BDF_70

Page 1

Ano 2 • Número 70

R$ 2,00 São Paulo • De 1º a 7 de julho de 2004

Novo golpe contra a reforma agrária Ruralistas usam CPMI da Terra para criminalizar movimentos sociais e desmoralizar e enfraquecer o governo

O agronegócio liqüida milhões de empregos

Chico Siqueira/Agência Estado/AE

Aumentam as remessas das transnacionais Empresas estrangeiras engordam as remessas de lucros para o exterior. Até maio, as transnacionais retiraram 3,23 bilhões de dólares do país – 51% a mais do que o mesmo período em 2003. Como a economia cresce lentamente, as empresas conseguiram aumento da lucratividade com redução de empregados e elevação de preços, explica o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Unicamp. Pág. 8

Cerca de 120 famílias, que há 7 anos ocupavam fazenda em Coroados (SP), são despejadas por determinação da Justiça Oded Balilty/AP/AE

A

Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Reforma Agrária se transformou em instrumento da bancada ruralista para desmoralizar a reforma agrária. Para o deputado João Alfredo (PT-CE), os latifundiários querem enfraquecer o governo e criminalizar os movimentos sociais. No dia 15 de junho, a CPMI aprovou a transferência dos sigilos bancário e fiscal de duas entidades que apóiam organizações de luta pela terra para a comissão. Enquanto isso – No Plano Safra 2004-2005, o governo destina R$ 7 bilhões para créditos à pequena agricultura. E João Paulo Rodrigues, coordenador do MST, reafirma a confiança na reforma agrária do governo Lula, lembrando que, pela primeira vez na história, há tal volume de recursos para custeio e investimento para os assentamentos. Págs. 2 e 5

A agricultura que lidera as exportações é a mais mecanizada, intensiva de capital, que exclui de seus ganhos milhares de famílias de pequenos e médios agricultores. Por isso, o aparente “sucesso” do agronegócio é acompanhado por crise na agricultura familiar, diz o economista Carlos Eduardo Frickmann Young, da UFRJ, que calcula que a agropecuária desempregou 2,5 milhões de trabalhadores entre 1990 e 2002. Quaisquer que tenham sido os destinos dessas pessoas, todos têm conseqüências sociais e ambientais graves – inchaço das regiões urbanas; deslocamento da fronteira agrícola e avanço do desmatamento; proliferação de bóias-frias. Pág. 7

Em maio, a taxa de desemprego foi de 12,2%, pouco menor do que a dos meses anteriores. O governo festejou. Caiu no conveniente esquecimento que, até meados dos anos 90, as taxas de desemprego eram de 4% a 5%. Ocorre que a melhoria nos indicadores poderia significar que menos pessoas procuraram trabalho, ou que mais gente foi para a informalidade. Em maio, a renda continuou caindo. Pág. 6

Para o sociólogo Atilio Boron, o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, espera o apoio do presidente Lula na resistência a organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI). Esta semana, movimentos de desempregados argentinos voltaram a ocupar as ruas em várias cidades, reivindicando políticas sociais. Pág. 10

Leilão coloca à venda soberania petrolífera Manifestantes protestam durante a reunião de líderes da Otan em Istambul, na Turquia, dia 28 de junho Marcio Baraldi

Uma análise das políticas de Kirchner

Enquanto a grande mídia oculta uma farsa ao noticiar que os EUA devolvem a soberania ao Iraque, o presidente Bush manobra para não ser responsabilizado pela repressão aos protestos contra a invasão. França e Alemanha aceitam participar dos negócios da reconstrução do Iraque, em reunião da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Pág. 11

Todo cuidado é pouco com as estatísticas

Segundo a lei, procurador não pode investigar A Constituição determina que as investigações criminais são função da polícia. Para o juiz de direito Barros Vidal, a condução de inquéritos policiais pelo Ministério Público acontece, hoje, porque o sistema policial é caótico. Apesar dessas investigações muitas vezes serem produtivas, não podem servir de justificativa para o Estado desrespeitar a lei. Pág. 4

Após a farsa no Iraque, EUA em paz com Europa

E mais: PLANO PATRIOTA – Envoltas em silêncio, começaram em junho as ações militares na Colômbia, com a participação ativa dos Estados Unidos. O Plano Patriota envolve aparato de alta tecnologia, contra as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Pág. 9 ÁFRICA – Destruída pelas políticas do FMI e do Banco Mundial, a Zâmbia sofre as conseqüências do neoliberalismo: explosão da dívida externa, sucateamento da indústria, fim de subsídios agrícolas e fome de 50% da população. Pág. 12

De maneira discreta, o governo federal anunciou, para 15 de agosto, um megaleilão de reservas petrolíferas brasileiras, avaliadas em 3,3 bilhões de barris. A 6ª rodada de licitação de áreas sedimentares abrirá ao capital estrangeiro áreas de prospecção onde a Petrobras já encontrou 6,6 bilhões de barris de petróleo, correspondentes à metade das reservas comprovadas do país. Cerca de 70 entidades estão mobilizadas contra o negócio, comparado “à oferta de um filé mignon”, pelo secretário-executivo do Ministério das Minas e Energia (MME). Págs. 8 e 14


2

De 1º a 7 de julho de 2004

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

��� • Editor-chefe: Nilton Viana

���• Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Bernardete Toneto, 5555 Marilene Felinto, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu ���• Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino ���• Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles ���• Ilustradores: Agê, Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, 5555 Natália Forcat, Nathan, Novaes, Ohi ���• Editor de Arte: Valter Oliveira Silva ���• Pré Impressão: Helena Sant’Ana ���• Revisão: Dirce Helena Salles ���• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Bruno Fiuza e Cristina Uchôa 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: FolhaGráfica 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

CARTAS DOS LEITORES POLÍTICA ECONÔMICA A CUT do Rio Grande do Sul avalia como equivocada a postura da equipe econômica do governo Lula, de fazer poupança interna para saldar compromissos assumidos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) com recursos que deveriam ser aplicados no fortalecimento da economia interna e em políticas sociais, ponto nevrálgico do governo. O superávit primário de R$ 38,268 bilhões, obtidos nos cinco primeiros meses do ano, anunciado dia 25 pelo Banco Central, não se traduz em benefícios para a sociedade brasileira. Deixa claro apenas que é possível baixar a taxa de juros, estimulando a produção e o consumo, molas necessárias para a geração de empregos. Atualmente, os poucos empregos gerados flutuam em torno das exportações – que são importantes – mas não estão voltados para o fortalecimento do consumo interno. O aumento da produção e a conseqüente geração de novos postos de trabalho exigem, primeiro, esforços no sentido de se fortalecer o mercado interno, que se faz com distribuição de renda e elevação do poder aquisitivo do trabalhador. Quintino Severo presidente da CUT-RS

AUDIOVISUAL O Brasil é uma das nações campeãs em injustiça social, corrupção e hipocrisia política. Fatos sobre esses temas são numerosos e os mais graves são exatamente os menos divulgados, questionados e compreendidos. Em vários outros países, existem produções televisivas e cinematográficas que abordam com contundência esses temas, dentro de sua realidade. Porém, até o momento, desconheço quaisquer produções audiovisuais relevantes com características informativas e questionadoras a respeito dos grandes problemas brasileiros. Portanto, concluo que não existem brasileiros solidários com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça. Será que teremos que esperar que o Michael Moore ou Mark Achbar venham ao nosso país para cumprir a tarefa de colocar um enorme espelho nas telas de cinema, para que nossa sociedade se conheça melhor? Será que a maioria das pessoas ficaria indiferente se soubesse, por audiovisual, sobre fatos escabrosos que são conhecidos somente pelas pessoas que lêem periódicos como o Brasil de Fato? Se o conhecimento de fatos relevantes é um direito do cidadão, por que esse direito lhes é negado? Renan Rocha por correio eletrônico

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 3038 1432 ou mande uma mensagem eletrônica para: brasildefato@teletarget.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815

NOSSA OPINIÃO

Uma CPMI Pró-Latifúndio

A

Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Terra, composta de senadores e deputados, foi convocada pela bancada ruralista, a fim de criminalizar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O senador Eduardo Suplicy (PT/SP) condicionou sua assinatura ao alargamento do escopo da comissão. A direita não teve como negar e o tiro saiu pela culatra. Em vez de criminalizar o MST, os depoimentos começaram a mostrar o que, aliás, todos sabem: a violência no campo é o resultado da pobreza e esta é o resultado da inominável concentração da propriedade da terra. Se seguisse essa trajetória, a CPMI poderia se tornar um importante instrumento de combate à pobreza, à violência e à concentração fundiária em nosso país. Infelizmente, não é essa a intenção dos parlamentares que representam o latifúndio na CPMI. Há cinco séculos, o latifúndio se mantém intocável no território nacional – situação mantida às custas do assassinato de trabalhadores rurais, agentes pastorais, advogados e lideranças sindicais. Fortemente representado em todas as esferas e poderes do Estado, o latifúndio construiu um aparato de leis que permite impedir todas tentativas de democratizar o acesso às terras agrícolas. Desesperados, os parlamentares da bancada ruralista – a fim de evitar que a sociedade soubesse a excrescência que é o latifúndio – inventaram uma saída: abrir as contas de duas entidades que trabalham com

os sem-terra: a Anca e a Concrab. Objetivo: provar que dinheiro do governo é desviado para financiar ocupações de terras. A direita acredita que, dado o grande movimento de dinheiro dessas duas entidades, alguma irregularidade surgirá. Os membros da CPMI indicados pelos partidos de esquerda não tiveram dúvida: votaram unanimemente pela abertura do sigilo. Mas os membros indicados pela direita não tiveram a mesma coragem e negaram o pedido para a abertura do sigilo da UDR, da CNA e da OCB. A ação dos parlamentares do latifúndio é para fragilizar as organizações dos trabalhadores e proteger as dos latifundiários. Tiveram êxito. Mas mostraram para a sociedade que não há transparência no uso do dinheiro público que suas entidades recebem. Essa postura não pode ser vista de forma isolada e está afinada com a outra face do latifúndio: o agronegócio. Apresentada à sociedade como exemplo de modernidade e geradora de superávit comercial – recursos integralmente remetidos novamente ao exterior para pagamento dos juros da dívida externa –, a agroexportação esconde outra faceta: o trabalho escravo, a exploração do trabalho assalariado e a depredação do meio ambiente. Sedento para aumentar a área de plantio para produtos de exportação, o agronegócio se alia ao latifúndio atrasado para combater a luta pela reforma agrária e as organizações

dos trabalhadores rurais sem terra. Não há novidade nos esforços de quebrar o sigilo bancário e fiscal das organizações que fazem trabalho em defesa da reforma agrária. A única novidade é o ano eleitoral. A presidência dessa CPMI e quaisquer iniciativas contra os sem-terra garantem amplos espaços na mídia – sempre afinada com o latifúndio. As entidades dos trabalhadores deverão prestar contas do uso da verba pública. O mesmo deveria acontecer com os recursos recebidos pelos latifundiários, pelo agronegócio, pelos bancos, pela mídia, pela agiotagem internacional. Afinal, é dinheiro do povo brasileiro. A este deve ser prestado contas. O que chama a atenção é o desleixo da esquerda e do governo diante de uma comissão de tal importância. A maioria dos membros da CPMI indicados pelos partidos de esquerda nem estava na reunião. O governo, que tem maioria no Congresso, não conseguiu impedir que partidos da sua própria base indicassem parlamentares que se elegem lutando contra o MST. Assim, o latifúndio prevalecerá mais uma vez. Os tigres de papel, como Fernando Henrique Cardoso chamava os latifundiários, no governo Lula poderiam ter sua existência relegada aos primeiros cinco séculos da história do nosso país. A eliminação do latifúndio atenderia a uma das maiores aspirações do povo brasileiro. Aspiração que, tudo indica, ainda não será atendida.

FALA ZÉ

OHI

CRÔNICA

A arte da tortura e a tortura da arte Renato Pompeu

Uma das coisas que estão sendo discutidas nos Estados Unidos, em relação à guerra no Iraque, é como o ambiente geral das fotos de militares estadunidenses torturando prisioneiros iraquianos lembra o ambiente geral da arte contemporânea, particularmente nos EUA. Um jornalista chegou a perguntar como é que as pessoas se chocavam com imagens semelhantes às que são premiadas, como obras de arte, pela Dotação Nacional das Artes (NEA, na sigla em inglês), órgão federal que subsidia especialmente as artes plásticas. De fato, os artistas contemporâneos, nos Estados Unidos, mas também na Europa e no Japão, mostram um certo deleite em criar representações de olhos furados, corpos mutilados, membros esmagados, cenas de perversão sexual, genitália destruída e outras imagens que, como obras de arte que são, estão destinadas a agradar o seu público. Que público é esse que aprecia essas cenas e depois protesta contra as torturas fotografadas? Serão esses prazeres inerentes ao ser humano, que seria naturalmente mau, ou serão algo característico do nosso tempo, em que as individualidades estão esmagadas

em nome de um individualismo que só beneficia no máximo um por cento dos indivíduos? Corpos maltratados, porém, não são apenas requintes da grande arte contemporânea. Podemos ver na televisão que os filmes e seriados estadunidenses, que fazem parte da cultura de massa criada pela indústria cultural dos EUA, são sempre, inexoravelmente, recheados de violências, seja a mãos nuas, seja com armas de fogo ou espadas de ferro ou de raios de luz, seja de veículos que explodem em chamas ou se arrebentam espetacularmente. Essa é uma cultura generalizada pelo capitalismo globalizado. Os criadores e fabricantes desses horrores culturais, seja da alta arte, seja da cultura popular, se defendem dizendo que a natureza humana é assim mesmo, que o ser humano é agressivo por natureza, é competitivo por natureza e sempre tem em mente esmagar, até fisicamente, os seus adversários. Mas, se isso for verdade, por que é que essas cenas são tão populares justamente agora, e não foram apreciadas ao longo dos milênios da história da humanidade, nem, se acrescente, nos países socialistas?

Na televisão e ao vivo, se repetem outros espetáculos de violência, apresentados como shows que agradam as pessoas. Embora o boxe, por exemplo, seja condenado por muitas instituições, entre elas a Igreja Católica Romana, “esportes” muito mais brutais do que o boxe já fazem parte do cotidiano de muita gente que os acompanha na televisão, e, principalmente nos Estados Unidos, também ao vivo, em ginásios com ingresso pago. São atração especial as brigas brutais entre mulheres. A violência sempre existiu, mas era compartimentada no tempo e no espaço — hoje ela ocupa o cenário inteiro e o tempo todo das pessoas. É por isso que o jornalista estadunidense perguntou: afinal, por que tanto escândalo com as fotos de tortura do Iraque, se cenas muito piores fazem parte do nosso cotidiano artístico e cultural? Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor de Canhoteiro, o homem que driblou a glória (Ediouro) e Memórias de uma bola de futebol (Editora Escrituras)

Brasil de Fato é o resultado das aspirações de milhares de lutadores de movimentos populares, intelectuais de esquerda, sindicatos, jornalistas e artistas que se uniram para formar uma ampla rede nacional e internacional de colaboradores. • Como participar: Você pode colaborar enviando sugestões de reportagens, denúncias, textos opinativos, imagens. Também pode integrar a equipe de divulgação e venda de assinaturas. • Cadastre-se pela internet: www.brasildefato.com.br. • Quanto custa: O jornal Brasil de Fato custa R$ 2,00 cada exemplar avulso. A assinatura anual, que dá direito a 52 exemplares, custa R$ 100,00. Você também pode fazer uma assinatura semestral, com direito a 26 exemplares, por R$ 50,00. • Reportagens: As reportagens publicadas no jornal podem ser reproduzidas em outros veículos - jornais, revistas, e páginas da internet, sem qualquer custo, desde que citada a fonte. • Comitês de apoio: Os comitês de apoio constituem uma parte vital da estrutura de funcionamento do jornal. Eles são formados nos Estados e funcionam como agência de notícias e divulgadores do jornal. São fundamentais para dar visibilidade a um Brasil desconhecido. Sem eles, o jornal ficaria restrito ao chamado eixo Rio-São Paulo, reproduzindo uma nefasta tradição da “grande mídia”. Participe você também do comitê de apoio em seu Estado. Para mais informações entre em contato. • Acesse a nossa página na Internet: www.brasildefato.com.br • Endereços eletrônicos: AL:brasil-al@brasildefato.com.br•BA:brasil-ba@brasildefato.com.br•CE: brasil-ce@brasildefato.com.br•DF:brasil-df@brasildefato.com.br•ES:brasil-es@brasildefato.com.br•GO:brasil-go@brasildefato.com.br•MA:brasil-ma@brasildefato.com.br•MG:brasil-mg@brasildefato.com.br•MS:brasil-ms@brasildefato.com.br•MT:brasilmt@brasildefato.com.br•PA:brasil-pa@brasildefato.com.br•PB:brasil-pb@brasildefato.com.br•PE:brasil-pe@brasildefato.com.br•PI:brasil-pi@brasildefato.com.br•PR:brasil-pr@brasildefato.com.br•RJ:brasil-rj@brasildefato.com.br•RN:brasil-rn@brasildefat o.com.br•RO:brasil-ro@brasildefato.com.br•RS:brasil-rs@brasildefato.com.br•SC:brasil-sc@brasildefato.com.br•SE:brasil-se@brasildefato.com.br•SP:brasil-sp@brasildefato.com.br


3

De 1º a 7 de julho de 2004

NACIONAL POVOS INDÍGENAS

Fórum organiza luta nacional por direitos da Redação

E

ntidades que lutam pelos direitos dos povos indígenas lançaram, dia 23 de junho, em Brasília (DF), o Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas. O objetivo é unir as diversas realidades indígenas espalhadas pelo país “numa só discussão, capaz de ganhar mais força junto às autoridades”. O calendário de atividades e as diretrizes básicas de funcionamento do grupo, em todas as regiões, devem ser definidas em curto prazo. No primeiro momento, o Fórum trabalhará com questões consideradas emergenciais – terra, saúde e mineração em terra indígena. Aproximadamente 100 representantes de entidades participaram do lançamento, na 6ª Câmara do Ministério Público. Entre as personalidades, estavam dom Tomás Balduíno, presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e o procurador-geral da República Cláudio Fonteles. Integram o movimento, entre outros, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Instituto Socioambiental (ISA), Conselho Indígena de Roraima (CIR), Comissão Pró-Yanomami, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazô-

Antonio Cruz/ABr

Grupo pretende lutar pelos direitos indígenas. Terra, saúde e combate à mineração têm prioridade

Documento de fundação do Fórum aponta que a relação entre os índios e o Estado tem sofrido retrocesso

nia Brasileira (Coiab), Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Indígenas. O documento de fundação do Fórum sinaliza para uma “real ameaça aos direitos indígenas” e para um “retrocesso” nas relações entre Estado e índios. “Os resultados desse retrocesso já são visíveis no acirramento

de conflitos, no aumento da violência contra indígenas, no incremento de posturas racistas e preconceituosas e na iniciativa de agentes do Estado em cercear a aplicação dos direitos indígenas”, diz o texto.

PRIMEIRA DENÚNCIA Segundo Jecinaldo Saterê Mawé, coordenador da Coiab, inicialmente

o objetivo é fazer um dossiê abordando a atual situação do atendimento à saúde indígena, depois das mudanças ocorridas na Fundação Nacional de Saúde (Funasa), e a urgente homologação da terra Raposa-Serra do Sol. O dossiê deve abordar também a mineração em terra indígena, principalmente na reserva Roosevelt, do povo Cinta Larga.

