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Ano 2 • Número 74

R$ 2,00 São Paulo • De 29 de julho a 4 de agosto de 2004

Fórum reforça luta contra imperialismo E

m Quito, no Equador, as principais organizações sociais do continente se reúnem para fortalecer um projeto alternativo de sociedade. Dos dias 25 a 30 de julho, o 1º Fórum Social das Américas se torna palco da articulação dos movimentos sociais que lutam contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e os tratados de livre comércio, pelo não pagamento da dívida externa e

contra a militarização. A grande novidade do evento é a força do movimento indígena que, durante cinco dias, realizou a 2ª Cúpula Continental dos Povos Indígenas, encerrada dia 25 de julho. O encontro, com 600 representantes de 60 nações indígenas, condenou o modelo neoliberal, denunciou governos e transnacionais, e reafirmou a luta por territórios e direitos coletivos. Págs. 9 e 10

Arquivo Minga

No Equador, 1º Fórum Social das Américas e 2ª Cúpula Continental dos Povos Indígenas unem movimentos sociais

Justiça pune jornalista que denuncia grilagem Desde 1992, 15 processos foram abertos contra Lúcio Flávio Pinto, em Belém (PA). Dos 13 em andamento, oito tratam de grilagem de terras e extração e exploração irregular de madeira. Três têm base na Lei de Imprensa e são movidos pelo

grupo de comunicação Liberal e pelo prefeito petista da cidade de Belém. Outros três, pelo grande latifundiário grileiro (5 milhões de hectares) Cecílio do Rego Almeida. Quatro por dois desembargadores. Pág. 4

Soja transgênica é contaminada e aterroriza

MST ocupa e pressiona o governo gaúcho

se não bastassem as tentativas de persuasão de entidades ruralistas, sofrem ostensiva pressão da transnacional Monsanto que, em busca de royalties, altera testes de transgenia. Pág. 13

Em Quito, Equador, representantes de 700 organizações sociais protestaram contra neoliberalismo aplicado no continente

Socialismo é a melhor opção para os povos

Tadeu Vilani/Zero Hora/AE

Os agricultores gaúchos, que decidiram continuar plantando soja convencional na última safra, denunciam que suas plantações estão completamente contaminadas pelo glifosato, usado nas lavouras transgênicas. Como

Quinhentos trabalhadores semterra reocuparam fazenda no município de Coqueiros do Sul. Foi a resposta ao descumprimento de um acordo de implementação de novos assentamentos por parte dos governos federal e estadual. Em Porto Alegre, 200 famílias permanecem acampadas ao lado do Incra, há quase um mês. Pág. 3

Morte de jovem gera ameaças em favelas de SP

Educadores discutem crise do ensino O 3º Fórum Mundial de Educação encontra um cenário tenso no ensino brasileiro. Ao mesmo tempo em que movimentos grevistas agitam três grandes entidades de trabalhadores do setor, mais de 20 mil pessoas se reúnem em Porto Alegre (RS), dos dias 28 a 31 de julho, para levantar problemas mundiais, propor e refletir sobre investimentos na área. Pág. 6

O MST ocupa uma fazenda no município de Coqueiros do Sul, a 290 quilômetros de Porto Alegre (RS), dia 26 de julho

Emprego para ocupações de baixos salários

Pág. 7

Tariq Ali diz que América Latina não é laboratório

Pág. 11

Governo reforça relações com países da África

Pág. 12

Maringoni

Após a execução de uma adolescente numa favela em São Paulo, moradores da região começaram a ser ameaçados. Segundo testemunhas, a jovem teria sido morta por policiais militares. As investigações continuam, mas o delegado responsável descartou a participação da PM no caso. Pág. 5

Nunca o socialismo foi tão necessário como agora porque o capitalismo não resolveu qualquer dos problemas da humanidade. Por isso, Plínio de Arruda Sampaio, presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária, propõe a formação de uma nova internacional socialista dos povos. Ele foi um dos participantes da Conferência Internacional Dilemas da Humanidade: Diálogo entre Civilizações, realizada no Rio de Janeiro. Para os debatedores, o objetivo socialista está de pé. Muda a estratégia para alcançá-lo, já que os EUA impõem à força um modelo que dá todo poder ao capital. Pág. 8

