Ano 2 • Número 57
R$ 2,00 São Paulo • De 1º a 7 de abril de 2004
MST pressiona para acelerar reforma O
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) iniciou, dia 27 de março, jornada de lutas que se estende até 17 de abril, Dia Internacional de Luta pela Terra, que lembra o massacre de Eldorado dos Carajás. Depois de quatro dias, o movimento já havia realizado 22 ocupações em cinco Estados. Após reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dia 30 de março, o ministro do Desenvolvimento Agrário Miguel Rossetto anunciou a liberação de verba adicional de R$ 1,7 bilhão – o que praticamente duplica o orçamento da pasta. Em manifesto lançado dia 26 de março, servidores do Incra pedem novas contratações. Pág. 3
Beto Figuerôa/JC Imagem/AE
Sem-terra realizam mais de 20 ocupações em quatro dias e governo libera R$ 1,7 bilhão para a reforma agrária
Desemprego recorde abala imagem de Lula Retrato da crise que atinge o país, a Região Metropolitana de São Paulo registra os maiores índices de desemprego do Brasil nos últimos 19 anos. Pesquisa mostra que 19,8% da mão-deobra ativa buscam, sem sucesso, uma vaga de trabalho, enquanto a descrença na economia corrói a confiança no governo Lula. Pág. 7
Transgênicos são retirados das prateleiras O decreto de rotulagem dos alimentos transgênicos passou a vigorar, dia 26 de março, em todo o país. Em São Paulo, o Centro de Vigilância Sanitária já recolheu 11 produtos que contêm soja transgênica e não informavam o consumidor no rótulo. Para tentar protelar o cumprimento da lei, o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, admitiu que sua pasta “não teve condições” de rotular os grãos no campo. No Paraná, mesmo com as pressões para que fosse derrubada a moratória à soja modificada, o Estado comemora a cotação da safra de soja convencional, estimada em R$ 53 a saca. Já a produção transgênica do Rio Grande do Sul não superou os R$ 46 por saca. Pág. 8
Mercosul negocia livre comércio com Europa
Pág. 9
Pág. 10 Anderson Barbosa
Soldados do Exército e da PM invadem a Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda e reprimem greve, em 1988
Manifesto exige demarcação de terra indígena Pág. 3
Confederação de palestinos quer diálogo de etnias Pág. 11
ONU prevê crise mundial da água Pág. 13
Marcio Baraldi
A Jornada Nacional de Lutas, organizada pela União Nacional dos Estudantes (UNE), desde 29 de março, mostra a insatisfação do movimento estudantil com a política econômica do governo. Os estudantes cobram uma reforma universitária comprometida com o ensino público e com a ampliação das políticas sociais. Enquanto isso, pipocam greves de professores e alunos em vários Estados, como Bahia, Rio e São Paulo – que sedia, na capital, o Fórum Mundial de Educação. Pág. 5
Campanha contra envio de brasileiros ao Haiti Homero Sérgio/ Folha Imagem
Educação tem jornada de lutas e fórum mundial
Trabalhadores rurais sem-terra, organizados pelo MST, ocupam terras improdutivas em São Lourenço da Mata (PE), numa das 22 ocupações ocorridas no país
Tortura marca vida de vítimas da ditadura Tortura, agressões e humilhações foram marcas do regime militar implantado pelo golpe de 1º de abril de 1964. Na segunda reportagem sobre os 40 anos do início da ditadura, o Brasil de Fato traz declarações de ativistas que sofreram violências em dependências do Exército, principalmente a partir da decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5). Eles contam detalhes das técnicas de repressão e falam das seqüelas, físicas e emocionais, que carregam há décadas. Págs. 2 e 6
E mais: MÍDIA – Em audiência pública no Senado, representantes das empresas de TV endividadas defendem a ajuda financeira do BNDES. O vice-presidente do banco diz que os recursos são para a modernização tecnológica. Pág. 4 ÁFRICA – As eleições na Argélia, no dia 8, significam um importante teste para a democracia num país marcado por uma guerra civil que matou 150 milhões na última década. A África do Sul também vai às urnas este mês. Pág. 12 CINEMA – O diretor argentino Fernando Solanas fala sobre seu documentário Memórias do Saque. O filme aborda a crise atravessada por seu país no fim de 2001, que culminou com a renúncia do presidente Fernando de la Rúa. Pág. 16
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De 1º a 7 de abril de 2004
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Tiago Rodrigo Dória • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Bernardete Toneto, 5555 Marilene Felinto, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Agê, Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, 5555 Natália Forcat, Nathan, Novaes, Ohi • Diretor de Arte: Valter Oliveira Silva • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Bruno Fiuza e Letícia Baeta 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: FolhaGráfica 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
NOSSA OPINIÃO
Os golpes de 64
E
stá fazendo quarenta anos. Um golpe de Estado civil-militar derrubou o governo constitucional do presidente João Goulart, em 1º de abril de 1964, e deu início a uma ditadura que durou 21 anos, até a eleição indireta de Tancredo e Sarney, em 1985. Lembrar o golpe é refletir sobre a história do Brasil, sobre a trajetória anterior, o episódio em si, as conseqüências imediatas e todos os desdobramentos políticos, econômicos, sociais e culturais decorrentes daquele fato – até os dias atuais. Em 1964, a democracia brasileira ainda estava engatinhando e experimentava o avanço das massas populares e das organizações dos trabalhadores, que reclamavam as reformas de base, as mudanças sociais, inclusive a reforma agrária. O governo João Goulart, apesar de contraditório na sua origem e composição política, abria espaço para as demandas populares, já que o país tinha alcançado razoável crescimento nos anos 50, mas faltava democratizar os benefícios, distribuir a renda e ampliar a participação dos trabalhadores no controle do Estado. A burguesia nacional, aliada com a oligarquia rural, setores reacioná-
rios da igreja católica, as Forças Armadas e com a ajuda do imperialismo estadunidense, desfecharam um duro golpe na incipiente democracia, derrubaram o governo e interromperam o processo ainda embrionário das reformas. A ditadura militar impôs um regime de terror, de perseguições e violências, de distorção das instituições republicanas, especialmente para conter e eliminar o avanço das organizações populares, dos trabalhadores e dos movimentos de esquerda – socialistas e comunistas – que apostavam no aprofundamento da democracia e na construção de uma nova sociedade. Inúmeros lutadores do povo foram perseguidos, desmoralizados publicamente, presos, condenados, torturados e assassinados pelo regime militar – com a conivência das classes dominantes e o silêncio da imprensa. As seqüelas da violência do Estado ainda estão presentes, não foram apagadas e jamais devem ser esquecidas. Inclusive porque as mesmas forças que atuaram em 64 contra o governo constitucional de João Goulart continuam dominando a política brasileira; as mudanças que o povo pede hoje são praticamente
as mesmas que eram reivindicadas nas reformas de 64; e o imperialismo estadunidense continua exercendo sobre o Brasil o mesmo papel nefasto dos anos 60. A realidade de hoje revela que o golpe civil-militar de 64 congelou os vários problemas brasileiros por 40 anos; existe no ar a sensação de que o país perdeu 40 anos de sua trajetória, regrediu em vários aspectos – principalmente nos direitos sociais das classes trabalhadoras – e ainda busca um rumo e a retomada de seu projeto nacional. As lutas do povo nas últimas décadas, a construção do PT, da CUT, do MST e de tantas organizações dos trabalhadores, criaram muitas perspectivas e esperanças. A eleição de Lula para presidente prenunciava um novo período de conquistas, mas, em um ano e três meses de governo, o que resta é a perplexidade do vazio e da frustração. O Brasil não conseguiu, até hoje, superar os golpes iniciados em 1964. As reformas que interessam ao povo ainda não chegaram. A nação continua lutando por sua independência, sua soberania, por uma sociedade mais democrática, mais justa e mais igualitária – para TODOS.
FALA ZÉ
OHI
CARTAS DOS LEITORES SAUDAÇÕES Sou estudante de jornalismo e leitor assíduo desse brilhante jornal. Os parabenizo pelo trabalho, que faz com que Brasil de Fato seja o melhor e mais correto jornal do país. Espero que vocês continuem colocando a informação e a verdade em primeiro lugar. O país e o jornalismo precisam de profissionais como vocês. Eduardo Montesanti Goldoni por correio eletrînico POBREZA GLOBAL ZERO Como a moda do momento parece ser zero isto, zero aquilo, é bom que se fale também em pobreza zero, e não apenas local, como geral, global. E por quê? Porque, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a humanidade dispõe de todas as condições necessárias para tirar da linha da miséria mais da metade de todos os habitantes do planeta, bastando que se reveja a má distribuição das riquezas terrestres – riquezas que são de todos os países. Eis porque, para se atingir a meta pobreza zero, dependemos apenas de uma ampla visão do primeiro mundo por ser aquele que, no presente momento histórico, detém cerca de 50% de todo o PIB mundial. E, ao optar pela pobreza zero, não tenhamos dúvidas de que todos sairão ganhando. Os mais ricos, porque estarão fazendo o maior e mais lucartivo negócio jamais concebido pelos seus economistas. E os mais pobres porque, com formação, trabalho e renda condizentes, estarão ingressando num novo mundo, mais humano e com mais oportunidades de crescimento. Será, sem dúvida, o início do fim de todas as divergências que acompanham a humanidade há vários milênios. João Carlos da Luz Gomes Porto Alegre (RS)
CONTRA-REFORMA UNIVERSITÁRIA? A nova reforma pretendida pelo governo Lula, a reforma universitária, também parece assumir um caráter esdrúxulo e contraditório. Particularmente no que se refere ao projeto “Universidade para Todos”, o que cabe aqui, mais uma vez, é o absurdo da lógica neoliberal e excludente. O projeto reserva e financia (com dinheiro público dos impostos) vagas ociosas em universidades privadas para estudantes oriundos da rede pública e populações discriminadas (negros, índios etc.), como forma de ampliar o acesso ao ensino superior. É claro que as “boas intenções” do projeto não atacam o centro do problema: a baixa qualidade do ensino público no nível médio e fundamental, além da absoluta insuficiência de vagas no ensino superior público e gratuito, sem falar da enorme carência de recursos na área da Educação. Além disso, não se questiona os métodos de admissão nas universidades públicas (os vestibulares) que imprimem um caráter elitista ao processo de seleção, e somente beneficiam os donos de cursinhos. Em vez de beneficiar os donos de fábricas de diploma (universidades privadas), que fazem da “educação” (se é que podemos chamar o que eles oferecem de educação!) um produto a ser vendido e comprado, com tal projeto absurdo, o governo Lula deveria fazer da Educação seu carro-chefe: provendo a universidade pública com mais recursos, ampliando suas vagas, melhorando as condições de ensino, pesquisa e trabalho, além de mudar a lógica dada ao ensino médio e fundamental. Está na hora de colocar um fim na lógica comercial e mercantilista que parece ter impregnado a Educação brasileira nestes últimos dez anos. Augusto Patrini por correio eletrônico
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CRÔNICA
A mentira pode correr cem anos Luiz Ricardo Leitão O relato me chega pela internet. Quem me enviou foi uma física cubana que faz pós-graduação na Europa e estava em Madri durante aquela turbulenta semana do 11 de março. Trata-se de um testemunho sobre os incidentes ocorridos na capital espanhola na noite de 13 de março, véspera das eleições parlamentares no país. Sua autora não quis identificar-se. Seu discurso, porém, nos sugere que ela é mais uma dentre milhares de pessoas que, cansadas das mentiras do premiê Aznar, decidiram por conta própria sair às ruas naquela noite e concentrar-se diante da sede do PP, para exigir a verdade sobre os acontecimentos do dia 11. A maratona começou no final da tarde. Às 18 h, uma tropa policial protegia a sede do partido. Meia hora depois, a polícia já não podia mais conter a multidão. Alguns berravam de indignação: “Mentirosos, assassinos! Sua guerra, nossos mortos! Não vieram todos: faltam duzentos!”. A imprensa por trás do cordão policial era quase toda estrangeira. Quando o governo declarou pelos meios de
comunicação que a concentração era ilegal e ilegítima, acusando setores do Partido Socialista de haver organizado o ato, a multidão rugiu: “Quem nos convocou foram os mortos! A voz do povo não é ilegal!”. As pessoas comentam assombradas que elas não saem na mídia. É a censura do século 21. Câmeras, luzes e microfones desaparecem. Só ficam os repórteres da TV alemã. A nossa narradora faz questão de anotar que “não há bandeiras, não há partidos, não há megafones, nem ordens”. A multidão caminha espontaneamente em direção à Atocha e a polícia se retira. Tomam as ruas e param o trânsito. “Nenhum vidro quebrado, nenhuma placa depredada”, frisa a mensagem. A passeata já dura várias horas. Corre um papel de mão em mão com a senha: “Às duas em ponto, cinco minutos de silêncio”. Todos se deitam no chão. Silêncio sepulcral. Não há câmeras. Milhares de velas acesas, e um grito orgulhoso ecoa: “Viva Madri!” E o coro começa: “Aznar, escuta! O povo está em luta!”. Passam pelo Congresso e
chegam outra vez à sede do PP. Apesar do cansaço, o povo segue gritando: “Hoje protestamos, amanhã te derrubamos!”. E a nossa narradora conclui: “E se a mídia não quis mostrar, que ao menos se difunda pela internet o que eles pretendem ocultar. Porque a partir dessa noite, algo mudou: nós não temos mais medo”. Além da emoção, visível em cada linha, é claro que o relato reitera a crença “pós-moderna” no “espontaneísmo”, assim como a aversão aos partidos e às formas mais tradicionais de organização da luta popular: as pessoas atendem a mensagens eletrônicas e bilhetes anônimos... e se fosse um partido de esquerda, elas se mobilizariam? Derrubam-se governos, mas... quem assumirá o poder? Luiz Ricardo Leitão é editor, escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de ¿A dónde va la telenovela brasileña? (Editora Ciencias Sociales, Cuba).
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De 1º a 7 de abril de 2004
NACIONAL REFORMA AGRÁRIA
MST inicia jornada e faz 22 ocupações Bruno Fiuza da Redação
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Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) iniciou, dia 27 de março, uma jornada de lutas que vai culminar em ações por todo país no dia 17 de abril, data do massacre de 19 trabalhadores rurais no município de Eldorado dos Carajás (Pará), em 1996. Desde então, essa data se tornou o Dia Internacional de Luta pela Terra. A jornada de lutas, que faz parte do calendário anual de mobilizações do movimento, surge este ano também como forma de pressionar o governo para que avance nas metas do II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), lançado no final do ano passado. A volta das ocupações massivas registrou, até o fechamento desta edição, dia 30 de março, 22 ocupações nos Estados de Espírito Santo, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. A lentidão do governo na execução das metas acordadas com o movimento “aumenta o ânimo da companheirada para fazer lutas”, diz João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do MST. Os militantes pernambucanos comprovam a afirmação: 4.290 famílias participaram das 15 ocupações realizadas no Estado, entre os dias 27 e 30 de março. Entre as propriedades ocupadas se destacam a Fazenda Boi-Caju, que se estende por uma área de 21 mil hectares vistoriada pelo Incra em 1998; e o Engenho General/Usina Tiurna, de propriedade do grupo Votorantim, do empresário Antônio Ermírio de Moraes. As duas ocupações estão entre as maiores realizadas pelo movimento. Foram mobilizadas 1000 famílias na primeira ocupação; e 800 na segunda. Antônio Ermírio não foi o único grande empresário a ter uma propriedade ocupada. Em São Paulo, cerca de 400 famílias ocuparam, dia 27 de março, a Fazenda São Gonçalo, de propriedade de Ricardo Mansur, ex-proprietário da rede Mappin, que deve cerca de R$ 200 milhões aos cofre públicos. No Rio de Janeiro, a Fazenda Soubara, ocupada dia 27 de março por 150 famílias, não era de propriedade de nenhum grande devedor, mas de um possível senhor de escravos. Segundo José Luis
Fábio Motta/AE
Sem-terra se mobilizam para apressar a implantação do Plano Nacional de Reforma Agrária e governo libera verba
Ocupação da Fazenda Santa Justina, em Mangaratiba (RJ); jornada de lutas faz parte do calendário anual de mobilizações
Patrola, da coordenação estadual do MST carioca, a situação dos trabalhadores da fazenda é alarmante: “Eu fiquei horrorizado com o que vi em Araruama. O nível das condições de trabalho é muito precário. Para ter uma idéia, um trabalhador que trabalha seis meses não ganha nem um real; recebe apenas valealimentação. Então o cara recebe o vale, faz uma comprinha mas não vê um real”.
REFORMA GANHA R$ 1,7 BILHÃO Em meio à onda de ocupações, o governo federal anunciou, dia 30 de março, a liberação de uma verba adicional de R$ 1,7 bilhão para o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Somado aos R$ 1,4 bilhão que compunham o orçamento anterior da pasta, o MDA passa a contar agora com R$ 3,1 bilhão destinados a cumprir a meta de assentar 115 mil famílias, até o final do ano. Com isso, será atingido o nível de recursos reivindicado pelo ministro Miguel Rossetto, que afirmou que o o governo “assegura o ritmo orçamentário e financeiro para a execução de todas as nossas metas”. Rodrigues garante que o MST segue confiando no governo, mas está preocupado pois o movimento contabilizou, nos últimos 15 meses, o assentamento de apenas 25 mil famílias. Rodrigues diz que, segun-
do dados do governo federal, em 2004 foram assentadas 4 mil famílias. A assessoria de comunicação do Ministério do Desenvolvimento Agrário, no entanto, informa que até hoje já assentaram 36 mil famílias, e esse ano o número já chega a 11 mil famílias. A liberação de novos recursos para a reforma agrária foi avaliada como positiva pelo MST. “Mostra
que, de fato, o presidente Lula quer cumprir os acordos que firmou com o movimento de assentar 115 mil famílias este ano. Porém, o recurso por si só não resolve o problema das metas”, avalia o coordenador do movimento. Ele aponta dois problemas ainda a resolver: contratação de servidores para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e realização de um amplo
debate com o judiciário para que o programa de reforma agrária possa avançar, uma vez que “a maioria das áreas em desapropriação estão paradas nos tribunais”. A contratação de servidores para o Incra ganhou destaque na pauta da reforma agrária na semana passada, quando a Confederação Nacional das Associações de Servidores do Incra (Cnasi) lançou um manifesto exigindo a reestruturação dos serviços e das carreiras dos servidores do instituto, além da recomposição da sua força de trabalho. José Parente, diretor da Cnasi, revela que o Incra conta com cerca de 5 mil servidores, dos quais 42% estão em condições de se aposentar ainda este ano. O atual número de servidores é praticamente a metade do contingente de mais de 9 mil servidores que o instituto tinha no começo dos anos oitenta, na época do lançamento do I Plano Nacional de Reforma Agrária, quando a demanda por serviços era três vezes menor. Parente explica que na era Fernando Collor o Incra foi o órgão que mais colocou cargos em disponibilidade para corte. Para o diretor da Cnasi, seriam necessárias 5 mil novas contratações. Em março, o Ministério do Desenvolvimento Agrário anunciou a contratação de 366 funcionários de nível superior, o que não acontecia desde 1996.
