Ano 2 • Número 68
R$ 2,00 São Paulo • De 17 a 23 de junho de 2004
Livre comércio aumenta a pobreza
China rejeita soja de mais 15 empresas Maior importadora de soja do mundo, a China cortou as compras de mais 15 empresas brasileiras, por ter encontrado agroquímicos como o fungicida carboxim. Para José Hoffmann, ex-secretário de Agricultura do Rio Grande do Sul, o episódio tem relação com o plantio ilegal de soja transgênica. Pág. 5
Criar um novo partido é a solução? Não, diz Valter Pomar, do PT, para quem o Partido do Socialismo e da Liberdade (PSOL) será uma oposição destrutiva ao governo Lula. Sim, dizem Mário Maestri e Gilberto Calil, do PSOL, partido comprometido com os trabalhadores, cujos direitos históricos vem sendo atacados pelo governo petista. Pág. 14
Em Itaici (SP), 400 agricultores de 68 países de todos os continentes participam da IV Conferência Internacional da Via Campesina, realizada de 14 a 19 de junho. Eles se impõem o desafio de definir estratégias
internacionais para “acabar com o neoliberalismo antes que este acabe com o planeta”. O líder hondurenho Rafael Alegria fala sobre a necessidade de mobilização popular. Pág. 12
Modelo econômico brasileiro está falido Os últimos dados sobre o desempenho da economia brasileira mostram que o elevador parou de despencar, uma vez que a comparação é com o primeiro trimestre de 2003, quando os indicadores foram péssimos,
diz o economista Carlos Eduardo Frickmann Young, da UFRJ. Para os analistas da consultoria Global Invest, o modelo econômico adotado há mais de uma década está esgotado. Pág. 7
Victor Soares/ABR
O trabalho escravo está se tornando comum nos canaviais da região de Piracicaba (SP). Segundo a subdelegacia do Trabalho na região, pelo menos uma vez por mês é descoberto um caso de exploração, como o que envolveu 51 alagoanos que, dia 8, recusaram o pagamento de apenas R$ 30 a R$ 90 por 41 dias trabalhados, além de supostas dívidas em supermercado. Atraídos pela falsa promessa de salários de até R$ 1 mil, cerca de 200 mil bóias-frias migram todos os anos para trabalhar no corte de cana em São Paulo, Estado que concentra 120 das maiores usinas do país. “Quanto mais a riqueza se concentra do lado dos usineiros, mais a exploração fica do lado dos trabalhadores”, afirma a socióloga Maria Aparecida Morais Silva, da Unesp de Araraquara. Pág. 8
Via Campesina em luta contra o neoliberalismo
Agricultores e sem-terra de mais de 60 países discutem rumos da globalização
Acampados festejam posse em Pernambuco
Pág. 5
Venezuela terá referendo ilegal, diz historiador
Pág. 11
FMI condiciona acordo à cessão de gás na Bolívia
Pág. 11
Festa junina revela alma do povo brasileiro
Pág. 16
Estudantes negros realizam ato em defesa de cotas nas universidades, em Brasília
Outra reforma preocupa No meio de pressões, o governo começa a definir o formato da reforma universitária. Tarso Genro, ministro da Educação, divulgou suas propostas: ciclo básico de dois anos, eleições diMarcio Baraldi
Canavieiros são escravizados em São Paulo
Manifestantes protestam, em São Paulo, contra plano neoliberal defendido pela Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad)
João Roberto Ripper
A
participação de movimentos sociais e ONGs, reunidos no Fórum da Sociedade Civil, foi a principal novidade da XI Reunião da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), realizada em São Paulo. As entidades negam que a pobreza e a fome possam ser enfrentadas sem a resolução do endividamento externo, e consideram que os países pobres não terão liberdade para crescer se não controlarem o fluxo de capitais financeiros. Os presidentes Hugo Chávez, da Venezuela, e Fidel Castro, de Cuba, não compareceram. Em carta, Castro lembra que a Unctad foi criada para que o comércio internacional servisse às aspirações do progresso. “O comércio internacional não tem sido instrumento para o desenvolvimento dos países pobres”. Págs. 2, 9 e 10
Anderson Barbosa
Na Unctad, Fórum da Sociedade Civil nega que aumento do comércio internacional impulsione o desenvolvimento
retas para reitor e reserva de cotas para alunos de escolas públicas. O financiamento ainda está completamente indefinido e preocupa professores e estudantes. Pág. 4
E mais: CORRIDA ÀS APOSENTADORIAS – Esse é o recurso dos servidores civis da União para se defender da reforma do regime previdenciário do setor público. No ano passado, 17.453 deles se aposentaram, o maior número desde 1998, e um salto de 134% em relação a 2002. Pág. 6 FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2005 – Com proposta de unir as lutas populares contra o neoliberalismo e a militarização, foi lançado, dia 14, em São Paulo (SP), o V Fórum Social Mundial. O evento quer mostrar que não sabe “só falar” e promete assumir um papel mais transformador. Pág. 3 ÁFRICA – O presidente do Zimbábue, Robert Mugabe, pretende nacionalizar todas as terras férteis de seu país. Por acreditar que estas não podem ser usadas com fins especulativos, o Zimbábue não terá mais zonas rurais privadas. Pág. 13
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De 17 a 23 de junho de 2004
Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Tiago Rodrigo Dória • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
��� • Editor-chefe: Nilton Viana ���• Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Bernardete Toneto, 5555 Marilene Felinto, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu ���• Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino ���• Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles ���• Ilustradores: Agê, Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, 5555 Natália Forcat, Nathan, Novaes, Ohi ���• Editor de Arte: Valter Oliveira Silva ���• Pré Impressão: Helena Sant’Ana ���• Revisão: Dirce Helena Salles ���• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Bruno Fiuza e Cristina Uchôa 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: FolhaGráfica 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
CARTAS DOS LEITORES CRÍTICAS PLANTADAS Pela primeira vez o povo brasileiro elegeu um homem público provindo das lutas sociais, sindicais e comunitárias. Luiz Inácio Lula da Silva é o primeiro presidente da República eleito pela nação como um lutador que de fato veio da pobreza, passou fome, necessidades... assim como a grande maioria do povo brasileiro. Por que há criticas contra esse governo popular? Não há dúvidas de que as críticas plantadas são de politiqueiros que querem mais é derrubar a situação e ganhar dinheiro, ou seja, poder e mordomias que só em cargos políticos são oferecidos. Se o José Serra ganhasse a eleição, evidente que não estaria fazendo melhor que a equipe do presidente Lula. Nós, o povo, que finalmente elegemos uma pessoa de caráter e sentimentos igualitários, precisamos parar para pensar e não alimentar as artimanhas dos burgueses que jogam pedras há séculos nos excluídos desta desigual sociedade, onde poucos têm demais e muitos nada têm. Foram anos de ditadura, de presidentes eleitos pela burguesia imunda e intolerante. Célio Borba Curitiba (PR) DO TOSTÃO AO BILHÃO Deixando de lado o crime organizado não oficial – o qual só funciona devido ao seu estreito relacionamento com a parte pobre do crime organizado
oficial –, relembro alguns dados sobre assaltos aos cofres públicos. Muitos ficaram insolúveis e outros tantos ainda estão por aí. São eles, além do que se esvai continuamente na sangria que nos é imposta pelo capital estrangeiro e pelo capital internacional, os seguintes: o superfaturamento de obras públicas e compras; as exportações e importações fraudulentas; a sonegação de impostos; a evasão de divisas; os golpes em cima da arrecadação previdenciária, onde o próprio governo tem sido o maior fraudador. O critério da nossa justiça em todo e qualquer caso é o que segue a escala do tostão ao bilhão, ou seja, quem rouba pouco sofre todos os rigores da lei, é preso, julgado, condenado e cumpre pena. Já aquele que começa a subir na citada escala será sempre proporcionalmente beneficiado com todas as vantagens da lei, podendo inclusive no balcão judiciário – usando do dinheiro roubado – comprar desde habeas-corpus até sentenças favoráveis, com as quais é inocentado, apesar das provas em contrário. O pior é que, tanto no judiciário, como no Ministério Público e na polícia, predomina uma espécie de intercorporativismo onde aquele que não é corrupto peca pela pura e simples omissão, faz que não vê o que está à sua volta. João Carlos da Luz Gomes Porto Alegre (RS)
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NOSSA OPINIÃO
Unctad: é preciso distribuir a riqueza
O
crescimento da economia é o caminho para assegurar emprego e resolver os problemas gerados pela miséria nos países do chamado Terceiro Mundo, dizem os economistas e especialistas. Essa percepção marcou a própria criação da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), em 1964. Mas as coisas não são assim, e o Brasil é um bom exemplo disso. Entre o final dos anos 60 e meados dos anos 70, época do “milagre econômico” criado pela ditadura militar, a economia brasileira foi a que mais cresceu no mundo. O Produto Interno Bruto aumentou, em média, 10% ao ano. Ao longo do século 20 – especialmente a partir dos anos 30, com a industrialização promovida por Getúlio Vargas, até o começo dos anos 80 –, a economia brasileira apresentou uma extraordinária expansão. Entre 1901 e 2000, o PIB foi multiplicado por 110 e a população por 10. Na média aritmética, um brasileiro nascido no ano 2000 deveria ser onze vezes mais rico do que um brasileiro nascido em 1901. Na prática, a maioria da população continua miserável hoje, como era no começo do século 20. O “bolo” só serviu para engordar os mais ricos.
Em 1960, os 10% mais ricos do país ganhavam 34 vezes o recebido pelos 10% mais pobres; a diferença chegou a 60 vezes em 1991. Hoje, os 10% mais ricos do Brasil recebem uma renda 58,7 vezes superior à dos 10% mais pobres. A tragédia social fica mais facilmente perceptível quando se considera o índice Gini adotado pela ONU. O índice, numa variação de 1 a 0, serve para medir internacionalmente a distribuição de renda. Quanto mais perto do zero, melhor a distribuição (na Suécia e no Japão o índice é de 0,2; nos Estados Unidos é de 0,4). O Gini do Brasil permanece estacionado em 0,6. É um dos piores do mundo: só perde para Namíbia (0,7), Botsuana e Serra Leoa (0,63). O agronegócio fornece outro exemplo trágico da falácia ideológica do “desenvolvimentismo”. Hoje é cantado como chave e esperança de crescimento da economia brasileira, por trazer bilhões de dólares para o país. Mas nunca se fala de seu outro lado: emprega trabalho escravo e/ou a exploração brutal dos corpos dos trabalhadores (por exemplo, os cortadores de cana do interior de São Paulo, região conhecida como “Califórnia brasileira”, por sua riqueza e prosperidade);
as empresas exportadoras de soja, açúcar e outros produtos agrícolas, beneficiadas pela Lei Kandir, não pagam impostos para as localidades onde as plantações estão instaladas; exaurem o solo, graças à prática de imensas monoculturas, sem falar no uso de tecnologias sobre as quais a ciência ainda não deu a última palavra, como a dos transgênicos. Concluímos, daí, que o crescimento econômico, por si só, não garante nada em termos da luta contra a pobreza e o desemprego. O problema é: como distribuir a renda e a riqueza nacional? Como eliminar o abismo entre ricos e pobres? Como garantir que aqueles que trabalham e produzem a riqueza poderão desfrutar dos benefícios? A “ideologia desenvolvimentista” tenta obscurecer essas questões, fazendo a apologia do crescimento. Antônio Delfim Netto, arquiteto do “milagre econômico” da ditadura, dizia que primeiro o bolo tem que crescer, para depois dividir. Mas a elite brasileira só se lembra da primeira metade da frase. Frente à necessidade de distribuir a riqueza produzida pelos trabalhadores, essa elite, como dizia Florestan Fernandes, é antinacional, anti-social e antidemocrática.
FALA ZÉ
OHI
CRÔNICA
Uma história não divulgada
Mário Augusto Jakobskind A grande mídia de um modo geral deu grande ênfase técnica à presença em águas cariocas do porta-aviões Ronald Reagan, dos Estados Unidos, que participou de exercícios conjuntos com a Marinha brasileira. Com certo deslumbramento, os grandes jornais destacaram, entre outras coisas, que um dos mais sofisticados porta-aviões do mundo, com 90 mil toneladas, mede 332 metros de cumprimento, o equivalente ao Empire State Building, o prédio mais alto de Nova York depois da destruição das Torres Gêmeas do Wolrd Trade Center. O Ronald Reagan, que parou para homenagear o presidente estadunidense com o mesmo nome falecido na semana passada, tem um custo estimado de 4 bilhões de dólares e é capaz de transportar 80 aviões e seis mil marinheiros, além de ser movido a energia nuclear e poder operar 20 anos sem reabastecimento. O detalhamento das “maravilhas” do porta-aviões levou os jornais a esquecer um detalhe importante e sintomático. O consulado estadunidense no Rio de Janeiro não confirmou nem desmentiu, preferiu silenciar, sobre um fato que não passou desapercebido para vários cariocas. Os milhares de tripulantes do Ronald Reagan visitaram o Rio de Janeiro à paisana. Saíram em grupos, alguns deles demonstrando um comportamento extravagante. No calçadão de Copacabana, quatro marinheiros, provocativamente, davam saltos em frente às pessoas. Numa dessas vezes, um cidadão carioca, sentindo-se
Paulo Araújo/AE
CONSELHO POLÍTICO
incomodado, dirigiu-se em alto e bom som para o grupo com o tradicional “Yankee go home” (Estrangeiros, vão pra casa). Quem assistiu à cena parou por alguns instantes imaginando que o fato poderia originar um incidente de graves proporções, o que revelaria a identidade do grupo. Um dos integrantes, parecendo ser o chefe dos marinheiros, percebeu a possibilidade de acontecer um incidente, chamou atenção dos seus pares e pediu desculpas pelo que tinha acontecido, preferindo engolir em seco o “Yankee go home”. O fato poderia passar desapercebido não tivesse sido testemunhado por um repórter que estava no local. A imprensa nada divulgou, muito menos os pauteiros dos jornais se preocuparam em destacar que a tripulação do porta-aviões Ronald Reagan circulou pelo Rio de Janeiro
sem farda, num sinal dos tempos, e um fato que mereceria algum tipo de registro jornalístico. A grande mídia preferiu informar, também com destaque, que a “maravilha tecnológica pós-moderna” do porta-aviões é dotada de três cabos capazes de frear um avião de 28 toneladas, voando a 240 quilômetros. Ou ainda que outro grupo de quatro marinheiros foi pintar uma escola em um bairro da cidade. O fato foi muito divulgado pela TV, da mesma forma que a informação segundo a qual o porta-aviões tem suficiente alimento e suprimentos para permanecer em alto mar por 90 dias, oferecendo diariamente 18.150 refeições e um milhão e 200 mil litros de água potável proveniente do mar. Mário Augusto Jakobskind é jornalista e diretor da Associação Brasileira de Imprensa
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NACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Militarização é tema central em 2005
“T
emos de enfrentar os desafios de outra forma, não apenas dizendo que outro mundo é possível. Dizem que só falamos e não fazemos nada. Para mudar o mundo, temos de estar dispostos a nos transformarmos e a nosso processo de organização”. A análise de Teivo Teivainen, do Network Institute for Global Democracy, foi feita no dia 14, em São Paulo, no lançamento da quinta edição do Fórum Social Mundial (FSM). Com o tema “Porto Alegre 2005: novos desafios frente à dominação e à militarização neoliberal”, o evento será realizado em Porto Alegre (RS), de 26 a 31 de janeiro de 2005. O evento deverá inaugurar a ampliação do processo de mobilização para o FSM e uma nova proposta metodológica, discutida na reunião do Conselho Internacional do FSM, realizada em abril , na Itália, além da mobilização para o Fórum Social das Américas, que será realizado em Quito, no Equador, de 25 a 30 de julho. Segundo Moema Miranda, coordenadora do Ibase, esgotou-se o modelo de muitas oficinas autogestionadas, que não estabeleciam um diálogo comum. Excesso de debates vão dar lugar a articulações temáticas. A nova metodologia busca facilitar as articulações entre os participantes do processo FSM. Entidades, organizações, movimentos sociais e demais envolvidos poderão dizer, pelo questionário-consulta (disponível no endereço eletrônico www.forumsocialmundial.org.br), quais as lutas, propostas ou desafios mundiais consideram importantes como pauta a ser debatida durante o FSM e quais as atividades que eles
Maniestação durante o Fórum da Índia, em 2004: a continuidade do movimento e a realização do próximo Fórum Social Mundial estão em fase de organização
gostariam de desenvolver em Porto Alegre. Pelas respostas, será feito um mapeamento dos interesses das diversas organizações, embora o início das inscrições das atividades esteja previsto para setembro. Miriam Nobre, que integra a Marcha Mundial das Mulheres, lembrou que o comitê de organização do FSM no Brasil é composto por 24 organizações. Segundo ela, “a nova metodologia vai investir na experiência e na prática da militan-
DIREITOS HUMANOS
Entidades denunciam violência no campo da Redação
Um documento distribuído em Brasília, dia 9, pela Organização Internacional pelo Direito à Alimentação (Fian), Via Campesina e Fórum Nacional da Reforma Agrária, denuncia que, no Brasil, se intensificam a violência no campo e o trabalho escravo, enquanto o Poder Judiciário se mostra cada vez mais parcial em favor dos latifundiários. O texto apresenta algumas das principais observações feitas por uma missão internacional, entre os dias 3 e 6, nos Estados de Minas Gerais, Pará e Pernambuco. As notas referem-se às ações do governo federal, no âmbito da Campanha Global por Reforma Agrária. A missão da Fian e da Via Campesina constatou que, no Sul do Pará, onde há 12 mil famílias acampadas, até agora não ocorreu nenhum assentamento para as 8.500 famílias, conforme previsto para este ano. Em âmbito nacional, a situação também é alarmante, pois segundo o próprio ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, das 115 mil famílias que deveriam ser assentadas em 2004, apenas 17 mil já receberam terra em todo o país. Em Marabá (PA), integrantes da missão também conversaram com vítimas de trabalho escravo. Segundo testemunhos, a expansão da fronteira agrícola se faz com utilização de mão-de-obra escravizada e provoca destruições irreparáveis ao meio ambiente. Em Pernambuco, há mais de 40 mil famílias acampadas. Em algumas regiões, há casos de grupos que estão há sete anos sem receber a concessão de uso de terras que não cumprem
função social. A demora da emissão de títulos é provocada por latifundiários, que recorrem a várias possibilidades para interpor recursos judiciais nos processos de desapropriação, em especial em âmbito regional, onde as relações entre juízes e proprietários de terras são muito próximas.