E mais: SAÚDE – Os institutos de defesa do consumidor protestaram e até o governo federal entrou na Justiça contra o aumento nos planos de saúde. Atropelando decisão da Agência Nacional de Saúde, operadoras querem impor um reajuste ilegal. Pág. 3 AGRICULTURA – Fumicultores gaúchos protestam contra empresas da região. Durante os 30 anos em que plantaram fumo, a exploração só aumentou, levando ao endividamento e a problemas de saúde. Pág. 3 CULTURA – No cerrado goiano, uma antiga vila de garimpeiros sedia, até dia 1º de agosto, um festival cultural que resgata tradições artísticas em vias de extinção. Pág. 16


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De 29 de julho a 4 de agosto de 2004

CONSELHO POLÍTICO

NOSSA OPINIÃO

Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

O povo venezuelano está com Chávez

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

��� • Editor-chefe: Nilton Viana ���• Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Bernardete Toneto, 5555 Marilene Felinto, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu ���• Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino ���• Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles ���• Ilustradores: Agê, Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, 5555 Natália Forcat, Nathan, Novaes, Ohi ���• Editor de Arte: Valter Oliveira Silva ���• Pré Impressão: Helena Sant’Ana ���• Revisão: Dirce Helena Salles ���• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Cristina Uchôa e Dafne Melo 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: FolhaGráfica 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

“E

stou trabalhando para tirar (o presidente Hugo) Chávez do poder. A via violenta permitirá fazer isso. É a única via que temos”, afirma o ex-presidente Carlos Andrés Pérez ao diário El Nacional, edição de 25 de julho, domingo, em entrevista feita em Miami, Estados Unidos, onde vive. O apelo à violência, sempre perigoso, tem um efeito explosivo na atual conjuntura venezuelana. A oposição já tentou de tudo para tirar Chávez do Palácio Miraflores: golpe de Estado (abril de 2002), paralisação da indústria petroleira (dezembro de 2002 a janeiro de 2003), atentados terroristas (abril e maio de 2004), além da perspectiva constitucional, que será acionada dia 15 de agosto, com o referendo revogatório. Andrés Pérez é a face desesperada de uma elite impotente, destituída de estratégia e de qualquer projeto nacional. Andrés Pérez funciona como uma espécie de porta-voz da oposição e seu embaixador informal nos Estados Unidos. Ele foi responsável por um dos governos mais desmoralizados da história venezuelana. Vive no exílio, desde que sofreu impeachment, por prática de corrupção, em maio de 1993. Em 27 e 28 de fevereiro de 1989, sob o seu governo, aconteceu o Caracazo, um levante de trabalhado-

res e estudantes de Caracas contra as políticas neoliberais implantadas por seu governo. Confrontos com a polícia, o exército e a guarda nacional deixaram, oficialmente, 300 mortos, cifra que pode chegar a 3.000, segundo organizações de defesa dos direitos humanos. Também contra o seu governo, em 4 de fevereiro de 1992, Chávez liderou uma rebelião militar que fracassou. Suas declarações refletem, sobretudo, a vontade do imperialismo estadunidense de liquidar a revolução bolivariana, especialmente quando a oposição já sabe que será derrotada em 15 de agosto. E mais ainda, quando o quadro internacional se mostra favorável a Chávez, com a desmoralização de George Bush, a derrota do espanhol José Maria Aznar (que pressionava a Colômbia com o objetivo de isolar a Venezuela no quadro da Organização dos Estados Americanos) e a ampliação, em todo o mundo, do apoio da sociedade civil ao seu governo, incluindo políticos, intelectuais, artistas e personalidades públicas importantes. Mas qualquer tentativa violenta fracassará, como fracassaram todas as outras, por uma questão básica e muito simples: o povo venezuelano está com Chávez. E está com

Chávez por ter entendido e sentido que a revolução bolivariana é a sua revolução. Pela primeira vez na história, o povo venezuelano sente-se protagonista de seu próprio destino. Não é apenas “ouvido” pelo governo, nem é objeto de qualquer assistencialismo paternalista: ao contrário, é chamado a participar da direção política do país, a opinar sobre as decisões políticas mais importantes. Isso pode ser sentido nas ruas de Caracas, especialmente nos setores mais miseráveis, aqueles tradicionalmente considerados a escória. Com a revolução bolivariana, a América Latina cria uma nova possibilidade de enfrentar o imperialismo. Mas, para isso, torna-se mais do que nunca necessária a manifestação da solidariedade para com os venezuelanos. É necessário multiplicar iniciativas, nos próximos dias, para esclarecer a opinião pública brasileira sobre o que acontece na Venezuela e o que estará em jogo no dia 15 de agosto, mantendo a vigilância durante as semanas seguintes, contra qualquer sinal de golpe. Vamos fazer a nossa parte para, junto com o povo venezuelano, cantarmos o seu refrão mais popular: “Uh, ah, Chávez no se vá!”