Acampados resistem no Espírito Santo Rafaele Gasparini de Vitória (ES) Mais de 400 pessoas estão vivendo momentos de tensão depois de montarem barracos de lona em frente à sede da Fazenda Ypiranga, em Ponto Belo, norte do Espírito Santo. A fazenda foi ocupada, dia 21 de março, por trabalhadores rurais sem-terra, que suspeitam de pistoleiros que estariam rondando a área. A Secretaria de Segurança do Estado foi acionada para garantir a segurança de sem-terra e fazendeiros. O secretário Rodney Miranda determinou que o policiamento só seria reforçado em caso de tensão no local. A área, de 1.132 hectares, já foi desapropriada pelo governo federal, depois de ter sido declarada
improdutiva pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Meses depois, o decreto foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal, mas o termo de posse dado ao Incra não foi cancelado. Desde então, a fazenda está sub judice, mantendo os semterra e os fazendeiros no mesmo espaço. Essa foi a primeira ocupação de terras realizada em 2004 no Espírito Santo, por 192 famílias. Entre as acampadas na área, 98 famílias já haviam sido declaradas assentadas pelo Incra desde 2002. As demais 94 famílias se deslocaram do acampamento Terra Livre, na localidade de São Mateus. Segundo Ademilson Pereira, membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), “o clima é de expectativa, pois o procurador do Incra, José Bruno Lemes, prometeu ir ao Rio de Janeiro ver o andamento e pedir agilidade para o processo”. Pereira disse que, se a decisão for favorável aos fazendeiros, cabe ao governo federal definir outra área para o assentamento das famílias, que já têm 25 alqueires plantados. Segundo informações veiculadas na imprensa local, a Procuradoria Nacional do Incra tem, em mãos, duas propostas para serem analisadas: a primeira é a compra da propriedade, por R$ 1,6 milhão. A segunda proposta, já descartada pelos proprietários, é de redução do prazo de pagamento de indenização, através de Título de Dívida Ativa, de 10 para 5 anos.
RAPOSA SERRA DO SOL
Claudia Jardim da Redação Interesses econômicos, políticos e preconceito cercam a homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Protelado há meses pelo governo federal, o decreto que daria fim aos conflitos entre índigenas e ruralistas é objeto de denúncias à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e de um manifesto nacional. Entidades de defesa de direitos humanos, sindicatos e diversos movimentos sociais assinaram um documento, lançado dia 30 de março, registrando a preocupação com a demora na homologação e a “apreensão com as articulações de grupos políticos que têm interesses econômicos naquela terra e buscam inviabilizar sua homologação em área contínua, com o objetivo claro de proteger interesses particulares de invasores”. O vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Saulo Feitosa, acredita que o governo
Egon Heck/ Cimi
Manifesto cobra homologação imediata
Assembléia do Conselho Indigenista de Roraima (CIR), no território indígena que virou objeto de denúncia na OEA
“perdeu o momento histórico e tem permitido que a terra se torne moeda de barganha política”. Feitosa alerta para as pressões do Estado sobre o Congresso para que a concessão da terra não seja contínua: “Se a terra
não for contínua, se formarão guetos dentro da reserva e o conflito será inevitável. A saída para a paz é a retirada dos invasores”. Em janeiro de 2003, os movimentos sociais de Roraima reuni-
ram povos indígenas, agricultores familiares e trabalhadores urbanos no Movimento Nós Existimos, para ampliar a discussão da demarcação de terras indígenas como uma luta de toda a sociedade. Porém, em
março, os interesses dos grupos que querem dividir a reserva foram atendidos, quando o juíz Federal Helder Girão Barreto suspendeu a portaria 820/98, do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que declara os limites da terra indígena Raposa Serra do Sol como terra contínua. Elaborado ainda na gestão de Fernando Henrique Cardoso, o decreto só precisa da assinatura do presidente. “Se Lula não homologar imediatamente a Raposa Serra do Sol estará demonstrando, diante da opinião pública nacional e internacional, o seu completo descaso com os povos indígenas”, afirma o manifesto, cujos signatários são, além do Cimi, o Movimento Nacional de Direitos Humanos, o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, o Instituto de Estudos Socioeconômicos ( Inesc), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), entre outras entidades.
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Espelho da mídia
NACIONAL GREVES
Cresce pressão no setor público Luís Brasilino da Redação
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Folha de São Paulo transportou torturados Segundo Mino Carta, “a Folha de São Paulo nunca foi censurada. Até emprestou a sua C-14 (carro tipo perua, usado na distribuição do jornal) para recolher torturados ou pessoas que iriam ser torturadas na Oban (Operação Bandeirante)”. Notícias mais censuradas de 2003 Foi publicado na Itália, e está fazendo o maior sucesso, o livro Censura – as notícias mais censuradas de 2003, de autoria de Peter Philips, que dirige o grupo estadunidense de pesquisa chamado Projeto Censurado. Ele reúne mais de 200 jornalistas e estudantes na Universidade de Sonoma que pesquisam, há 27 anos, os meios de comunicação. Segundo o livro, entre as notícias mais censuradas estão: “O plano de Rumsfeld para provocar ataques terroristas”, “A responsabilidade dos EUA no golpe da Venezuela”, ”O desmantelamento dos sindicatos”, “O projeto de domínio global dos neoconservadores”, “A violação dos acordos internacionais Nafta, Alca, PPP”. Do Programa do PT em 2002 “Repor na pauta do debate a criação do Fundo de Apoio à Radiodifusão Comunitária, composto por um percentual mínimo do faturamento publicitário das empresas detentoras de concessões públicas e o entrelaçamento desta modalidade cidadã e democrática de comunicação com os veículos de comunicação pública, constituindo, assim, uma rede nacional ainda mais extensiva a serviço da divulgação da produção cultural vinda das diferentes regiões do país”. Sobre mídia pública “Reequipar as emissoras públicas de comunicação com objetivo de, em diálogo com Estados, municípios e emissoras comunitárias, consolidar uma Rede Pública de Comunicação de alcance nacional. A Radiobrás tem condições reais de alcançar todo o território brasileiro como instrumento educativo e de divulgação das culturas brasileiras”. O exemplo, mau, vem de cima Apesar de estar em curso a lentíssima implantação do software livre (programação de computador gratuita) na administração pública brasileira, permitindo economia de recursos e gerando informática mais segura, autônoma e adaptada às necessidades do país, o PT nacional preferiu seguir outro caminho: firmou acordo no valor de R$ 20 milhões com empresa privada de informática, desprezando a luta do movimento do software livre, o Linux, os recursos que poderiam ser economizados, e deu preferência ao uso do Windows (da Microsoft) em sua própria estrutura, para satisfação do ultrabilionário Bill Gates.
Policiais federais reunidos em frente ao prédio do DPF discutem os rumos do movimento grevista da categoria
dos Policiais Federais (Fenapef) e integrante do comando nacional de greve, comentando as seguidas tentativas da União de declarar a mobilização ilegal. A Justiça, no entanto, vem dando sucessivos ganhos de causa aos trabalhadores. Ele e outros de seus colegas da Fenapef, como o atual presidente Francisco Garisto, especulam sobre um certo interesse do governo na greve. “As investigações do caso Waldomiro (Diniz, ex-assessor do Ministério da Casa Civil, envolvido num escândalo de propinas com casas lotéricas) estão paradas. Quer dizer, o governo fala na imprensa que o caso está andando, mas isso é mentira, eles só estão coletando alguns depoimento. Dá a entender
que eles querem a paralisação”, explica Venerando. Outra categoria em greve é a dos advogados gerais da União. Eles estão sem trabalhar desde o dia 15 de março por uma equiparação salarial com os funcionários do Ministério Público e por melhores condições de trabalho. No dia 31, os advogados da União fizeram uma concentração na frente do Ministério da Fazenda em busca do apoio do ministro Antonio Palocci.
CALENDÁRIO DE LUTAS Os técnicos da Receita Federal cogitam entrar em greve dia 1º de abril, caso não recebam uma proposta satisfatória. Os servidores reivindicam um reajuste salarial
entre 70% e 85% e a contratação de pessoal – nos últimos dez anos, aproximadamente 4 mil funcionários pediram exoneração por motivos salariais. Os servidores do Incra também preparam, para o dia 5, uma jornada nacional de luta pelo fortalecimento da instituição. Trata-se de uma mobilização reivindicatória – pela implantação de um plano de carreira para os funcionários, reestruturação do órgão e recomposição da força de trabalho – e política, uma vez que os sindicalistas não acreditam ser possível cumprir o II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) com as forças disponíveis hoje no Incra (veja a reportagem na página 3).
DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO
Empresas divergem sobre recursos do BNDES Ubirajara Farias de Brasília (DF) Quem estivesse assistindo pela TV Senado a audiência pública da Comissão de Educação da Casa, em que os dirigentes das empresas de mídia endividadas discutiam ante as câmeras, os senadores e o vicepresidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Darc Costa, como será o uso de dinheiro público para salvá-las das dificuldades, pensaria estar assistindo o que a sabedoria popular chama de “conversa de doidos”. Enquanto o representante do SBT, Luis Sandoval, contrário ao emprego de recursos públicos para o pagamento de dívidas, lembrava que a Rede Globo obteve um lucro de R$ 600 milhões em 2003, o presidente da Rede Bandeirantes, João Saad, favorável à ajuda às empresas, argumentava que o dinheiro do BNDES deve ser utilizado a critério da empresa ajudada, seja para pagar dívidas, para novos investimentos “ou para comprar canarinhos”. Durante essa audiência, o vicepresidente da Rede Record, Dennis Munhoz, afirmou que as dificuldades pelas quais passa a Rede Globo, por exemplo, devem-se à má administração, lembrando o prejuízo da família Marinho com a compra dos direitos de transmissão, com exclusividade, da última Copa do Mundo. O contra-ataque da Rede Globo veio por Evandro Guimarães, seu vice-presidente de Relações Institucionais: “A empresa não está contando com o dinheiro do BNDES para pagar dívidas, mas sim com o conjunto de nossos recursos, talento e transpiração”. O senador governista Hélio Costa (PMDB-MG), ex-repórter da
Agência Brasil
A mídia pediu o golpe de 64 O jornalista Mino Carta, que viu por dentro a atuação da mídia em favor do golpe militar de 64, do alto de sua experiência, denuncia: “A mídia vinha invocando o golpe há muito tempo. O Brasil tem a pior mídia do mundo. Ela é muito ruim, incompetente, priva pela ignorância, pela vulgaridade, pelo distanciamento e pela falta de responsabilidade”.
iversas categorias do funcionalismo público federal estão mobilizadas na luta por melhores condições de trabalho, reajuste salarial, garantia de direitos, fortalecimento de suas instituições, entre outras reivindicações – a maioria reflexo do desmantelamento do Estado promovido pelos últimos governos. Algumas categorias já estão paralisadas, enquanto outras aguardam um retorno do governo para votar pela greve. Caso não receba uma boa proposta de reajuste salarial, a Coordenação Nacional de Entidades de Servidores Federais (Cnesf) promete reeditar, na segunda quinzena deste mês, a maior resistência já enfrentada pela gestão Luiz Inácio Lula da Silva. No ano passado, os trabalhadores protestaram contra a aprovação da reforma da Previdência, contabilizando mais de 500 mil grevistas no mês de julho. Agora esperam reaver as perdas salariais sofridas a partir de 1995, que chegam a 127%. A greve que está durando mais tempo é a dos agentes, escrivães e papiloscopistas da Polícia Federal. Parados desde 9 de março, eles pedem coerência ao governo: a Lei número 9.266, de 1996, exige desses policiais curso superior, mas seus salários são de nível médio. Dia 23 de março os servidores receberam a proposta de reajuste de 10%, mas a oferta foi entendida como uma provocação. “Não existe nenhuma proposta. O governo não está negociando e só vemos tentativas de criminalizar a paralisação”, avalia Jorge Venerando, expresidente da Federação Nacional
Gervásio Baptista/ABr
Policiais, advogados, técnicos da Receita e funcionários do Incra intensificam lutas
Saturnino Braga, que investigou as operações irregulares da TV Globo
TV Globo, argumentou, em apoio à ajuda financeira, que o setor de mídia emprega meio milhão de funcionários, sem citar os 17 mil jornalistas desempregados em 2003. E o também governista senador Marcelo Crivela (PL-RJ), integrante da Igreja Universal do Reino de Deus, que comanda a Rede Record, protestou: “Os escassos recursos da sociedade brasileira não poderiam ser usados para arcar com prejuízos gerados pela prática deletéria do monopólio e da má gestão”. Crivela lembrou que a ajuda do BNDES nos moldes reivindicados pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), comandada pela Globo, seria uma injustiça porque no passado empresas de
comunicação faliram e não tiveram qualquer apoio do BNDES.
MODERNIZAÇÃO O vice-presidente do BNDES afirmou que as linhas de financiamento em estudo destinam-se especificamente à área de comunicação, com o que exclui apoio creditício às empresas de TV paga, embora elas pertençam ao mesmo conglomerado. Acrescentou que os recursos devem ser utilizados para a modernização tecnológica e que também alcançarão a indústria do papel, sem que qualquer senador presente lembrasse que o setor já tem o privilégio exclusivo da isenção de impostos para a importação do produto.
A intervenção do representante do BNDES não amenizou o clima de discórdia entre os grupos que sempre usaram recursos públicos para a consolidação de uma estrutura altamente concentrada. Até o supercensurado senador Saturnino Braga, responsável pela CPI da Time-Life que investigou as operações irregulares para a criação da TV Globo na década de 60, agora admite que a família Marinho venha a ser beneficiada. O senador Magno Malta (PL-ES), contrário à operação, criticou o uso de recursos públicos para a divulgação de “cenas de sexo quase explícito”, cobrando mudanças na qualidade da programação. A vinculação da operação do BNDES ao compromisso, pelas empresas, de metas de promoção da cultura nacional, foi o argumento do senador Cristóvam Buarque, do Conselho da Fundação Roberto Marinho, para apoiar a operação de socorro financeiro ao setor. Em resposta, o gerente do Departamento de Telecomunicações do BNDES, Alan Fischer, afirmou que existem foros mais apropriados que o banco para o debate do conteúdo da programação, admitindo, indiretamente, a realização da operação financeira sem a contrapartida de uma programação de melhor qualidade. A discussão não alcançou a defesa de um apoio financeiro ao combalido setor da das emissoras públicas – também estratégicas, com programação premiada internacionalmente e fora da lista das emissoras denunciadas pela prática de baixaria na programação. A TV Cultura, por exemplo, foi obrigada a apagar fitas de arquivo por não dispor de recursos para a compra de novas.
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De 1º a 7 de abril de 2004
NACIONAL EDUCAÇÃO
UNE se mobiliza contra política econômica Maíra Kubík Mano de São Paulo (SP)
Alícia Peres
Entidade lança Jornada Nacional de Lutas que pretende discutir a reforma universitária proposta pelo governo
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União Nacional dos Estudantes (UNE) não aprova a política econômica do governo e manifesta sua posição na Jornada Nacional de Lutas, iniciada dia 29 de março, e que continua durante os meses de abril e maio, com a “Caravana pela Reforma Universitária”. A mobilização pretende discutir em todo o país a reforma universitária proposta pelo Ministério da Educação (MEC). Até a próxima semana, a entidade deve realizar diversos atos públicos nas principais capitais. Para Rodrigo Pereira, diretor de Políticas Educacionais da UNE, a manifestação é necessária porque a reforma universitária proposta pelos estudantes é incompatível com os rumos da economia brasileira. “Nossa expectativa é de que a reforma seja ligada à ampliação de políticas sociais. Mas, com a dependência estabelecida entre o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o governo, isso não será possível”, afirma. Estudantes da PUC de São Paulo ocupam reitoria da universidade há cerca de 15 dias, em protesto contra punições
GREVES EM TODO O PAÍS Na última reunião de diretoria da UNE, dia 6 de março, em São Paulo, foi aprovado, em caráter de medida paliativa, o apoio ao programa Universidade Para Todos. O projeto do MEC, que pretende reservar 25% das vagas nas universidades particulares para estudantes de baixa renda, deve
ser aprovado por meio de medida provisória (MP). Parte dos estudantes discorda dessa resolução. Segundo Pereira, a decisão contraria a luta histórica pela reserva de verbas do governo exclusivamente para as universidades públicas. “Além disso, é questionável o projeto ser enviado em
forma de MP”, diz. Na semana passada, diversas universidades foram palco de mobilizações estudantis. No Rio de Janeiro, estudantes de Direito entraram na reitoria da Universidade Federal (UFRJ). Na Bahia, a Universidade Católica de Salvador (UCSal) teve sua sede ocupada.
As maiores manifestações no âmbito do ensino superior ocorrem em São Paulo. Os estudantes de seis unidades da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) estão em greve, reivindicando a ampliação dos programas de assistência estudantil, como moradia gratuita e restaurante universitário.
