio Margulis. O estudo mostra que hoje 12% da Amazônia Legal, cerca de 600 mil km², são áreas de atividade agropecuária. A atividade também seria responsável por 75% das áreas desmatadas na região amazônica. A grande lucratividade da pecuária foi apontada como o maior empecilho para a conscientização dos pecuaristas para evitar o aumento das derrubadas. Segundo o estudo, um pecuarista ganha, em média, 75 dólares por ano por hectare desmatado, mas os custos sociais seriam ainda maiores, de 100 dólares ao ano por hectare. Esse seria, segundo Margulis, um forte argumento para que o governo negociasse com os pecuaristas uma forma de compensação que evitasse o desmatamento desordenado da floresta.

Daniel Beltra/Greenpeace

Mark Sommer de Bekerley (EUA)

Agropecuária é responsável por 75% das áreas desmatadas na região amazônica

Para o ministro Ciro Gomes, da Integração Nacional, é necessário criar alternativas econômicas viáveis para as áreas que já foram desmatadas e criminalizar os desmatamentos futuros. “Existem vastas extensões desflorestadas que estão subutilizadas ou abandonadas que devem ser

ocupadas para desestressar a fronteira adiante do desflorestamento e para mostrar a possibilidade de um manejo florestal inclusive mais rentável e mais lucrativo do que destruir a floresta para criar boi”, afirmou. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, lembrou que o mane-

jo florestal, ou uso das riquezas da floresta de maneira sustentável, pode ser uma alternativa em substituição à derrubada da floresta. “Além do mais não se precisa ter toda uma estrutura para coibir o desmatamento ilegal ou o uso ilegal da floresta”, disse. (Agência Brasil)


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DEBATE MULHERES

2004, ano da Mulher no Brasil o dia 8 de março comemora-se, em todo o mundo, o Dia Internacional da Mulher. Devemos aproveitar esta data para fazer uma reflexão sobre a situação das mulheres no Brasil e no mundo, suas lutas e conquistas. Nos últimos vinte e cinco anos, dois fenômenos interrelacionados alteraram profundamente a situação da mulher brasileira. Em primeiro lugar, as mulheres ultrapassaram os homens na média de anos de estudo. Em segundo lugar, e em grande parte em decorrência desse primeiro fator, a participação feminina no mercado de trabalho cresceu significativamente. No início dos anos 90, as mulheres ocupadas representavam 35,5% da População Economicamente Ativa (PEA). Em 2002, esse percentual passou para 44,5% da PEA. Apesar destas conquistas históricas, no entanto, ainda persistem enormes diferenças, em função do gênero, no mercado de trabalho. As mulheres, apesar de em média serem tão ou mais qualificadas do que os homens, correm mais risco de ficarem desempregadas, tendem a ser aproveitadas em postos de trabalho de pior qualidade e ainda recebem remunerações bastante inferiores às dos trabalhadores do sexo masculino. As estatísticas do IBGE apontam de maneira insofismável essa discriminação de gênero no mercado de trabalho brasileiro. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada em 2001, 12% das mulheres economicamente ativas encontravam-se desempregadas, contra 7,5% de desempregados entre os trabalhadores do sexo masculino. Também, é importante

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destacar que as mulheres tendem a encontrar trabalho em atividades predominantemente informais e de baixa produtividade. Há 5,5 milhões de brasileiras trabalhando como empregadas domésticas, 75% das quais sem carteira de trabalho assinada. A proporção de mulheres dedicadas ao trabalho doméstico é de 19,2% e que não recebem remuneração é de 10,5%, sendo bem maior do que a dos homens, que está em 0,8% e 5,9%, respectivamente. Outras 9 milhões de mulheres são assalariadas pelo setor privado, sem carteira assinada, ou trabalham por conta própria. Finalmente, cerca de 5 milhões de trabalhadoras estão totalmente à margem do mercado, quer ocupadas na agricultura de subsistência, quer exercendo atividade não remunerada em pequenos negócios familiares. Assim, 55% das trabalhadoras ocupadas não contribuem para a Previdência Social, estando, por conseguinte, excluídas do acesso a direitos básicos como o salário-maternidade, o auxílio-doença e a aposentadoria. O fato de a maioria das brasileiras estar relegada a ocupar postos de trabalho precários e com menor jornada de trabalho explica, em parte, o enorme diferencial de remunerações existente no mercado. Enquanto o rendimento médio dos homens era, em 2002, de R$ 719, o das mulheres era de R$ 505, equivalendo a 70,2% do salário médio dos homens. Outro dado é de que 71,3% das mulheres que trabalham recebem até dois salários mínimos, contra 55,1% dos homens. A desigualdade salarial aumenta conforme a remuneração. A proporção de homens que ganham mais de 15 salários mínimos é de 15,5% e das mulheres, 9,2%. É possível afirmar que a pura