FALA ZÉ

OHI

CARTAS DOS LEITORES O GRANDE JOGO Por analogia com o futebol, vou considerar o governo petista como uma nova e grande equipe, aquela que veio para “mudar” os rumos do atual momento do Brasil, isto é, uma competição internacional pelo troféu “Independência e Liberdade”. Porém, com a partida já iniciada, quase no final do primeiro tempo, estamos perdendo o jogo. Resta ainda todo o segundo tempo e a esperança de todos nós é que a equipe ainda tenha forças para ganhar o jogo, de virada. Infelizmente essa esperança não se concretizará. A equipe vem jogando mal, seus componentes não se entendem e os que vieram de fora não estão jogando para a equipe. É preciso romper a defesa inimiga. Finalmente, se quisermos não apenas vender o jogo mas todo o campeonato, é preciso que as regras sejam revistas e que possamos ter voz ativa, em toda e qualquer decisão. Não podemos continuar na posição de subserviência, de explorados, de oprimidos e de marginalizados. E as opções são apenas duas: deixar tudo como está ou partir para o tudo ou nada, lembrando que ninguém jamais venceu semelhante competição internacional optando por esperar ao invés de lutar. João Carlos da Luz Gomes Porto Alegre (RS) EDUCAÇÃO A educação deixa de existir no Estado do Tocantins. A única univer-

sidade federal do Estado deixou de ofertar vestibular para toda a comunidade. Cerca de dois mil estudantes deixaram de ingressar em uma universidade pública e gratuita. Baseando-se neste engodo, nós seremos a única universidade federal do país a quebrar o ciclo de entradas. E, mais grave ainda, estaremos abrindo um precedente perigoso, levando à dolorosa conclusão de que estamos nascendo com vícios inadmissíveis para uma instituição federal de ensino superior. Muito nos preocuparam os estudantes que vinham pagando cursinho pré-vestibular e outros que estão aguardando pela oportunidade. Se é verdade o que o MEC diz, que existe uma grande demanda, justa e legítima, por mais vagas no ensino superior, é preciso ter responsabilidade na hora de atender às demandas e ter compromisso com a comunidade e a instituição. É aproveitar o momento único que vivemos para reverter o quadro do ensino superior, que desde o regime militar vem crescendo via expansão das instituições privadas, com os resultados que estão aí; só não vê quem não quer. Emival Dalat Miracema (TO) SAUDAÇÕES Parabéns pelo jornal. Creio que o Brasil de Fato é uma das poucas coisas sérias que circulam hoje pelo país. Cristina Vigiano Porto Alegre (RS)

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 3038 1432 ou mande uma mensagem eletrônica para: brasildefato@teletarget.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815

CRÔNICA

Nós, os bárbaros

Luiz Ricardo Leitão A grande mídia divulgou, com destaque, a indignação de certos setores da “academia” diante dos protestos, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), contra a presença de dois deputados dos EUA em um debate acadêmico. Nas cartas aos jornais, os mais raivosos chegam a exigir “duras punições” contra os “bárbaros” que realizaram o ato. Segundo apregoam os “civilizados” colegas, a universidade deve ser um espaço “neutro”, avesso às inflexões políticas, como se pudesse estar alheia aos enormes dilemas do planeta. O mote de civilização e barbárie é uma velha idéia etnocêntrica, que rechaça ferozmente tudo o que lhe soa estranho ou perigoso. Para os gregos, o termo “bárbaro” significava “estrangeiro”. Era uma onomatopéia alusiva à linguagem ininteligível dos outros povos. Uma forma nada sutil de proclamar a plena humanidade dos gregos e de segregar as demais etnias, aptas apenas para a escravidão. Desde Roma até Washington, todos aqueles que ameaçaram os impérios foram tachados de “bárbaros”. O cubano Roberto Retamar, porém, indaga se foram esses “selvagens”

que destruíram o Império Romano, ou se eles apenas cuidaram de deflagrar a eclosão de uma nova formação econômico-social – o feudalismo – que se engendrava no seio da própria sociedade romana, já decadente e esgotada. Como diria Engels: “Somente bárbaros eram capazes de rejuvenescer um mundo senil que provinha de uma civilização moribunda”. O primeiro “civilizado” a usar esse termo em relação aos nativos do Novo Mundo foi o navegador Américo Vespúcio, logo na primeira de suas cartas, em 1504. Mais tarde, em 1845, ao escrever sobre um caudilho de sua pátria, o argentino Domingo Faustino Sarmiento consagraria o dístico de “civilização e barbárie”: o estigma pesaria como um fardo sobre os ameríndios, para os quais, na visão de Sarmiento (um apóstolo da causa liberal na América do Sul), a única solução possível seria o extermínio. Cinco séculos se passaram desde a carta de Vespúcio. Os “civilizados” continuam a promover o genocídio dos povos do Terceiro Mundo, mas querem fazer crer que os protestos contra Tio Sam seriam uma atitude “extremada”. Não escrevem uma única linha contra