Nas Faculdades de Tecnologia (Fatecs), também estaduais, a situação é semelhante: docentes e funcionários reivindicam melhorias salariais. Além disso, a reitoria da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) continua sob ocupação. A mobilização já dura cerca de 15 dias. Os alunos protestam contra a suspensão de alguns estudantes que, com a punição, correm o risco de perder as bolsas de estudo concedidas pelo Financiamento Estudantil (Fies). No ensino de nível médio, os professores do Rio Grande do Sul entraram, dia 23, em greve por tempo indeterminado. Eles reivindicam aumento de 28,8%, mas a Secretaria Estadual de Educação informou que “não há possibilidade de repassar qualquer tipo de aumento”.
Fórum defende ensino da mercantilização Luís Brasilino da Redação O Fórum Mundial de Educação (FME), que acontece entre os dias 1º e 4, no Palácio das Convenções do Anhembi, em São Paulo (SP), quer puxar para o lado dos trabalhadores a balança entre mercantilização e universalização do ensino. Integrante do Conselho Internacional do evento, o professor Eliezer Pacheco, presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), explica que a Educação nunca pode ter uma concepção mercantil, mas precisa ser universal: “Mesmo as instituições privadas precisam ser reguladas por sistemas pois prestam um serviço público na medida em que o profissional graduado em uma dessas instituições vai atender todo o conjunto da população”. Segundo Pacheco, é por isso que educadores progressistas do mundo inteiro lutam para a Educação não ser regida pelas leis do mercado. No entanto, no período de globalização neoliberal que vivemos, esse tem sido um processo cada vez mais intenso. No ensino superior brasileiro, por exemplo, 70% das
matrículas estão em instituições privadas, embora quase a 100% das pesquisas científicas e da produção acadêmica sejam feitas nas universidades públicas, as quais têm um compromisso mais direto com o desenvolvimento da nação. “Não pretendemos eliminar as escolas privadas. É importante elas terem seu espaço. Buscamos, de fato, que a Educação seja uma opção para quem a deseja, realidade que hoje só é verdadeira para 30% dos brasileiros”, avalia Pacheco. Para ele, nos últimos anos, esse quadro privativista começou a se estender também para o ensino médio e para o ensino fundamental. A partir desse cenário, ressalta o professor, a universalização significa permitir que qualquer pessoa possa estudar em uma instituição pública. Para o advogado Hélio Bicudo, vice-prefeito da cidade de São Paulo, essa universalização representa um direito humano. Ele conta que, antigamente, a Educação era encarada como um direito de 2ª geração – o direito à vida era de1ª geração, o mais importante. “E, sem o direito à vida, todos os outros direitos desaparecem. Colocamos, então, o direito à vida com dignidade (onde se encon-
tram juntos os direitos à Educação, à saúde, ao trabalho, entre outros)”, diz Bicudo. O vice-prefeito esclarece que “a aceitação dessa indivisibilidade de direitos fortalece a noção da intersecção de direitos e, com ela, a urgência de universalizar a Educação como forma de garantir o cumprimento dos direitos humanos”.
BANDEIRAS MUNDIAIS Por todos esses propósitos, o FME constitui um espaço de lutas por garantias. Na avaliação de Pacheco, o primeiro Fórum Mundial de Educação, realizado em Porto Alegre (RS), em 2001, serviu para fazer um levantamento das idéias de educadores de todo o mundo. No segundo (em 2003, também em Porto Alegre), começou-se a elaborar uma plataforma global em defesa da educação pública, democrática e de qualidade. O professor acredita que o FME conseguiu realmente se internacionalizar e, agora, parte efetivamente para a construção dessa plataforma. Cada encontro avança no sentido de unificar as bandeiras em âmbito mundial porque, “se por um lado a globalização trouxe a internacionalização do capital, a única forma
Banco Central discrimina agricultores analfabetos da Redação Os pequenos agricultores e agricultoras brasileiros analfabetos estão sendo discriminados pelo Banco Central (BC). De acordo com as regras do BC, eles são considerandos incapazes e passam pela humilhação de precisar recorrer a um procurador para ter acesso ao crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Além da grande carga imposta pelo modelo agrícola brasileiro, ainda são obrigados a arcar com os custos da documenta-
ção nos cartórios para cumprir essa exigência. O processo discriminatório, que acontece em vários Estados, já causou prejuízos no município de Salgueiro (PE), aos agricultores Manoel Pereira, Luzia Alice da Conceição e Romana Maria da Conceição e, Carnaubeira da Penha (PE), a Maria Ana de Jesus e Maria Florência de Souza. Outros casos foram registrados na Bahia e no Espírito Santo. Ao chegar ao banco, os camponeses, na intenção de buscar recursos para poder melhorar suas condições
para produzir alimentos, são obrigados a emitir uma procuração para um terceiro, que saiba escrever, e conseqüentemente seja considerado capaz de responder pelos seus atos, e assim de receber o crédito. O Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), em comunicado à sociedade, denuncia que, diante dessa situação, a Justiça brasileira está passiva, “impedindo a construção da cidadania, da liberdade, da democracia e principalmente da igualdade, baseada em princípios não discriminatórios contidos na Constituição Federal”.
de resistir a isso é por meio da internacionalização da luta”, coloca Pacheco – que participa, dia 2, às 13h30, do painel “Formação do educador na cidade educadora: cultura do medo x cultura do desejo”. Segundo ele, nesse embate, as barreiras para a universalização do ensino concentram-se na hegemonia do capital financeiro que constrange inclusive os governos progressistas. “Então, mesmo administrações de esquerda são, de certa forma, constrangidas dentro de uma lógica do capital internacional”, avalia Pacheco. “Não temos a ilusão de mudar a Educação sem transformar a sociedade, mas o contrário também é verdadeiro pois a luta pela mudança na Educação é parte da luta para
alterar toda a sociedade. Ou seja, a Educação não vai mudar o mundo sozinha, mas sem modificá-la não é possível transformar a sociedade”, explica Pacheco. Bicudo concorda. Para ele, a Educação por si só pode não representar uma ferramenta definitiva, mas é importante no desenvolvimento de todos. Ele participa, no mesmo dia e horário que Pacheco, do painel “Educar, condicionar ou punir?” e pretende debater o papel da Educação na garantia dos direitos humanos. “A educação é hoje parte de um projeto político de transformação da sociedade, coerente com um projeto global. No nosso caso, o que melhor sintetiza isso é a inclusão social dos brasileiros por meio do ensino”, conclui Pacheco.
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NACIONAL GOLPE DE 64
Ditadura mata seus opositores
Febem: uma caixa de surpresas Saiu na mídia: “Presidente da Febem diz-se surpreso com fuga em massa”. O caso: a fuga de 109 internos da unidade de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, dia 29 de março. A pergunta que não quer calar: por que alguém iria fugir da Febem? Um lugar onde não há superlotação de cela? Onde nunca houve denúncia de tortura? Em que há investimentos na educação e formação dos jovens? Talvez as respostas estejam com as mães dos detentos que, uma vez por semana, religiosamente, protestam contra as agressões e humilhações que sofrem seus filhos. Desse jeito, o presidente da instituição, Marcos Antonio Monteiro, vai ter muito com o que se surpreender... Cerveja, com tempero de mau gosto São comuns os cartazes de marcas de cerveja em que aparecem modelos em posições insinuantes. Pois a Kaiser foi mais além. Em sua nova campanha publicitária, imprimiu um novo slogan em descansos de copo distribuídos em bares de todo o país: “Mulher e cerveja, especialidade da casa”. O Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), juntamente com outras entidades feministas, entrou com uma ação pública contra a propaganda e a marca. Mas os protestos não foram só contra a Kaiser. Desde 8 de março, Dia Internacional da Mulher, ocorreram mobilizações em frente a bares, incentivando os donos a trocar as propagandas machistas por cartazes em que mulheres aparecem reivindicando seus direitos.
Folha Imagem
Tatiana Merlino da Redação
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ara derrubar a ditadura implantada pelo golpe de 1964, foi necessário, dentre outras coisas, o enfrentamento armado. Essa foi a tática escolhida por várias das organizações revolucionárias que atuavam no Brasil no final da década de 60. E a luta naquele momento não era só contra o regime ditatorial. Era também para construir um governo “popular socialista”, segundo definição da médica sanitarista e pediatra Elzira Vilela. Contudo, em meados da década de 70, os sonhos foram sendo esmagados por uma feroz repressão, que se voltou não apenas contra os que escolhiam a “via armada”, mas contra todas as tentativas de organização popular. A repressão aos opositores do regime militar aumentou de forma brutal após a decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), no final de 1968. “As ações armadas começaram em 1968. Com o AI-5, houve um processo de radicalização do movimento estudantil, os canais institucionais de luta foram fechados e a luta armada tornou-se alternativa para praticamente todas as organizações de esquerda, exceto para o Partido Comunista Brasileiro”, diz o cineasta Renato Tapajós, na época militante da Ala Vermelha. Tapajós lembra que, no período de 1964 a 1968, havia muitos debates nas organizações: “Discutíamos os grandes teóricos e os projetos políticos a serem seguidos”. Para o dramaturgo e escritor Izaías Almada, essa geração foi “obrigada” a partir para a luta armada. “Éramos fruto da esperança de uma alternativa socialista, e o pouco do país que tinha coragem foi à luta”, lembra. Com o acirramento da luta, a vida de Tapajós Pau-de-arara – Práe de Almada, tica na qual uma assim como a barra de ferro é atravessada entre os de muitos milipunhos amarrados e tantes, mudou a dobra do joelho da radicalmente. vítima. O corpo do torturado fica pendu- Ambos partirado a cerca de 20 ram para a clanou 30 centímetros destinidade. O do solo. cineasta abandonou sua atividade profissional, e no final de agosto de 1969, foi preso e levado para a Operação Bandeirantes (a Oban, centro de ação do Exército, em São Paulo), onde
Estudantes protestam no Instituto Presbiteriano Mackenzie, em São Paulo, durante o regime militar
Presos políticos no Dops aguardam transferência para a Casa de Detenção
foi torturado por dez dias, em sessões “que se estendiam por cinco, seis horas seguidas”. Depois, Tapajós foi levado para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), onde foi submetido a interrogatórios por cerca de dois meses. Almada, que era militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), também preso em 1969, foi submetido a seguidas sessões de tortura durante três dias seguidos, na mesma Oban. Os métodos utilizados foram choques, socos, pontapés, “telefone”, “pau-de-arara” e a “cadeira do dragão”.
O escritor conta que as torturas lhe deixaram alterações emocionais. “Em determinadas situações, fico mais nervoso do que deveria”, diz. Tapajós teve os tendões rompidos e ficou sem conseguir andar por quase um ano, em decorrência das longas sessões no pau-de-arara. “Até hoje tenho dores nas pernas. Por causa da tortura, eu teria que ter feito várias cirurgias”. As “dores da alma”, diz, “são as mais difíceis de curar”. “Felizmente eu escrevo, e essa é uma forma de catarse”, afirma Tapajós, que está trabalhando em um longametragem sobre torturas na Oban. Acervo Iconographia/Cia. da Memória
O que seria de nós sem Palocci? O ministro da Fazenda, Antonio Palocci, não economizou elogios à pessoa que, em sua opinião, salvou o Brasil de uma catástrofe: ele próprio. Respondendo a críticas, o ministro rebateu: “O que seria do Brasil se não tivéssemos combatido a inflação e colocado a dívida numa dinâmica de redução?”. Sem hesitar, sacou a resposta: “Estaríamos vivendo uma crise econômica sem precedentes”. Pior do que a pérola de Palocci, que parece esquecer que o Brasil atingiu um índice de desemprego recorde, é a afirmação do senador César Borges (PFL-BA), para quem a política econômica do governo agrada aos “banqueiros, economistas ultra-ortodoxos e ao mercado financeiro, mas não à população”. Palocci vai ter coragem de desmentir?
Após a decretação do AI-5, em 1968, governo militar inicia uma implacável repressão
Acervo Última Hora/Folha Imagem
Nos tempos da ditadura Luiz Antonio Nabhan Garcia, presidente da União Democrática Ruralista, quis homenagear, a seu modo, os 40 anos do golpe militar. Dia 29 de março, ele protocolou na sede da Procuradoria da República, em São Paulo, uma representação criminal contra João Pedro Stedile, da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A acusação: Stedile “fala demais”. Ou, nas palavras de Garcia: “Ninguém pode dizer o que quer. Por isso, tem a lei”. Ele quer que Stedile seja enquadrado nos artigos 16 e 23 da Lei de Segurança Nacional, sancionada em 1983, durante a ditadura militar. Para surpresa maior, o texto do artigo 23 diz que é crime “incitar a subversão da ordem política-social” e, segundo Garcia, foi isso que Stedile fez. Daqui a pouco, quem sabe, Garcia não reaparece na mídia, com outra idéia de gênio: por que não refundar o Dops (Departamento de Ordem Política e Social, órgão de repressão da ditadura militar) para impedir as ocupações de terra?
Participante do movimento camponês no período que precedeu a posse de João Goulart, Gregório Bezerra foi processado e condenado por crime de “lesa-pátria” e por subversão. Durante os anos em que esteve preso, foi levado às ruas de Recife amarrado com cordas pelo pescoço, numa demonstração do regime de que a tortura seria o fim dos que pretendessem lutar como ele.
Passados 40 anos do golpe de 64, os torturadores e assassinos de militantes políticos não foram julgados, nem as circunstâncias das mortes, esclarecidas “A tortura é um crime inafiançável e imprescritível, e o torturador é um agente do Estado”, revolta-se Almada. A Lei de Anistia, sancionada em agosto de 1979, é considerada retrógrada, pois deixa margens para a anistia de torturadores. “Quem diz que todos foram anistiados é quem tem medo que a verdade venha à tona”, diz Almada. Para ele, não é possível perdoar quem mata e tortura. “Diferente do que acontece aqui, na Argentina o presidente inaugurou um museu num antigo presídio, onde havia um centro de tortura, e pediu desculpas à nação”, afirma o escritor (ver box). Tapajós concorda, ao recordar que em todos os países civilizados houve, em maior ou menor escala, julgamentos de pessoas que praticaram crimes de tortura. “Em uma democracia não se caminha pra frente sem ajustar as contas com o passado”, pondera. Para ele, acordos para “evitar confronto com membros da elite” são típicos do país. “A ditadura caiu no Brasil porque os ditadores aceitaram entregar o poder em troca de sua impunidade”, protesta.
Pânico para sempre A médica sanitarista e pediatra Elzira Vilela tem 62 anos e começou a militar em grupos de esquerda no início da década de 60, quando estudava medicina em Sorocaba (SP). Depois de ingressar na Ação Popular (a AP, que em 1967 mudou sua sigla para Ação Popular Marxista-Leninista), e atuar politicamente em Estados como São Paulo, Maranhão e Alagoas, ela escapou várias vezes das garras da repressão. “Achava que jamais seria pega”. Mas “seu” dia chegou, em 2 de setembro de 1973. Junto com o marido e a filha, de um ano, Elzira tentava embarcar num trem na estação da Luz, em São Paulo, para o Rio de Janeiro. De lá, iriam para a Argentina. “Era meia-noite. Eu estranhei, pois a estação estava cheia. Depois descobri que criaram um aparato para nos pegar”. Quando entrou no vagão, ouviu gritos: “Prendam esse casal de traficantes”. “Só percebi que estávamos sendo presos quando entramos no carro, pegaram minha filha e me colocaram um capuz preto. Aí pensei: Oban”, lembra. Os primeiros cinco dias foram os mais terríveis dos 70 dias em que este-
ve presa, sendo torturada inclusive junto de seu marido. “É que eu não sabia o que estavam fazendo com minha filha”. Antes de completar uma semana no presídio, foi avisada que a criança tinha sido levada para a casa de uma de suas irmãs. Elzira define esse dia como o mais feliz de sua vida.
IMPUNIDADE Durante o período na Oban, a médica emagreceu dez quilos. Saiu de lá sem conseguir ficar em pé. “Eu sofria tonturas constantes e não conseguia andar”, diz. Hoje, cerca de 30 anos depois, dos quais muitos passados em sessões de análise, ela ainda tem dificuldades em falar da tortura e da humilhação que sofreu. Por muito tempo, Elzira acreditava que sua filha iria morrer e sentia pânico quando os filhos demoravam a chegar em casa. “A sensação de perda iminente continuou em minha cabeça”. Integrante do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo (GTNM-SP), ela acredita que a impunidade dos torturadores é responsável pela perpetuação das violações aos direitos humanos hoje em dia. (TM)
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De 1º a 7 de abril de 2004
NACIONAL CONJUNTURA
Desemprego bate recorde histórico Jorge Pereira Filho da Redação
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nquanto a névoa da manhã ainda cobre os letreiros das lojas, casais de namorados, amigos, ex-colegas de trabalho, vizinhos de bairro ou simples desconhecidos, jovens e idosos, caminham pelas ruas do Centro de São Paulo. São pouco mais de 7 horas. Alguns estão com roupas novas, sapatos brilhando, perfumes. Outros se arrumam do jeito que podem. À primeira vista, o movimento pelas calçadas pode ser confundido com um passeio. Mas, nos semblantes preocupados e nos olhos cabisbaixos, o desalento predomina. Ali, ninguém está porque quer. Todos compartilham o destino de trabalhadores à procura de um emprego. Na multidão de anônimos, está gente como a encabulada operadora de máquina Divina de Jesus, demitida com mais 200 companheiros há seis meses de uma fábrica de linha de costura. A indústria cortou o quadro de funcionários porque a produção havia caído. Divina não esconde que o desemprego mexou com sua auto-estima. “Tem dias que
Luciney Martins/Rede Rua
Dieese aponta recorde de desocupação em São Paulo: 19,8% dos trabalhadores, que perdem a esperança por vaga
O trabalhador leva, em média, 56 semanas para conseguir um emprego. “Essa situação está insuportável”
choro, choro mesmo. A situação é desesperadora porque dependo dos outros para pagar minhas contas”, desabafa a mãe de uma filha. O marido, pelo menos, está empregado. Mas o desânimo não impede que Divina saia, três dias por semana, às 5 horas, em busca de um emprego. “O que eu encontrar está bom. O problema é que a exigência e a concorrência
BRASILEIRO ESTÁ MAIS POBRE DO QUE HÁ DEZ ANOS
Anos
R$*
1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003
890 946 1047 1124 1146 1141 1079 1072 1027 989 870
*renda média anual do trabalhador Fonte: Dieese
estão muito altas”, conta. Divina é um dos cerca de 1,926 milhão de trabalhadores paulistanos desempregados. Em fevereiro, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) registrou a maior taxa de desemprego (19,8%), desde que o índice começou a ser medido, em 1985. Para efeito de comparação,
há um ano essa taxa era de 19,1% - 1,8 milhão de pessoas.