Depois de deixar a terra tradicional Mata Alagada, localizada no município de Lagoa da Confusão (TO), retomada dia 10 de junho, o povo Krahô-Kanela volta à estaca zero. A situação dessa nação foi a primeira denúncia feita ao Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas. A Justiça Federal, dia 16 de junho, expediu liminar de reintegração de posse contra o povo, depois que o juiz, de Cristalândia, transferiu a competência à instância federal. Um acordo firmado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), de agilizar o processo de regularização do território Mata Alagada e de providenciar, até que seja concluído o processo, um local onde eles possam ficar, fez com que os Krahô-Kanela deixassem a área. Em Brasília, a situação foi relatada pelo cacique Mariano, que afirmou apenas querer a terra que lhes foi tirada há mais de 20 anos. “Nós fomos forçados a ocupar a área por causa da omissão da Funai. O estudo da nossa terra está muito lento, parece que eles passam muito tempo sem olhar para os papéis. Isso forçou a gente a entrar na nossa terra tradicional”, disse. (Cimi, www.cimi.org.br)

ALCÂNTARA

Entidades pedem apoio para desalojados

As 153 comunidades remanescentes de quilombolas de Alcântara, no Maranhão, receberam a atenção especial de três entidades ligadas aos direitos humanos e moradia. Em declaração conjunta, o Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (Cohre), Social Watch e o Centro de Justiça Global ressaltam que as comunidades travam “uma penosa luta pela garantia de implementação de seus direitos

humanos fundamentais e contra a ocorrência de violações principalmente no que se refere ao direito à moradia adequada”. De acordo com os organismos, desde a implementação do Centro de Lançamentos de Alcântara, em 1984, foram deslocadas 312 famílias pertencentes a 32 comunidades tradicionais. As famílias foram reassentadas em agrovilas, inadequadas “pois o solo não oferece condições férteis e o deslocamento afastou as comunidades da costa litorânea, principal fonte da pesca

GREVE

O Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp) não aceitou retomar as negociações com o Fórum das Seis, entidade que agrega os sindicatos de professores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e do Centro Paula Souza. A decisão foi tomada após o envio da contraproposta do Fórum, que reivindica um reajuste na data-base de 9,41%, compostos de 4,37%, correspondentes à inflação de maio de 2003 a abril de 2004 (ICVDieese), mais 4,83% referentes às perdas salariais desde maio de 2001. Outra solicitação foi a mudança no parâmetro de arrecadação do ICMS na fórmula de política salarial em negociação para R$ 32 bilhões, em vez dos R$ 32,4 bilhões defendido pelo governo estadual. A proposta original do Fórum era um reajuste de 16% na data-base e um parâmetro de arreacadação do ICMS de R$ 31,2 bilhões. O parâmetro define o valor mínimo que deve ser arrecadado para que haja reajustes em outubro e janeiro, como parte de uma política salarial. Em nota oficial, o Cruesp se declarou surpreso com as reivindicações. “Ambas já foram objeto de extensa

55% do município. Novos deslocamentos já estão programados para que o Centro de Lançamentos seja expandido.

REIVINDICAÇÕES As entidades solicitam que as comunidades já deslocadas tenham atendidas suas reivindicações relativas à provisão de moradia e terra adequada para morar e trabalhar, acesso à educação de qualidade, transporte público, serviço de água e tratamento de esgoto. Pedem ainda que as comunidades que es-

tejam ameaçadas de deslocamento devido ao projeto de expansão da base sejam amplamente consultadas e que as transferências sejam suspensas. A declaração pede o apoio de pessoas e entidades solidárias aos remanescentes de quilombolas de Alcântara. O apoio pode ser expresso por meio de mensagem aos endereços eletrônicos: cohreamericas@cohre.org (Cohre); defensores@global.org.br (Centro de Justiça Global); socwatch@chasque.net (Social Watch). (Adital, www.adital.org.br)

SALÁRIOS

Reitores se recusam a discutir contraproposta Dafne Melo da Redação

dessas populações”. Os representantes das entidades constataram ainda que os quilombolas também são prejudicados pela falta de acesso à água. O documento ressalta denúncias já feitas pelos diversos sindicatos, associações e organizações não governamentais que atuam no município. Uma delas é o fato de os quilombolas não terem recebido títulos de propriedade das terras desde o deslocamento para outras áreas, para que a construção da base militar, que já ocupa

discussão na última reunião deste Conselho com o Fórum, em 22 de junho, na qual o Cruesp manifestou, de maneira muito clara e fundamentada, a impossibilidade de atendimento”. Na nota, o Cruesp ainda afirma que mesmo um reajuste com base na inflação, em torno de 4%, já teria sido negado na mesma reunião. “Assim, o Cruesp não considera necessário o agendamento de uma reunião de negociações para discutir pontos que já foram exaustivamente discutidos anteriormente”, conclui a nota. De acordo com Américo Kerr, presidente da Associação de Docentes da USP (Adusp), a resposta do Cruesp mostra a falta de compromisso do governo do Estado de São Paulo com o ensino superior público e gratuito. “O Estado aplica apenas 3,5% do seu do PIB em Educação incluindo primeiro, segundo e terceiro graus. Em países desenvolvidos, esse investimento chega a 6%”, alega. Kerr também criticou a postura dos reitores das três universidades, “que adotaram o discurso do governo do Estado de que se não há recursos, a saída é promover arrocho salarial dos trabalhadores”. Os próximos passos do Fórum das Seis em relação a negociação do reajuste serão definidos em reunião no dia 1º de julho – quando a entidade também fará um ato em frente à reitoria da Unicamp, exigindo a reabertura das negociações.

CUT anuncia campanha unificada da Redação

O lançamento da campanha salarial unificada do segundo semestre, com uma pauta comum às categorias, será dia 16 de julho, “Dia Nacional de Lutas e Mobilizações – Por Mudança na Política Econômica”. Nesse dia, todas as CUTs estaduais deverão organizar manifestações nas capitais e no maior número de cidades possível, com panfletagens, assembléias e paralisações. “O objetivo da Central é colocar a luta pelo salário além das categorias, fazer disputa com o capital na sociedade”,

Crianças contra trabalho infantil Dia 29 de junho, crianças do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua do Paranoá fizeram uma manifestação contra o trabalho infantil na Índia. O ato aconteceu na entrada da Embaixada do país em Brasília e reuniu cerca de 40 crianças, das quais três foram recebidas por um representante do embaixador. O protesto foi motivado pela ação do pacifista indiano Kalash Stayarthi, que completava 10 dias em greve de fome pela libertação de crianças do Nepal exploradas por um circo de Nova Déli.

disse João Antonio Felicio, secretário-geral da CUT. Segundo ele, uma campanha salarial por categoria, por mais êxito que alcance para algumas categorias, não acontece para todas. “Por isso, a Central está disposta a fazer uma ousada e exitosa campanha salarial de todas as categorias, para que não tenhamos neste ano, novamente, redução da massa salarial do país”, afirmou. Entram em campanha salarial no segundo semestre 4,5 milhões de trabalhadores de 790 sindicatos filiados à CUT. São 35 categorias

Ana Nascimento/ABr

Rogéria Araújo de Recife (PE)

profissionais (trabalhadores rurais e da agricultura familiar, da alimentação, servidores públicos, previdenciários, da educação, do comércio, da saúde, enfermeiros, médicos, farmacêuticos, assistentes sociais, psicólogos, engenheiros, economistas, dos transportes, marceneiros, processamento de dados, vidreiros, papeleiros, da construção civil, da borracha, eletricitários, vestuário, gráficos, jornalistas, radialistas, artistas, dos correios, telefônicos, metalúrgicos, químicos, petroleiros, bancários, e urbanitários). (Portal Vermelho, www.vermelho.org.br)


4

De 1º a 7 de julho de 2004

O Pasquim na TV Câmara Jornal que revolucionou a imprensa nacional e aperreou o regime militar, O Pasquim é tema de documentário da TV Câmara. Criado nos anos 70, fez jornalismo de primeira qualidade, e sempre com muito humor. Foi, e ainda é, uma escola de jornalismo. De sua equipe faziam parte Ziraldo, Jaguar, Fortuna, Millôr Fernandes, Claudius, Angeli. O documentário será exibido na TV Câmara dia 2, às 22h35. Quem perder a hora, pode pedir para reprisar, pelo telefone (61) 216-1615. O importante é aparecer Quando se separou de Milene e a imprensa quis ouvi-lo, o jogador Ronaldinho disse que sua vida pessoal não interessava. Faltou alguém lembrar a ele que sua vida pessoal tem sido exposta porque ele quer. O nome disso é marketing pessoal. O mesmo marketing que divulga seu namoro com a modelo Daniela Cicareli e sua passagem pelo SP Fashion week. O importante é aparecer. Prêmio Visa de MPB Neste momento, discretamente, está ocorrendo um dos maiores eventos musicais do país. Trata-se do Prêmio Visa MPB, que revela e premia grandes instrumentistas do país. A grande mídia tem desprezado, por um misto de arrogância e burrice (ela censura a música instrumental). Em outras edições do evento, grandes nomes foram reconhecidos, como Yamandu Costa, violonista do Rio Grande do Sul; e Hamilton Holanda, o re-inventor do choro brasileiro, que mora em Brasília. Para saber mais, contate a página da internet www.visa.com.br Brizola contra a Globo Um dos raros guerreiros deste país a enfrentar a Globo, só depois de morto Brizola apareceu na emissora da família Marinho. Antes havia censura ao presidente do PDT. Agora Brizola morre e ganha quase uma edição inteira do Jornal Nacional. Comemoravam a morte do guerreiro? Frases inúteis do jornalismo “Nunca houve embaixadora como Donna Hrinak”. De Míriam Leitão, no Bom Dia Brasil, lamentando a saída da embaixadora dos Estados Unidos no Brasil. Dona Hrinak, para quem não sabe, atuou muito bem a serviço do governo nazista de Bush. Rádios livres Elas estão aí e fazendo muito barulho. Para quem busca informações sobre as rádios livres, eis um bom local de informações: www.radiolivre.org Nas mãos dos mesmos “Cada chefe político de um lugar é dono da televisão, ou da rádio. No governo Fernando Henrique Cardoso, o que se fez? Criaram as chamadas televisões “educativas”. Na moita, doaram televisões “educativas”. Na prática, em cada município, uma televisão absolutamente igual à comercial, que anuncia pinga. Só no governo FHC, a hora em que eu vi, mais de trezentas emissoras só pra Minas, e seiscentas no total! Uma gandaia, não sei como está isso hoje”. De Bob Fernandes, da revista Carta Capital, em entrevista a Caros Amigos. A Globo nas Rádios comunitárias A parceria da Globo com o Rio para levar seus programas às rádios comunitárias está cada vez mais eficiente. Agora a entrega é domiciliar — basta ligar que o Viva Rio leva à emissora o áudio de programas como Xuxa no país da imaginação, Zorra total e Casseta & planeta. É o Viva Rio no combate à cultura. Cinema de qualidade incomoda O maior produtor de cinema do Brasil, Luís Carlos Barreto, anda xingando o governo por patrocinar filmes de qualidade. Ele diz que as comissões que aprovam os filmes estão cheias de gente que gosta de filme de qualidade, e isso não dá bilheteria, segundo ele. Ele acha que o povo merece o lixo.

SISTEMA JUDICIÁRIO

Investigação fere a Constituição

Poderes do MP são vistos como deformação da Justiça e podem ser usados com fins políticos Luís Brasilino da Redação

O

Supremo Tribunal Federal (STF) deve tomar, em agosto, uma decisão que pode alterar o sistema judiciário brasileiro. Trata-se do julgamento de um recurso do deputado federal Remi Trinta (PL/MA) pedindo o arquivamento de um processo no qual é acusado de desvio de verba. A defesa do parlamentar baseia-se no fato de as provas da acusação terem sido produzidas pelo Ministério Público (MP). O momento é importante porque, caso Trinta saia vitorioso, a procuradoria ficará proibida de conduzir inquérito policial. Porém, segundo o juiz de direito Luís Fernando de Barros Vidal, as investigações do MP só acontecem hoje porque a Justiça é gerida de uma forma absolutamente caótica. “Nesse sistema, os juízes fazem vistas grossas a essas coisas e os advogados e os cidadãos não têm capacidade nem meios para denunciar essas arbitrariedades e ilegalidades”, descreve Vidal. Ele afirma que a Constituição não permite que o MP faça qualquer investigação de natureza criminal e, por isso, é contrário a esse tipo de atuação da promotoria. “Acredito que está sendo feito um terrorismo. Se o STF diz ‘isto é inconstitucional’ e gera, então, efeitos em processos individuais, temos que refletir sobre onde o prejuízo é maior. Os procuradores dizem que o maior dano é a absolvição dos condenados. No entanto, em qualquer país civilizado, as pessoas dirão que é o desrespeito à Constituição. Não porque devemos endeusá-la, mas porque se o Estado a desrespeita, perde o compromisso com os direitos do cidadão”, explica Vidal. “Fundamentalmente, o que nos interessa é a Constituição pois é nossa defesa contra o MP, a polícia, o governo, quem for”, completa. O caso é diferente se o MP, no exercício de outras atribuições legais, toma conhecimento de atos

Eduardo Knapp/Folha Imagem

Dioclécio Luz

NACIONAL

Em tese, a competência para conduzir investigações relativas a inquéritos criminais é exclusiva da Polícia

ilícitos. Nessa situação ele tem como obrigação encaminhar as provas descobertas para o crime ser apurado e processado. Para Vidal, esse é o caso do ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, o Lalau, acusado e condenado pelo desvio de verbas de obras do Fórum Trabalhista de São Paulo. No exercício de uma atribuição do inquérito civil – prevista na Constituição – um procurador descobriu que um determinado funcionário público foi corrupto. “Se ele tem elementos suficientes para denunciar o sujeito, vai denunciar. Mas o MP não tomou o lugar do delegado no caso do Lalau”, conta Vidal.

PROCURADORES “A atribuição de poderes investigatórios, na esfera penal, ao Ministério Público, conduziria ao esvaziamento das funções da polícia e também ao seu desprestígio, inclusive político, com sérias conseqüências sociais na medida em que, diuturnamente, é para as

delegacias de polícia que se dirige a população diante de uma ocorrência de natureza criminal. Poderá ela fazer o mesmo junto ao Ministério Público?”, indaga documento do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Todo processo tem alguém que acusa, alguém que defende, alguém que julga e, antes, alguém que investiga. Esse alguém que investiga produz provas que servem tanto à acusação quanto à defesa. Segundo Vidal, quando os procuradores utilizam o poder de investigar, prejudica-se quem defende. Levando essa tese adiante, teríamos que permitir também ao advogado fazer investigações. “Você ser chamado ao escritório do advogado para prestar depoimento é uma barbaridade”, exclama o juiz.

PODER PARA A SOCIEDADE Além disso, descomprometido com a investigação de todos os casos, o MP poderia escolher a dedo onde quer trabalhar. Dessa forma,

abre-se a possibilidade de o órgão utilizar esse poder de forma política ou publicitária. Um dos principais argumentos de quem é favorável aos poderes investigatórios ao MP sustenta que o órgão é mais eficaz do que a polícia em determinados casos. No entanto, além do uso político que se pode fazer desse poder, o quadro teria efeitos negativos sobre a democracia. “Precisamos aumentar o grau de participação e controle dos cidadãos sobre a gestão pública. Por exemplo, num problema de violação dos direitos humanos, como aconteceu em Eldorado dos Carajás, onde a polícia não está querendo investigar, temos que criar mecanismos que permitam a entidades da sociedade, organizações não-governamentais, vítimas e familiares cobrar medidas para a apuração desses crimes e, eventualmente, para que façam o processo de punição desses crimes diretamente”, relata Vidal.

DIREITOS HUMANOS

Governo cria mecanismos de fiscalização

Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro (RJ) Para um país sem tradição na questão dos direitos humanos, que vem de um período escravocrata no século 19 e passando, no século 20, por ditaduras com constantes violações nessa área, até que está havendo progressos. Essa avaliação do cenário brasileiro foi feita por Nilmário Miranda, secretário de Direitos Humanos do governo, durante a divulgação da IX Conferência Nacional dos Direitos Humanos, que acontece de 29 de junho a 2 de julho, em Brasília. A Conferência, que tenha a participação de 580 delegados de todos os Estados e é deliberativa pela primeira vez, pretende articular o poder público e a sociedade civil para tornar efetivo o funcionamento do Sistema Nacional de Direitos Humanos. Reconhecendo que “o Brasil começa a dar os seus primeiros passos no século 21, depois da Constituição de 1988, e isso é, sem dúvida, um fato novo”, o secretário anunciou a criação do serviço Disque 100, pelo qual os cidadãos poderão fazer denúncias sobre ilegalidades nessa área. O governo estima que mensalmente sejam feitas cerca de 40 mil denúncias variadas, de torturas a trabalho escravo e infantil. As investigações e o acompanhamento dos casos ficarão a cargo do Sistema Nacional de Direitos Humanos, que vai operar em acordo com outros órgãos.

Marcello Casal Jr/ABr

Espelho

Polícia Federal apura denúncias de trabalho escravo: novo papel para sua atuação

Nilmário Miranda admitiu que o papel do Estado é acabar com as violações dos direitos humanos e, para isso, considera necessária a contribuição de todos os setores, inclusive da mídia. Segundo ele, ao contrário de outros anos, em 2003 não houve uma só morte no campo perpetrado pela polícia, mas os grandes proprietários de terra estão contratando jagunços particulares para fazer o papel que a polícia do Estado fazia, numa flagrante violação dos direitos humanos. Na questão social, o papel do

Estado não pode ser o de repressor, como acontecia, por exemplo, no período da escravidão, quando a polícia caçava escravos fugidos e ninguém era punido por assassinato. Essa mentalidade manteve-se por muito tempo mas agora está chegando ao fim”, analisou o secretário. Os direitos humanos, disse ele, não fazem parte da tradição cultural brasileira e as pessoas ainda têm uma visão equivocada, do tempo da ditadura, de que defender os direitos humanos é defender os bandidos.

Miranda admitiu que a atual polícia carrega resquícios do passado, quando servia para “buscar escravos negros fugidos e índios ou proteger a propriedade e o Estado”. Em defesa de uma nova polícia, que segundo ele está sendo criada gradativamente, observou: “Não é possível terminar com a polícia, pois não se pode imaginar cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo sem polícia. Então, aos poucos vai se criando uma polícia nova, com outra mentalidade”. Ao enfatizar sua oposição à utilização de contingentes das Forças Armadas como força policial, frisou: “O Exército não está preparado para a atividade policial. Para melhorar o sistema de segurança, é necessário agir com inteligência e preventivamente”. O secretário revelou que está em andamento a criação de uma força interestadual com a participação entre 1.500 e 2 mil homens para serem acionados em situações críticas. Essa força visa justamente evitar a entrada do Exército em áreas de conflito. Miranda destacou ainda que em 2 de outubro de 2005 haverá um referendo sobre o comércio de armas no país e que a proibição da venda de armas reduzirá substancialmente o número de homicídios por armas de fogo. No ano passado foram 44 mil homicídios; metade por motivos fúteis — estatística que seria bem menor se não houvesse tanta facilidade de uso de armas de fogo.


5

De 1º a 7 de julho de 2004

NACIONAL REFORMA AGRÁRIA

Deputados criticam uso político de CPMI Ruralistas utilizam comissão de inquérito para enfraquecer governo e criminalizar movimentos sociais

A

Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Reforma Agrária, conhecida como CPMI da Terra, foi usada como instrumento político para favorecer os grandes fazendeiros brasileiros. A denúncia é de três deputados federais que integram a comissão: Zé Geraldo (PT-PA), Jamil Murad (PCdoB-SP) e João Alfredo (PT-CE). Para eles, parlamentares ligados à bancada ruralista, como o presidente da CPMI, o senador Álvaro Dias (PSDB-PR), e o deputado Abelardo Lupion (PFLPR), desvirtuaram o propósito da investigação para atender a seus interesses políticos e classistas. Em um relatório lançado em 2003 pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), que traça o perfil dos deputados brasileiros, Lupion é descrito como um dos fundadores da União Democrática Ruralista (UDR) e um defensor da repressão às ocupações de terra e de leis que retiram vantagens dos trabalhadores rurais. João Alfredo, relator da comissão, acusou os parlamentares dos partidos da oposição, especialmente o PFL e o PSDB, de usar a CPMI para desmoralizar o governo e criminalizar movimentos sociais – principalmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Segundo ele, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se comprometeu a fazer a reforma agrária, assentando 115 mil famílias até o final do ano, e, preocupados, os ruralistas se mobilizam para impedir que isto ocorra. “Para isso, mentem, difamam, geram constrangimento e atacam”, disse o deputado. No dia 15 de junho, a CPMI aprovou a transferência dos sigilos bancário e fiscal de duas entidades que trabalham em parceria com movimentos sociais, a Associação Nacional de Cooperação Agrária (Anca) e a Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab), para a comissão. O requerimento, de autoria de Lupion, se baseia em uma suposta investigação da Polícia Federal se-

zar a luta pela reforma agrária”. Composta por 12 senadores e 12 deputados titulares, a CPMI foi criada em 4 de dezembro de 2003 para realizar um diagnóstico sobre a estrutura fundiária e o problema habitacional brasileiro. Em freqüentes audiências no Senado, pesquisadores, agricultores, fazendeiros e integrantes de movimentos sociais deram testemunhos sobre conflitos agrários e o modelo agrícola do Brasil. Duas viagens, para o Pará e Pernambuco, foram organizadas pelos parlamentares para investigar a distribuição fundiária e as estratégias de luta dos agricultores e de repressão dos fazendeiros. Segundo o presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), dom Tomás Balduíno, que depôs na comissão, o projeto era bom, pois poderia ser um meio de estimular a reforma agrária pacífica, mas foi usado para criminalizar o MST e favorecer as pessoas que, para ele, geram a violência no campo: os grandes fazendeiros. Balduíno afirmou que, mesmo se convidado, não comparecerá mais à comissão, alegando que esta não é legítima e não faz uma investigação justa.

