Ano 2 • Número 73
R$ 2,00 São Paulo • De 22 a 28 de julho de 2004
Solidariedade internacional a Chávez
Questão Palestina - Marcha de palestinos em apoio ao presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP) Yasser Arafat, realizada na Faixa de Gaza, no dia 19
Mudança no ECA pode levar criança à prisão
Em vigor há quatorze anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) corre perigo. Um projeto de alteração da lei propõe a criminalização de adolescentes a partir de 12 anos, com privação
Anderson Barbosa
À
s vésperas do referendo revogatório do governo venezuelano, dia 15 de agosto, intelectuais, políticos e artistas de todo o mundo estão manifestando seu apoio ao presidente Hugo Chávez. No dia 18, em Caracas, Chávez recebeu um manifesto assinado por 69 personalidades brasileiras, como o compositor Chico Buarque de Holanda, o arquiteto Oscar Niemeyer e o escritor João Ubaldo Ribeiro. O documento, chamado “Se eu fosse venezuelano, votaria em Hugo Chávez” defende a legitimidade do mandato presidencial e denuncia a manipulação de informações por grandes monopólios de comunicação. As ações de solidariedade visam neutralizar a oposição, que está tumultuando o processo eleitoral. Enquanto isso, os Estados Unidos voltaram a atacar, exigindo “transparência” na consulta popular. Págs. 9 e 14
Adel Hana/AP/AE
Personalidades de todo o mundo apóiam governo venezuelano, enquanto EUA tentam tumultuar referendo no país
de liberdade por até 27 anos. “É como uma prisão perpétua para os jovens”, denuncia o coordenador do Projeto Meninos e Meninas de Rua de São Bernardo. Pág. 4
Um balanço crítico de 18 meses do governo PT
Brasil de Fato, o sociólogo Ricardo Antunes se diz frustrado. Para ele, o governo Lula nem percebeu que foi ganho para o projeto das classes dominantes. Pág. 8
Mercosul cede à pressão dos europeus
Governo entrega petróleo a transnacionais
Líder camponês exalta o poder dos sem-terra
União Européia e Mercosul iniciam reunião sobre acordo de livre comércio. O bloco sul-americano recua e amplia ofertas nos setores de compras governamentais e investimentos, colocando em risco áreas estratégicas do desenvolvimento nacional. Pág. 9
Política do Ministério de Minas e Energia para o setor de petróleo responde aos interesses das transnacionais. A Associação de Engenheiros da Petrobras denuncia que o Brasil poderia ter auto-suficiência em 2006, mas governo distorce estatísticas. Pág. 7
Em entrevista ao Brasil de Fato, Alípio Freitas, fundador das Ligas Camponesas, faz uma retrospectiva das lutas populares e diz que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra tem “uma força de mobilização como nunca houve neste país”. Pág. 5
Projeto de lei tenta limitar ação de ONGs Ofensiva de parlamentares da região Norte tenta impor um Projeto de Lei aumentando o controle do Estado sobre organizações não-governamentais (ONGs). A proposta, aprovada pelo Senado e em tramitação na Câmara, reflete o descontentamento das elites com entidades que defendem o meio ambiente. O projeto levanta discussão a respeito do papel dessas organizações. Para integrantes da Associação Brasileira de ONGs, na gestão do expresidente Fernando Henrique as ONGs foram utilizadas como forma de terceirizar políticas públicas quando, na verdade, devem fortalecer a cidadania. Pág. 6
Marcio Baraldi
O capitalismo trouxe o mundo à beira da barbárie, e cabe à esquerda resgatar um projeto socialista, capaz de responder aos dilemas do século 21. Crítico da gestão petista, em entrevista ao
Dia Nacional de Luta por Mudança na Política Econômica – Aconteceram mobilizações em diversos Estados brasileiros. Na cidade de São Paulo, manifestantes se concentraram no Masp, na Avenida Paulista
Brasil não tem dólares para pagar a sua dívida De janeiro a maio de 2004, o país conseguiu uma sobra equivalente a 3 bilhões de dólares em suas contas com o exterior. Isto é, de cada dez dólares que entraram, sete retornaram ao exterior, para pagar juros, prestações da dívida, ou como remessas de lucros e dividendos para as sedes de transnacionais, entre outras despesas.
Mas o sacrifício dos brasileiros para gerar aquela sobra de dólares, ao custo do achatamento de sua renda e aumento do desemprego, pode ir para o lixo. Porque não mudaram as políticas vigentes desde 1994 que abrem a economia a importações e não controlam fluxos de capital. Pág. 7
E mais:
Entidades pedem fim de violações em Alcântara
EDUCAÇÃO – Funcionários, estudantes e professores das três universidades estaduais paulistas forçam governo Alckmin a reabrir negociações. Crescimento de arrecadação do ICMS fortalece reivindicação por aumento salarial. Pág. 3 BOLÍVIA – Esquerda se divide e acaba sendo derrotada em referendo sobre o gás e petróleo. Resultado da boca de urna aponta presidente Carlos Mesa como maior vencedor da consulta. Pág. 10 REVOLUÇÃO – Há 25 anos, em julho de 1979, os nicaragüenses apoiaram os guerrilheiros da Frente Sandinista de Libertação Nacional, que chegavam ao poder se opondo aos Estados Unidos. Pág. 10
Pág. 3
SBPC denuncia prejuízos por expansão de soja
Pág. 13
Livro registra força política dos estudantes
Pág. 16
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De 22 a 28 de julho de 2004
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
��� • Editor-chefe: Nilton Viana ���• Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Bernardete Toneto, 5555 Marilene Felinto, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu ���• Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino ���• Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles ���• Ilustradores: Agê, Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, 5555 Natália Forcat, Nathan, Novaes, Ohi ���• Editor de Arte: Valter Oliveira Silva ���• Pré Impressão: Helena Sant’Ana ���• Revisão: Dirce Helena Salles ���• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistentes de redação: Cristina Uchôa e Dafne Melo 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: FolhaGráfica 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
CARTAS DOS LEITORES LITERATURA Gostaria de parabenizar mais uma vez o jornal Brasil de Fato. A reportagem sobre um dos maiores poetas do mundo e o maior da América Latina, Pablo Neruda, mostra que o periódico está comprometido com a cultura, assim como a matéria do periódico seguinte sobre um dos maiores escritores brasileiros, Guimarães Rosa. Gostaria de sugerir um espaço para a literatura nacional e universal, que é afastada da maior parte da população num país que teima em ser excludente como nosso. Sabemos que a literatura comercial é uma das responsáveis por essa falta de busca de bons escritores. O jornal poderia citar livros e fazer matérias de John Steinbeck, Franz Kafka, Herman Hesse, James Joyce e tantos outros. A contribuição do periódico é de suma importância para que as pessoas possam conhecer bons livros, já que, se depender de nosso governo, a situação não mudará. Num momento em que perdemos uma das maiores referências da imprensa alternativa, o Pasquim 21, o jornal Brasil de Fato deve assumir de vez a responsabilidade de continuar com esse magnífico trabalho e não se deixar levar, por maiores que sejam as dificuldades que enfrentarão, pelo poderosos que querem sempre calar a voz daqueles que vão contra a corrente. Erik C. G. por correio eletrônico
DOANDO O BRASIL Por que os contratos unilaterais impostos pelas transnacionais que ganharam o direito de explorar as nossas telefonias e energia elétrica são corrigidos pelos índices mais altos? São corrigidos pelo Índice Geral de Preços e não pelo Índice de Preço ao Consumidor. Enquanto aquele, em dez anos (1994-2004), atingiu 297%, este ficou em apenas 167% (menos do que a mesmíssima inflação, que foi de 191%) . É bom que todos saibam que esses e outros contratos relativos à entrega do Brasil, verdadeira e descarada doação do patrimônio do povo, foram assinados pelos desgoverno do senhor FHC. E o pior é que o governo atual que eu chamo de neolula, ao invés de revê-lo, apenas dá continuação aos mesmos, pois são a base para outras transações, como por exemplo o tal Plano de Parceria Público Privada, e mais as que corresponderão à doação das áreas já mapeadas pela Petrobras e onde existem grandes reservas de energia. Assim como alguém já disse, o slogan que tanto tem orgulhado a nação brasileira passará a “O Petróleo é deles”. É assim que, de doação em doação, lá se vai pouco da nossa soberania. João Carlos da Luz Gomes Porto Alegre (RS)
Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 3038 1432 ou mande uma mensagem eletrônica para: brasildefato@teletarget.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815
NOSSA OPINIÃO
Nova investida contra a soberania
N
o decorrer da campanha eleitoral de 2002, quando a vitória de Lula estava se delineando, o capital financeiro internacional, por meio de suas principais agências – Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial – e da vassalagem que opera internamente, no Brasil, realizou pressão efetiva para que se aprovasse a autonomia do Banco Central, de tal forma que o futuro governo não viesse a ameaçar os interesses do capital. Documento assinado por Lula, e alardeado pelos articuladores da campanha presidencial, tratou de acalmar os banqueiros nacionais e internacionais, e adiar, por algum tempo, a exigência das corporações e do governo dos Estados Unidos. Primeiro, com esse compromisso pré-eleitoral que garantia todas as regalias do capital; depois, com a escolha do tucano Henrique Meirelles, ex-dirigente do Bank Boston, para a presidência do Banco Central, que renovou a garantia de permanência do modelo – mesmo sem oficializar a autonomia do Banco Central. Agora, o lobby do capital financeiro internacional conta com importante aliado no seio do próprio governo Lula: o ministro Antonio Palocci, da Fazenda, que vem de algum tempo defendendo publicamente a autono-
mia do Banco Central do Brasil. Agora, o próprio quinta-coluna pretende estimular o projeto de lei que oficializa novo status para o principal instrumento de fiscalização do sistema financeiro e de elaboração e execução de política monetária e cambial. Um dos argumentos infiltrados no governo Lula é o de que o Banco Central já tem e já atua com total autonomia, que nada será alterado no novo estatuto. Pura retórica. Na verdade, o Banco Central está fazendo a política financeira que interessa ao grande capital especulativo nacional e internacional, a qual impede que a política econômica do governo Lula cumpra o compromisso eleitoral com os setores produtivos, com a retomada do desenvolvimento e com a geração de dez milhões de empregos. Ao permitir o livre fluxo dos capitais especulativos, que entram e saem do país sem pagar um tostão de impostos e sem proporcionar qualquer contribuição para o povo brasileiro, o Banco Central continua patrocinando – como aconteceu em 2003 – uma transferência enorme de riqueza para o setor financeiro: os bancos nacionais e os bancos estrangeiros que operam
aqui continuam batendo recordes em seus lucros, muito mais altos do que – no caso dos estrangeiros – em suas próprias matrizes. É essa a autonomia do Banco Central que o ministro Palocci quer eternizar com a legalização. É uma autonomia que teima em se contrapor à política econômica necessária para a realidade do Brasil, uma política econômica que restabeleça o investimento público nas áreas sociais, que ofereça juros menores do que os níveis de produtividade e lucratividade da agricultura e da indústria, que estimule a geração de empregos e de renda, que redistribua a riqueza e inclua na Nação os milhões de brasileiros que foram abandonados na miséria e na fome. O Banco Central não precisa de autonomia, precisa servir ao Brasil. O que o Brasil precisa, e urgente, é de um novo modelo econômico. E nesse novo modelo econômico, o Banco Central será fundamental para garantir o sucesso dessa política econômica, controlando a ganância dos agiotas nacionais e estrangeiros. Só assim, trilharemos no caminho da justiça social. Só assim, começaremos a construir, verdadeiramente, um Brasil para todos.
FALA ZÉ
CRÔNICA
OHI
Neruda esteve aqui
Elaine Tavares Ele fez cem anos também em Florianópolis. E não foi só nos salões ou auditórios. Ele fez cem anos nas ruas, nas lutas, nas estradas de chão. Ele pairou, feliz e sorridente, sobre os estudantes em rebelião, sobre os trabalhadores em greve, sobre as gentes em ebulição. O poeta do Chile, o poeta do mundo, fez cem anos também aqui, entre palavras de ordem, músicas e poemas. Exatamente como sempre viveu. Parece que a cidade se preparou mesmo para isso, para celebrar com Neruda seu aniversário, numa festa cheia de todos os ingredientes que ele tanto amava. Quem teve a idéia primeira de celebrar os cem anos foi Edison Puentes, um equatoriano, internacionalista, amante dessa nossa “América baixa”, como diz Galeano. Na comunhão com outros tantos seres, com a força do Brasil de Fato, foise fazendo a programação. Debates, música, filmes, conversas, poemas. Em todos os lugares, nas praças, nos morros, nas comunidades, nos auditórios.Mas nem Edison imaginava que a cidade iria se preparar para essa celebração especial. Quando julho chegou, trouxe com ele uma vaga rebelde de estudantes e gente do povo, na luta contra o aumen-
to das tarifas. Por duas semanas, centenas de pessoas invadiram o centro, os terminais, a ponte, e protestaram. Meninos secundaristas, com suas camisetas negras, estampadas com Che Guevara, garotas de todas as idades, carregadas de pastas imensas, cheias de livros ecadernos, universitários barbudos e cabeludos, adolescentes tatuados, senhoras com sacolas de compras, velhos e crianças, num único brado. Contra o aumento. Polícia nas ruas, a cidade em rebelião. E foi em julho, num longínquo 1904, que Pablo nasceu, em Parral, no Chile. Naqueles dias, do começo do século, nem ele, ainda Neftáli Ricardo, sabia que seria o Pablo, poeta de todas as gentes, poeta do amor, da terra, dos Andes, do Chile. Foi com o passar dos anos que ele foi-se fazendo, guerreiro, amante, apaixonado por sua terra, por sua gente, pelos trabalhadores. Poeta, político, revolucionário, socialista, apaixonado. Cantou o amor, as pedras, os rostos chilenos, o chão. Viveu tudo com intensidade. Morreu de dor. Não suportou ver o seu Chile tomado pela mão usurpadora do ditador Pinochet. Morreu como viveu, jogado num turbilhão. Morreu??? Não. Bobagem. Ele vive. Esteve aqui nas revoltas de rua, esteve aqui nas notas do Vien-
to Sur, nas margens da Lagoa da Conceição, nas casas das famílias do Mont Serrat. Gritou palavras de ordem nos terminais de Floripa, jogou flores para os despejados da Vila Santa Rosa, fez protesto em frente ao Santander. Dançou com todas as Matildes desta nossa ilha e depois voou. Foi passear na Isla Negra, ouvir o som do mar. E assim viverá, para sempre, em todos os lugares onde alguém precisar de um poema, de uma ação política, de um amor... Viverá nos Edisons Puentes, nos Glaucos, nas gentes de todas as cores e sexos que amam a terra e a vida. E seus poemas nos encantarão até os próximos cem anos... quando, de novo, cantaremos e celebraremos Neruda... vivo, para sempre... “...amo a tenacidade que ainda sobrevive em meus olhos, ouço no coração meus passos de ginete, mordo o fogo adormecido e o sal arruinado, e à noite, de atmosfera escura e luto prófugo, aquele que vela à margem dos acampamentos, o viajante armado de estéreis resistências, detido entre sombras que crescem e asas que tremem, me sinto ser, e meu braço de pedra me defende.” Elaine Tavares é jornalista e professora da Universidade Federal de Santa Catarina
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De 22 a 28 de julho de 2004
NACIONAL COMUNIDADES QUILOMBOLAS
Entidades pedem solução em Alcântara
A
té o final do mês, o governo federal deve receber um manifesto assinado pela organização nacional Centro de Justiça Global e pelas entidades internacionais Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (COHRE) e Social Watch. O documento trata do quadro de violações em que se encontram as 153 comunidades remanescentes de quilombos localizadas na região de Alcântara, no Maranhão. O texto será entregue aos ministérios da Defesa, de Ciência e Tecnologia, da Cultura e do Desenvolvimento Agrário e às secretarias especiais de Direitos Humanos e de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. As entidades vêm lutando pela garantia de seu direito à moradia adequada desde a implementação do Centro de Lançamentos de Alcântara (CLA), em 1984, quando foram deslocadas para agrovilas, cujo solo não oferece condições férteis para o plantio. Hoje, essas famílias precisam pagar pela água, à qual antes tinham acesso gratuito. Atualmente as comunidades deslocadas estão enfrentando problemas sociais até então inexistentes, como gravidez precoce, prostituição de jovens e disseminação do uso de drogas. Segundo o Centro de Justiça Global, a população reclama da desestruturação cultural e familiar por estar confinada numa área ur-
A luta pelo direito à moradia vem de 1984, quando o Centro de Lançamentos de Alcântara (CLA) foi implementado e, para isso, as comunidades da região foram deslocadas
bana. Além disso, as comunidades que ainda não foram deslocadas se sentem ameaçadas. O objetivo das demais entidades envolvidas no manifesto é pedir um posicionamento do governo brasileiro a respeito do futuro dos quilombolas de Alcântara – tanto dos que já saíram de suas terras como dos que ainda podem ser transferidos. Segundo a entidade, há dificuldades em conseguir informações em instância federal, principalmente no Ministério da Defesa, responsável pelas expropriações.
A regularização das comunidades remanescentes de quilombolas incluída no Plano Nacional de Reforma Agrária já tem recursos disponíveis para ser aplicados este ano. Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), R$ 14 milhões deverão ser investidos na regularização de 30 comunidades. O anúncio da aplicação de recursos no processo de homologação foi feito pelo presidente do Incra, Rolf Hackbart. Do total de R$ 14 milhões, R$ 9 milhões foram
SEM TETO
Dafne Melo da Redação Quarenta famílias ocuparam, na madrugada do dia 18, um prédio na rua das Carmelitas, no centro da capital paulista. A ocupação foi uma ação conjunta do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto da Região Central (MTST-RC) e do Comunas Urbanas. De acordo com Mariah Leick, do Comunas, ainda não foi feito nenhum pedido de reintegração de posse do imóvel, que funcionava como uma pensão e estava abandonado há cerca de seis anos. “Decidimos fazer essa ocupação porque vimos que muitas pessoas que trabalham aqui no Centro não têm nem dinheiro suficiente, nem como voltar para as ocupações em bairros mais distantes depois de uma dia de trabalho”, explica Mariah. As famílias já organizaram uma creche dentro do prédio, que está atendendo 30 crianças, para que as mães possam ir trabalhar. De acordo com Mariah, o objetivo é montar um projeto semelhante a outras ocupações feitas na zona norte de São Paulo, área de origem do Comunas Urbanas. “Queremos
montar uma cooperativa de reciclagem de lixo, pois muitas pessoas que participaram da ocupação já fazem recolhimento de lixo aqui no Centro. O importante não é só obter uma renda, mas resgatar a auto-estima das pessoas, desenvolver trabalhos de capacitação com
pessoas que já fazem artesanato, por exemplo”. Atualmente, parte das famílias está trabalhando em uma cooperativa montada em uma ocupação do MTST-RC em uma escola estadual abandonada na Rua São Joaquim, zona sul de São Paulo.