e simples discriminação é a principal razão para as mulheres receberem remunerações menores. E a pior constatação é a de que esse diferencial de salários é tanto maior quanto mais alto for o grau de escolaridade do indivíduo. As empregadas do setor formal com o ensino fundamental completo recebem, em média, 73,8% da remuneração de seus colegas do sexo masculino. Porém, os salários das trabalhadoras mais qualificadas, aquelas com curso superior completo, representam, em média, apenas 57% daqueles percebidos pelos empregados homens. Estas diferenças são constatadas também na participação política das mulheres, já que ainda é reduzida a presença da mulher no Executivo e no Legislativo. Na Câmara Federal, as mulheres representam 8,57% do total dos 513 deputados. No Senado, a representação feminina é um pouco maior (10%), mas ainda assim, insignificante. É necessário ampliar a participação política das mulheres já que, inclusive, são a maioria da população e do eleitorado. A reforma política, com a aprovação do financiamento público das campanhas eleitorais, deve servir para ampliar as candidaturas femininas, já que muitas não concorrem às eleições por não terem condições financeiras. Outra situação que nós queremos aqui denunciar e chamar a atenção da sociedade diz respeito à violência contra a

mulher. No Brasil, uma mulher a cada quatro minutos é agredida e a cada hora uma mulher é estuprada. Essa violência ocorre principalmente em casa, onde deveria ser o refúgio da mulher. A mortalidade materna também é preocupante, pois cinco por cento das mulheres morrem por ano por problemas na gestação, no parto e no pós-parto. O governo federal, preocupado com estas questões, instituiu o lema “2004, o Ano da Mulher” e vai promover conferências municipais, estaduais e nacionais para traçar um quadro da situação da mulher, dos seus problemas e analisar e estabelecer políticas públi-

Clair da Flora Martins, a dra. Clair, é deputada federal pelo PT do Paraná

As filhas do sol Fátima Cleide omo uma filha do sol que brilha no coração mais pulsante do planeta, a floresta amazônica, quero homenagear as mulheres e falar com o coração. Quem sabe assim, alcançarei outros corações, pulsantes como o meu, para que lancem um olhar sobre uma legião de gente humilde da minha região. Como representante das mulheres da Amazônia, escolho particularmente este universo da floresta tropical para falar porque entendo que o mundo precisa saber que neste imenso coração pulsante, onde grassam as belezas produzidas pela inteligência do criador e do homem, também existem as belezas naturais das mulheres. São povos cujas mulheres, tão guerreiras quanto amantes, tão fortes quanto meigas, tão subservientes quanto bravas, sofreram na pele e no coração, ao longo da nossa história, violações de seus direitos, de seus corpos e de seu habitat, por força da ignorância do homem branco. E um valioso testemunho desta ignorância, foi dado outrora por outra filha da Amazônia, a ministra Marina Silva, que em seu artigo “A intimidade exposta”, nos conta como se deram as sessões de escravização das mulheres amazônidas durante os danosos processos de colonização de que aquela região sempre foi alvo. Diz Marina Silva: “A formação da família na Amazônia brasileira, especialmente na sua porção mais ocidental, teve uma particularidade marcante: a fase inicial da colonização foi feita