VIOLÊNCIA AO VIVO No Engenho Prado, 280 famílias foram despejadas em novembro de 2003, depois de mais de sete anos de cultivo e vida na terra. Na Usina Aliança, no ano passado, dois trabalhadores foram assassinados. As 600 famílias acampadas seguem sem acesso a crédito agrícola e às sementes. A missão observou os efeitos negativos das políticas de mercado de terra promovidas pelo Banco Mundial. No programa “Para Terra”, teoricamente as famílias recebem créditos e subsídios para comprar terra, construir casas e para infraestrutura, como eletricidade, água; bem como para assistência técnica. Nas duas comunidades visitadas em Minas Gerais – Jaíba e Pintópolis – as famílias não receberam apoio técnico ou financeiro para produzir e não estão podendo pagar as terras. Membros da missão sentiram de perto a violência: dia 7, foram atacados a tiros por um fazendeiro, quando passavam de carro próximo à fazenda, aproximadamente a 15 quilômetros de Montes Claros, no Norte de Minas. Ninguém foi ferido. A missão enfatiza a importância da desburocratização das vistorias e do fortalecimento do combate da Polícia Federal ao trabalho escravo e às violências.
cia, mostrando nossa rejeição a essa sociedade de mercado”. Entre as principais mudanças do Fórum, definidas durante reunião do Conselho Internacional, na Itália, estão a possibilidade de aglutinar oficinas e seminários, a aplicação dos questionários sobre temas e atividades do FSM, definição do grupo de grandes atividades a partir do resultado da consulta, garantia de autonomia e diversidade durante todo o proces-
so e fechamento do programa do evento em novembro. Criado em 2001, o Fórum realizou 420 atividades no primeiro ano e 1.200 em 2004. Seu objetivo é criar um espaço internacional para a reflexão e organização de todos os que se contrapõem à globalização e estão construindo alternativas para favorecer o desenvolvimento humano, buscando a superação da dominação dos mercados em cada país e nas re-
lações internacionais.Em janeiro deste ano, pela primeira vez o FSM aconteceu fora do Brasil, em Mumbai, na Índia, numa tentativa de acelerar o processo de internacionalização do movimento. O último FSM contou com a presença de 74.126 pessoas (54 mil a mais que o primeiro, em 2001), representados por 1.653 organizações de 117 países. (Com Adital, www.adital.com.br, e Agência Carta Maior, www.agencia cartamaior.com.br)
UNIVERSIDADE
Avança greve em São Paulo
Luís Brasilino da Redação “Estamos no 20º dia de greve e, até agora, o que vimos foi uma insensibilidade muito grande do reitores e do governo do Estado com relação aos trabalhadores”. A frase, indignada, é de Magno de Carvalho, diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Universidade de São Paulo (Sintusp), que participou da manifestação em que funcionários e estudantes da Universidade de São Paulo (USP) trancaram, no dia 15, o portão principal da instituição. O ato durou cerca de oito horas e contou com mais de mil pessoas, dispostas a expor o problema para a população. Segundo Carvalho, o Sintusp resolveu “radicalizar” pois as greves na educação, por não gerar prejuízos imediatos, costumam durar muito tempo. Paulo Otero
Bia Barbosa de São Paulo (SP)
Antônio Milena/ABr
De volta a Porto Alegre, evento buscará articulação de movimentos sociais a partir de assuntos comuns
A paralisação de professores e funcionários da USP, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp) começou no final de maio, quando as reitorias de cada instituição apresentaram proposta de 0% de reajuste salarial. No entanto, apesar do objetivo inicial de recuperar perdas salariais, a mobilização começa a assumir a bandeira de defesa do ensino público. “Não podemos ter uma postura corporativista pois, agindo dessa forma, daqui a pouco não teremos nem emprego”, explica Carvalho.
IMPOSTO PARA EDUCAÇÃO Essa postura explica uma das reivindicações mais importantes da greve, ao lado do reajuste de 16%: a ampliação, de 9,57% para 11,6%, do repasse do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS)
para a Educação. Exemplo disso é a declaração de Milton Vieira do Prado Júnior, presidente da Associação dos Docentes da Unesp (Adunesp), para quem a mobilização cresceu aumentando a pressão sobre as reitorias. Segundo ele, uma proposta real de reajuste deve ser anunciada na negociação do dia 18. “Porém, mesmo que isso ocorra e a paralisação esfrie, a mobilização em torno do aumento no repasse continuará a mesma”, promete Prado. Os alunos esperam que a mobilização continue como está, pelo menos até a Assembléia Legistiva de São Paulo votar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), com a ampliação da fatia do ICMS para o ensino. A votação deve acontecer no final do mês. Até lá, os estudantes, também parados, esperam constituir um comando unificado de greve entre as três universidades.
Diversidade nas ruas A Parada Gay de 2004 reuniu mais de 1,8 milhão de pessoas na Avenida Paulista, centro financeiro de São Paulo, no dia 13 de junho. O movimento de Gays, Lésbicas, Bissexuas e Transgêneros (GLBT) tem como lema este ano: “Temos Orgulho e Família”, em referência à atual luta pelo reconhecimento de seus direitos civis e pelo combate ao preconceito.
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É tudo grátis Você sabe quanto a TV Globo paga para renovar sua concessão – isto é, pelo “aluguel” de um espaço que pertence ao povo brasileiro? Zero. E não é só a Globo. Nenhuma emissora comercial paga para renovar. É a filantropia de Estado a serviço do capital. Chega de dar dinheiro à NET A ordem, taxativa, é do Tribunal de Contas. Foi feita uma longa auditoria nas relações entre a NET Comunicações (ex-Globo Cabo) e o BNDES. O relator, ministro Lincoln Magalhães Rocha, diz: “O BNDES tem que parar de aportar recursos na NET, pois seus prejuízos acumulados nos últimos sete anos já somavam R$ 3,8 bilhões”. O resultado completo da investigação está no Diário Oficial da União de 15 de março. BNDES doou R$ 300 milhões à NET “Os R$ 300 milhões (quase 100 milhões de dólares) que o BNDES destinou à NET em 2002 não foram suficientes para modificar a situação financeira da empresa”, diz o relator do Tribunal de Contas, ministro Lincoln Magalhães Rocha. Só o presidente do BNDES da época não viu que o banco estava perdendo mais R$ 300 milhões, que significavam pouco para a NET, com dívidas de quase R$ 4 bilhões. Anatel quer ajudar a NET O superintendente de Serviços de Comunicação de Massa da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Ara Apqar Minassian, anunciou que até a primeira quinzena de julho a população de baixa renda terá acesso à TV a cabo. A idéia é permitir que as operadoras a cabo vendam à população de baixa renda uma “cesta básica” de canais a cabo: um educativo, um esportivo e um infantil, junto com os canais da televisão aberta. É desse jeito que a Anatel tenta resolver o problema das operadoras a cabo que estão indo à falência porque o número de assinantes cai todo ano – usando a Lei de Sílvio Santos, isto é, pegando dinheiro dos pobres. Rádio comunitária legal Para se obter uma autorização de funcionamento, a rádio comunitária deve encaminhar pedido ao Ministério das Comunicações (MC). O ministério analisa a papelada e concede ou não a autorização. Por isso muitas rádios têm autorização oficial mas não são nada comunitárias. Não é o papel na parede que diz se uma rádio é comunitária ou não. O papel na parede diz que a emissora não pode sofrer repressão policial. Só isso. TV Senado no ar Com uma equipe de 223 funcionários, sendo 165 terceirizados, a TV Senado é a pioneira e a melhor estruturada entre as televisões legislativas. O seu sinal cobre todo o país, alcançando cerca de 8 milhões de antenas parabólicas e 3,5 milhões de televisores com TV por assinatura. Foi inaugurada em 1996. E tem uma programação muito boa. Filme mostra efeitos do McDonald´s Está sendo exibido nos Estados Unidos, e é sucesso de bilheteria, o filme Super Size Me. Trata-se de um documentário independente que acompanha a deterioração da saúde de Morgan Spurlock, roteirista, produtor, diretor e astro do filme. Por trinta dias ele se alimentou exclusivamente de comida do McDonald’s. Resultado: Spurlock engordou muito, seu nível de colesterol subiu, seu fígado quase estourou. Finalmente, seus desejos sexuais quase chegaram a zero. O filme não tem data para chegar ao Brasil.
EDUCAÇÃO
De onde virá a verba para a reforma? Às vésperas da primeira audiência pública, dia 23, educadores questionam origem dos recursos Luís Brasilino da Redação
A
reforma universitária avança em Brasília. Segundo os reitores da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), o governo tem reafirmado o caráter público da Educação e se responsabilizado por seu financiamento. Porém, nem todos pensam dessa forma. Para o professor Roberto Leher, pesquisador do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), é surpreendente o fato de a proposta não definir de onde virão os recursos. Esse debate terá seqüência dia 23, em Manaus (AM), quando acontecerá a primeira audiência pública sobre reforma universitária. A discussão será norteada pelos “enunciados gerais sobre os princípios e as diretrizes da Reforma da Educação Superior”, texto divulgado dia 7 por Tarso Genro, ministro da Educação. Esse foi o primeiro documento apresentado pelo Ministério da Educação (MEC) sobre o tema, e consiste em um conjunto de pareceres de um grupo executivo do governo que vai orientar a formulação da Lei Orgânica para regulamentar a reforma universitária. Após discussão com a comunidade acadêmica e a sociedade civil, o texto deve ser, em novembro, encaminhado ao Congresso. Contudo, não há nada de muito concreto. Os principais destaques da proposta do governo são a reserva de vagas nas universidades para alunos de escolas públicas (veja reportagem abaixo), a criação de um ciclo inicial de formação com prazo mínimo de dois anos, uma política
Antônio Cruz/ABr
Dioclécio Luz
NACIONAL
Pouco se fala sobre a assistência estudantil; há preocupação com aumento de vagas mas não com a permanência na universidade
de financiamento que assegure à Educação recursos vínculados à alíquota de impostos e a eleição direta para reitor. Leher contesta, principalmente, o fato de o governo não alocar verbas orçamentárias para o ensino. Gustavo Petta, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), concorda que o financiamento das universidades públicas é o grande impasse dessa reforma: “Está sintonizado com o impasse na política econômica ortodoxa aplicada pelo governo federal, limitando os investimentos sociais”.
FINANCIAMENTO INSUFICIENTE A questão preocupa pois, segundo o professor Moacir Gadotti, diretor geral do Instituto Paulo Freire
(IPF), é consenso nacional que o financiamento para o setor é insuficiente. Para Cícero Rodrigues, reitor da Universidade Federal Fluminense e vice-presidente da Andifes, as verbas precisam aumentar para propiciar aos trabalhadores um ambiente mais digno, recuperar a infra-estrutura e manter as instituições. A seu ver, essa convicção é contemplada pelo MEC. Mas Leher insiste : “Não existe nenhuma menção (no documento) à Assistência Estudantil. Isso é espantoso. Como é possível o governo propor uma expansão nas vagas e incentivar o ingresso de camadas pobres na universidade se não oferece condições para essas pessoas continuarem nas escolas?”, conclui. Para ele, essa mesma lógica
pode prejudicar a criação do ciclo inicial de formação. Ao oferecer um diploma para o aluno que concluir essa parte do curso e, ao mesmo tempo, não propiciar meios de ele permanecer na escola, o projeto cria um “corte de classe”. A parte menos favorecida faria esse curso mais amplo, enquanto os mais ricos chegariam ao específico. Tanto Rodrigues e Gadotti quanto a UNE acham que a idéia precisa ser muito debatida, mas pode ser boa. Para o diretor do IPF, a implantação do ciclo básico precisa prestar atenção aos casos já existentes. De modo geral, porém, Gadotti acredita que a idéia resgata o sentido da universidade. Sobre as eleições diretas para reitor, não existe oposição fora dos setores conservadores da sociedade.
Governo quer ampliar política de cotas Maíra Kubík Mano de São Paulo (SP) Cantando os versos “Congresso eu quero estudar / adote as cotas para o Brasil melhorar”, um grupo de estudantes negros fez uma manifestação, dia 15, na Câmara dos Deputados, em Brasília, em defesa da reserva de cotas na universidade. Eles reivindicam uma lei federal semelhante à implementada, em 2003, pela governadora do Rio de Janeiro, Rosinha Matheus, que concedeu a estudantes negros, com deficiência ou provenientes de escolas públicas, reserva de vagas nas instituições de ensino superior do Estado – Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) e Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). A idéia foi adotada por mais duas instituições estaduais, a Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul e a Universidade Estadual da Bahia, e por uma federal, a Universidade de Brasília. Com base nessas iniciativas isoladas, o governo federal pretende agora ampliar a política de cotas para as demais universidades públicas. Uma primeira proposta destina, no mínimo, 50% das vagas a estudantes que cursaram todo o ensino médio na rede pública. Esse projeto de lei já foi encaminhado com urgência ao Congresso e deve ser votado até agosto. Também com projeto de lei enviado para votação imediata, foi criado o programa Universidade Para Todos, que institui bolsas obrigatórias nas universidades particulares. Segundo o governo, muitas instituições privadas estão com impostos atrasados. Caso adotem o programa, ficarão isentas da dívida. Considerado por muitos setores da área da Educação como uma manobra para estatização das va-
instituições filantrópicas (sem fins lucrativos) devem manter a taxa obrigatória de 20%.
Renato Stockler
Espelho
NEGROS E ÍNDIOS
Política de cotas é a que mais tem levantado polêmicas na discussão da reforma
gas, o Universidade Para Todos gera polêmica. Segundo Rogério Silva, estudante da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e diretor da União Nacional dos Estudantes (UNE), “o problema é o governo insistir na manutenção do financiamento das instituições particulares com verbas públicas, que deveriam
ser destinadas exclusivamente ao ensino superior público”. Além disso, a proposta inicial do Ministério da Educação (MEC) corre risco de não ser aprovada na íntegra. As associações mantenedoras das universidades pressionam o governo para diminuir de 10% para 5% as vagas reservadas. As
No programa Universidade Para Todos, parte das bolsas deve ser destinada aos que se autodeclararem negros ou indígenas. O último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indica que 46% da população é afrodescendente. No entanto, a maior universidade do país, a Universidade de São Paulo (USP), tem apenas 9% de estudantes negros. Para o cineasta Joel Zito Araújo, o Brasil tem uma grande dívida social: “Nossa tendência é de não querer ver a realidade histórica. É isso que nos faz aceitar esse enorme apartheid social que é a universidade”. O desempenho dos quase 7 mil estudantes aprovados no ano passado colabora com a imagem do programa. A evasão entre os negros foi menor que entre os brancos e os cotistas atingiram um desempenho acadêmico superior à média das universidades. Apesar da ação afirmativa agradar aos movimentos sociais, as cotas para negros ainda apresentam problemas. Na Uerj, em 2003, quase 80% dos aprovados no sistema de reserva de vagas foram considerados brancos apesar de terem se autodeclarado negros. Na mesma universidade, há denúncias de discriminação e humilhação. Durante o trote estudantil deste ano, calouros tiveram seus rostos pintados com frases como “passei por cotas”. Em ambos projetos, o estudante deve comprovar que vem de família de baixa renda. Porém, gastos como moradia, alimentação, material didático, transporte e lazer não estão inclusos, o que pode dificultar a estabilidade durante curso.
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NACIONAL PERNAMBUCO
Sem-terra comemoram posse inédita
Rodrigo Valente de Recife (PE)
O
acampamento sem-terra Quixabinha, no município de Petrolândia, sertão de Pernambuco, comemorou a imissão de posse de 14,6 mil hectares, dia 11. As terras eram da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) e foram negociadas com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), para o assentamento de 450 famílias. Os dois organismos prometem desapropriar outras áreas da região, para assentar as quase duas mil famílias que continuam acampadas. “A festa teve grande simbologia por ter comemorado a primeira imissão de posse em Pernambuco durante o governo Lula”, explicou Edílson Barbosa, representante da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Pernambuco. “Nunca tivemos dúvida de que essa terra um dia seria dividida entre os trabalhadores. É um grande exemplo de luta para o município de Petrolândia”, disse. O presidente da Chesf, Dilton da Conti Oliveira, esteve presente
Marcello Casal Jr./ABr
Enquanto CPI da Terra discute morosidade da reforma agrária, acampados comemoram imissão de posse de terras “o tempo de baixar a cabeça para a burguesia e o latifúndio acabou”.
REMOÇÃO DE OBSTÁCULOS
A festa Quixabinha comemorou a primeira imissão de posse do governo Lula no Estado de Pernambuco
ao ato político, com cerca de duas mil pessoas. “A Chesf tem 56 anos de existência. Agora, fazendo e ajudando a reforma agrária, amplia ainda mais sua função social”, discursou. Após a imissão de posse,
o Incra tem a responsabilidade de cuidar para que as famílias tenham condições de viver e produzir nos mais de 14 mil hectares. Jaime Amorim, da direção estadual do MST, falou da luta de mais
de cinco anos do acampamento Quixabinha. “Nós ocupamos a região porque o governo FHC queria acabar com os projetos de assentamento na área para privatizar a Chesf”, lembrou, ressaltando que
Durante audiência pública na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Terra, dia 15, o presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), Plínio de Arruda Sampaio, afirmou ter levado ao Congresso um elenco de providências para a aceleração da reforma agrária. Em resposta ao senador Eduardo Suplicy (PT-SP), Sampaio disse que as medidas poderiam ser tomadas rapidamente se houvesse consenso a respeito da urgência de se removerem os obstáculos legais que impedem o processo de reforma agrária. Segundo o presidente da Abra, a legislação impede a desconcentração de terra no país. “Há também uma série de pedidos de informação que poderiam esclarecer, junto ao Judiciário e à Polícia Federal, por que o processo não avança”, acrescentou. Além de Suplicy, participaram dos debates na CPI a senadora Ana Júlia Carepa (PT-PA) e os senadores Sibá Machado (PT-AC), Arthur Virgílio Neto (PSDB-AM) e Sérgio Guerra (PSDB-PE).