os desmandos de George W. Bush no Iraque, ou de Ariel Sharon na Palestina, mas estão prontos para redigir epístolas “indignadas” contra aqueles que denunciam as aberrações da tosca “democracia” ianque, capaz de manter em Guantánamo centenas de prisioneiros afegãos sem processo legal. Nós, os bárbaros, temos o dever de desconfiar desses historiadores tão “civilizados”. No caso da UERJ, são quase todos egressos dos mesmos setores que, derrotados nas últimas eleições para a reitoria, permanecem calados acerca dos escândalos de corrupção que marcaram a instituição e que têm sido cúmplices do terrível processo de privatização neoliberal que nos assola, expresso pela crescente terceirização dos serviços na universidade e pela violenta investida das empresas privadas de seguro-saúde sobre o atendimento do nosso hospital. Os “civilizados”, é claro, pagam planos de saúde; já os bárbaros deverão penar nas filas do SUS... Luiz Ricardo Leitão é editor e escritor. Doutor em Literatura Latino-Americana pela Universidade de La Habana, é também professor adjunto da UERJ

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NACIONAL TERRA

Produtores se revoltam contra empresas Alexania Rossato de Erexim (RS)

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epois de 30 anos plantando fumo, lavradores da região norte do Rio Grande do Sul se encontram em situação de desespero. O empobrecimento das famílias se agrava a cada ano e protestos contra a exploração pelas empresas fumageiras estão se intensificando. Valdemar Scalvi, dirigente de movimentos sociais da região, conta que técnicos das empresas de tabaco sempre disseram às famílias que, plantando fumo, elas teriam uma vida melhor: “Isso nunca aconteceu e não vai acontecer, pois as empresas só querem o lucro, sem reconhecer o trabalho do camponês”, diz Scalvi. A safra de fumo, do plantio até a venda, dura em torno de um ano. Diante da dívida com a empresa, os lavradores são obrigados a renegociar os débitos com a entrega de mais arrobas de fumo no próximo ano ou pagando altos juros. Segundo Scalvi, as empresas

ditam todas as regras para a plantação, descartando técnicas populares de cultivo. “Há uns três anos, era usado o canteiro no chão. Hoje se usa o substrato, dentro das bandejas, que encarece muito a produção”, conta, revelando o argumento usado, de que as mudas no canteiro não tinham qualidade e, portanto, prejudicariam a produção. “Isso é mentira! Outra coisa que eles exigem é o cumprimento do contrato, se não produzirmos o número de pés de fumo do contrato, temos que nos responsabilizar por isso”.

PROBLEMAS DE SAÚDE No município de Rio dos Índios (RS), foram registrados protestos, como a queima de um carro de uma das empresas fumageiras. Dirigentes sociais dizem que a indignação dos produtores é tanta que, apesar de não considerarem essa a melhor forma de protesto, as ações vão continuar. “A queima do carro mostrou o grau de indignação e é conseqüência da realidade em que vivem os lavradores, que entregaram toda

a safra e ainda têm prejuízo”, afirma o fumicultor Amarildo Frares. A política das empresas fumageiras é semelhante em todo o Rio Grande do Sul. “A nossa maior reclamação é pelo preço pago ao que produzimos. A empresa só visa o lucro, não visa o bem-estar da família que está gerando este lucro, não visa a conservação do meio ambiente, não trabalha nenhuma questão social”, considera Scalvi. Ele conta que, na safra 2003/2004, alguns agricultores receberam somente de R$ 29 a R$ 34 por arroba, enquanto o valor de mercado variava de R$ 117 a R$ 120. O valor serviu apenas para pagar as dívidas. Conseqüência do contato direto com agrotóxicos, utilizados na produção de fumo, são problemas de saúde como câncer, malformação de fetos e abortos, suicídios e depressão. “Hoje vemos um agricultor entristecido, doente, sem animação em plantar. O fumo compromete o meio ambiente e a empresa não assume qualquer responsabilidade quanto a isso”, diz Frares.