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apenas por homens. Milhares de nordestinos embrenhavam-se nas matas, onde ficavam isolados durante meses na extração de seringa... Somente aos poucos foram se formando as primeiras famílias, com a captura de índias nas aldeias dizimadas. Elas eram escravizadas e obrigadas a acasalar-se com seringueiros. Também foram muitos os casos de compra de mulheres. Seringueiros que tinham saldo comercial com seus patrões podiam “encomendar” uma mulher, que seria trazida de Belém ou Manaus com outras mercadorias. É, talvez, a situação na história do Brasil em que a mulher foi colocada da maneira mais explícita na condição de objeto. Sem dúvida, um objeto valioso e disputado, um bem a ser cuidadosamente guardado”. Essa história de dor e humilhações não está em nenhum livro de História. Mas há luz no fim do túnel. As caras sofridas e também alegres destas bravas mulheres amazônicas – índias, negras, brancas e caboclas –, que trabalham na confecção de artesanatos, na roça, na extração do látex, como armadoras e soldadoras na hidrelétrica de Tucuruí, as parteiras e tantas outras em tantos ofícios foram competentemente registradas pelo fotojornalista Pedro Martinelli, e estão reunidas no livro “Mulheres da Amazônia”, que lancei na tribuna do Senado Federal. “Nunca vi nada igual às mulheres amazônicas. Elas têm um instinto que vai além da sobrevivência. Têm um

cas para resolver esses problemas. No final de junho, Brasília contará com mais de 2000 mulheres na conferência nacional, representando o governo, a sociedade civil e as entidades representativas. O Congresso também está fazendo a sua parte, já que instituiu comissões especiais de mulheres para selecionar os projetos que digam respeito à mulher para que sejam votados neste ano. Assim, fica patente que as mulheres, em que pese serem em tese mais qualificadas que os homens, dado o grau de escolaridade, continuam a sofrer, em pleno início do século 21, uma odiosa e injustificável discriminação, que precisa ser combatida com todos os instrumentos e mecanismos disponíveis. Em conclusão, acentuamos que houve muitas conquistas, mas que as mulheres ainda tem uma longa caminhada para conseguir a igualdade de direitos, entre homens e mulheres, e o respeito que merecem. Essa luta não é só das mulheres, mas de toda a sociedade e passa não só pela instituição de políticas públicas específicas, mas por políticas que possibilitem a retomada do crescimento, investimentos em infraestrutura, pela reforma agrária, pela diminuição dos juros, pela democratização do crédito, pela redução do superávit primário e pela ampliação do valor do salário mínimo, para que possamos construir essa sociedade mais justa e igualitária que todos queremos.

kipper

Clair da Flora Martins

projeto de vida maior, em que a mata tem uma importância vital. Essas mulheres sabem, melhor que ninguém, que sem a mata não há vida. Trabalham para preservar essa essência da vida”, disse o profissional. Neste livro, Pedro Martinelli retrata caboclas, urbanas e índias do Acre, Pará, Amapá e Amazônas, entre 1994 e 2002; uma oportunidade ímpar de se

perceber como as caboclas amazônidas abrigam em torno de si muitas especificidades e como querem continuar a dançar ao som de sua própria cultura e com sua sensualidade própria. Costumeiramente banhadas por um calor inconfundível de mais de 40 graus, estas mulheres simbolizam uma legião de cidadãs que trabalham e produzem riquezas e gentes. Quero dedicar o Dia Internacional da Mulher neste ano à luta de mulheres como essas que, seja em Rondônia, no Acre, no Pará, no Amapá, em Roraima, no Tocantins, no Maranhão, em parte do Mato Grosso, no Amazonas, ou seguindo para as terras de países fronteiriços, ainda sonham em poder embalar suas cunhãs em redes de emoções caseiras. Essa presença feminina tão forte no mundo amazônico não pode continuar invisível nem dos olhos nem das leis. São artesanatos como bolsas, peneiras, cestos, balaios, cerâmica, vasos, bijuterias e produtos como palmito de pupunha, guaraná em pó, farinha de babaçu, doce de cupuaçu, óleo de copaíba, mel, própolis, todos confeccionados pelas mulheres integradas ao Grupo de Mulheres Indígenas e da Associação dos Produtores Alternativos (APA). Algo que o povo amazônido sabe valorizar. Aproveito também para falar aos corações de outra significante parcela da população feminina de nosso país, que são as valorosas donas de casa. Aprovo e apoio integralmente o projeto