COMÉRCIO EXTERIOR
Marco Aurélio Weissheimer de Porto Alegre (RS) Uma decisão anunciada pelo governo chinês, dia 14, praticamente extinguiu o comércio de soja entre China, maior importador mundial, e Brasil, segundo maior produtor do mundo. Mais de 15 empresas foram acrescentadas à lista dos fornecedores proibidos de exportar para o país. A China barrou temporariamente essas empresas de exportarem soja, alegando ter encontrado produtos agroquímicos como o fungicida “carboxim”, que teriam sido usados para tratar sementes que deveriam ser usadas para o plantio, mas acabaram misturadas à soja em grão. A agência chinesa responsável pelo controle alegou que o objetivo da proibição é proteger a saúde dos consumidores. Com a decisão, já são 22 as empresas brasileiras ou unidades de transnacionais de comércio de grãos proibidas de exportarem soja brasileira para a China, cujos importadores rechaçaram, desde abril, 239 mil tonela-
ANÁLISE
José Hermeto Hoffmann Diante da suspeita de que a soja gaúcha exportada para a China estaria misturada com sementes envenenadas, o Rio Grande do Sul corre o risco de jogar fora uma credibilidade construída por décadas. O pior é que muitas pessoas com responsabilidade, tanto da área governamental quanto privada, se esforçam para nos convencer de que tudo não passa de uma barganha comercial dos chineses. Que bom se assim fosse. Mas infelizmente não é só isso. A China tem uma preocupação maior do que alguns países de Primeiro Mundo em relação ao controle da qualidade alimentar, tanto que possui um ministério estruturado só para isso. Em segundo lugar, é no mínimo ingenuidade acreditar que a presença de sementes envenenadas seja apenas um pretexto para a devolução de cargas. Teriam outros pretextos mais plausíveis, como o nível de resíduo
Jonathan Campos/ Gazeta do Povo
China dá um basta à soja brasileira contaminada
Descarregamento de soja: decisão do governo chinês pode estar ligada ao plantio ilegal de soja transgênica
das de soja brasileira devido à contaminação das cargas por sementes tratadas com agroquímicos. Alguns países permitem a presença de sementes de soja até um limite estipulado. Na Europa e nos Estados Unidos o limite é de três sementes por quilo de soja. O Brasil revisou sua legislação, semana passada, passando a permitir ape-
nas uma semente por quilo, mas a China exige a chamada “tolerância zero” para a soja brasileira. Com a ampliação da lista negra das empresas brasileiras, praticamente todo o volume entre 3 e 3,5 milhões de toneladas de soja brasileira – avaliado entre 1,2 bilhão de dólares e 1,4 bilhão de dólares – encomendado por empresas chinesas para
embarque entre maio e julho, está comprometido.
AUMENTO DE VENDAS Apesar da suspeita levantada pela China em relação à soja brasileira, as vendas do produto seguem aumentando no exterior, em comparação com os números de 2003. Segundo dados da Secre-
taria de Comercio Exterior (Secex), a receita média do Brasil com as exportações da soja aumentou, em junho, mais de 109%, em relação ao mesmo período de 2003. Isso significa que, em junho do ano passado, o Brasil exportou em média 44,3 milhões de dólares, enquanto atualmente o mesmo setor vende por dia uma média de 93,1 milhões de dólares em soja. Mas o problema com a China preocupa os produtores brasileiros, que já estimam perdas com o episódio. Segundo o vice-presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Carlos Sperotto, se as cargas devolvidas não fossem mais comercializadas, os prejuízos com o não-embarque da soja brasileira poderiam alcançar 1 bilhão de dólares. Esse prejuízo, segundo Sperotto, ainda não está contabilizado. “Não vamos ficar com essa mercadoria sem comercializar”, afirmou o produtor que também é presidente da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul). (Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br)
Quem envevenou a soja de glifosato, que na soja transgênica é maior e, não raro, acima dos padrões admitidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Aos que acreditam na teoria do pretexto, um alerta. Só tem um jeito para acabar com os pretextos: eliminar os motivos que os originam. E aqui vai um rol deles: semente envenenada, sujeira, resíduo de agrotóxicos, transgenia, excesso de umidade, mofo etc.
CRIME PREMEDITADO Vamos ao que de fato aconteceu. No início de 2003, o governo federal proibiu o plantio da soja transgênica e os sojicultores adquiriram a semente convencional. Mas, meses depois, atendendo a pressões políticas das mais diversas, foi liberado o plantio de mais uma safra modificada. Com isso, muita soja transgênica foi plantada e sobrou a semente convencional. Aí reside o fato novo relevante: a semente tratada com veneno ficou
na mão de produtores por ocasião da colheita da safra. Até então a semente excedente ficava com as sementeiras e nem por isso elas eram misturadas nas cargas de soja comercial. Qualquer agricultor sabe que semente de cor avermelhada contém veneno. Assim, misturar semente envenenada com o grão comercial foi um ato consciente, portanto criminoso. O grave é que muitos inocentes estão pagando a conta: a maioria absoluta de sojicultores que não cometeram o crime e que estão perdendo até 20 % no preço da sua produção; as cooperativas que ficam com a soja estocada; o país que vê o seu PIB e a balança comercial afetados; e, por último, os consumidores que vão ingerir os derivados dessa soja sem saber seu grau de contaminação e nem os eventuais males a ela associados. Por que chegamos a este ponto? Uma análise honesta e isenta indicará que essa contaminação tem rela-
ção direta com o plantio ilegal da soja transgênica. Sem ela não teríamos chegado ao ponto de ter excedente de semente envenenada na mão de agricultores. E, principalmente, sem ela não teríamos chegado a essa cultura da desobediência civil generalizada no campo. Se pudemos plantar soja transgênica, que é proibida, por que não misturar semente envenenada com grão comercial?
OPORTUNISMO E IMEDIATISMO Portanto, além dos autores da mistura, tem mais gente responsável. Falo das lideranças que estimularam o plantio ilegal, venderam facilidades, iludiram e enganaram os lavradores, os mesmos que esconderam dos agricultores o pagamento dos royalties para a indústria. Infelizmente, o estrago está feito. Agora precisamos todos nos debruçar na tarefa de preservar a qualidade do alimento derivado da nossa soja e recuperar a credibilidade no mercado internacional.
No governo Olívio Dutra buscamos valorizar a agricultura familiar e o agronegócio. Barramos a entrada de arroz asiático triangulado pelos parceiros do Mercosul, não permitimos que a nossa carne suína e avícola perdessem mercados por causa dos focos de aftosa e enfrentamos, com firmeza, uma tentativa dos chineses, de desqualificar a nossa soja, sob a alegação de que uma carga chegara a Pequim parcialmente mofada. Provamos que a soja mofada era argentina, de um navio que carregara em Buenos Aires e aqui só completara a carga. A partir daí, os chineses aumentaram as compras do produto gaúcho. Esta é a agenda que se impõem ao setor público e privado, sem o oportunismo político e o imediatismo, propulsores do plantio ilegal da soja transgênica no Rio Grande do Sul. José Hermeto Hoffmann é ex-secretário da Agricultura do Rio Grande do Sul
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NACIONAL DESMONTE DO ESTADO
Corrida pela aposentadoria
Fatos em foco
Benefícios previdenciários de servidores civis acumulam perdas reais de até 38%
Hamilton Octavio de Souza
Censura midiática Em artigo veiculado na semana passada pelo site Observatório da Imprensa, o jornalista Alberto Dines criticou o desinteresse jornalístico do Jornal do Brasil em relação aos problemas do Rio de Janeiro. Em seguida, a direção do JB cortou a coluna que Dines mantinha naquele jornal. E ainda tem gente que acredita que a imprensa brasileira é livre e democrática. Milagre econômico “O modelo atual tem esta característica perversa: para a economia crescer e aumentar as exportações, é preciso frear os salários, cortar a renda dos trabalhadores, para evitar que as importações subam e as exportações declinem”. Do economista Carlos Eduardo Carvalho, em artigo para a Revista Sem Terra. Ameaça à saúde A Agência Nacional de Vigilância Sanitária e o Ministério da Agricultura deveriam fiscalizar a comercialização da soja transgênica e o seu uso para a produção de alimentos. Mas isso não está sendo feito, o que é uma irresponsabilidade e uma ameaça à saúde da população brasileira.
A
reforma do regime previdenciário do setor público conseguiu operar mais um recorde em 2003, especialmente entre os servidores civis da União: nada menos do que 17.453 deles decidiram se aposentar, segundo o Boletim Estatístico de Pessoal do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. O total de novos aposentados foi o maior desde 1998, quando mudanças no sistema público de Previdência levaram à aposentadoria 19.755 funcionários. Na comparação com os 7.465 servidores civis aposentados em 2002, houve um salto de 133,8%. O detalhe é que menos da metade dos servidores aposentados no ano passado (8.682, ou 49,7% do total) tinha direito a proventos integrais, frente a 51% no ano anterior. O funcionalismo tem preferido antecipar a aposentadoria, recorrendo ao benefício proporcional, pelo temor de perder mais ainda se aguardar pelo cumprimento de todo o tempo de serviço estabelecido na legislação. Em 2002, dentre os aposentados, pouco mais de 19% (1.434) pediram o benefício proporcional. No ano passado, o número cresceu mais de quatro vezes (exatos 319,7%, para 6.018 servidores),
FUNCIONALISMO SE PROTEGE Evolução do total de aposentadorias civis da União
Ano 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003
Total 46.196 21.190 14.199 17.601 34.253 27.546 24.659 19.755 8.753 5.951 6.222 7.465 17.453
Fonte: Boletim Estatístico de Pessoal/Secretaria de Recursos Humanos/Ministério do Planejamento
passando a representar 34,5% do total de novos aposentados. O governo bem que tentou contornar a falta de pessoal, conseqüência direta da política de desmonte do serviço público em vigor desde os anos 90. A administração pública abriu concursos e contratou 7.220 novos servidores ao longo do ano passado, diante de apenas 30 contratações por concurso em 2002. O esforço para remontar a máquina administrativa foi virtualmente anulado pela verdadeira
avalanche de aposentadorias, motivadas pela perspectiva concreta de perda de direitos, e pela possibilidade real de achatamento ainda maior dos benefícios no futuro.
BENEFÍCIOS ACHATADOS De fato, levando em conta valores corrigidos com base no Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), adotado pelo governo para aferir a inflação oficial, os valores médios de aposentadorias e pensões pagas a servidores civis acumulam perdas de, respectivamente, 23,6% e 38,4%. No passado, a despesa média por servidor aposentado foi de R$ 2.416, diante de R$ 3.164 em 1995, enquanto o gasto médio por pensionista desabou de R$ 3.324 para R$ 2.048 no mesmo período. Naqueles nove anos, praticamente todo o peso do ajuste, traduzido em arrocho nos rendimentos do funcionalismo, recaiu sobre aposentados e pensionistas, já que os servidores que permaneceram na ativa tiveram um ganho real de 14,3%. Na média geral, considerando servidores civis na ativa, aposentados e pensionistas, o gasto per capita encolheu 11,3% entre 1995 e 2003. Para os militares, no entanto, verificou-se um avanço real de 2,7% no período, por conta de ganhos de 12,2% para aposentados e de 4% para pensionistas. No primeiro ano do governo pe-
tista, no entanto, todas as categorias, com uma honrosa exceção, saíram no prejuízo. Comparada a 2002, a despesa média por servidor civil sofreu baixa de 8,6% em termos reais (ou seja, depois de descontada a variação do IPCA). O achatamento foi mais severo, desta vez, para os servidores da ativa, com uma variação nominal de 1,9%, equivalente ao percentual médio do reajuste salarial autorizado pelo governo, e uma perda real de 13,1%. Os aposentados civis perderam 4,3%, enquanto os pensionistas embolsaram um ganho real de 11,1%.
PREJUÍZOS GERAIS Para os militares, a despesa média total por servidor anotou baixa real de 6,7%. O soldo dos militares na ativa recuou 8,2%, diante de perdas de 7,8% para os aposentados e virtual equilíbrio para os pensionistas (queda de 0,24%). O Banco Central foi uma das instituições mais afetadas pela política de arrocho. A despesa média por servidor despencou de R$ 10,5 mil para R$ 6,75 mil (menos 35,6%, em termos reais). Apenas no ano passado, o gasto médio ficou 9,3% menor, na comparação com 2002. No outro extremo, os funcionários ativos das sociedades de economia mista anotaram um ganho de 142% desde 1995, e de nada menos do que 70,8% frente a 2002.
Renato Stockler
Negócio japonês O megawatt produzido na hidrelétrica de Tucuruí custa 24 dólares, mas a Eletronorte vende essa energia para a mutinacional Albras por 15 dólares o megawatt. A multinacional aumenta seu lucro com o custo do alumínio mais barato, e o prejuízo vai para o bolso do povo brasileiro.
Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
Direitos Humanos Capturados no Afeganistão, em 2001, cerca de 600 homens continuam detidos na base naval dos Estados Unidos em Guantánamo, na ilha de Cuba, sem qualquer processo formal, e sem a condição de prisioneiros de guerra assegurada pelo Tratado de Genebra. Nem a ONU nem a Justiça dos Estados Unidos interferem nesse campo de concentração do governo Bush. Visão científica A Folha de S. Paulo perguntou a onze brasilianistas que participaram de encontro no Rio de Janeiro se consideram o governo Lula continuidade do governo FHC. Sete disseram que “sim”, dois disseram “em termos” e dois disseram que “não”. As respostas dispensam comentários. Paraíso capital Estudo divulgado na última semana mostrou que os bancos que atuam no Brasil tiveram, em 2003, rentabilidade superior aos bancos que atuam nos Estados Unidos. E, claro, a rentabilidade dos bancos brasileiros continua acima da rentabilidade do setor industrial. Qualquer semelhança com o recorde de desemprego não é mera coincidência. Novas revelações A revista Carta Capital que, nos últimos meses, publicou vasto material sobre as estranhas relações do FBI e da CIA (serviço secreto dos Estados Unidos) com a Polícia Federal e a Agência Brasileira de Informações (Abin), promete novas revelações nos próximos números. É ver e conferir. Pânico eleitoral Pesquisa realizada este mês, em município do interior paulista, informa que 41,6% dos eleitores disseram que não votam em candidato apoiado pelo presidente Lula. No mesmo município, em 2002, Lula ganhou folgado no primeiro e no segundo turnos. Vulnerabilidade eterna “Não há confiança nas perspectivas de crescimento da economia brasileira e em sua capacidade de suportar choques externos”. Do economista e professor Paulo Nogueira Batista Jr., na última edição da revista Teoria e Debate, da Fundação Perseu Abramo.
Descaso do governo para com a previdência tem levado o funcionalismo a antecipar a aposentadoria e a recorrer ao benefício proporcional, com o temor de perder ainda mais
Gastos com pessoal têm queda real de 15,4% Os dados oferecidos pelo Boletim Estatístico de Pessoal dão outros detalhes da contabilidade oficial, mostrando, por exemplo, que o ritmo de crescimento das receitas da União tem sido largamente superior ao modesto incremento dos gastos de pessoal e encargos sociais. Por isso mesmo, a relação entre despesas com servidores e receita corrente líquida vem desabando ano a ano, até atingir, em 2003, o percentual mais baixo em toda a série histórica acompanhada pelo boletim. No ano passado, a União destinou apenas 31,2% de suas receitas líquidas para a folha de pagamento, diante de 32,1% em 2002, e mais de 56% em 1995. Por lei, o governo poderia gastar com pessoal até 60% de suas receitas líquidas, conceito que exclui
da receita total as transferências que a União deve fazer, por força constitucional e legal, a Estados e municípios, as contribuições do PIS/Pasep, benefícios previdenciários, além de incentivos fiscais e restituições de impostos (a exemplo da devolução anual do Imposto de Renda). Tomando-se a receita corrente bruta, os percentuais comprometidos com o pagamento de salários e encargos sociais são ainda mais baixos. No ano passado, aquelas despesas representaram 18,3% da receita corrente total, percentual que se compara aos 18,8% observados em 2002. Até 1995, quase 30% da receita corrente (exatos 29,8%) estavam comprometidos com a folha de pagamento. Ao sancionar a Lei Complemen-
tar 82/95 (Lei Camata), que criou o teto de 60% para as despesas com pessoal, o objetivo do governo era fazer com que sobrassem recursos para financiar outros tipos de despesas, consideradas mais essenciais, e também investimentos. O que se viu, no entanto, foi um crescimento explosivo das despesas com juros, consumindo toda a economia realizada. Em termos mais objetivos, achatou-se o gasto com servidores para pagar juros a banqueiros. Em 2003, para uma receita corrente líquida de R$ 224,9 bilhões, foram gastos R$ 70,2 bilhões com a folha de pagamentos da União, valor 9% maior do que em 2002. A receita cresceu 12% em termos nominais, superando a variação apontada para as despesas de pessoal. Num prazo
mais longo, a distância entre as duas variáveis foi ainda mais larga. A partir de 1995, enquanto os gastos com servidores aumentaram 85,6%, expressando uma queda real (descontada a inflação) de aproximadamente 15,4%, a receita líquida mais do que triplicou, num avanço de 234,2% (mais 52,3% em termos reais). O efeito combinado do crescimento da arrecadação e da queda real da folha fez murchar o percentual de comprometimento das receitas com o pagamento de salários e encargos sociais aos servidores. Em outros termos, considerando o teto fixado em lei, os gastos com pessoal poderiam chegar a R$ 134,95 bilhões em 2003, quase duas vezes mais (92,2%) o valor efetivamente desembolsado pela União. (LVF)
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NACIONAL MODELO EXCLUDENTE
Políticas favorecem os mais ricos
Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
O
anúncio, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de uma taxa de crescimento de 2,7% para a economia brasileira no primeiro trimestre, em comparação ao mesmo período do ano passado, foi o sinal aguardado por ministros e porta-vozes do governo para passarem a bombardear a opinião pública com uma série de previsões otimistas para o restante de 2004, e também para 2005. Num rasgo de otimismo, o presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, apressou-se a equiparar aquele número às taxas de crescimento experimentadas pelos países asiáticos, entre 6% a 9% ao ano – uma clara mistificação da realidade concreta. Na visão de analistas independentes, os dados que explicam o fraco desempenho da economia doméstica nos últimos anos continuam presentes e não foram ainda eliminados pela incipiente reação indicada pelos números do IBGE e de outras instituições. O desemprego mantém-se elevado, batendo em 13,1% em abril, um novo recorde, e a renda voltou a cair 3,5% na comparação com igual período de 2003. Os juros continuam nas alturas, encarecendo o custo dos empréstimos para empresas e pessoas físicas, e manteve-se a política de arrocho aos gastos públicos, obrigando o governo a reduzir compras e investimentos, ajudando a esfriar ainda mais a economia.
ESTABILIDADE EM RISCO “Os dados mostram que o elevador simplesmente parou de despencar, já que a comparação toma como base o primeiro trimestre do ano passado e nada foi pior do que aquele período”, comenta o economista Carlos Eduardo Frickmann Young, professor de contas nacionais e economia do meio ambiente do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ainda mais incisiva, a equipe de analistas da Global Invest, consultoria econômica com sede em Curitiba (PR), decreta a falência do modelo econômico, adotado no país, de resto, há mais de década. “A política econômica vem sendo conduzida de forma equivocada e corre sério risco de insucesso”, avalia a consultoria em recente relatório. Young lembra que a economia se encontrava literalmente paralisada nos primeiros meses do ano passado, na seqüência de um período de disparada do dólar, seguido de elevação de preços e juros. A mistura, explosiva para as pretensões de crescimento de qualquer economia, era temperada por quase sete anos consecutivos de queda na renda do brasileiro – condições que persistem, hoje, em suas linhas gerais. O dólar recuou, desde então, e os juros baixaram, mas mantêmse entre os mais altos do mundo, aponta a Global Invest, enquanto o consumidor continua sem renda e sem emprego. O modelo econômico, ou seja, o conjunto de políticas econômicas definidas pelo governo, prossegue a Global Invest, não só não consegue promover o crescimento, como cria novas distorções na economia, que ameaçam a própria estabilidade econômica e institucional.