DESEMPREGO SÓ CRESCE
VIA-CRUCIS DO DESEMPREGO
Região Metropolitana de São Paulo (em %)
Tempo desperdiçado para procura de trabalho (em semanas)
SEM-EMPREGO E SEM-RENDA Como se não bastasse o fantasma do desemprego, os empregados estão mais pobres. Segundo estudo da Global Invest, no final de 2003 o trabalhador ganhava, em média, R$ 870 – renda menor que a de
Anos
Fev
Anos
Fev
1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004
15.0 14,2 12.9 13.8 14.2 17.2 18.7 17.7 17.0 19.1 19.1 19.8
1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004
25 23 22 22 25 32 37 48 46 54 54 56
Fonte: Dieese
Fonte: Dieese www.seade.gov.br
1993, quando o salário médio era de R$ 890. O desempregado também está demorando mais para encontrar emprego. Segundo o Dieese, em 2003, o trabalhador levava, em média, 54 semanas (cerca de um ano e um mês) para conseguir uma vaga. Agora, perde 56 semanas (um ano e dois meses). Em 1985, dentro de 25 semanas (pouco mais de seis meses) o trabalhador encontrava uma vaga. Divina está há seis meses à procura de um emprego e promete continuar. “Não tenho outra opção”, diz. O casal de namorados Paulo Franco e Daniela Carmem está em busca de uma vaga há mais tempo: um ano e meio. “A situação só não está pior porque meu irmão conseguiu um emprego de auxiliar de escritório”, conta Franco, que tem 22 anos e vive com os pais, aposentados, que pagam R$ 700 de aluguel. Atualmente, Franco está fazendo o curso supletivo e conhece todos os postos de atendimento ao trabalhador do Centro da cidade. “Já fui na central da Força Sindical, da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do governo do Estado. É sempre a mesma coisa: preencho um monte de fichas, mas depois não voltam a me ligar”, lamenta.
FALTA DE ESPERANÇA O eletricista Reinaldo Rodriguez, pai de três filhos, também não acredita que vá encontrar uma vaga. “Olha, de 100 pessoas nessa fila, apenas duas conseguem. Estou há oito meses nessa rotina”, conta. Rodriguez está concluindo um curso de eletricista no Senai, para aperfeiçoar sua formação profissional. “Mesmo assim, eles não valorizam. O engraçado é que eles querem pelo menos cinco anos de carteira assinada. Como é que alguém vai ter isso com o país nessa situação?”, pergunta o eletricista, que paga R$ 450 de aluguel. Rodriguez, eleitor de Lula, está descrente com o novo presidente. “Eu votei nele, mas até agora o governo não fez nada”, avalia. A solução? “Tá na hora de o povo gritar porque essa situação está insuportável”.
Nelson Breve de Brasília (DF) A confiança no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva está sendo corroída por causa do rumo da economia, e não da política. É isso o que mostra a pesquisa trimestral realizada pelo Ibope a pedido da Confederação Nacional da Indústria (CNI), divulgada dia 26. Nos últimos três meses, a aprovação ao governo caiu de 66% para 54%, a desaprovação subiu de 25% para 39% e a confiança no presidente escorregou de 69% para 60%. Ainda são índices de aprovação elevados, conforme observação da MCI – Marketing, Estratégia e Comunicação Institucional, empresa de consultoria do sociólogo pernambucano Antonio Lavareda, contratada pela CNI para avaliar os números. Mas a maioria da população já considera que o Brasil está no caminho errado (46% contra 40% de certo), ao contrário do que supunha até dezembro (48% contra 36%). Ao longo dos últimos 12 meses, o gráfico dos índices de aprovação e confiança forma o movimento de uma pinça se fechando. Em março de 2003, o governo tinha 75% de aprovação e 13% de desaprovação. De lá para cá, o índice dos que aprovam o governo foi reduzido em quase um terço e o dos que desaprovam triplicou. A confiança no presi-
Ricardo Stuckert/PR/ABr
Economia derruba aprovação do governo Lula
Lula cumprimenta funcionários de montadora, enquanto seu prestígio vem caindo por conta de desemprego e renda
dente Lula caiu de 80% para 60%, no mesmo período, enquanto o grupo dos que não confiam saltou de 16% para 36%. A frustração maior está ocorrendo nas famílias que ganham mais de 10 salários mínimos, com nível médio de instrução, nas grandes cidades e periferias, especialmente da Região Sudeste. Embora a crise provocada pelas denúncias envolvendo o ex-subchefe da Casa Civil Waldomiro Diniz
não deva ser menosprezada (as notícias envolvendo o governo que foram mais lembradas pelos entrevistados, especialmente os de nível universitário, se referem a esse assunto), o aumento da preocupação com desemprego, inflação e renda indica que o fator preponderante da perda de prestígio do governo perante a população é a estagnação econômica. “As pessoas vivem, no dia-a-dia, a realidade econômica.
Os fenômenos da economia são percebidos independentemente do noticiário”, explica Marco Antonio Guarita, diretor de Desenvolvimento da CNI.
AUMENTO DO PESSIMISMO Essa percepção, reforçada pelos indicadores negativos de crescimento do país, aumento do desemprego e redução da renda do trabalhador, fez com que o cenário
de “pessimismo moderado” verificado em dezembro evoluísse para “pessimismo forte” na pesquisa com 2 mil pessoas acima de 16 anos, realizada em 151 municípios do país. A previsão de que a inflação irá aumentar cresceu de 40% (em dezembro) para 48%. A de que haverá mais desemprego nos próximos seis meses subiu de 47% para 54%. O governo só consegue manter melhores índices de aprovação na política de combate à fome e nos programas sociais. Mesmo assim, as quedas são acentuadas. Em dezembro, 73% aprovavam a política de combate à fome e 22% a reprovavam. Os índices passaram para 59% e 35%, respectivamente, na última pesquisa. A avaliação da política de combate à inflação teve uma inversão absoluta. No levantamento anterior, 53% aprovavam e 38% desaprovavam. Hoje, a desaprovação é que está com 53% e a aprovação, com 38%. O aumento da desaprovação também foi significativo em relação às políticas de juros (de 43% para 50%) e de combate ao desemprego (54% para 63%). A conseqüência dessa percepção é que continua forte a sensação da população de que a principal tarefa do governo Lula é promover o crescimento e o emprego (58% comparado a 55%, em dezembro, e 43%, em março de 2003). (Agência Carta Maior, www. agenciacartamaior.uol.com.br)
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De 1º a 7 de abril de 2004
NACIONAL SOBERANIA ALIMENTAR
Secretaria apreende transgênico sem selo ALIMENTOS APREENDIDOS COM COMPONENTE TRANSGÊNICO almôndega de carne bovina moída temperada congelada, Kilo Certo extrato de soja, Natu’s fórmula infantil à base de proteína de soja com ferro para lactentes, Support-Aptamil hambúrguer de carne bovina moída congelada, Batavo hambúrguer de carne bovina moída congelada, Extra mistura para preparo de bolo sabor baunilha, Sol proteína texturizada de soja, Jasmine proteína texturizada de soja, Grings proteína texturizada de soja fina, Natu’s pó para preparo de alimentos, Sanavita salsicha, Da Granja
O
Centro de Vigilância Sanitária (CVS), da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, retirou das prateleiras dos supermercados, dia 20, onze produtos que contêm soja transgênica e estavam sem essa informação nos rótulos. A apreensão dos alimentos, baseada na lei estadual e no Código de Defesa do Consumidor, que exige a identificação do alimento que contém organismo geneticamente modificado (OGM), provocou polêmica. A Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia) considera a interdição irregular porque “contraria a lei federal” que exige a informação nas embalagens apenas quando o conteúdo de OGM for superior a 1%. A associação se refere ao decreto 4.680, que deveria vigorar a partir do dia 26. (veja a reportagem ao lado) “Não há contrariedade. A lei de São Paulo apenas restringe as normas do decreto, além de estar totalmente de acordo com o Código de Defesa do Consumidor, que garante o direito à informação”, explica o procurador da República Aurélio Rios. “O consumidor tem o direito de escolher se quer ou não transgênicos e a maioria já demonstrou que não quer”, reitera. De acordo com a pesquisa Ibope/Greenpeace, divulgada em dezembro de 2003, 73% dos brasileiros não querem transgênicos no prato. Essa não é a primeira vez que a Abia se debate para não cumprir a lei. Há três anos a associação entrou com um pedido de Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) para derrubar a obrigatoriedade do rótulo em São Paulo, mas teve o pedido
Fonte: Centro de Vigilância Sanitária
Campanha pela rotulagem em supermercado de São Paulo. O Código de Defesa do Consumidor garante o direito à informação
negado pela Justiça. Para Wiliam César Latorre, diretor de alimentos do CVS, esse é mais um motivo para as indústrias apresentarem seus produtos rotulados. “Houve tempo suficiente para cumprir a lei. As empresas que quiserem vender em São Paulo, um dos maiores mercados do país, mesmo com menos de um por cento de transgênico, vão ter que rotular”, alerta. Para Latorre, a resistência das indústrias sinaliza “o medo de perder mercado”.
Instituto Adolfo Lutz não são capazes de identificar conteúdos transgênicos em produtos como o óleo de soja, a margarina e todos os que contêm lecitina de soja na composição. Latorre explica que o DNA da matéria-prima de muitos produtos – como a soja – é destruído durante a fabricação, o que inviabiliza a detecção do gene transgênico. “Isso não quer dizer que esses produtos não contêm componente transgênico. Para isso, temos que fiscalizar a matéria-prima das indústrias”, afirma Latorre. As indústrias flagradas desrespeitando a legislação terão seus produtos retirados das prateleiras.
O governador Requião acionou a Justiça contra a postura do Ministério da Agricultura
Para favorecer as indústrias e tentar estender ainda mais o prazo de aplicação do decreto de rotulagem – já prorrogado pelo Ministério da Justiça por 30 dias –, o ministro Roberto Rodrigues (Agricultura) fez um mea culpa: anunciou que seu ministério não tem condições de fiscalizar os produtores de soja transgênica quanto ao cumprimento da norma de rotulagem dos grãos no campo. “Nós temos dificuldades para fazer a nossa parte”, reconheceu. Considerando-se a responsabilidade da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em fiscalizar a rotulagem dos alimentos, e o auxílio do Ministério da Justiça, que autorizou a contratação de laboratórios para verificar a presença de transgênicos nos alimentos para consumo humano e animal, o anúncio de Rodrigues, na opinião do procurador da República Aurélio Rios, além de não ser novidade, não faz sentido. “Os fiscais agropecuários não têm nada a ver com isso; sua competência é no campo”, afirma Rios, atribuindo ao Ministério da Agricultura a responsabilidade pela ausência de fiscalização no plantio da soja transgênica do Rio Grande do Sul. “Se fôssemos depender dessa fiscalização do setor agropecuário estávamos perdidos. Prova disso é a soja contrabandeada que não foi fiscalizada. A não
Ministério da Agricultura exige para declarar a área livre de transgenia. Mas a resistência do ministro não é à toa. Em reportagem publicada dia 12 de dezembro de 2003 no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, Rodrigues admite ter se esforçado junto ao Supremo Tribunal Federal para derrubar a lei paranaense que proibia o cultivo de transgênicos e lamentou não ter sido agradecido pelas empresas esmagadoras e processadoras de soja. “Há uma contradição clara nisso. Rodrigues diz que não pode fiscalizar e não fornece informações ao Paraná. O ministro fica chateado quando falam da proximidade dele com empresas de biotecnologia, mas suas ações são contraditórias. Já está na hora de agir como representante público”, critica o procurador da República Aurélio Rios, contrário à decisão do STF que derrubou a lei paranaense. (CJ)
cipais mercados de exportação para a “soja limpa”. De acordo com o superintendente da Administração dos Portos de Paranaguá e Antonina (Appa), Eduardo Requião, em entrevista ao jornal Gazeta Mercantil, o valor alcançado faz parte do reconhecimento à qualidade da soja pura produzida no Paraná e à determinação do governo do Estado em buscar a qualidade do produto. “Estamos sendo pressionados de todas as formas para liberarmos o embarque de soja transgênica, mas resistimos porque, além de não termos a comprovação de que o produto modificado geneticamente não causa danos ao organismo humano, o mercado mais exigente quer a soja pura”, afirma. De acordo com Miguel Altieri, doutor em Agroecologia e professor
DE OLHO NOS INGREDIENTES Os testes realizados pelo Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde, da Fiocruz, e pelo
Agência Brasil
Governador do Paraná aponta omissão de ministro A briga entre o governo do Paraná e o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, chega à Justiça. O governador do Paraná, Roberto Requião, entrou com um mandado de segurança contra a omissão do ministro em relação às informações solicitadas sobre os Termos de Compromisso, Responsabilidade e Ajustamento de Conduta (TAC) firmados por produtores rurais que pretendiam plantar e comercializar soja não certificada (que pode ser transgênica) da safra 2003/2004. “O Exmo. Sr. ministro da Agricultura é responsável pela criação de uma situação no mínimo paradoxal: nega-se a fornecer a um Estado da Federação informações públicas por expressa disposição constitucional e, ao mesmo tempo, condiciona o deferimento do pedido de declaração de área livre de transgênicos ao fornecimento justamente dos dados e informações que ele arbitrária, ilegal e abusivamente omite”, diz o documento encaminhado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, informando-o sobre o envio de representação à Procuradoria Geral da República para a abertura de processo de investigação por improbidade administrativa contra Rodrigues. O Paraná tenta, desde outubro de 2003, ser declarado área livre de transgênicos, como autoriza a Medida Provisória 131/03, convertida na Lei 10.814/03. No entanto, desde novembro de 2003 o ministério vem negando ao Estado o acesso a informações públicas relacionadas aos TACs – o que impossibilita responder às informações que o
Rodrigues reconhece falta de fiscalização Agência Brasil
Claudia Jardim da Redação
Greenpeace
Em São Paulo, a Vigilância Sanitária tira do mercado onze produtos que não tinham identificação no rótulo
Ministro da Agricultura faz mea culpa
ser que haja uma orientação política para ser favorável a isso”, diz o procurador. Apesar de a produção não ter sido rotulada desde a lavoura para facilitar o trabalho de identificação das indústrias, como prevê o decreto, Rios diz que as empresas são responsáveis pela composição de seus produtos pois têm liberdade para escolher onde comprar a soja. “Grande parte da soja brasileira não é transgênica e as indústrias devem fazer a escolha. Não faz sentido prorrogar mais uma vez esse decreto. Estão sonegando um direito básico do consumidor que é a informação”, alerta. (CJ)
Soja convencional tem melhor cotação da Redação Mesmo com a estiagem da safra deste ano, os agricultores que apostaram na produção de soja convencional se deram bem. Os produtores do Paraná foram os que alcançaram melhor preço em relação a outros Estados. A maior cotação (R$ 53) foi registrada no município paranaense de Guarapuava, seguida pela produção de Apucarana e Porecatu (R$ 52,50). O menor índice no Paraná, Ponta Grossa (R$ 51) se manteve superior ao de outros Estados do País. A menor cotação foi a do município de São Borja , no Rio Grande do Sul, onde a saca foi cotada a R$ 46. O governo paranaense, que aposta na produção de soja convencional, encontrou na Europa e Ásia os prin-
titular na Universidade de Berkeley, Califórnia – EUA, recente pesquisa divulgada em seu país revela que a soja transgênica produz 6% menos que a soja convencional, além de ser prejudicial ao solo. Altieri esteve no Paraná no início de março em visita ao Centro de Agroecologia do Estado. “Os transgênicos não podem conviver com a agricultura convencional pois prejudicam o solo. Essa ganância dos produtores que insistem no plantio de OGMs (organismos geneticamente modificados) é equivocada”, analisou. Apesar de não ter conseguido alcançar a previsão de produção de 30 milhões de grãos para esta safra, a colheita de 28 milhões de grãos mantém o Estado no ranking de maior produtor do país.