TRABALHO ESCRAVO
Amazônia tem 25 mil escravos
da Redação A conclusão de um estudo elaborado pela Organização Mundial do Trabalho (OIT) é preocupante. De acordo com os resultados, cerca de 25 mil pessoas são submetidas a trabalho escravo na região da Floresta Amazônica. O levantamento revela que o principal problema é a grande impunidade nas cidades do interior do país. O relatório descobriu uma nova área, em São Paulo, onde imigrantes da Bolívia, do Paraguai e do Peru são submetidos a trabalho análogo à escravidão. De acordo com o relatório, no Estado de São Paulo, os imigrantes
Grevistas esperam retomar negociação Luís Brasilino da Redação
Chegada das 40 famílias do MSTC ao local da ocupação, de madrugada
se submetem a condições subumanas de trabalho por sentir medo da deportação. O relatório acusa ainda os Estados Unidos de estar se beneficiando da manutenção desse tipo de escravidão, pois 92% do metal utilizado na fabricação do aço produzido na Floresta Amazônica é exportado para engenhos americanos. A maioria do metal é fundida por trabalhadores forçados, o que transgride um acordo feito pelos Estados Unidos em 1930, que proíbe a importação de mercadoria produzida por trabalhadores submetidos a regime de escravidão. Estatísticas mostram que desde a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
em janeiro de 2002, 5.400 trabalhadores foram postos em liberdade. Entretanto, a autora do relatório, Jan Rocha, disse que apesar de o governo ter apertado o cerco no começo, vem cedendo a pressões feitas pelo lobby dos proprietários de terra no Congresso. O resultado seria a demora da votação do projeto de lei que regulamenta o confisco de terras onde haja trabalho escravo. Jan descreveu a forma como esses trabalhadores vivem em cabanas cobertas com plásticos, sem saneamento básico. No caso dos que trabalham junto a caldeiras, fundindo metal, o calor é excessivo e não há qualquer tipo de proteção.
moradia e terra adequada para trabalhar, acesso à educação de qualidade, transporte público, serviço de água e tratamento de esgoto. Para as comunidades ameaçadas de deslocamento devido ao projeto de expansão da base, a solicitação é que elas sejam amplamente consultadas e que os deslocamentos sejam suspensos até que se encontre soluções consensuadas e adequadas de moradia, trabalho e cidadania para as populações. (Com Agência Carta Maior www.agenciacartamaior.com,br)
GREVES
Anderson Barbosa
Famílias ocupam prédio em São Paulo
garantidos com a suplementação orçamentária de R$ 430 milhões do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) – aprovada pelo Congresso Nacional. A regularização de terras dos remanescentes de quilombos integra as estratégias do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). O documento que será entregue ao governo brasileiro também cobra que as comunidades já deslocadas tenham suas reivindicações atendidas e consideradas – provisão de
Os estudantes, funcionários e professores das três universidades estaduais paulistas, em greve há quase dois meses, estão conseguindo retomar as negociações com as reitorias. Representantes do Sindicato dos Trabalhadores da Universidade de São Paulo (Sintusp) acreditam que esse está sendo o início de uma primeira vitória da mobilização no sentido de conseguir um reajuste para as categorias. Até o momento, a proposta do governo do Estado é de 0% de aumento. “Após dois meses de mobilização, nossas previsões de crescimento da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) estão se confirmando”, relata Maria Aparecida Moysés, presidente da Associação dos Docentes da Universidade Estadual de Campinas (Adunicamp). Os recursos do ensino superior paulista vêm da arrecadação do ICMS e, dia 13, o governo barrou nova tentativa de defesa da universidade
pública, gratuita e de qualidade. Sua base na Assembléia Legislativa negou a proposta dos trabalhadores de ampliar os repasses do imposto para a educação, dos atuais 9,57% para 11,6%. No entanto, para os grevistas a paralisação não precisaria nem ter começado, se o governo estivesse atento à previsão dos trabalhadores de aumento na arrecadação do ICMS. “Acredito que essa greve é desnecessária, porém foi causada pela intransigência. O Conselho dos Reitores da USP, Unicamp e também da Universidade Estadual Paulista (Cruesp) deveria ter anunciado o reajuste há dois meses”, coloca Maria Aparecida. Para maio, o governo esperava R$ 2,477 bilhões e os trabalhadores, R$ 2,705 bilhões de arrecadação. O Estado captou R$ 2,712 bilhões. Em junho, a previsão da administração era de R$ 2,487 bilhões e a dos funcionários e professores, de R$ 2,830 bilhões. O resultado final: R$ 2,386 bilhões. Ou seja, o governo do Estado de São Paulo precisa começar a rever suas bases.
Anderson Barbosa
da Redação
Fotos: Maisa Mendonça
Manifesto exige do governo regularização de 153 comunidades afetadas por graves problemas sociais
Dia Nacional de Luta – Milhares de trabalhadores desempregados foram cadastrados em todo o Brasil no dia 16 de julho. A mobilização nacional foi organizada pela CUT e pela Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS). Em São Paulo, os manifestantes passaram uma noite acampados no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp), na Avenida Paulista; depois fizeram uma passeata até a Prefeitura. No Rio de Janeiro, o protesto ocorreu na Cinelândia, em frente ao Teatro Municipal. Os movimentos sociais exigem mudança na política econômica do governo para combater o desemprego.
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NACIONAL ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Direitos continuam violados
Dioclécio Luz Quadrinhos e quadrões O Brasil sempre foi muito bom em história em quadrinhos. Pena que haja um boicote imenso da mídia e um preconceito estratificado contra esse tipo de arte. O fato é que um bom desenho (cartum, charge, tira...) pode dizer mais que um livro. O povo dos quadrinhos se reuniu, dias 13 a 17, na segunda edição de “O Mundo dos Quadrinhos”, no Senac, em São Paulo. A dor de Ziraldo Em depoimento à revista Imprensa, Ziraldo, criador do Pasquim, diz que resolveu encerrar a publicação porque sempre admirou e esteve ao lado do grupo político que hoje é governo – Lula, Genoíno, Zé Dirceu. “Não podia falar mal deles no Pasquim”, lamentou. Ziraldo está sofrendo a mesma dor de milhares de brasileiros, que se sentem constrangidos em criticar um governo no qual votaram para mudar o país e que cada vez mais se esforça para ficar igual aos anteriores. Biografia de Carlos Marighela Deve ser lançada, no segundo semestre, a biografia de Carlos Marighela. O livro foi escrito pelo jornalista Mário Magalhães. Nike contrata menores Circula na internet uma entrevista do cineasta estadunidense Michael Moore com o dono da Nike, Phil Knight. No documentário, o homem da Nike reconhece que usa trabalho infantil em suas fábricas no Terceiro Mundo. Segundo Knight, o problema é das Nações Unidas, que não estabeleceram uma idade maior para trabalhar. Outro sucesso Só pra lembrar: Michael Moore é o premiado e polêmico diretor do documentário Fahrenheit 9/11, que lidera a lista dos filmes mais vistos no mundo. O documentário ataca George W. Bush com dureza, expondo seu discurso duplo sobre a invasão do Iraque e sobre o terrorismo. Patrão incomodado Como a crítica de Michel Moore à política nazista estadunidense, expressa em livros e filmes, está fazendo muito sucesso dentro e fora dos Estados Unidos, a grande imprensa brasileira foi convocada a reagir. Isto É, Veja e o programa Manhattan Connection, para citar alguns, já atuam na tentativa de desqualificar o cineasta e escritor. Ou seja, a imprensa servil é rápida em atender aos mandos do patrão. Ondas do Cariri Está no ar, desde abril, o programa Cidadania Questão de Direito. Vai ao ar pela Rádio Educativa Padre Cícero FM 104, da região do Cariri, no Ceará. O objetivo do programa é debater e divulgar as questões de cidadania e direitos humanos. Colaborações e sugestões de pauta pelo telefone (88) 512-2000. O endereço eletrônico é: oabjua@baydebc.com.br (Fonte: Cemina) Sumiram os donos de rádio e TV O ministro das Comunicações, Eunício Oliveira (PMDB-CE), achou que era bom para o país – e para o governo, seu partido e seus aliados. E não teve dúvidas: mandou retirar da internet os nomes dos que detêm concessões públicas de rádio e televisão. Como são concessões públicas, ele acha que o tratamento deve ser privado, discreto, particular. Empresas recusam dinheiro Em carta enviada ao BNDES as três grandes empresas de comunicação do país recusaram o empréstimo a ser concedido pelo banco. Motivo: o banco emprestava, mas queria um tratamento de mercado para esses empréstimos de dinheiro público. Os latifundiários da comunicação esperavam pegar dinheiro público mas com juros filantrópicos e, se possível, que não precisassem pagar.
Agora, setores conservadores tentam mudar a lei, criminalizando adolescentes a partir de 12 anos Tatiana Merlino da Redação
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onsiderado uma das melhores legislações de direitos infanto-juvenis do mundo, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 14 anos em meio a projeto de mudança, proposto no Congresso Nacional pelo deputado Vicente Cascione (PTB-SP). As possíveis alterações do texto, que entrou em vigor em 13 de julho de 1990, preocupam entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente, que temem a implantação, por via indireta, da redução da maioridade penal. Em meio à polêmica, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou ser contra a criação de penas mais longas. Dia 13, Lula afirmou que o ECA “deve ser cumprido e não modificado.” A avaliação do relatório final da comissão especial da Câmara dos Deputados foi adiada para agosto, após o recesso parlamentar. Os líderes dos partidos querem ganhar tempo para debater alterações polêmicas, como a que permite a criminalização de adolescentes a partir de 12 anos, com penas de até 27 anos de detenção. Segundo a proposta de Cascione, se o adolescente atingir 18 anos antes do término da pena, passará por uma avaliação. Caso seja decretada a privação de liberdade, o jovem poderá ser transferido para uma penitenciária. Ademar Carlos de Oliveira, coordenador do Projeto Meninos e Meninas de Rua de São Bernardo do Campo, classifica a proposta de “aberração”, pois “nem de longe” é a solução para acabar com a violência. “É como se estivessem decretando prisão perpétua para os jovens”, avalia. Para ele, o projeto tem poucas chances de ser aprovado, pois é a “exploração da ignorância coletiva”. Com ele concorda o advogado Ariel de Castro Alves, para quem as mudanças seriam um retrocesso. Segundo Castro, os jovens são tratados como se fossem os principais responsáveis pelo aumento da criminalidade. Mas, de acordo ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. Define como criança a pessoa de até 12 anos incompletos, e como adolescente quem tem de 12 anos a 18 anos incompletos, a quem assegura oportunidades de desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social. Prevê direitos e sanções, como medidas socioeducativas adequadas aos atos infracionais cometidos, segundo a gravidade do delito, suas circunstâncias e capacidade de cumprir a pena, a mais severa dela a reclusão por até três anos. Há também medidas de semiliberdade e liberdade assistida.
Fotos: Francisco Rojas
Espelho
A aplicação do Estatuto ainda não está viabilizada: não há estrutura para tirar as crianças das ruas, por exemplo
com os dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, os adolescentes estão envolvidos em 2,7% do total de crimes do Estado e em 1% dos homicídios paulistas. Além disso, são responsáveis por menos de 10% dos crimes ocorridos no país.
TEORIA VERSUS PRÁTICA De acordo com Edísio Simões Souto, presidente da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Estado não fornece infra-estrutura necessária para a aplicação efetiva do estatuto. O re-
sultado, para ele, é a impossibilidade de diminuir o número de crianças trabalhando para o tráfico de drogas ou nos faróis pedindo esmola. Um quadro grave, de acordo com Alves, é feito pelas cerca de 3 milhões de crianças em situação de trabalho infantil, por 1,5 milhão de meninas sujeitas à exploração sexual e pelos 12.400 adolescentes em situação de privação de liberdade. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 70% das unidades de privação de liberdade estão em situação irregular e desrespeitam o ECA. “Muitos juízes comportam-se co-
mo se estivessem com a cabeça no Código de Menores, que é a lei anterior”, diz Oliveira, lembrando os “cantinhos” existentes em delegacias de polícia, onde adolescentes ficam por meses, “em total ilegalidade”. Para Alves, uma outra dificuldade de implementação do estatuto é a falta de investimento do governo. “O ECA tem que ser prioridade nos orçamentos públicos. Após a lei de responsabilidade fiscal os orçamentos públicos ficaram bastante prejudicados”, afirma. Segundo ele, “a lei é excelente, o problema é a questão da aplicação”.
Lei garante avanços nas políticas Apesar de não inibir a violação dos direitos dos adolescentes, o ECA garantiu avanços nas políticas de atendimento ao que antes se denominava “menores”. Entre eles, especialistas destacam a criação de conselhos tutelares, que funcionam em cerca de 70% dos municípios da federação, e de conselhos dos direitos da criança e adolescentes em âmbito federal, estadual e municipal, numa composição paritária de membros do governo e da sociedade. De acordo com José Fernando da Silva, vicepresidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), há 3.814 conselhos tutelares em todo o país, e 4.369 municípios possuem conselhos de direito.
Silva afirma que o ECA é responsável por vários “acertos na legislação”. Quando o estatuto foi aprovado, em 1990, a mortalidade infantil era de 48 a cada 1 mil nascidos. Em 2002, a taxa diminuiu para 27,8 por mil nascidos vivos, mas as diferenças regionais persistem. “Nas regiões Norte e Nordeste as taxas são maiores do que a média nacional”. Mesmo com a queda, os índices continuam altos. Em Cuba, por exemplo, a taxa de mortalidade é de 7 para cada 1 mil nascidos e, na China, de 3 para 1 mil.
ACESSO AO ENSINO Cerca de 97% das crianças de 7 a 14 anos têm acesso ao ensino fundamental. “Esses dados são animadores, apesar da qualidade
do ensino ser ruim”, diz Silva, ressaltando, porém, que na educação infantil há um baixo índice de crianças atendidas. Em relação ao trabalho infantil, também houve redução. Em 1992, de acordo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 9,6 milhões de crianças até 17 anos trabalhavam. Em 2001 o número caiu para 5,4 milhões. “Apesar de ainda ser um número elevado, a redução é bastante expressiva”, destaca Silva. O advogado Castro Alves diz que a atuação das entidades da sociedade civil também aumentou desde a criação do ECA. “Elas acabam assumindo o papel do Estado e desenvolvem o trabalho de maneira mais eficaz, com menos custos”. (TM)
Sobrevivência depende de malabarismo Quase todo dia, Cristiano, Fabiano e Wallace saem cedo do bairro de Americanópolis, zona sul da capital paulista. Atravessam a cidade rumo à Avenida Brasil, no bairro do Jardim Paulista, um dos mais nobres de São Paulo. Faça chuva ou faça sol, os três passam o dia fazendo malabares para os carros que param no semáforo. Sem saber, engrossam a lista de 3 milhões de crianças que trabalham no país. “Dá para tirar até uns R$ 30 por dia”, dizem os garotos, que têm 14 anos. O trabalho foi “indicado” por outros amigos que trabalham em outros semáforos, e “um foi ensinando o outro a mexer com os malabares”. Com o dinheiro, eles compram roupas e ajudam em casa. Fabiano, que mora com o pai pedreiro e com a mãe dona de casa, assume que falta na escola, mas segundo ele os professores faltam mais ainda. “E lá as janelas estão quebradas. Quando chove, como
Malabares e panfletos são instrumentos de trabalho para os meninos ajudarem com as despesas de casa
hoje, entra muita água”, diz, referindo-se ao temporal que não impediu que continuassem trabalhando. Cristiano mora com os irmãos e o pai. “Quem ajuda em casa é minha irmã, e meu pai não traba-
lha. Ele quer que eu trabalhe para ajudar em casa, mas nem sempre eu ajudo”. Segundo ele, só faltou à escola para trabalhar “quando estava faltando coisas em casa”. Wallace trabalha há seis meses
mas gostaria de ser professor de matemática. Cristiano e Fabiano, que são primos, estão nos semáforos desde quando tinham 13 anos. Antes, entregavam folhetos de uma clínica dentária. (TM)
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NACIONAL ENTREVISTA
Um devoto do povo e da revolução
O ex-padre Alípio Freitas, que abandonou a batina para se dedicar à luta social, sonha em trabalhar com o MST
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uem participou ou acompanhou as lutas populares no Brasil antes do golpe de 64 deve lembrar de uma figura histórica que se ligou aos camponeses. Trata-se do ex-padre Alípio de Freitas, um dos fundadores das Ligas Camponesas. Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, ele conta como abandonou a batina para “fazer a revolução”, faz uma retrospectiva das lutas populares nos anos 50 e 60 e revela o seu grande desejo de voltar ao Brasil e reencontrar o seu povo, “o povo camponês”, e inclusive trabalhar com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Brasil de Fato — Como o senhor veio parar no Brasil? Alípio de Freitas — A convite da Faculdade de Filosofia do Maranhão, da Fundação Paulo Ramos, e também do arcebispo do Maranhão, dom José Delgado, já falecido. Fui contemporâneo, no Maranhão, de dom Antônio Fragoso, um dos quatro bispos que condenou o golpe militar de 64. BF – O senhor conviveu com a juventude operária católica? Freitas — Fui nomeado assistente da Juventude Operária Católica (JOC) e, logo em seguida, fui “desnomeado” porque a JOC participou ativamente do movimento grevista no Maranhão, coisa impensável para o arcebispo. BF – E o caso da têxtil da Gamboa? Freitas – Essa fábrica deveria ser vendida com a conseqüente demissão de mais de 600 trabalhadores e o despejo das habitações ocupadas por eles, que eram propriedade da fábrica. Alegava-se “motivo de força maior”. Eu soube que era tudo uma grande malandragem. Escrevi um artigo no Jornal Pequeno e, no dia seguinte, outro. A partir daí, vivia-se em São Luís querendo saber o que eu escreveria no dia seguinte. O arcebispo estava no Rio de Janeiro e foi informado de que eu tinha atacado a família Aguiar. Então me mandou um telegrama, dizendo para não fazer isso. Fui ao jornal e disse ao diretor: publique esse telegrama na primeira página. E escrevi embaixo: “Impedido de poder continuar a defender os operários da Gamboa por decisão da autoridade eclesiástica, remeto a sua defesa à opinião pública”. No dia seguinte mobilizou-se a Faculdade de Direito e o caso da Gamboa, que já estava em fase final de decisão no tribunal, voltou ao início, pois o juiz que estava com o caso era parente dos donos da fábrica. Eu tinha descoberto isso e tinha publicado. No fim, tiveram de indenizar todos os trabalhadores. Passaram a me odiar de morte. A partir daí, comecei a andar muito pelos bairros populares ajudando na organização de associações. BF – Como entrou em contato com o movimento camponês? Freitas – No dia 7 de setembro de 1958, na Academia Maranhense de Letras, houve uma grande festa da Independência com a presença de deputados, do governador do Estado, do presidente da Câmara e do arcebispo dom José Delgado. Estavam lá todos: o poder civil, o poder militar e o poder religioso. No final, perguntaram se alguém queria dizer alguma coisa. Então levantou-se o Augusto, um cara que mexia com camponeses, e disse: “Hoje realmente é o dia da pátria. O
Quem é
Alípio de Freitas nasceu em Portugal, na cidade de Bragança. Filho de família pobre, tornou-se seminarista e chegou ao Maranhão em fevereiro de 1957 para dar aulas de História Antiga e Medieval. Militante das lutas sociais do povo brasileiro, em 1969 foi detido no presídio Frei Caneca, onde ficou por quase dez anos.
senhor governador tem pátria, ofício, família; o senhor arcebispo também; todas as autoridades que estão aqui têm pátria. Agora, os camponeses, como eu, esses não têm pátria. Os camponeses até morreram pela pátria como quando foram à Itália, mas não têm pátria. Não têm terra, não têm escola, não têm saúde, não têm trabalho, não têm tudo aquilo que os que têm pátria têm”. BF – Qual era o nome completo dele? Freitas – Augusto José do Nascimento. Ele era pernambucano, mas fugiu de Pernambuco. Então se criou um silêncio de morte na sala e todos olhavam uns para os outros e eu pensava: “Quando esse sujeito acabar de falar, vai ser grampeado”. Mas, para espanto geral, ele foi aplaudido de pé e até os que estavam na mesa bateram palmas. Quando tudo acabou, perguntei para onde ele ia e ele disse que ia para casa. Então vou com você, retruquei, e ficamos dois dias conversando. Daí em diante passamos a trabalhar juntos. Até eu ir para as Ligas Camponesas. O Augusto era um negro que veio de Pernambuco, aprendeu a ler com as histórias de cordel, sozinho, relendo os versos que guardava de memória. Um dia, o filho do dono do engenho ameaçou lhe dar uma surra. E o Augusto é que lhe deu uma surra de facão e depois se pôs no mundo. Meteu-se num navio, desembarcou em Santos e de lá foi para São Paulo trabalhar na construção do Hospital das Clínicas. Um dia, ele ajudante de pedreiro, encontra uns papéis no chão. Coloca no bolso, vai para onde morava e lê. Eram materiais do Partido Comunista. BF – O senhor é um intelectual e a sua iniciação política foi feita por um camponês analfabeto, politicamente mais avançado. Freitas – Não tenho dúvidas disso. O Augusto um dia foi a uma reunião e lá começaram a discutir os tais papéis. Quando eles falaram de revolução, ele achou que a revolução aconteceria em quinze dias. E começou a destravar a língua e a falar da revolução. O pessoal explicou a ele que a coisa não era bem assim, que era preciso organizar tudo etc. O camponês acha que as coisas têm que ser logo. A diferença entre um camponês e um trabalhador urbano é que não há negociação para um camponês. Ou tem terra ou não tem terra. Disseram para ele voltar para o campo e organizar os camponeses. E, como ele não podia ir a Pernambuco, senão iriam matá-lo, foi para o Maranhão, onde começou a empreitar as estradas rurais dos municípios.
foi afetado em nada. Depois caiu o pessoal de São Paulo e com eles o do Maranhão e de Goiás.