REMÉDIO É DOENÇA A política de arrocho fiscal (baseada no aumento de impostos e em cortes de investimentos) e de juros altos, reforça Young, opera como um Robin Hood às avessas: tira recursos dos pobres (via cobrança de impostos e redução de gastos públicos, que afeta a qualidade dos serviços oferecidos às faixas de renda mais baixa) para transferi-los aos mais ricos, por meio do pagamento de juros eleva-
Claudia Jardim
Juros altos e arrocho nos gastos públicos tiram recursos dos mais pobres e concentram ainda mais a renda
Política econômica do governo funciona como um Robin Hood às avessas, privilegiando credores e classes sociais mais abastadas
dos aos donos do capital, participantes da ciranda financeira. “A situação social já é crítica – com um grau de informalidade imensurável, pobreza e violência – e piora na medida em que o endividamento do Estado (agravado pela política de juros altos) o imobiliza e impossibilita a atuação do setor privado”, analisa a Global Invest, para concluir que, depois de dez anos de aplicação ininterrupta, “o remédio (juros altos) virou doença”. Numa primeira etapa, entre 1994 e 1999, o governo adotou a política de juros altos para atrair recursos externos e compensar a torra de
dólares promovida pela abertura da economia e pelo dólar barato, que inundaram o país de quinquilharias importadas, causando fechamento de empresas e desemprego, desestruturando setores inteiros na economia. Depois de 1999, lembra a Global Invest, quando o dólar explodiu sob o peso de um rombo de bilhões de dólares nas contas externas brasileiras, manteve-se a política de juros altos para esfriar a demanda doméstica e segurar os preços.
OPORTUNIDADE PERDIDA Sem consumo, as empresas não teriam como repassar altas de pre-
ços aos seus produtos, contribuindo para derrubar a inflação, raciocinava a equipe econômica. O que deveria ser uma política de transição, adotada momentaneamente para conter um surto temporário de avanço inflacionário, transformouse numa política permanente, que continua produzindo danos também permanentes para a economia, aponta a consultoria. Os consultores da Global avaliam que a queda dos juros poderia ter sido iniciada ainda antes de junho do ano passado e deveria ter ocorrido de forma mais acelerada, nos meses seguintes, pegando uma carona no ce-
nário mais do que favorável na área externa (crescimento das principais economias mundiais, taxas de juros em níveis recordes de baixa nos Estados Unidos e países europeus e sobra de recursos em todo o mundo). Por excesso de conservadorismo do Banco Central, o Brasil perdeu a oportunidade de recuperar a capacidade de fazer a economia crescer e de acumular reservas em dólares para enfrentar uma fase menos brilhante da conjuntura internacional. “Novas quedas de juros, se acontecerem neste ano, só devem ocorrer no segundo semestre”, comenta uma analista da Global Invest.
Juros já consumiram 41% da riqueza nacional A política de juros escorchantes empurrou a economia para um círculo vicioso de endividamento e rombos nas contas do setor público, constata a Global Invest. “Os juros altos exigidos pelo modelo deprimem a atividade econômica e promovem a elevação da dívida pública. O tamanho da dívida perpetua a grande necessidade de financiamento do setor público (leia-se, promove o constante crescimento do déficit público)”, afirma a consultoria. Para pagar os juros da dívida, o governo acaba “sugando os recursos disponíveis na economia, inviabilizando seu crescimento”. Detalhe: o peso dos juros nos gastos do setor público invalida o esforço realizado para “economizar” o dinheiro dos impostos e mostrar aos credores, lá fora, que o governo tem condições de pagar o que deve, além de criar mais dívidas. No ano passado, num exemplo, o setor público – incluindo os governos federal, estaduais, prefeituras e suas estatais – poupou o equivalente a R$ 66,2 bilhões – um recorde, correspondente a 4,37% do Produto Interno Bruto (PIB), que retrata toda a riqueza produzida pelo país em um ano.
ROMBO CRESCE A economia foi realizada às custas de um aperto nas despesas e cortes de investimentos essenciais. Toda aquela dinheirama foi destinada ao pagamento de juros da dívida e, mesmo assim, não foi possível honrar toda a conta, já que os gastos com juros somaram R$ 145,2 bilhões, deixando um rombo de R$ 79 bilhões (5,2% do PIB). Para pagar o restante da conta (R$ 79 bilhões), o governo teve que emitir novos títulos públicos e
vendê-los ao mercado, oferecendo juros altíssimos aos compradores (bancos, corretoras, fundos de investimento, empresas e pessoas físicas). A emissão de títulos engorda a dívida pública, o que gera mais despesas de juros e exige novas emissões, numa bola de neve. Na verdade, portanto, os juros transformaram-se no principal inimigo do equilíbrio das contas públicas, tão festejado pela equipe econômica.
MAIS DÍVIDA Entre 1998 e abril deste ano, o país gastou R$ 620,6 bilhões apenas para pagar os juros da dívida pública, consumindo, nesta operação, o correspondente a 40,9% das riquezas e do patrimônio gerados pela economia brasileira em 2003. No mesmo período, o arrocho nos gastos e investimentos públicos produziu uma economia (superávit primário, em economês) de R$ 264 bilhões, suficientes para pagar apenas 42,5% das despesas criadas pelos juros. Resultado: acumulou-se um rombo de R$ 356,6 bilhões. O buraco aberto na contabilidade do setor público pelos juros foi responsável por praticamente 58% do crescimento da dívida pública no período (ou seja, os juros criaram novas dívidas, que geraram mais juros). Enquanto o setor público corre atrás do próprio rabo, a dívida pública total mais do que triplicou, saindo de R$ 308,4 bilhões, em dezembro de 1997 (33,8% do PIB), para R$ 926,4 bilhões, em abril deste ano (56,6% do PIB) – um crescimento equivalente a quase R$ 618 bilhões. Torrou-se 40,8% do PIB em 76 meses (mais de R$ 8,1 bilhões por mês) para fazer mais dívida. (LVF)
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De 17 a 23 de junho de 2004
NACIONAL CANAVIEIROS
Trabalho escravo é rotina em São Paulo
Em São Paulo, denúncias mensais revelam consequências da exploração de bóias-frias, resultado da terceirização
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ia 25 de abril, o alagoano Cícero José Jr. deixou a mulher e os quatro filhos na sua cidade natal, Capela (AL), para trabalhar como cortador de cana em Piracicaba, interior de São Paulo. Atraído pela promessa de salário de até R$ 1 mil, ele ficou 41 dias “numa fazenda que a gente não sabia o nome”, até descobrir, dia 8 de junho, que integrava a triste lista de canavieiros escravizados na região agrícola mais rica do país. Cícero foi para Piracicaba com mais 50 trabalhadores, entre eles o pai e um irmão, alegando que em Capela “é difícil de arrumar serviço, e quando a gente arruma, ganha muito pouco”. Trabalharam no corte de cana de 29 de abril a 8 de junho. Logo nos primeiros dias, começaram a estranhar a ausência de um fiscal que apresentasse o “pirulito” – planilha com o preço do dia da cana e o cálculo dos metros cortados. “A gente chegou a pensar que aqui a medição fosse diferente”. Porém, foram surpreendidos no escritório da empresa M.C.S. Novello, dia 8, quando receberam pagamentos com valores entre R$ 30 e R$ 90 pelo mês trabalhado. “Recebemos e ainda ficamos devendo”, contou Cícero. Além dos valores irrisórios, os trabalhadores receberam a notícia de que deveriam pagar uma dívida no supermercado da cidade, de cerca de R$ 300 por pessoa. Eles reclamaram do valor pago pelo metro de cana cortada – entre de R$ 0,7 a R$ 0,9 Gato – Intermediário –, inferior ao que alicia ou conpago por outras trata trabalhadores usinas. “Eles para os empregadores rurais, recebendo disseram que o por “cabeça” ou por preço era esse e empreitada. que, se quisés-
Além disso, eles manifestavam o desejo de voltar logo “para casa”, com medo de sofrer represálias. Acusando os trabalhadores de “oportunismo”, Goularte disse que era “apenas um grupo que resolveu fazer um fuzuê”. Segundo ele, outros cortadores de cana continuam na safra, nas mesmas condições.
Fotos: Renato Stockler
Bernadete Toneto e Tatiana Merlino da Redação
UM ENTRE MUITOS
Trabalhadores escravizados na região de Piracicaba reivindicam acordo na Delegacia do Trabalho; no detalhe, Cícero José Jr., ex-escravizado
semos receber, era assim”, lembra Luis Paulo, irmão de Cícero. “Mas a gente trabalha nisso há muito tempo, e sabe quanto corta por dia”, disse João Melo, da mesma cidade de Alagoas.
AÇÃO DA POLÍCIA Os 51 alagoanos protestaram, dia 8, em frente ao escritório da empresa, chamando a atenção da Guarda Civil Metropolitana, que acionou a Polícia Federal. Os “gatos” Osvaldo Luís César e Adelino
Rosa Macedo foram presos, acusados de aliciamento de trabalho escravo. Até o fechamento desta edição, o dono da empresa, Oldair Novello, estava foragido. A empresa vendia cana para a Cosan S.A. Indústria e Comércio, maior grupo produtor de cana-deaçúcar do país e proprietária da Usina Cosan-Costa Pinto, que não foi responsabilizada pelo crime. “Os trabalhadores receberam quantias tão baixas porque a Novello fez descontos indevidos com aluguel, alimentação e equipamentos”, afirma Gil Vicente Ricardi, subdelegado do Trabalho em Piracicaba. Após um acordo com a subdelegacia do Trabalho, a empresa pagou R$ 900 a cada trabalhador, recolheu o Fundo de Garantia devido e fretou um ônibus para levar os
bóias-frias de volta para Alagoas. A Polícia Federal configurou a situação dos trabalhadores como trabalho escravo, já que tinham perdido o direito de ir e vir.
ESPERA POR ACORDO Dia 9 foi de grande tensão para os trabalhadores, que esperaram das 8h às 17h30 por um acordo entre o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Piracicaba e o advogado da empresa, Jefferson Goularte, que justificou: “Eles se excederam nos gastos, e nós não seremos extorquidos por conta disso”. Do outro lado, os trabalhadores protestavam: “Fomos humilhados, nossas famílias estão passando fome. Tombamos cana nas costas durante 40 dias para receber uma merreca. E para trabalhar de escravo não precisava vir até aqui”.
Esse não foi o primeiro caso de trabalho escravo descoberto na região de Piracicaba, neste ano. Em maio, no município de Charqueadas, outros canavieiros foram encontrados em situação de exploração. “Há situações semelhantes nessa região”, diz Ricardi, explicando que pelo menos uma vez por mês é descoberto um caso de escravidão na região de Piracicaba. Segundo ele, a situação vem piorando nos últimos anos, em decorrência da terceirização do corte da cana, “que precariza as relações de trabalho”. “A terceirização é a maneira que as usinas encontraram para baratear seus custos. Mas a bomba acaba estourando lá embaixo, porque os empreiteiros não têm profissionalismo, compromisso, nem capacidade financeira para arcar com os custos dos trabalhadores”, afirma. Hoje, cerca de 30% dos cortadores de cana de Piracicaba trabalham diretamente para as usinas; os outros 70% ficam à mercê dos empreiteiros. Enquanto o local fica célebre pelos casos de trabalho escravo, o açúcar é anunciado como “o melhor da região, ao menor preço”. Segundo o delegado do trabalho, a Usina pressionou a empresa para que pagasse os direitos dos trabalhadores “porque para eles não pega bem no mercado internacional ter seu nome ligado a trabalho escravo”. Só na região de Piracicaba há oito mil trabalhadores temporários no corte da cana.
Cana gera riqueza de poucos e miséria para muitos Todos os anos, cerca de 200 mil trabalhadores, provenientes de regiões pobres como o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e o sertão do Nordeste, migram para o Estado de São Paulo para trabalhar no corte da cana. O trabalho é temporário, e dura o período da safra, do começo de maio até o início de dezembro. No Brasil, a área utilizada para a cultura de cana-de-açúcar é de cerca de 5 milhões de hectares, equivalente ao território do Estado do Espírito Santo. Das 320 usinas brasileiras, cerca de 120 estão no Estado de São Paulo, conforme dados da União da Agroíndustria Canavieira de São Paulo. Os produtores de cana movimentam, por ano, cerca de R$ 3 bilhões na compra de insumos e máquinas agrícolas e geraram, na safra passada, 320,65 milhões de toneladas de cana. “Quanto mais a riqueza se concentra do lado dos usineiros, mais a miséria e a exploração estão do lado dos trabalhadores”, afirma a socióloga Maria Aparecida Morais Silva, professora da Unesp de Araraquara (SP). Na safra de 2002/2003, a produção paulista de cana chegou a 192 milhões de toneladas, o que representa 60% do total nacional. As usinas produziram 448 milhões de sacas de 50 quilos de açúcar, sete bilhões de litros de álcool combustível e 5,5 bilhões de litros de álcool hidratado.
EXPLORAÇÃO MASCARADA A grande engrenagem canavieira está na macrorregião de Ribeirão Preto, que engloba 85 municípios do interior paulista e, em área de 1,125 milhão de hectares, é responsável por 30% da produção nacional. De acordo
Usinas no Brasil – 320 Usinas em São Paulo – 120 (aproximadamente) Rendimento anual do setor – de R$ 21 bilhões a R$ 23 bilhões Safra 2002/2003 – 320,65 milhões de toneladas (país); 192,486 milhões de toneladas (São Paulo) Safra 2003/2004 (projeção) – 338,31 milhões de toneladas (país); 207,57 milhões de toneladas (São Paulo) Fonte: União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica)
Piso salarial – R$ 333,96 Período de permanência no campo – maio a dezembro
Década de 80 – 5,6 toneladas/dia Década de 90 – 8, 9 toneladas/dia 2000 – 10 toneladas/dia 2004 – 12 a 15 toneladas/dia Fonte: Pesquisa Maria Aparecida Moraes Silva/Unesp-Araraquara
Os cortadores de cana que não atingem metas fixadas pelas usinas são demitidos no final do mês
com estimativas, a região deverá produzir cerca de 101 milhões de toneladas de cana na safra 2003/ 2004. “O que existe de ponta em tecnologia aplicada à agricultura se encontra nessa região”, afirma Maria Aparecida. Há mais de 26 anos acompanhando a vida do trabalhador rural, a professora diz que as máquinas agrícolas encobrem a situação dos trabalhadores. Falando sobre os canaviais, ela afirma: “Quem vê pela televisão, tem a impressão que
tudo aquilo é movido apenas por máquinas, acha que não há mais trabalhadores rurais”. Maria Aparecida alerta para o fato de o corte de cana ser uma atividade bastante pesada. E vai além, classificando de “subumanas” as normas firmadas em contrato de trabalho e que, a cada ano, elevam a exigência de produtividade. Os trabalhadores que não atingem a meta, são demitidos no final do mês. “É o submundo do trabalho. São situações degradantes, que acontecem
sob a máscara do trabalho livre. A média imposta é uma maneira de escravização”, pondera. Apesar de acreditar que “onde há dominação, há resistência”, Maria Aparecida preocupa-se com a “pequena resistência à exploração”, devida a um “grande exército de reserva”. O trabalhador demitido é automaticamente substituído por outro, que também migrou por necessidade. “Ou ele vem, ou morre de fome. É uma migração forçada”. (TM)
CPT critica apoio do governo ao setor da Redação
A expansão da cana deve ultrapassar os 5 milhões de hectares, principalmente com as políticas internacionais de aumento da demanda de álcool, motivado pela decisão de países como o Japão, de acrescentar em até 10% de álcool no combustível com o fim de cumprir os acordos do Protocolo de Kioto. O cálculo foi divulgado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), em encontro com representantes de 12 de seus regionais que atuam em regiões atingidas pela monocultura. “Essa expansão é intrinsecamente maléfica porque baseada na exploração e na violação dos direitos humanos sociais e ambientais”, diz o documento “Açúcar com gosto de sangue”. No encontro em Camaragibe (PE), a CPT manifestou o desejo de intensificar as denúncias das violações de direitos trabalhistas e ambientais, principalmente no que diz respeito ao trabalho escravo e poluição dos recursos hídricos. Segundo a nota oficial da entidade, o governo federal está favorecendo o processo de monocultura, “com perdão e renegociação de dívidas e várias formas de subsídio e financiamento, premiando oligopólios que cresceram sob os auspícios da grilagem e concentração da terra, de fraudes e desvios de dinheiro público, da impunidade em casos de violência contra os trabalhadores e do trabalho escravo”.
Ano 2 • número 68 • De 17 a 23 de junho de 2004 – 9
SEGUNDO CADERNO LIVRE COMÉRCIO
Movimentos cobram coerência da Unctad
A
participação oficial de movimentos sociais e Organizações Não-Governamentais (ONGs) foi a principal novidade da XI Reunião da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), que começou dia 13 e termina dia 18, em São Paulo. Reunidas no Fórum da Sociedade Civil (FSC), as entidades exigiram coerência da Unctad e condenaram o discurso de que o aumento do comércio internacional vai reduzir a pobreza. As reivindicações do Fórum foram entregues às autoridades oficiais, como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o secretário-geral da Unctad, Rubens Ricúpero, e o secretário-geral da ONU, Kofi Annan. A pressão por mudanças foi forte. Dia 14, cerca de mil pessoas protestaram contra o livre comércio. A marcha, organizada pela Coordenação dos Movimentos Sociais, foi impedida por um forte bloqueio policial de chegar ao Palácio do Anhembi, onde ocorre a reunião da Unctad. “Foi a primeira vez que tivemos espaço dentro das conferências de comércio da ONU”, ressaltou Iara Pietricovsky, coordenadora da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), uma das organizadoras do Fórum. Apesar de os representantes das entidades defenderem uma mudança radical na conduta da Unctad, não havia muita expectativa de resultados imediatos. “Não somos ingênuos a ponto de acreditarmos que vamos alterar os rumos do comércio internacional. Isso vai depender principalmente da ação dos povos em nossos países, que são os principais atingidos por essa globalização”, avaliou Iara.