da deputada Luci Choinacki que prevê aposentadoria para estas trabalhadoras, e lanço um apelo para que o Senado brasileiro encampe esta proposta. Empenhei-me com o então ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, para que a proposta de Reforma contemplasse as donas de casa, incluísse como beneficiárias do sistema mulheres que mesmo longe dos escritórios e fábricas estão contribuindo para a economia do país. Disse-me ele que não seria possível naquele momento, mas garantiu então que um grupo interministerial analisaria a propositura, o que de fato foi feito, porém a bancada feminina entende que os resultados avançam, mas não contemplam satisfatoriamente as questões que permitiriam a inclusão das mulheres de forma a valorizar o trabalho doméstico não remunerado. Continuamos então a luta, e peço a todos o apoio e atenção à Marcha Nacional das Donas de Casa pelo Direito à Aposentadoria. Termino com a esperança de ter conseguido me expressar senão a milhares ou a centenas de corações, pelo menos a alguns que, igualmente ao meu, pulsam forte e externam minha sensibilidade de mulher guerreira e amazônida. Assim, faço minhas as palavras do fotojornalista Pedro Martinelli: “Elas são sensíveis e sabem o valor da floresta porque assim, com a própria natureza, elas têm a sabedoria para enfrentar os incômodos da menstruação e as dores do parto, através do resgate da própria essência da floresta”. Fátima Cleide é senadora da República pelo PT de Rondônia


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agenda@brasildefato.com.br

AGENDA NACIONAL

CEARÁ ENCONTRO DE JOVENS De 12 a 14 Realizado pela Pastoral da Juventude da Diocese de Itapipoca e assessorado pela Cáritas regional, o encontro tem como tema a Campanha da Fraternidade 2004 e vai reunir cerca de 18 coordenadores da pastoral da diocese. O objetivo do evento é mostrar aos jovens a importância da água e as formas de utilização adequada desse bem natural. Haverá também estudos sobre a Semana da Cidadania, programada para abril. Local: Paróquia de São Luiz do Curu, Itapipoca Mais informações: (88) 8806-4899, 631-2022 DEBATE - IMPORTÂNCIA DO TRABALHO Dia 13, às 19h A Associação dos Alfabetizadores do BB-Educar de Maranguape promove um debate sobre a importância do trabalho que realiza há dez anos no município. Além da coordenação atual, haverá o pronunciamento de exalunos que hoje estão alfabetizados graças ao Programa de Alfabetização de Jovens e Adultos. O trabalho do BB-Educar agrega à educação formal conceitos de cidadania, participação popular e compromisso com a educação libertária. Local: Câmara Municipal, Coronel Antônio Botelho, s/n, Maranguape Mais informações: (85) 371-1094

I SEMANA DAS ÁGUAS De 15 a 21 A cidade de Aracoiaba terá sete dias de eventos referentes à I Semana das Águas no município. Dia 15 de março acontecerá o Seminário das Águas, com técnicos de órgãos públicos, no Centro Comunitário da Secretaria de Ação Social. Dia 16, haverá a Seresta das Águas, com apresentação de artistas da terra, na Escola Estadual Almir Pinto. Dia 17 a programação continua com uma Audiência Pública na Câmara Municipal. Dia 18 haverá o Encontro com Famílias, reunindo 12 comunidades atingidas pela barragem do açude Aracoiaba, na localidade de Lagoa de São João. A Festa de São José será comemorada em 8 comunidades dia 19. No sábado, 20, acontecerá o Encontro com Famílias Beneficiadas pelas Cisternas de Placas, na comunidade Vila São Camilo, reunindo cerca de 150 famílias. A Romaria das Águas será no domingo, 21, das 8 às 12 horas, na beira do Açude Grande, com um ato público seguido de celebração ecumênica. A Semana é uma realização do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Aracoiaba e da Comissão Pastoral da Terra. Mais informações: (85) 337-1241, cptce@fortalnet.com.br CURSO - ÊXODO: CAMINHOS DE LIBERDADE Já estão abertas as inscrições para a quarta edição do Curso de Verão na Terra do Sol, programado para o período de 12 a 24 de julho. O curso é realizado em processo de mutirão, busca valorizar o Nordeste brasileiro, e é voltado especialmente para agentes de pastoral e representantes de movimentos populares com idade mínima de 18 anos. O evento contará com oficinas de pintura em tecido,