Fotos: Mario Augusto Jakobskind
Débora Motta, Jesus Antunes, Mário Augusto Jakobskind, Nestor Cozetti e Zilda Ferreira do Rio de Janeiro (RJ)
Os trabalhadores iam fazendo a estrada e ele ia politizando. Em cada lugar deixava uma coisa mais ou menos arrumada. Isso foi um trabalho entre 1942 e 1943. Em 1956, 1957 começaram a ser fundadas as associações dos trabalhadores rurais do Maranhão. BF – Por que historicamente o Maranhão teve um avanço social no campo maior que no restante do Nordeste? Freitas – No Maranhão o latifúndio recebia os trabalhadores imigrantes, mas eles tinham de trabalhar um ou dois dias por semana para o dono da terra. Tinham de comprar no barracão da fazenda e vender aí o que produziam. Mas deixou de ser assim quando alguém começou a dizer: “Não vamos vender e comprar mais no barracão, vamos vender o babaçu, o arroz, o algodão para quem quiser comprar”. Não era luta pela terra, lutava-se por condições de viver na terra. Os latifundiários não queriam expulsar ninguém porque sem esses trabalhadores não teriam rendimento. As relações comerciais eram feitas com o dono do latifúndio. Relações feudais. A carta de alforria dos trabalhadores do Maranhão, que eu redigi, era para libertar os trabalhadores do cambão, não era pela posse da
do Brasil eu me comuniquei com um amigo mexicano, que era amigo do Fidel e do Che. Foi por meio dele que fiz o contato para nossa ida para Cuba. Além disso, eu tinha uma relação especial com Cuba. Fui o primeiro jornalista aqui no Brasil a escrever sobre Cuba. Então nós, eu e o então deputado Max da Costa Santos, junto com um grupo de marinheiros aos quais eu estive muito ligado, nos asilamos na Embaixada do México. Estávamos decididos a sair e a voltar por conta própria, preparados para organizar a resistência armada à ditadura. Che Guevara não era uma pessoa de fácil acesso. Não o conhecia pessoalmente até então. O Che era o contrário do Fidel. O Fidel é uma pessoa que quando se conversa com ele a primeira vez se acha que até se jogou bola de gude com ele. Na segunda vez já se começa a achar que talvez não. E na terceira já se tem certeza de que nunca jogou bola com ele. O Fidel é assim. O Che era ao contrário. No começo era difícil, mas depois, com o tempo, se tinha a impressão de que se andou com ele pela América Latina naquela motocicleta. Estive muitas vezes com ele para tratar da ida do pessoal para o treinamento.
BF – O que o senhor fez quando saiu da prisão? Freitas – Tentei ajudar a fundar o PT, tentei trabalhar, mas eu tinha, além dos processos das auditorias, um processo de expulsão que só terminou agora. Mas eu recebi um convite de uma organização sueca, ASDI, para trabalhar em Moçambique com cooperativas e agricultura familiar. Lá passei cerca de dois anos. Quando acabei o contrato (os suecos até queriam que eu continuasse), eu vim ao Brasil ver como estavam as coisas. (João Batista) Figueiredo continuava presidente. Então voltei para Portugal e fui trabalhar na televisão como jornalista e diretor de programas. Agora sou professor da Universidade Lusófona de Lisboa. Dou aulas de História da Cultura Brasileira e de Socioeconomia Política Contemporânea. BF – Se voltasse para o Brasil o senhor pretenderia fazer o quê? Freitas – Trabalhar com o meu povo. O povo camponês. Gostaria de trabalhar com o MST. BF – Que semelhanças e diferenças existem entre o movimento camponês do período de 58 até 64 e o de hoje? Freitas – Acho o seguinte: os dirigentes do MST têm uma coisa muito importante. Eles sempre dizem que não nasceram por geração espontânea, vão atrás da raiz, fazem muita questão de dizer: “Nós não começamos do nada, nós somos herdeiros, sobretudo do espírito das Ligas Camponesas”. E isso é muito importante. Os sindicatos nunca se propuseram a tomar a terra. Os sindicatos queriam outras coisas. As Ligas, nesse aspecto, têm uma ligação maior com o MST: a to-
A carta de alforria dos trabalhadores do Maranhão, que eu redigi, era para libertar os trabalhadores do cambão, não era pela posse da terra terra. O cambão era a obrigação de trabalhar alguns dias no latifúndio sem receber. BF – Como começou a sua relação com as Ligas? Freitas – No Maranhão ocorreu uma das primeiras greves políticas do campo no Brasil porque foram assassinados vários camponeses em 1961. Uma greve geral, de todos os sindicatos maranhenses. Uns seis camponeses foram assassinados. Se um delegado prendia um camponês, vinham uns cem para a frente da delegacia e o delegado achava melhor soltar o preso. Esse foco de resistência estava muito organizado no Maranhão. Calculo que em 1962 nós tínhamos organizados cerca de 60 mil a 70 mil camponeses. A minha relação com as Ligas começou em 1961, no Congresso de Belo Horizonte. Em 1962, saí do Maranhão. BF – Fale sobre seu contato com Che Guevara. Freitas – Quando estávamos na Embaixada do México para sair
BF – O senhor é acusado de ter colocado uma bomba no aeroporto de Guararapes, no Recife, que provocou duas mortes. O alvo seria o então ditador de plantão, Arthur da Costa e Silva. Freitas – Eu já disse o que tinha de dizer sobre isso numa entrevista ao Jornal do Comércio. Foi um ato de guerra revolucionária e acabou-se. As guerras são assim. Quando fui preso me perguntaram sobre Guararapes. Eu disse que tinha ouvido dizer que fora o pessoal do Castelo. E eles deixaram por isso mesmo. Se eles tivessem a menor dúvida sobre o que eu disse, eles teriam me matado na hora. BF – Quando o senhor foi preso e quanto tempo ficou detido? Freitas – Fui preso em 1970. Fiquei quase dez anos. Saí antes da anistia, em 17 de fevereiro de 1979. Eu estava aqui no Rio para dar uma organizada numas células locais, para me mandar para o campo de vez, quando fui preso. A nossa foi uma queda isolada, pois o resto do PRT não
O Che no começo era difícil, mas depois, com o tempo, se tinha a impressão de que se andou com ele pela América Latina naquela motocicleta
mada da terra pelos camponeses para transformá-los em proprietários. Até agora o MST ainda não adotou o lema das Ligas “na lei ou na marra”, mas isso é um problema que eles têm de definir. Nós não tivemos tempo nem recursos, tanto humanos quanto econômicos, para expandir e organizar as Ligas da forma que o MST já tem. É um outro tempo. Tudo estava contra nós. O Partidão, a Igreja, a sociedade, tudo contra nós. Agora, com o MST, não. O movimento tem apoio da Igreja, da sociedade civil, e reconhecimento internacional. BF – Contra o MST está a grande mídia, que o criminaliza. Freitas – Nós também tínhamos a mídia contra nós. Nós tínhamos tudo contra nós. No princípio, a grande mídia não foi tão contra o MST. Agora já é, mas eu acho que o MST é uma força de mobilização como nunca houve na história deste país. O MST é reconhecido como o maior movimento social popular que existe no mundo. Na África, na Índia, não há nada que se pareça com o MST. E é uma coisa para andar, para caminhar e uma coisa que é importante, para vencer. O Brasil do futuro é já, hoje, o MST.
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NACIONAL ORGANIZAÇÕES NÃO-GOVERNAMENTAIS
Projeto é omisso e genérico
Fatos em foco
Para especialistas, lei criminaliza entidades da sociedade civil
Alternativa urgente Um dos indicadores de vulnerabilidade do país, segundo a ONU, é a relação da receita de exportação e o pagamento de juros da dívida externa. Em 2002, o Brasil usava 68,9% da receita para pagar juros, enquanto o Chile gastava 32,9% e o México apenas 23,2%. Por isso, o Brasil era apontado como o de pior vulnerabilidade externa entre 140 países pesquisados. Manifestação popular Cresce a mobilização para o 10º Grito dos Excluídos, que inclui a semana social e as manifestações de 7 de Setembro, em todo o Brasil. Mais uma vez os temas centrais são a fome, o desemprego e a distribuição da renda, sob o slogan “Brasil: Mudança pra valer o povo faz acontecer”. Saúde genocida A Agência Nacional de Saúde, mais uma excrescência do reinado neoliberal de FHC, lava as mãos e finge que não tem nada a ver com as jogadas safadas dos planos e seguros privados de saúde, que decidiram condenar à morte os clientes mais velhos, com aumento abusivo nas mensalidades, de maneira a limpar de suas carteiras os que causam “maiores prejuízos”. É uma vergonha a omissão do Ministério da Saúde e do conjunto do governo. Pequena diferença Apenas para registrar algumas diferenças: em 2001, a Argentina, país vizinho com crise econômica semelhante à brasileira, investiu em saúde 1.130 dólares por pessoa, enquanto o Brasil gastou apenas 573 dólares por pessoa. Em compensação, o atual governo brasileiro gastou uma boa grana com propaganda feita pelo “global” Dráuzio Varella, em defesa dos planos privados de saúde. Psicografia malufista A velha raposa da política de direita continua aprontando das suas: agora Paulo Maluf tenta negar que seja sua a assinatura em ficha bancária de conta na Suíça, apesar da confirmação feita por dois peritos contratados pelo Ministério Público de São Paulo. Nem prova técnica de crime vale contra ele. Ditador desmascarado O ex-ditador chileno Augusto Pinochet, adorado pelas elites da América Latina, também acaba de ser flagrado com a mão na botija: uma conta secreta em paraíso fiscal revela que o sanguinário assassino surrupiou milhões de dólares do povo do Chile. E continua impune por todos os seus crimes. Apenas reciprocidade A dupla sertaneja Zezé di Camargo e Luciano arrecadou R$ 250 mil para a nova sede do PT em São Paulo, com show realizado em Brasília, na última semana, no qual os cantores não cobraram cachê. Em compensação, a dupla negocia o patrocínio de R$ 5 milhões com o Banco do Brasil. É esperar para ver. Fuga maldita O número de brasileiros que tenta entrar ilegalmente nos Estados Unidos aumenta a cada ano, o que comprova que a perspectiva de emprego no Brasil ainda não é convincente para evitar que esses trabalhadores arrisquem a vida e sofram todo tipo de humilhações longe de seu país. A mudança será percebida no dia em que o fluxo acontecer no sentido inverso.
A
s organizações não-governamentais (ONGs) deveriam dedicar tempo e esforços para fortalecer a sociedade civil brasileira. No entanto, não é bem isso que sugere o Projeto de Lei 7/2003, que dispõe sobre o registro, fiscalização e controle de organizações não-governamentais. Depois de passar por uma série de remendos, o texto substitutivo foi aprovado no Senado, dia 29 de junho, e tramita hoje na Câmara Federal. Se houver alterações no texto, volta ao Senado. Alexandre Ciconello, coordenador do escritório de Brasília (DF) da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong), conta que, na pressa pela aprovação, o texto do PL foi completamente mudado. Dessa forma, o texto substitutivo, de autoria do senador César Borges (PFL-BA), “passa ao largo de questões importantes”. Um dos erros é o da generalização, pois define como organização não-governamental todas as entidades privadas que atuam no campo social. “O projeto não define o que são as ONGs, não debate as entidades filantrópicas e Projeto de Lei 7/2003 – Apresentado ao Senado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das ONGs, que funcionou de março de 2001 a dezembro de 2002. É resultado de uma série de investigações sobre supostas irregularidades na atuação de ONGs no país, principalmente na Amazônia. Projeto de Lei 246/2002 – Proposto pelo senador Morazildo Cavalvanti (PPSRR), presidente da CPI das ONGs. Já descartado, previa, entre outras coisas, a suspensão de atividades de ONGs que “ferissem os bons costumes” ou os “interesses nacionais”.
par em fortalecer a organização da sociedade civil e o Estado deveria colaborar nesse processo”, cobra Ciconello. “A legislação não deve servir à facilitação casuística de projetos de órgãos governamentais”, completa Jorge Eduardo Durão, diretor executivo da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) e diretor geral da Abong,
JOGADA DA ELITE
ONG é recebida por Prefeitura de Sorocaba: lei pode enfraquecer entidades
nem políticas de acesso a recursos públicos”, afirma. Representantes de entidades também reclamam que o PL não enfrenta temas centrais que as ONGs gostariam de ver contempladas na legislação. Entre os assuntos que ficaram de fora está o reconhecimento da importância das organizações para o processo democrático. Também não foram avaliadas as diferenças entre organizações assistenciais, de representação de moradores, clubes recreativos, associações de produtores rurais, institutos e fundações empresariais, universidades, hospitais privados etc. “Hoje, a lei de definição de organizações da sociedade civil é muito esparsa”, relata Ciconello.
PAPEL DO ESTADO Segundo Silvio Caccia Bava, coordenador executivo do Instituto Polis, a lei deve ter o objetivo de ampliar e fortalecer o papel e a atuação das ONGs preocupadas
realmente com a construção da cidadania. Há anos a Abong luta para definir um marco legal que regule a atuação das ONGs no Brasil. A idéia é que o Estado apóie e fortaleça entidades comprometidas com a construção da cidadania, e não apenas prestadoras de serviços. No entanto, ao colocar tudo no mesmo balaio, os parlamentares evitaram discutir exatamente esses temas. “Queremos independência, autonomia e a compreensão de que políticas públicas devem ser alvo de debate com a sociedade, até para estimular a cidadania”, diz Caccia Bava. Ciconello lembra que, no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, as ONGs foram instrumentalizadas para a implantação de políticas públicas. “Precisamos saber o que o governo Lula quer pois, para nós, isso (políticas públicas) não é responsabilidade de ONGs. Temos que nos preocu-
Para Ciconello, a idéia de que é preciso criar novas leis para regulamentar e controlar as ONGs tem inspiração autoritária. “Há o respaldo sobretudo de setores políticos cujos interesses são contrariados pela atuação das ONGs em defesa do meio ambiente, na busca de alternativas ao atual modelo de desenvolvimento, na defesa dos direitos sociais e dos povos indígenas etc”, conta, citando como exemplo o interesse despertado por entidades indigenistas em Roraima, a partir do conflito na área indígena Raposa-Serra do Sol. Segundo Durão, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das ONGs e a proposta do PL 246/ 2002, do senador Mozarildo Cavalcanti (PPS-RR), são um exemplo disso. “É bom lembrar que o projeto original do senador Cavalcanti era claramente inconstitucional, ferindo o direito de livre associação previsto na Constituição Federal”, afirma Durão. “O que existe hoje é uma orquestração, principalmente da grande mídia, para usar alguns atos de ‘pilantropia’, e generalizar. É uma forma de deslegitimar e criminalizar as entidades da sociedade civil, assim como é feito com os movimentos sociais”, explica Caccia Bava.
MULHERES
Negras e índias lutam por reparações Nelson Breve de Brasília (DF) A aliança entre negras e índias marcou o 1º Congresso Nacional de Políticas para as Mulheres, realizado dias 15 a 17. Elas conseguiram aprovar praticamente tudo que desejavam, grafando as expressões raça e etnia ao lado de gênero de modo praticamente indissociável. Só não incluíram cotas para negras e índias nas escolas públicas e no serviço público no documento que vai subsidiar a elaboração do Plano Nacional de Políticas para Mulheres, porque não houve consenso sobre a proposta dentro dos próprios movimentos. O sucesso da parceria teve como resultado a declaração de uma aliança de parentesco. Apontando-se como vítimas comuns da exploração colonial brasileira, elas se consideram parentes na luta pela reparação da discriminação histórica que resultou na desvalorização das suas imagens perante as demais raças e etnias. “Aqui, a gente deu a conhecer que agora estamos juntas”, comemorou Jurema Werneck, da Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras. De acordo com Jurema, a unidade de ação será voltada para lutas específicas contra o racismo, pela autodeterminação e pelos direitos territoriais de negros e indígenas. “Essa aliança representa o fortalecimento para os dois povos sempre excluídos de política públicas específicas”, avaliou Graciliana Selestino Wakanã, presidenta do Comitê Inter-tribal de Mulheres Indígenas do Nordeste (Coimi-NE). Para ela, a garantia do território é fundamental para os dois povos. “Os negros também têm direito ao território.
José Cruz/ABr
Modelo perverso De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU, que elabora o ranking do IDH, o Brasil era, em 2002, o 4º pior país do mundo em desigualdade entre a concentração de renda nos 10% mais ricos da população comparada com a renda dos 10% mais pobres. E não há indício seguro de que essa situação tenha se alterado nos últimos dois anos.
Luís Brasilino da Redação
Greenpeace/Gilberto Marques
Hamilton Octavio de Souza
As mulheres se unem agora para investir na luta contra o racismo e pelos direitos de negros e indígenas
Sem território, nem negros nem indígenas vão conseguir manter sua cultura”, justificou, observando que o próximo passo da agenda comum é a realização do 1º Encontro Nacional de Mulheres Indígenas e Quilombolas.
PLANO NACIONAL A 1ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres reuniu perto de 3 mil mulheres, 45% que se declararam negras. No encontro, elas definiram as diretrizes do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, que deve ser aprovado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 25 de novembro – Dia Internacional de Combate à Violência
Contra as Mulheres. São propostas para o enfrentamento da pobreza, com geração de renda, trabalho, acesso ao crédito e à terra; superação da violência contra a mulher, com medidas de prevenção, assistência e enfrentamento da questão; promoção do bem-estar e qualidade de vida para as mulheres, nas áreas de saúde, moradia, infra-estrutura, equipamentos sociais e recursos naturais; efetivação dos direitos humanos das mulheres: civis, políticos, sexuais e reprodutivos; e o desenvolvimento de políticas de educação, cultura, comunicação e produção do conhecimento para a igualdade. No balanço geral da Conferên-
cia, a constatação é que as mulheres querem um plano de ação governamental para transformar em políticas públicas efetivas os direitos que conquistaram ao longo do século passado – sempre sob o ponto de vista da igualdade entre gêneros. Entre as propostas aprovadas, destaca-se a revisão da legislação que trata da violência contra a mulher. As mulheres querem punição efetiva para os agressores, que consideram tratados com complacência pelos juizados especiais. Mas querem também políticas de prevenção, assistência e segurança, para diminuir a exposição ao risco e estimular denúncias. (Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br)
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NACIONAL VULNERABILIDADE EXTERNA
Brasil não tem como pagar a dívida
Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
P
ela primeira vez em anos, o Brasil encerrou os primeiros cinco meses de 2004 com uma sobra equivalente a 3 bilhões de dólares em sua contabilidade com o restante do mundo. Isso significa dizer, em grandes números, que a cada 10 dólares que entraram no país, sete retornaram ao exterior, sob a forma de pagamento de juros e das prestações da dívida, remessas de lucros e dividendos para empresas multinacionais com sede lá fora, gastos com viagens internacionais e com o frete para transporte de cargas importadas, entre outras despesas. Os outros três dólares foram incorporados às reservas internacionais, destinadas a socorrer a economia em períodos de crise gerada pela falta de dólares para honrar compromissos financeiros (cobrir gastos com juros e prestações da dívida externa) e comerciais (pagamento de importações). A folga registrada até então foi assegurada pelo forte crescimento das exportações, influenciadas, por sua vez, pela alta dos preços internacionais dos grãos e metais (soja, algodão, café, ouro, níquel, cobre, alumínio etc.), além das carnes. Paradoxalmente, todo o esforço feito pelos brasileiros para gerar aquela sobra de dólares, refletido no achatamento de sua renda e no aumento do desemprego, pode ser lançado à lata do lixo de uma hora para outra, como mostra estudo elaborado pelos economistas Daniela Prates, especialista em balanço de pagamentos (a conta que resume todas as transações do Brasil com outros países) e Ricardo Carneiro, diretor do Centro de Estudos de Conjuntura Política e Econômica (Cecon) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Folha Imagem
País precisa de 43 bilhões de dólares para quitar contas, não tem, e o governo se endivida cada vez mais no exterior
O governo vende títulos públicos sujeitos a taxas de juros cada vez mais altas para obter dólares com o lucro vindo do mercado
arrocho nos gastos e investimentos públicos, com conseqüente redução da qualidade dos serviços públicos, e juros escorchantes.