INCOERÊNCIA Já no primeiro dia de atividades, o boliviano Pablo Sólon, da Fundação Sólon, defendia que as organizações fizessem uma crítica áspera às posições da Unctad para a participação no evento não
Abertura da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), segunda-feira, dia 14, em São Paulo (SP)
legitimar as negociações oficiais. “Temos de desmascarar o discurso expresso no documento oficial da Unctad”, opinou Sólon. No final, o Fórum questionou a posição branda da Unctad em relação às transnacionais e à política belicista dos países ricos. “Nos preocupamos com o fato de o documento oficial (da XI reunião da Unctad) não mencionar a relação entre guerras travadas para a apropriação de recursos para o favorecimento de transnacionais. Tampouco reconhece o fato de que essas guerras aprofundam a pobreza”, registram as mais de 200 organizações que assinam o documento, entre elas, a Via Campesina e a Aliança Social Continental (leia quadro). As entidades concluíram que “o modelo de crescimento baseado nas exportações promovido pelas transnacionais não leva ao desenvolvimento, mas sim ao empobrecimento”. O Fórum não se resumiu à declaração. Durante toda a reunião da Unctad, as organizações sociais
O QUE QUEREM OS MOVIMENTOS SOCIAIS REIVINDICAÇÕES DO FÓRUM DA SOCIEDADE CIVIL Que a Unctad • atue em defesa do cancelamento da dívida externa; • responsabilize transnacionais pelo endividamento atual dos países subdesenvolvidos; • rejeite a chantagem financeira, bloqueios econômicos e intervenção militar; • promova os direitos dos povos à soberania alimentar; • garanta direitos sociais, econômicos, trabalhistas e sindicais; • atue para reduzir o escopo e a influência da Organização Mundial do Comércio (OMC) em relação a questões não-comerciais. PARA ENTENDER ESSE JOGO DE XADREZ Unctad – Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento, órgão das Nações Unidas (ONU) criado em 1964 para apoiar países do Terceiro Mundo a se desenvolver por meio do comércio internacional. Embora reconheça, no discurso, a inconsistência da globalização neoliberal, a Unctad adota uma prática que não rompe com o livre comércio. Uma de suas bandeiras é a redução das barreiras comerciais dos países ricos. A Unctad possui 192 países-membros. Fórum da Sociedade Civil (FSC) – Organizado por ONGs e movimentos sociais, seu objetivo é dar visibilidade às críticas do livre comércio e às alternativas de políticas sociais. Reúne mais de 200 organizações, de 60 países. Interesses em jogo • EUA e União Européia – Com o objetivo de ampliar mercados para suas transnacionais, querem reduzir o escopo de atuação da Unctad, relegando-a ao papel de assessorar países subdesenvolvidos em matéria de abertura comercial. • Países subdesenvolvidos – Buscam obter, na Unctad, respaldo político e técnico para exigir dos países ricos redução das barreiras comerciais, o que aumentaria suas exportações, basicamente agrícolas. • Movimentos sociais e ONGs – Defendem que a Unctad denuncie os impactos do livre comércio e pressione governos a adotarem políticas de combate às desigualdades sociais e respeito ao meio ambiente.
debateram propostas alternativas à agenda de desenvolvimento proposta pelo organismo. Embora a reunião oficial da Unctad tenha prestado uma homenagem ao economista Celso Furtado, a discussão sobre políticas que priorizem o mercado interno – uma das teses do intelectual brasileiro – ficou restrita ao FSC. “Pelos relatos das reuniões oficiais, a agenda dos países está pautada pelo paradigma de que apenas o comércio externo traz desenvolvimento”, considerou Sandra Quintela, do Instituto de Políticas Alternativas do Cone Sul (Pacs). “Os países ricos querem trans-
formar a Unctad em um instrumento da Organização Mundial do Comércio (OMC). Aqui, deveria ser um encontro para se discutir desigualdades sociais, mas só querem ampliar seus mercados”, criticou Iara, da Rebrip. Embora tenham adotado uma postura crítica ao organismo, os movimentos sociais procuraram diferenciar a Unctad de outros órgãos, como a OMC. “A Unctad é a única que põe o desenvolvimento na frente, mas sabemos que o alcance da sua atuação é limitado”, ponderou Iara. A Unctad surgiu em 1964, com objetivo de ser uma agência
intergovernamental que apoiasse países pobres a adotarem políticas de desenvolvimento. Na sua primeira reunião, ficou célebre o discurso de Ernesto Che Guevara, representando o governo cubano, em defesa de novos patamares para as trocas entre países ricos e pobres. As políticas do organismo, hoje, estão centradas sobretudo na ampliação das exportações agrícolas dos países do Sul. “Essa é uma briga que só favorece setores privilegiados da nossa economia e ignora a importância da agricultura familiar e da soberania nacional”, conclui Iara Pietricovsky.
A globalização não resolve Os povos indigenas e os camponeses não podem esperar muito da Unctad porque, a exemplo da Organização Mundial do Comércio, o organismo considera que, quanto mais liberdade para os mercados, melhor. É o que adverte, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Pablo Sólon, ativista da Aliança Social Continental. Brasil de Fato – Que diálogo os movimentos sociais podem esperar com a Unctad? Pablo Sólon – Sou um pouco cético e fiquei mais ainda ao ler o esboço da declaração da Unctad (veja página 10). A reunião da Unctad acaba apoiando as políticas a favor da globalização e muitas das medidas propostas estão em sintonia com a Organização Mundial do Comércio (OMC). É fundamental que a declaração do Fórum da Sociedade Civil seja dura, crítica ao processo da Unctad. A presença das delegações aqui só faz sentido se houver uma declaração apontando para outra opção. Não podemos tratar essa reunião da Unctad de forma distinta de uma reunião da OMC, senão vamos pagar por esse erro. BF – A Unctad é, hoje, um espaço de políticas alternativas aos países subdesenvolvidos? Sólon – O esboço da declaração oficial da Unctad parte da premissa de que a globalização pode gerar crescimento e desenvolvimento. Na descrição dos impactos dessa globalização, afirma que esse processo tem afetado terrivelmente os países menos desenvolvidos e mostra que há grandes prejudicados. Depois desse diagnóstico, a receita deveria ser: temos que mudar essa realidade. Mas não. As alternativas apontadas pela Unctad são de mais livre comércio: acesso
Moisés Moraes
Jorge Pereira Filho da Redação
Rose Brasil/ABR
ONGs e lideranças populares condenam discurso da entidade que defende comércio como saída para desenvolvimento
a mercados, eliminação de subsídios agrícolas, promoção de maior liberação dos serviços. Tudo igual à OMC. A única diferença é a avaliação clínica do doente. Mas os remédios recomendados são os mesmos.
Quem é Pablo Sólon é ativista da Aliança Social Continental (ASC) e integra a Campanha Boliviana contra a Alca. Participa também da Fundação Sólon (www.funsolon.org) guerra antes de enfrentar problemas sociais? Quem escreveu essa declaração da Unctad está em outro planeta, pois certamente na Terra não está.
BF – Quem ganha com essa política? Sólon – A Unctad mostra quem são os prejudicados neste processo de globalização, mas não mostra os favorecidos: as empresas transnacionais. Nem sequer ganham os povos do Norte. Nos Estados Unidos, a economia cresceu, mas Bush será o primeiro presidente que terminará o mandato sem reduzir o desemprego. Na Europa, há cortes de seguridade social. Só ganham transnacionais que têm acumulado riqueza superior a dezenas de países. O documento da Unctad fala de eqüidade. Mas se não se afetar os superlucros dessas transnacionais, é absolutamente lírico falar de redução de pobreza.
BF – Reduzir subsídios agrícolas nos países ricos promoveria um comércio mais justo? Sólon – Isso é uma farsa. Apenas 7% da produção agrícola vão para o mercado mundial. Os restantes 93% são direcionados para mercados locais. Por que fazer tanto alvoroço por esses 7%? Só entendemos isso quando sabemos que cerca de 80% do comércio agrícola mundial são controlados por cinco ou seis grandes transnacionais do agronegócio. Toda essa discussão de rebaixar os subsídios não vai beneficiar o pequeno agricultor, e sim as empresas. E por que não se discutem políticas para esses camponeses? A abertura dos mercados agrícolas, pelo contrário, só vai prejudicá-los.
BF – E a questão militar? Sólon – Esse é outro tema completamente ignorado pela reunião da Unctad. Os Estados Unidos respondem por 47% de todo o gasto militar mundial. Hoje, o investimento militar chegou ao nível mais alto desde a II Guerra Mundial. Será que a pobreza não tem a ver com uma tendência que os Estados estejam destinando valores descomunais para promover a
BF – Essa é a principal pauta do G-20… Sólon – Sim, e por isso nós o criticamos. O que parece positivo no G-20 é que, pelo menos, fala com uma voz diferente aos Estados Unidos e à União Européia, em vez de se curvar às suas imposições, como já ocorreu muitas vezes. Agora, o que o G-20 propõe não é o que nós, organizações camponesas e indígenas, estamos querendo.
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De 17 a 23 de junho de 2004
AMÉRICA LATINA LIVRE COMÉRCIO
Lula passa ao largo dos problemas
Presidente não fala sobre reivindicações do Fórum da Sociedade Civil e insiste que exportar é o que importa
Chávez e Fidel: ausências sentidas Os presidentes Hugo Chávez, da Venezuela, e Fidel Castro, de Cuba, foram as ausências mais sentidas na XI Reunião da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad). O líder venezuelano anunciou, em seu programa de rádio, que ficaria no país para coordenar atividades ligadas à sua campanha no referendo popular. Segundo a Agência Carta Maior, diplomatas venezuelanos teriam dito que Chávez ficou constrangido em razão do governo brasileiro não ter dado grande atenção à sua segurança. Fidel Castro se desculpou pela ausência e enviou uma carta para ser lida na reunião. O presidente cubano fez duras críticas aos organismos internacionais e ressaltou que a Unctad foi criada por um desejo nobre de que o comércio internacional servisse às aspirações do progresso. “Hoje o terrível flagelo do intercâmbio desigual apenas é mencionado em discursos e conferências. O comércio internacional não tem sido instrumento para o desenvolvimento dos países pobres, que são a imensa maioria da humanidade”, criticou Castro.
DESIGUALDADE O presidente cubano apontou que, para 86 países, os produtos básicos representam mais da metade das receitas por exportações. “Hoje, o poder de compra desses produtos, salvo o petróleo, é menor que a terça parte do que era ao ser criada a Unctad”, ressaltou Castro. A carta também lembra que, quando o organismo foi criado, a dívida externa dos países pobres era de 50 bilhões de dólares e, hoje, já chega a 2,6 trilhões de dólares. Isso mesmo com os países pobres já tendo pago, entre 1982 e 2003, 5,4 trilhões de dólares pelo serviço da dívida aos países ricos. “A dívida já foi paga mais de duas vezes”, registra. Castro afirmou que o prestígio das Nações Unidas foi abalado e que hoje o organismo é um instrumento a serviço do império estadunidense. No entanto, se declarou otimista e esperançoso sobre a possibilidade de um mundo melhor: “Os povos são ingovernáveis. Da crise inevitável, e muito mais cedo do que tarde, sairão pensadores, guias, organizações e políticas de diversificada índole que empenharão o máximo esforço para preservar a espécie”. (JPF)
fazer concessões”, esquivou-se o presidente brasileiro. Ele afirmou que está trabalhando para aumentar o crédito para os pequenos agricultores. “Nosso objetivo é desenvolver uma agricultura familiar de qualidade para, quem
Antonio Milena/ABR
E
m encontro com as Organizações Não-Governamentais (ONGs) e movimentos sociais, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez um discurso decepcionante e não entrou no mérito das propostas discutidas no Fórum da Sociedade Civil, durante a reunião da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad). No seu discurso, o presidente apresentou sua política externa, enfatizando a busca de novos mercados entre os países subdesenvolvidos e as gestões que tem feito com outros líderes mundiais sobre a necessidade de criar mecanismos de combate à fome. Lula também exaltou a criação do G20 e sua reivindicação de reduzir os subsídios agrícolas dos países ricos. O presidente, no entanto, ignorou os temas do Fórum e não respondeu diretamente a uma pergunta de uma representantes das
ONGs, que questinou a ausência de discussões sobre soberania alimentar e agricultura familiar nas reivindicações do G-20. “Dificilmente, deixaríamos passar em um acordo algo prejudicial ao nosso desenvolvimento. Mas é preciso
sabe, capacitar o produtor a exportar seus produtos”, disse Lula.
OBSESSÃO A fixação do presidente em ampliar exportações, até mesmo quando se discute soberania alimentar, foi criticada por representantes de algumas entidades, que ressaltaram a importância de apostar no crescimento do mercado interno dos países subdesenvolvidos. O próprio presidente, em sua página pessoal na internet (www.lula.org.br), ainda no ar com propostas de campanha, destacava a importância da agricultura familiar para gerar empregos e melhorar a qualidade dos alimentos produzidos. “Lula já disse que se todo brasileiro tomasse um copo de suco de laranja por dia, não precisaríamos exportar. Essa fixação por aumentar as vendas externas só ocorre pela necessidade de equilibrar nosso balanço de paga-
mentos”, considera Sandra Quintela, do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs). A insatisfação também ficou evidente quando Lula exortou ONGs estrangeiras a cobrarem seus governantes por políticas que combatam a fome em seus países. “Se cada entidade, movimento e organização que estiver aqui voltar para o seu país para pressionar seu governo, seu parlamento, podemos transformar o combate à fome num problema político e não apenas social”, declarou o presidente. Para Sandra, não se combate a pobreza e a fome se não se enfrentar o problema do endividamento externo – algo que o governo brasileiro está longe de realizar. “Fome não se combate com exportação. Hoje, não somos mais exportadores de frango, soja, mas enviamos capital para os países ricos”, avaliou Sandra Quintela.
Controle de capitais, necessidade urgente Daniel Merli de São Paulo (SP) Entidades da sociedade civil criticam modelo de exportação do presidente Lula
Países pobres defendem serviços fora da OMC Um dos debates no Fórum da Sociedade Civil apontou para o risco que os países pobres correm com as negociações de serviços dentro da Organização Mundial do Comércio (OMC) – o chamado GATS (sigla em inglês para Acordo Geral sobre Comércio de Serviços). “São temas que não têm ligação direta com comércio e que não deveriam ser tratados na OMC, e sim em instâncias da ONU, como a Unctad’’, aponta a filipina Marina Durano, da Rede Internacional sobre Comércio e Gênero (IGTN, pela sigla em inglês). Segundo ela, o GATS engloba desde profissões como direito e engenharia, até direitos essenciais como educação e saúde. Marina informou que, atualmente, o entrave das negociações do GATS está na regularização de profissões como advocacia, contabilidade e engenharia. ‘’Os EUA têm usado esse item de negociação como moeda de troca com países como México, Índia, Filipinas, com
grande imigração’’, diz ela. A esperança que essa negociação vende é de que profissionais desses países poderão migrar para EUA e Europa em busca de trabalho. ‘’Na prática, quem deve ganhar mesmo com isso são os grandes escritórios do Norte’’, explicou. Um exemplo, segundo ela, são as chamadas cinco grandes da contabilidade (Arthur Andersen, Deloitte & Touche, Ernst and Young, KPMG e Price Waterhouse). ‘’Elas têm clientes em seus países de origem, e querem continuar prestando serviços às filiais dessas empresas, onde quer que elas estejam’’, afirma Marina. A ativista filipina apontou outro risco do acordo. ‘’Até o momento, a indicação é para uma uniformização das regras, usando como modelo os parâmetros de EUA e Inglaterra’’, afirmou. ‘’Isso pode fazer com que essas regras se sobreponham, por exemplo, às regras atuais que orientam um engenheiro brasileiro ou um contador indiano’’. (DM)
Os países pobres não terão liberdade para crescer se não controlarem o fluxo de capitais financeiros. Esse foi o recado dado ao secretário-geral da Unctad, Rubens Ricúpero, e ao presidente do Banco Internamericano de Desenvolvimento (BID), Enrique Iglesias, durante o debate ‘’Desenvolvimento econômico e acumulação de capitais: Experiências recentes e suas implicações políticas’’. As duas autoridades participaram da mesa sobre as experiências da Malásia e Índia, dois países asiáticos que estabeleceram alguma forma de controle sobre a entrada e saída de dólares. ‘’A Ásia tem crescido mais do que a América Latina porque soube usar o investimento externo para industrializar-se, e também porque estabeleceu regras mais firmes para o fluxo de capitais’’, analisou o economista turco Yilmaz Akyüz. Para Akyüz, esse controle é necessário por causa da grande dependência que os chamados ‘países em desenvolvimento’ têm da entrada de dólares – eles não podem ficar expostos a uma fuga abrupta de recursos externos. ‘’Outra vantagem da Ásia em relação aos latino-americanos é que países como China e Coréia do Sul
investiram pesado na transferência de tecnologia, para produzir equipamentos sofisticados’’, afirma. Segundo ele, essa política também foi importante para reduzir os gastos com patentes estrangeiras de tecnologia. Akyüz criticou a América Latina, que não teria usado o investimento estrangeiro para modernizar sua indústria, contentando-se em exportar produtos agrícolas.