Ano 2 • número 57 • De 1º a 7 de abril de 2004 – 9
SEGUNDO CADERNO HAITI
Manifesto repudia envio de tropas brasileiras Hector Mata/AFP
Dezenas de personalidades assinaram o documento que será entregue ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva
João Alexandre Peschanski da Redação
“N
ão em nosso nome!”. Em resumo, é essa a mensagem do documento, assinado por políticos, sindicalistas e intelectuais, que repudia a iniciativa do governo brasileiro de enviar tropas para participar de uma ação militar internacional no Haiti. Endereçado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o manifesto deve ser entregue em maio. Segundo a deputada federal Maria José Maninha (PT-DF), signatária do manifesto, em vez de disponibilizar soldados para a ação militar, o governo brasileiro deveria solicitar à Organização das Nações Unidas (ONU) que garantisse o processo democrático no Haiti. Maninha afirmou que a Confederação Parlamentar das Américas, entidade que preside e que reúne representantes de diversos países do continente, recebeu, dia 23 de março, um pedido de socorro de senadores haitianos, pois o país estaria sofrendo um golpe de Estado. Desde 5 de fevereiro, o Haiti vive uma guerra civil, marcada por confrontos entre grupos militares, de um lado, e partidários do deposto presidente Jean-Bertrand Aristide, de outro. Destituído em 29 de fevereiro, Aristide acusa o governo dos Estados Unidos de financiar seus opositores, de tê-lo seqüestra-
INTERESSES IMPERIALISTAS Manifesto assinado por milhares de brasileiros aponta que envio de tropas estrangeiras não é a solução democrática para o Haiti
Os haitianos devem decidir seu próprio futuro O manifesto contra o envio de tropas brasileiras ao Haiti está recebendo dezenas de assinaturas de personalidades do Brasil e da América Latina. Assinam o documento, a ser entregue ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, parlamentares, prefeitos, intelectuais, sindicalistas, jornalistas e artistas. A íntegra do documento é essa: Ao excelentíssimo senhor presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva
Dirigimo-nos à sua excelência para solicitar que não sejam enviadas tropas brasileiras para participar de uma suposta “força de paz” no Haiti, como foi noticiado. As tropas norte-americanas, canadenses, francesas e chilenas que lá se encontram são tropas de ocupação que designaram um governo títere, violando a
soberania nacional do Haiti. Já houve haitianos mortos por soldados norte-americanos, ao mesmo tempo que as autoridades provisórias atuais já afirmam que não haverá eleições antes de dois anos. Fica claro, assim, o caráter de ocupação que a presença das tropas estrangeiras têm, quando a solução democrática da crise tem que ser dada pelos próprios haitianos. Por outro lado, essa intervenção agride a soberania de todas as nações do continente, reforçando o intento do governo Bush de impor uma hegemonia sem limites, integrando uma escalada a que é preciso pôr fim. Ela também se choca com a defesa da soberania e a resolução democrática dos conflitos internacionais, afirmada pela política externa brasileira. Os que assinamos este texto somos partidários do direito à
autodeterminação, defensores da paz e da fraternidade entre os povos, como a grande maioria do povo brasileiro que, em 2002, o elegeu. Não podemos aceitar, senhor presidente – quaisquer que sejam as pressões das grandes potências – que tropas brasileiras participem dessa ocupação. Temos o triste antecedente da participação de tropas brasileiras com as norte-americanas no golpe que tirou do poder o presidente legitimamente eleito da República Dominicana, Juan Bosch, e instalou um novo governo ditatorial. Mas aquilo foi possível em 1965, quando havia no Brasil uma ditadura militar. Hoje, um governo democrático não pode cometer o mesmo erro. Que o povo do Haiti decida sobre o seu próprio futuro! Não ao envio de tropas brasileiras ao Haiti!
Bush anuncia doação de armas na fronteira Marty Logan de Montreal (Canadá)
Estados Unidos no Haiti voltaram atrás em seu plano inicial de desarmar os rebeldes. Washington fará, nos próximos 90 dias, a primeira entrega de dois mil a três mil rifles, confirmou um porta-voz da Agência de Cooperação em Segurança do Departamento da Defesa. O acordo para a doação à República Dominicana, alcançado em 2002 com a aprovação do congresso estadunidense, prevê rígidos controles para impedir que as armas
Os Estados Unidos acrescentaram mais tensão no Caribe ao anunciar que doarão 20 mil rifles M-16 à República Dominicana. Alguns observadores alertam que essas armas podem facilmente ser levadas para o Haiti, já que na fronteira dos dois países existe pouca vigilância. O anúncio aconteceu poucos dias depois que as forças armadas dos
acabem em mãos criminosas, disse um porta-voz do Departamento de Estado. “Quem sugere que as armas são para os rebeldes haitianos está equivocado. Não podemos garantir 100% (o destino das armas), mas colocamos condições para a transferência para as Forças Armadas dominicanas e faremos controles periódicos”, acrescentou. A analista Rachel Stohl, do Centro de Informação sobre Defesa, com sede em Washington, assegurou que
a maioria das armas usadas pelos rebeldes procede da República Dominicana. “Está muito claro que algumas armas datam de 1994, mas outras são novas, trazidas do exterior, e há evidência suficiente para dizer que chegam através da fronteira”, afirmou Rachel. “Se muitos artigos são facilmente contrabandeados por essa fronteira, não há razão para pensar que o mesmo não acontecerá com as armas”, advertiu. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
VENEZUELA
Os Estados Unidos se preparam para derrubar, pela força, o presidente venezuelano Hugo Chávez, como parte de uma estratégia para tentar assegurar seu abastecimento de petróleo. A denúncia é do sociólogo e analista político estadunidense James Petras. Em declarações ao jornal El Universo, do Equador, Petras disse que “a derrubada de Chávez está sendo preparada, combinada com um levante interno e uma invasão fronteiriça da Colômbia, que abriria caminho para a entrada dos Estados Unidos na região”. Ou seja, não se trata apenas de uma invasão da Venezuela, mas de uma ação com um aliado militar capaz de abrir uma segunda frente na Colômbia, onde há anos atuam importantes forças guerrilheiras e grupos paramilitares de extrema direita.
Venpress
Petras revela plano contra Chávez da Redação
do e mantido em prisão domiciliar na República Centro-Africana. Desde a saída do presidente, o país caribenho está sendo governado por Gerard Latortue, representante das forças armadas rebeldes. Recentemente, Latortue disse que o Haiti não precisa de eleições e que seria preciso um “tempo de readaptação” para a democracia. No dia 2, a pedido do presidente estadunidense George W. Bush, e seguindo instruções da ONU, Lula anunciou que pretende enviar 1.100 soldados brasileiros para participar de uma força multinacional no Haiti, integrada por soldados dos Estados Unidos, Canadá, França e Chile. O objetivo seria garantir a paz no país.
Plano desestabilizador para Venezuela teria como ponta de lança a oposição interna
Contudo, segundo o professor da Universidade de Nova York, a estratégia estadunidense não é simples, pois teria uma “segunda frente” na Colômbia, importante país aliado de Washington. Segundo a lógica estadunidense, se enviar tropas de grande força contra a Venezuela,
os guerrilheiros abririam caminho em direção a Bogotá. “Conseqüentemente, para enfraquecer os insurgentes colombianos, necessitaria de aliados em sua fronteira, como Brasil e Equador, por exemplo”, disse. Petras fez essas declarações em sua visita a Quito, onde participou das
jornadas preparatórias do Primeiro Fórum Social das Américas, que acontece entre 25 e 30 de julho. Em diversas ocasiões, o presidente Chávez denunciou um suposto plano desestabilizador de seu governo, impulsionado pelos Estados Unidos e que tem como ponta de lança a oposição interna, que mantém uma forte ofensiva. Os opositores de Chávez apoiam-se no referendo revocatório de seu mandato, que impediria o fim de seu período constitucional. Há outras formas de pressão. Desde o governo de Bill Clinton, Washington colabora na aplicação do Plano Colômbia, estratégica antidrogas com alto componente militar, que busca erradicar os cultivos ilegais de coca nas zonas que, segundo propaganda oficial, são controladas pelas guerrilhas e paramilitares. (Com La Jornada e agências internacionais)
Segundo Júlio Turra, da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que também assina o manifesto, o governo brasileiro está fazendo o jogo de Bush. Para ele, desde a saída de Aristide o Haiti se tornou um protetorado dos Estados Unidos. “Chega ao cúmulo de soldados estadunidenses fazerem rondas na capital do país, Porto Príncipe, e prenderem e assassinarem pessoas”. Ele destacou que o envio de tropas brasileiras ao país do Caribe vai contra a vontade dos eleitores de Lula, que votaram para que ele rompesse com Bush. Turra salientou que, no caso de um ataque a Cuba, o Haiti poderia servir de base para os Estados Unidos. “O Brasil não pode legitimar esse tipo de ação militar”, afirmou. Um abaixo-assinado circulará por várias redes de solidariedade, para coletar adesões de entidades e movimentos de direitos humanos. As manifestações individuais, de repúdio ao envio de tropas brasileiras ao Haiti, devem ser enviadas para: Presidente Luiz Inácio Lula da Silva – gabpr@planalto.gov.br Ministro Celso Amorim – celsoamorim@mre.gov.br
BOLÍVIA
Evo Morales denuncia atentado da Redação O Movimento ao Socialismo (MAS) da Bolívia reiterou, dia 27 de março, que os partidos conservadores bolivianos e os Estados Unidos preparam um atentado para impedir o avanço da organização que, segundo seu principal líder Evo Morales, está pronta para tomar o poder. “O MAS está bastante adiantado para seus desafios imediatos: a eleição de uma assembléia constituinte, a realização de um referendo sobre a exportação do gás natural e a luta pela naturalização dos hidrocarbonos”. Morales disse que os partidos conservadores, expulsos do governo pela revolta social de outubro de 2003, juntamente com a embaixada estadunidense e o governo dos EUA, não querem que os índios ganhem as eleições municipais de dezembro. “Por isso, estão organizando um atentado contra a democracia e contra o MAS”, assegurou o dirigente. O líder indígena fez o pronunciamento durante as celebrações do 9º aniversário do grupo que, fundado em 1995, concorreu em 2001 às eleições. Segundo Morales, diante de uma tentativa de golpe, a resposta imediata será uma greve geral e um bloqueio de avenidas por tempo indeterminado. (Agência Prensa Latina, www.prensa-latina.cu)
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De 1º a 7 de abril de 2004
AMÉRICA LATINA LIVRE COMÉRCIO
Europeus negociam acordo com Mercosul União Européia propõe tratado nos termos da Alca, mas conteúdo é desconhecido por parlamentares e sociedade PAÍSES ENVOLVIDOS
Jorge Pereira Filho da Redação
Suécia
S
TRANSNACIONAIS Tudo indica que as pressões para o Mercosul ceder na negociação não serão pequenas. Além do poderoso jogo de influência das transnacionais européias, como a Telefônica, os exportadores brasileiros estão sedentos por recuos do governo nas negociações comerciais. Enquanto os Estados Unidos se mostraram inflexíveis em abrir seu mercado de produtos agrícolas na Alca, a União Européia tenta acenar com uma suave concessão. O bloco quer reservar aos países do Mercosul uma cota de 30% sobre a oferta de liberalização de produtos agrícolas que a União Européia planeja apresentar à Organização Mundial do Comércio (OMC). Os 70% do mercado agrícola restante seriam disputados entre outros países do mundo, inclusive pelos do Mercosul. Para ser oficializada, a proposta precisa, ainda, ser submetida ao crivo dos 15 países do bloco europeu, cujos representantes se reúnem em 15 de abril. A oferta da União Européia está sendo formulada para destravar as negociações na OMC, que não avançam em função da posição de países reunidos no G-20. A proposta dos europeus ao Mercosul cumpre também uma função estratégia: tentativa de desarticular o G-20, indispondo o Brasil com Índia e China, parceiros na articulação que
Finlândia
Holanda Dinamarca Irlanda Bélgica Luxemburgo
Reino Unido
Alemanha Áustria
França Espanha
Itália
Portugal
Grécia
Brasil Paraguai Argentina
Uruguai
O QUE ESTÁ EM DISPUTA UNIÃO EUROPÉIA Objetivo – conseguir abrir setor de serviços (bancos, telecomunicações, transporte e turismo, entre outros), compras governamentais, investimentos Maiores favorecidos – transnacionais, conglomerados bancários, grandes redes hoteleiras, empreiteiras Possíveis prejudicados – trabalhadores e pequenos agricultores europeus MERCOSUL Objetivo – abrir mercado agrícola da União Européia, reduzindo subsídios Maiores favorecidos – grandes proprietários de terra que trabalham com produtos voltado para exportação Possíveis prejudicados – trabalhadores, estudantes, pequenos e médios empresários, pequenos e médios agricultores, profissionais liberais (médicos, advogados etc.)
não seriam contemplados com a oferta da União Européia. Mas os europeus não pretendem, de graça, enfrentar a ira de seus pequenos agricultores – se é que vão mesmo fazê-lo. Em troca, na negociação com o Mercosul, a União Européia quer algo muito próximo do que os Estados Unidos desejam com a Alca. “O Mercosul precisa oferecer reduções tarifárias e boas propostas em áreas como serviços, incluindo turismo e transportes, investimentos e compras governamentais”, resumiu Alberto Navarro, embaixador da
União Européia no Brasil, em entrevista à TV Cultura de São Paulo. Segundo ele, dois temas são centrais: liberalização dos setores bancários e de telecomunicações. Para Navarro, os sul-americanos têm muito a ganhar: “Estamos dispostos a ajudá-los a obter crescimento econômico”.
REALIDADE DESASTROSA O governo brasileiro parece seduzido, até o momento. Celso Amorim, em entrevista ao jornal Valor Econômico, dia 29, revelou que é real a hipótese de ceder na
A participação do Brasil em acordos de livre comércio – com os Estados Unidos ou com a União Européia – pode comprometer o futuro do desenvolvimento do país. Esses tratados criam uma legislação supraconstitucional, que passa a valer mais do que as leis nacionais, limitando a capacidade de os Estados adotarem políticas para combater desigualdades e promover desenvolvimento. Um governo, por exemplo, pode ser proibido de favorecer empresas nacionais em uma licitação, como fez a Petrobras em 2003, ou de subsidiar a produção agrícola de regiões mais pobres. O governo brasileiro defende os acordos de livre comércio para ampliar suas exportações agrícolas. Essa posição é assumida porque a política econômica em vigor obriga o país a produzir seguidos superávits comerciais. O Brasil tenta vender mais do que comprar, para economizar dólares e, depois, honrar compromissos da dívida externa. O problema é que essa política não funciona: o governo não consegue pagar nem os juros da dívida, que cresce a cada ano. Os países endividados pegam empréstimos com instituições internacionais de crédito – como o Fundo Monetário Internacional (FMI) – e, em troca, aceitam imposições de políticas favoráveis ao grande capital
internacional, como juros altos e privatizações. Poucos governos tentam romper esse círculo vicioso da dependência externa, com receio de desagradar as potências capitalistas. O presidente argentino, Néstor Kircher, não pagou os credores privados em 2003. A medida contribuiu para a economia do país crescer 8% e o desemprego cair. Os tratados de livre comércio aprofundam a vulnerabilidade dos páises endividados. Um exemplo é o México – país com características semelhantes às do Brasil – que em 1994 assinou o Tratado de Livre Comércio das Américas (Nafta) com os Estados Unidos e o Canadá. Até 2003, como aponta estudo do economista mexicano Alberto Arroyo, o país havia registrado um pífio crescimento econômico de apenas 0,96% ao ano. Antes do acordo, o México tinha um superávit comercial com o Canadá de 667 milhões de dólares. Depois do Nafta, acumulou déficit de 3,7 bilhões de dólares em nove anos. Os trabalhadores foram os que mais perderam com o baixo crescimento econômico. Os empregos gerados depois do acordo ficaram 46% abaixo do que o necessário para absorver os jovens que estavam entrando no mercado de trabalho. A maioria desses empregos foram precários e não respeitaram direitos sociais trabalhistas. (JPF)
área de serviços para viabilizar o acordo. A experiência de acordos de livre comércio desse gênero, no entanto, tem mostrado que a realidade não é tão dourada como prometem os negociadores dos países centrais do capitalismo global, sejam estadunidenses ou europeus (veja quadro acima). “O acordo com a União Européia está dentro dos marcos dos tratados de livre comércio clássicos, que vão muito além da redução de tarifas. A privatização não vai resolver nossos problemas”, avalia Fátima Mello,
da Rede Brasileira de Integração dos Povos (Rebrip). Em acordos como esses, não há discussão sobre distribuição de renda, geração de emprego, livre circulação de trabalhadores ou diminuição das desigualdades regionais. Os termas negociados não fogem do marco da Alca (como o capítulo de investimentos) que, por sua vez, aprofunda as propostas neoliberais discutidas na OMC. “Temos de pensar em modelo de integração que privilegie o mercado interno e diminua a desigualdades entre os países”, propõe Fátima.
Reunião fechada tenta definir Alca Mais uma vez, representantes de alguns países que discutem a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) vão se encontrar em Buenos Aires para tentar destravar o acordo. A reunião, marcada para os dias 30 e 31, não consta do calendário oficial da Alca e nem todos os 34 países envolvidos foram convidados para a discussão. Movimentos sociais argentinos, que preparam protestos em Buenos Aires, criticam o caráter pouco transparente das negociações. As conversas sobre a criação da Alca estão bloqueadas desde a reunião do Comitê de Negociações Comerciais (CNC), em fevereiro no México, que não chegou a um consenso sobre como avançar no acordo. Desde então, uma série de encontro informais entre diplomatas tenta definir o prosseguimento das negociações. No início de março, uma reunião similar, convocada a pedido dos Estados Unidos, foi cancelada devido à permanência do impasse. Desta vez, os países vão se reunir depois do encontro entre representantes do governo brasileiro e estadunidense, dias 24 e 26 de março, em Washington, para tentar suavizar as diferenças. O Mercosul quer concessões
Ali Burafi/AFP
ob sigilo e longe dos holofotes, o Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) negocia um acordo de livre comércio com a União Européia. O tratado já está em fase adiantada de negociação e pode ser assinado até outubro – conforme previsão do próprio ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim. Se a pressão dos movimentos sociais conseguiu revelar muitos dos segredos das negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), a sociedade dos quatro países sulamericanos segue desconhecendo o conteúdo do tratado com a União Européia. O risco é de que os governos, em troca de concessões na área de agricultura, atendam às reivindicações dos europeus que querem abrir setores estratégicos do Estado Nacional, como a área de serviços e compras governamentais. Entre os efeitos dessas medidas, está o aprofundamento da dependência externa e da crise social nos países do Mercosul – e, claro, o enriquecimento dos grandes agricultores voltados para a exportação. Entre os parlamentares, o desconhecimento dos termos da negociação é geral. A deputada federal Maria José Maninha (PT-DF), vice-presidente da Comissão de Relações Exteriores, por exemplo, afirmou que não teve acesso às propostas. “O que sabemos é que as tratativas com a União Européia têm tido bons resultados, mas não conhecemos quais são”, contou a deputada. A parlamentar disse que encaminharia requerimento solicitando do ministro Regis Arlasnian, diretor-geral do Departamento de Negociações Internacionais do Itamaraty, explicações à comissão sobre a negociação. O Dr. Rosinha (PT-PR), presidente da Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul, revelou que só em conversas informais teve conhecimento das propostas discutidas: “O que eu sei é que a União Européia estava exigindo demais e faria uma nova proposta”. Rosinha disse que está insistindo em algumas audiências para obter mais informações, mas problemas de agenda estariam impedindo o esclarecimento dos diplomatas.