JUROS, A ISCA Num círculo vicioso, o governo obriga-se a vender títulos
A CONTABILIDADE DO ROMBO Quanto o Brasil precisa para pagar suas contas até dezembro Itens Valores (em US$ bilhões) a – Dívida de curto prazo 20,2 b – Investimento em ações e títulos 20,9 c – Demais investimento em ações 35,5 d – Amortizações da dívida (junho a dezembro deste ano) 23,4 e – Compromissos de curto prazo (a+b+c+d) 100,0 f – Investimento estrangeiro direto no Brasil 9,0 g – Superávit externo (em conta corrente) 0,07 h – Necessidade potencial de dólares (e-f-g) 90,9 i – Reservas líquidas 22,2 j – Reservas totais 45,5 k – Déficit de recursos (h-j) 45,4 Fonte: Banco Central/Comissão de Valores Mobiliários (CVM) Elaboração: Prates, Daniela e Carneiro, Ricardo (Cecon/Unicamp)
QUEM PAGA Até 2000, segundo os dois economistas, o setor privado respondia por 55% da dívida externa total, o equivalente a algo ao redor de 130 bilhões de dólares. A dívida externa do setor público somava aproximadamente 107 bilhões de dólares, 45% do total. No final do primeiro trimestre de 2004, enquanto a dívida do setor privado encolheu 40,7% em relação a 2000, reduzindo sua participação para 36% do total, o endividamento do governo cresceu 27%, para 136 bilhões de dólares, ou 64% do total. Ocorreu, no período, o que os economistas chamam de “socialização das perdas” provocadas pelo endividamento externo. Mais claramente, as empresas privadas tiraram o corpo fora e deixaram a conta da dívida para o contribuinte, que a vem pagando sob a forma de
Esses dólares quase sempre não são suficientes para pagar todas as despesas externas. Por isso, o Brasil necessita de investimentos, empréstimos e financiamentos internacionais. E, aqui, a conta se complica ainda mais, tornando evidente a situação vulnerável da economia e sua dependência em relação aos dólares trazidos por investidores/especuladores e bancos internacionais. Somados, a dívida externa de curto prazo, que vence até dezembro de 2004; os dólares investidos em ações e fundos de investimento, que podem sair do país a qualquer momento; mais as prestações da dívida a vencer entre junho e dezembro próximo representam um compromisso total de quase 100 bilhões de dólares (quase metade da dívida externa total) nas contas de Daniela e Carneiro. Numa situação de crise, supondo
A “SOCIALIZAÇÃO” DA DÍVIDA EXTERNA Endividamento das empresas recua e cresce no setor público, valores em US$ bilhões
PREJUÍZOS GERAIS O risco de faltar dólar para pagar despesas essenciais existe e deriva das políticas adotadas no país a partir de 1994, que privilegiaram o escancaramento da economia a importações, injetando novo fôlego na dívida externa e lançando o país a um novo ciclo de endividamento externo que hoje ajuda a estrangular a economia. Na ponta do lápis, os dois professores do Instituto de Economia da Unicamp comprovam que o nível atual das reservas em dólares é insuficiente para fazer frente a todos os compromissos assumidos no exterior, mesmo com exportações recordes. E mostram, ainda, que o setor público passou a assumir a maior parcela da dívida externa brasileira a partir de 2001, já que o setor privado simplesmente saiu de campo e deixou para o governo praticamente toda a obrigação de atrair dólares para pagar as contas do país, endividando-se crescentemente.
públicos, a juros cada vez mais elevados, para levantar recursos no mercado e comprar dólares de empresas exportadoras. Os dólares obtidos dessa forma são utilizados para honrar juros e amortizar (pagar as prestações) a dívida externa.
Variação (2004/2000) – Dívida privada -40,7%
Dívida pública +27,0%
Dívida externa total 10,0%
250 112 112 Dívida externa total
112 112
200
112
112
112
112
112
112
112
2002
2003
2004 (mar)
112
Dívida privada
150
112
112
112
112 112
100
112
112
112
Dívida pública
50
1998
Fonte: Banco Central
1999
2000
112
2001
Pressões sobre petróleo brasileiro Luiz Antonio dos Santos do Rio de Janeiro (RJ) As pressões para que a exploração das reservas de petróleo seja privatizada continuam partindo de origens diversas. Fernando Siqueira, diretor de Comunicação da Associação de Engenheiros da Petrobras (Aepet), afirma que, recentemente, durante debate sobre o assunto na Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), uma de suas perguntas foi censurada e ficou sem resposta. Siqueira adverte que a decisão do Ministério das Minas e Energia (MME), em agosto de 2003, de que a Petrobras devolvesse à Agência Nacional do Petróleo (ANP) parte do bloco B-60, provavelmente tenha sido tomada com base em números irreais. Siqueira, no dia 8 de junho, e o delegado da Aepet em Juiz de Fora (MG), Murilo Marcato, foram recebidos pelo secretário-executivo do MME, Maurício Tolmasquim, que mostrou um gráfico segundo o qual a auto-suficiência do país em petróleo ocorreria em 2008, mas em
2010 o Brasil estaria dependendo outra vez do produto importado. A fonte do gráfico era a ANP. Siqueira ressalvou que no bloco B-60 há 6,6 bilhões de barris. Isto garante a auto-suficiência já em 2006 e excedentes por até 10 anos. O gráfico no qual Tolmasquim se baseava era igual ao que a transnacional Halliburton utiliza em favor das licitações. Pouco tempo depois, durante sessão de debates no Clube de Engenharia (CE), um dos atuais diretores da ANP, John Forman, alegou desconhecer o tal gráfico. Entretanto um ex-executivo da Petrobras, que agora trabalha na ANP, declarou que o gráfico fora elaborado dentro da Petrobras. No encontro na Firjan, os únicos pronunciamentos foram os de três estrangeiros favoráveis à realização da 6ª rodada de licitações da ANP, marcada para o mês que vem. Estiveram defronte ao prédio da Firjan sindicalistas, integrantes do MST e outras entidades. Por outro lado, o presidente da Aepet, Heitor Pereira, enviou esta semana carta aos prefeitos que
recebem os royalties (direitos de exploração) do petróleo, alertando que, “no mundo inteiro, onde existe produção em águas profundas, as transnacionais conseguiram eliminar os royalties alegando risco de investimentos elevados. Portanto, o leilão de áreas produtoras, se adquiridas por empresas estrangeiras, acarreta a suspensão dos royalties como aconteceu no Mar do Norte (Inglaterra e Noruega), Mar da China, Golfo do México e Índia”. A carta afirma que a Lei do Petróleo, ao conceder a propriedade do petróleo à empresa que o produzir, permite a esta exportá-lo, mesmo que o abastecimento nacional seja comprometido: “A nossa tese é que o petróleo brasileiro tem que ser consumido no Brasil, não podendo ser exportado, sob pena de nos transformarem em importadores quando os preços chegarem a 100 dólares por barril, como previsto por especialistas”. Pereira lembra que a Petrobras tem capacidade de investimento, permitindo royalties crescentes.
que os investidores decidam zarpar para outras praias, como aconteceu em 1995, 1997, 1998, 2000, 2001 e 2002, apenas para citar os exemplos mais recentes, o país estaria em maus lençóis. Descontados os investimentos internacionais diretos (ou seja, destinados à compra de empresas brasileiras, à instalação de novas empresas, ou à aquisição de máquinas e equipamentos, com conseqüente expansão da capacidade de produção aqui dentro) e o saldo em transações correntes (exportações menos importações e despesas com juros, remessas de lucros e dividendos e viagens internacionais, entre outras), ainda restaria uma despesa de praticamente 90 bilhões de dólares. Mas, em caixa (isto é, as reservas), só há 45,5 bilhões de dólares disponíveis, pouco mais da metade daquela conta. Mesmo estes dólares não podem ser livremente utilizados, já que 23,3 bilhões de dólares se referem aos recursos emprestados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que terão de ser pagos ao Fundo. As chamadas reservas externas líquidas (que excluem os dólares emprestados pelo FMI) somam modestos 22,2 bilhões de dólares, o que amplia o rombo externo para 68 bilhões de dólares (um terço da dívida total). “Este é um exercício que revela como estamos vulneráveis no curto prazo. Situação que decorre, em grande parte, da pequena acumulação de reservas em 2003”, comentam os economistas.
BC cria novos focos de incerteza O que os economistas Ricardo Carneiro e Daniela Prates criticam, aqui, é a visão míope demonstrada pelo Banco Central (BC), que deixou escapar a chance de recomprar dívidas e atrair dólares para as reservas, a custos relativamente mais baixos, ao longo do ano passado. Neste momento, o BC segue uma política exatamente inversa, criando novos focos de instabilidade na área externa. No final de junho, a instituição emitiu 750 milhões de dólares em títulos, vendidos no mercado internacional, com prazo de apenas cinco anos (diante de até 30 anos, em operações anteriores) e juros de 5,75% ao ano, mais a variação da Libor – taxa básica de juros cobrada nas transações entre bancos no mercado londrino.
SEM CONTROLE A Libor é uma taxa variável, que sobe ou desce ao sabor dos humores do mercado financeiro mundial. O Brasil não emitia títulos com juros flutuantes (variáveis) desde 1994, exatamente porque não se desejava ampliar os níveis de incerteza externa, evitando que os gastos com a dívida externa variassem de acordo com a onda do momento no mercado de crédito internacional. Com juros fixos, o país pode planejar os pagamentos externos, porque sabe quanto vai gastar a cada ano. O Brasil não se beneficia mesmo com eventuais quedas dos juros internacionais, mas também não será penalizado quando os juros subirem. Detalhe final: a venda dos títulos foi realizada às vésperas da alta dos juros nos Estados Unidos, decidida por seu banco central (Federal Reserve – FED) no dia 30 de junho, e intermediada por dois dos maiores bancos de investimento do mundo, ambos com sede nos EUA e com presença constante nas operações internacionais do Brasil e de suas empresas – Goldman Sachs e Merrill Lynch. (LVF)
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NACIONAL ENTREVISTA
Contra a barbárie, o socialismo
O PT, hoje partido “da ordem”, não tem um projeto para os dilemas do século 21, diz o sociólogo Ricardo Antunes Por Miguel Enrique Stédile e Pedro Benevides de Porto Alegre (RS)
A
s transformações do capitalismo nos últimos 20 anos levaram o mundo à beira da barbárie, avalia o sociólogo Ricardo Antunes, e cabe à esquerda resgatar um projeto socialista, capaz de responder aos dilemas do século 21. Crítico da gestão petista, Antunes não esconde sua frustração: “O governo Lula tenta ganhar as classes dominantes para o seu projeto e ainda não percebeu que ele foi ganho pelas classes dominantes para o projeto dela”, afirma. Ele concedeu esta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, quando participou de palestra promovida pelo movimento Attac, em Porto Alegre. Brasil de Fato – Qual a sua avaliação dos primeiros 18 meses do governo Lula? Ricardo Antunes – É muito pífia. É um governo que tem sido marcado muito mais pela continuidade em relação à era Fernando Henrique, do que por descontinuidade. Nós esperávamos que o governo Lula pudesse, pelo menos, iniciar o desmonte do neoliberalismo no Brasil. Este era o desafio: começar a desmontar a política econômica perversa, fundada no arrocho salarial, desmontar a política econômica baseada no receituário neoliberal do consenso de Washington, a política agrária, totalmente voltada para os interesses do latifúndio. Esperávamos que começasse a desmontar esta tragédia brasileira, que tem sua vértebra fundamental na política econômica, que foi desenvolvida especialmente depois do golpe de 64, intensificada no governo Collor com nova feição, já claramente neoliberal, racionalizada por Fernando Henrique. O superávit é maior, o arrocho fiscal mais intenso, a renda média do trabalhador vem caindo, o desemprego aumentou, e o país perdeu uma oportunidade histórica de derrotar o neoliberalismo.
Lula optou por ficar de bem com deus e o diabo BF – E quais as repercussões desse fiasco? Antunes – É importante lembrar que quando o Lula foi eleito, em 2002, nós estávamos, na América Latina, numa grande onda de derrota do neoliberalismo. O Chávez na Venezuela, o Gutierrez no Equador, o Lula, as rebeliões da Argentina desde 2001, na Bolívia, a guerra civil na Colômbia, a resistência heróica de Cuba. A tragédia, digo com tristeza, é que o governo Lula revitalizou o neoliberalismo no Brasil e na América Latina. Ao reconquistar a confiança do capital financeiro internacional, o governo Lula acabou sendo o paladino do neoliberalismo no país. E a “esquerda”, quando assume as bandeiras neoliberais, não tem limites. BF – Mas não há nada de positivo no governo do PT? Antunes – O Lula vai entrar na história por desmontar a previdência pública, privatizar, financeirizar e permitir que a Previdência vire fonte de especulação. Na política ambiental, todos imaginávamos que iria tomar medidas contra os transgênicos. Qual era a posição do PT em relação à Alca? O Lula tinha de um lado o Chávez, Fidel, o Kirchner, que nunca foi de esquerda. Mas ele optou por estar de bem com deus e com o diabo.
faz o que a direita gosta. Isso tem acontecido na França de Mitterrand, na Alemanha de Schröeder, em Portugal de Mario Soares. E na América Latina. Agora, a conquista mais exitosa do neoliberalismo foi o governo Lula.
Quem é
Titular do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Ricardo Antunes é autor, entre outros, de Adeus ao Trabalho? (Cortez/Unicamp), O Novo Sindicalismo no Brasil (Pontes), A Rebeldia do Trabalho (Unicamp) e O Avesso do Trabalho (Editora Expressão Popular).
Em política externa, a posição do Lula é insuficiente. Na questão agrária, no que, efetivamente, o governo Lula se diferenciou do Fernando Henrique? Numa postura mais agressiva com o latifúndio? Não. Sem falar no escândalo Waldomiro, que demonstrou que havia corrupção no governo, no núcleo do poder. O que é inaceitável. Dizem que os sistemas de informação estão o tempo todo no pé do MST, dos movimentos sociais, para saber os riscos que o governo corre. Por que estes sistemas de informação não foram eficazes para perceber a corrupção no coração do governo? BF – Não há como apoiar o governo para que dê uma guinada? Antunes – O governo Lula foi eleito com 53 milhões de votos. Naquele momento, com apoio e a onda antineoliberal, estava mais fortalecido, era a hora de tomar uma posição mais crítica. Agora que o governo está num processo de erosão, perdendo apoio, quem vai respaldá-lo num momento de crise? O último episódio absolutamente lamentável é a questão do salário-mínimo. Foi vexaminoso, o Lula usar os mesmos argumentos da direita para dizer que não poderia aumentar o mínimo. Para o Dieese, o mínimo deveria ser de R$ 1.400. Ninguém está querendo um aumento desse, mas é inaceitável que a direita tenha propugnado um salário-mínimo maior e a “esquerda brasileira” seja responsabilizada pelo arrocho. BF – Como explicar que um partido, ou um governante, de origem de esquerda, implemente uma política neoliberal? Antunes – São vários fatores, num quadro bastante complexo. Primeiro, nos últimos 20 anos, o mundo viveu transformações muito profundas. O capitalismo mudou a forma de acumulação, os mecanismos de valorização do capital. No plano internacional, resumidamente, além da crise do capitalismo, em 1973, tivemos o advento do neoliberalismo em 1979-80, e intensa reorganização produtiva dos capitais nesse período. Mais: houve um significativo avanço da direita, que ganhou a guerra ideológica ao dizer que o fim do leste europeu e da União Soviética era o fim do socialismo, tese com a qual não concordo. A URSS e o leste europeu não conseguiram criar o que se pudesse chamar de um sistema socialista, mas com o fim da URSS, outros países socialistas desapareceram. Houve outras ocorrências cruciais, como a social-democratização da esquerda tradicional e a neoliberalização da socialdemocracia. BF – Qual o reflexo desses acontecimentos no Brasil? Antunes – No Brasil, tudo isto aconteceu pesadamente em uma década, na de 90. Vitória de Collor; pesada reestruturação produtiva; privatização de todo
o setor produtivo estatal; financeirização da economia; precarização do trabalho. A classe trabalhadora brasileira foi posta de pernas para o ar. Foi solapada pela base. Basta dizer que até os anos 80, 20% da classe trabalhadora estava na informalidade e, hoje, os índices de informalidade chegam a 60%. Não é que a classe trabalhadora tenha acabado, mas foi brutalmente atingida, fragmentada, pulverizada, precarizada, terceirizada, desempregada etc, etc..
A classe trabalhadora foi solapada BF – Mas como o PT pode mudar tanto? Antunes – O PT nasce em 80, numa década de lutas sociais. Na época, nasceram também a CUT, o MST. Mas quando o PT chega às eleições em 1989, numa engenharia nefasta das classes dominantes, o Lula não ganha. Pouco a pouco, o PT teve que conviver com a neoliberalização, a privatização, a reestruturação da base produtiva – tudo isso mexeu nas suas bases sociais e ele teve que se posicionar como um partido apto para vencer as eleições. Ao fazer isto, foi se distanciando das lutas sociais. Resultado: o PT se tornou mais moderado, mais institucional. Perde em 1994, de novo. Modera ainda mais a sua política. Perde em 1998, e, em 2002, não é mais o mesmo – é um Partido dos Trabalhadores desvertebrado. O seu núcleo dominante não tem mais nenhum vínculo com o socialismo. O Marx diria que foi a conversão do PT num “partido da ordem”, ainda que a “esquerda da ordem”, diferente de uma esquerda “contra a ordem”. BF – E como é esse PT “da ordem”? Antunes – Qual o novo ideário do grupo que é dono do PT? A expulsão da Luciana Genro, da
Heloísa Helena, mostra que é um partido de caciques da pesada, e quem não age conforme o esquema é sumariamente expulso. Logo um PT que, no início, o que tinha de mais bonito talvez fosse o respeito às diferenças. Havia uma convivência intensa e ao mesmo tempo fraterna. Isso dava vida ao PT. Quando o PT chega ao poder, qual é o projeto? É uma espécie de capitalismo popular. O PT, hoje, é um defensor do sistema financeiro, que está batendo palmas, que nunca disse um não ao Lula. Na outra ponta, o sindicalismo de negócio. Por exemplo, os fundos de pensão cobrem estes dois setores. As camadas sindicais que se locupletam com os recursos dos trabalhadores investindo no grande mundo dos negócios financeiros. Evidentemente, a entidade sindical que administra fundos de pensão, ou ela pensa no direito de seus trabalhadores, ou ela pensa como é que vai aplicar recursos para ganhar melhor nos fundos de ações. Não há compatibilidade entre estes dois campos. Este é o desenho do PT, hoje. Tudo dentro do receituário neoliberal, porque atende às finanças e a um setor importante da burocracia sindical que chega ao Estado. Para os mais pobres, para os miseráveis, se faz políticas focalizadas. Onde existe uma “pobreza insuportável”, tenta-se minimizá-la. Isto não é diferente do que o Banco Mundial indica.