EXEMPLO MALAIO ‘’A liberdade total para o fluxo de capitais foi o que provocou o colapso de 97, nos chamados Tigres Asiáticos. Para enfrentar o problema, a Malásia controlou a entrada de aplicações em Bolsa e delimitou uma taxa de câmbio fixa. O resultado foi uma impressionante retomada do crescimento’’, atestou o malaio Martin Khor, diretor da Rede do Terceiro Mundo (TWN, pela sigla em inglês). Khor também defendeu a hipótese de que o controle das novas tecnologias é essencial para o desenvolvimento dos países pobres. ‘’As regras que a OMC está tentando implantar são incompatíveis com políticas necessárias de crescimento’’, afirmou, em referência às regras de patenteamento, que dificultam a reprodução de novas tecnologias. (Portal Planeta Porto Alegre www.planetaportoalegre.net)
Anderson Barbosa
Jorge Pereira Filho da Redação
Manifestação em São Paulo durante Conferência da Unctad: controle de capitais para os países pobres não ficarem expostos a uma fuga abrupta de recursos externos
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De 17 a 23 de junho de 2004
INTERNACIONAL BOLÍVIA
FMI condiciona ajuda à venda de gás da Redação
O
Fundo Monetário Internacional (FMI) avisou o governo boliviano que seu acordo de ajuda só será ampliado se o país ceder na questão da venda do gás para o estrangeiro, enquanto se sucedem em todo o território da Bolívia manifestações de protesto contra a privatização do gás. A subdiretora-gerente do FMI, Anne Krueger, disse que “o governo boliviano está comprometido com o cumprimento dos objetivos fiscais, a fim de preservar a estabilidade financeira”. Além dos 63 milhões de dólares a serem outorgados pelo FMI, o Banco Mundial se comprometeu a conceder 25 milhões de dólares; o Banco Interamericano de Desenvolvimento, 12 milhões de dólares; e os governos dos Estados Unidos e da União Européia, 30 milhões de dólares. O total é de
France Presse
O Fundo avisou que só ampliará o acordo financeiro se o país concordar em exportar suas reservas de gás
Manifestantes protestam pelas estradas de La Paz contra a privatização do gás
130 milhões de dólares. A ajuda pode ser maior, entretanto, se a Bolívia ceder na questão do gás, sobre a qual está marcado um referendo para 17 de julho. Há
semanas, o diretor do FMI para o Hemisfério Ocidental, Anop Singh, afirmou que as perspectivas de que o país consiga um importante apoio financeiro adicional “dependerão
de que a Bolívia consiga um sólido acordo interno para aproveitar suas abundantes reservas de gás e encontre mercados alternativos para a exportação”. O Banco Mundial fez advertência semelhante. Enquanto isso, as estradas que ligam a Bolívia ao Peru, à Argentina, ao Paraguai; e as que ligam a capital La Paz a outras regiões do país foram bloqueadas por camponeses e moradores com reivindicações ao governo do presidente Carlos Mesa. Os bloqueios no Planalto boliviano foram liderados por Felipe Quispe, dirigente da Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia, entidade que exige a anulação do referendo do gás e a nacionalização do petróleo e gás. Na região de Los Yungas, ao norte de La Paz, as estradas estão obstruídas por produtores de coca que pedem a criação, pelo governo, de um mercado legal para a coca, e a concessão de recursos para recuperação das
terras. Na região produtora de gás de Villamontes, ao sul do país, os habitantes exigem melhorias nas vias e maior atenção do governo federal. De acordo com o presidente da Câmara de Transporte Pesado de La Paz, Edmundo Ticacala, aproximadamente 700 caminhões de carga de exportação e importação ficaram presos no bloqueio feito por camponeses apenas na estrada de Desaguadero, de acesso à capital boliviana. Segundo cálculos da entidade, cada caminhão leva uma carga avaliada em até 10 mil dólares. O ministro de governo, Saúl Lara, disse que “se está procurando abrir novas estradas de diálogo, mas se não houver resultados vamos desbloquear as estradas com o uso da força”. Dia 8 de junho, forças públicas começaram a promover o desbloqueio das rotas, entrando em confronto com as diversas categorias de manifestantes. (Com agências internacionais)
VENEZUELA
O governo venezuelano será submetido a um referendo cuja aprovação foi baseada em fraudes, na opinião do primeiro reitor do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), Oscar Bataglini, único dos cinco fiscais eleitorais que não votou a favor da realização do referendo após os resultados dos chamados “reparos”, realizados de 28 a 30 de maio. “Esse resultado é espúrio e ilegal”, diz o reitor, que criou uma comissão para apurar as fraudes. Depois da coleta de assinaturas realizada pela oposição em dezembro de 2003, o CNE anulou mais de 370 mil assinaturas em nomes de falecidos e de menores de idade. Também exigiu a ratificação de mais de 1 milhão de assinaturas supeitas de irregulares. Dessas, 733.755 mil foram validadas, o que levará a referendo o presidente da República, Hugo Chávez, dia 15 de agosto. Bataglini atribui as irregularidades à intervenção da empresa Súmate na base de dados do CNE e admite que não há garantias de que a consulta popular de 15 de agosto esteja livre de fraudes: “A Súmate se tornou um CNE paralelo”. Brasil de Fato – Por que o senhor retirou seu voto da ata que valida as assinaturas para o referendo? Oscar Bataglini – A decisão do diretório do CNE foi de quatro a um. Não poderia validar com meu voto um resultado que considero espúrio e ilegal. Poderíamos ter anulado esse ato por conta dos inúmeros delitos eleitorais, mas não o fizemos em consideração ao contexto político do país. Na revisão das assinaturas foram verificadas irregularidades que, na minha avaliação, invalidam o resultado: assinaturas de falecidos, pessoas não assinaram mas aparecem nas listas... E isso não ocorreu por acaso. Mas porque alguém se encarregou disso, porque alguém permitiu ou não evitou. BF – Quem manipulou as informações?
BF – Por que, mesmo com irregularidades, o CNE convocou o referendo? Bataglini – Formalmente, há assinaturas na quantidade requerida para o referendo (2.452.179 assinaturas). No entanto, atingiuse essa quantidade de maneira fraudulenta. Não temos capacidade de mostrar a totalidade dessas irregularidades agora, mas os indícios não deixam dúvida de que mais uma vez foram cometidas fraudes para ativar o referendo. O referendo vai se realizar porque agora não temos condiçoes de identificar a magnitude das irregularidades para impedir esse procedimento. No entanto, já começamos uma investigação e, seja quando for, a comissão vai esclarecer à sociedade venezuelana o que realmente aconteceu. BF – Há garantias de que o mesmo tipo de fraude não ocorrerá no referendo? Bataglini – Garantias absolutas, não. O CNE é uma instituição
que também foi objeto de um processo de corrupção que marca a história política do país. Nessa instituição existem máfias organizadas que têm operado sistematicamente. Não podemos esquecer que nós, os atuais reitores, estamos aqui há apenas oito meses e encontramos uma instituição minada por essas máfias e por mecanismos que permitem fraudes. Vamos fazer uma investigação e, se comprovado que houve participação de funcionários do CNE nas irregularidades, essas pessoas serão removidas. Nosso interesse é fazer um saneamento dessa instituição para que os resultados do referendo sejam os mais fidedignos possíveis. BF – A Súmate tem condições para alterar os resultados? Bataglini – Eles têm como manipular. Se a Súmate tem participado de todas essas irregularidades, isso significa que tem uma estrutura eletrônica que lhes permite afetar os resultados do referendo. Nós vamos pedir às autoridades competentes, à Fiscalía, órgão responsável por fiscalizar os organismos estatais, para que impeçam a empresa estrangeira de continuar intervindo nos assuntos eleitorais da Venezuela. BF – Apesar das pressões da oposição, o CNE decidiu auto-
Henrique Hernandez/Venpres
Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)
Bataglini – Não tenho dúvidas de que foi a empresa estrangeira Súmate, financiada pelos Estados Unidos. E as irregularidades não se devem a omissão ou a erro. Foi uma coisa planejada. A Súmate se tornou um CNE paralelo. Eles têm todas as informações, todas as bases de dados do Registro Eleitoral Permanente e sua infraestrutura tecnológica permite a intervenção eletrônica em todos os setores do CNE.
Apesar das fraudes denunciadas, dia 15 de agosto venezuelanos votam referendo
Claudia Jardim
Resultado é espúrio e ilegal, diz reitor do CNE
Quem é Oscar Bataglini, primeiro reitor do Conselho Nacional Eleitoral, é historiador, professor titular da Escola de Sociologia da Universidade Central da Venezuela, e autor de A democracia na Venezuela: uma história de potencialidades, Betancourismo: rentismo petroleiro, populismo e golpe de Estado, entre outras obras. matizar a votação? Bataglini – Sim. Pela primeira vez na história política da Venezuela a votação será automatizada. Um dos setores envolvidos no processo deseja que retornemos ao voto manual porque sabe como manipular esse votos. Fizeram isso durante 40 anos. Pela primeira vez na história política deste país, o CNE tem outra natureza. É constituído por pessoas que, como cidadãos, têm posicionamento político, mas que internalizaram, em sua maioria, o papel que nos corresponde frente ao poder público. BF – Qual a sua avaliação da atuação dos observadores internacionais representados pela Organização dos Estados Americanos e pelo Centro Carter durante os reparos? Bataglini – É público e notório que o confronto entre o governo venezuelano e George W. Bush contribuiu para a parcialidade dessa observação. Nesse sentido, se explica a atuação e a opressão exercida por esses observadores, que se colocaram abertamente ao lado de uma das partes envolvidas. A OEA e o Centro Carter exerceram uma ingerência perturbadora e inconveniente. Nenhum observador, em nenhuma parte do mundo, está facultado a fazer declarações políticas para questionar decisões dos fiscais eleitorais. Eles fizeram tudo isso e se reuniram com freqüência, pública e privadamente, com um dos atores envolvidos.
BF – A “visita” de Jimmy Carter e César Gavíria à sede do CNE um dia depois do fim do processo de reparos foi um exemplo dessa parcialidade? Bataglini – O CNE foi praticamente invadido por Carter e Gavíria, que diziam que suas preocupações estavam justificadas porque, na avaliação desses observadores, havia um atraso na apuração das planilhas. Eles se apresentaram de maneira intempestiva, sem aviso prévio, e percorreram as instalações do CNE como se fossem atores, deliberantes e beligerantes, dos assuntos políticos deste pais. Isso é contrário a todas as regras de participação de um observador. E eles continuam atuando. Tivemos notícias de que Carter, em Atlanta, e Gavíria, em Quito (Equador), anunciaram que se as cifras anunciadas pelo CNE não fossem as mesmas que eles detinham, fariam uma denúncia questionando os dados do Poder Eleitoral. BF – O CNE pretende impedir a presença desses observadores no referendo? Bataglini – A maioria dos reitores do CNE é contra revalidar a creditação a essas duas organizações. Nós não somos obrigados a permitir a observação da OEA, muito menos do Centro Carter, que é apenas uma organização não-governamental com status de qualquer ONG. Em relação à OEA, se o Estado quiser convidar que o faça, mas nós não somos obrigados a convidá-los. Vamos convidar observadores internacionais de toda a América Latina para que façam uma observação efetiva no processo eleitoral venezuelano, limitados à condição de observadores. BF – Qual a expectativa de participação para o referendo em 15 de agosto? Bataglini – Com certeza será um marco de participação eleitoral. O registro eleitoral deve chegar a 13 milhões de eleitores, mas antes do referendo vamos limpar os registros, retirar os nomes dos falecidos, estimados em 1 milhão. Ao mesmo tempo vamos fazer uma intensa jornada para que todos retirem suas cédulas. O indíce de abstenção que chegou a 30% nas últimas eleições tende a diminuir. Estou certo de que será a consulta eleitoral de maior participação da história do país. Esperamos que o resultado, seja ele qual for, seja aceito pelas partes.
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INTERNACIONAL MOVIMENTOS SOCIAIS
Camponeses contra o neoliberalismo
João Alexandre Peschanski Enviado especial a Itaici (SP)
A
cabar com o neoliberalismo antes que este acabe com o planeta. Reunidos em torno desse desafio, de 14 a 19 de junho, 400 agricultores de 68 países de todos os continentes participam da IV Conferência Internacional da Via Campesina, em Itaici (SP). Plenárias e discussões abordam as conseqüências das políticas ligadas à globalização – como concentração fundiária, privatização de recursos naturais, pauperização e violência contra trabalhadores. “Os agentes do grande capital perderam a vergonha e fazem agressões descaradas contra os camponeses”, declarou Camila Montecinos, da entidade chilena Centro de Educação e Tecnologia (CET), durante a primeira conferência do encontro. Segundo ela, a violência é direta, com o aumento da repressão a movimentos sociais; e indireta, com a falta de acesso de agricultores a sementes, patenteadas pelas corporações, e à terra, cuja propriedade está nas mãos de empresários e de grandes proprietários. A estratégia da Via Campesina, segundo avaliou um de seus coordenadores, o ativista basco Paul Nicholson, primeiramente é denunciar as perversões do sistema neoliberal. “As grandes corporações, que controlam a agricultura e todos os setores da economia, funcionam na lógica da maximização do lucro e promovem a destruição de tudo o que é um obstáculo a elas”, disse Nicholson. Para ele, em segundo lugar é preciso organizar a resistência e alternativas ao sistema dominante. No encontro, Via Campesina – foi apontada a Criada em 1992, necessidade de reúne dezenas uma agenda inde movimentos e ternacional de sindicatos de camponeses de todo o mobilizações mundo. campesinas.
João Roberto Ripper
Encontro da Via Campesina em São Paulo define estratégias internacionais de luta e resistência à globalização
tão sangrenta quanto a anterior. Antes o inimigo era um homem e seus apoiadores. Agora é um sistema, agravado pela truculência de um homem”, denuncia. Em março, segundo ele, dezenas de camponeses indonesianos foram assassinados pela polícia enquanto se manifestavam contra a privatização da água do país.
GLOBALIZAR A ESPERANÇA
Aumento da repressão aos movimentos sociais, falta de acesso à terra e a sementes, patenteadas pelas grandes corporações, foram temas de debate durante o congresso internacional que reuniu lideranças camponesas
“Não se pode enfrentar apenas o inimigo local, mas é preciso identificar e combater – em âmbito planetário – os agentes internacionais do neoliberalismo”, explicou Nicholson. Henry Saragih, da Federação de
Sindicatos de Camponeses Indonesianos, concorda. Para ele, a maioria dos 110 milhões de agricultores de seu país – 47% da população total – é vítima das políticas neoliberais, impulsionadas pelo governo dos Estados Unidos e organismos
financeiros, como o Fundo Monetário Internacional (FMI). “Vivemos décadas de uma sangrenta ditadura militar com Mohammed Suharto (de 1967 a 1988) e, agora, com o presidente Sukarnoputri Megawati, vivemos a ditadura do capital, que é
Segundo Saragih, para acabar com o neoliberalismo, não basta resistir, é preciso apresentar propostas concretas para um outro mundo: “Falamos muito em globalizar a luta, mas, como diz o lema do encontro, é hora de globalizar a esperança”. Em sua opinião, os movimentos sociais de cada país deveriam exigir que a defesa e o apoio a pequenos agricultores se tornassem políticas públicas. Na conferência inaugural do evento, João Pedro Stedile, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), salientou que, para atingir seus objetivos, a Via Campesina precisa constantemente revisar e melhorar sua organização. Para ele, deve-se investir na formação de quadros e construção de espaços de reflexão internacionais, ambos essenciais para a criação de um projeto alternativo para o mundo, e aumentar a mobilização dos povos. “Só pessoas nas ruas podem derrubar o monstruoso inimigo que temos pela frente”, concluiu.
O modelo de agricultura neoliberal, impulsionado pelos países ricos, não é sustentável, pois gera a destruição do meio ambiente e a pauperização dos trabalhadores. A avaliação é do líder camponês hondurenho Rafael Alegria, da coordenação internacional da Via Campesina. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Alegria defende a mobilização popular e a criação de instituições alternativas, como outra Organização das Nações Unidas (ONU), para deter o neoliberalismo. Brasil de Fato – Estamos em um momento decisivo dos acordos de livre comércio, especialmente da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Qual é a estratégia da Via Campesina para interromper essas negociações? Rafael Alegria – As transnacionais e os países ricos não pretendem recuar. Buscam todos os meios para obter lucro. Em um primeiro momento, apresentam acordos de livre comércio escandalosamente prejudiciais aos povos dos países pobres. Alguns governos, alinhados com as políticas neoliberais, aceitam. Outros, como ocorreu no caso do Brasil com a Alca, colocam alguns obstáculos. Mas as potências e as transnacionais encontram outros meios para impor o modelo que mais as beneficie. Os acordos bilaterais e multilaterais funcionam nessa ótica: disseminar o livre comércio, passo a passo, por todo o continente americano. Apesar de ser absolutamente necessário que os governos atuem na defesa dos povos, a mobilização social é a única capaz de frear e impedir
arquivo JST
Nosso desafio é fortalecer a resistência Quem é Hondurenho, Rafael Alegria é secretário internacional da Via Campesina e presidente do Movimento de Agricultores de Honduras
a proliferação do neoliberalismo. Na Venezuela, o presidente Hugo Chávez, que tem políticas claramente opostas aos interesses estadunidenses, só se mantém no poder por causa do apoio popular. A ofensiva das grandes potências contra ele é ininterrupta, mas ele permanece. O desafio dos movimentos sociais, e da Via Campesina, é fortalecer os focos de resistência ao neoliberalismo e mobilizar a população em defesa da humanidade. Por nossa luta, barramos a Alca, que não deve ser iniciada em 2005. Agora, o objetivo é impedir qualquer avanço do neoliberalismo. BF – Recentemente, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) defendeu os organismos geneticamente modificados, contrariando estudos da própria instituição que indicavam os riscos dos transgênicos. Por que essa mudança de atitude?