Douglas Mansur

João Alexandre Peschanski da Redação

Os ruralistas estão agindo para impedir os assentamentos prometidos

gundo a qual as entidades seriam o braço financeiro do MST e que “recursos (do governo) estavam sendo utilizados para financiar a invasão de terras”. De acordo com Zé Geraldo e os advogados da Anca, não há provas de que a polícia tenha investigado as entidades – nenhum documento comprovando a afirma-

ção foi anexado ao requerimento. Em nota à imprensa, no dia 16 de junho, a Anca afirmou ser “uma sociedade civil, sem fins lucrativos, com o objetivo de desenvolver projetos na área de assistência social para estimular o desenvolvimento agrícola” e que a transferência do sigilo tem o intuito de “desmorali-

INCONSISTÊNCIA TÉCNICA Além da suposta investigação policial, as justificativas da transferência dos sigilos da Anca e Concrab foram baseadas em matérias do jornal O Estado de S. Paulo e da revista Veja. A primeira reporta ocupações realizadas pelo MST em áreas descritas como não passíveis de desapropriação para fins de reforma agrária e a segunda denuncia o repasse de recursos do governo para as entidades, definidas como parte do MST. Segundo o jurista Dalmo Dallari, especialista em direito constitucional, “as justificativas são precárias”, pois se baseiam em matérias de meios de comunicação que não foram investigadas por órgãos públicos. Apesar de ter sido aceita por unanimidade, nem todos os parlamentares que compõem a CPMI participaram da votação. De acordo com Murad, a possibilidade de transferência do sigilo não estava na pauta da comissão e foi apre-

sentada e decidida sem avisar parte dos deputados e senadores. Ele mesmo não participou da votação, pois não foi avisado. “Temos que encarar (a CPMI) como uma luta política”, salientou Murad, para quem os ruralistas vão preparar armadilhas para atacar as pessoas e organizações que defendem a reforma agrária. Segundo Zé Geraldo, há muitas falhas no requerimento e na votação da transferência, o que pode levar à interrupção do pedido, cuja decisão ainda deve passar pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ao saber da proposta dos parlamentares da oposição, senadores e deputados da base governista requereram a quebra dos sigilos de entidades ligadas aos grandes fazendeiros, dentre elas a UDR, o Serviço Nacional de Assistência Rural (Senar) e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Os três pedidos foram rejeitados. Para Murad, impossibilitar a investigação nas contas das organizações ruralistas, do mesmo modo que ocorreu com a Anca e a Concrab, é antidemocrático, pois “estabelece uma justiça com dois pesos e duas medidas”. Segundo João Alfredo, o presidente da comissão recebeu do senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT), presidente da CPMI do Banestado, que apura remessas de dinheiro para o exterior, documentos sobre recursos enviados à Anca por organizações internacionais e entregue a jornalistas de grandes meios de comunicação. De acordo com o deputado, as informações são sigilosas e divulgá-las é um crime. Caso seja comprovada a entrega dos dados, os advogados da Anca pretendem entrar com uma representação contra Álvaro Dias. Até o fechamento desta edição, dia 29 de junho, Dias e Lupion não haviam atendido à reportagem do Brasil de Fato. De acordo com seus respectivos gabinetes, Dias não tinha espaço na agenda e Lupion estava em viagem e incomunicável. Colaborou Luís Brasilino, da Redação

Nina Fideles de Brasília (DF) A segunda edição do Plano Safra agradou aos movimentos sociais, mas continua distante da verdadeira demanda do campo brasileiro. Enquanto a primeira edição do Plano (2003/2004) dobrou o valor destinado à pequena agricultura pelo governo Fernando Henrique, liberando R$ 4,5 bilhões, que beneficiaram cerca de 1,4 milhão de agricultores, o Plano 2004-2005, anunciado dia 28 de junho e com disponibilidade de R$ 7 bilhões em créditos para pequenos agricultores, representa um aumento de 30% em relação ao anterior, estimando atender 1,8 milhão de famílias. João Paulo Rodrigues, coordenador geral do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ao aplaudir o aumento de recursos, não deixou de apontar os problemas. “Pela primeira vez na história, nós temos um volume de recursos nunca visto antes para custeio e para investimento para os assentamentos (...). E um operário do ABC teve que assumir a Presidência da República para dizer para essa elite brasileira que os assentamentos produzem e precisam de crédito agrícola e dos bancos desburocratizados para avançar no processo de produção de alimentos e matar a fome de muitas pessoas,” disse.

Ricardo Stuckert/PR/ABr

Mais dinheiro para a agricultura familiar

Lula garantiu que para a agricultura familiar não faltarão recursos e disse ser leal aos movimentos sociais

De seu lado, Manoel José dos Santos, presidente da Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) disse que “o dinheiro do Plano Safra ainda não é tudo. Nossa pauta é superior, mas quando a gente pedir e o governo atender 100%, é porque não sabemos pedir”. O governo reconhece as dificuldades, tanto é que um dos grandes objetivos do Plano é desburocratizar a liberação de créditos

pelos bancos, e democratizar o acesso à tecnologia.

PROMESSAS O presidente Luiz Inacio Lula da Silva fez veemente defesa da agricultura familiar e de seu acesso à tecnologia. E garantiu: “Não faltará dinheiro para a agricultura familiar nesse país”, acrescentando: “Nós acreditamos que a agricultura familiar, além de produzir alimentos,

produz uma coisa mais importante: produz cidadania, produz dignidade e produz respeitabilidade”.

CONFIANÇA Durante o anúncio do Plano Safra, o presidente disse que os movimentos sociais podem e devem reivindicar, pois esse é o seu papel. “Às vezes vocês reivindicam coisas que são impossíveis de o governo cumprir, e, com a mesma

lealdade com que nós temos nos tratado nesses últimos 30 anos, eu vou dizer para vocês: não posso”, disse o presidente. O MST, segundo João Paulo, sabe das dificuldades do governo, mas acredita que ele vai cumprir suas promessas: “(...) Estamos a cada dia mais confiantes que o senhor e sua equipe vão fazer a reforma agrária, vão cumprir as metas e assentar as famílias que se encontram acampadas pelo país. (...) Sabemos que os problemas que existem no Brasil são muitos e que não será uma tarefa simples para ser cumprida, nem pelo presidente Lula, nem pelo ministro Miguel Rossetto e nem pelos presidentes dos bancos”. Para o MST, será uma tarefa de todo o povo brasileiro fazer a reforma agrária, eliminar a grande quantidade de latifúncios improdutivos existente, resolver o problema do desemprego. O dirigente finalizou: “E nós queríamos, presidente, dizer aqui – para que a imprensa depois não tenha dúvida – que o nosso movimento é parceiro do governo Lula na realização da maior reforma agrária de qualidade que esse país já viu na sua história. Porque tem um presidente comprometido, porque tem um ministro com sua equipe comprometida e porque tem movimento social sério que quer fazer com que esse Brasil possa resolver o problema da fome, resolver o problema da miséria. Entendemos que isso é uma responsabilidade de todos nós”.


6

De 1º a 7 de julho de 2004

NACIONAL CONJUNTURA

Desemprego recua, renda encolhe Contratações no setor público reduzem o número de desocupados, e a PEA diminui

Hamilton Octavio de Souza Imagem externa Quando era presidente, Fernando Henrique Cardoso tinha como norma cuidar de sua projeção no exterior, principalmente nos países ricos, onde costumava fazer belos discursos com conteúdo social e tonalidade de esquerda. Lula, presidente, caminha na mesma direção, com belos discursos no exterior e uma situação interna cada vez mais caótica. Meta colonial O setor público registrou em maio um superávit primário (dinheiro economizado para pagar juros) de R$ 5,839 bilhões, o equivalente a 5,87% do PIB. Com isso, a meta fiscal acertada com o Fundo Monetário Internacional, de 4,25% do PIB no ano, está sendo cumprida com folga. Mais uma vez, a educação, a saúde, a habitação, a geração de empregos ficam para o futuro. Ataque conservador A gestão de Carlos Lessa no BNDES está mesmo incomodando determinados setores do empresariado. Na última semana, editorial do jornal O Estado de S. Paulo apelou para o presidente Lula intervir no banco estatal para que siga as orientações do ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan. Dinheiro fácil O BNDES reabriu linha de empréstimos para exportadores. Quem mais está usando esse dinheirinho de baixo custo é a indústria automobilística, que é integralmente constituída por empresas de capital estrangeiro. Assédio na agricultura A ex-funcionária do Ministério da Agricultura, Fabíula Rodrigues da Silva, de 18 anos, ameaça denunciar vários funcionários graduados do governo federal por assédio sexual. Ela andou distribuindo em Brasília uma série de fotos eróticas tiradas em gabinetes da Esplanada dos Ministérios. Articulação golpista Circulou pelo Brasil, recentemente, o empresário venezuelano Gustavo Cisneros, dono da TV Venevisión, da Venezuela, de uma rede de TV nos Estados Unidos e de veículos de comunicação em vários países da América Latina. Ele foi um dos articuladores do fracassado golpe contra o presidente Hugo Chávez, em 2002, e continua ativo com seus parceiros no continente. Punição partidária Estão proibidos de representar o PT nas comissões do Congresso Nacional os deputados federais Orlando Fantazini (SP), Paulo Rubem (PE), Maria José Maninha (DF), Mauro Passos (SC), Chico Alencar (RJ), Ivan Valente (SP), Doutora Clair (PR), João Alfredo (CE) e Walter Pinheiro (BA), e os senadores Paulo Paim (RS), Flávio Arns (PR) e Serys Slhesssarenko (MT). O motivo: eles votaram por um salário-mínimo acima dos R$ 260 fixados pelo governo Lula. Palavra empenhada Para comemorar o seu um ano e meio de governo, o presidente Lula deveria reler o documento que assinou e divulgou em 23 de julho de 2002, em plena campanha eleitoral, no qual promete dez milhões de empregos e afirma, entre outras coisas: “O povo brasileiro não aceita mais a dependência atual e a atitude subalterna do governo... A população exige é que recuperemos a soberania para decidir de modo autônomo a política econômica e os destinos do país”. Só falta cumprir.

Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

D

ivulgada na semana passada, a pesquisa mensal de emprego do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) provocou reações de surpresa em alguns e foi recebida com certa dose de incredulidade em outros, principalmente porque o total de desempregados sofreu queda bem mais intensa do que o aumento indicado no número de novos empregos. Concretamente, os números apresentam o retrato de um mercado de trabalho ainda traumatizado por mais de dois anos de taxas de desemprego elevadas, com claras dificuldades para sair do atoleiro em que se meteu e lenta reação do emprego, enquanto a renda permanece em baixa e volta a crescer o número de pessoas que estão fora do mercado de trabalho, mas gostariam de trabalhar. Em maio, depois de quatro meses de crescimento, a taxa de desemprego finalmente cedeu, recuando para 12,2%, frente a 13,1% em abril e 12,8% em maio de 2003, nas seis regiões metropolitanas pesquisadas. Trata-se de uma taxa ainda suficientemente alta para desinflar previsões mais otimistas em relação ao comportamento da economia no futuro imediato. Basta recordar que o país registrava, historicamente, taxas ao redor de 4% a 5% ao ano, até a primeira metade dos anos 90, conseguindo, por esse e outros motivos, desempenho mais alentador para sua economia.

NOVAS VAGAS O total de desocupados baixou, em maio, para 2,623 milhões, numa queda de 6,7% na comparação com abril (189 mil desempregados a menos), e de 2,9% frente a maio do ano passado. O lado positivo foi que a redução, desta vez, refletiu um incremento, ainda que modesto, de 0,8% no total de pessoas com algum tipo de emprego. O número de pessoas ocupadas passou de 18,717 milhões em abril, para 18,865 milhões no mês seguinte, numa variação de apenas 0,8%, (criação de 148 mil novas vagas – 84% delas ocupadas por trabalhadores com carteira assinada, as restantes por funcionários públicos). Cerca de 82% dos novos empregos foram criados na região metropolitana de São Paulo – 121 mil novas vagas, 55,4% das quais abertas no setor público. A hipótese, neste caso, é que a administração pública tenha antecipado contratações em função da legislação eleitoral, que proíbe contratações a partir de julho. A criação de empregos explica em grande parte a redução do total

mento de apenas 0,8%). A primeira delas, assim como o Iedi, especula acerca da possibilidade de um número expressivo de pessoas terem desistido de procurar emprego. A segunda aponta para uma fuga de pessoas economicamente ativas para o mercado informal, o que, em tese, não seria captado pela pesquisa do IBGE. A terceira e menos provável sugere problemas na pesquisa do Instituto.

João Zinclar

Fatos em foco

ATIVIDADE MENOR

Taxa de desemprego ainda é alta, perto dos índices da década de 90

MENOS DESOCUPADOS

Taxa de desemprego recua depois de quatro meses de elevação* 15 12,9

12,9

12

12,2

11,7

12,0

Jan/04

Fev

12,8

13,1

Mar

Abr

12,2

10,9

9

6

3

0

Set/03

Out

Nov

Dez

Mai

* Nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo

Fonte: IBGE

de desempregados, mas não justifica toda a queda observada no mês. O restante da explicação está na queda de 0,2% no número de pessoas consideradas economicamente ativas (de 21,529 milhões, para 21,488 milhões). Na visão do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), a melhoria nos indicadores de emprego e desemprego teria si-

do causada exatamente em função do menor número de pessoas em busca de uma colocação, desestimuladas pelo período prolongado de desemprego. A empresa de consultoria Global Invest aponta três conjuntos de motivos para tentar explicar a diferença de comportamento entre o total de desempregados (queda de 6,7%) e das ocupações (cresci-

A análise mais aceitável, até mesmo com base nos números do IBGE, contempla as duas primeiras hipóteses, já que o total de pessoas consideradas não economicamente ativas aumentou em 126 mil em maio, para 15,998 milhões, num reflexo de um incremento correspondente a 85 mil no conjunto de pessoas em idade ativa e de uma redução de 41 mil pessoas entre aquelas classificadas como economicamente ativas. A avaliação é parcialmente verdadeira, visto que o emprego também cresceu (timidamente, mas cresceu). Mas não deixa de refletir uma situação concreta. De fato, o número de pessoas fora do mercado, consideradas não economicamente ativas, mas que prefeririam estar trabalhando avançou 2,4% entre abril e maio, somando 3,106 milhões – destas, perto de 88,3% estariam disponíveis para trabalhar, ou 3% mais do que em abril. Ainda nesta faixa, 37 mil desistiram de buscar colocação por desalento ou falta de perspectiva, significando um incremento de 37% em relação a abril. Esses indicadores, em especial o desemprego por desalento, vinha em baixa nos meses anteriores, depois de superar a marca de 55 mil em março de 2002. Ainda é cedo para avaliar se o recrudescimento daquele tipo de desemprego em maio reflete um espasmo sem maiores conseqüências, ou se a tendência deverá se repetir nos próximos meses.

Um mercado ainda precário Os números do mercado de trabalho apurados em maio pelo IBGE apontam uma melhoria apenas relativa em relação a abril de 2003. Considerando-se a situação do total de ocupados em maio do ano passado, a precariedade do mercado foi mantida e, sob certos aspectos, até agravada. No período, o total de ocupados passou de 18,327 milhões para 18,865 milhões em maio deste ano, um crescimento de 2,9% com a criação de 538 mil empregos, suficientes para abrigar as 460 mil pessoas que passaram a fazer parte

da população economicamente ativa (PEA) no mesmo período. Como resultado, o número de desempregados caiu também 2,9% (menos 78 mil desocupados). A grande questão, no entanto, é que 75% dos empregos criados foram ocupados por trabalhadores sem carteira assinada (mais 265 mil), e por conta própria (mais 138 mil). Em ambos os casos, os trabalhadores têm pouca ou nenhuma garantia e direito algum, trabalhando em situação precária e com baixos salários. Considerando apenas a popu-

lação de empregados, num total de 13,925 milhões de pessoas em maio, foram incorporadas 433 mil novas pessoas, num avanço de 3,2%. Neste caso, empregados sem registro e trabalhadores por conta própria tiveram uma participação de 93% no fluxo líquido de novas colocações. A boa nova é que caiu o total de pessoas subocupadas e com rendimento inferior a um saláriomínimo/hora – menos 3,2% no primeiro caso e queda de 14,7% no segundo, para 857 mil e 2,173 milhões, respectivamente.

Agrava-se a tendência de perdas A equação se complica quando são lançadas para análise as estatísticas sobre o rendimento médio pago aos ocupados de uma maneira geral. O rendimento médio real (ou seja, em valores atualizados com base na inflação) habitualmente recebido em maio encolheu para R$ 866,10 para o total de ocupados, representando uma redução de 0,7% diante de abril, e de 1,4% na comparação com maio de 2003. Alguns analistas têm destacado a menor velocidade de queda dos rendimentos como um dado supostamente positivo. Uma avaliação em perspectiva daqueles dados, no entanto, permite um outro tipo de leitura, bem menos animadora. Na comparação com idênticos períodos do ano anterior, os rendimentos indicavam um tombo de 15,2% em outubro de 2003, passando a cair 12,5% em dezembro,

ARROCHO SALARIAL Rendimento real médio habitualmente recebido, valores em reais a preços de maio de 2004* Posição na ocupação

Mai/03

Abr/04

Mai/04 Maio/Abril Maio/Maio

População ocupada 878,37 872,42 866,10 Com carteira assinada no setor privado 910,54 910,79 903,20 Sem carteira no setor privado 561,80 544,75 576,60 Conta própria 694,03 707,88 693,90 Empregadores 2.268,51 2.452,12 2.263,50

-0,7%

-1,4%

-0,8%

-0,8%

+5,8% -2,0% -7,7%

+2,6% 0,0% -0,2%

* Nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo

Fonte: IBGE

6,2% em janeiro deste ano, 3,5% em abril e, finalmente, 1,4% em maio.

SEM RECUPERAÇÃO Embora em percentual menor, a queda ocorre na comparação com níveis já achatados, tomando como base períodos em que os rendimentos observavam quedas mensais de 7% a 8% (que depois se agravariam

ao longo de 2003). Ou seja, o recuo de 1,4% ocorre, agora, sobre um rendimento que já havia perdido 13% ou 14% de seu poder de compra, no passado recente. Neste momento, agravam-se as perdas, na verdade, o que não pode ser visto como recuperação alguma. Em maio de 2004, especificamente, as perdas atingiram sobre-

tudo os trabalhadores com carteira assinada, com queda de 0,8% – o que sugere que as novas ocupações criadas naquele mês parecem oferecer, na média, salários mais baixos. Os empregados sem carteira, ao contrário, tiveram ganhos salariais de 5,8% em relação a abril, e de 2,6% frente a maio de 2003, com rendimento real médio passando a R$ 576,60 (o que corresponde a menos de 64% do rendimento médio pago aos empregados com carteira). Por área, os empregados no setor de serviços tiveram a maior perda, com queda de 6,9% frente a maio do ano passado. Na comparação com abril deste ano, os trabalhadores na construção civil, que já enfrentam taxas de desemprego relativamente mais altas, sofreram as maiores baixas, com perdas reais de salários de 5,6%. (LVF)


7

De 1º a 7 de julho de 2004

NACIONAL AGRONEGÓCIO DA EXCLUSÃO

Agropecuária desemprega em massa

Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

O

modelo de crescimento escolhido no Brasil para o setor agropecuário, tão festejado pelo governo e pelo grande empresariado, com adesão de ampla parcela da mídia, não cria empregos e impõe um alto custo social e ambiental. Esse modelo, “é muito ruim de geração de emprego, embora tenha a característica de gerar renda”, afirma o economista Carlos Eduardo Frickmann Young, especializado em contas nacionais e economia do meio ambiente e professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele ressalta, porém, que a questão é que também não se encontrou um caminho para distribuir aquela renda a fatias mais amplas da população. A agricultura que vem experimentando taxas expressivas de crescimento e contribuindo para puxar as exportações, diz Young, é exatamente a sua parcela mais mecanizada, que exige a utilização intensiva de capital – ou seja, precisa de recursos financeiros elevados, o que exclui dos ganhos produzidos pelo setor centenas de milhares de famílias de pequenos e médios agricultores. Não é à-toa, lembra ele, que o aparente “sucesso” do agronegócio tem sido acompanhado por uma crise na agricultura familiar. Nos cálculos do economista, a agropecuária desempregou 2,5 milhões de trabalhadores entre 1990 e 2002. “Mesmo crescendo, a agricultura perde empregos”, observa Young. Este é hoje o grande dilema da agropecuária: “O setor vive uma dualidade, ao apresentar um dinamismo importante, com crescimento da produção e da produtividade, gerar renda, mas experimentar taxas reduzidas de criação de empregos”.