Certa esquerda, no poder, agrada muito a direita BF – Em outras palavras, o PT traiu as suas origens? Antunes – Quando alguns dizem que “o PT traiu”, não é bem isso, é algo mais complexo. É um conjunto de interesses que vem fazendo com que uma tese seja defendida e ela é, em parte, verdadeira, tristemente: certa esquerda quando chega ao poder,
BF – Quais os caminhos que a esquerda brasileira terá de construir para superar esta situação? Antunes – O primeiro desafio da esquerda brasileira é um desafio da esquerda mundial. Temos dito que um outro mundo é possível. Mas temos que dizer que um outro mundo, socialista, é possível. Não podemos pensar num outro mundo que não seja uma alternativa à barbárie porque já estamos à beira da barbárie: a precarização do trabalho, a destruição ambiental, o Bush jogando bomba onde quer, o trabalho escravo, o trabalho infantil – isto é a barbárie. O primeiro desafio é fazer o contrário do que o PT está fazendo. Não é “desideologizar-se”, não é “despolitizarse”, mas resgatar uma bandeira política e ideológica. Temos que resgatar o socialismo, mas não o socialismo do século 20. Temos que pensar o que é ser socialista no século 21. Nós não temos resposta, mas poderíamos buscar a ajuda num autor do século 21, Marx, porque nos ensinou a pensar uma sociedade cujo sistema social não fosse voltado para a destruição da humanidade, mas para uma vida dotada de sentido para esta humanidade. Nós temos que pensar isto, voltados para o século 21. BF – E o que mais? Antunes – Nós temos que pensar qual é o desafio do socialismo e, no caso brasileiro, quais as suas particularidades. Por exemplo, o que demonstra a barbárie brasileira? Um governo de esquerda teria, primeiro, que resgatar uma política que não seja voltada para a integração de um Brasil subordinado num mundo globalizado. Não nos interessa ser um país subordinado, incentivador do agronegócio para exportar produtos primários deteriorados pelos transgênicos, sem que a gente tenha ciência aqui dentro, sem que tenha autonomia. Interessa ao Brasil ter o agronegócio ou ter a cooperativização e coletivização da nossa grande propriedade rural? Nós temos que incentivar a dimensão pública do Estado ou ser a favor da privatização do Estado? BF – Não há nada a fazer no Parlamento? Antunes – Num outro plano, acho que o século 20 nos mostrou que a esquerda que forma partido e que vai lutar no Parlamento para mudar o país, acaba sendo engolfada no Parlamento e vira o que Florestan Fernandes chamava de “calda esquerda do parlamento”. E Florestan disse, certa vez, que ninguém passa impune pelo Parlamento porque aquilo é uma máquina. Temos que pensar numa esquerda que seja capaz de retomar as lutas sociais. É assustador um salário-mínimo de pouco mais de 80 dólares ser aprovado e a CUT não falar nada. Temos que fortalecer os nossos movimentos sociais para que a luta social possa gerar formas de organização popular capazes de recomeçar. E não pode ser nem burocrática, muito menos institucionalizada. Ou um partido retoma o papel de organizador das lutas sociais, de base, e sai da engrenagem parlamentar, ou daqui a 10 anos, nós que nos rebelamos contra esta coisa poderemos estar fazendo o mesmo.
Ano 2 • número 73 • De 22 a 28 de julho de 2004 – 9
AMÉRICA LATINA
Brasileiros manifestam apoio a Chávez
Miraflores
SEGUNDO CADERNO
Enquanto Bush pressiona, personalidades manifestam solidariedade a presidente, às vésperas do referendo revogatório Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)
F
altando menos de um mês para o referendo revogatório do mandato do presidente Hugo Chávez, dia 15 de agosto, o governo venezuelano tem recebido apoio de personalidades de todo o mundo. No dia 18, Chávez acolheu um manifesto, assinado por 69 intelectuais, artistas e personalidades brasileiras. O documento traz o título “Se eu fosse venezuelano, votaria em Hugo Chávez”. O presidente agradeceu o apoio e afirmou que “a Venezuela é o epicentro das transformações que estão acontecendo no continente”. O manifesto foi elaborado durante o encontro da Via Campesina, realizado em junho, em São Paulo. Foi entregue a Chávez por dom Tomás Balduíno, presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), pelo escritor Fernando Morais e pelo pastor Ariovaldo Ramos. Entre as personalidades que assinam o documento estão o compositor Chico Buarque, o economista Celso Furtado, o arquiteto Oscar Niemeyer, os governadores Roberto Requião (PMDB-PR) e Ronaldo Lessa (PSB-AL) e os conselheiros da República Aldo Lins e Silva e Almino Affonso. João Pedro Stedile, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o professor Antonio Cândido e os escritores João Ubaldo Ribeiro e Leonardo Boff também subscrevem o manifesto. No documento, os brasileiros manifestam sua solidariedade à luta de Chávez e do povo venezuelano, pelo direito de decidir seu destino.
A iniciativa faz parte de uma série de atos de apoio à Venezuela realizados no Brasil. Na semana do plebiscito, um grupo de “notáveis” deve acompanhar a votação. Também está prevista uma caravana formada por estudantes de São Paulo, em apoio ao presidente. Personalidades de vários países também manifestaram apoio a Chávez. Entre eles estão o historiador Eric Hobsbawm, o Prêmio Nobel da Paz Adolfo Perez Esquível, os políticos europeus Tony Benn, Alain Krivine, Fausto Bertinotti e Jean Pierre Chevenement e o lingüista estadunidense Noam Chomsky. O cantor franco-espanhol Manu Chao, o escritor uruguaio Eduardo Galeano, o escritor e jornalista britânico Richard Gott e o cineasta e
A solidariedade internacional ao governo Chávez é motivada principalmente pelo exercício de sua autodeterminação
escritor anglo-paquistanês Tariq Ali também já expressaram solidariedade a Chávez.
PRESSÃO DOS EUA Os Estados Unidos voltaram a pressionar, indiretamente, o governo Hugo Chávez. Dia 20, o presidente estadunidense George W. Bush aproveitou a presença do presidente chileno Ricardo Lagos
na Casa Branca para dizer que o referendo na Venezuela “deve ser levado de maneira honesta e transparente”. A declaração de Bush fez com que o jornal El Universal, de Caracas, se esgotasse rapidamente nas bancas do bairro Altamira, onde se concentra grande parte da oposição a Chávez. O jornaleiro Pedro Gutierrez, acostumado à mo-
Se eu fosse venezuelano, votaria em Hugo Chávez Os brasileiros que assinam este manifesto querem expressar sua solidariedade à luta que vêm livrando o presidente Hugo Chávez e o povo venezuelano pelo direito de decidir seu destino. Ao mesmo tempo, denunciam a manipulação dos fatos, orquestrada por grandes monopólios de comunicação, para mostrar como tirano um governante que cumpre à risca a lei e a Constituição. Hugo Chávez foi o vencedor de eleições democráticas, em dezembro de 1998. Cumprindo o que prometera em campanha, desde então vem realizando profundas transformações no sistema político, econômico e social de
um país há séculos dominado por oligarquias. Levar a cabo essas mudanças transformou o presidente Chávez em alvo de uma guerra sem tréguas, movida por minorias políticas e econômicas da Venezuela, com o apoio declarado de grandes corporações empresariais e financeiras do exterior. Somos testemunhas de seu compromisso com a defesa dos interesses populares e a determinação de aplicar a Constituição de 1999, construída pelo mais amplo processo democrático. A nova Carta venezuelana prevê o dispositivo constitucional do referendo revogatório, marcado para o próximo dia 15, instrumento inédito em
nosso continente, ao qual poucos governantes teriam a coragem de se submeter, como fez o presidente Hugo Chávez. A democracia foi reforçada, e agora os mesmos setores que já recorreram ao golpe, à sabotagem, ao locaute e à mentira para tentar derrotar o presidente Chávez vêem-se obrigados a aceitar os marcos da luta institucional. Estamos certos de que, no dia 15 de agosto, o povo venezuelano será vitorioso e construirá uma pátria livre e justa, a pátria com que sonhou Simón Bolívar. Por tudo isso, estamos aqui para reafirmar: no dia 15 de agosto, se fôssemos venezuelanos, votaríamos em Hugo Chávez.
vimentação política da vizinhança, comentou: “Bush não tem credibilidade alguma para fazer esse comentário”. Bush rompeu a cortina de silêncio que tinha se imposto. Para se preservar, nos últimos meses, as críticas à Venezuela estavam sendo feitas pelos secretários de Estado e ministros estadunidenses. Na sua declaração do dia 20, arriscou: “O governo venezuelano, para sua credibilidade, deve receber observadores e não deve interferir no processo. Dessa maneira os venezuelanos poderão expressar sua opinião, sem represálias”. A declaração de Bush endossa uma manobra, já revelada, dos meios de comunicação venezuelanos, de tentar envolver o governo em uma suposta intervenção no processo eleitoral. A resposta de Chávez aos opositores tem sido clara. O governo garante que acatará os resultados do Conselho Nacional Eleitoral e tem expressado que garantirá um resultado limpo. “Nenhum líder da oposição garantiu até agora que respeitará o árbitro”, disse o presidente venezuelano. “Na Venezuela ganhará quem mais tiver votos”, assegurou o ministro de Relações Exteriores, Arnaldo Jesús Perez, em resposta a Bush.
Mercosul cede mais à União Européia As negociações entre União Européia e Mercosul estão se tornando cada vez mais um risco para um projeto brasileiro de desenvolvimento autônomo. Os governos dos países envolvidos estipularam outubro como prazo final para o acerto de um acordo de livre comércio entre os blocos comerciais. Nesse mês, terminará o atual mandato dos comissários europeus responsáveis pela negociação. Se, até lá, não houver consenso, é provável acontecer um retrocesso nas discussões. Setores conservadores do governo brasileiro e grupos empresariais ligados, principalmente, ao agronegócio, pressionam para que o acordo seja concluído rápido. Com as dificuldades atuais em se negociar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), aqueles grupos vêem na negociação com a União Européia uma oportunidade imediata de ampliar exportações ao velho mundo.
SOBERANIA POR BANANA A Confederação Nacional da Agricultura (CNA), por exemplo, prevê que as exportações do agronegócio vão aumentar em 2,5 bilhões de dólares com a assinatura do acordo. Lucros garantidos, inclusive, para ministros do governo, como Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento), proprietário da Sadia, e Roberto Rodrigues (Agricultura), fazendeiro e ex-presidente
à definição de cotas para o comércio agrícola. A tão propalada discussão sobre redução de subsídios agrícolas está descartada. Em troca, a União Européia quer livre participação para suas empresas em qualquer processo licitatório no Brasil. Isso impediria, por exemplo, uma prefeitura de privilegiar pequenos agricultores locais na compra dos alimentos da merenda escolar. Os europeus querem também implementar regras rigorosas de propriedade intelectual para proteger suas empresas. Se o Brasil aceitar acordos nesse setor, poderá comprometer políticas como a dos medicamentos genéricos ou, então, dificultar acesso dos produtores nacionais a incorporação de tecnologias.
Marcello Casal Jr/ABr
Jorge Pereira Filho da Redação
MAIS EXIGÊNCIAS Na reunião de Cúpula de chefes de Estado do Mercosul, a tendência de entreguismo na fala de Kirchner: crítica à cautela brasileira
da Associação Brasileira de Agribusiness (Abag). Como se não bastasse a apologia ao livre comércio feita pelos representantes do agronegócio, o presidente argentino, Néstor Kirchner, aumentou a polêmica ainda mais ao criticar, durante a Cúpula dos Chefes de Estado do Mercosul, países que resistiam a abrir seu setor de serviços aos europeus. Era uma clara referência à posição do Itamaraty, mais cauteloso nas negociações. Fato é que a mídia comercial divulgou, dia 19, que os negociado-
res sul-americanos ampliavam suas ofertas à União Européia, em troca de maior abertura para o agronegócio. O Mercosul faria concessões nas áreas de serviços, investimentos e compras governamentais – como querem os europeus. Na prática, estaria rifando áreas estratégicas de um projeto de desenvolvimento nacional em troca da ampliação das vendas de cachos de bananas ou sacos de soja. A Rede Brasileira de Integração dos Povos (Rebrip) divulgou um estudo avaliando o que está em jogo nas discussões com os euro-
peus. “As negociações são muito parecidas com as da Alca e da Organização Mundial do Comércio (OMC) e refletem em parte o modelo de liberalização hegemônico implementado desde o início dos anos 90”, diz o documento. Detalhe: oficialmente, o governo não revela o conteúdo das propostas em pauta. A organização afirma que os europeus já reconheceram, em várias ocasições, que não podem oferecer nada além do que poderiam negociar no âmbito da OMC. As ofertas estão restritas à redução de tarifas e
Uma das principais exigências da União Européia, diz a Rebrip, é a respeito do capítulo de investimento, no qual os comissários do velho mundo querem aumentar garantias para seus investidores. “Os últimos 15 anos de liberalização intensa no Mercosul tornaram Argentina, Uruguai e Paraguai muito abertos aos investimentos estrangeiros e no Brasil a legislação defensiva é apenas potencial”, aponta o estudo. Segundo a organização, um acerto na questão de investimentos poderia “ser nefasto do ponto de vista de políticas nacionais de desenvolvimento, além do esvaziamento da legislação nacional”.
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AMÉRICA LATINA BOLÍVIA
Referendo do gás sofre boicote de 40%
O
resultado parcial do referendo sobre a reestatização das empresas de gás e de petróleo da Bolívia mostrou uma clara divisão na sociedade do país que tem a segunda maior reserva de gás natural da América do Sul, depois da Venezuela. De um lado, estima-se que 40% dos cidadãos, mesmo sendo obrigados a votar, boicotaram a consulta, como forma de protesto contra o processo. Pesquisas de boca de urna entre os que registraram sua opinião, no entanto, apontam para uma vitória expressiva do presidente Carlos Mesa, pela manutenção da privatização, realizada em 1997. As cinco perguntas contidas na cédula do referendo teriam apresentado percentual de “sim” superior a 50%, chegando em alguns casos a 90% de aprovação. O resultado do plebiscito é reflexo também da divisão da esquerda local. Depois de derrubar Gonzalo Sánchez de Lozada, em 2003, com um levante popular, o movimento social boliviano aceitou que seu vice, Carlos Mesa, assumisse, sob o compromisso de realizar um plebiscito oficial para definir se os bolivianos queriam reestatizar as empresas privatizadas. Lozada havia sido deposto depois de anunciar um plano de exportar o gás para os Estados Unidos, por meio de um porto no Chile. Mas nem tudo saiu como o exigido. Durante toda a campanha do referendo, Mesa divulgou que estava fora de cogitação a revisão dos 78 contratos firmados com empresas estrangeiras cuja duração é de vinte anos. Aceitou, apenas, colocar sob consulta popular perguntas que, na prática, pouco alteravam a política nacional para o setor. Evo Morales, derrotado nas eleições presidenciais de 2002 por uma estreita margem de votos e líder do Movimento ao Socialismo (MAS), defendeu que a população respondesse “sim” às primeiras três perguntas e “não” às duas últimas. Sua avaliação é que esse resultado
Fotos: CMI Bolívia
da Redação
Victor R. Caivano/AP/AE
A divisão da esquerda favorece o presidente Carlos Mesa, que defendia a estatização das empresas
O QUE DIZ O REFERENDO 1 - Deve ser anulada a lei de hidrocarbonetos que dá o controle do gás a empresas estrangeiras? 2 - O Estado deve recuperar os hidrocarbonetos na superfície, onde é fixado o preço para a venda para o exterior e são controlados os volumes da exportação, em função do pagamento de tributos? 3 - A empresa petroleira Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) deve ser ampliada? 4 - O presidente Carlos Mesa deve ter carta branca para negociar uma saída em direção ao mar? 5 - O gás deve ser usado para a industrialização do país?
Lucia Quispe de Aguilar vota em El Alto, Bolívia, em referendo que decidirá o futuro das reservas de gás natural do país
poderia respaldar uma nova mobilização popular pela reestatização do gás.
DESACATO CIVIL Já os movimentos indígenas e camponeses convocaram um “desacato civil” ao referendo. Para as organizações de base, as prolixas e confusas perguntas não contemplavam a possibilidade de reestatizar a exploração do gás e, por isso, o referendo não teria validade. O tom das divergências na esquerda foi marcado pela expulsão
de Morales da Central Operária Boliviana (COB), liderada pelo dirigente aimará Felipe Quispe. Operários e ex-mineiros acusam Morales de trair o movimento social ao montar sua estratégia visando apenas o próximo pleito eleitoral, quando terá mais chances de sagrar-se vencedor. O MAS, por outro lado, assumiu a posição de Morales e colocou sua militância nas ruas para viabilizar a realização do referendo, enquanto a população mais identificada com o COB se esforçava para impedi-lo.
Enfraquecido pela cisão, o movimento social boliviano não conseguiu repetir a mesma façanha de 2003 e saiu derrotado. Nem impediu a realização do referendo nem conseguiu emplacar suas principais demandas. Carlos Mesa, por sua vez, tinha um forte argumento para os bolivianos comparecerem às urnas: de ameaças de multas em dinheiro até a proibição de obter passaportes. Com o resultado das bocas de urnas, o presidente sentiu-se fortalecido a ponto de já ter anunciado que enviará em breve um projeto de
lei para o Congresso com o objetivo de definir uma política nacional para o gás. A pesquisa boca de urna apontou que a maioria dos bolivianos concordou em aumentar de 18% para 50% os impostos sobre a exportação do gás. Cerca de 90% apóiam a reconstituição da Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), estatal hoje desmontada. Os bolivianos também aprovam a industrialização do gás em território local e a sua utilização como recurso estratégico.
AMÉRICA CENTRAL
Sandinistas lembram insurreição na Nicarágua
Este mês, o povo nicaraguense lembra a tomada de poder por parte do grupo guerrilheiro Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), em 25 de julho de 1979. Derrubada a ditadura da família Somoza, que contava com o apoio explícito dos conservadores de Washignton, a Nicarágua se tornou o segundo país da América Central a destituir um governo patrocinado pelos estadunidenses em plena Guerra Fria. Duas décadas antes, o povo cubano havia derrubado Fulgêncio Batista e implantado um governo popular na ilha. A luta dos sandinistas durou uma década de guerra de guerrilhas e conflitos ferozes. Os Estados Unidos financiavam a oposição com o dinheiro da venda de armamentos para o Irã. Os guerrilheiros contavam com amplo apoio da população urbana e rural, revoltada contra o despotismo e a pobreza de seu país. A FSLN era, na verdade, uma ampla aliança contra Somoza e dialogava com diversos espectros da sociedade nicaragüense, incluvise setores do empresariado descontentes com o regime ditatorial. A riqueza da família de Somoza, há quase meio século no poder, contrastava com a pobreza dos centroamericanos. Também estavam com a FSLN escritores, setores da Igreja Católica, intelectuais, médicos, ad-
vogados, entre outros. O adjetivo “sandinista” é uma homenagem a Augusto César Sandino, guerrilheiro que nos anos 30 havia lutado contra a intervenção estadunidense no território nicaragüense.
BLOQUEIO SÓLIDO Quando chegou ao poder, a FSLN adotou uma estratégia diferente da de Cuba, que se caracterizou por três eixos: não-alinhamento, economia mista e pluralismo político. Mas a primeira política
logo teve de ser revista, pois seu principal parceiro comercial – os Estados Unidos – promoveu um sólido bloqueio para asfixiar o país. A Nicarágua acabou tendo de buscar apoio no bloco soviético. A política de economia mista consistia em manter a administração privada das empresas, embora submetida a um rigoroso controle estatal. Propriedade estatal coexistia com a privada dentro de parâmetros definidos pela FSLN. Aos poucos, no entanto, foi crescente o
descontentamento do empresariado, que via frustrada sua perspectiva de resultados mais ambiciosos. Quanto à liberdade política, houve acusações de ambos os lados. Os dirigentes eram acusados por “autoritarismo e verticalismo”, enquanto a direita aproveitava para se organizar em um bloco contra a revolução. Como resultado, nas eleições de 1990 o grupo dos sandinistas deixava o poder, depois de uma gestão desgastada e viciada pela prática eleitoral.