Alegria – A FAO, criada para defender os interesses dos pequenos agricultores, se rendeu às pressões das transnacionais e organismos internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e Fundo Monetário Internacional (FMI). As instituições e as grandes empresas não têm compromisso com o planeta e os seres humanos, apenas com seus lucros. O relatório da FAO diz que os transgênicos podem contribuir para acabar com a fome, mas o problema não é de desenvolvimento tecnológico, e sim de distribuição dos alimentos. A Via Campesina, por isso, denunciou o relatório, apontando as incoerências e mentiras nas quais se fundamenta. Acredito que o mundo precisa reavaliar a existência e o funcionamento da FAO. Precisamos de uma FAO alternativa, do mesmo modo que precisamos de uma ONU alternativa, pois não adianta ter uma instituição cuja única finalidade é legitimar
o domínio dos países ricos sobre o resto do mundo. Estamos então buscando meios alternativos de institucionalizar a defesa dos pequenos agricultores. Chávez, por exemplo, pensou em estabelecer um plantio de produtos geneticamente modificados em solo venezuelano. Com base em estudos e conversas, nós o convencemos de que a decisão ia contra a reforma agrária que ele defende e as mudanças sociais que ele realizou no país. Ele concordou conosco. BF – No Brasil, muitos camponeses cultivaram transgênicos e agora perceberam que foram enganados pela Monsanto. Como evitar novas vítimas? Alegria – As grandes empresas gastam milhões de dólares em propaganda e enganam agricultores e governos. Os camponeses são as maiores vítimas dos transgênicos, pois se tornam dependentes das corporações. É preciso divulgar isso, ampliando o processo de formação e mobilização dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, deve-se sensibilizar os governos para que defendam o povo e não entrem no jogo das corporações. BF – Como a Via Campesina avalia a Conferência das Nações
Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad)? Alegria – A Via Campesina defende o comércio justo, eqüitativo e sustentável, no qual o foco seja o ser humano e não o mercado. Havia uma esperança de que a Unctad pudesse ser um espaço alternativo à OMC, mas isso não ocorreu. É lamentável que os ideólogos e burocratas internacionais não percebam que o modelo que defendem é um fracasso. Quebram a cabeça buscando modos de melhorar o sistema, encontrar algumas alternativas. Mas não há como melhorar um sistema criado para beneficiar os mais ricos e manter os demais na miséria. As instituições ligadas à ONU têm um papel lastimável. É preciso que leiam e recuperem os princípios nos quais foram criadas: defender a paz, a igualdade e os direitos humanos. BF – O que significa o neoliberalismo na agricultura? Qual a alternativa a esse modelo? Alegria – O mundo tem diante de si dois modelos para a agricultura. O dos países ricos, que é altamente produtivista, baseado na agroexportação e na criação de excedentes. É o modelo que impulsiona os transgênicos, o uso de agrotóxicos e a contaminação da terra. Esse modelo não é sustentável. Além disso, destrói mercados locais e regionais. O outro, o nosso, defende a agricultura camponesa, garantindo o acesso à alimentação para todos e princípios solidários. O mundo precisa ter clareza quanto aos dois modelos. (JAP)
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INTERNACIONAL ÁFRICA
Zimbábue nacionaliza terras férteis
Marilene Felinto da Redação
O
programa de reforma agrária do Zimbábue, o mais controverso da África, sofreu uma reviravolta significativa na última semana, quando o governo do presidente Robert Mugabe anunciou sua intenção de nacionalizar todas as terras produtivas do país, informa a agência de notícias africana All Africa. Segundo autoridades zimbabuanas, a idéia é que não haja mais propriedade privada de terras no país. Há quatro anos, o governo do Zimbábue começou uma reforma agrária compulsória, tirando terras de fazendeiros brancos e entregando-as à população negra sem- terra. Naquela época, um pequeno grupo de fazendeiros brancos possuía quase 70% de todas as terras aráveis do Zimbábue. Hoje, menos de 500 restaram, possuindo apenas 3% das terras do país, segundo relatório de uma auditoria agrária feita pelo governo. De acordo com o ministro zimbabuano da Reforma Agrária, John Nkomo, já estão em andamento planos para anular escrituras e substituí-las por arrendamentos de 99 anos de duração. “Nós acreditamos que a terra não deve ser usada com fins especulativos. Escrituras de propriedade não são mais o tipo de questão com que devamos perder tempo, pois os arrendamentos de 99 anos atuarão como paralelos tão bons quanto”, explicou Nkomo à imprensa africana. O especialista zimbabuano em questões agrárias Sam Moyo disse à agência All Africa que a nacionalização de terras agriculturáveis não significa que inevitavelmente a produtividade vá cair. “No entanto, para que o processo funcione, o governo deveria estabelecer um compromisso sério de dar assis-
Odd Andersen/AFP
Reforma agrária tira mais privilégios de brancos ao substituir escrituras de propriedade por contratos de arrendamento
Estudantes retornam de escola rural, a 40 km de Harare, minoria branca agora ocupa 3% das terras cultiváveis
Mar Mediterrâneo
OCEANO ATLÂNTICO ZÂMBIA Lusaka
NAMÍBIA
Harare
ZIMBÁBUE
Windhoek
OCEANO ÍNDICO
tência aos agricultores reassentados”, concluiu. Recentemente, o Zimbábue aprovou projeto de lei de aquisição de terras que deu poderes ao ministro da Reforma Agrária para tomar 11 milhões de hectares de terra agriculturável e redistribuí-las entre agricultores negros sem-terra. Nos últimos dois anos, a ques-
tão da terra vem sobrecarregando a agenda regional do sudeste da África graças, em grande parte, ao desenrolar da reforma agrária do Zimbábue, como observa Tom Lebert no ensaio “Uma Introdução à Questão da Terra e da Reforma Agrária do Zimbábue”. Em maio , a Namíbia resolveu adotar o mesmo modelo zimbabuano, desapropriando terras de fazendeiros brancos e entregando-as a agricultores negros sem-terra. Na Zâmbia, proprietários de terra já trabalham com sucesso sob o modelo de terras arrendadas ao Estado. Um processo de aquisição de terra liderado pelo Estado já vem se desenvolvendo no Zimbábue nos últimos 15 anos, em resposta ao fracasso da reforma agrária de mercado em tornar disponível terra adequada para a agricultura — por especulação no preço de venda por parte dos proprietários brancos e por falta de incentivo estrangeiro em forma de doação de dinheiro para a compra de terras. “Uma vez que a reforma agrária tem potencial para tocar no centro nervoso das estruturas da sociedade que perpetuam as formações de classe do período colonial, não é de surpreender que tais processos de reforma (como a do Zimbábue) sejam fortemente contestados”, afirma Tom Lebert. Mas é preciso notar, continua ele, que o Zimbábue experimentou durante duas décadas usar exclusivamente o mecanismo de mercado para a redistribuição de terras. No entanto, houve um mínimo de apoio internacional a essa iniciativa, “em contraste com o que ocorreu em outras partes do mundo onde reformas apoiadas no mercado foram tentadas. Nesses casos, como, por exemplo, no Brasil e na Colômbia, houve grande intervenção externa e investimento de recursos.”
A inescrupulosa luta pelo ouro verde africano Wolfgang Schonecke de Berlim (Alemanha) Depois de séculos de exploração do continente negro, nos quais os países centrais apoderaram-se do ouro, do marfim e da mão-de-obra escrava a preços irrisórios, hoje as empresas multinacionais tentam roubar o ouro verde da África, a imensa riqueza ecológica do continente, por meio das patentes. Por que esta grande perseguição ao material genético? Simplesmente porque ele encerra a promessa de grandes lucros. Especialistas da Organização das Nações Unidas (ONU) calcularam já em 1995 que o Hemisfério Sul perde a cada ano mais de 5,4 milhões de dólares por roubo de recursos biológicos. Mas os avanços da biotecnologia não oferecem apenas a possibilidade de enormes ganhos com novos medicamentos e novas colheitas geneticamente manipuladas. Também supõem uma luta de poder. Se as coisas continuarem pelo rumo que vão, umas tantas multinacionais poderiam controlar a produção de sementes e, por isso, controlar os agricultores de todo o mundo dentro de alguns anos. Os primeiros europeus que chegaram à África pagavam pelo marfim e pelo ouro, assim como pelo “ouro negro” de escravos com miçangas coloridas e baratas. Hoje, as companhias multinacionais, mais uma vez, não pagam quase nada. Os missionários da Europa estimulam um modelo africano de legislação sobre patentes, que tem o objetivo de proteger as comunidades tradicionais contra a biopirataria. No Escritório Europeu de Patentes, em Munique, Alemanha, no dia 2 de maio de 2002, um pequeno
grupo de camponeses indígenas deixaram cair lágrimas dos olhos quando o júri anunciou seu veredicto. Acabam de ganhar uma causa contra a indústria química norte-americana W. R. Grace e o Ministério da Agricultura dos Estados Unidos.
MARFIM NEGRO A indústria norte-americana tinha solicitado a patente para utilizar o óleo das árvores de Neem como inseticida contra cogumelos. Há séculos os índios utilizavam a árvore de Neem para todo tipo de fins medicinais; e a eficácia do óleo para extinguir cogumelos era bem conhecida. A multinacional simplesmente reclamava para uso comercial exclusivo seu algo que era de conhecimento geral na Índia. Dois cientistas norte-americanos de origem indiana tentaram obter a patente sobre as propriedades medicinais da planta de Tumerik, a qual é utilizada em muitos medicamentos. A Índia protestou e ganhou a causa. As propriedades medicinais da planta estão documentadas em antigos manuscritos em sânscrito. Uma equipe de investigação médica do Instituto Nacional de Saúde foi um pouco mais longe. Eles observaram que o povo Hagahai, de Papua, Nova Guiné, mostrava forte resistência à leucemia. Logo depois, foram pedir a patente sobre as células T do sistema imunológico dos Hagahai sem nem ao menos consultar a população envolvida. O que está acontecendo hoje assemelha-se ao modo como a Europa colonial conquistou a África. Naquela época, o objetivo era o ouro e a matéria-prima crua, o marfim branco dos elefantes e o marfim negro dos escravos. No lugar dos exploradores que
traçaram o mapa de rios e montanhas, os cientistas de hoje percorrem toda a África em busca de organismos e plantas singulares. A exploração biológica já não se impõe por meio de armas e soldados, mas por meio de leis e parágrafos. A arma principal é o acordo Aspectos Comerciais Relacionados aos Direitos de Propriedade Intelectual (Trips, na sigla em inglês). Tratase de um acordo internacional da Organização Mundial do Comércio (OMC) para que os direitos de patentes sejam respeitados em todos os lugares do mundo, incluindo aquelas obtidas de organismos vivos. Patentes não são coisa nova. Elas concedem a um inventor o direito de obter benefícios com a nova idéia por algum tempo. O objetivo é estimular a invenção criativa. Até aí, tudo bem. Classificar a vida como uma patente é que é algo bastante diferente e altamente questionável.
PATENTEAR NATUREZA Pode-se patentear algo que já estava aí, que era parte da natureza, parte do que Deus criou para o bem de todos? É justo reclamar o uso exclusivo do conhecimento tradicional de outras pessoas, de segredos da natureza que elas descobriram e desenvolveram há muito tempo sem compensá-las por isso? Gente que faz isso é acertadamente chamada de biopirata. Multinacionais farmacêuticas, químicas e agrícolas estão fascinadas com a oportunidade de obter ganhos por meio de patentes. Muito pouca gente pensa nas conseqüências de longo prazo de tais políticas. A exploração genética da África fará crescer ainda mais o intolerável desnível entre ricos e pobres. Ainda mais desastrosa seria a perda
da diversidade biológica decorrente da comercialização de plantas geneticamente manipuladas. Os chamados países desenvolvidos já destruíram a maior parte de sua própria riqueza biológica. Hoje estão no processo de destruí-la no resto do mundo. Passaram a roubar, por meio de patentes, a riqueza da biodiversidade de comunidades tradicionais de todo o mundo, que antes protegiam e desenvolviam. O motor desse perigoso processo de desenvolvimento é a Organização Mundial do Comércio, a grande estimuladora da globalização.
MODELO AFRICANO Essa organização também quer globalizar os direitos de propriedade intelectual. No final de 2005, todos os países têm que aprovar uma legislação nacional. A maioria dos países africanos não tem leis desse tipo. Eles poderiam usar três modelos: o norte-americano, o europeu e o africano, o qual foi idealizado pela União Africana (UA — então Organização da União Africana, OUA). A principal diferença reside na possibilidade de patentear organismos vivos. No modelo de legislação africano, as patentes sobre a vida são proibidas por serem contrárias à cultura e mentalidade africanas. Nas comunidades africanas, o conhecimento sobre os poderes secretos da natureza é o que há de conhecimento geral, passado de geração para geração; é o segredo de um ervanário, que o passará para um dos meninos da aldeia antes de morrer. Para o pensamento tradicional africano, aplicar uma patente sobre a natureza é simplesmente absurdo. O modelo de legislação africano também determina que as empresas
que tentam utilizar material genético proveniente da África têm que pagar uma compensação adequada. Isso já tinha sido decidido há dez anos, na Convenção sobre Diversidade Genética do Rio de Janeiro, mas nunca foi posto em prática. Mesmo em lugares onde foram assinados contratos oficiais pela exploração dos recursos biológicos, os pagamentos são ridículos. A organização canadense RAFI calcula que, com as atuais tarifas pagas pelo material genético, todos os recursos do Sul poderiam ser comprados por apenas 10 milhões de dólares por ano. Somente a indústria farmacêutica obtém anualmente lucros de cerca de 30 bilhões de dólares com as plantas provenientes do Terceiro Mundo. O mesmo truque usado quando da colonização há 150 anos: colares sem valor em troca do apreciado ouro. Muitos grupos de pressão de todo o mundo protestam contra essa forma de exploração. Muitos grupos que são conscientes dos problemas da África querem parar essa nova fase da colonização do continente. Pela rede África-Europa Fé e Justiça, em Bruxelas (Bélgica), e pelos escritórios de movimentos nacionais de pressão, esses grupos fazem uma campanha por toda Europa e África para promover o modelo de legislação africano. No entanto, o mais importante é que as comissões de Paz e Justiça da África conheçam o que é a questão e pressionem os governos para que resistam aos embates do exterior e aos subornos das empresas, para proteger a última grande fonte de riqueza da África para as gerações futuras. (Argenpress — www.argenpress.info)
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DEBATE POLÍTICA PARTIDÁRIA
A esquerda na encruzilhada
OPOSIÇÃO DESTRUTIVA
O PSOL busca realizar uma ‘oposição destrutiva’, agindo como se fosse possível derrotar, simultaneamente, o governo Lula e a direita, oferecendo ao país um governo de esquerda, socialista ou verdadeiramente democrático e popular. Ocorre que não existe, nem parece estar vindo, pelo menos até onde a análise alcança, uma onda de lutas populares que dê retaguarda para o surgimento de um novo pólo socialista, democrático e popular forte o suficiente para ultrapassar pela esquerda o PT, o governo Lula e a direita tradicional. É por isso que amplos setores da esquerda brasileira optaram por disputar os rumos do governo Lula. Apenas mudando os rumos deste governo daremos continuidade ao impulso que vem desde o final dos anos 70. Em todas as outras hipóteses – a da continuidade da política econômica e a do retorno da direita tradicional –, viveremos uma derrota e uma dispersão muito mais profundas do que as vividas após o golpe de 64. O surgimento do PSOL é um sinal de que esta dispersão já começou; paradoxalmente, o novo
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governo Lula é produto de pelo menos vinte anos de acúmulo de forças por parte de toda a esquerda brasileira. Hoje, nosso governo aplica uma política econômica que perpetua a hegemonia do capital financeiro, do agronegócio e do setor exportador. Essa contradição entre o que fez de Lula presidente versus o que faz o presidente Lula ajuda a entender a dupla política da burguesia frente ao governo federal: bate palmas para Palocci, ao mesmo tempo em que prepara a derrota de Lula. Afinal, apesar de tudo, o atual governo federal não é confiável para a burguesia, motivo pelo qual é pouco provável que Lula mantenha a atual política econômica, corroa sua própria base social, eleitoral e ideológica, e ainda assim ganhe as eleições de 2004 e 2006. Se a direita nos derrotar, seja eleitoralmente, seja por dentro (rompendo todo e qualquer compromisso deste governo com o movimento que lhe deu origem), isso colocará a esquerda socialista diante da necessidade de uma completa reorganização, que durará décadas. Seja por qual motivo for, a derrota do governo Lula significará, objetivamente, um reforço para a direita. Por isso, é arriscado considerar de ‘esquerda’ quem trabalha para derrotá-lo ou derrubá-lo (o que é diferente de trabalhar, inclusive publicamente, para derrotar a política atualmente hegemônica no governo). O recém-criado Partido do Socialismo e da Liberdade (PSOL) pretende construir uma oposição de esquerda ao governo Lula. Evi-
dentemente, não se trata de uma ‘oposição construtiva’, que pressiona, a partir de fora, no sentido de uma correção de rumos. Se fosse assim, não haveria diferença de fundo entre a posição do PSOL e a posição da esquerda do PT; tão somente haveria maior liberdade e menos constrangimentos para quem, de fora, disputa os rumos do governo.