Tratados ampliam dependência externa
Crianças argentinas mostram sua opinião contra a Alca. Movimento sociais criticam falta de transparência
dos Estados Unidos em agricultura, enquanto os estadunidenses pressionam por maior abertura nas áreas de serviços, compras governamentais, investimentos e propriedade intelectual. Enquanto isso, os Estados Unidos aumentam sua pressão sobre o continente, fechan-
do acordos comerciais bilaterais com outros países – o que revela, em última análise, que o acesso aos mercados brasileiros e argentinos é o objetivo maior da Alca. Dia 26, o presidente colombiano, Alvaro Uribe, tradicional aliado de George W. Bush, anunciou que
os países estão negociando um tratado de livre comércio. Além da Colômbia, Panamá e República Dominicana também estão negociando acordos com os EUA. Até o fechamento desta edição o encontro não havia terminado. (JPF)
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De 1º a 7 de abril de 2004
INTERNACIONAL SOLIDARIEDADE
Maurício Lima
Confederação reúne palestinos no Brasil Articuladas, 37 entidades de 16 Estados querem divulgar luta contra ocupação israelense e promover diálogo entre etnias
“A
questão palestina é universal, é uma questão de justiça, e por isso há muitas pessoas solidárias com nossa causa .” Com essas palavras, Nader Alves Bujah, presidente do Centro Cultural Árabe-Palestino, com sede em Porto Alegre (RS), explica por que há tantas manifestações no Brasil em apoio ao povo do Oriente Médio. Mais do que protestos, muitas entidades divulgam a resistência e a cultura palestinas. Para centralizar e coordenar essas organizações, durante o Congresso de Palestinos no Brasil, realizado em São Paulo, dias 18 a 20 de março, foi criada a Confederação de Entidades Árabe-Palestinas do Brasil (Copal). Participaram do evento 120 representantes de 37 organizações de 16 Estados. A Copal, de acordo com seu presidente, o médico Farid Suwwan, tem também outros objetivos, como divulgar palestras e manifestações de solidariedade ao povo palestino, desenvolver o diálogo entre as diferentes etnias no Brasil e estimular a
criação de federações e comitês de apoio em todos os Estados. Além disso, a confederação pretende realizar um censo dos descendentes palestinos que residem no Brasil, cujo número estimado oscila entre 40 e 100 mil. “Não somos uma população isolada, fechada em si mesma. Somos todos brasileiros”, afirma o presidente da Copal, para quem todos podem contribuir com entidades de solidariedade ao povo palestino. A confederação pretende organizar viagens de comitivas de brasileiros para conhecer as condições de vida da população na Palestina. Também está prevista a criação de uma página na internet para divulgar notícias sobre a ocupação do país pelo Exército israelense, que dura há 56 anos. A confederação ainda não tem sede definida. Para obter mais informações, o endereço eletrônico é: copal@aol.com.br
A VIDA SOB A OCUPAÇÃO Para Bujah, o governo israelense impede que o povo palestino invista na infra-estrutura de suas cidades para não permitir a autonomia econômica. Por causa disso,
segundo ele, a taxa de desemprego dos palestinos é de 65% e os investimentos nos setores industrial e agrícola, quase nulos. “O que construímos, o Exército de Israel destrói”, explicou. Ele diz que a população vive com medo e sob terror. “Os assassinatos são diários, as humilhações constantes”, comenta. Para Bujah, todos sofrem, de variadas maneiras. Ele cita o exemplo de uma prima que, para ir à faculdade, tem de sair de casa três horas antes do início da aulas, apesar de o trajeto durar apenas alguns minutos. Diariamente, ela passa por barreiras de soldados israelenses, onde pode ser revistada e interrogada. Conforme Bujah, as ações militares de Israel, como o assassinato do xeque Ahmed Yassin, líder do grupo de resistência Hamas, no dia 22 de março, aumenta o terror na região. “É um lugar onde as pessoas sentem medo de dizer o que pensam, pois pensar pode ser suficiente para ser morto”, afirma. Segundo ele, entretanto, o terror não vai interromper a resistência do povo palestino, pois considera que a luta de seu povo é justa.
Manifestação contra ocupação da Palestina, em Porto Alegre
ANÁLISE Agência Câmara
DIREITOS HUMANOS
Vitória da esquerda na França não vira o jogo Julio Godoy de Paris (França)
EUA têm procurado boicotar a corte internacional por meio de acordos bilaterais
Conferência busca apoio a Tribunal Penal Internacional Maurício Hashizume de Brasília (DF) Foi concluída, dia 26 de março, na Câmara Federal, mais uma iniciativa com vistas à consolidação do primeiro tribunal mundial permanente para julgamento de genocídios, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. A Conferência Parlamentar Ibero-Americana sobre o Tribunal Penal Internacional (TPI), que contou ainda com representantes da Comunidade de Países de LínTPI - Julga crimes gua Portuguesa de guerra e contra a (CPLP), reuhumanidade. Embora os EUA tenham niu 150 parlaassinado, em 1998, mentares de 27 o tratado que criou países, com o o tribunal, em 2002, o presidente estaduobjetivo de renidense George W. forçar o apoio Bush decidiu cancepolítico à ratilar a adesão de seu ficação, por parpaís. te de cada uma das nações, do Estatuto de Roma, condição fundamental para a adesão à corte, que já está em funcionamento em Haia, na Holanda. O Brasil, que ratificou o documento em 2002 e é um dos 92 Estados signatários, prometeu mais avanços. Convidado para a abertura da Conferência, o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva não compareceu, mas enviou uma mensagem em que se comprometeu a “complementar a legislação brasileira e buscar o fortalecimento do Estatuto de Roma”, enviando ao Congresso um projeto de lei que possibilite a adaptação das leis nacionais às normas internacionais. Como ação complementar à ratificação do Estatuto de Roma, o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso instituiu um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para propor modificações dessa natureza. O resultado do trabalho do GTI foi remetido à Casa Civil no final de 2002, pouco antes da troca de comando no Executivo. Um novo grupo deve ser formado para analisar as recomendações preliminares e, logo em seguida, enviar uma proposta final ao Congresso. Segundo o deputado federal Orlando Fantazzini (PT-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Confederação Parlamentar das Américas (Copa) e integrante do movimento Parlamentares de Ação Mundial – duas das entidades que organizaram o evento –, a Conferência atingiu o seu objetivo de “dar argumentos e convencer os parlamentares da importância da
ratificação do Estatuto de Roma, dentro de um processo maior de eliminação de dúvidas e distorções sobre o tema”.
BOICOTE A pressão do governo estadunidense, que se recusa a assinar o documento e a aceitar as regras do TPI, foi considerada pelos parlamentares como o principal entrave à multiplicação de ratificações. Em acordos bilaterais, os EUA têm procurado boicotar a corte internacional, incluindo dispositivos para que cidadãos estadunidenses sejam submetidos apenas à corte de seu país de origem. Outro motivo comumente alegado pelos países que ainda não aderiram ao documento é o enfraquecimento da soberania nacional. Segundo a representante brasileira na corte, Silvia Steiner, se ocorrer um desses casos em um país nãosignatário, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) pode designar um tribunal ad hoc com normas e procedimentos singulares, isto é, sem uma referência jurídica pré-estabelecida, para fazer o julgamento. (Agência Carta Maior, www. agen ciacartamaior.uol.com.br)
Indymedia
João Alexandre Peschanski da Redação
A esmagadora vitória da coalizão de esquerda nas eleições regionais na França confirma um crescente descontentamento na Europa com as políticas de direita, embora não se possa ainda falar de uma tendência eleitoral consolidada. Liderada pelo Partido Franceses reprovam política de Jacques Chirac Socialista Francês (PSF), a esquerda francesa ganhou as elei- tido Socialista Operário Espanhol ções em 21 das 22 regiões, e obteve (PSOE) nas eleições espanholas, entre 40% e 50% dos votos em todo no dia 14. O presidente da UMP, Alain Jupo país. Por sua vez, a governante e direitista União para um Movimento pé, admitiu que a derrota nas urnas Popular (UMP) e sua aliada, a União deveu-se, em especial, ao desconDemocrática Francesa, ficaram com tentamento popular com as políticas do governo, mas, afirmou que 37% dos votos. Na eleição regional anterior, de agora as reformas não devem ser 1998, a direita havia vencido em 14 suspensas. “Sem dúvida, temos que regiões. No dia 27 de março, foram informar melhor nosso povo sobre eleitos apenas governos locais, mas nossas ações. Temos de explicar os analistas concordam em afirmar melhor as reformas que iniciamos”, que essa vitória da esquerda foi, de destacou. Juppé, firme defensor da todo modo, um duro golpe no pre- economia de livre mercado, repete, sidente Jacques Chirac e no primei- assim, os argumentos da coalizão ro-ministro Jean Pierre Raffrarin. que governa a Alemanha, formaCada um de seus 19 ex-ministros da pelo Partido Social Democrata candidatos a cargos regionais foram (SPD) e o Partido Verde. “Não há derrotados, e a esquerda ganhou em retorno para as reformas. O que regiões consideradas tradicional- temos de fazer é explicar melhor os mente baluartes da direita. Na cen- objetivos de nossas políticas”, disse tral região de Pays de la Loire, o mi- há algumas semanas Franz Muennistro de Assuntos Sociais, François tefering, que substituiu o chanceler Fillon, principal incentivador da (chefe de governo) Gerhard Schroprivatização do sistema de pensões eder na presidência do SPD. A coalizão direitista francesa e a e de uma série de cortes nos benefícios dos desempregados, perdeu pa- social-democrata-verde alemã têm ra um candidato esquerdista. Nunca programas muito semelhantes, com a esquerda havia obtido vitórias na privatizações do sistema de pensões e da saúde, severos cortes na ajuda região nos últimos 10 anos. do Estado aos desempregados, reINFLUÊNCIA ESPANHOLA duções de impostos para empresas Na região de Poitou Charentes, e as classes altas e leis de flexibilino sudoeste, o candidato socialista zação trabalhista. No plano econôSegolone Royal venceu com mais mico, Alemanha e França sofreram de 50% dos votos. “Este é um uma recessão no ano passado com claro chamado popular para que um aumento do desemprego. Ao se ponha fim a um sistema injusto que parece, o primeiro-ministro que só aumenta a pobreza. O povo da Itália, Silvio Berlusconi, poderá está contra o desmantelamento do ser o próximo chefe de governo Estado de bem-estar e quer serviços de direita a perder uma eleição na públicos eficientes”, disse Royal Europa, depois da derrota, em marapós a votação. Analistas destacam ço, do primeiro-ministro espanhol, o impacto positivo que teve para a José Maria Aznar. (IPS/Envolverde, esquerda francesa a vitória do Par- www.envolverde.com.br)
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INTERNACIONAL ÁFRICA
Argélia vai às urnas escolher presidente Hocine Zaourar/AFP
Em permanente estado de guerra civil, argelinos testam qualidade de sua democracia nesta eleição Marilene Felinto da Redação
A
Manifestantes em Tizi Uzu, no primeiro dia da campanha às eleições; minoria berbere na Cabília propõe boicote ao voto Joel Robine/AFP
África será palco de diversas eleições importantes este ano, sendo algumas delas um verdadeiro teste para nações que emergem de guerras e conflitos, enquanto outras, a exemplo da sul-africana, que coincide com o 10º aniversário do fim do apartheid, funcionarão como um marco histórico. Os pleitos mais importantes, em termos de números de eleitores, são os da Argélia e África do Sul, que acontecem neste mês de abril. São duas potências econômicas, uma no norte, outra no sul do continente. Os argelinos vão às urnas no dia 8 de abril. O atual chefe de Estado argelino, Abdelaziz Bouteflika, é candidato à reeleição. Seu principal concorrente é Ali Benflis, ex-primeiro-ministro e secretário-geral do partido de Bouteflika, a Frente de Libertação Nacional (FLN), de centro. No ano passado, Benflis foi demitido do cargo de primeiro-ministro por Bouteflika. O desentendimento entre os dois rachou ao meio a FLN.
ARGÉLIA
GUERRA CIVIL A Argélia vem enfrentando um período de turbulência política desde 1991, quando o Exército argelino interveio em uma eleição para evitar que um partido islâmico saísse vitorioso. Depois do primeiro turno das eleições parlamentares de dezembro daquele ano, a vitória da Frente Islâmica de Salvação (FIS) parecia inevitável. Generais de alta patente sublevaram-se, cancelaram o segundo turno da eleição e baniram a FIS, que tinha como objetivo adotar no país um regime de Estado fundamentalista islâmico. O golpe de Estado teve o apoio não declarado de países do Ocidente, especialmente da França, o maior importador do gás argelino. O golpe desencadeou uma sangrenta guerra civil na Argélia, que já matou 150 mil pessoas na última década. A onda de atentados praticados por militantes islâmicos chegou ao auge em 1992, com o assassinato de Muhammad Boudiaf, um dos heróis da guerra de independência contra a França, indicado à presidência pelos golpistas, exatamente no intuito de acalmar os ânimos.
Mulheres trabalham na campanha de Ali Benflis, em Argel, capital da Argélia
Mar Mediterrâneo
Estreito de Gibraltar
Oran
Argel Constantine
Localização: África do Norte Nacionalidade: argelina Cidades principais: Argel (capital), Oran, Constantina, Annaba, Blida, Línguas: árabe, berbere (oficiais), francês Divisão política: 48 departamentos Regime político: república presidencialista População: 32,8 milhões (ONU, 2003) Moeda: dinar argelino Religiões: islâmica (99%) Hora Local: + 3 Domínio internet: .dz DDI: 213
Tunísia
Marrocos
Argélia
Mauritânia
Saara Ocid.
Mali
Níger
HISTÓRIA
Tentativas de conciliação entre governo e representantes islâmicos vêm sendo feitas desde 1995, quando Liamine Zéroual foi eleito presidente, embora sob acusação de fraude. A FIS anunciou em 1997 sua ruptura com o Grupo Islâmico Armado (GIA), defendendo uma solução pacífica para o conflito. Mas o período de Zéroual (até 1998), foi marcado pela ocorrência de chacinas contra a população civil, atribuídas tanto aos fundamentalistas islâmicos quanto a organizações paramilitares ligadas ao governo. Em 1999, Abdelaziz Bouteflika, ex-primeiro-ministro da FLN, apoiado pelo governo, vence as eleições presidenciais. A guerrilha islâmica GIA não interrompe os atentados. Milhares de civis foram assassinados entre 2000 e 2001. A insatisfação da minoria berbere (25% da população), grupo originalmente nômade, é outro atual foco de conflito político no país. Em 18 de março, centenas de manifestantes berberes da Cabília, região próxima do litoral, que se estende do leste de Argel até a fronteira com a Tunísia, saíram às ruas em Tizi Uzu pedindo boicote às eleições. Os berberes alegam que são perseguidos pela polícia argelina e exigem um plano sócioeconômico que acabe com o alto índice de desemprego entre jovens na região.
MULHER CANDIDATA Entre os demais candidatos, na disputa pelo cargo de Bouteflika, está Louiza Hanoune, 56 anos, presidente do Partido dos Trabalhadores, a primeira mulher árabe a se candidatar a uma eleição presidencial no país. Militante de corrente trotskista quando jovem, Louiza participou da criação da Liga Argelina dos Direitos Humanos em 1985 e permaneceu um período presa, junto com outros ativistas de direitos humanos. Sua atuação como sindicalista levou à criação do Partido dos Trabalhadores, em 1990. Ela defende o diálogo entre governo e extremistas islâmicos como solução para a violência no país. As eleições presidenciais de 8 de abril são um teste vital para as iniciativas da Argélia rumo a uma democracia ampla. O Exército argelino tem declarado à imprensa africana sua postura de “estrita neutralidade” diante do pleito, embora pretenda acompanhar de perto o desenrolar dos acontecimentos políticos.