Mas essas não foram as marcas da revolução social. Os maiores feitos da FSLN continuam sendo lembrados, agora, nos 25 anos da tomada de poder. O índice de analfabetismo caiu de 53% para 12% da população. Foram distribuídas mais de 2 milhões de hectares de terra a camponeses e construídas casas para cerca de 90 mil famílias. As principais doenças de alto índice de mortalidade, como febre amarela, foram sensivelmente reduzidas. (Com agências)
Fórum busca alternativas de vida e integração da Redação Enquanto os representantes do México e da América Central avançam na implementação de projetos macroeconômicos, centenas de indígenas, camponeses, ambientalistas e comunicadores populares e defensores dos direitos humanos se reuniram em San Salvador, no 5º Forum Centroamericano dos Povos, para buscar alternativas de vida e de integração. Mais de 700 organizações sociais do México, Guatemala, Honduras, Nicarágua e Costa Rica participaram do encontro, entre 19 e 21 de julho, com o intuito de criar ações conjuntas de resistência ao Plano Puebla Panamá (PPP), à
Divulgação
da Redação
Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e ao Tratado de Livre Comércio América Central-Estados Unidos. Ao contrário do que disse o representante mexicano do PPP, Herbert Taylor, ao anunciar que o plano não tem oposição, dezenas de organizações debateram temas como militarização e construção da democracia na América Central; a
privatização dos serviços públicos, o sindicalismo e os direitos trabalhistas, a soberania alimentar. Antes do Fórum, organizações de mulheres, jovens, camponeses e indígenas tiveram encontros setoriais, em que debateram suas agendas específicas. “Devemos fortalecer nosso movimento para enfrentar a globalização neoliberal”, disse Guadalupe Erazo, diri-
gente da organização salvadorenha Bloco Agropecuário. Alfredo Chén, dirigente da guatemalteca Coordenadoria Nacional de Organizações Camponesas, explicou que “na Guatemala nos acusam de ser invasores de terras, mas o que acontece é que defendemos nosso direito à vida e ao trabalho. Por isso temos 80 áreas ocupadas e lutamos por uma reforma agrária integral”. William Martínez, coordenador do Bloco Popular Juvenil salvadorenho, disse que “em nosso país a maioria da população tem menos de 30 anos”. Para ele, os jovens sofrem os efeitos desse tipo de tratados porque “criam desemprego e nos obrigam a emigrar”. (Alai, www.alainet.org)
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INTERNACIONAL PALESTINA
ONU condena muro de Israel
da Redação
A
Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) determinou, dia 20, que Israel cumpra com a obrigação de paralisar imediatamente as obras de construção do muro que o premiê Ariel Sharon está levantando no território palestino. A decisão inclui as obras ilegais realizadas na Jerusalém Oriental e nos seus arredores. A ONU quer que Israel destrua a estrutura já levantada nas áreas palestinas. Os Estados Unidos e Israel ficaram praticamente isolados na votação da Assembléia Geral. Enquanto 150 países condenaram o muro israelense, apenas quatro nações se mantiveram fiéis à aliança entre o George W. Bush e Ariel Sharon: Austrália, Ilhas Marshall, Micronésia e Palau. EUA e Israel só não ficaram completamente isolados porque pressionaram países vulneráveis e dependentes do Pacífico. Tradicionais aliados dos EUA, como Canadá, Uruguai e El Salvador, se abstiveram da votação, mas também não ratificaram a posição sionista.
João Alexandre Peschanski
Em assembléia das Nações Unidos, 150 países defendem direitos dos palestinos e isolam George W. Bush e Ariel Sharon
REPARAÇÃO DE DANOS A decisão da Assembléia Geral – órgão mais representantivo da ONU – se sustenta em uma opinião consultiva emitida pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) de Haya. A instituição avaliou que a construção do muro infringe leis do direito internacional e considerou que a potência invasora – Israel – seja obrigada a reparar os danos e prejuízos causados, além de solicitar aos países que não avalizem a postura israelense. A Assembléia Geral determinou, ainda, que a Secretaria Geral da ONU faça um registro dos danos e prejuízos causados a todas pessoas físicas e jurídicas afetadas. Os países decidiram também que devem voltar a se reunir para avaliar a aplicação da resolução que tem como objetivo colocar fim às arbitrariedades impostas por Israel à Palestina.
COMPLACÊNCIA Os europeus, no entanto, mostraram-se mais complacentes com a aliança Bush-Sharon. A Holanda, que preside atualmente a União Européia, paralisou por diversas vezes a Assembléia Geral para modificar a linguagem do texto final da resolução. O objetivo era substituir palavras como “exige” por “pede”, entre outras. Também foi incorporado na introdução da declaração da CIJ a recomendação de que tanto Israel quanto a Palestina devem observar escrupulosamente as regras do direito internacional humanitário.
CONTRA O TERRORISMO Já Israel e Estados Unidos afirmam que o muro, cuja construção começou em 2002, foi uma ótima barreira contra o terrorismo, cujas atividades caíram em 90%, segundo o diplomata. Mas o Tribunal advertiu que o direito reconhecido no artigo 51 da Carta da ONU limita a autodefesa ao caso de ataque de “um Estado contra outro”. Catorze dos 15 juízes votaram a favor da sentença, adotada após três meses de deliberações. O único juiz que votou contra foi Thomas Buergenthal, dos Estados Unidos. Entretanto, Washington alertou que vários juízes divulgaram opiniões em separado em desacordo com alguns aspectos da sentença. O magistrado holandês Pieter Kooijmans, por exemplo, observou que o Tribunal não levou em conta as resoluções do Conselho de Segurança condenatórias do terrorismo internacional. Israel, de fato, afirma que o muro tem como objetivo se defender de ataques do terrorismo
Ao que parece, nada deterá a construção do que ainda falta para completar quase 700 quilômetros do muro que impede o exercício da autodeterminação pelos palestinos
“internacional”, e não de outro Estado. Tampouco a juíza britânica Rosalyn Higgins compartilha a posição majoritária sobre a autodefesa. De todo modo, a sentença não se refere apenas a esse ponto. Também condena violações do governo israelense contra direitos civis, políticos e econômicos internacionalmente reconhecidos e consagrados na Carta da ONU, várias resoluções do Conselho de Segurança e a Quarta Convenção de Genebra, aprovada em 1949. A sentença não é vinculante, pois se trata, oficialmente, de uma “opinião consultiva” dada pelo tribunal atendendo solicitação da Assembléia Geral da ONU. De todo modo, enfraquece política, diplomática e moralmente a posição de Israel e
dos Estados Unidos sobre a paz no Oriente Médio.
ANEXAÇÃO DE FATO Antes da decisão do tribunal, a Suprema Corte de Israel havia emitido uma sentença que corrigia o traçado do muro ao norte de Jerusalém, que deixava muitos palestinos entre a construção e a fronteira anterior a 1967. Muitos outros ficaram sem acesso aos seus locais de trabalho em Jerusalém. Mas nada deterá, ao que parece, a construção do muro de 684 quilômetros de comprimento ao redor da Cisjordânia, dos quais restam apenas 193. Israel garante que sua finalidade é impedir a entrada de terroristas suicidas, e que já teve êxito nesse objetivo. O presidente do Tribunal Internacional
de Justiça, o chinês Shi Jiuyong, disse que obra “seria equivalente a uma anexação de fato” de áreas de território ocupado por Israel desde a guerra de 1967. Além disso, “a construção, junto com outras medidas tomadas anteriormente, impediria severamente o exercício pelo povo palestino de seu direito à autodeterminação”, acrescentou. O tribunal concluiu que “a construção do muro por parte de Israel, a potência ocupante, no território palestino ocupado, inclusive dentro e ao redor de Jerusalém oriental (...) é contrário ao direito internacional. Israel está obrigado a terminar com suas violações do direito internacional e a deter as obras de construção do muro (...) e de desmantelar sua estrutura”, diz a sentença. Além
disso, Israel “deve reparar todos os prejuízos causados pela construção do muro em território palestino ocupado, inclusive dentro e ao redor de Jerusalém oriental”. Para o tribunal, “Israel não pode se amparar no direito à autodefesa ou ao estado de necessidade para diluir a injustiça da construção do muro”. A ilegalidade das obras deriva da Carta da ONU e dos “princípios de proibição de ameaça ou uso da força e da ilegalidade de qualquer aquisição territorial por esses meios, como se reflete no direito internacional consuetudinário”. A sentença também cita o direito à autodeterminação dos povos, reconhecido pela Carta da ONU e reafirmado pela resolução 2.625 do Conselho de Segurança. (IPS/Prensa Latina)
AFEGANISTÃO
Democracia ou apenas miragem?
Wilson Sobrinho de Porto Alegre (RS) O sistema de democracia delivery que Washington alardeia ter em mãos parece cada vez mais enferrujado e decadente. No Afeganistão, quase três anos depois da invasão militar que tirou o Talibã do poder, a prometida eleição livre ainda é uma miragem que escapa cada vez que se aproxima. Com as promessas de junho e setembro riscadas do calendário eleitoral, autoridades afegãs marcaram as eleições presidenciais para 9 de outubro. O pleito parlamentar, que originalmente deveria ocorrer junto com o presidencial, foi jogado para abril de 2005. Uma das justificativas para o atraso são problemas burocráticos em relação ao registro de partidos, eleitores e outros problemas logísticos. Mesmo que seja verdade, isso não apaga uma certeza: o atraso nas eleições reflete a falta de segurança que confina o presidente Hamid Karzai a Cabul, garantido por 6,5 mil soldados da Otan e agentes de segurança privados. O fator Iraque, que mantém o Afeganistão como refém das necessidades de Bagdá, certamente influencia. Afinal, são 140 mil soldados estadunidenses no Iraque e não mais de 20 mil no Afeganistão, cuja dedicação maior é caçar remanescentes da Al-Qaeda. Já o “policiamento” do país foi
colocado nas mãos dos senhores da guerra, líderes tribais de pouca confiança. Karzai admitiu ao jornal The New York Times que a maior ameaça ao país são essas milícias armadas. Segundo o jornal, de 60 mil integrantes desses grupos, apenas 10 mil teriam entregue as armas. E o ritmo vem “diminuindo ao invés de acelerar”, disse a reportagem do Times. “A frustração que temos nesse país
é que o progresso às vezes é parado pelas milícias”, reclamou Karzai. O registro de eleitores e a garantia de voto livre são outros problemas. A influência dos líderes tribais armados poderia acabar com a legitimidade das eleições, principalmente as parlamentares. Recentemente, a fraqueza do Estado afegão mostrou-se de forma trágica: uma funcionária que cadastrava novos eleitores no inte-
rior do país acabou morta, atingida pela explosão de uma mina terrestre. Em outro exemplo mínimo do que pode ocorrer até a data das eleições, caso problemas básicos não sejam resolvidos, 17 afegãos teriam sido mortos apenas por estar portando títulos eleitorais. Segundo agências internacionais, membros do Talibã estariam por trás dessas mortes. (Portal Porto Alegre, www.portalportoalegre.com.br)
AIDS
Conferência reclama generosidade Moyiga Nduru de Bancoc (Tailândia)
A maior conferência mundial sobre Aids terminou dia 16, na capital da Tailândia, com pedidos de fundos adicionais para combater a pandemia. O pedido teve destacados porta-vozes como o ex-presidente sul-africano Nelson Mandela e a líder do Partido do Congresso (no poder) da Índia, Sonia Gandhi. Mandela exortou os doadores a aumentar suas contribuições para a luta contra o HIV/Aids. “Isso se aplica aos governos, ao setor privado e também a todos os cidadãos do mundo. Nenhuma contribuição é pequena para marcar uma diferença”, afirmou Mandela na cerimônia
de encerramento da 15ª Conferência Internacional sobre Aids. Na África vivem cerca de 70% dos 38 milhões de portadores do HIV, segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Onusida).
APOIO DA COMUNIDADE Na Índia, com um bilhão de habitantes, são cinco milhões os portadores do vírus, e o combate à Aids consome 10% do orçamento nacional para a saúde pública. “Procuramos a compreensão e o apoio da comunidade internacional. Muitas agências multilaterais são generosas, bem como algumas fundações filantrópicas”, afirmou Sonia Gandhi. A Fundação Bill e
Melinda Gates anunciou uma contribuição de 50 milhões de dólares para o Fundo Mundial de Luta contra a Aids, a Tuberculose e a Malária, aumentando sua ajuda total para 150 milhões de dólares. O último relatório da Onusida exortou para que haja uma concentração de esforços de prevenção da doença na Ásia, “para prevenir uma catástrofe total”. Somente no ano passado, foram diagnosticados 1,1 milhão de novos casos de HIV nesse continente, mais do que em qualquer outro. Além disso, a agência da ONU advertiu que a África Subsaariana e a Europa Oriental continuam sendo as regiões mais afetadas pela pandemia de Aids. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
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INTERNACIONAL ÁFRICA
CPLP muda chefia em São Tomé e Príncipe Marilene Felinto da Redação
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os dias 26 e 27 de julho, realiza-se em São Tomé e Príncipe, arquipélago da costa oeste da África, a 5ª Conferência de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Na ocasião, a presidência ou secretaria-executiva da CPLP passa do Brasil para Cabo Verde. A Conferência, que ocorre de dois em dois anos, deve reunir as autoridades máximas dos oito países-membros: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Esses países formam um universo de mais de 200 milhões de falantes de português. No dia 15 de junho, o ministro dos Negócios Estrangeiros de São Tomé e Príncipe, embaixador Ovídio Pequeno, esteve em Brasília, onde, em audiência com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, oficializou o convite à participação deste no evento. Segundo a assessoria de imprensa do Ministério das Relações Exteriores informou ao Brasil de Fato, a viagem de Lula a São Tomé (capital são-tomense) está confirmada até o momento. A idéia é que o presidente aproveite a oportunidade para viajar também ao Gabão e a Cabo Verde (nos dias 28 e 29), países não contemplados com a visita que Lula fez à África no ano passado. A CPLP foi criada em 1996, como um foro multilateral para o aprofundamento da amizade e da cooperação entre os países de língua portuguesa. O último secretário-executivo do órgão foi o embaixador brasileiro João Augusto de Médicis, que faleceu em abril, antes de concluir seu mandato iniciado em agosto de 2002 e que terminaria em setembro próximo. Em seu lugar, assumiu interinamente o secretrário-executivo adjunto Zeferino Martins, de Moçambique. A nomeação do novo titular de Cabo Verde vai ocorrer na 5ª Conferência. O secretariado executivo é o principal órgão executivo do orga-
Paulo Lima
Líderes dos países de língua portuguesa, inclusive o presidente Lula, participarão da 5ª Conferência do órgão
Mercado em São Tomé, capital são-tomense, onde ocorrerá a 5ª Conferência da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP)
nismo, sendo seu secretário eleito por um mandato de dois anos. A sede da CPLP fica em Lisboa (Portugal). Em São Tomé e Príncipe, um dos países mais pobres da África, os preparativos para a Conferência recebem tratamento de festa pela comunidade política e empresarial. O jornal on line Téla Nón confirmava, no início de julho, que “é raro o arquipélago de São Tomé e Príncipe acolher eventos de uma tal envergadura, razão pela qual se explica que ações estejam a ser empreendidas no terreno, aos mais variados níveis, e que haja o apelo para a mobilização do cidadão comum em prol do êxito da festa”. Para realizar o evento, o país pediu ajuda financeira e material
a Taiwan (China), Nigéria, Angola e outros países membros da CPLP. A promoção de projetos culturais e de difusão da língua portuguesa não é a única função da CPLP, embora tenha sido o motor de sua criação. A cooperação se dá em várias áreas, na político-diplomática, para reforçar a presença dos países-membros no cenário internacional, na educação, saúde, ciência e tecnologia, defesa, agricultura e justiça, entre outras. Em junho, foi criado oficialmente o Conselho Empresarial, uma idéia lançada há quatro anos, que dá à organização uma dimensão econômica e gera oportunidades de negócios. O Conselho deverá funcionar como uma câmara de
comércio e indústria que una os empresários dos oito países. Em maio, realizou-se em Fortaleza (Ceará) a 5ª Conferência de Ministros da Educação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que teve como temas centrais de discussão o acordo ortográfico e a dinamização do Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP). O governo brasileiro mobilizou esforços para que todos os países (além de Brasil, Portugal e Cabo Verde) ratificassem o acordo ortográfico, assinado em Lisboa, em dezembro de 1990. Outro assunto em pauta foi o ensino superior, de que resultou a “Declaração de Fortaleza”, documento que prevê a implementação, no
prazo de dez anos, de um espaço de ensino superior no âmbito da CPLP, permitindo mobilidade aos estudantes e reconhecimento dos cursos universitários em qualquer um dos oito países. A Conferência também abriu novas perspectivas para o ensino à distância, formação de professores e valorização da literatura no ensino da língua portuguesa. A educação nos países de língua portuguesa ainda está longe de atingir as metas de Dacar, encontro mundial realizado em abril de 2000, cujas metas propõem alcançar, até 2015, uma melhoria de 50% nos níveis de alfabetização de adultos e assegurar que todas as crianças tenham acesso à educação primária, gratuita e de boa qualidade.
Portugueses torturaram negros até os anos 70 Roberto Correa Wilson de Buenos Aires (Argentina) As ilhas de São Tomé e do Príncipe, do mesmo modo como a ilha de Goree, no Senegal, foram utilizadas como entreposto de escravos, de onde eram embarcados até as plantações da América. A situação geográfica do arquipélago tornava-o um dos pontos mais avançados do extremo ocidental do continente africano; e essa foi a razão do triste papel que coube às ilhas desempenhar nesse período histórico determinado pelas ambições dos mercadores que praticavam o tráfico de escravos. Milhares de homens e mulheres de pele negra eram apinhados nas masmorras, acorrentados às paredes e submetidos às mais cruéis torturas e humilhações já praticadas contra seres humanos, enquanto esperavam o traslado forçado. Muito se tem escrito sobre a vergonha que significou o tráfico de escravos e o dano causado às populações africanas, por arrancar delas seus jovens mais vigorosos, alterando seu modo de vida e cortando-lhes as raízes ao enviá-los para uma terra estranha, com a qual não tinham vínculo nenhum. O tráfico de escravos despovoou vastos territórios de Angola, Congo e Guiné. Desses países, os escravos eram levados ao centro de embarque de São Tomé e Príncipe. Esse comércio ocorreu do
século 16 ao 19. Os portugueses haviam chegado a São Tomé e Príncipe em 1471. Os abusos dos colonizadores lusitanos levou a atos de heroísmo por parte dos habitantes, entre os quais se destacaram a rebelião de Joan Gato, em 1530, e a de Amador Vieira, posteriormente, que foi proclamado rei pela maioria dos grupos que sofriam a opressão da escravidão colonial portuguesa. Vieira chegou a mobilizar cerca de 5 mil escravos, conseguiu libertar a maioria do território nacional e manteve o governo e as tropas coloniais cercadas na capital, São Tomé, na ilha de mesmo nome. Traído e feito prisioneiro, foi assassinado em 4 de janeiro de 1596, depois de padecer de grande sofrimento, resultado das torturas a que foi submetido. A escassez de recursos para enfrentar a potência bélica dos conquistadores levou à recaída em mãos portuguesas. Durante longos séculos continuou a exploração colonial, redobrada diante do exemplo dado pelas rebeliões dos africanos.
ÂNSIA DE LIBERDADE Nas demais colônias de Portugal no continente – Moçambique, Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde – crescia a ânsia por independência, o que servia de estímulo aos habitantes do arquipélago de São Tomé e Príncipe. Mas o regime fascista que imperava em Lisboa tinha urgência em aplicar punições exemplares, para amedrontar os africanos e
manter seu domínio colonial. Em fevereiro de 1953, um simples protesto dos nativos da ilha de São Tomé serviu de pretexto para a sangrenta resposta das autoridades coloniais, que assassinaram, em menos de uma semana, mais de mil africanos indefesos no povoado de Bateba, por ordem do então governador Carlos Gorgullo. A matança deu origem à primeira tomada de consciência coletiva, e estabeleceu a necessidade de uma ação coordenada entre os habitantes nativos e os trabalhadores levados às plantações. Os são-tomenses compreenderam que as autoridades portuguesas funcionavam com o relógio histórico atrasado, e que era necessário organizarem-se para alcançar os objetivos libertários – a escravidão no século 20 estava fora de moda, tanto quanto o domínio e a exploração colonial. Em setembro de 1960, foi constituído o Comitê de Libertação de São Tomé e Príncipe (CLSTP), em Conacri, capital da República da Guiné. No final do mesmo ano, o Comitê instalou-se em Libreville, capital do Gabão.