DESTINO DOS EXCLUÍDOS Todo aquele contingente de desempregados parece ter seguido três destinos possíveis, todos com conseqüências sociais e ambientais graves, segundo o professor. O primeiro e mais evidente foi o inchaço, nos últimos anos, da periferia das regiões urbanas, num fenômeno que passou a atingir, mais recentemente, até mesmo cidades de porte médio e pequeno. “Aquelas cidades também passam a experimentar surtos de criminalidade que não existiam num passado relativamente recente”, analisa Young. Nas áreas urbanas, a criminalidade é apenas o lado mais exposto das distorções causadas pelo modelo econômico em vigor. Houve um incremento dramático da demanda por serviços urbanos essenciais, causado pela migração de milhões de pessoas para os centros urbanos num período de tempo relativamente curto, expulsas do campo pela mecanização intensiva da produção agrícola.

Embrapa

Em doze anos, a exploração intensiva e as extensas áreas de monocultura expulsaram 2,5 milhões de trabalhadores

EMPREGOS DE UM MILHÃO DE REAIS Capacidade de geração de empregos a cada aumento de R$ 1 milhão na produção, por setor de atividade Setores Empregos Vestuário 145 Comércio 80 Calçados 71 Farmacêutico 39 Construção civil 36 Máquinas 30 Automóveis 29 Siderurgia 25 Equipamentos eletrônicos 19 Semicondutores 19 Refino de petróleo 17 Agropecuária 8

Exportações acumuladas em 12 meses, até maio de 2004, em milhões de dólares Setores Exportações Importações Saldo Agronegócio 33.724 4.806 28.917 Demais 46.212 47.133 -921 Total 79.935 51.939 27.996

Fonte: Young, Carlos E. F./ Instituto de Economia/UFRJ

(*) Dados arredondados Fontes: Secretaria de Comércio Exterior (Secex) e Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)

DEPENDÊNCIA

Mesmo crescendo, a agropecuária tirou o emprego de mais de dois milhões de trabalhadores entre 1990 e 2002

As pressões afetam todas as áreas, começando pela moradia, passando pela expansão das redes de energia elétrica, esgoto e água, até a coleta de lixo e limpeza das cidades. Um segundo destino dos excluídos pela expansão do agronegócio, baseada no plantio de grandes extensões de terras com uma única cultura (soja, algodão, milho, cana), e na produção destinada ao mercado externo, pode ser percebido no deslocamento da fronteira agrícola para as porções mais ao norte do país, criando uma “conexão importante com o avanço do desmatamento”

nas últimas áreas do cerrado e na Floresta Amazônica. “Expulso do campo pela mecanização, o sujeito vai arriscar a ter uma propriedade em áreas de floresta”, afirma Young. Uma terceira parcela de excluídos decidiu ficar pelo campo mesmo, transformando-se em bóia-fria, ou engrossando os acampamentos rurais que se multiplicam com velocidade ao longo das rodovias pelo interior do país. “Independentemente de sua origem, aquelas pessoas estão ali porque o custo de oportunidade de trabalho é zero”, aponta o economista. Mais claramente, não

há compensação alguma para quem insiste em continuar procurando empregos, porque não há postos de trabalho disponíveis para todos.

DESEMPREGO “Se o mercado de trabalho estivesse aquecido, aquelas pessoas não estariam ali. Elas estão naquela situação porque não conseguiram se inserir na economia formal”, acrescenta. Para agravar a situação, os setores da agricultura que apresentam maior potencial de criação de empregos estão em baixa, porque são exatamente aqueles

que dependem do desempenho da demanda doméstica (e da renda das famílias, portanto, que continua em queda), como a produção de alimentos para o mercado interno e a agricultura orgânica. Por todos esses motivos, os supostos ganhos e os números vibrantes apresentados pelo agronegócio deveriam ser analisados com cautela. A vigorosa expansão do setor, na verdade, esconde um pesado passivo social e ambiental. “O Brasil perde áreas importantes para a preservação ambiental e para a biodiversidade”, pontua Young.

A grande torra de empregos em 2003 Num exercício bastante próximo da realidade, que leva em conta a capacidade de crescimento da produção, em cada setor da economia, diante de um aumento da demanda, o economista Carlos Eduardo Frickmann Young demonstra que a agropecuária tradicional consegue criar apenas oito empregos a cada incremento da produção equivalente a R$ 1 milhão. A estimativa leva em conta que aproximadamente dois terços das pessoas ocupadas no setor agrícola não recebem qualquer remuneração e produzem para a própria subsistência. “Neste caso, a produção desse segmento não será afetada, qualquer que seja a taxa de crescimento da demanda”, explica ele. Por isso só foi considerado o terço

dos trabalhadores no setor que é remunerado. Na indústria do vestuário, por exemplo, um aumento do consumo em R$ 1 milhão seria suficiente para abrir 145 empregos novos (veja tabela). A indústria de calçados, com um incremento do mesmo calibre, poderia empregar mais 71 pessoas. Para que a agropecuária crie o mesmo número de vagas do setor de vestuário, a produção teria de crescer o correspondente a R$ 18,1 milhões. No ano passado, numa estimativa bastante aproximada, o valor da produção da agropecuária aumentou cerca de R$ 31 bilhões. Em tese, aquele crescimento poderia ter criado 248 mil empregos. O mesmo dinheiro, aplicado na in-

dústria do vestuário, poderia significar a abertura de 4,5 milhões de vagas.

ESTRAGO MAIOR Na prática, não foi o que aconteceu. Como em 2003 o consumo das famílias encolheu 3,3%, a economia foi afetada negativamente e a retração do consumo gerou o fechamento, na média, de 897 mil empregos, calcula Young. O estrago pode ter sido ainda mais amplo, quando se considera a possibilidade de geração de empregos se o consumo doméstico tivesse ao menos acompanhado o crescimento da população (algo em torno de 1,3% ao ano). Nesta hipótese, poderiam ter sido criados 1,262 milhão de pos-

tos de trabalho. Como aquele crescimento não aconteceu, pode-se dizer que foram literalmente torrados quase 1,3 milhão de empregos. Em qualquer dos casos, nem mesmo o badalado crescimento das exportações conseguiu reverter o cenário. O levantamento do professor sugere que o salto de 14% nas vendas externas, no ano passado, teria sido responsável pela abertura de 856 mil vagas. Persistiria, aqui, um rombo correspondente a 406 mil desempregados (a diferença entre os 856 mil empregos teoricamente criados em função das exportações e o desemprego de 1,262 milhão de pessoas por conta da queda da renda das famílias e do não crescimento do consumo).

De volta à república da soja, do milho, das carnes... As economias que dependem das exportações de produtos básicos, como cereais e grãos em geral, carnes e madeiras, por exemplo, para gerar os dólares de que precisam para continuar funcionando, são consideradas mais vulneráveis do que as demais. Precisamente porque o mercado internacional daqueles produtos é mais sujeito a oscilações de preços e pode entrar em baixa de um momento para outro – como acontece agora com a soja, depois que a China decidiu recusar as cargas do grão compradas do Brasil, acusando a contaminação das remessas por agrotóxicos. As exportações brasileiras têm experimentado taxas recordes de crescimento, nos últimos dois anos,

em grande parte devido à participação expressiva das vendas de produtos básicos. Mais claramente, aqueles recordes têm sido alimentados a doses generosas de aumento das vendas externas do complexo soja (grão, farelo e óleo), carnes bovina, de frango e suína, madeiras e outros produtos da mesma classe, que passam por poucas etapas de industrialização, ou são exportados in natura. No passado, dizia-se que alguns países da América Latina eram “repúblicas de banana”, porque registravam em suas exportações larga participação de frutas e outros produtos básicos (e também por motivos políticos, mas esta é uma outra história). Em anos mais recentes, o

Brasil vem se transformando numa grande “república de soja, de carne, de algodão, de cana”. Ou, resumindo, numa grande “república da monocultura exportadora”, para abusar do “economês”.

PAPEL PRINCIPAL Entre janeiro e maio de 2004, num exemplo, as exportações do agronegócio brasileiro (que reúnem todos aqueles produtos classificados como básicos) somaram 14,1 bilhões de dólares, crescendo 28% em relação aos mesmos cinco meses do ano passado. A agroindústria respondeu por 41,5% de todas as vendas externas, e foi responsável por 45% do aumento das exportações totais no período. Nos 12 me-

ses terminados em maio, as exportações de produtos agropecuários atingiram 33,7 bilhões de dólares, ou 42,2% das exportações totais. A dependência fica mais nítida quando se analisa a balança comercial (exportações e importações) do país como um todo. O saldo comercial, ou seja, o resultado da diferença entre o total vendido ao exterior e a despesa total com bens, produtos e mercadorias importadas, chegou a 11,2 bilhões de dólares nos primeiros cinco meses deste ano, um recorde. Mas o resultado só foi possível graças ao superávit obtido pelo setor agropecuário. As vendas externas de produtos agropecuários asseguraram um saldo comercial, depois de descontadas as

importações, de 12,1 bilhões de dólares. Isso significa dizer que todo o restante das exportações realizadas, representando quase 60% das vendas externas, não seria suficiente para pagar a conta das importações de máquinas, equipamentos, combustíveis e seus derivados, insumos industriais e outros produtos essenciais ao funcionamento da economia (excluídas, obviamente, as compras externas de produtos agropecuários). Sem o agronegócio, haveria um rombo de 884,1 milhões de dólares nos primeiros cinco meses de 2004. Nos 12 meses encerrados em maio, da mesma forma, seria registrado um déficit comercial (importações maiores do que exportações) de 921,1 milhões de dólares.


8

De 1º a 7 de julho de 2004

NACIONAL VULNERABILIDADE EXTERNA

Transnacionais empobrecem o país

Empresas estrangeiras aumentam os preços dos serviços públicos, a exploração do trabalho e a remessa de lucros Jorge Pereira Filho da Redação

EVOLUÇÃO DAS REMESSAS PARA O EXTERIOR em bilhões de dólares

S

e você está irritado com a alta na sua conta de luz e de telefone, acha que os preços no Carrefour são um estorvo ou não consegue mais ir ao cinema porque o Cinemark aumentou o ingresso, saiba que sua legítima insatisfação pessoal é a ponta do iceberg de um problema nacional: os efeitos da crescente presença das transnacionais na economia brasileira. Novos números mostram a dimensão desse problema. As empresas estrangeiras estão aumentando suas remessas de lucros e dividendos ao exterior. Nos primeiros cinco meses de 2004, 3,23 bilhões de dólares deixaram o Brasil – volume 51% maior do que o registrado em 2003, segundo o Banco Central (BC). Apenas no mês de maio, sob a forma de pagamento de empréstimos para as matrizes, as empresas estrangeiras retiraram do país mais 745 milhões de dólares. Mas se a economia não cresce a um ritmo extraordinário, por que as transnacionais estão elevando tanto suas remessas? O que, na verdade, permite a essas empresas mandar mais dinheiro são operações como aumento dos preços em setores onde há monopólio privado (veja reportagem abaixo), ou maior exploração do próprio trabalhador. “No caso atual, a economia está crescendo lentamente e as empresas conseguiram, também, aumento da lucratividade, com redução de empregados e aumento dos preços”, explica o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Unicamp.

14,9

14,7

REMESSAS DE JUROS

13,1

REMESSAS DE LUCROS

12 9

8,3

9,5

8,8

7,9

7,2

80

DEPENDÊNCIA

Fonte: Banco Central

A conta, obviamente, não fecha. Como o governo resolve esse problema? “Essa mágica é feita por novos empréstimos que o país toma no exterior. É por isso que a dívida pública aumentou tanto”, diz Maria Lúcia. Para se ter idéia do peso desses

números, a dívida pública brasileira, hoje, é seis vezes maior do que há dez anos. Em 1994, somava R$ 54,9 bilhões. Em maio de 2004, chegou a R$ 946,7 bilhões. “A crescente necessidade de dólares leva o país a manter a política de

7,2

6,7

6,3

6

5,3

4,9

4,1

3

1,8

13,6

13,0

11,5

Essa remessa é feita em dólares, moeda fabricada apenas pelos Estados Unidos, que são comprados com reais no Banco Central. Mais uma fonte de sangria de moeda forte, indispensável para o Brasil fechar suas contas externas. “Temos três possibilidades para arrecadar dólares: exportar mais, receber mais investimentos externos, ou nos endividar”, explica Maria Lúcia Fattorelli, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco). A previsão mais otimista para as exportações de 2004 é de um saldo de 26 bilhões de dólares. Quanto aos investimentos externos, como se viu, estão em níveis mais baixos do que os esperados. E o país terá de enviar 63 bilhões de dólares ao exterior, entre amortizações e juros da dívida, lucros das transnacionais e serviços contratados (veja quadro).

2,5

2,6

5,6

5,2

3,3

2,3

0,6

0

1992

Fonte: Banco Central

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

COMPARAÇÃO ENTRE O SALDO COMERCIAL E REMESSAS PARA O EXTERIOR previsão para 2004 (em bilhões de dólares)

REMESSAS PARA O EXTERIOR TOTAL 63,4 Serviços contratados no exterior 5,7 7,2 Lucros das multinacionais

70 60 50 40 30

13,6 Juros da dívida externa SALDO COMERCIAL TOTAL 26,0

20

Amortizações

36,9 da dívida externa

10 0

juros elevados, travando o crescimento econômico”, acrescenta Maria Lúcia. A explosão do endividamento brasileiro é mais uma conta a ser computada na herança maldita dos oito anos do governo Fernando

2001

2002

2003

2004

Henrique Cardoso, com destaque para a contribuição da privatização das estatais no endividamento. “O Brasil, a partir do começo dos anos 90, principalmente 94, sofreu muito com o aumento das remessas para o exterior. Isso representa uma pressão adicional sobre o balanço de pagamentos”, afirma Belluzzo. Entre 1994 e maio de 2004, as remessas de lucros ao exterior chegam a 46 bilhões de dólares. O governo Lula, no entanto, está produzindo sua própria maldição. Ao optar pela alternativa neoliberal, a dívida cresceu cerca de 40% desde janeiro de 2003. Recentemente, o governo fez uma nova emissão de títulos no valor de 750 milhões de dólares, em condições totalmente desfavoráveis, às vésperas de os Estados Unidos elevarem seus juros. Sinal de que a necessidade por dólares era mais que urgente.

Serviços públicos custam um absurdo

ENDIVIDAMENTO Segundo Belluzzo, as remessas para o estrangeiro crescem quando as empresas não têm perspectiva de fazer mais investimentos no Brasil em função, por exemplo, do baixo crescimento econômico. Não por acaso, o fluxo de investimento direto estrangeiro (IDE) registrou queda expressiva em maio. Para se ter uma idéia, o BC projetava, para 2004, entrada mensal de 1,08 bilhão de dólares, mas só vieram, em média, 680 milhões de dólares nos primeiros cinco meses do ano. Porém, demissões e preços mais caros não são os únicos problemas relacionados à remessa de lucros.

14,9

15

Pagar a conta dos serviços públicos está mais difícil. Estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que brasileiro gasta, hoje, mais para pagar as tarifas públicas do que antes. Em 2003, uma família despendeu, em média, 16,81% de seu orçamento mensal com esses serviços. Em 1996, o percentual era de 12,98%. Esse foi mais um reflexo das privatizações feitas pelo governo Fernando Henrique Cardoso que, em 1994, vendeu as estatais de

energia e telefonia. Segundo o economista da Unicamp Luiz Gonzaga Belluzzo, todo esse processo culmina com um brutal transferência de renda, com prejuízos para as classes pobres e médias. “Na verdade, isso tudo foi uma trapalhada, porque não estabeleceram obrigações de investimentos. Foi algo ridículo, bolado para dar ganho de capital para três ou quatro espertalhões”, analisa. A tendência é que esse problema piore cada vez mais, porque os contratos de privatização estabelecem

como índice de reajuste das tarifas o IGP – Índice Geral de Preços, calculado pela Fundação Getúlio Vargas, indicador mais sensível aos efeitos do aumento do dólar. Para efeito de comparação, o IGP subiu 297% de junho de 1994 até maio de 2004, enquanto o IPCA – Índice de Preços ao Consumidor Ampliado, também do IBGE (indicador oficial da inflação) subiu 167%. O governo Lula ameaçou, em 2003, rever o índice de correção desses contratos, mas recuou. Mesmo assim, o Tribunal de

Contas da União (TCU) condenou, em relatório, os reajustes concedidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e os autorizados pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Também se cogita, na Câmara dos Deputados, na criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as privatizações de Fernando Henrique. Mas, como o governo decidiu esquecer esse passado comprometedor, a caixa preta dessas operações continua fechada. (JPF)

PETRÓLEO

Luiz Antonio dos Santos do Rio de Janeiro (RJ) Ao mesmo tempo em que o consumo mundial de petróleo aumenta, e a produção começa a depender de novos investimentos em grande escala, o governo brasileiro, por intermédio da Agência Nacional de Petróleo (ANP), pretende realizar em agosto o leilão da 6ª Rodada de Licitação das áreas sedimentares brasileiras. Aberto à participação de qualquer interessado, inclusive estrangeiro, o leilão do bloco – conhecido pelos especialistas como B-60 e avaliado em 3,3 bilhões de barris – é visto por muitos como uma ofensa aos interesses nacionais. Contra tal medida, entretanto, inúmeras entidades representativas da sociedade brasileira estão se organizando para impedir mais um ataque aos interesses nacionais. Heitor Pereira, presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), considera que falta ao governo uma visão estratégica e denuncia que a Petrobras sofre um processo de destruição que se agrava no governo Lula. O bloco B-60 foi descoberto pe-

Martin Bureau/AFP

Com leilão de reserva, país perde 144 bilhões de dólares

A Petrobras teve o B-60 devolvido à ANP por causa do compromisso do governo com o superávit primário

la estatal, mas foi devolvido à ANP sob a alegação de que a Petrobras não teria condições de investir. O que ocorre, na verdade, é que a Petrobras tem dinheiro disponível, mas a sua ação está sendo tolhida em função do compromisso do governo federal de manter superávit primário (economia para pagar

juros) de 4,75% do Produto. Pereira recorda que o próprio diretor financeiro da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, admite haver quase R$ 10 bilhões em disponibilidade. Paulo Metri, conselheiro do Clube de Engenharia (CE) e ex-funcionário da ANP, demitido à época de Fernando Henrique por criticar os

leilões, informa, em artigo do boletim eletrônico Aepet Direto, que a exploração do óleo existente no B-60, considerando-se o modesto preço médio de 75 dólares para os próximos 30 anos, proporcionará lucro líquido de 144 bilhões de dólares ao longo do período. Na fase FHC foram promovi-

dos os quatro primeiros leilões, o governo Lula fez um, e quer mais. Segundo o presidente da Aepet, a continuação destes leilões pode pôr em risco a meta de o Brasil chegar à auto-suficiência, o que deve acontecer em 2006 ou 2007. Ele acrescenta que, sem crescer, o país consome 2 milhões de barris por dia. Crescendo 5% ao ano, o mínimo indispensável para garantir os empregos que os brasileiros tanto precisam, as reservas calculadas para durar 17 anos acabam antes. O presidente da Aepet lamenta o fato de o atual secretário-executivo do Ministério das Minas e Energia (MME), Maurício Tolmasquim, anunciar a realização do leilão como a oferta de um filé mignon. Ele lembra que Tolmasquim, quando era pesquisador universitário especializado na área de energia, sempre defendeu posições nacionalistas. No governo, mudou rapidamente. Para enfrentar tudo isto cerca de 70 entidades estão se reunindo e promovendo debates para alertar a sociedade sobre a 6ª Rodada. Pereira finaliza afirmando que é essencial a reação popular, conclamando os cidadãos para resistir a mais um ataque à soberania nacional.