SEMINÁRIO: DIREITOS DOS IDOSOS Dia 13, às 9h O seminário irá discutir a situação dos idosos na região, a aplicabilidade do Estatuto do Idoso e estratégias de luta. Local: Câmara Municipal de São Bernardo, Pça. Samuel Sabatini, 50, São Bernardo do Campo Mais informações: (11) 4331-4275, 4331-4276, zeferreira@camarasbc.sp.gov.br

Divulgação

LIVRO MÍDIA: TEORIA E POLÍTICA De autoria do estudioso dos meios de comunicação Venício A. de Lima, o livro debate conceitos e apresenta hipóteses que expressam a centralidade da mídia como objeto e palco privilegiados das disputas de poder no mundo contemporâneo. Além disso, o autor faz uma crítica do processo de privatizações das comunicações no país, analisa o papel da televisão na política brasileira e apresenta conceitos para a compreensão da centralidade da mídia no mundo contemporâneo. A segunda edição do livro vem com um capítulo que abrange a concentração da propriedade na mídia e destaca as implicações da aprovação da Emenda Constitucional nº 36 (Capital Estrangeiro) pelo Congresso Nacional, em 2002, nas empresas de comunicação brasileiras. Editado pela Fundação Perseu Abramo, custa R$ 30. Mais informações: (11) 5571-4299

SÃO PAULO LIVRO Lançamento - A Venezuela que se inventa, poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez Dia 24, a partir das 18h30 De autoria do jornalista Gilberto Maringoni, um especialista no assunto, o livro-reportagem trata do conflituoso jogo do poder venezuelano e o golpe de Estado aplicado ao governo no ano passado. A apresentação foi feita pelo sociólogo Emir Sader. A obra trata das greves que paralisaram o país e resultaram em convulsão social e da atuação da imprensa como fonte declarada de oposição ao governo. O livro, publicado pela Fundação Perseu Abramo, traz ainda um estudo dos anos anteriores da política na Venezuela até a eleição do presidente Hugo Chávez. Local: Livraria Cultura, Av. Paulista, 2073, São Paulo Mais informações: (11) 3170-4033

desenho e pintura, canto, contador de história, cartões, teatro, liturgia, brinquedoteca, espiritualidade e bibliodrama. Haverá também celebrações ecumênicas, palestras, plenárias e trabalhos individuais. Local: Colégio Santo Inácio, Av. Desembargador Moreira, 2355, Fortaleza Mais informações: (85) 253-7274, cvtsfortaleza@fortalnet.com.br

ESPÍRITO SANTO I SEMINÁRIO ESTADUAL DE GÊNERO Dias 13 e 14, a partir das 9h Organizado pelo coletivo de gênero do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o seminário tem como objetivo buscar um novo jeito de pensar e agir em relação ao espaço que a mulher e o homem exercem na sociedade. Local: Escola Família Agrícola do Córrego Bley, São Gabriel da Palha Mais informações: (27) 3728-1364, 9977-2341, 3727-0055 ENCONTRO ALTERNATIVO DA JUVENTUDE Dias 12, 13 e 14 Na ocasião haverá debates e palestras sobre temas como: políticas públicas para a juventude, identidade cultural, novas relações de gênero, sexualidade, emprego e qualificação profissional, questões étnicas. Haverá ainda shows, recital poético, espetáculos teatrais, capoeira, e exibição de filmes. Local: Clube dos Empregados da Petrobras (CEPE), Rodovia Orthovarino Duarte, São Remo (ao lado da faculdade São Mateus), São Mateus Mais informações: (27) 3763-2640