A Argélia foi colônia francesa de 1830 até 1962. Um dos nomes mais importantes da guerra pela independência do país é o de Ahmed Ben Bella. Ben Bella, 85 anos, é uma das grandes figuras do nacionalismo árabe. Nasceu em Marnia, perto da cidade de Oran (Argélia), em 25 de dezembro de 1918. Filho de pais marroquinos de uma família rural abastada, estudou na escola francesa de Oran e, mais tarde, em Tlemcen, onde entrou em contado com os movimentos nacionalistas árabes. Sua vida foi marcada pela distinção de bravura na Segunda Guerra Mundial, quando serviu como soldado do Exército francês, por sua participação ativa no movimento nacionalista do Magrebe e por seu destaque, hoje, na cena política do Terceiro Mundo. Após a Segunda Guerra, passou a participar ativamente da batalha pela independência da Argélia. Foi preso em 1950 e condenado à pena de trabalhos forçados, mas conseguiu fugir para o Cairo (Egito), em 1952. Foi um dos dirigentes da
Jacques Collet/ AFP
Quem é Ahmed Ben Bella
insurreição argelina de 1º de novembro de 1954, um dos lendários nove membros do comitê revolucionário que se transformou na Frente de Libertação Nacional da Argélia. Em outubro de 1956, no primeiro ato de pirataria aérea da história, a aviação militar francesa obrigou o avião civil marroquino que o transportava, assim como a vários outros dirigentes argelinos, a desviar-se da rota. Ben Bella foi preso novamente e permaneceu na cadeia até 1962, quando da assinatura do Acordo de Evian, por meio do qual a Argélia obteve sua independência da França. Foi o primeiro presidente da Argélia depois da independência, entre 1963 e 1965. Sua política para o país foi socializante no plano interno, e de neutralidade entre os blocos comu-
nista e capitalista, no plano externo. Em junho de 1965, foi deposto pelo golpe de Estado de Houari Boumedienne. Encarcerado durante quase 15 anos, recuperou a liberdade em 1980. Desde então, participou da oposição ao governo argelino. Ben Bella relacionou-se de perto com grandes líderes políticos do século 20, entre os quais Kennedy, Kroutchev, De Gaulle, Mao, Tito, Fidel Castro. Foi amigo de Che Guevara e Abdel Gamal Nasser. Juntamente com Nasser (19181970, líder egípcio articulador do nacionalismo árabe), selou, em 1956, uma aliança que permitiu deslanchar o movimento nacionalista argelino. Ben Bella foi um dos mais célebres presos políticos da história contemporânea: os 23 anos que passou na prisão aproximam sua história da de Nelson Mandela, líder negro sul-africano. Desenvolveu uma visão lúcida e profunda da ordem mundial atual e da relação Norte-Sul, expressa em diversos ensaios escritos em francês. Vive atualmente na Europa, entre França e Suíça. (MF)
Combate à discriminação une Brasil e África O Brasil e mais 12 países da África e da América do Sul se comprometeram, no dia 22 de março, a trabalhar conjuntamente para promover a igualdade racial e combater todas as formas de discriminação nos dois continentes. O compromisso foi firmado durante o seminário “América do Sul, África – Acordos e Compromissos com a Promoção da Igualdade Racial e Combate a Todas as Formas de Discriminação”, que reuniu especialistas do Brasil, África do Sul, Angola, Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador, Moçambique, Namíbia, Paraguai, Peru, São Tomé e Príncipe e Uruguai. Na carta de intenções, os países assumiram o compromisso de: 1. promover a inclusão das resoluções da 3ª Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Intolerâncias Correlatas, de Durban, nas legislações
nacionais e nas políticas públicas; 2. adotar políticas afirmativas como instrumentos de superação das desigualdades impostas em razão de gênero, orientação sexual, opção religiosa ou ascendência étnico-racial, com ênfase na problemática enfrentada pelos povos indígenas e pelos afrodescendentes; 3. incluir a promoção da igualdade étnico-racial e de gênero na pauta de integração econômica e religiosa; 4. estimular e participar da criação de fundo mundial de combate à fome; 5. empenhar-se no monitoramento e na avaliação da implementação dos compromissos assumidos em Durban, envolvendo outros continentes e países na discussão sobre a igualdade racial; 6. difundir os estudos africanos e da relação de continente africano com as Américas e o estudo das civilizações americanas visando à afirmação das identidades desses povos. (MF)
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De 1º a 7 de abril de 2004
INTERNACIONAL ÁGUA
ONU prevê crise aguda na América Latina Por Diego Cevallos da Cidade do México (México)
O
México sediará, em março de 2006, mais um Fórum Mundial da Água México, o quarto evento do gênero, convocado pela organização não-governamental Conselho Mundial da Água. Segundo a entidade, o encontro é urgente, pois tanto a carência de água potável quanto a de serviços sanitários, que afetam 2,4 bilhões de habitantes do planeta, são a origem de enfermidades que a cada ano causa a morte de mais de cinco milhões de pessoas, das quais dois milhões de menores de 5 anos. “A menos que sejam tomadas ações rápidas, esses números podem se multiplicar até por seis em um futuro próximo”, advertiu o Conselho, organização fundada em 1996 com sede na França. O Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento dos Recursos da Água, da Organização das Nações Unidas (ONU), adverte que “os habitantes de muitos países em desenvolvimento experimentarão uma crescente escassez de água”, a menos que os governantes, o setor privado e os organismos internacionais abandonem sua passividade. O 4º Fórum Mundial da Água acontecerá sob o lema “Ações locais para o desafio global”, com previsão de Fórum Mundial da participação de Água – Encontro que define princípios 10 mil pessoas. e orientações da Na prévia do política mundial da encontro, cada água. Os três primeiregião do munros foram realizados no Marrocos (1997), do realizará Holanda (2000) conferências e Japão (2003). locais sobre o Paralelamente, é tema. “Deve-se realizado o Fórum Social das Águas, deixar de lado com participação da a retórica, as sociedade civil. promessas não cumpridas e o gasto inútil que marcaram muitas reuniões anteriores sobre esse recurso”, disse Homero Zapata, pesquisador de temas ambientais da Universidade Nacional Autônoma do México. Estimativas otimistas dizem que, em meados deste século, haverá no mundo dois bilhões de pessoas enfrentando escassez de água. Mas também há a possibilidade de que sejam sete bilhões, segundo
João Roberto Ripper
Especialistas escolhem o México para sede do 4º Fórum Mundial da Água e alertam para a falta de saneamento básico
América Latina apresenta 77 milhões sem acesso à água potável, ainda que registre 29% das chuvas do planeta
estudos da ONU. O Conselho Mundial da Água calcula que em 2025 a falta de água poderá afetar quatro bilhões de pessoas. O próximo Fórum Mundial da Água será o primeiro a ser realizado na América, continente que os especialistas assinalam como exemplo de que os problemas de acesso à água ocorrem apesar da disponibilidade do líquido. A América Latina e o Caribe têm apenas 15% de terra firme e 8,4% da população mundial, mas recebem 29% das chuvas registradas no planeta e contam com um terço dos recursos hídricos renováveis. Entretanto, a distribuição é irregular.
PROBLEMA CONTINENTAL A disponibilidade é relativamente satisfatória nas três principais zonas hidrográficas da região: as costas do sul do Brasil e a região do Paraná, o Golfo do México e o Rio da Prata, na Argentina e no Uruguai. Mas há carências importantes
O QUADRO DA ESCASSEZ 77 milhões de centro-americanos e sul-americanos não têm acesso à água potável. 51 milhões estão em áreas rurais e 26 milhões, em zonas urbanas. 256 milhões de pessoas utilizam latrinas e fossas sépticas 100 milhões não têm acesso a nenhum tipo de serviço de saneamento Por causa das fontes partilhadas, há conflitos diplomáticos entre Canadá e Estados Unidos e México e Estados Unidos Brasil, Paraguai e Uruguai ainda discutem direitos sobre o Aqüífero Guarani em áreas do Caribe, Mesoamérica, Andes e no Norte brasileiro. A escassez de água não tem sido, em geral, fator limitante para o desenvolvimento social na região, mas essa situação mudou nos últimos 30 anos, destaca o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). De 1970 até o começo deste século, a extração e o consumo de água duplicaram na região, devido a uma demanda superior à média mundial, que continua aumentando vertiginosamente. Hoje, 77 milhões de pessoas da
região não têm acesso à água potável. Delas, 51 milhões estão em áreas rurais e os outros 26 milhões em zonas urbanas. Além disso, 256 milhões de pessoas utilizam latrinas e fossas sépticas e 100 milhões não têm acesso a nenhum tipo de serviço de saneamento. Os problemas se multiplicam e causam conflitos diplomáticos pelo uso de fontes compartilhadas entre Canadá e Estados Unidos e entre México e Estados Unidos. Também há conflitos entre países da América Central e os relativos ao Brasil, Pa-
raguai e Uruguai. Segundo o Pnuma, dentro de mais uma década a crescente demanda, a má distribuição da água e a contaminação dos recursos hídricos na América Latina e no Caribe desenharão um quadro crítico. Mas a situação é ainda pior em outras regiões. Apenas 60% dos 680 milhões de habitantes da África Austral têm acesso à água potável, e em nove países desse continente os habitantes sobrevivem com uma média inferior a 10 litros diários de água. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
AQÜÍFERO GUARANI
Uma riqueza sob a mira dos Estados Unidos Marcela Valente de Buenos Aires (Argentina) As águas tranqüilas do Aqüífero Guarani, enorme reservatório de 1,2 milhão de quilômetros quadrados debaixo dos países do Mercosul, são o centro de uma polêmica. Um projeto de conservação do Aqüífero, iniciado em 2003, desatou uma guerra de acusações entre os encarregados de levá-lo adiante e organizações sociais que alertam sobre uma suposta conspiração, liderada pelos Estados Unidos, para apoderar-se da água. Nos últimos três anos, cientistas, ambientalistas e governos elaboraram o Projeto para a Proteção Ambiental e o Desenvolvimento Sustentável do Cemida - OrganizaSistema Aqüíção não-governafero Guarani. mental pelos direitos humanos, fundada A intenção é nos anos 80, integraconhecer sua da por militares da potencialidade reserva e civis, que costuma adotar posi- e os riscos que ções de esquerda. podem ocorrer para a elaboração de modelos de gestão conjunta entre os países que o compartilham. Calcula-se que o Aqüífero, sob Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, tem cerca de 37 mil
shington “destinou ao projeto 26 milhões de dólares e sugeriu a forma como as comunidades indígenas e a sociedade civil participariam para manter um permanente controle, enquanto considerar conveniente”. Essa tese é compartilhada por grupos organizadores do Fórum Social Tríplice Fronteira, previsto para 25 a 27 de junho, na cidade argentina de Puerto Iguazu.
PROJETO MILIONÁRIO
quilômetros cúbicos de água, mas podem ser explorados somente entre 40 e 80 quilômetros cúbicos em zonas de recarga. O Centro de Militares pela Democracia Argentina (Cemida) afirmou, este ano, que a suposta atividade de grupos terroristas na Tríplice Fronteira (entre Brasil, Argentina e Paraguai) foi apenas um pretexto de Washington para aumentar sua presença militar na região e “apoderar-se do Aqüífero Guarani”, por meio do projeto de conservação. O Cemida é uma organização não-governamental pe-
los direitos humanos, fundada nos anos 80, integrada por militares da reserva e civis, que costuma adotar posições de esquerda. “Os Estados Unidos estruturaram um sistema para detectar a magnitude do Aqüífero, assegurar seu uso sustentável e evitar todo tipo de contaminação. Para isso, pôs à frente da pesquisa o Banco Mundial, a Organização dos Estados Americanos (OEA) e outros organismos que têm sob controle”, afirmou o relatório do Cemida, elaborado pela professora de história Elsa Buzzone. Segundo ela, Wa-
O secretário-geral do projeto, o brasileiro Luiz Amore, considera que essa denúncia “não tem nenhum sentido”. Para ele, o projeto nasceu de uma iniciativa das nações que compartilham o Aqüífero, e foram elas que pediram ajuda financeira ao Fundo para o Meio Ambiente (GEF, sigla em inglês), formado com contribuições de países e manejado financeiramente pelo Banco Mundial. “Durante quatro anos, organizações da sociedade civil intervieram nas diferentes instâncias do programa”, acrescentou. Segundo Amore, do Brasil, que tem sob seu território 71% do Aqüífero, participaram 176 instituições, entre organismos nacionais e estaduais, universidades e ONGs. As unidades nacionais do projeto,
integradas por funcionários de cada país, elegeram a OEA como agência executora da iniciativa, financiada com 13,4 milhões de dólares do GEF, 12 milhões de dólares dos governos e o restante de outras organizações, até completar 26,7 milhões de dólares, ressaltou o especialista. A rede brasileira Grito das Águas, que reúne cerca de 60 organizações, questionou o projeto. Conforme Leonardo Moreli, não há “transparência” nas contratações do projeto nem acesso à sua informação técnica. Moreli diz que “Amore está negociando nossa soberania e não podemos saber a quem repassa a informação que recebe, enquanto exerce um poder ditatorial para decidir quem pode participar do processo”. Na visão de Moreli, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o GEF deveriam “auditar” o projeto. Para ele, “não é normal que haja boinas verdes (soldados do Exército dos Estados Unidos) em Misiones e Entre Ríos (províncias do Nordeste da Argentina) fazendo exercícios contra a dengue”, disse, referindo-se ao documento do Cemida. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
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DEBATE BLOQUEIO IMPERIALISTA
Os Direitos Humanos em Cuba ecentemente tivemos a notícia de que o governo dos Estados Unidos proibira a publicação de artigos cubanos em revistas científicas estadunidenses. Poucos dias depois, outra notícia: esse mesmo governo proibiu que pesquisadores estadunidenses assistissem a um evento médico em Cuba, sobre Coma e Morte. Estive vinculado durante quase meio século ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia em Cuba e pude ver de perto os indiscutíveis avanços que o país tem alcançado nessa esfera. Para dar apenas um exemplo: o nível científico e tecnológico da biotecnologia em nosso país é reconhecido internacionalmente, inclusive por prestigiosas personalidades e instituições científicas dos EUA. Mais de 200 produtos farmacêuticos foram desenvolvidos, incluindo várias vacinas e medicamentos, como a vacina contra a meningite bacteriana tipo B, ou contra a hepatite tipo B. Muitos esforços se realizam em nossos laboratórios para alcançar novos e melhores resultados em prol do desenvolvimento da saúde e do bem-estar do povo e da humanidade. Agora, o governo de Bush impede que tais êxitos dos pesquisadores cubanos sejam conhecidos e compartilhados pela comunidade científica estadunidense e internacional. Não significa isso uma violação evidente dos direitos dessa comunidade e dos direitos dos pesquisadores cubanos? É reconhecido o desenvolvimento da medicina e da saúde pública cubana. Vários indicadores bastam para mostrar seus avanços depois da Revolução: a mortalidade infantil se reduziu de 60 a 6,2 por mil crianças nascidas vivas, cifra que é a mais baixa de todo o continente americano; a expectativa de vida é de 76 anos. Quantos países do Terceiro Mundo podem exibir essas cifras? A saúde pública e a comunidade científica de Cuba não mostram uma profunda dedicação para proteger e promover o direito de nossa população a uma melhor saúde, a uma vida melhor? Agora, o governo Bush impede que seus cientistas possam assistir a um evento para intercambiar critérios e discutir aspectos altamente sensíveis para a vida humana. Não é essa uma violação evidente dos direitos da comunidade médica internacional e, em particular, da cubana e da estadunidense?
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BLOQUEIO DE 40 ANOS
Essas violações evidentes dos direitos humanos não constituem fatos isolados. Durante mais de quatro décadas, Cuba vem sofrendo um criminoso bloqueio por parte das distintas administrações dos EUA. Esse bloqueio tem significado penúrias e sacrifícios para nosso povo e enormes perdas a nossa economia. A face mais conhecida desse bloqueio é o fato de estarem proibidas todas as transações comerciais, econômicas ou monetárias dos Estados Unidos com Cuba. Mais ele tem uma abrangência muito maior. Para muitos que não conhecem o verdadeiro significado do bloqueio, é importante mencionar algumas medidas que ele implica: nenhum produto elaborado, total ou parcialmente, com produtos de origem cubana, mesmo se produzido em um terceiro país, pode entrar nos Estados Unidos; os navios cubanos não podem entrar nos portos estadunidenses; e os navios de outras nacionalidades que atraquem em Cuba não podem entrar nos EUA durante os seis meses seguintes. Isso faz com que os proprietários dessas
embarcações exijam de Cuba um pagamento adicional, como compensação, o que sobrecarrega de forma importante o custo de transporte de bens para Cuba. Os cidadãos estadunidenses estão proibidos de viajar a Cuba sob pena de multas de 25 mil dólares, salvo expressa autorização do Departamento de Estado. Ao longo do tempo, surgiram outras leis nos EUA que fortaleceram o bloqueio, como as leis Torricelli e a Helms-Burton, a última permitindo aplicar sanções a empresas de outros países que negociem com empresas cubanas que anteriormente foram de propriedade de empresas estadunidenses ou de cubanos residentes nos Estados Unidos. O bloqueio tem sido condenado ano a ano, quase unanimemente, pela comunidade internacional nas Nações Unidas. Ele não é uma violação evidente de os direitos humanos do povo cubano? Quem é o violador? Cuba tem orgulho de ser o primeiro país da América Latina e do Caribe que se libertou do domínio estadunidense. Os destinos de Cuba já não se regem pelos ditames do governo do Norte. Em 1º de janeiro de 1959, foi derrocada uma feroz e sangrenta tirania, apoiada econômica, política e militarmente pelo governo estadunidense. Surge a Revolução Cubana, encabeçada por Fidel Castro. Realizou-se, imediatamente, uma verdadeira reforma agrária que deu terra a milhares de camponeses. Inevitavelmente, isso tinha que afetar interesses latifundiários, em particular estadunidenses. A partir desse momento, pode-se dizer que começou o bloqueio. Os recursos naturais, as indústrias e os serviços fundamentais foram nacionalizados e colocados nas mãos do povo. Não tinha Cuba esse direito? Quantos países em nossa América Latina sofrem com o latifúndio, a falta de uma verdadeira reforma agrária e a exploração de muitas empresas transnacionais? Essas ações de soberania incitaram ainda mais o ódio e as agressões estadunidenses contra nosso país. Foram inúmeras agressões, atos de sabotagem e ações terroristas organizadas ou promovidas pelo governo estadunidense, como o ataque mercenário à Baía dos Porcos, planejado, organizado, financiado e apoiado materialmente pelo governo dos EUA. Não é isso terrorismo? Não são os diferentes governos dos EUA culpados de fomentar e apoiar o terrorismo contra Cuba, inclusive concedendo a esses terroristas o direito de viver impunemente em seu território? Sabe-se que foram frustrados inúmeros atentados de assassinato contra o presidente Fidel Castro e outros líderes da Revolução, atentados
esses organizados pela CIA, em alguns casos, com a cumplicidade do crime organizado nos EUA e da máfia anticubana de Miami. Esses fatos constam das atas do Congresso dos Estados Unidos, de quando a CIA foi convocada por essa instituição para responder por suas ações. Por outro lado, a máfia de Miami tem realizado e continua planejando agressões contra Cuba. Precisamente para poder estar informados e tomar medidas preventivas contra tais ações, cinco patriotas cubanos foram infiltrados dentro desses grupos. A justiça (injustiça?) estadunidense os condenou como espiões contra o governo dos EUA com elevadas penas; dois deles à cadeia perpétua. Eles não atuavam contra o governo estadunidense, mas dentro da máfia de Miami, a fim de conhecer e ajudar a prevenir atos ra nosso país. Eles idos aos maiores oibidos de receber familiares. Milhaem vários países, do atos públicos e contra tamanha injustiça. No momento, o processo judicial se encontra na etapa de apelação. Esperamos que se faça verdadeira justiça. PENA DE MORTE EM CUBA
xistem esquadrões da morte. Não acontecem, como em outros países, essas cenas narradas freqüentemente no rádio e na televisão, em que a polícia golpeia sem piedade a multidões que protestam, nem se assassinam presos impunemente. Em Cuba não se aplica a tortura. No ano passado, foram condenados à morte dois cidadãos cubanos por intento de pirataria a um barco de bandeira nacional. Não eram “pobres dissidentes cubanos tratando de escapa da tirania castrista”, como noticiado em boa parte dos de difusão. Eram verda piratas. Viu-se, claram pela televisão, como um seqüestradores mantinha turista francesa com uma pis apoiada em sua cabeça, utilizando-a como escudo e ameaçando matá-la, se não o deixassem escapar. A rápida e eficaz ação da segurança cubana impediu perdas de vidas inocentes. Esse fato se vinculava a outros atos de pirataria referidos anteriormente. Havia que colocar um fim nessa escalada de violência. A pena de morte está prevista pelas leis cubanas. O ato de pirataria está configurado como delito que pode ser sancionado com a pena máxima. Pode-se discutir se, por motivos religiosos, filosóficos ou éticos, a pena de morte deve existir ou não. Muitos países, entre eles os Estados Unidos, a utilizam. Ao triunfo da Revolução Cubana, cruéis e selvagens assassinos e torturadores, da ditadura de Batista, foram justamente condenados e executados, com a aprovação da imensa maioria do povo cubano. Os inumeráveis atos terroristas e de assassinatos, referidos anteriormente, fazem com que a pena de morte seja um castigo vigente para crimes de tal magnitude. Nesse sentido, no ano passado, um número de cubanos foi detido e condenado a distintos anos de prisão por atentar contra a seguridade do Estado cubano. Por este fato, se leva Cuba, outra vez, ao banco dos réus, sob a alegação de violar os direitos humanos desses cidadãos. Quem são eles?