Ano 2 • número 70 • De 1º a 7 de julho de 2004 – 9

SEGUNDO CADERNO ARGENTINA

Piqueteiros enfrentam governo e EUA da Redação

“O

governo argentino está farto de que esse senhor Noriega se intrometa nos assuntos internos da Argentina”. A reação dura do chanceler argentino Rafael Bielsa tem direção certa: Roger Noriega, subsecretário de Assuntos Hemisféricos do Departamento de Estado dos Estados Unidos. O alto funcionário estadunidense afirmou, no dia 28 de junho, que Washington via com “preocupação” o movimento de trabalhadores desempregados – os piqueteiros –, que voltaram às ruas nas últimas três semanas. A declaração de Noriega reacendeu os ânimos na Argentina. Membros do governo reclamam que o funcionário estadunidense trata o país como se fosse “um quintal” dos Estados Unidos. Em agosto do ano passado, Noriega exigiu que o governo explicasse seu programa econômico e, no começo do ano, ante a proximidade de uma visita que o presidente Néstor Kirchner faria a Cuba, criticou a relação do país com o governo de Fidel Castro. Ao mesmo tempo em que compra a briga com os Estados Unidos, o governo argentino não dá respostas ao movimento de desempregados que voltaram a ocupar as

Mais de 50 mil pessoas mostraram sua revolta pelo assassinato de Martín Cisneros na Ponte Puerreydón, em Buenos Aires, no dia 26 de junho. A data marca também o massacre de Avellaneda, em que morreram dois piqueteiros do MTD. O povo pede responsabilização pelo massacre e comprometimento com os problemas populares.

principais cidades argentinas, reivindicando políticas sociais. No dia 25 de junho, em um caso mal explicado, o piqueteiro Martín Cisceros foi assassinado, desencadeando a ocupação de uma delegacia em La Boca, em Buenos Aires. O dirigente operário Luis D’Elia, da Federação Terra e Moradia, coordenou a ação, de sete horas. Depois que saiu do local, D’Elia denunciou que os policiais davam proteção a narcotraficantes e a prostíbulos na região. Antes da ocupação da delegacia em La Boca,

foram registradas uma manifestação na sede da empresa petroleira Repsol-YPF, a ocupação de lanchonetes do McDonald´s e ações em pedágios.

MARCHA POR JUSTIÇA Mais de 50 mil pessoas de diferentes entidades se reuniram, no dia 26 de junho, na Ponte Puerreydón, em Buenos Aires, no principal ato público que marcou os dois anos do massacre de Avellaneda. A manifestação foi para lembrar a morte dos piqueteiros Darío Santillán e

Maxiliano Kosteki, militantes do Movimento de Trabalhadores Desempregados Aníbal Verón. As várias organizações assinaram um documento único em que exigem castigo aos responsáveis pelo massacre de 2002. Néstor Pitrola, do Pólo Operário, disse que o ato também foi para denunciar “a crescente escalada dos casos de gatilho fácil”. Pitrola assinalou que, “com a marcha de multidões, os piqueteiros mostraram sua unidade ao governo”. No entanto, advertiu para o perigo que ronda os setores

que se aproximam do Partido Justicialista, porque “estão se metendo numa luta interna entre Duhalde e Kirchner. Nenhum dos dois está preocupado em resolver os problemas dos setores empobrecidos”, afirmou. Os manifestantes expressaram ceticismo a respeito do governo de Néstor Kirchner, que em dezembro recebeu os famíliares de Santillán e Kosteki. Na audiência, prometeu uma resposta em três meses. Até agora, nenhuma atitude foi tomada. (Com agências)

Plano Patriota começa a sair da sombra

Constanza Vieira de Bogotá (Colômbia) Apesar de cercado de silêncio dentro da Colômbia, o Plano Patriota começa a se revelar como a mais ambiciosa e maciça ofensiva militar contra a guerrilha de esquerda da América Latina. E dela participam tropas dos Estados Unidos. Na operação, que envolve, segundo a imprensa, 17 mil soldados e acontece em uma área de 260 mil quilômetros no sul do país, atuam forças móveis e esquadrões especiais de selva, treinados e assessorados por estadunidenses e apoiados por moderna tecnologia, também dos EUA. A região da ofensiva é território controlado pelas ForçasArmadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), com armas há quatro décadas. O chefe do Comando Sul do Exército dos Estados Unidos, general James Hill, acaba de confirmar que o Plano Patriota iniciou suas ofensivas em junho, com ataques às zonas camponesas de apoio à guerrilha, ao sul de Bogotá. Depois de sair da base de Larandia, no departamento de Caquetá, de onde é coordenado o Plano Patriota, Hill revelou o que as autoridades do país evitavam reconhecer: o grau de profundidade da ofensiva contra as Farc.

INVASÃO BÉLICA Em um ano, Hill manteve 13 reuniões com militares colombianos e fez seis visitas ao Equador. Ele revelou que as duas casas do Congresso dos Estados Unidos estão em fase de conciliar o aumento do número de efetivos estadunidenses na Colômbia, de 400 para 800 militares, e outros assessores privados contratados pelo Departamento de Defesa. O general acredita que a operação “desmobilizará (os guerrilheiros) ou chegará a negociações antes de 2006”. Para ele, o sucesso do plano depende da “liderança continuada” do direitista presidente Álvaro Uribe, da “contínua ajuda dos Estados Unidos e que o povo colombiano saiba que é necessário um sacrifício”. Entretanto, analistas militares,

Luis Acosta/AFP

COLÔMBIA

Fotos: CMI Argentina

Governo não responde a movimento de desempregados; manifestantes ocupam delegacia após assassinato de trabalhador

O Congresso dos EUA está para dobrar seu número de efetivos militares na Colômbia

colombianos e estadunidenses, reconhecem que as Farc não sofreram grandes perdas, que sua liderança está intacta e que parecem estar dedicadas a uma retirada estratégica. “Não deve haver ilusões de uma campanha militar rápida e decisiva”, diz um documento da não-governamental Washington Office on Latin America (Wola – Escritório sobre a América Latina em Washington). Segundo a entidade, a operação é exclusivamente bélica, por isso o “Plano Patriota marca a entrada dos Estados Unidos em uma nova

fase, mais intensa, de participação militar no conflito armado colombiano”. A organização, que faz uma campanha para que o Congresso não autorize o aumento da presença militar na Colômbia, afirma que, ao contrário do Plano Colômbia (também financiado por Washington), o Patriota não pretende ampliar os propósitos antinarcotráfico.

EQUADOR EM ALERTA O ex-presidente Andrés Pastrana (1998-2002) negociou e conseguiu o apoio militar dos Estados Unidos, concretizado no Plano Colômbia,

enquanto mantinha diálogo com as Farc em uma zona desmilitarizada de 42 mil quilômetros quadrados no Caguán, a mesma região onde hoje opera o Plano Patriota. O Plano Colômbia, já fracassado, segundo muitos observadores, visava a redução na oferta de drogas para o mercado estadunidense, diminuindo sua produção (plantação de coca e elaboração da cocaína), o que, ao mesmo tempo, deveria enfraquecer a renda da guerrilha. Os críticos dos dois planos reprovam o fato de terem sido concebidos e preparados por Bogotá junto com os departamentos de Estado e de Defesa e, ainda, sob o Comando Sul do Exército dos Estados Unidos. Enquanto Bogotá evitava se referir à operação contra as Farc, a Associação Latino-Americana de Direitos Humanos (Aldhu), com sede em Quito, alertou sobre o impacto do Plano Colômbia no Equador, que compartilha 640 quilômetros de fronteira com a Colômbia. A Aldhu advertiu que pode aumentar o fluxo de civis colombianos que fogem do conflito rumo a esse país, mas, também, que poderia levar os traficantes de insumos bélicos e drogas a se instalarem em território equatoriano. O Plano Patriota se complementaria com a estadunidense Iniciativa Regional Andina,

dirigida a Equador, Peru, Bolívia e Panamá, com o objetivo de blindar militarmente as fronteiras com a Colômbia. Por outro lado, o governo inicia negociações com outro dos atores armados, as direitistas e paramilitares Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), cujos máximos líderes são acusados de narcotráfico nos Estados Unidos, e as quais a Organização das Nações Unidas considera responsáveis pela maior parte dos crimes contra civis. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)

FÓRUM SOCIAL CHILENO

Campanha quer impedir visita de Bush

Gustavo González de Santiago (Chile) Os chilenos iniciaram uma campanha para que o presidente Ricardo Lagos não autorize a entrada no país do presidente dos Estados Unidos George W. Bush, em novembro. Segundo o advogado Mariano Rendón, coordenador do grupo Ação Ecológica, a rejeição a Bush se deve não apenas à guerra no Iraque, como também à negativa do presidente estadunidense em assinar o Protocolo de Kioto, para

redução da emissão de gases do efeito-estufa. Mais de cem organizações sindicais, humanitárias, ambientalistas, estudantis, de mulheres, de minorias sexuais e outros setores se reuniram, dia 19 de junho, em La Lígua, para convocar o Fórum Social Chileno. O encontro será em 19, 20 e 21 de setembro, mesmas datas da reunião de cúpula do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (Apec na sigla em inglês). Ao encontro da Apec devem comparecer Bush e outros 19 chefes de Estado, além de

grandes empresários. A declaração do Fórum Social Chileno afirma: “Enquanto os dirigentes e os empresários da Apec tomam decisões que afetam a vida cotidiana dos habitantes desses países, a cidadania estará excluída dos debates e, por certo, das decisões.” O Fórum da Apec, criado em 1989, é o maior bloco econômico do planeta. Os 21 países-membros são responsáveis por 55% do comércio e 57% da produção mundiais; os 2,5 bilhões de habitantes sob sua jurisdição contribuíram com 70% do cres-

cimento global na última década. Chile, México e Peru são os únicos membros latino-americanos da Apec. A eles se somam os Estados Unidos, Japão, China, Rússia, Austrália, Brunei, Canadá, Cingapura, Coréia do Sul, Filipinas, Hong Kong, Indonésia, Malasia, Nova Zelândia, Papua-Nova Guiné, Tailândia, Taiwan e Vietnã. Para 2010 está previsto o livre comércio entre os países desenvolvidos e, para 2020, entre todos os países da Apec. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)


10

De 1º a 7 de julho de 2004

AMÉRICA LATINA ARGENTINA

Kirchner espera pelo apoio de Lula

Para o sociólogo Atilio Boron, o presidente argentino não se submete aos EUA, mas não tem força para romper

Brasil de Fato – Por que, depois de um ano de governo, Kirchner tem 79,4% de aprovação popular? Atilio Boron – Por vários motivos. Primeiro, pelo fato de ser um presidente surgido de uma eleição em que a outra alternativa era Carlos Menem, que representava uma intolerável volta ao passado. Kirchner, com seu segundo lugar no primeiro turno das eleições, provocou a fuga do ex-presidente e seu irreversível desaparecimento do cenário político. Além disso, capitalizou a indignação de amplos setores da sociedade pela sabotagem institucional do ex-presidente ao impedir a realização da votação que, segundo pesquisas prévias, teria resultado em esmagadora vitória de Kirchner. Em segundo lugar, a ascensão de Kirchner – até pouco mais de um ano uma figura marginal na política argentina – é incompreensível se fizermos abstração das grandes revoltas populares que vinham comovendo o país desde o início do governo da Aliança e que, nos dias 19 e 20 de dezembro de 2001, chegaram ao auge ao derrubar o governo de Fernando de la Rúa. Esse acontecimento pôs em evidência a gravidade da fenomenal “crise orgânica”, em sentido gramsciano, em que havia caído a Argentina, potencializada pela queda simultânea, e igualmente catastrófica, da convertibilidade do peso. Essa crise – que devorou quatro presidentes em pouco mais de uma semana – deixou seqüelas profundas na vida pública, uma das quais continua sendo a radical deslegitimização da classe política tradicional. Kirchner teve a sorte de ser encarado como um componente menor nessa constelação de poder. Em terceiro, diferente de muitos chefes de Estado, Kirchner não foge ao contato direto com a população. Seu estilo é sumamente informal. Ele detesta as mediações e as barreiras que o protocolo, ou a segurança, impõem aos governantes. Em quarto lugar, é preciso assinalar que Kirchner capitalizou muito bem seu enfrentamento, por certo mais retórico do que substantivo, aos grandes monopólios, aos burocratas do FMI e do Banco Mundial, ao governo estadunidense, ao governo espanhol e aos investidores estrangeiros. Os ataques furibundos da direita argentina, famosa por sua intolerância a qualquer pretensão de progressismo, lhe granjearam apoios renovados. Por último, em assuntos que não a economia, a gestão de Kirchner não se deteve no plano retórico e se viu ratificada com fatos concretos, sobretudo em matéria de direitos humanos, na depuração da Corte Suprema de Justiça e dos altos comandos das Forças Armadas. BF – Kirchner renegociou os acordos com o FMI. Sua estratégia é resistir ao domínio dos Estados Unidos e romper com o neoliberalismo?

BF – Há diferença entre um acordo de livre comércio com os Estados Unidos e com a Europa? Boron – Não. São diferenças menores, de grau. A Europa, ainda que seja a Europa “social-democrata”, está tão identificada com o imperialismo e o neoliberalismo como a direita estadunidense. Basta analisar a deplorável conduta de Tony Blair e a famosa “terceira via” do Novo Trabalhismo. O que ocorre é que, no caso da Alca, a integração econômica, de fato a total subordinação econômica aos Estados Unidos, traria também uma submissão política direta que, no caso da União Européia, seria muito mais difícil de conseguir. Afinal das contas, os Estados Unidos são a única superpotência militar do planeta e isso faz diferença.

Mesmo com organizações populares vulneráveis, haverá uma turbulência social

Quem é Secretário executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), o sociólogo argentino Atilio Boron é professor da Universidade de Buenos Aires, onde ensina e pesquisa os impactos do neoliberalismo e da globalização. É autor, entre outros, de Estado, capitalismo e democracia na América Latina (Paz e Terra) e Filosofia política marxista (Cortez). Boron – Lamentavelmente, não creio que, na agenda governamental de Kirchner, figure em lugar proeminente a ruptura com o neoliberalismo. Os “ganhadores” e os “perdedores” das políticas econômicas do kirchnerismo são os mesmos do menemismo. Entre os ganhadores sobressaem as empresas privatizadas, os monopólios estrangeiros, os setores mais concentrados do capital nacional e a oligarquia financeira e rentista. Os perdedores também são os mesmos: trabalhadores, camadas médias empobrecidas e vastos conjuntos populares condenados ao desemprego crônico, à exclusão social. Apesar da notável mudança na retórica oficial, o injusto padrão distributivo de renda, estabelecido com as reformas neoliberais dos anos 90, se manteve. Se os números do desemprego mostram uma leve melhora, deve-se à inclusão, na categoria de “trabalhadores ocupados”, de aproximadamente um milhão de pessoas que recebem um modesto subsídio de desemprego equivalente a 50 dólares mensais. Em síntese, a postura de Kirchner é a de um duro negociador – ao menos para os padrões latino-americanos – com os agentes nacionais e internacionais do neoliberalismo, alguém a quem não interessa fazer da submissão ao imperialismo estadunidense sua carteira de identidade. Em todo caso, sua vontade de transcender nos fatos as fronteiras do neoliberalismo ainda está por se ver. A prolongada negociação com o FMI deixou dois ensinamentos fundamentais: um, que o governo argentino continuou negociando com o FMI quando economistas como o Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz diziam que o FMI era o problema e não a solução. Aí o governo esteve mal. O segundo ensinamento é que, em que pese o que foi dito agora, o governo manteve uma certa dignidade e rejeitou as exigências absurdas e leoninas em relação ao superávit fiscal, não dando ouvidos aos conselhos do FMI de “imitar o que Lula fez no Brasil” e se comprometer com um superávit de 4% ou 4,5% do PIB. Em resumo, o panorama econômico do kirchnerismo exibe as seguintes características: negociação dura com o FMI; ocasional falta de docilidade diante das ordens da Casa Branca (desobedecendo-a

João Alexandre Peschanski

O

presidente argentino, Néstor Kirchner, aguarda a colaboração de seu colega brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, para iniciar uma batalha contra as políticas impostas pelos organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI). “Mas, para sua desgraça, o governo Lula se converteu no novo bastião da ortodoxia neoliberal na região”, avalia o sociólogo argentino Atilio Boron. Em entrevista ao Brasil de Fato, Boron discute os rumos de Kirchner no governo e os impactos das políticas neoliberais na Argentina.

respeito a desempenho econômico. De todo modo, tanto em um como no outro caso, a liquidação prática de qualquer resto de autodeterminação e de soberania nacional que a Alca implica – de fato, nossa anexação econômica e política aos Estados Unidos – teria conseqüências muito negativas sobre o funcionamento geral da economia e a sustentabilidade dos avanços democráticos.

Fotos: CMI Argentina

João Alexandre Peschanski da Redação

quando lhe exigem que condene Cuba, mas obedecendo quando pedem que, junto ao Brasil e ao Chile, vá reforçar a repressão no Haiti, ou que continue negociando com o Fundo); e, sobretudo, saída da convertibilidade sem sair do neoliberalismo, que é o grande problema atual da Argentina. BF – Como se manifesta o neoliberalismo na Argentina? Há alguma diferença com o que ocorre em outros países latino-americanos? Boron – A vitalidade do neoliberalismo se comprova ao se observar a persistência dos seguintes elementos: a) a valorização da renda financeira continua sendo o eixo fundamental da política econômica; a especulação financeira está sendo estimulada pelo governo, pois os lucros que produz não geram obrigações impositivas na Argentina. b) a imutabilidade de um padrão distributivo de renda extraordinariamente desigual e regressivo, resultante das políticas do “neoliberalismo selvagem” implantadas nos anos do menemismo. c) a vigência dos parâmetros macroeconômicos fundamentais instituídos durante os anos 90, como as privatizações, a desregulamentação e a liberação dos mercados, a abertura externa, a fragilidade do Estado e do gasto público, a desindustrialização, a dependência de exportações com escasso valor agregado etc. d) a continuidade das equipes técnicas da área econômica, quase sem exceção as mesmas do governo anterior, e a constante aceitação do papel decisório do FMI nas grandes definições de política econômica, para além das ríspidas controvérsias que ocasionalmente sejam suscitadas com seus representantes. Dito isso, creio que, apesar das limitações assinaladas, existe em Kirchner a intenção de questionar o neoliberalismo. Diferente dos governantes da região – Ricardo Lagos, do Chile; Vicente Fox, do México, ou Lula, do Brasil – Kirchner detesta o Consenso de Washington. Acredita que é

uma extorsão e chamou seus beneficiários de “abutres” ou “delinqüentes”. Se o aceita, é como um mal menor, ou, talvez, como resultado do que percebe – erroneamente no meu entender – como uma impossibilidade prática de romper com seu predecessor. Kirchner proclama a necessidade de abandonar o neoliberalismo (seu discurso na Reunião de Cúpula de Monterrey, diante de George W. Bush, foi, nesse sentido, impecável), mas desconfia de suas próprias forças para conseguir esse abandono. Sente que necessita do apoio do Brasil para iniciar tal empreendimento, mas para sua desgraça o governo Lula se converteu no novo bastião da ortodoxia neoliberal na região, sendo, como Menem no passado, “mais realista que o rei”. Então Kirchner conclui que a Argentina não pode iniciar sozinha tamanha batalha contra o neoliberalismo. Esperando pacientemente uma eventual mudança de rumo de seu amigo Lula, que o apoiou com firmeza na campanha eleitoral e durante seu primeiro ano de governo, Kirchner se limitou a adotar poucas iniciativas no terreno econômico e a cultivar uma ácida retórica condenatória do neoliberalismo. BF – Quais seriam as conseqüências da implantação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) para o governo Kirchner? Boron – Catastróficas, em relação direta com o grau de industrialização e diversificação estrutural das economias. Por isso, dado à complexidade e ao volume de sua economia, para o Brasil a implantação da Alca significaria um retrocesso fenomenal, jogar pela janela um projeto industrializador, de alto êxito em alguns itens, sustentado por mais de meio século. Para a Argentina a Alça também seria muito negativa, enquanto para países com economias menores, menos diversificadas e com escassa base industrial, como o Peru, Equador ou Uruguai, as conseqüências seriam menos graves no que diz

BF – Como está a mobilização popular na Argentina? Boron – Não há mais panelaços porque os trabalhadores refletiram uma situação momentânea da crise política argentina. Os setores “paneleiros” foram mobilizados por uma combinação de circunstâncias: o bloqueio e o cancelamento de seus depósitos em dólares e em pesos; a sensação de colapso gerada pelo desgoverno dos meses finais da gestão Menen, sobretudo ao se desvanecerem os truques de espelho maliciosamente forjados por Domingo Cavallo; o mal-estar diante da provocação autoritária do presidente de la Rúa e diante da corrupção generalizada que dizimou a legitimidade da direção política. Essas condições desapareceram, em boa medida, durante a gestão Duhalde e, com elas, desapareceram os protestos e os panelaços nas classes médias. Quanto à situação dos trabalhadores e da população em geral, eu diria que estamos num período de relativo refluxo, depois das grandes jornadas de dezembro de 2001. Persistem, entretanto, muitos focos de protesto e mobilização. É claro que as altas taxas de desemprego e os estragos da pobreza tornam estas organizações sumamente vulneráveis diante das incipientes políticas sociais do kirchnerismo – que tiveram um relativo êxito em cooptar uma parte da direção (e às vezes até as organizações) dos piqueteiros. Apesar disso, a Argentina se aproxima de uma fase de fortes turbulências, em que as lutas sociais se agravarão. Kirchner enfrenta um grave dilema: se continuar com o rumo neoliberal, a radicalização dos protestos será impossível de conter. E se mudar para uma direção “pós-neoliberal”, a direita e seus aliados imperiais já têm prontos seus tradicionais arsenais de combate, e também nesse caso a Argentina veria aguçar-se a luta de classes. Diante do esgotamento do neoliberalismo, a Argentina, como toda a nossa região, se aproxima da “hora da verdade”. Cada país enfrentará essa conjuntura com os aprendizados de lutas passadas e a capacidade atual de organização de suas forças populares e de esquerda.