INAUGURAÇÃO: ESPAÇO CULTURAL PINDORAMA Dia 18, às 21h30 O Centro cultural tem como objetivo aprofundar a pesquisa da Companhia Antropofágica (ATP) e desenvolver atividades culturais para pessoas de baixa renda. Estão abertas inscrições para cursos e oficinas de teatro, música e dança a preços populares. Local: R. Barra Funda, 555, São Paulo Mais informações: (11) 3668-5823 INSTITUTO CLÉBER MARCIEL Dia 19, às 19h Cerimônia de fundação do instituto, que tem como proposta promover o desenvolvimento social, econômico, cultural e educativo do povo de origem africana e seus descendentes por meio da formação continuada de profissionais e lideranças da sociedade civil. Durante o evento, será exibido um filme sobre a vida do professor Cléber Marciel e haverá a palestra “A trajetória do Movimento Negro e o instituto nesse contexto”. Local: Plenário da Assembléia Legislativa do Espirito Santo, Vitória Mais informações: (27) 3359-5200, 3322-1108, brasil-es@brasildefato.com.br

PERNAMBUCO II CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL De 17 a 20 Organizada pelo Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), com apoio do Ministério de Segurança Alimentar e Combate à Fome, a Conferência reunirá mil delegados que vão elaborar uma proposta de diretrizes para a segurança alimentar e nutricional no Brasil. Essa proposta será entregue ao presidente da República, que deverá encaminhá-la ao Congresso Nacional em forma de projeto de lei. A Conferência também vai analisar e oferecer sugestões ao programa Fome Zero. Local: Complexo Viário Vice-governador Barreto Guimarães, s/n, Olinda Mais informações: (61) 411-3283/2173, www.fomezero.gov.br

LANÇAMENTO: ESQUERDA SOCIALISTA DEMOCRÁTICA Dia 19, às 19h Presenças confirmadas: Heloísa Helena, senadora; Babá, deputado federal; Luciana Genro, deputada federal; João Fontes, deputado federal; Francisco de Oliveira, sociólogo, Paulo Arantes, filósofo; Ricardo Antunes, sociólogo; Roberto Romano, filósofo; Leda Paulani, economista; Julieta Lui, vereadora. Local: R. Guaporé, 240, próximo ao Metrô Armênia, São Paulo Mais informações: (11) 3326-9762. SEMINÁRIO - QUEREMOS UM OUTRO BRASIL Dia 21, das 9h às 18h Os participantes vão discutir os temas: “Balanço e perspectivas das políticas econômica e social do governo Lula”, com Carlos Eduardo Carvalho (PUC-SP), Laura Tavares (UFRJ), Leda Paulani (USP), e Ricardo Carneiro (Unicamp); e “Rumos do governo federal e do PT”, com Plínio de Arruda Sampaio e parlamentares. Local: Auditório do Sindicato dos Engenheiros de São Paulo, R. Genebra, nº 25, Centro, São Paulo Mais informações: (11) 3113-2600 GRUPO DE ESTUDOS MARXISTAS Terceiro domingo de cada mês, das 10h às 14h Promovido pelo Centro de Documentação de Direitos Humanos, o grupo de estudos tem como objetivo entender o funcionamento da sociedade e contribuir com a organização da classe trabalhadora. Local: Av. dos Têxteis, 1050, Cidade Tiradentes, São Paulo Mais informações: (11) 7103-4406, nucleoforcativa@ig.com.br


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CULTURA

De 11 a 17 de março de 2004

MÚSICA

O Brasil não conhece a Rainha do Xaxado reprodução

Consagrada por gigantes da cultura nordestina como Luiz Gonzaga e Dominguinhos, Marinês é ignorada pela mídia Letícia Baeta da Redação

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oroada por Luiz Gonzaga como a Rainha do Xaxado e considerada por Dominguinhos a cantora atual mais importante da música nordestina, Marinês também ganhou o primeiro Prêmio Sharp do Brasil de melhor cantora de música regional, na década de 80. Em cinqüenta anos de carreira, lançou 45 discos. Mas, mesmo com todo esse cacife, seus admiradores temem seu esquecimento. Renegada pela mídia, Marinês se limita a apresentações em festas juninas do Norte e do Nordeste. Ela foi a primeira mulher a empunhar a bandeira do forró: “Fui a primeira abusada. Botar um chapéu de couro e cantar o repertório do Rei do Baião pelo meio do mundo é muita responsabilidade, tem que ter muita coragem”, diz ela. Sempre vestida “a caráter”, deu alguns passos como compositora. “Só Gosto de Tudo Grande” é uma de suas obras, que foi registrada em nome de Adolpho de Carvalho e de Adélio Silva. “Fiquei com vergonha do duplo sentido no nome da música”, confessa. No entanto, seu maior patrimônio é a voz. “Se soltar Marinês perto de cinco ou seis cantoras, você vai ver que a diferença é gritante, é qualidade demais. Por quê? É o gogó, não tem pra ninguém. Canta demais, não engana”, avalia Dominguinhos, que foi descoberto pela forrozeira como compositor. “Marinês é meu pé de coelho, foi a primeira a gravar uma música minha”, diz Dominguinhos.