Honrados trabalhadores cubanos dissidentes do regime castrista? Vejamos a realidade. O presidente Bush, a 10 de outubro de 2003, se deu o direito de criar uma comissão chamada “Comisión Presidencial para la Asistencia a uma Cuba Livre”, presidida pelo secretário de Estado, Colin Powell, assim como o fortalecimento das pressões internacionais para isolar e forçar um “cambio” em Cuba. Isto é uma ingerência grosseira dentro de outro país e uma real declaração de guerra, onde a maior potência mundial se propõe abertamente e por diferentes vias, derrocar o governo de um pequeno país. Por outra parte, é de público conhecimento como a Seção de Interesses dos Estados Unidos em Cuba atua abertamente para cooptar, organizar e financiar grupos de cubanos residentes no país, com fins de realizar os propósitos dessa Comissão Presidencial. Parte desses cubanos, que não trabalham, que vivem bem, com os recursos abundantes que a Seção de Interesses lhes subministra para que possam realizar ações desestabilizadoras, são os que estão presos. Podem ser considerados como agentes a serviço de uma potência inimiga. Que direito tem Bush de se imiscuir nos destinos de Cuba? Que moral tem ele, quando há dois anos os EUA vêm mantendo, incomunicáveis, na base naval de Guantánamo, centenas de prisioneiros do Afeganistão, sem que sejam formalmente acusados e sem lhes permitir o direito de ter advogados como prescrevem todas as leis e normas internacionais? DEMOCRACIA EM CUBA
Outro tema favorito do governo estadunidense é a falta de democracia em Cuba. Em primeiro lugar, quais são as normas e definições internacionais de democracia? O governo estadunidense, por exemplo, mantém estreitas relações com países que adotam regimes totalmente autocráticos. Nem falemos do apoio histórico distintas administrações deSomoza, Batista, Pinochet as ditaduras militares na Latina, apenas para r alguns casos. Quando iadas essas sangrentas as ao banco dos réus? Em a opinião, o sistema pelo qual os estadunidenses elegem seus governantes deixa muito a desejar. Nas eleições dos Estados Unidos, tradicionalmente, votam cerca de 40% da população. Bush elegeu-se sem ter a maioria dos votos, mediante um pro-cesso turvo de recontagem de votos na Flórida. Elegeu-se graças ao fato de que a maioria do Tribunal Superior Eleitoral era republicana. Que direito tem esse senhor de reclamar da forma como se realizam as eleições cubanas? O sistema político, econômico e social de Cuba, incluindo sua definição socialista e seu sistema eleitoral, está previsto na Constituição do país. Sim, Cuba tem uma Constituição, a qual foi amplamente discutida por toda a população, em cada centro de trabalho, cada bairro ou comunidade, e foi aprovada pelo voto livre e soberano de mais de 90% da população. O processo eleitoral cubano se inicia com proposições de candidatos feitas pelos moradores de cada comu-
nidade. Em Cuba, mais de 90% dos votantes vão às urnas; o voto não é obrigatório, e ninguém é perseguido se não vota. Nosso sistema trata de se aperfeiçoar de promover melhorias contínuas, tomando em consideração experiências e êxitos, mas também os erros e deficiências. Cuba tem o sistema que o povo escolheu e decidiu. Tem, portanto, todo o direito a que se o respeite. Nesses dias, celebra-se a reunião anual da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Outra vez, como vem fazendo há 17 anos, o governo estadunidense tratará de colocar Cuba no banco dos réus. Ou seja, o grande violador dos direitos humanos, o governo autor dos genocídios conseqüentes dos bombardeios atômicos a Hiroshima e Nagasaki, o autor da guerra no Iraque sob pretextos ainda a serem comprovados, se converte em implacável acusador de um pequeno e corajoso povo que não quis dobrar-se a seus interesses. Este ano, o governo dos EUA cometeu a desfaçatez de incluir na delegação estadunidense junto a essa Comissão um terrorista de origem cubana, que já foi preso em Cuba por introduzir armas e explosivos em nosso país. Isso mostra claramente a conexão do governo de Bush com os grupos terroristas de Miami e seu afã de harmonizarse com eles, de modo oportunista, com vistas às próximas eleições. Cuba é um país de cidadãos trabalhadores, cultos, esforçados e solidários, que há 45 anos sofrem os embates das agressões estadunidenses. São cidadãos que vivem com muita modéstia, mas com uma elevada dignidade. Nossa sociedade não é perfeita. Porém, se luta para melhorá-la. O povo cubano exige que cessem essas agressões e que lhe seja permitido construir seu destino da forma que ele decida e desfrutar do merecido e inalienável direito de viver em paz. Tirso W. Sáenz Sánchez é cubano, engenheiro químico e doutor em Ciências. Atualmente é pesquisador associado da Universidade de Brasília e professor titular adjunto do Instituto Superior Politécnico de Havana (Cuba).
Kipper
Tirso W. Sáenz Sánchez
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA DISTRITO FEDERAL SÃO PAULO I FÓRUM BRASILEIRO SOBRE AS AGÊNCIAS REGULADORAS Dias 5 e 6 Organizado pela Lato Sensu, com promoção do Instituto de Direito Público da Bahia (IDPB) e do Instituto de Direito Administrativo Econômico (Idae), o encontro reunirá agentes políticos e especialistas em direito administrativo e constitucional para debater a disciplina legal sobre a independência e a extensão das prerrogativas das agências reguladoras. O deputado Walter Pinheiro (PTBA) será um dos palestrantes e falará sobre agências reguladoras e políticas públicas. O subchefe da Casa Civil para Coordenação de Ação Governamental, Luiz Alberto dos Santos, irá falar sobre o novo marco legal e institucional das agências reguladoras. Com coordenação científica a cargo dos professores Paulo Modesto, da Universidade Federal da Bahia, e Alexandre Aragão, da Universidade Federal Fluminense e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o encontro discutirá também contrato de gestão, papel e controle das agências, limites de atuação e parcerias público-privadas. Local: Hotel Grand Bittar, SHS, quadra 5, bloco A, Brasília Mais informações: www.direitopublico.com.br/ar
OBSERVATÓRIO DA CONJUNTURA Dia 7, às 19h O projeto é uma iniciativa do comitê de São Paulo do jornal Brasil de Fato e tem como objetivo promover debates mensais centrados nos principais temas da atualidade. O primeiro tema a ser abordado é a imprensa brasileira, seu papel e sua interferência no cenário político nacional, além da importância da democratização dos meios de
SÃO PAULO SEMINÁRIO - O OLHAR CRÍTICO SOBRE A MÍDIA COMO INSTRUMENTO DE EDUCAÇÃO Dia 4, às 9h O evento, que acontece durante o Fórum Mundial Educação, em São Paulo, vai reunir diversas experiências educativas que tentam levar a linguagem da comunicação para dentro da sala de aula e relacionar a mídia com a realidade política, econômica e cultural brasileira. Participarão do debate o professor Mauro Wilton de Souza, titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e coordenador do Grupo de Estudos sobre Práticas de Recepção a Produtos Midiáticos; Célia Marques, da ONG Tver, e coordenadora da Cartilha do Jovem Telespectador;
comunicação para a construção de um projeto popular para o Brasil. Entre os debatedores, José Arbex Jr. do jornal Brasil de Fato; Raimundo Pereira, da revista Reportagem; e Pedro Pomar da revista da Associação de Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp). Local: Apeoesp, Pça. da República, 282, São Paulo Mais informações: (11) 3105-2516, brasildefatosp@terra.com.br
e Adriana Fernandes, do Midiativa Centro Brasileiro de Mídia para Crianças e Adolescentes, coordenadora do projeto Maleta, que realiza oficinas com educadores para estimular o debate em torno do conceito de televisão de qualidade. O objetivo do evento é elaborar, junto com professores, educadores, estudantes universitários, coordenadores pedagógicos e comunicadores um material de referência sobre o assunto, além de levantar subsídios para a possível implementação de um curso de leitura crítica dos meios no ensino fundamental e médio. Um projeto piloto seria iniciado em São Paulo e depois expandido para o restante do país. Local: UniSantana, R. Voluntários da Pátria, 257, bloco A, sala 4, 2º andar, São Paulo Mais informações: (11) 8151-0046
CASA MACUNAÍMA De 1º a 4 Experiência de central pública de comunicação surgida durante o 1º Fórum Social Brasileiro, em Belo Horizonte, no ano passado, a Casa Macunaíma chega a São Paulo para documentar o Fórum Mundial de Educação. A organização espera um público de cerca de 300 pessoas, entre realizadores independentes, comunicadores populares, artistas, educadores, representantes de entidades e estudantes. A Casa fará cobertura nas áreas de vídeo, rádio, fotografia digital, jornal impresso e internet. Além disso terá em sua programação oficinas e debates sobre questões da área. Local: Escola Municipal Derville Alegretti, R. Voluntários da Pátria, 777, São Paulo Mais informações:
(11) 3082-1219, www.casamacunaima.fsb.org.br, adrianotver@yahoo.com.br, PALESTRA - RESERVA LEGAL Dia 5 Promovida pela Escola Superior de Agricultura da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), a palestra “Reserva legal: legislação, uso econômico e importância ambiental” tem como objetivo discutir as principais alterações normativas sobre a reserva legal no Brasil, avaliando seu cumprimento e potenciais usos econômicos e ambientais. Local: Anfiteatro do Departamento de Ciências Florestais, Av. Pádua Dias, 11 CP9, Piracicaba Mais informações: www.ipef.br/ eventos/2004/reservalegal.html.
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CULTURA
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CINEMA
A crise da Argentina, pela lente de Solanas Sérgio Ferrari de Friburgo (Suíça)
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Em Memórias do Saque, o premiado diretor Fernando Solanas tira do esquecimento o processo de corrupção em seu país
A
maior crise econômica da história da Argentina, que culminou com a renúncia do presidente Fernando de La Rúa, está registrada em filme, para que ninguém esqueça o drama que atingiu uma nação. Trata-se de Memórias do Saque, do premiado diretor Fernando Solanas. A obra, que foi apresentada em sessão especial no Festival de Cinema de Berlim – 2004, mostra a crise sob o foco da privatização das empresas públicas sob o regime do ex-presidente Carlos Menem, que Solanas apresenta como a culminação da corrupção na Argentina. Com uma primorosa montagem de entrevistas, imagens do Parlamento, filmagens na rua e diálogos que explicam o desenvolvimento da crise, o documentário de Solamas permite acompanhar a evolução da crise que levou a Argentina a alcançar até então desconhecidos limites de pobreza e endividamento. “É um documentário de investigação, com um roteiro que foi se construindo enquanto os fatos ocorriam. Durante meses busquei, na montagem, a estrutura e progressão dramática do filme, escolhendo temas e dividindo-os em capítulos, como em um livro. Queria que a narração fosse a mais clara possível e que o espectador pudesse reconstruir a história como se fosse um quebra-cabeças”, explica Solanas. Cenas de Memórias do Saque, filme que registra a maior crise econômica da história da Argentina com imagens de rua e entrevistas
OLHAR DO POVO Segundo o diretor, essa divisão em capítulos foi sua homenagem ao cinema mudo, assim como o uso do negro, de títulos e grafismos que favorecem a unidade formal da obra. Ele trabalhou com duas câmeras que estão quase sempre
em movimento. “O filme é como uma viagem, um constante perambular pela realidade do país”, diz. A câmera grande de Alejandro Fenández Mouján e seus colaboradores era objetiva e se movia com um tempo cadenciado. Sua missão era
descrever os cenários de poder e as instituições. A pequena e inseparável câmera do diretor procurou ser um olhar do povo, para recuperar seu ponto de vista. “Entre as duas, filmamos mais de cem horas, às quais se so-
mam 30 de material de arquivo. Eu mesmo sou o narrador. Não foi algo premeditado. Fiz um primeiro exercício provisório e ficou assim. Não é contraditório, no entanto, sou ator direto de grande parte da história que mostramos”. A segunda parte
é um novo filme que Solanas pensa rodar ainda em 2004, o Cantos de uma Argentina latente!, com histórias que expressam solidariedade e esperança daqueles que resistiram. (Portal Planeta Porto Alegre, www.portalportoalegre2003.org)
Diretor de cinema há 40 anos, militante político “anti-sistêmico” desde a juventude, Fernando “Pino” Solanas encarna até a paixão o cinema latino-americano de desafio ao poder. Quase quatro décadas depois de A Hora dos Fornos, seu filme de estréia, sobre a resistência argentina, ele volta ao documentário de investigação e denúncia com Memórias do Saque. Em entrevista concedida pouco depois de ganhar o Urso de Ouro, no Festival de Berlim, e pouco antes de apresentar seu último filme em Mar del Plata, na Argentina, e no Festival de Filmes de Friburgo, na Suíça, ele falou do cinema-resistência e da força dos movimentos sociais. Seu filme Memórias do Saque parece uma investigação-denúncia, convertida em imagens e humanizada por vozes e rostos. Fernando Solanas – De certa maneira, sim. O cidadão médio vive bombardeado pelos meios de informação, que são controlados por grupos econômicos e de poder. Na Argentina aconteceu isso: certos grupos financiaram a desinformação a tal extremo que SAIDEIRA
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“A memória é a principal defesa dos povos” Quem é Expoente do cinema político latino-americano, o argentino Fernando Ezequiel Solanas, mais conhecido como Fernando “Pino” Solanas, 68 anos, recebeu, este ano, o Urso de Ouro especial do Festival Internacional de Cinema de Berlim, pelo conjunto de sua obra. Há mais de 30 anos retrata a realidade de seu país. Exilado político na França entre 1976 e 1984, foi deputado entre 1993 e 1997.
fizeram o povo crer que o Estado era mau, e teríamos de desmantelá-lo. O país foi esvaziado ante o silêncio cúmplice desses meios de informação. Como foi possível que na Argentina, outrora celeiro do mundo, se padecesse de fome? O que se passou? Solanas – Em nome da globalização e do livre comércio, as receitas sócio-econômicas dos organismos internacionais terminaram em genocídio social e no esvaziamento financeiro do país. E aqui há um ponto-chave para entender
tudo isso: a responsabilidade de nossos governantes – seja Carlos Menen (1989-1999) ou Fernando de la Rúa (1999-2001) – não exime nem o Fundo Monetário Internacional (FMI), nem o Banco Mundial e os países que os controlam. É o que procuro mostrar com Memórias do Saque. Nesse filme o senhor fala em crimes de lesa-humanidade? Solanas – Buscando lucros rápidos e extraordinários – muito maiores que as melhores taxas nos países do Norte – nos impuseram planos neo-racistas que suprimiram direitos sociais e condenaram à morte milhões de pessoas, na Argentina e em todo continente. A cada dia, 55
crianças, 35 jovens e adultos e 10 idosos morrem na Argentina por enfermidades curáveis ou má nutrição. É uma média de 35 mil pessoas a cada ano. Este é um conceito-força: foram crimes de lesa-humanidade em tempos de paz. Por que o tema da memória está tão presente na América Latina atual, desde os zapatistas até o Cone Sul? Solanas – Porque a memória é a principal arma de defesa e de sobrevivência dos povos. A cultura é a memória. Ainda mais com esses grandes aparatos de desinformação que tentam bloqueá-la. Porém, a resistência, os massacres, a participação cidadã, as
experiências de lutas passam de boca em boca, de pais a filhos e de avós a netos. E se torna imprescindível voltar a elaborar o que foi verdadeiro e quase nunca é incorporado à história dos vencedores, do poder. E isso justamente quando nosso continente vive um explosivo renascer de consciência, particularmente entre os povos indígenas, sejam os zapatistas, as mobilizações na Bolívia, no Equador etc. Não se corre o risco de ficar só na memória? E o futuro? Solanas – Por sorte, está se fortalecendo o movimento social ativo, do qual o Fórum Social Mundial é a principal expressão. É óbvio que trocar o modelo leva tempo. Mas há sinais positivos. Meu filme, por exemplo, começa e termina com a rebelião popular de dezembro de 2001, que retirou o presidente argentino Fernando de la Rúa. Seu governo durou dois anos e traiu as esperanças do povo. Não cumpriu o que havia prometido, e o tiraram. Foi a primeira revolta antineoliberal da Argentina! O povo aplicou uma nova derrota ao modelo. (SF) NOVAES