11

De 1º a 7 de julho de 2004

INTERNACIONAL IRAQUE

Governo fantoche mantém poder estadunidense Bush monta um governo interino de cooperação, se livra da pressão pública e mantém ocupação com 150 mil soldados

A justificativa de se criar um governo interino sustenta a farsa da paz quando a intenção é reprimir

forças militares e policiais nacionais, as atividades de repressão devem continuar sob a responsabilidade dos 150 mil soldados estadunidenses que ainda ocupam o país e vão permanecer no Iraque. Até o momento, de acordo com dados levantados por diversas entidades, entre 9.436 e 11.317 civis iraquianos foram mortos desde o

início da invasão do país, em abril de 2003.

PODER SOBERANO? O novo governo do Iraque resultou de negociações entre as diversas comunidades iraquianas, os representantes de Bush e o enviado especial das Nações Unidas no país – este teve pouca influência na esco-

lha dos ministros. Apesar de a grande imprensa estadunidense declarar que o Iraque é agora soberano, a população do país não participou da escolha de seus líderes. Em entrevistas realizadas pela televisão iemenita Al-Jazeera, dia 26 de junho, iraquianos consideravam uma piada a transferência do poder. Em Bagdá, capital do país, um homem declarou

Cronologia de uma ocupação militar

16 de maio – o estadunidense Paul Bremer é nomeado administrador civil do Iraque e dissolve o Exército iraquiano. Muitos dos soldados demitidos vão formar guerrilhas de resistência à invasão. 2 de outubro – relatório do Grupo de Inspeção no Iraque (ISG) declara: não há armas de destruição em massa no país. O governo estadunidense havia apresentado

provas da existência de tal armamento para justificar a ocupação. 30 de outubro – a Organização das Nações Unidas deixa Bagdá, capital do Iraque, avaliando que a situação da cidade é perigosa para seus funcionários. 13 de dezembro – o ex-líder iraquiano Sadam Hussein é preso.

2 de março de 2004 – atentados simultâneos aterrorizam Bagdá. Mais de 170 pessoas são mortas, incluindo soldados estadunidenses. Militares dos Estados Unidos são seqüestrados por forças rebeldes iraquianas. 8 de março – uma constituição provisória, que estabelece a transferência do poder a um governo iraquiano em 30 de junho, é ratificada.

24 de junho – mais de cem mortos e 300 feridos em atentados em diversas cidades iraquianas. 28 de junho – o administrador da CPA Paul Bremer transfere o poder para um governo formado por iraquianos e deixa o país. Marwan Naamani/AFP

1º de maio de 2003 – após seis semanas de ataques, o presidente estadunidense George W. Bush declara que os combates acabaram, que os Estados Unidos venceram, mas que a guerra contra o terrorismo continua.

Stefan Zaklin/EFE/AE

O

presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, transferiu dia 28 de junho, dois dias antes do previsto, o controle político do Iraque a um governo interino iraquiano, encabeçado pelo primeiro-ministro Ayad Allawi e pelo presidente Ghazi al-Yawar. Em comunicado oficial, Bush declarou que a era da liberdade começava e a principal tarefa do novo governo deve ser pacificar o país. A medida gerou alvoroço nos grandes meios de comunicação e no parlamento estadunidenses. Um dos maiores canais de TV do país, a CNN anunciou: “Estados Unidos devolvem soberania ao Iraque”. No parlamento, deputados festejaram, avaliando a decisão como uma vitória para as democracias iraquiana e estadunidense. As declarações tentam ocultar uma farsa. O governo, que toma o lugar da Autoridade Provisória da Coalizão (CPA), há 14 meses no poder, não tem a tarefa de pacificar o Iraque, mas de reprimir os grupos que resistem à ocupação. A estratégia de Bush é simples. Em primeiro lugar, os estadunidenses se desresponsabilizam da violência (massacre, tortura etc.) cometida contra a população iraquiana, principalmente os que não aceitam a ocupação do país. Assim, o que ocorreu no presídio de Abu Ghraib, onde prisioneiros iraquianos foram torturados por soldados estadunidenses, não vai deixar de ocorrer – só que os carrascos agora serão iraquianos, financiados pelos Estados Unidos, pois Bush disse que não poupará esforços financeiros para garantir o sucesso do novo governo. Em segundo lugar, Allawi e al-Yawar não têm que se submeter à pressão da opinião pública estadunidense. Para Bush, em campanha para a reeleição, manter uma boa imagem é fundamental. Em recentes pesquisas, o atual presidente estadunidense aparece com 46% das intenções de voto, exatamente o mesmo resultado de seu adversário, John Kerry. Apesar do empate, Bush tem um alto índice de reprovação (mais da metade da população) e influentes personalidades, como o especulador George Soros e o documentarista Michael Moore, iniciaram uma campanha contra ele. A principal estratégia dos opositores de Bush é convencer a população a participar da eleição em novembro (o voto nos Estados Unidos não é obrigatório), enquanto o presidente tenta reverter a reprovação a seu governo, muito associada à situação no Iraque. Além disso, o novo governo, composto por iraquianos de diferentes etnias (Allawi é xiita; alYawar, sunita; e o vice-presidente, Rowsch Shaways, curdo), vai ter mais penetração na população e obter mais facilmente informações sobre os grupos resistentes. Como o governo ainda não conta com

ao repórter da TV que o governo era formado por representantes iraquianos de Bush e que temia que as eleições no país, previstas para janeiro de 2005, fossem canceladas. O novo governo não pretende resistir à ocupação e interromper o controle econômico do país, principalmente do petróleo, por empresas estadunidenses. Uma das resoluções da transferência de poder garante aos Estados Unidos a fiscalização e a exploração dos poços petrolíferos. O recém-empossado embaixador estadunidense no Iraque, John Negroponte, terá a responsabilidade de controlar e orientar a política econômica do governo. A embaixada dos EUA no país será a maior do mundo, com 1.500 funcionários. A pedidos de Allawi, 150 conselheiros técnicos estadunidenses vão participar das atividades de alguns ministérios iraquianos, como o da Economia e o do Petróleo. Bush também terá garantida sua participação no julgamento do ex-líder iraquiano Sadam Hussein. A condenação de Hussein – praticamente pré-anunciada pelo secretário de Estado dos Estados Unidos, Colin Powell – é vista como um meio de alavancar votos para Bush. Allawi, o principal nome do governo, tem muita influência na população iraquiana, pois o partido que fundou, o Projeto Nacional do Iraque, fez oposição ao regime de Hussein. Nos anos 70, ele teve que fugir do país e morou na Inglaterra e nos Estados Unidos. Com o apoio da Agência Central de Inteligência (CIA), Allawi articulou a resistência a Hussein. Durante a Guerra do Golfo, promovida pelo presidente George Bush pai, em 1991, ele trabalhou como informante da agência de espionagem estadunidense. Alguns analistas estadunidenses, entrevistados pela CNN, zombaram da escolha de Allawi para o governo. Um deles declarou: “Falam de um poder soberano, mas (Allawi) é como se fosse um funcionário da Casa Branca”.

Ramzi Haidar/AFP

João Alexandre Peschanski da Redação

28 de abril – fotos de soldados estadunidenses torturando iraquianos no presídio de Abu Ghraib geram protestos em todo o mundo.

União Européia e EUA firmam acordo sobre invasão Jorge Pereira Filho da Redação Mais de 40 mil turcos protestaram, dia 26 de junho, contra a invasão do Iraque e o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, durante reunião da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). O encontro dos líderes dos 26 países que integram a entidade ocorreu em Estambul, Turquia, e selou a reconciliação das grandes potências imperialistas: EUA, Inglaterra, Alemanha e França. Os manifestantes enfrentaram um rígido esquema de segurança, qualificado por alguns jor-

nais estrangeiros como “um Estado virtual de exceção”. O trânsito de veículos e de pessoas foi proibido em um grande perímetro da cidade. Momentos antes da reunião da Otan, Estados Unidos e União Européia lançaram uma declaração estabelecendo compromissos conjuntos para a “reconstrução” do Iraque – o que, na prática, significa dividir uma participação nos negócios iraquianos controlados, agora, pelos estadunidenses. Embora o presidente francês Jacques Chirac, e o premiê alemão, Gerhard Schroder, mantenham posição contrária ao envio de tropas ao Iraque, houve

um acordo mínimo sobre o treinamento de soldados iraquianos.

CANDIDATURA ABALADA As nações da Otan concordaram também em perdoar parte da dívida externa do Iraque, que hoje chega a 120 bilhões de dólares. O perdão atende a um pleito antigo dos EUA aos europeus para que considerassem a dívida iraquiana ilegítima por ter sido contratada em um regime antidemocrático. O mesmo argumento, no entanto, os próprios Estados Unidos não aceitam para discutir a dívida dos países latino-americanos e africanos, cujos

contratos em sua maioria foram assinados por governos militares ou ditatoriais, como no caso brasileiro. Em discurso, Bush divulgou que chegava ao fim as divergências entre Washington e seus aliados europeus, principalmente Paris e Berlim. O presidente estadunidense chegou à Europa com o objetivo de arrancar acordos com seus antigos aliados. Enfrentando fortes resistências populares em todo o mundo, Bush vê crescer a oposição a seu nome nas disputas presidenciais. Os seguidos fracassos no Iraque e a força da resistência interna às tropas estadunidenses enfraqueceram sua candidatura.

O recuo dos europeus não foi total. A Espanha, do primeiro-ministro socialista Francisco Zapatero – que logo depois de sua eleição retirou tropas do Iraque – manteve a posição de não participar dos negócios depois da invasão. Mesmo o acordo com a França e a Alemanha saiu aquém das expectativas do governo estadunidense, que queria realizar o treinamento das tropas no território iraquiano. Berlim e Paris rejeitaram a proposta e só aceitaram cooperar em outro país. De qualquer forma, trata-se de uma capitulação de Chirac e de Schroder frente à pressão estadunidense.


12

De 1º a 7 de julho de 2004

INTERNACIONAL ÁFRICA

Zâmbia: uma nação arruinada pelo FMI

Sanjay Suri de Londres (Inglaterra)

A

intervenção do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) arruinou a economia da Zâmbia, que já chegou a ser um dos países mais ricos da África Subsaariana, afirmou o Movimento Mundial de Desenvolvimento (WDM, sigla em inglês) em recente estudo. Na década de 70, depois da crise do petróleo e do colapso dos preços dos produtos básicos, Zâmbia teve de recorrer a essas duas instituições financeiras internacionais em busca de créditos. As reformas que ambas impuseram em troca “provocaram diretamente a perda de dezenas de milhares de empregos, a destruição de indústrias-chave, distúrbios sociais e pobreza crescente”, afirma o estudo do WDM, uma organização não-governamental com sede em Londres. O documento, intitulado “Zâmbia: Condenado à dívida”, afirma que “a liberalização do comércio, a desregulamentação, o desmantelamento do setor público e as privatizações maciças” são a causa da queda da Zâmbia do 130º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano em 1990 (uma posição já pobre) para o 163º em 2001. A situação se repete em muitos outros países africanos. “Nosso estudo dos casos do Maláui e do Senegal nos levou a conclusões muito semelhantes, embora em diferente grau”, afirmou Dave Timms, do WDM. O caso da Zâmbia, que adotou um regime democrático depois de sua independência em 1964 e não esteve em guerra, “é um dos piores e uma das provas mais claras do fracasso das políticas do FMI e do Banco Mun-

Alexander Joe/AFP

Intervenção do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial gerou desemprego e crise social

TANZÂNIA CONGO

ANGOLA

ZÂMBIA Lusaka

Zimbábue

BOTSWANA

ZÂMBIA

Políticas do Banco Mundial e do FMI levam a fome, o desabastecimento e a falta de escola aos países africanos

dial”, ressaltou Timms. Em algumas áreas, o impacto das políticas foi dramático, afirma o relatório, escrito pelos economistas zambianos Jack Jones Zulu e Lishala Situmbeko. Por exemplo, a redução das alíquotas de importação de produtos têxteis e a eliminação de alíquotas para roupa usada provocou a importação em grande escala de vestuário barato de segunda mão. Como resultado, de 140 fábricas têxteis que existiam em 1991, em 2002 restavam apenas oito e o número de empregos no setor caiu de 34 mil para 4 mil. “Costumávamos fornecer aos intermediários 3.500 toneladas de roupas por ano, agora vendemos apenas 500 toneladas”, afirmou Ra-

mesh Patel, dono de uma empresa têxtil. Há oito anos, a fábrica tinha 250 empregados, agora conta com apenas 25, acrescentou. Entre princípios dos anos 70 e finais dos 80, a dívida externa de Zâmbia cresceu de 814 milhões de dólares para 6,916 bilhões de dólares, revela o informe do WDM. Entretanto, até o início do ano passado, o país havia recebido apenas 5% da redução da dívida em virtude da iniciativa para Países Pobres Muito Endividados (HIPC, na sigla em inglês). Segundo o WDM, essa iniciativa “é outro instrumento com o qual FMI e Banco Mundial exercem sua influência sobre a economia de Zâmbia”. Em troca do alívio da dívida, as instituições de Bretton

Localização: África Austral (do Sul) Nacionalidade: zambiana Cidades principais: Lusaka (capital), Ndola, Kitwe Línguas: inglês (oficial), nianja, bemba, tonga Divisão política: 9 províncias Regime político: república presidencialista População: 10,9 milhões (2002) Moeda: kwacha Religiões: católica (34%) protestante (30%), tradicionais Hora Local: +5 Domínio internet: .zm DDI: 260

Woods realizam intervenções políticas em matéria de desregulamentação, privatização, demissões, congelamento de salários e redução do apoio governamental ao setor agrícola. Essas políticas foram, até agora, “um rotundo fracasso”. O próprio Banco Mundial reconheceu em 2000 que a eliminação dos subsídios para o cultivo de milho e para fertilizantes provocou “paralisação e regressão, em lugar de ajudar o setor agrícola de Zâmbia”. O produto interno bruto nacional por habitante caiu de 1,455 dólar em 1976 para 892 dólares em 2000, diz o relatório. Essa queda econômica se reflete em uma queda social. “Por exemplo, a proporção da população considerada desnu-

trida, com um consumo de calorias inferior ao mínimo necessário de energia, aumentou de 45% em 1990 para 50% em 2001”, acrescenta o documento. Sem mudanças radicais, parece impossível que a Zâmbia possa alcançar a maioria dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, fixados pelos Estados-membros da Organização das Nações Unidas em 2000, adverte o WDM. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio incluem a redução pela metade da quantidade de pessoas que vivem com menos de um dólar por dia e padecem de fome; ensino primário universal e redução da mortalidade maternoinfantil até 2015. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)

Mário Osava de São Paulo (SP) Os países mais vulneráveis necessitam de uma atenção efetiva em todos os fóruns mundiais, porque continuam sem receber a ajuda oficial para o desenvolvimento que lhes foi prometida e não podem se beneficiar da expansão do comércio mundial. Este foi o chamado de Anwarul Chowdhury, subsecretário-geral da Organização das Nações Unidas e alto representante dos Países Menos Avançados (PMA), dos Países em Desenvolvimento sem Litoral e dos Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento, durante a XI Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), que aconteceu em São Paulo. Os países ricos deveriam destinar 0,2% de seu produto interno bruto em ajuda oficial ao desenvolvimento para os 50 PMA, mas só entregam 0,11%. O algodão é uma das principais exportações de pelo menos 20 dessas nações, a maioria da África. Porém, os subsídios concedidos pelos Estados Unidos aos seus algodoeiros deprimiram os preços em 25%. Assim, a África perdeu, no mínimo, 300 milhões de dólares em renda, disse Chowdhury à IPS. Essa quantia é vital para países onde a maioria da população vive com menos de um dólar por dia e a expectativa de vida não passa dos 50 anos. Somente em Benin, Burkina Faso e Mali, quase 11 milhões de pessoas dependem da renda do algodão e sofrem na própria carne os efeitos dos subsídios norte-americanos, condenados na Organização Mundial do Comércio graças a uma denúncia feita pelo Brasil. Os PMA somam 736 milhões de habitantes, mais de 11% da população mundial, mas sua participação no comércio global se limita a 0,4%, destacou o subsecretário-geral da

Daniela Moreau

Países menos desenvolvidos pedem socorro

Lavadeiras às margens do Rio Níger, no Mali, país exportador de algodão

ONU. A maioria deste grupo está entre as 39 nações que dependem de um único produto básico, como o algodão, e ficam sem alternativas diante da queda dos preços internacionais. Por isso, além de recuperar preços, estes países necessitam que a comunidade internacional estabeleça uma “política consis-

tente para estabilizar os preços”, afirmou Idris Waziri, ministro do Comércio da Nigéria, “vítima” dos mesmos subsídios, embora não seja um PMA. Sem a dupla ajuda ao desenvolvimento que recebem, o cancelamento das dívidas e condições para diversificar suas economias, como um comércio mais favorável, os PMA não poderão cumprir

as Metas de Desenvolvimento do Milênio, estabelecidas pela comunidade internacional em 2000, com a redução da pobreza e da fome, ressaltou Chowdhury. Para as nações mais pobres, seria fundamental uma abertura comercial do restante dos países em desenvolvimento, porque mais da metade de seu intercâmbio corresponde ao Sul, enquanto 42% são feitos com países industrializados, acrescentou o subsecretário-geral. Dessa forma, os instrumentos para incrementar o comércio Sul-Sul, em discussão nesta reunião da Unctad, como o Sistema Global de Preferências Comerciais, constituem prioridades para o grupo. Também são necessárias medidas para ganhar maior e melhor acesso aos mercados do Norte, que concentram o grosso do comércio mundial. Outros 31 países, dos quais 16 são PMA, estão em situação de grande vulnerabilidade por carecerem de litoral, como Bolívia e Paraguai na América Latina. Trata-se de

um obstáculo grave, pois encarece em 30%, em média, o transporte de suas vendas ao exterior, destacou Chowdhury. Este grupo de nações necessita da cooperação solidária de seus vizinhos, como Brasil, Argentina e Chile, no caso dos países sul-americanos sem litoral, acrescentou. Já os pequenos Estados insulares em desenvolvimento enfrentam problemas variados. As nações do Mar do Caribe dependem do turismo e as do Oceano Pacífico lidam com sua enorme distância entre os principais mercados. Além disso, são muito pequenos para atrair investimentos. Por isso, é recomendável um processo de integração econômica, afirmou o subsecretário-geral. Os três grupos de países precisam de um tratamento diferenciado para se beneficiarem do comércio internacional, e isto é o que esperam ver concretizado, com apoio da Unctad e de outros contextos criados por acordos multilaterais. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)

de com a Namíbia. Cuba e Namíbia firmaram relações diplomáticas em março de 1990. A cooperação entre os dois países se dá nas áreas de saúde, agricultura, educação, pecuária, construção civil e esportes. Nujoma estava acompanhado dos ministros das Relações Exteriores, da Terra e Reforma Agrária e da Saúde. Mais de 500 colaboradores cubanos já prestaram serviço na Namíbia, principalmente na área da saúde. Cerca de 1270 estudantes namíbios já se formaram em Cuba, nos níveis médio e superior.