NAÇÕES UNIDAS No final de 1962, discutiu-se pela primeira vez a situação de São Tomé e Príncipe na 17ª Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, a despeito das manobras e do descontentamento das autoridades de Portugal.
Um ano mais tarde, em maio de 1963, os patriotras são-tomenses participaram da fundação da Organização da Unidade Africana (OUA), em Addis Abeba, capital da Etiópia. Essa organização tinha entre seus objetivos a libertação do continente do colonialismo. A maior parte do tempo, os militantes revolucionários tiveram que realizar suas atividades libertárias em circunstâncias extremamente difíceis. No início da década de 1970, o arquipélago foi transformado em um imenso campo de concentração, para onde eram levados os presos políticos de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Os prisioneiros ficavam sob a guarda de mais de 3 mil soldados portugueses e 700 colonos, previamente treinados no manejo de armas. Os detidos eram submetidos cotidianamente a torturas físicas e mentais monstruosas. Em meados de 1972, realizou-se a Conferência de Santa Isabel (Guiné-Equatorial), na qual o CLSTP transformou-se em Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP). O Comitê de Libertação da OUA, reunido em Acra, Gana, em 1972, reconheceu o MLSTP.
INDEPENDÊNCIA A derrocada do regime fascista de Portugal, em abril de 1974, pela ação do Movimento dos Capitães, propiciou a abertura de conversações, frustradas a certa altura pela tendência reacionária característica
das novas autoridades portuguesas. Sua visão estreita do desenvolvimento histórico não lhes permitia compreender que na segunda metade do século 20 não era possível manter um império colonial. Mais uma vez funcionava com atraso o relógio histórico dos portugueses. Mas, no final, impôs-se o bom senso, apoiado por não poucas pressões internacionais. Em 12 de julho de 1975, o arquipélago de São Tomé e Príncipe, formado também pelas ilhas Pedras Tinhosas e Rolas, surgiu como nação independente, depois da última rodada de conversações entre a metrópole e os patriotas são-tomenses realizada em Argel (Argélia). Haviam se passado exatamente 504 anos desde que os primeiros lusitanos desembarcaram na costa das ilhas. Um rol de crimes, abusos e humilhações foi apagado nesse dia. Joan Gato, Amador Vieira e os milhares de escravos que os seguiram na luta antiescravista e anticolonial dariam-se por satisfeitos. O passado de São Tomé e Príncipe como entreposto de escravos e ponto de partida para o embarque ficaria como uma mancha na história. E as rebeliões antiescravistas como um exemplo de que o homem, não importa a cor da pele, ama a liberdade e não está disposto a ser submetido eternamente à escravidão. (Argenpress www.argenpress.info)
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AMBIENTE SEGURANÇA ALIMENTAR
Tratado internacional preserva sementes da Redação
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esde o dia 29 de junho, está vigorando o Tratado Internacional sobre Recursos Genéticos Vegetais para a Agricultura e Alimentação, também conhecido como Tratado Internacional sobre Sementes. O objetivo do tratado é garantir que seja preservada a biodiversidade agrícola, cultivada e manejada há milênios por agricultores, e que os benefícios gerados a partir de seu uso sustentável sejam repartidos eqüitativamente. Até agora, 55 países assinaram o acordo, entre eles o Brasil. Um dos destaques do tratado é o reconhecimento da contribuição passada, presente e futura dada por agricultores e comunidades indígenas de todo o mundo, em particular Protocolo de Cartagena – Acordo internacional, de 2000, adotado pelos membros da Convenção sobre Diversidade Biológica. Confere às nações o poder de definir suas próprias normas de regulamentação, transferência, manejo e uso de organismos geneticamente modificados. Germoplasma – Soma dos materiais hereditários de uma espécie, podendo ser desde os cultivares primitivos até produtos de mutações genéticas.
daqueles que vivem nos centros de origem e diversidade dos cultivos, para a conservação, melhora e disponibilidade desses recursos. O acordo prevê a criação de um sistema multilateral de acesso a recursos genéticos vegetais para uma lista de 35 gêneros de cultivos alimentares e 29 forrageiros. Os países que ratificarem o acordo estabelecerão um comitê gestor, incumbido de definir as condições de acesso e de divisão de benefícios, assim como um acordo sobre a transferência de materiais. Além dos bancos nacionais de germoplasma, estarão também vinculados ao tratado os bancos do Centro Internacional de Pesquisa Agrícola (CGIAR, na sigla em inglês), que possuem mais de 600 mil registros.
INTERESSES EM JOGO O tratado, feito em harmonia com a Convenção da Biodiversidade e de acordo com o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, bate de frente com acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC) referentes a direitos de propriedade intelectual relacionados ao mercado (acordo Trips, na sigla em inglês). No entanto, o texto do acordo apresenta ambigüidades,
INGLATERRA
Deputados querem novas regras para OGMs da Redação
A Auditoria do Conselho Ambiental da Câmara dos Deputados do Reino Unido alertou o governo da Inglaterra de que não poderá permitir o cultivo de organismos geneticamente modificados (OGMs) até a definição de regras concretas. “Há uma grande confusão nas posições do governo e da União Européia (UE) em relação aos plantios transgênicos, especialmente no que se refere a limites de contaminação de plantios não-transgênicos e, por conseqüência, sobre a responsabilização de culpados”, diz o relatório. O organismo parlamentar também recomendou que qualquer futura norma para o cultivo de transgênicos respeite o requerimento legal de que as plantações orgânicas não sofram qualquer contaminação, ao contrário dos níveis de 0,1% a 0,9% que vêm sendo discutidos. No início do ano, o governo
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Brasil e outros 54 países assinam acordo que pode preservar biodiversidade e garantir divisão justa de uso de sementes
inglês permitiu o cultivo comercial de um tipo de milho geneticamente modificado. Desde então, a Bayer CropScience da Alemanha, empresa responsável pelas sementes, desistiu de lançá-las no mercado. Em junho, vários governos da União Européia pediram regras mais concretas para regular os organismos geneticamente modificados, e encorajaram o crescimento da agricultura orgânica. Até agora, poucos governos da UE incluíram em suas leis sobre coexistência a responsabilização financeira em casos de contaminação de cultivos. As leis devem estar baseadas nas orientações promulgadas pela Comissão Européia. Essas orientações se referem, por exemplo, a distâncias de isolamento entre os cultivos, a áreas-tampão e a barreiras polínicas como cercasvivas, assim como recomenda aos agricultores que plantem variedades com diferentes períodos de floração. (Com agências)
As sementes são manejadas há milênios por agricultores. O tratado quer garantir a continuidade desse uso sustentável
pois não define claramente se os recursos genéticos incluídos no sistema multilateral estão ou não sujeitos ao patenteamento. A questão só será resolvida com a composição do comitê gestor. Os Estados Unidos, que
estavam relutantes em assinar o tratado, não só o fizeram como também já pretendem ratificá-lo, a fim de poder participar do comitê gestor e tentar fazer prevalecer sua visão em defesa da privatização dos recursos genéticos. Enquanto
isso não acontece, o grande risco é que as empresas corram por fora, na tentativa de se apropriar dos materiais contidos em bancos públicos de germoplasmas. (Por um Brasil Livre de Transgênicos, www.aspta.org.br)
ANÁLISE
Plebiscito dos transgênicos
Frei Sérgio Görgen “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, diz a Constituição de 1988. A decisão sobre a liberação ou não dos transgênicos no Brasil é um caso que deve ser decidido diretamente pelo povo. Afirmamos isso pois não há consenso na ciência, não há consenso no poder executivo, não há consenso mínimo no poder judiciário e há uma balbúrdia no poder legislativo federal em relação ao assunto. O que há, na verdade, é uma grande pressão de algumas transnacionais e de um grupo de latifundiários pela liberação imediata, mesmo sem estudo de segurança alimentar e de impacto ambiental, dos produtos geneticamente modificados. As colheitas transgênicas, porém, quando são transformadas em alimentos, vão para a mesa de todos. Por isso, a questão pode ser
classificada como um caso típico de grande polêmica nacional, que justifica a convocação do povo para o exercício direto do poder, pelo mecanismo constitucional do plebiscito. Um plebiscito se explicaria por três grandes razões: a relevância do tema, a amplitude do interesse público e o dissenso nas estruturas representativas da democracia. Ora, na questão dos transgênicos, os três elementos estão presentes. Com a proximidade do período de plantio da próxima safra de soja e com a indefinição do Congresso Nacional a respeito da lei de biossegurança, não cabe ao presidente Lula editar nova medida provisória sobre uma questão na qual já há provisoriedade demais. Lula não pode sofrer mais um desgaste, passando a imagem de um presidente que não se preocupa com a saúde do povo, com o meio ambiente e a soberania do país. O Senado Federal também não pode votar às pressas, em pleno período
eleitoral, um projeto com tamanha discrepância de opiniões. Cabe entrar em campo o Lula da Vila Euclides, de 1979, que ouvia os metalúrgicos e acatava as decisões das assembléias dos trabalhadores, mesmo que contrariassem os interesses dos poderosos. Desta vez, o presidente Lula precisa envolver todo o povo brasileiro na decisão sobre o uso futuro dessa nova fronteira da ciência. Neste caso, cabe solicitar a retirada do PL da Biossegurança, em discussão no Senado Federal, e apoiar o decreto legislativo do deputado Fernando Ferro (PT-PE), que tramita na Câmara dos Deputados, propondo a realização do plebiscito dos transgênicos. Assim, a decisão final sobre o uso e a forma do uso da transgenia para a nação brasileira caberá diretamente ao povo, por ser uma decisão de caráter estratégico para o país e que incidirá sobre o dia-a-dia de todos os seus cidadãos. Frei Sérgio Görgen é deputado estadual (PT-RS)
CIÊNCIA
Pesquisa no lugar da soja e do desmatamento
São 25 mil quilômetros da Floresta Amazônica derrubados a cada ano e pelo menos um quinto da reserva natural já foi destruído. Esse cálculo foi apresentado pelo físico Ennio Candotti, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que na abertura da 56ª reunião anual da entidade criticou a derrubada da floresta para a expansão do plantio da soja e da criação de gado. Segundo Candotti, a Floresta Amazônica é o grande laboratório científico da região. Ele advertiu ser necessário combater o desmatamento, descobrindo “os seus mandantes”, e não renovando créditos agrícolas. Além disso, criticou que outros países investem mais do que o Brasil na região e que falta uma política de entendimento. “Falta um projeto político. Temos mil cientistas na região da floresta. O ideal seriam dez mil”, disse, defendendo que os
de soja, em última instância, não colaboram para matar a fome da criancinha porque não contribuem para uma melhor distribuição de renda”, constatou.
Agência Brasil
da Redação
INDÍGENAS E RESISTÊNCIA
Expansão do plantio monocultor e da pecuária é feita com desmatamento. Cientistas propõem alternativa na SBPC
cientistas recebam financiamentos para suas pesquisas no mesmo volume ao destinado aos produtores de soja para o plantio da safra. A referência aos produtores de soja surgiu da comparação que Candotti fez com a necessidade por alimento e por ciência. “Certa vez,
um produtor, ao explicar o porquê da expansão agrícola, me disse que preferia cortar uma árvore do que ver uma criancinha com fome. Quando propus a ele que a gente vendesse o carro dele para matar a fome da criança, ele desconversou”, relatou.
Candotti lembrou que, há alguns anos, quando a produtividade da soja era de uma tonelada por hectare, os produtores pediam por uma variedade que rendesse mais por espaço plantado para evitar mais desmatamento. “Hoje, eles continuam desmatando. Mas os produtores
A 56ª reunião anual da SBPC, até dia 23, acontece na Universidade Federal do Mato Grosso, em Cuiabá, dedicada a discussões “dos grandes problemas do desenvolvimento científico e tecnológico nacional, as dificuldades e os grandes sucessos que alcançamos”, segundo Candotti. Participam perto de oito mil pessoas, que devem apresentar 2.466 trabalhos em 44 conferências e 71 simpósios. O tema central deste ano é “Ciência na Fronteira: Ética e Desenvolvimento”. A novidade foi o “SBPC e a Ciência Indígena”, realizado dias 19 e 21. No evento, os próprios indígenas dirigiram 80% da sua programação, ministrando conferências, coordenando mesas e apresentando trabalhos. (Com agências)
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DEBATE VENEZUELA URGENTE
Na mira do imperialismo
Altamiro Borges
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Venezuela vive dias de definição política. O referendo revogatório de 15 de agosto definirá o futuro desta nação vizinha, que realiza uma original e avançada experiência de enfrentamento ao neoliberalismo e que enfrenta, de maneira altiva, o imperialismo ianque. Mais do que isto: o resultado do embate terá profundos reflexos na América Latina. Caso vença o no, contra a revogação do legítimo mandato do presidente Hugo Chávez, a luta por soberania e justiça social ganhará novo alento no continente. Do contrário, os adoradores do deus mercado, no Brasil e alhures, insistirão que “não há alternativas” ao neoliberalismo, e que é preciso se curvar ao império do mal. Daí a urgência da nossa solidariedade internacionalista! A Venezuela é, atualmente, o maior estorvo à aplicação do destrutivo modelo neoliberal na América do Sul, a mais incômoda pedra no sapato do governo Bush. O país atravessa uma experiência que gera curiosidade e se-
duz os povos latino-americanos. Exatamente por isso, ela é a bola da vez do agressivo imperialismo estadunidense. Já a burguesia local, totalmente entrelaçada aos negócios ianques e tão saudosa do período em que saqueava as riquezas petrolíferas, é conhecida por sua postura racista e golpista. A funesta soma destes interesses de classe é que explica as violentas turbulências políticas vividas pelo país vizinho desde a acachapante vitória de Hugo Chávez na eleição presidencial de dezembro de 1998, com 56% dos votos. Esta aliança do mal já produziu uma tentativa fracassada de golpe militar, em 11 de abril de 2002; um locaute patronal de dois meses; inúmeras mortes e várias sabotagens à economia.