NORDESTINOS SEGREGADOS Tamanho talento, porém, não basta. Sem divulgação e sem apoio de patrocinadores, Marinês não consegue manter sua arte. Seus próximos shows estão marcados só para o mês de julho. E não é por falta de garra: “Mando discos para as produtoras, mas não me dão resposta”, lamenta. Indignada, Marinês se pergunta: “E o trabalho que eu fiz na minha vida toda, vale não? Eu não estou na mídia porque não sei

Acima à esquerda, capa de LP de Marinês de 1977; à direita, capa de LP de1975

A Rainha do Xaxado Marinês (à esq.) se reuniu com as “rainhas” do Baião, Carmélia Alves (de branco) e do Forró, Anastácia no programa de rádio apresentado por Assis Ângelo (entre elas)

por onde entrar. Se soubesse eu já estava lá, aí era um arraso”. Assim como a arte de construtores da cultura popular nordestina como Dominguinhos, Carmélia Alves, Anastácia, Chico Alves, Orlando Silva e o próprio Luiz Gonzaga, hoje a arte de Marinês não interessa às rádios e televisões. “As emissoras viraram um comércio. Se não tiver grana, sua música não toca na rádio”, denuncia Dominguinhos. “E querer que uma pessoa do gabarito de Marinês pague para ser colocada na mídia é ridículo”, completa. A principal compositora de Marinês, Cecéu – que faz parceria com Antônio Barros – acredita que “os veículos de comunicação não estão preocupados com a qualidade”, apenas com o dinheiro: “Para tocar uma vez por dia, custa tanto; duas, é outro tanto, e assim vai”, diz. Ao ignorar os artistas populares, “a mídia mata a verdadeira música,

a arte brasileira”, acredita o pesquisador da cultura popular Assis Ângelo. “Os zezés de camargo, os sertanejos, os axés da vida... isso é feito para vender e alienar as pessoas. É assim que a indústria fonográfica quer e faz”, afirma Ângelo. Sem espaço, esses heróis da cultura popular ficam segregados a programas nordestinos como o “São Paulo Capital Nordeste”, que Ângelo apresenta na Rádio Capital, em São Paulo. Como esse tipo de programa quase não existe, as crianças e os jovens de hoje crescem “analfabetos musicais”, segundo o pesquisador. Ele acredita que há pessoas sedentas por música de qualidade e por conhecer sua identidade. “O que dá identidade a um país é a arte popular. É a arte que vem do povo para o povo. É a cultura oral e a de se ver, é a que se faz pelas mãos anônimas do povo”, diz Ângelo.

Quem era o Rei do Baião Luiz Gonzaga teve grande influência e importância não só para a carreira de Marinês, mas de muitos artistas nordestinos das décadas de 40 e 50. O sanfoneiro foi o responsável pelo reconhecimento de inúmeros artistas populares nordestinos. Tudo começou depois do 24º disco que Gonzagão gravou como sanfoneiro. No 25º, permitiram que ele cantasse. E, mais do que fazer sucesso, ele virou o Rei do Baião. “Luiz Gonzaga deu ao baião uma característica que até então não existia. Fez um ritmo, assim como Tom Jobim fez a Bossa Nova”, explica o