Grupo de Nações da África, do Caribe e do Pacífico (ACP), no dia 24 de junho, em Maputo, Moçambique. Com relação à política da União Européia (UE) contra seu país, em particular aquela adotada pelo Reino Unido, alegou que é ofensivo e repugnante dizer que no Zimbábue não existe liberdade e que não são respeitados os direitos humanos. Mugabe condenou também as sanções impostas pelo governo dos Estado Unidos a Cuba, que descreveu como “um país que decidiu fazer o melhor por seu povo e que beneficia com sua generosidade 65 países do mundo”. Deu como exemplo os 200 médicos cubanos que trabalham no Zimbábue e tantos outros na África do Sul.

Notas da África Zâmbia-Cuba Num editorial intitulado “aprendendo com Cuba”, o jornal The Post, um dos principais da Zâmbia, disse no dia 23 de junho que a Zâmbia tem muito o que aprender com os “irmãos e irmãs socialistas”, e louvou o fortalecimento dos laços entre Cuba e Zâmbia. “Zâmbia, um país dotado de abundantes recursos naturais, encontra-se hoje tristemente entre as nações mais pobres do mundo. Já os nossos companheiros socialista, depois de 40 anos de um bloqueio econômico sem sentido imposto pelos Estados Unidos, elevaram-se às alturas no que se refere à escala social. Nós realmente precisamos dessa cooperação! (com Cuba)”. (...) “O que temos a mostrar em nosso compro-

misso com as políticas do FMI e do Banco Mundial?”, questionava a publicação. “Sentimo-nos grandemente encorajados pela postura firme e inabalável de Cuba contra as políticas neoliberais que estão sendo impostas aos países em desenvolvimento pelo FMI e pelo Banco Mundial em nome da liberalização econômica, dos programas de ajuste estrutural e da globalização.” Namíbia-Cuba Em visita oficial de três dias a Cuba, o presidente da Namíbia, Sam Nujoma, foi recebido pelo presidente Fidel Castro, no dia 23 de junho. Em sua quinta viagem ao país da América Central, Nujoma participou da inauguração da escola Solidarieda-

Zimbábue-Cuba A intervenção do presidente do Zimbábue, Robert Mugabe, foi uma das mais aplaudidas da IV Reunião de Chefes de Estado e Governo do


13

De 1º a 7 de julho de 2004

AMBIENTE SEGURANÇA ALIMENTAR

Ambientalistas pressionam contra transgênicos

No Brasil, entidades conseguem barrar financiamento que beneficiaria soja geneticamente modificada no Mato Grosso

D

e um lado, grandes consumidores da produção agrícola brasileira, a exemplo da China, resolvem flexibilizar os critérios sanitários para a aquisição de grãos nacionais. De outro, entidades ambientalistas internacionais, que prometem aumentar a pressão contra a ampliação de lavouras transgênicas nos grandes celeiros mundiais, a exemplo do Brasil. Esse é o cenário do embate que se trava, atualmente, em torno da soberania alimentar no país, com conseqüência mundiais. A mais recente conquista dos ambientalistas brasileiros foi o adiamento, por tempo indeterminado, de um financiamento de 30 milhões de dólares ao grupo André Maggi, mais conhecido como grupo Amaggi. O dinheiro viria do International Finance Corporation (IFC), órgão de financiamento privado do Banco Mundial. O empreendimento pertence ao governador Blairo Maggi, do Mato Grosso, que pretendia expandir a produção e comercialização de soja em áreas do leste do Estado. Os argumentos utilizados pelas organizações ambientalistas concentraram-se na falta de categorização do risco ambiental da expansão, na inexistência de dispositivos prevendo o prazo para colocar os documentos à disposição do público e no histórico da empresa, que não divulga os resultados dos estudos de impactos ambientais dos projetos de cultivo de soja anteriores. As entidades que participaram

dora da soja nacional e que chegou a embargar 350 mil toneladas do grãos. Depois de intensas negociações, o governo chinês concordou em abrir concessões nas normas sanitárias para a liberação das cargas, muitas paradas em alto mar. Vinte e três exportadores brasileiros estavam com soja embargada pela China. O desembarque de soja brasileira estava sendo rejeitado pelo país asiático em virtude de traços de contaminação por fungicida. Com a flexibilização acertada com o governo brasileiro, a China passa a tolerar a média de um grão contaminado por cada quilo de soja. O acordo prevê ainda a visita de uma missão chinesa para inspecionar pessoalmente a produção de soja brasileira, de modo a verificar o caráter incidental da contaminação. Além disso, os termos do tratado estabelecem que o encargo dos custos laboratoriais fica por conta do exportador, caso os compradores questionem a qualidade do produto.

José Gomercindo/SECS/ABr

Evandro Bonfim de Brasília (DF)

LIDERANÇA GAÚCHA

Entidades querem critérios sustentáveis, definidos por dados de impacto ambiental

da discussão do projeto são a Amigos da Terra, Instituto Socioambiental (ISA), The Nature Conservancy (TNC), World Wild Fund for Nature (WWF) e Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). A ação integra uma nova campanha, concebida e

posta em marcha no ano passado, pelo WWF. O objetivo é definir critérios “ambientalmente sustentáveis” para a produção agropecuária em países do Terceiro Mundo. O governo brasileiro conseguiu driblar a China, principal compra-

Contra a pressão das entidades, pesa o aumento vertiginoso da produção da soja transgênica. Conforme dados consolidados pela Secretaria de Defesa Agropecuária, do Ministério da Agricultura, os produtores brasileiros colheram 4,1 milhões de toneladas de soja transgênica na safra 2003/2004. O volume corresponde a 8,2% do total de 50,18 milhões de toneladas de soja produzidas pelo país na safra passada. Os maiores produtores de soja

transgênica são os Estados do Rio Grande do Sul (88,1%), Minas Gerais (1,7%), Goiás (1,4%), Piauí (1,4%) e Santa Catarina (1,4%). Segundo os termos assinados pelos produtores, o Rio Grande do Sul registrou a maior área cultivada com soja geneticamente modificada: 2,59 milhões de hectares, ou 93% do total plantado com variedades transgênicas no país. A produção no Estado, distribuída em 400 municípios, ficou concentrada em Tupanciretã, Júlio de Castilhos, Cruz Alta, Palmeira das Missões e Jóia. Nos demais Estados, a área plantada somou 192,9 mil hectares, ou 7% do total do país.

QUEDA DE PRODUÇÃO A estimativa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para a safra 2004, feita em maio, aponta que a produção de cereais, leguminosas e oleaginosas deve alcançar 119,6 milhões de toneladas – 3,28% inferior à de 2003. Em relação à estimativa de abril, os números de maio apontam queda de 1,1%. A região Sul, que tem a maior participação na produção agrícola brasileira (41,63%), foi a que apresentou a queda mais acentuada em relação a 2003 (menos 15,73%). As outras regiões registraram aumento: Nordeste, 28,27%; Norte, 17,19%; Sudeste, 5,75%; e Centro-Oeste, 4,24%.De acordo com o Levantamento Sistemático da Produção Agrícola, os produtos de maior impacto na queda da produção em relação a 2003 são a soja e o milho em grão primeira safra. (Com Adital, www.adital.org.br)

ÁGUA

Maurício Thuswohl do Rio de Janeiro (RJ) O Brasil tenta estabelecer uma política nacional de recursos hídricos desde 1988. Nove anos depois, em 1997, o Congresso retomou as discussões sobre o tema, aprovando uma lei que determinava, entre outras coisas, a instalação do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), além de estabelecer formas de utilização dos recursos financeiros provenientes da cobrança pelo uso da água captada nas diversas bacias hidrográficas do país. Mesmo com a lei aprovada, no entanto, as medidas para a adoção de uma política nacional de recursos hídricos permaneceriam por mais alguns anos na condição de letra morta. Essa realidade começará a mudar, nos próximos dias, quando os conselheiros do Comitê para Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (Ceivap) vão discutir a melhor maneira de utilizar os R$ 9 milhões provenientes da cobrança pela captação de água no rio durante o ano passado. O va-

lor é a maior soma até hoje recebida por um comitê ou consórcio gestor de bacia hidrográfica e o Ceivap já decidiu que toda a verba será aplicada em projetos de despoluição da Bacia do Paraíba, que se estende pelos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

Marcello Casal Jr./ABr

Sociedade define política de aplicação de recursos

EXPERIÊNCIA PROPAGADA Inédita, se levarmos em conta o volume de dinheiro que poderá ser administrado por um comitê representativo de toda a sociedade, a experiência do Paraíba do Sul deve se repetir em outras bacias hidrográficas ainda este ano e significa o início, ainda que tardio, da consolidação de uma política nacional de recursos hídricos no Brasil. A aplicação dos recursos financeiros provenientes da cobrança de água na própria bacia hidrográfica atende a uma antiga reivindicação de prefeitos, parlamentares e ambientalistas, dá lógica ao sistema e estimula a preservação ambiental. Com a nova lei, devem iniciar a cobrança, nos mesmos moldes do Ceivap, os comitês gestores das bacias hidrográficas dos rios Piraci-

População se interessa e participa da gestão da água, o que mostra seus resultados

caba (SP), Santa Maria e Jucu (ES) e Rio dos Sinos (RS). A previsão de arrecadação para o Paraíba do Sul em 2004, segundo estimativa feita por técnicos da Agência Nacional

de Águas (ANA), é de pelo menos R$ 8 milhões. O imposto pela utilização da água deve ser cobrado de indústrias, mineradoras, rede hoteleira e companhias saneadoras. Seu

valor é de R$ 0,008 por cada metro cúbico de água captado. Caso as empresas não devolvam as águas para o rio, ou as devolvam poluídas, é cobrada uma taxa adicional de R$ 0,002. No caso do Paraíba do Sul, os agricultores também pagam uma taxa de R$ 0,002 por cada metro cúbico de água. Cada comitê gestor de bacia hidrográfica pode determinar como fará a cobrança pelo uso da água, mas as regras terão de ser aprovadas pelo CNRH. Advogado ambientalista e coordenador do movimento de ecologia social Os Verdes, Rogério Rocco saúda a nova experiência e chega a afirmar que ela vai “alterar a lógica da arrecadação pública no Brasil” se der certo pelos próximos dez anos: “A experiência do Ceivap inaugura uma forma de gestão pública transparente e participativa, dada a representatividade do comitê. Além disso, existe a garantia do poder permanente de investimento em ações ambientais, uma vez que os recursos são realimentados a cada ano”, acredita. (Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.uol.com.br)

ESPÍRITO SANTO

Violência e contaminação serão investigadas

Erick Schunig de Vitória (ES) Parlamentares do Espírito Santo querem esclarecer as denúncias de violações dos direitos humanos de que são acusadas a Polícia Militar e a empresa de segurança privada Visel, prestadora de serviços para a transnacional Aracruz Celulose. O pedido de investigação, aprovado pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, será encaminhado à Secretaria Estadual

de Segurança e à Polícia Federal, depois das acusações feitas em audiência pública, dia 17 de junho, pela comunidade de Vila do Riacho. A PM capixaba e a Visel são acusadas de fazer prisões arbitrárias e agredir pessoas da comunidade e carvoeiros que sobrevivem da coleta de resíduo de eucalipto. Moradores de Vila do Riacho denunciam também a contaminação do Rio Doce, depois da construção de canais para o abastecimento do complexo industrial da Aracruz

Celulose. Os parlamentares pretendem solicitar, da Universidade Federal do Espírito Santo, uma análise da água em Vila do Riacho e prometeram encaminhar um pedido à Secretaria Estadual de Saúde, para que sejam verificados os casos de doença envolvendo o consumo de água contaminada.

PRISÕES ARBITRÁRIAS Para Marta Falqueto, conselheira do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), a situação é

grave, pois os moradores denunciam prisões arbitrárias, inclusive de adolescentes. A Aracruz já avisou que não tomará qualquer medida contra a Visel, pois considera que a prestadora de serviços tem o certificado ISO 9001 e atua em vários Estados. O posicionamento da Acracruz foi classificado de “preocupante” pela deputada Brice Bragato (PTES), vice-presidente da comissão de direitos humanos, que pretende encaminhar a denúncia aos ministérios públicos federal e estadual.

Brice também alertou para o problema da contaminação. “Pescadores e carvoeiros estão sendo pressionados a sair do local. A Aracruz trata os bens públicos, como a água da região, como se fosse propriedade privada”, comentou. Marta faz coro à denúncia e estranha: “Se a empresa faz uma forte propaganda sobre responsabilidade social, dizendo fornecer gratuitamente os resíduos para algumas empresas, por que não distribuir um pouco às pessoas que sobrevivem dessa atividade?”.


14

De 1º a 7 de julho de 2004

DEBATE RUMOS DO GOVERNO

O petróleo é deles

César Benjamin

Ilu s

tra ç

õe

sK ipp

er

C

oube ao próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, há pouco mais de um mês, anunciar discretamente a realização da 6ª rodada de licitação de áreas petrolíferas brasileiras, marcada para o dia 15 de agosto. Nas cinco primeiras rodadas, realizadas durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, empresas estrangeiras arremataram, a preços simbólicos, áreas descobertas pela Petrobras, ganhando automaticamente o direito de exportar todo o óleo delas extraído. Em 1997, na oposição, o PT votou contra a lei que permitiu isso, e ao fazê-lo usou adjetivos muito pesados contra o governo de então. Em 2004, no poder, o PT prepara-se para patrocinar um megaleilão de áreas onde a Petrobras já encontrou 6,6 bilhões de barris de petróleo de excelente qualidade, correspondentes a 50% das reservas nacionais comprovadas. Que adjetivos merece um partido que age assim? Nenhum motivo legítimo há para mais essa chocante mudança de posição. Ao contrário. Toda a evolução do setor petróleo, no Brasil e no mundo, aponta para a necessidade de fortalecer a Petrobras e agir com grande cautela. Os argumentos usados por Fernando Henrique para abrir o setor ao capital estrangeiro mostraram-se falsos: em vez de pesquisar novas ocorrências, as empresas privadas entraram apenas nas áreas onde a Petrobras já havia feito com sucesso a prospecção, uma atividade cara e arriscada. Compraram bilhetes premiados. É o que se repete agora, com o leilão dos chamados “blocos azuis”, de grande potencial. Como estamos às vésperas da au-

to-suficiência na produção brasileira de petróleo – uma conquista histórica para o Brasil –, as áreas que o governo Lula entregará às multinacionais só poderão entrar em operação para exportar. Pelo menos três motivos tornam essa decisão desastrada. A geologia brasileira é desfavorável à ocorrência de petróleo, de modo que não devemos esperar que grandes descobertas se sucedam. Nossas reservas comprovadas e prováveis, de 16 bilhões de barris, poderiam garantir um horizonte de autonomia de cerca de dezoito anos, que será dramaticamente reduzido pela política atual. Graças ao esforço e à competência das gerações passadas, o Brasil se tornará auto-suficiente em 2006, mas a política implantada por Fernando Henrique e confirmada por Lula nos reconduzirá à posição importadora em bem menos de uma década. Isso acontece num momento em que dois processos se somam,

no mundo, para sugerir justamente o caminho oposto. De um lado, o vertiginoso crescimento da China e da Índia, fortemente dependentes de importações, tem aumentado a demanda mundial e pressionado os preços para cima. Na próxima década, a China terá dobrado o seu consumo e precisará obter no exterior mais de 80% de todo o petróleo de que necessita. A dependência de abastecimento externo já é de 50% para os Estados Unidos, 60% para a Europa e 100% para o Japão, o que permite antever o potencial de conflito envolvido nessa questão. De outro lado, hoje se sabe que as reservas mundiais foram grosseiramente superestimadas. Em todos os casos, estão sendo revistas para baixo. Durante a recente epidemia de fraudes contábeis, as mais respeitáveis transnacionais do setor apresentaram números falsos para elevar o valor de suas ações. As reservas da Shell foram infladas em 24%, as

da El Paso em 33% e as da Enron em 30%. Diversos países fizeram o mesmo, inclusive grandes produtores, como os Emirados Árabes, a Arábia Saudita e o México. Anunciaram a posse de jazidas entre 20% e 40% maiores do que as verdadeiras, pois as quotas de produção, definidas no âmbito da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), são proporcionais às reservas declaradas. Há muito menos petróleo disponível do que se pensava. Com a elevação do consumo e a descoberta das fraudes, o mercado mundial mergulhou em grande incerteza. Em cerca de um ano, o preço passou de 28 dólares para 40 dólares o barril e não apresenta tendência de queda. Autores insuspeitos anunciam novos choques. O embaixador Rubens Ricupero escreveu: “A tendência a um aumento sensível e contínuo no preço do petróleo é estrutural, e não apenas fruto de manipulações de mercado. O aperto nos preços (...) pode vir em cinco anos, com mais um choque elevando o barril a 50 dólares.” O economista Paul Krugman seguiu a mesma linha: “O mercado do petróleo está distendido até o limite da ruptura. (...) Na última vez que os preços atingiram os níveis atuais, pouco antes da Guerra do Golfo (1991), havia capacidade de produção excedente no mundo, de modo que havia espaço para enfrentar sérias perturbações da oferta, caso elas surgissem. Desta vez isso não se aplica. (...) Novas descobertas têm sido cada vez mais raras. (...) Os preços do petróleo estão altos e podem subir ainda mais”. Prevê-se que em 2010 atingiremos o pico da produção mundial e começaremos a ver um declínio na oferta. Alguns, mais

assustados, já falam em petróleo a 100 dólares o barril no fim da próxima década. O número é especulativo, mas a tendência é certa. Nesse contexto — com um mercado estressado, preços em alta, conflitos à vista e às vésperas de um choque anunciado —, o governo Lula decidiu retirar do controle da Petrobras e entregar a empresas multinacionais 6,6 bilhões de barris das reservas comprovadas brasileiras (repito: a metade das reservas comprovadas brasileiras). Essas empresas farão uma farra de exportações durante alguns anos. Em troca, nos darão alguns trocados que o ministro Palocci cuidará de repassar em dia aos bancos internacionais, nossos credores. Por causa dessa destinação prevista, a suspensão da licitação, segundo o ministro, “emitiria um sinal negativo para os mercados”. Que adjetivos merece um governo que age assim? Petróleo, como se sabe, é recurso não renovável, sem o qual, com a base técnica atual, nenhuma economia funciona. Um país carente desse recurso, como o Brasil, e que necessitará, em algum momento, reencontrar o caminho do desenvolvimento precisa gerenciar com muito cuidado suas próprias reservas, inserindoas em um planejamento estratégico de longo prazo. Perceber isso não depende de ideologia nem exige formulações sofisticadas. Basta decência. Invertendo o lema da campanha popular que levou à criação da Petrobras, o governo Lula decretou que o petróleo é deles. Faltam-me os adjetivos. César Benjamin é autor de A opção brasileira (Contraponto, 1998, nona edição)

Por trás das licitações Sérgio Xavier Ferolla e Paulo Metri

A

Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997 – a chamada Lei do Petróleo, criada pelo Congresso Nacional – é inconstitucional. Freqüentemente são trazidos a público argumentos geopolíticos, nacionalistas e de racionalidade social que provam que essa lei é inadequada para o país. No entanto, não é por tais argumentos que a consideramos inconstitucional. Esses aspectos, de caráter altamente estratégicos, deveriam ter sido considerados na ocasião da sua elaboração, mas, infelizmente, foram desprezados pelos legisladores. O corpo do artigo 177 da Constituição de 1988 diz, no que se refere ao petróleo (abstraindose os minérios e minerais nucleares), que constituem monopólio da União: I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; e IV - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no país, bem assim como o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem. Este artigo 177 foi modificado pela emenda constitucional nº 9, de 9 de novembro de 1995, pas-

sando o primeiro parágrafo do artigo a estabelecer que “a União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV” (exatamente as atividades relacionadas acima). Mas a emenda não mexeu no corpo do artigo 177, que estabelece o monopólio estatal do setor de petróleo. Então, salvo melhor entendimento, o monopólio estatal do setor foi preservado.