O lance decisivo destas forças, agora, ocorrerá no referendo de agosto. Como adverte o vice-presidente José Vicente Rangel, esta será “a terceira tentativa de golpe contra a Constituição e a democracia venezuelanas, e os sinais de alerta já se acenderam”. No seu desespero para evitar a ampliação da revolução bolivariana, a direita fascista não vacilará em utilizar os piores estratagemas – desde a mídia venal até as provocações tramadas pela CIA. Bush, com o seu cortejo de torturados, e a burguesia racista local não toleram a democracia na Venezuela! O referendo revogatório, um expediente democrático inédito na região, será o instrumento utilizado neste combate de vida ou morte. Apesar da mídia acusar o presidente Hugo Chávez de “ditador” e “autoritário”, a Constituição Bolivariana é uma das poucas que prevê a revogação dos mandatos dos governantes. O seu artigo 72 afirma que “todos os cargos e magistraturas de eleição popular são revogáveis”. Para isto, basta que 20% dos eleitores solicitem a convocação do referendo. A oligarquia, com seus recursos milionários e o uso da mídia, não conseguiu sequer garantir estas assinaturas com lisura. Menores de idade, estrangeiros e até mortos assinaram a petição. Mesmo assim, o Con-
selho Nacional Eleitoral validou o referendo. O governo Chávez conta com vários trunfos no referendo. No início de 2003, devido ao locaute patronal, o PIB havia caído 27,6% e o desemprego superou a casa dos 20,7%. Derrotados os golpistas, a previsão é de que o PIB cresça ao menos 6% em 2004 e já há sinais de queda do desemprego. Além da retomada da economia, alavancada por recursos do petróleo agora sob controle do Estado, o governo também colhe os frutos positivos dos programas nas áreas da educação (missões Robinson, Ribas e Sucre), saúde (Barrio Adentro) e reforma agrária. Por fim, cresceu a organização popular, por meio dos círculos bolivarianos, das rádios e TVs comunitárias e das cooperativas na zona rural e nas fábricas desapropriadas. Mas não se deve subestimar a força dos inimigos. É só lembrar a eleição na Nicarágua, em 1990, quando a oposição de direita, bancada pela CIA, derrotou os sandinistas após um longo período de sabotagem da economia. Na época, o Senado dos EUA doou 9 milhões de dólares aos contra. “Se compararmos a população de ambos os países, a direita venezuelana receberá cerca de 72 milhões de dólares apenas em agosto”, observa o jornalista Heinz Dieterich, para quem a derrota de Hugo Chávez “seria o fim do potencial progressista de Kirchner e Lula; criaria uma situação extremamente perigosa para Cuba e deixaria o MAS da Bolívia, as Farc da Colômbia, a Conaie do Equador e
os demais movimentos sociais sem horizonte estratégico”. Como adverte a socióloga Marta Harnecker, o futuro da região depende dos desdobramentos desta rica experiência. “Não se pode esquecer que o quarto documento de Santa Fé, que orienta a política exterior do governo Bush, ressalta que os principais inimigos dos EUA na América Latina são ‘Cuba, Venezuela e a guerrilha na Colômbia’... Em momentos como esse, em que a oposição não está só, conta com o apoio das forças políticas e midiáticas mais retrógradas, a solidariedade mundial é mais necessária que nunca”. O mesmo chamamento à solidariedade internacionalista é feito pelo presidente Hugo Chávez. Após citar as conquistas sociais da revolução bolivariana e valorizar, sobretudo, a organização popular, ele comenta: “Se fracassarmos agora, tudo se perderá e seguirão imperando as mesmas forças dominantes. Se abrirmos espaço à construção de um projeto maior de transformação do continente, isso pode significar a salvação do mundo, pois o caminho neoliberal trilhado leva à destruição total do planeta. Tenho esperança de que esta nova onda rebelde não será perdida e de que nossos filhos verão um continente diferente”. Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e organizador do livro Para entender e combater a Alca (Editora Anita Garibaldi)
Solidariedade com o povo venezuelano Beto Almeida
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ofício do jornalismo permite, muitas vezes, a proximidade com personalidades históricas, mesmo quando isso ainda não esteja suficientemente claro e comprovado para muitos. Foi nessa condição que, em setembro de 2000, pude presenciar, em Taguatinga, cidade satélite de Brasília, um homem mulato, com traços inegavelmente indígenas, gesticulação ampla e avessa ao solene, linguajar claro e direto, imagens e expressões compreensíveis para o homem simples de qualquer lugar da América Latina. Falava para um auditório hipnotizado de estudantes e professores da Universidade Católica de Brasília sobre a necessidade da integração sul-americana, integração que não deveria, segundo argumentava apaixonadamente, ser apenas comercial ou política. Deveria abranger os campos da educação, da cultura, militar, monetário, transporte, energia. Era uma integração de fato, para enfrentar a dominação imperialista dos EUA, sua rapina desenfreada, impedindo as enormes potencialidades dos países da região florescer plenamente, coordenando e unindo suas qualidades, de modo a retirar os povos dessa indecente miséria. Era o presidente da República Bolivariana da Venezuela, Hugo Chávez. Misturava com coerência idéias de Cristo, Bolívar e Che Guevara, sempre evocando seus inegáveis conteúdos de justiça, antiimperialismo e igualitarismo, mas sempre afirmando com contundência que os povos sul-americanos não podem continuar escravizados pelo sistema imperialista e pelas oligarquias nativas, suas vassalas. Havia que romper com os mecanismos de sucção de recursos da região, apontando para a
necessidade de enfrentamento da questão da dívida externa, da apresentação de uma proposta alternativa à perigosa anexação contida na idéia da Alca, e sobretudo era necessário questionar as chamadas democracias formais, aparentemente representativas, porém, de fato, rigorosamente controladas por mecanismos fora do alcance da participação popular, manipulados por esquemas de poder econômico e midiático, para fraudar o real valor do voto do povo. O auditório, em 2000, ainda não tinha uma idéia clara de quem era Hugo Chávez. Havia referências vagas, sempre tentando confundir sua liderança em um levante militar-popular entre tantos havidos na Venezuela contra o sistema de exploração neoliberal, com as quarteladas de sempre na América Latina, quase todas destinadas a manter privilégios do capital externo, das oligarquias e dos banqueiros, às custas das liberdades democráticas. Ao final um professor me confessava sua surpresa ante aquela conferência marcada por idéias inteligentes, por uma coerência política, por profundos conhecimentos sobre a situação socioeconômica da região, e destinada a convocar aos povos para uma unidade não retórica, mas capaz de produzir transformações sociais e justiça. “Um homem típico do povo, com seu cabelo ruim, mas com um discurso de estadista”, disse-me, sem esconder seu preconceito, ao que contestei: “E o que é cabelo bom?” Nesse dia entregamos a Chávez uma proposta do Sindicato de Jornalistas de Brasília para que a integração que ele sustentava fosse estendida à comunicação, já que o cerco midiático contra as idéias da Revolução Bolivariana também alcançava o Brasil, e que uma integração poderia começar
pela ação informativa organizada em todo o continente. Ele recebeu com entusiasmo e comprometeu-se a convocar um encontro de jornalistas da América Latina na Venezuela para discutir formas concretas de ação na mídia. Depois disso, veio o golpe de 11 de abril de 2002, apoiado pelos Estados Unidos, fracassado em razão da gigantesca reação popular que convocou os militares progressistas a agir em defesa da legalidade democrática e da continuidade do processo de transformações sociais. Aí, a dimensão histórica da personalidade de Chávez passa a ser acompanhada, com esperança, por vastos segmentos as massas exploradas em várias partes do mundo. Após o golpe, como todos os que passam por uma grande prova histórica, Chávez cresce. Amplia as políticas públicas na
área da reforma agrária, na alfabetização, nos projetos de saúde popular, com apoio de médicos cubanos. Desfaz os esquemas de sabotagem existentes na empresa estatal de petróleo, recupera a normalidade e a produtividade do setor, e, extirpados os núcleos oligárquicos que parasitavam a riqueza petroleira para si, passa a investir bilhões de dólares na infra-estrutura. Chávez vai dando outra cara à Venezuela, antes um país conhecido pela riqueza do petróleo e pelo elevado consumo de champanhes e cosméticos de sua elite, que mantinha a economia em níveis primários, onde até fósforos deveriam ser importados. Chávez não parou por aí: ampliou a visibilidade de suas propostas a nível internacional. Defende a formação de uma PetroSul, de um Fundo Monetário do Sul (“ por que temos que depositar nossas reservas em bancos dos EUA?”, indaga), de uma TV do Sul, para que os povos possam conhecer suas realidades, suas verdadeiras culturas e não os padrões de consumo de uma sociedade consumista e fora de seu alcance. Eis porque é tão odiado pelos mandatários
dos EUA, pelas oligarquias da Venezuela e da Colômbia. O que também explica por que os barões da mídia brasileira o pintam como um diabo, sonegando informação veraz sobre o processo bolivariano e auspiciando a sua derrota com um referendo que em suas fases iniciais foi marcado pela fraude gigantesca, na qual milhares de mortos tiveram seus votos coletados. Ao receber o Brasil de Fato para uma entrevista exclusiva, às 10 horas da noite de um sábado, em abril passado, Chávez, mostrou conhecimento da história do Brasil, falando sobre Getúlio Vargas, e do general Abreu e Lima, braço direito de Bolívar, quase um chamado aos brasileiros para ver na história uma lição atual para construir a integração. Seu discurso, sem formalidade, e com profundidade de conhecimentos da história da região, expressava eloqüente solidariedade com os povos revoltosos que se rebelam constantemente contra a desumana exploração do neoliberalismo sobre o continente. A convocação aos militares para uma outra função histórica é constante, é seu exemplo vivo. Porém, nessa personalidade já inscrita na história recente da América Latina, algo chamava atenção: a freqüente recorrida às canções revolucionárias e populares, de Ali Primera e outros, mas também um jeito de manter-se fiel às suas origens. A entrevista ocorreu em um quiosque de palha que ele pediu que construíssem nos fundos do palácio presidencial. “Eu nasci em uma casa de palha. Não me sinto bem em ambientes de luxo. Quero lembrar sempre as minhas origens”, explicou. Por tudo isso, se eu fosse venezuelano votaria em Chávez. Beto Almeida é jornalista
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA CEARÁ 47° CONGRESSO NACIONAL DOS ESTUDANTES DE AGRONOMIA De 24 de julho a 1º de agosto O tema do congresso deste ano será “Transformar a educação, a formação do agrônomo e a sociedade: a mesma luta, a mesma necessidade”. Os painéis principais debaterão a conjuntura da América Latina, a Alca, o governo Lula, a reforma universitária, e a formação profissional do agrônomo. Entre os painelistas estão Valter Pomar, Valério Arcary, José Dias Sobrinho, Valdo Cavallet e Roberto Leher. A expectativa de público é estimada em 700 pessoas. Local: Universidade Federal do Ceará, Campus do Pici, Fortaleza Mais informações: (85) 288-9700, www.feab.ufba.br, conea2004@click21.com.br LANÇAMENTO DA CARTILHA AS RELAÇÕES DE GÊNERO NO SEMI-ÁRIDO Dia 2 de agosto, 9h Na cartilha há um diagnóstico sobre o território do sertão central do Ceará. Local: Câmara Municipal, R. Tabelião Enéas, 649, Quixadá Mais informações: (85) 252-2410, esplar@esplar.org.br
ESPÍRITO SANTO 2º FESTIVAL DO BEIJU De 13 a 15 de agosto O festival pretende intensificar as articulações políticas, culturais e econômicas; promover o intercâmbio e a troca de experiência entre as 34 comunidades quilombolas dos municípios de São Mateus e Conceição da Barra. O Beiju (biju) é o tema central do encontro, que terá outras atividades culturais. A mandioca está na base alimentar das comunidades e também está voltando a ser sua principal fonte de renda, na produção coletiva.
ção. O ingresso é gratuito, mas pede-se levar 1kg de alimento não perecível ou um agasalho. Local: Av. Comendador Franco, 1341, Curitiba Mais informações: (41) 3388000, vfestival@ dellarte.com.br
SÃO PAULO 2ª CONFERÊNCIA NACIONAL EM DEFESA DO EMPREGO, DOS DIREITOS, DA REFORMA AGRÁRIA, E DO PARQUE FABRIL BRASILEIRO De 24 e 25 A conferência, organizada pela Coordenação dos Conselhos das Fábricas Ocupadas tem como objetivo discutir a situação do desemprego e do fechamento de fábricas, ferrovias e outras empresas, e o que é possível fazer para salvar os empregos e o parque fabril. Também haverá discussões sobre a vitória dos trabalhadores das fábricas ocupadas e suas reivindicações. Durante o encontro serão debatidos temas como a organização de uma caravana com pelo menos 1.000 trabalhadores ao Palácio do Planalto, para serem recebidos pelo presidente Lula, em 22 de setembro. Se até essa data as reivindicações não forem atendidas, haverá mobilizações para reforçar, ampliar e estender o Comitê Nacional de Apoio à luta das fábricas ocupadas pela estatização para salvar os 1.400 empregos; multiplicar iniciativas em direção às fábricas quebradas em todo o Brasil para ajudar os Local: Comunidade Divino Espírito Santo, BR 101, Posto dos Caminhoneiros, São Mateus Mais informações: (27) 3767-4673, 9931-0302, selma_quilombo@veloxmail.com.br
MARANHÃO 2ª Semana Cultural do Desterro 25 a 31 de julho O tradicional bairro do Desterro se prepara para realizar a sua 2ª Semana Cultural, que apresentará oficinas de arte, exposições, concurso literário e de redação, feira de comidas típicas e artesanato e competições
RIO DE JANEIRO
trabalhadores e seus sindicatos a salvar os empregos; organizar a discussão e a ação de apoio a esta luta nos sindicatos e na CUT. Local: sede da CUT nacional, R. Caetano Pinto, 575, São Paulo Mais informações: (47) 3026-9116, (48) 9963-0295, fabricasocupadas@terra.com.br esportivas, abrangendo todas as faixas de idades. Este ano, a novidade é um culto ecumênico pela paz, que será realizado em frente à Igreja do Desterro e um bate-papo com cada candidato a prefeito de São Luís. Mais informações: (98) 9609- 8139 zema@facsaoluis.br
PARANÁ SEMINÁRIO - EDUCAÇÃO EM VALORES HUMANOS POR UMA CULTURA DE PAZ Dias 24 e 25 O seminário está sendo realizado pelo Instituto Sathia Say de Educa-
SEMINÁRIO - RELAÇÕES FAMILIARES, SEXUALIDADE E RELIGIÃO De 4 a 6 de agosto Durante o encontro serão debatidos temas como sexualidade e família, pais e filhos, gerações e envelhecimento, reprodução e religião, família e religião, sexualidade e religião. Local: R. São Francisco Xavier, 524, sala 9001, bl. A, Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Mais informações: (21) 2568-0599, 2234-7343, www.clam.org.br
RIO GRANDE DO SUL 1º ENCONTRO DE JOVENS DO CONE SUL De 13 a 15 de agosto O encontro vai trabalhar cinco eixos, priorizando a importância da sindicalização na América Latina e a necessidade de integração de setores juvenis, os movimentos sociais e populares. Os eixos definidos são: educação, economia solidária, desenvolvimento rural, trabalho e sindical. Local: R. Dr. Barros Cassal, 283, Porto Alegre Mais informações: cut.rs@terra.com.br, www.cut-rs.org.br
SÃO PAULO O AUTOR NA PRAÇA LANÇAMENTO DO LIVRO STOCKADAS Dia 24, a partir das 14h O projeto “O Autor na Praça”, recebe o cartunista Paulo Stocker, com o lançamento de seu primeiro livreto autoral, Stockadas, que reúne cartuns pantomímicos de conteúdo erótico, político e surrealista e traz o prefácio do dramaturgo Mário Bortolotto. Stocker foi colaborador da revista Caros Amigos, Consumidor S/A entre outras, participou do livro coletânea Central de Tiras. Informações sobre o autor e o livro no sítio www.stockadas.com.br. Haverá a participação especial do Circo Zé Brasil e do palhaço cantor Tchutchuco com performances, além da presença do cartunista Júnior Lopes, realizando caricaturas ao vivo. Local: Espaço Plínio Marcos Feira de Artes da Praça Benedito Calixto, Pinheiros, São Paulo Mais informações: (11)3085-1502 9586-5577 - oautornapraca@ pracabeneditocalixto.com.br 11º ENCONTRO NACIONAL DA ANTEAG Dia 25 O evento, que terá como tema “Autogestão e metodologia organizacional voltada à economia solidária”, reunirá pessoas envolvidas no campo da economia solidária, como agentes públicos, instituições de fomento, universidades, organizações não-governamentais e representantes de empreendimentos populares solidários. Entre os temas que serão discutidos está “Transformações no mundo do trabalho e autogestão: depoimentos; crédito, micro crédito e finanças solidárias”. Local: R. Tamandaré, 348, São Paulo Mais informações: (11) 3313-4230
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CULTURA
De 22 a 28 de julho de 2004
LITERATURA
A história do movimento estudantil Divulgação
Débora Mota e Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro (RJ)
Divulgação
Em O Poder Jovem, o jornalista Arthur José Poerner conta a história da participação política dos estudantes brasileiros
A
Mário Augusto Jakobskind
Divulgação
caba de sair a quinta edição de O Poder Jovem – História da participação política dos estudantes brasileiros, do jornalista Arthur José Poerner. Escrito em 1968, com texto de orelha de Otto Maria Carpeaux e um prefácio – que serviu de aval – do general Pery Constant Beviláqua, o livro tornou-se leitura obrigatória, ao contar a história do movimento estudantil brasileiro. O lançamento, dia 27, é na sede da Associação Estudantes defendem a entrada do Brasil na 2ª Guerra, contra o nazismo de Hitler Brasileira de Imprensa (ABI), no Imagens que compõem o livro: congresso clandestino da UNE, em Ibiuna, SP, 1968 Rio de Janeiro. O livro, reeditado pela Booklink, mostra a participação política dos estudantes desde 1710, quando os seminaristas do Rio de Janeiro rechaçaram a invasão do corsário francês Du Clair, até 28 de março de 1968, quando o estudante secundarista Edson Luis Divulgação foi assassinado no restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro. Da pesquisa original constam fatos como a Revolta da Vacina, de 1904, em que os alunos da escola militar se rebelaram contra a obrigatoriedade de vacinação de estudantes. A quinta edição, atualizada, traz fatos recentes, como o encontro da diretoria da União Nacional dos Es- Arthur José Poerner, autor de O Poder Jovem O corpo do estudante Edson Luis, assassinado pela polícia do regime militar tudantes (UNE) com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em ou- dade do Estado do Rio de Janeiro de Antônio Houaiss. Na época, o a obra entrasse na primeira lista dos editada, em 1979, pela Civilização tubro de 2003, e a Caravana UNE (UERJ). Segundo ele, depois do editor Ênio Silveira, da Editora Ci- 20 livros proibidos no país, junto a Brasileira, e em 1995 pelo Centro pelo Brasil, encerrada em maio, em golpe, diante da repressão ao mo- vilização Brasileira, intuiu que ape- títulos de autores comoNelson Wer- de Memória da Juventude, de São Paulo. São Paulo. vimento sindical urbano e rural, o nas o texto do filólogo e ensaista não neck Sodré e Mao-Tsé-Tung. A segunda edição de O Poder Para o autor, os 26 anos que movimento estudantil viveu uma bastaria. Escolheu então para prefaRESISTÊNCIA ESTUDANTIL fase de crescimento. “A ditadura ciar a obra o general Pery Constant Jovem saiu em 1977, feita de for- separam as cinco edições retratam Arthur Poerner é escritor e jor- insistia na tese de que estudante é Beviláqua, que, apesar de combater ma clandestina pelos estudantes a resistência dos estudantes. “O nalista, ex-presidente da Fundação para estudar, assim como diziam o Comando Geral de Trabalhadores da PUC de São Paulo, tornando-se velho idealismo da juventude, que Museu da Imagem e do Som (MIS) que padre é para rezar, trabalhador (CGT), admitia a atuação do mo- um dos pivôs da invasão da uni- chamo de poder jovem, continua e do Sindicato dos Escritores do Es- para trabalhar”, lembra o jornalista, vimento estudantil. Contudo, nem versidade por militares, em ação atual. Lógico que atualmente não tado do Rio de Janeiro. Atualmente que foi preso em 1968. o aval de um militar impediu que, comandada pelo coronel Erasmo há uma ditadura política, mas a luta leciona jornalismo da UniversiA primeira edição teria prefácio com o Ato Institucional n º 5 (AI–5), Dias. Posteriormente, a obra foi re- continua.”
Escritora espanhola nega literatura de gênero Gênero é toda a humanidade. Com essa idéia na cabeça e sua obra A louca da casa na mão, a jornalista e escritora espanhola Rosa Montero foi responsável por um dos bons momentos literários da Festa Literária Internacional de Parati (Flip), cuja segunda edição foi realizada, dias 7 a 11, na cidade histórica de Parati, litoral sul do Rio de Janeiro. No encontro, Rosa contestou a apresentação de escritoras apenas como representantes da literatura de gênero. A manifestação repercutiu no público e na organização do evento, que pediu desculpas. Em entrevista ao Brasil de Fato, da qual participaram a jornalista Regina Zappa e a atriz e diretora de cinema Ana Maria Magalhães, Rosa diz por que literatura de gênero é uma ficção que não vai bem com a realidade. Brasil de Fato – Por que você é contra a idéia de literatura de gênero? Rosa Montero – Cada romance é todo um escritor. Suas leituras, sua língua , sua idade, sua classe social, sua situação física, todas essas circunstâncias compõem seu olhar ao mundo. Uma pessoa menos válida, paraplégica, por exemplo, é certo que tenha uma concepção de mundo completamente distinta, além do fato de ser homem ou mulher. O gênero sexual é um ingrediente a mais dentre os milhares que compõem cada um de nós; portanto, é
Quem é Rosa Montero, 53 anos, integrou o movimento cultural Movida Madrileña, que tomou conta da Espanha logo após a morte de Francisco Franco, em 1975. Jornalista do El País, é autora de A louca da casa, uma mistura de gêneros literários que foi escolhido pelos leitores espanhóis como o livro do ano de 2003. O título da obra é uma referência a uma expressão de Santa Teresa de Jesus, que chamava a imaginação de “a louca da casa”.
impossível objetivar um tipo de literatura só por gênero. É mais fácil que os romances de um escritor espanhol, homem, de 50 anos, nascido numa grande cidade, tenha mais a ver com meus romances do que os de uma escritora mulher, negra, sulafricana , de 80 anos, que viveu o apartheid. As coisas que nos separam são maiores do que as que nos unem. BF – Entretanto, a identificação sobre a qual você fala corre o risco de reduzir a criação a uma “literatura única”, condicionada pelo tempo e espaço. Ou não? Rosa – O ser humano é impossível de se reduzir a uma fórmula. Cada ser humano é um mundo composto de uma fórmula única, com mil influências, e dentro
BF – Você acha que existe gênero? Os chineses, por exemplo, não têm essa classificação. Rosa – Entre homens e mulheres existem diferenças físicas óbvias e, generalizando, há uma tendência a certas diferenças de comportamento. O fascinante é perguntar até que ponto essas diferenças são biológicas ou culturais . Nos estudos das atividades cerebrais, que me encantam, a maioria das mulheres tem mais desenvolvida a parte da linguagem e os homens a espacial. Mas até que ponto é biológico ou cultural? Particularmente, acho que é cultural porque há experimentos comprovados que o cérebro é maleável.
Eduardo Rossi
Maria Luiza Franco do Rio de Janeiro (RJ)
dessas o gênero sexual é só uma influência. Insisto que o gênero não influi no Ocidente. Entre nós, em nossa sociedade ocidental, é apenas um ingrediente a mais. BF – O jornalismo influenciou na sua forma de escrever? Rosa – De nenhuma forma. O jornalismo é um gênero literário. Ser diretor de um jornal, trabalhar para a rádio e para a televisão, não. Mas não há relação direta entre o jornalismo e o romance porque são gêneros opostos. Sempre digo que no jornalismo escrevemos sobre o que sabemos, perguntamos e investigamos, e na narrativa escrevemos sobre o que não sabemos. Agora, uma coisa que me deixa furiosa , e que está na moda na Espanha, é o tipo de jornalismo inventado.
Em jornalismo não se pode colocar uma única coisa que não seja verdadeira , que não tenha sido investigada. BF – Você escreve sobre mulheres? Rosa – Eu não tenho nenhum interesse em escrever sobre mulheres. Uma coisa que me deixa furiosa é quando uma escritora escreve um romance protagonizado por uma mulher e todos consideram que está falando de mulheres. Mas quando um escritor escreve um romance protagonizado por um homem, todos consideram que está falando sobre o gênero humano. Eu não quero escrever sobre mulheres, quero escrever sobre o gênero humano. Mas 51% do gênero humano são mulheres, essa é a questão.
BF – E como é fazer literatura nesse universo? Rosa – A literatura sempre aspira ser única. Todas as vozes dos escritores são buscas de uma única voz que é a sua. Nesse sentido, está sempre além do gênero. A literatura são os sonhos da humanidade, e nós sonhamos o que somos. BF – Qual é seu conselho a quem está querendo ser escritor? Rosa – O melhor conselho é não aspirar viver dos romances. Sempre digo que 99% dos romances da história da literatura foram escritos às 5h da manhã e na cozinha. Às 5h porque os escritores precisavam sair para trabalhar, e na cozinha porque não tinham dinheiro para ter uma casa com um ambiente exclusivo para escrever.