SAIDEIRA

pesquisador de cultura popular Assis Ângelo. “Eu vou mostrar pra vocês como se dança o baião...”, foi com essa música, chamada “Baião”, que o novo ritmo virou mania. “Todos os artistas queriam fazer sucesso, regravando músicas de Gonzaga”, conta Ângelo. Nesse momento, artistas regionais começaram a sair de todas as cidades do Nordeste para tentar a vida no Rio de Janeiro. Berço da cultural musical, o Rio de Janeiro abrigava as principais gravadoras. Havia a CBS, atual Sony; a RCA Vitor, hoje BMG; e a tradicional Odeon,

atual EMI Discos. Foi assim que artistas anônimos como Marinês, Anastácia, Dominguinhos e muitos outros apareceram. A música não foi a única ajuda que Luiz Gonzaga lhes ofereceu. Dominguinhos, por exemplo, ganhou sua primeira sanfona do Rei do Baião. Outras 200 sanfonas foram distribuídas a pessoas que ele acreditava ter talento. Gonzagão criou uma verdadeira dinastia do baião. Luiz Vieira era o príncipe; Claudete Soares, a princesa. A Rainha do Baião era Carmélia Alves e Marinês, a Rainha do Xaxado. (LB)

De Campina Grande aos palcos de Gonzagão Inês Caetano de Oliveira começou a cantar em Campina Grande, Pernambuco. Seu talento foi descoberto pela “Voz da Democracia”, emissora caseira, que fazia transmissões por alto-falantes ou difusores acoplados aos postes de luz do bairro Liberdade, onde ela morava. Nas décadas de 40 e 50 não havia emissoras de rádio na cidade. Anos depois, juntou o sanfoneiro Abdias – com quem havia acabado de se casar – e Cacau, ex-zabumbeiro de Luiz Gonzaga, para formar seu primeiro conjunto, o Patrulha de Choque do Rei do Baião. O grupo saiu pela estrada, fazendo apresentações de cidade em cidade, até chegar a Propriá, em Sergipe, onde Marinês conheceu pessoalmente Luiz Gonzaga – que mais tarde a lançaria na carreira profissional. Assim como toda a população da cidade, o prefeito de Propriá, Pedro Chaves, era um grande admirador de Gonzagão e, em 1955, mandou fazer um busto em homenagem ao ídolo. Para a festa de inauguração do busto, contratou Luiz Gonzaga e convidou Marinês – já famosa na região por cantar as músicas do “Rei”. Ela lembra com emoção: “Eu quero que você esteja aqui para Gonzaga lhe ouvir, me disse o prefeito”. Os convidados de honra foram hospedados no hotel da cidade, vizinhos de quarto. Marinês conta que assim que Gonzaga soube, quis logo conhecer a tal “menina” de que todos falavam e convidou o grupo para um almoço. “Ele não botava qualquer coisa na mesa dele. Eu me senti uma rainha perto do rei”, brinca Marinês.

À noite, o Patrulha abriu o show de Gonzaga. “Quando ele entrou no palco, disse: pronto, agora eu nem sei mais o que cantar. Ela já cantou tudo!”, conta Marinês. “Foi naquele dia que Gonzaga me ensinou a dançar xaxado”, recorda. Conhecer Luiz Gonzaga mudou a vida de Marinês. Meses depois, o Patrulha se mudou, a convite do Rei, para o Rio de Janeiro. O grupo ficou três dias na casa de parentes, mas logo foi convidado a se hospedar na casa de Gonzaga: “Ele mandou o empresário dele nos apanhar”. O emprego já estava acertado. O Patrulha de Choque do Rei do Baião começou a fazer parte do próprio grupo de Luiz Gonzaga. “Aí as portas se abriram”, diz Marinês. O ano de 1957 foi o divisor de águas. Marinês abandonou o grupo de Gonzaga e o antiga Patrulha se uniu novamente, agora com o nome de “Marinês e Sua Gente”. Nesse ano, lançaram o primeiro LP. Sucesso absoluto. Os 400 mil discos esgotaram rapidamente. A gravadora Sinter prensou mais 300 mil cópias, que também esgotaram. A esse, se seguiram outros 42 discos. “Cantando com o Coração”, lançado no ano passado, foi sua última obra. Marinês gravou o CD, sem maiores problemas, 45 dias após uma cirurgia no coração – daí o título da obra. Ciente da falta de espaço na mídia, Marinês não tem grandes aspirações: “Eu já sonhei demais, já sei o que é sonho e o que é realidade. Quero continuar cantando, tendo como compositores Antônio Barros e Cecéu, continuar fazendo sucesso com o meu público. Isso não é mais sonho, é realidade”. (LB)


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