Policies, podemos ler: “O monopólio puro ou absoluto existe quando uma única empresa é o fabricante solitário de um produto para o qual não existe substituto próximo”. Pode-se depreender, dessas definições, que a característica principal de um monopólio é que os produtos ou serviços obtidos da operação do setor monopolizado são da posse do monopolista, que os comercializa. Ou seja, um setor que ficou estabelecido, pela Carta Magna, como operado por meio de um monopólio, mas cujos produtos ou serviços obtidos não são possuídos pelo detentor do monopólio, deixou de ser, na verdade, um setor monopolizado. Dessa forma, a interpretação juridicamente válida para a emenda constitucional é que ela permitiu à União contratar empresas estatais ou privadas para executar as atividades do setor de petróleo. Fez isso sem abrir mão da propriedade dos produtos obtidos na execução dessas atividades. O CASO DO PETRÓLEO

O QUE É MONOPÓLIO

Do dicionário de Antônio Houaiss pode-se obter como um dos significados da palavra monopólio: “Privilégio legal ou de fato, que possui um indivíduo, uma companhia ou um governo de fabricar ou de vender certas coisas, de explorar certos serviços, de ocupar certos cargos”. De Campbell McConnell, em Economics - Principles, Problems and

Tomemos o exemplo da exploração e produção de petróleo. A União pode contratar uma empresa para executar essas atividades em determinada região e a remunerará por isso. Mas o petróleo produzido será de propriedade da União e não da empresa contratada; caso contrário, deixaria de existir o conceito de monopólio. A Lei nº 9.478 diz, no seu

artigo 26, que “a concessão implica, para o concessionário, a obrigação de explorar, por sua conta e risco e, em caso de êxito, produzir petróleo ou gás natural em determinado bloco, conferindo-lhe a propriedade desses bens, após extraídos, com os encargos relativos ao pagamento dos tributos incidentes e das participações legais ou contratuais correspondentes”. Portanto, salvo melhor interpretação, essa lei não pode conferir ao concessionário a propriedade do petróleo ou gás natural, após extraídos, devido serem tais produtos de propriedade da União, sob pena de deixar de existir o monopólio determinado pela Constituição. Os argumentos expostos indicam que a lei é inconstitucional. Senão, qual o efeito legal decorrente do fato de existir, no corpo do artigo 177 da Constituição, a declaração formal da vigência do monopólio da União no setor de petróleo? OS DIREITOS DO CIDADÃO

A bem da verdade, esse questionamento surgiu, quase simultaneamente e há algum tempo, na interpretação de vários estudiosos da questão, bem como entre muitos dos membros da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet). O importante, no momento, não é identificar esse ou aquele que iluminou tão importante interpretação jurídica. O importante é reforçar os argumentos em defesa daqueles para quem a Constituição busca preservar os direitos fundamen-

tais dos cidadãos brasileiros. Frente a tão complexos argumentos, com a palavra os juristas: se esses argumentos forem julgados suficientes para embasar, com alguma chance de sucesso, uma eventual ação de inconstitucionalidade, junto ao Supremo Tribunal Federal, com relação à Lei nº 9.478, qualquer entidade que satisfizer os ditames do artigo 103 da Constituição poderá deles fazer bom e patriótico uso. Muito em breve, mais um desvario devido a tão maléfica lei está previsto para acontecer. Em agosto se realiza a sexta rodada de licitações de áreas para exploração e produção de petróleo, promovida pela Agência Nacional do Petróleo. Esse leilão inclui as áreas escolhidas e mapeadas pela Petrobras. Em conseqüência, poderemos ter empresas transnacionais assegurando a propriedade de blocos com grandes potenciais petrolíferos, que propiciarão a exportação e a dilapidação de uma das nossas mais preciosas reservas. Sérgio Xavier Ferolla é membro titular da Academia Nacional de Engenharia e Paulo Metri é conselheiro do Clube de Engenharia


15

De 1º a 7 de julho de 2004

agenda@brasildefato.com.br

ZERO À ESQUERDA A desmistificação de algumas fases da política brasileira é o que Paulo Arantes faz em seu novo livro, da Conrad Editora. O filósofo analisa a era FHC, a idéia de nação, a cultura brasileira e o governo Lula. R$ 20. Mais informações: www.lojaconrad.com.br

CEARÁ ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDANTES DE COMUNICAÇÃO (ENECOM) De 12 a 18 O tema do Enecom, que vai discutir a sociedade e sua atual organização, é “Construindo-se: sobre galos, manhãs e transformação social”, uma referência a um poema de João Cabral de Melo Neto. Este ano o encontro acontece em Fortaleza, agregando, como sempre, a formação político-cultural aos tradicionais eventos lúdicos. A prioridade vai ser a contextualização histórica e artística da região Nordeste, do Estado do Ceará, e da cidade de Fortaleza. Local: Universidade Federal do Ceará, Av. da Universidade, 2762, Fortaleza Mais informações: www.enecos.org.br/enecom, coenecom@yahoo.com.br

MINAS GERAIS ENCONTRO DE FORMADORES DA CONSULTA POPULAR Dia 3, das 9h às 18h O tema do encontro, que terá César Benjamin como debatedor, será: América Latina, encontros e desafios. Local: R. Carijós, 173, Belo Horizonte Mais informações: (31) 3272-8639, (31) 3082-3755

RIO GRANDE DO SUL 11ª FEIRA DO ESTADUAL DO COOPERATIVISMO Dias 3 e 4, das 7h às 18h É um dos maiores eventos das organizações populares, associações, cooperativas, e empreendimentos solidários do Rio Grande do Sul e do Brasil. Paralelamente ao evento, acontecem a 3ª Feira Nacional de Economia Popular Solidária (EPS), a 4ª Mostra Estadual de Biodiversidade e o Seminário Nacional de EPS e as Políticas Públicas para o Brasil. Local: R. Heitor Campos, s/nº, Bairro Medianeira, Santa Maria Mais informações: www.comerciosolidariobrasil.com. br, gpiber@terra.com.br

OFICINA DE RADIOFONIZAÇÃO DO JORNAL BRASIL DE FATO POR RÁDIOS COMUNITÁRIAS Dia 4 Durante a oficina serão discutidos os temas: As rádios comunitárias no comunitárias contexto social. Também haverá a preparação de um programa de rádio. Local: R. Carijós, 173, Belo Horizonte Mais informações: brasil-mg@brasildefato.com.br

RIO DE JANEIRO 1º ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDANTES E JOVENS POR TRABALHO, EDUCAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA (ENETERRA) De 2 a 4

A atividade faz parte da agenda de lutas da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) e será organizada pela UNE, pela CUT e pelo MST. A idéia é ampliar a pauta política da coordenação para a juventude, principalmente focada em três pontos: educação (reforma universitária), campanha pela valorização do trabalho e reforma agrária. O Eneterra tem por objetivo iniciar um forte trabalho de união entre vários setores da juventude no Brasil. O desafio da iniciativa é buscar espaço para consenso de idéias e ações conjuntas que ajudem a incentivar a participação dos jovens na política do país. Entre os debatedores estão Emir Sader, Maria da Conceição Tavares, Márcio

Pochmann, Gilmar Mauro, Plínio de Arruda Sampaio, Marilena Chauí, Pablo Gentilli, João Pedro Stedile, Nalu Faria, Antônio Carlos Spis. Temas dos debates: O atual modelo econômico e o desemprego; A reforma agrária que o Brasil precisa; Universidade: papel social e reforma; a CMS e a luta por um projeto popular para o Brasil. Local: Universidade Federal Fluminense, Niterói Mais informações: (21) 2629-9471 II FESTA LITERÁRIA INTERNACIONAL DE PARATY De 7 a 11 Este ano a festa receberá os auto-

res Paul Auster, Martin Amis, Ian McEwan, Miguel Sousa Tavares, Pierre Michon, Colm Tóibín, Margaret Atwood, Jonathan Coe, Jeffrey Eugenides, José Eduardo Agualusa, Chico Buarque, Caetano Veloso, Lígia Fagundes Teles, João Ubaldo Ribeiro, Moacyr Scliar, Ziraldo e Luís Fernando Veríssimo. Os eventos serão espalhados pela cidade em pontos estratégicos, como o estacionamento da Praça da Matriz, onde estará a Tenda da Matriz e o Areal do Pontal, e onde ficará a Tenda do Autor. Os ingressos variam de R$ 5 a R$ 15 e podem ser adquiridos no Rio de Janeiro na Modern Sound, R. Barata Ribeiro, 502. Mais informações: (24) 3371-7082

ção

DIREITOS HUMANOS: O QUE SÃO (OU DEVEM SER) O livro do ensaísta político Jacob Gorender, editado pela Editora Senac, mostra uma visão ampla sobre os direitos humanos no mundo. Ele reacende a polêmica sobre a eutanásia, o aborto, a pena de morte e o extermínio pela polícia de “foras da lei”. Tudo isso para defender o tão esperado respeito à integridade física para todos os cidadãos. R$ 25. Mais informações: (11) 3284-4322

A tecnologia atômica e a luta de classes Vivemos um período histórico de rápidas transformações. O desenvolvimento de novas tecnologias se impõe ao processo de produção tecnológico capitalista vigente. Traz em seu bojo um novo processo de acumulação do capital, favorecendo grandes conglomerados transnacionais.

Divulga

LIVROS

Projeto Esperança

AGENDA

Manipularam os genes (transgênicos) e agora manipulam os átomos, base de toda a matéria animada e

inanimada. Uma “revolução” que modificará a matéria e transformará todos os aspectos do trabalho e da vida. É a era da nanotecnologia, já presente na biotecnologia, nos fármacos, na armazenagem de energia e informação que entrará na fabricação convencional, incluindo tudo, de utensílios domésticos a roupas e alimentos. Que implicações a tecnologia atômica traz ao cotidiano da luta de classes? O futuro da humanidade será refém de alguns grupos que detêm o capital? Para quem e onde terá impacto? Quem deve se importar

com ela? As tecnologias atômicas funcionarão? Essas são algumas questões debatidas na obra da ETC Group. CONFIRA Tecnologia atômica – a nova frente das multinacionais ETC Group 192 páginas, R$ 8 Editora Expressão Popular R. Abolição, 266, Bela Vista São Paulo Tel. (11) 3112-0941 www.expressaopopular.com.br


16

CULTURA

De 1º a 7 de julho de 2004

POESIA

Continente homenageia Pablo Neruda

Em 12 de julho, poeta chileno completaria cem anos. Em vários países, trabalhadores lembram sua vida e obra

P

ablo Neruda é um poeta amado pelo povo. Trinta e um anos depois de sua morte, e às vésperas da celebração do centenário de seu nascimento, em todo o mundo estão sendo realizadas homenagens ao escritor comunista que, em 1971, recebeu o Nobel de Literatura. Contudo, mais do que eventos oficiais como os que acontecem neste mês no Chile, proliferam homenagens simples, de trabalhadores e organizações não-governamentais, num profundo reconhecimento do homem Pablo Neruda – arte e política se misturaram que fez poesia da luta. Foi Neruda quem revelou ao No Brasil – país que Neruda definiu como o “cristal verde mundo, em 1968, o trabalho das do planeta – uma homenagem está bordadoras de Isla Negra. Trata-se sendo organizada em Florianópolis de um grupo de mulheres pobres (SC), com apoio do Brasil de Fato. que, usando sacos de farinha, lã A Semana Pablo Neruda, a partir artesanal e agulhas, reproduzem o do dia 6, consta de performances, cotidiano do povo do litoral central música, filmes e poemas. Em vá- do Chile, com diferentes temas do rias universidades, serão realizados campo e do Pacífico. Além das bordadeiras, Neruda eventos literários e de análise da era amigo dos pescadores e trabaobra nerudiana. Contudo, as maiores home- lhadores de Isla Negra, um local nagens estão sendo programadas que os próprios chilenos reconheem seu país natal. De Santiago, cem que “no es isla y no es negra”. partirá, no dia 12, o “trem do po- A casa foi construída pelo poeta, eta”, até a cidade de Parral, onde com a ajuda do povo do local. Foi nasceu. Entre os convidados estão lá que ele escreveu boa parte de poetas como o nicaragüense Er- sua obra e onde ele guardava as nesto Cardeal e o brasileiro Thiago lembranças do exílio e das viagens, de Mello e Pablo Guayasamín, fi- presentes recebidos de admiradores lho do pintor equatoriano Oswaldo do mundo todo e uma de suas paixões: caracóis, que muitas vezes Guayasamín. recebia em envelopes lacrados de POESIA DO MAR diferentes partes do mundo, enviaApesar da maior parte das ho- dos por trabalhadores a quem tinha menagens estarem programadas lido seus poemas. para Parral e Santiago, pelo menos Da casa de Isla Negra, Neruda uma celebração especial acontecerá saiu para morrer, em Santiago. Pano lugar mais amado pelo poeta: Is- ra lá voltou, para ser enterrado no la Negra, uma cidadezinha costeira pequeno túmulo no jardim, voltado onde Neruda possuía uma casa, ho- para o mar. Curiosamente, o local je transformada em museu. Na casa tornou-se ponto de atração para em frente ao mar, as bordadoras de os aficcionados por poesia latinoIsla Negra pretendem montar uma americana e pela gente pobre, a exposição de suas obras, que hoje ponto de a casa ser chamada, com são reconhecidas mundialmente. carinho, de “nuestro hogar”.

MEMÓRIA

Poesia une vida e política

Mauri Antonio da Silva de Florianópolis (SC) Neftalí Ricardo Reyes Basoalto – ou Pablo Neruda – nasceu em 12 de julho de 1904, em Parral, no Chile. Em Temuco, conheceu Gabriela Mistral, educadora e poeta que, em 1945, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, pela primeira vez concedido a uma mulher latinoamericana. Atribui-se a Gabriela o mérito de ter desenvolvido o gosto em Neruda pelos romancistas russos como Dostoievski e Tolstoi. São desses anos os primeiros versos que consagram Neruda à vocação literária. A partir daí, ele aceitou a paixão, desenvolveu o mistério e abriu passagem entre o coração do povo. As primeiras obras trazem inovações formais na linguagem, que colocam Neruda na esteira da poesia moderna. Ele escolhia temas sensuais e de grande expressão vital, que estarão presentes em toda sua vida, para além dos estilos que cotejou posteriormente, como o surrealismo do contato com as vanguardas européias e o realismo do militante comunista. Em Santiago, escreveu, em 1923, seu primeiro livro, Crepusculário. Da primeira etapa de sua criação destaca-se Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, de 1924. Diplomata, envolveu-se com o comunismo e, em 1936, na Espanha, assistiu ao início da Guerra Civil Espanhola, quando Federico García Lorca foi assassinado pelos nacionalistas, seguidores de Francisco Franco. Neruda começou, então, a arrecadar fundos para a causa dos republicanos, para livrar o país do regime franquista. Em seguida, foi nomeado cônsul no México, onde teve contato com Diego Rivera e David Alfaro Siqueiros, expoentes da arte muralista social. De volta ao Chile, foi eleito senador pelo Partido Comunista,

Bernadete Toneto

France Presse

Bernardete Toneto da Redação

Detalhe da casa de Isla Negra, onde o poeta escreveu boa parte de sua obra

em 1945. Porém, seu mandato foi cassado em 1948 por criticar o presidente da República, Gabriel Videla, que passou a perseguir os movimentos de esquerda. Neruda partiu para o exílio no México e na União Soviética, atravessando a fronteira com a Argentina. Essas experiências redirecionam a poesia de Neruda para conteúdos mais libertários, como mostram as obras Residência na Terra (em três volumes,19311939), Ode a Stalingrado (1942), Terceira Residência (1947) e Canto Geral (1950), no qual ele se decide, ideológica e politicamente, pelo combate às injustiças sociais.

A POLÍTICA E A ARTE Em 1970, Neruda chegou a se candidatar à Presidência da República pelo Partido Comunista chileno, mas renunciou para apoiar Salvador Allende e viabilizar a

constituição da Unidade Popular. Em 1971, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, por seus mais de 50 livros. Na entrega do prêmio, afirmou: “Só com uma ardente paciência conquistaremos a esplêndida cidade que dará luz, justiça e dignidade a todos os homens. Assim, a poesia não terá cantado em vão”. Em 11 de setembro de 1973, o governo socialista de Salvador Allende, do qual Neruda fora embaixador na França, foi brutalmente interrompido pelo golpe do general Augusto Pinochet, com apoio do governo estadunidense. O amigo Allende foi assassinado no Palácio de La Moneda. Doze dias depois Neruda morreu, em decorrência de doença e de tristeza, por assistir a seu povo ser torturado e perseguido. Seu enterro se converteu no primeiro protesto público contra a ditadura.

FÓRUM CULTURAL MUNDIAL

Encontro propõe quebra de hegemonia

da Redação Durante nove dias, desde 26 de junho, a cidade de São Paulo é palco do Fórum Cultural Mundial, subsidiado pelo governo e organismos setoriais e apresentado, pelos organizadores, como “instrumento de resistência e questionamento à hegemonia cultural”. Apesar de nomes semelhantes, o evento não tem relação com o Fórum Social Mundial, organizado por movimentos sociais. O evento, até 4 de julho, consta de uma programação que inclui apresentações artísticas pagas, em unidades do Sesc São Paulo. Há também uma convenção de quatro dias, uma feira de idéias e oportunidades e o fórum virtual, com acesso pela internet (www.forumculturalmundial.org). O Fórum Cultural Mundial é apresentado como espaço para a discussão e encaminhamento de soluções alternativas ao padrão de produção e disseminação da cultura no planeta. Construído de forma coletiva, envolvendo mais de 70 eventos preparatórios realizados em diversos continentes, o Fórum quer trabalhar a cultura e a arte como instrumento de transformação social. “Pretendemos ampliar a discussão que vem acontecendo no mundo todo sobre a questão cultural como fator de desenvolvimento humano e como fator de desenvolvimento econômico. Sabemos da gravidade dessa

Periferia faz Fórum paralelo da Redação

Detalhe do cartaz que promove o evento

arrogância hegemônica que acaba causando uma situação de guerra e de destruição de culturas e de povos”, afirma o ator e secretário da Cultura da cidade de São Paulo Celso Frateschi, membro do conselho diretivo do evento.

ROCK DE ABERTURA O Fórum Cultural Mundial foi aberto no dia 26 de junho, com um show do ministro Gilberto Gil e o cantor Manu Chao, no Parque do Ibirapuera, para um público de cerca de 60 mil pessoas. Francês, filho de espanhóis, Manu Chao tornou-se conhecido por manifestar publicamente suas posições políti-

cas, a favor dos indígenas zapatistas do México e do Movimento dos Traballhadores Rurais Sem Terra (MST). Sua experiência na Colômbia, que percorreu de trem, indo a zonas de guerrilhas, para tocar para os camponeses, está contada no livro Expresso de Hielo, ainda sem tradução para o português. No Brasil, Manu Chao apresenta sucessos da banda Manu Negra (nome emprestado de uma organização anarquista espanhola), uma das mais ousadas da história do rock. Atualmente, ele trabalha no projeto de um CD e de um livro, a serem lançados em setembro e com o título provisório de Sibéria.

Os artistas chegam em uma caravana do Rio Grande do Norte e desembarcam em Cidade Patriarca, periferia sul da capital paulista. Junto, chega outro ônibus, da cidade de Osasco, com jovens percussionistas e dancarinos de bumba-meu-boi. A eles se reúnem a banda da escola pública Visconde de Cairu, crianças da organização não-governamental Natan Stanfater, adolescentes da Estação das Artes, integrantes do Nhocuné Soul e muito mais gente. São as parcerias paralelas ao Fórum Cultural Mundial, que ocupam e apontam a efervescência artística da periferia. O Fórum Paralelo de Cultura é organizado pelo grupo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, que em plena quinta-feira, dia 1º, reúne cerca de 600 artistas da periferia. “São mais de 120 ritmistas de regiões distintas, com estilos diferentes e instrumentos inusitados”, conta Fernando de Oliveira, violonista do grupo Dolores. De cidades potiguaras vêm grupos semelhantes ao Pau e Lata, com uma banda com instrumentos

de percussão feitos de sucata. “O Pau e Lata existe há oito anos. Começamos com 20 garotos na periferia de Maceió e mudamos para Natal. Hoje, trabalhamos com 440 adolescentes de várias regiões do Rio Grande do Norte e temos viajado todo o Nordeste, fazendo nossas apresentacões”, diz Danúbio Gomes, músico e coordenador pedagógico do projeto. A associacão Eremin, finalista do premio Itaú Unicef 2003, apresenta maracatu, ciranda e bumbameu-boi. “É uma grande chance de trocar experiências e rever amigos”, avalia Douglas Frassini, coordenador musical do projeto de Osasco. O Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes atua há quatro anos na zona leste de São Paulo. O grupo luta pela descentralização da oferta e da producão cultural. “É uma postura político-artísticoideológica. Buscamos inclusão no processo de construcão cultural de nossa época. Estamos à margem do centro geográfico, mas temos consciência de que todo lugar é o centro, aqui no Triana, em Osasco, Mossoró...”, analisa o integrante Luciano Carvalho.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.