Ki
Valter Pomar
ge valorizando excessivamente a figura de seus parlamentares e lançando uma candidata à Presidência da República, reproduzindo de maneira caricata e como farsa, a trágica dependência que o próprio PT criou frente à candidatura Lula. Ou seja: o processo político e social que demorou quase duas décadas para alterar profundamente o projeto político e social do PT já deixa marcas profundas na fundação do PSOL. Como marcará todo e qualquer setor que queira romper, agora, com a experiência do PT e do governo Lula, exceto aqueles que estejam dispostos a investir suas energias na construção de longo prazo de outra alternativa estratégica, mesmo que às custas de uma reduzida intervenção política no momento atual. IMPULSO DEMOCRÁTICO
partido parece ter escolhido seguir um roteiro organizativo ‘petista’. Natural: para quem pretende incidir com força, aqui e agora, na luta de classes em curso no país, é preciso ter base de massa, presença parlamentar e disputar com força os processos eleitorais. Ocorre que, ao contrário do PT, que surgiu pequeno, mas embalado numa vigorosa onda de lutas, o PSOL surge num contexto de poucas lutas. Também ao contrário do PT, que nos primeiros anos deu pouca importância para a luta institucional, o PSOL já sur-
A mudança ocorrida ao longo dos últimos dez anos no posicionamento do PT foi a versão tupiniquim, anos 90, do movimento que a social-democracia européia fez ao longo de um século de existência: da revolução à reforma, do socialismo ao capitalismo, do capitalismo social-democrata ao capitalismo neoliberal, pela chamada terceira-via ou centro-esquerda. Ocorre que nosso problema não se reduz aos rumos do PT e/ou do governo Lula; nosso problema está em como reconstruir, na classe trabalhadora brasileira, o impulso democrático, popular e socialista
que a animou no final dos anos 70 e durante os anos 80. Hoje, grande parte do movimento social brasileiro, a começar pelo sindicalismo, está sob hegemonia do setor moderado do PT e da CUT. Outra parte é impulsionada por militantes tão críticos contra a ação políticopartidária que agem como se os ‘movimentos sociais’ fossem capazes de resolver os problemas da conquista do poder e da construção do socialismo. É possível mudar o país, sem resolver o problema do poder, do Estado? É possível resolver o problema do poder, sem luta e organização político-partidária? Como evitar, nas condições políticas em que atuamos, que um partido de esquerda seja cooptado pela ordem burguesa? Ou que seja reduzido à condição de ‘eterna minoria’, como ocorre com a maioria dos partidos socialistas e revolucionários? Não responderemos essas questões transformando impaciência em argumento teórico nem esquecendo que nosso inimigo está à direita. Precisamos de força política e social para materializar uma estratégia e um programa alternativos. Força que não será produzida por uma derrota do nosso governo. Pois a derrota do governo Lula, se ocorrer, resultará numa brutal redução da força do socialismo e da liberdade na política brasileira. Por tudo isso, embora respeitando quem preferiu seguir outro caminho, continuaremos – enquanto for possível – a disputar os rumos do governo e do PT. Valter Pomar é 3º vice-presidente nacional do PT
Um partido para os trabalhadores
CAPITULAÇÃO GERAL
Nos anos 90, milhares de militantes sociais romperam com o petismo, sem se identificarem em geral com nenhuma alternativa partidária. O processo acelerou-se com a política do PT nas administrações estaduais e a capitulação geral registrada na Carta aos Brasileiros, antes das eleições de 2002. Em 2003, ele intensificou-se quando o governo de Lula da Silva radicalizou as políticas neoliberais de Fernando Henrique Cardoso. A formação de um governo dominado por representantes diretos do grande capital financeiro e exportador nacional (Rodrigues, Furlan) e internacional (Meirelles, Palocci) e os ataques aos trabalhadores e à previdência pública determinaram inevitável resistência social, que ensejou a ruptura entre o petismo e o funcionalismo público, coração, em 2003, dessa oposição, e base social histórica do PT. A oposição à reforma neoliberal da Previdência, liderada sobretudo pelos trabalhadores públicos, foi apoiada por quatro parlamentares radicais – Babá,
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m partido político é apenas um instrumento, não um fim em si mesmo. Um partido comprometido com os trabalhadores deve necessariamente constituir uma poderosa ferramenta da luta contra a opressão capitalista e pela construção de uma sociedade justa e fraterna. Os incessantes ataques do governo Lula da Silva contra os direitos históricos dos trabalhadores, materializados nas reformas previdenciária, universitária, sindical e trabalhista, explicitaram a dolorosa carência de partido de classe, com influência de massas, no Brasil. A recente fundação do Partido do Socialismo e da Liberdade (PSOL), em 5 e 6 de junho, em Brasília, com a participação de mais de oitocentos militantes sociais, de 22 Estados do Brasil, constitui esforço coletivo para a produção de um tal instrumento. O PSOL surge das necessidades do mundo do trabalho, quando ele é sistematicamente agredido por um governo dirigido por partido que, fundado no passado por militantes sociais, hoje prima pela rendição ao neoliberalismo; pelos ataques aos direitos sociais; pelo deslizar para o mundo obscuro da corrupção; pelo apoio ativo à política de dominação do imperialismo – envio de tropas ao Haiti; apoio à legitimação pela ONU da intervenção no Iraque etc. A atual metamorfose do PT não é fenômeno súbito. Fez parte desse processo o financiamento de campanhas por empresários; o abandono de reivindicações classistas; a burocratização das instâncias partidárias; a capitulação das administrações munici-
pais e estaduais diante do mundo do capital. Enquanto consolidava-se o conservadorismo petista, amadureciam as condições para a formação de um partido que retomasse e superasse as reivindicações históricas do PT. Um partido que abraçasse projeto classista e socialista, impulsionado por organização alicerçada na militância de base. Ki pp
Mário Maestri e Gilberto Calil
Heloisa Helena, João Fonte, Luciana Genro – que mantiveram intransigentemente seus compromissos com os trabalhadores, sendo, por isso, vilmente expulsos do PT. RECOMEÇAR DE NOVO
A mobilização dos trabalhadores públicos criou as condições conjunturais para a criação de movimento pela formação de um novo partido. Em janeiro de 2004, os deputados radicais e suas tendências; militantes e
intelectuais que haviam rompido com PT; um importante grupo de sindicalistas e militantes do PSTU e o Movimento Terra, Trabalho e Liberdade, ativo na luta contra o latifúndio, associaram-se no lançamento do Movimento por um Novo Partido. Lamentavelmente, as exigências da direção do PSTU impediram que a combativa militância desse partido se integrasse ao processo. Em Brasília, menos de cinco meses depois, realizou-se o Encontro Nacional de fundação do PSOL, com mais de oitocentos estudantes, professores, sindicalistas, camponeses, trabalhadores, de ambos os sexos, envolvidos na luta pelo trabalho, ensino, educação, terra para quem trabalha; contra a discriminação, a opressão e a violência de classe, raça e sexo. A realização do Encontro Nacional conclui a primeira fase de processo marcado por desafios e inevitáveis dificuldades. A definição do programa partidário provisório e dos estatutos do PSOL registrou o acordo político entre agrupamentos com tradições diversas. Representa um passo inicial na construção coletiva de programa que expresse as tendências e necessidades profundas da luta de classes no Brasil. Processo que procurará uma primeira síntese geral no II Encontro Nacional, programado para janeiro de 2005. IDENTIDADE MÍNIMA
Algumas definições do programa definem o compromisso do PSOL com a luta social, entre
elas, a democracia na luta pela imprescindível superação do capitalismo; o rechaço à conciliação de classes e a defesa do internacionalismo operário. Os estatutos ditam as normas para efetiva democracia interna; para o controle do partido pela militância; para a necessária organização em núcleos dos militantes; para a subordinação dos dirigentes e parlamentares à direção coletivamente construída. O mais urgente desafio do PSOL é a reunião de quase 440 mil assinaturas de apoio para a sua legalização. Mas, para além disso, colocam-se os desafios da luta social, marcados pelo prosseguimento da violenta ofensiva neoliberal, que exige uma forte, organizada e lúcida reação do mundo do trabalho. O desafio é igualmente imenso, no que se refere à construção orgânica do PSOL. Impõe-se sobretudo a estruturação dos núcleos de base; a gestação de política que lhe permita disputar a hegemonia na comunicação; a promoção de amplo debate sobre os estatuto e o programa provisórios; a organização da gestão democrática do partido. Esses desafios podem assustar os desavisados. Eles serão superados pelo entusiasmo da militância que resistiu às tentações do poder e à injunção de abater as armas diante dos hoje poderosos. Eles serão superados por militância que conhece a urgência da superação de ordem desapiedada que, fonte de violência e angústia de todos os tipos, ameaça em forma crescente a própria sobrevivência da humanidade. Mário Maestri e Gilberto Calil, historiadores, participaram da fundação do PSOL, em Brasília
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AGENDA CEARÁ MANIFESTAÇÃO CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE RUA Dia 17, às 16h Realizada pela Organização NãoGovernamental O Pequeno Nazareno (OPN), a manifestação vai fazer um protesto contra o descaso do governo em relação às crianças em situação de rua. A entidade, que fechará suas portas por falta de recursos, abriga crianças exmoradoras de rua no Estado do Ceará. As 80 crianças acolhidas no sítio da OPN, em Maranguape, terão de voltar a viver na rua. Durante o protesto, haverá uma encenação em que 91 meninos e meninas serão acorrentados, gesto simbólico para representar a condenação deles a viver em situação de rua. Local: Cruzamento da Av. Beira Mar com a R. Osvaldo Cruz (em frente ao McDonald´s) Mais informações: (85) 212-5727 10º GRITO DOS EXCLUÍDOS Dias 19 e 20, às 12h O lema do Grito este ano será “Brasil: mudança pra valer, o povo faz acontecer”. Deverão participar cerca de 50 pessoas, entre articuladores paroquiais da diocese e agentes de pastoral. Na programação: análise de conjuntura, painel com fotos da história do Grito e seu agendamento nas paróquias. O Grito dos Excluídos é um momento celebrativo que começou em 1995, com o lema “A vida em primeiro lugar”. Representa uma comemoração alternativa à data que simboliza a “suposta” independência do Brasil. Local: Diocese de Limoeiro do Norte, R. Cônego Climério, 2709, Limoeiro do Norte Mais informações: (88) 423-3222, (88) 423-1283, caritaslim@brisanet.com.br FESTAS JUNINAS Até dia 29, às 20h Promovidas pelo Instituto Amanaiara, as festas juninas da Grande Parangaba vão divulgar as quadrilhas dos dez bairros da região. As comemorações buscam resgatar as raízes culturais da população da Parangaba e fazem parte do
agenda@brasildefato.com.br
PARANÁ I SEMINÁRIO INDÍGENA DO PARANÁ Dias 16 e 17 de julho Devem participar representantes de todas as 17 reservas do Estado, além de pesquisadores e especialistas no assunto. Entre os temas a serem abordados, a participação dos índios nas universidades estaduais, a educação nas aldeias, além da agricultura de subsistência e da implementação de programas de saneamento básico. Do seminário devem ser retirados documentos a serem encaminhados aos órgãos federais ligados à questão indígena, como a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Local: Centro Cultural Indígena Juan Diego de Guarapuava Mais informações: (41) 350-4066, www.padrepaulo.com projeto “Chegada dos Caboclos – memória reconstruída pelo povo da Parangaba na atual Festa da Coroa do Bom Jesus dos Aflitos”. O projeto quer retomar a tradição do evento que data da colonização do Ceará, mostrando que a história do Estado começou na Parangaba, e tem o objetivo de sensibilizar a comunidade sobre sua história. Dias 19 e 26, haverá apresentação das quadrilhas da comunidade. Dia 29, a quadrilha escolhida como a melhor encerrará os festejos. No local, haverá também brincadeiras, música e barracas de comidas típicas. Local: Igreja Matriz, Parangaba Mais informações: (85) 245-1980, institutoamanaiara@hotmail.com
SÃO PAULO ABC SEM RACISMO Dia 17, às 19h A partir de grupos de trabalho serão apresentados projetos de interesse da comunidade afrodescendente a serem implementados em parceria com o poder público, empresas, organizações não-governamentais nacionais, internacionais e fundos públicos. Local: Teatro Cacilda Becker, Pça. Samuel Sabatini, 50, São Bernardo do Campo
Mais informações: (11) 9337-3646, lpachecorodrigues@yahoo.com.br I CONFERÊNCIA MUNICIPAL DE CULTURA DE SÃO PAULO De 18 a 20 O evento tem como objetivo sistematizar demandas, propostas e diretrizes de políticas públicas que ampliem e consolidem o processo cultural da capital paulista. Promovida pela Secretaria Municipal da Cultura de São Paulo, a conferência foi precedida por onze pré-conferências. Com o tema geral “A cultura em São Paulo: diversidade e direitos culturais”, o encontro pretende debater duas variáveis: como ampliar, diversificar e descentralizar os mecanismos de produção e preservação no setor cultural; e também como perceber, reconhecer e ampliar os direitos culturais do cidadão. Local: Museu da Cidade de São Paulo, Av. Mercúrio, s/n (antiga sede da Prefeitura), São Paulo Mais informações: (11) 3334-0001, ramal 1954, www.prefeitura.sp.gov.br PLENÁRIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Dia 26, das 9h às 13h Organizada pela Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), a plenária vai abordar a seguinte pauta:
A base revolucionária de Lenin Este livro sintetiza os principais conceitos que Lenin utilizou na conformação de sua condução política, científica e, portanto, revolucionária. Partindo de um estudo minucioso dos escritos de Lenin, a autora oferece aos leitores os fundamentos teóricos dos conceitos de estratégia e tática que, por sua vez, estão estreitamente vinculados com os conceitos de correlação de classes e de correlação de forças. A estes conceitos estão agregados elementos básicos da direção política: sua sabedoria para definir em cada conjuntura o elo decisivo da cadeia de acontecimentos ali presentes e sua flexibilidade para buscar uma melhor solução sem abandonar os princípios fundamentais. campanha contra o desemprego, senso nacional de desempregados, organização do senso no Estado de São Paulo, mobilização e organização da CMS para o segundo semestre, Grito dos Excluídos,
CONFIRA Estratégia e tática Marta Harnecker 160 páginas, R$ 8 Editora Expressão Popular R. Abolição, 266, Bela Vista, São Paulo Tel. (11) 3112-0941 www.expressaopopular.com.br Audiência com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Local: Pça. da República, 282, São Paulo Mais informações: (11) 3105-2516, (11) 3819-3876
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CULTURA
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FESTAS JUNINAS
São João recupera a alegria do povo
Bernardete Toneto da Redação
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unho é mês de festa em todo o Brasil, em especial no Nordeste, que pára na comemoração do “São João”. Em reverência a Santo Antônio, São João e São Pedro, milhares de pessoas entram no clima do forró, das quadrilhas e dos bacamarteiros, numa celebração que, em muitos locais, é mais importante do que as comemorações de Natal e Carnaval. Catarse? Alienação? No país recordista de desemprego, tudo acaba em festa? Para a antropóloga Rita Amaral, da Universidade de São Paulo, é preciso ir além das bandeirinhas e fogos para entender a festividade brasileira. “Quando se ouvem afirmações deste tipo, freqüentemente indignadas, sobre o caráter nacional, a impressão que se tem é a de que, por trás delas, existe a percepção de uma atitude francamente inconseqüente, por parte dos brasileiros, em relação aos rumos que tomam as ações dos indivíduos, grupos e instituições. Isso não é verdade”. Autora da tese de doutorado Festa à brasileira, Rita considera que as festas ocupam um espaço privilegiado na cultura brasileira. Tendo sido, desde o período colonial, um fator constitutivo de relações e modos de ação e comportamento, é uma das linguagens favoritas do povo. “É o modo de se resolver, ao menos no plano simbólico, algumas das contradições da vida social. Contrariamente à idéia de alienação, a festa deve ser vista como uma dimensão de aprendizado da cidadania e apropriação de sua história por parte do povo”, diz.
Fotos: Agência Enfoco
Em todo o país, comunidades se unem, recuperam a noção de cidadania e mostram a força da cultura popular
Festa do Cuscuz Gigante no Alto do Moura (Caruaru-PE), realizada no último domingo, depois da Caminhada do Forró
A cada ano, o crescimento das festas juninas de Caruaru (PE) e Campina Grande (PB) é mais significativo. Nas duas cidades, que disputam o título de “capital do forró”, durante todo o mês de junho os acordes das sanfonas, dos triângulos e das zabumbas arrastam milhares de pessoas ao longo das ruas, nas palhoças e por todo o pátio de eventos. Em Caruaru, são mais de 200 ruas enfeitadas com bandeirinhas e balões para o passeio das quadrilhas.
Atualmente, a partir das quadrilhas comuns, em Caruaru já surgiram a Gaydrilha, a Sapadrilha e a Trokadrilha, que incorporam mudanças de comportamento e, segundo Rita , abrem espaço para a tolerância. Um exemplo é a Gaydrilha, fundada em 1989 por um movimento homossexual. Já a Sapadrilha é uma quadrilha só de mulheres, vestidas de matutos e matutas, enquanto na Trocadrilha os homens se vestem de mulheres, as mulheres de homens. “Eles
dançam juntos, irreverentemente, mostrando que os aspectos de inversão também se fazem presentes nesta festa, do mesmo modo que no Carnaval”, diz Rita. Conforme a antropóloga, a perspectiva das festas juninas transforma as cidades e o espírito das pessoas. “Muitos nordestinos que se encontram fora de seus
Estados costumam economizar dinheiro, presentes, e voltar com eles para sua cidade natal, na época das festas juninas, a fim de comemorar os santos”. No Sudeste, é comum que nordestinos abandonem seus empregos, faltem por toda uma quinzena, peçam licença ou ofereçam-se para trocar o período do Natal por alguns dias de folga em junho, ou ainda negociem suas férias para gozá-las no meio do ano e poderem estar presentes às festas juninas, em sua terra”.
Bacamarteiros – Grupos de tradição centenária, formado por vaqueiros, agricultores e artesãos, que se apresentam divididos em “batalhões”. Os bacamartes são copiados de modelos de antigas granadeiras usadas pelas tropas sertanejas, que lutaram na Guerra do Paraguai. Drilhas – Originalmente, dança de origem francesa, que foi assimilada pelo povo, com o uso de sanfona, triângulo e a zabumba.
O Brasil é o país mais festeiro do mundo: são mais de duas mil comemorações por ano, numa média de 5,5 festas por dia. Como o povo, desempregado e sem dinheiro, faz para celebrar? “Pela organização, que se fosse aplicada na esfera política, faria desse um país muito melhor”, diz a antropóloga Rita Amaral. Autora da tese Festa à brasileira - Sentidos do festejar no país que “não é sério”, Rita cita o São João como exemplo de articulação social e de recuperação da cidadania. Brasil de Fato – O povo brasileiro tem motivos para festejar? Rita Amaral – O brasileiro, de fato, nunca precisou de um motivo melhor do que o de estar vivo pra festejar. Desde o período colonial, época de desbravamento, de escassez, de estranhamento do clima e da natureza, do encontro do outro (os portugueses estranhando os índios e vice-versa) e depois, os negros, todos muito diferentes uns dos outros, o país era só festa. A chave para entender isso é justamente o fato de a festa ser uma pausa na vida severina do brasileiro. Festa é prazer, é lazer e descanso das preocupações imediatas. Por outro lado, bem ou mal, nas festas fica claro que o povo brasileiro se apoderou de seu destino. BF – As festas populares são sinal de resistência do povo? Rita – Eu não gosto muito de
Quem é Doutora em Antropologia pela Universidade de São Paulo, Rita Amaral, 46 anos, desenvolveu pesquisas sobre o estilo de vida dos adeptos do candomblé paulista, relações raciais e festas brasileiras. Atualmente é pesquisadora do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo (USP). pensar na festa como elemento de resistência, nem como alienação. Para mim a festa está acima disso, é uma espécie de crítica social e cultural, uma linguagem para a qual os brasileiros traduzem sua crítica em forma de arte e alegoria. Comemora-se o que não deve ser esquecido, ignorase o que deve ser relegado ao esquecimento, ridiculariza-se o que não tem sentido etc. BF – A grande mídia está cada vez mais de olho em manifestações como o São João de Caruaru. Qual sua opinião sobre isso? Rita – Vejo com reservas essas tentativas de apropriação, mas tem seu lado positivo. É muito bom que hoje todos possam conhecer a beleza e originalidade do São João de Caruaru, o modo de ser alegre e honrado dos pernambucanos, a riqueza de sua música, da poesia, das comidas e tudo o mais. Isso ajuda a con-
Arquivo pessoal
Festa é espaço para a prática da cidadania
trapor a imagem estereotipada do retirante derrotado pela seca, montado num jegue e faminto. BF – Mas não existe uma tentativa de apropriação da cultura popular? Rita – Se há um povo que conseguiu estabelecer estratégias fenomenais de sobrevivência é o povo nordestino. Resiste no Nordeste. Ou então vai para as grandes cidades sem emprego, sem especialização, sem escolaridade, e em geral consegue sobreviver. É bom que a TV mostre que há outro Nordeste e que a festa leve água encanada, esgoto, oportunidades de trabalho para as cidades. É essencial que as decisões sobre como isso deve ser feito e quais os limites das adaptações sejam estabelecidos pelos grupos que organizam a festa e não pe-
las megaagências de promoção cultural. E não se deve ter medo de apropriação, pois o povo não deixa, percebe quando está sendo manipulado. BF – Qual é a conotação política da festa? Rita – Se você atentar para o que acontece nas festas, vê que são comemorados os acontecimentos que o povo considera relevantes. Não se tem um 7 de Setembro do vulto do São João porque a independência do Brasil passou à margem da população brasileira, assim como a proclamação da República. O 7 de Setembro o povo vê da calçada, enquanto a festa de São João é construída pelo povo, feita pelos pobres. BF – Então, fazer festa é fazer política? Rita – É uma maneira diferente de fazer política. Na festa se constrói uma cidadania paralela, não é política ainda porque não reivindica o Estado, mas a cidadania se constrói naquele espaço. É a mesma coisa que acontece nos morros, nas favelas, só que de forma não violenta. BF – Fazer festa em uma realidade de crise como a brasileira não é alienação? Rita – Uma coisa tem de ficar claro: o brasileiro é muito mais festivo do que outros povos, é a essência da nação. Agora, alguns dizem que a festa é a ne-
gação da ordem vigente, que as pessoas festejam para descansar da ordem política, econômica e social. Outros dizem exatamente o contrário, que a festa comemora o status quo. Para mim, não é uma coisa nem outra: o Brasil usa a festa para retratar o que acontece no momento. Não tem nada de alienação, é uma consciência positiva, que serve inclusive para marcar o lugar na sociedade. BF – Comemorar o São João nas grandes cidades não é uma caricatura do mundo rural? Rita – A festa de São João tem raízes rurais, e as diferenças entre rural e urbano são cada vez menores em termos de equipamentos e conhecimentos. Permanece, no entanto, o modo de ser. A cultura é uma dimensão dinâmica da humanidade. Muitas vezes é preciso mudar e se adaptar para permanecer. Hoje há contingentes jovens que querem oferecer sua contribuição à tradição também, como os que criaram a Sapadrilha e as outras quadrilhas irreverentes. BF – O que não pode faltar numa festa de São João? Rita – Devoção, fogueira, pipoca e quentão. E quadrilha. Mas como em qualquer festa, também não pode faltar gente disposta a trabalhar para que o divertimento seja bom. Aliás, se fôssemos bons em organização política como somos em organização para a festa, esse país já seria muito melhor.