Envolverde

Enganados por promessas, lavradores acumulam dívidas e iniciam onda de protestos contra política fumageira gaúcha

SAÚDE

Reajustes são vetados na Justiça Luís Brasilino da Redação

A sociedade se mobilizou e as operadoras de planos de saúde, que tentam impor um aumento abusivo a seus clientes, estão sendo derrotadas. “O excesso é tão patente que dá para perceber pela reação. Primeiro foram as entidades de defesa do consumidor e o Ministério Público. Hoje, até o Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Saúde (ANS) se voltam contra a atitude dessas empresas”, afirma Andrea Salazar, gerente jurídica do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec). “O governo pode mesmo chegar até a intervenção ou tirar a empresa do mercado”, declarou Humberto Costa, ministro da Saúde. No dia 27

de julho, a União e a ANS entraram com uma ação na Justiça Federal de Brasília (DF), para estender a todo o país liminares contra o reajuste já concedidas nos Estados. O desconforto é tão grande porque os reajustes são ilegais, por desrespeitarem o Código de Defesa do Consumidor. No ano passado, o Superior Tribunal Federal (STF) concedeu liminar suspendendo um artigo da nova Lei dos Planos de Saúde, de 1998, dizendo que a ANS precisa autorizar os reajustes. Os juízes entenderam que a agência só teria esse poder sobre os contratos firmados após a promulgação da lei. As operadoras se sentiram livres para aumentar as tarifas, dos acordos fechados até 1999, baseadas no que diz os contratos. “Porém, suas cláusulas são muito genéricas e os

critérios não são objetivos”, explica Andrea. O resultado da confusão foi que alguns planos de saúde subiram até 85,1%, quando a ANS tinha definido que o reajuste não poderia passar de 11,75%. As elevações abusivas do preço foram praticadas pelas empresas Amil, Bradesco, Hospitaú, Medial, Porto Seguro e Sul América. A Justiça vem dando ganho de causa aos consumidores, por meio de liminares, sempre que julga os reajustes. Até dia 27 de julho, os reajustes da Amil, Bradesco, Hospitaú e da Sul América já tinham sido limitados em alguns Estados. O governo espera, com a ação na Justiça Federal, que essas decisões tenham efeito em todo o Brasil. (Com Agência Brasil www.radiobras.gov.br)

ÍNDIOS

Paula Medeiros de Brasília (DF) Cerca de 50 indígenas da nação Pipipan, de Pernambuco, fizeram uma manifestação em frente ao Palácio do Planalto, dia 27 de julho, para reivindicar a demarcação de suas terras. Atualmente, cerca de 3 mil índios Pipiban ocupam uma área de 1,1 mil hectares, entre os municípios de Inajá e Floresta. Genildo Francisco de Assis afirma que a nação reivindica a demarcação de uma reserva de 200 mil hectares. Os Pipipan reivindicam também a criação de um programa para a produção de alimentos. Segundo Assis, não basta o necessário atendimento emergencial, com cestas básicas, mas é preciso construir um projeto para que os índios consigam produzir os próprios alimentos. “Nós não agüentamos mais depender de cestas básicas. Queremos um programa permanente, para a vida toda”. Assis reclama do descaso da Fundação Nacional do Índio (Funai). Segundo ele, há sete meses a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) deixou de enviar médicos e equipes de vacinação à região. As estradas estão em más condições e para conseguir água os índios têm que percorrer cerca de 15 km. “Nós não vamos sair daqui antes que seja tomada uma providência. A demarcação da terra eu sei que é difícil e demorada. Mas, os problemas eu sei que podem ser resolvidos”, afirmou. (Agência Brasil www.radiobras.gov.br)

Rafael Neddermeyer/AE

Pipiban exigem demarcação

Índios da tribo Pipiban revindicam em Brasília as demarcações em Serra Negra (PE)

As técnicas exigidas pelas empresas são mais caras: prejuízo para os trabalhadores

REFORMA AGRÁRIA

Sem-terra gaúchos ocupam Fazenda Guerra da Redação

Cerca de 500 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Rio Grande do Sul voltaram a ocupar a Fazenda Guerra, no município de Coqueiros do Sul, no dia 26 de julho. De acordo com a organização do movimento, as famílias já estão com tratores e bois na fazenda e pretendem iniciar o plantio. Há dois meses, os sem-terra haviam concordado em sair da fazenda, após uma negociação com os governos federal e estadual, que se comprometeram a iniciar o processo de assentamento de novas famílias no prazo máximo de 60 dias. Na ocasião, o Ministério do Desenvolvimento Agrário comprometeu-se em investir R$ 30 milhões para aquisição de áreas em 30 dias, e mais R$ 20 milhões em 60 dias. O governo gaúcho complementaria os recursos com mais R$ 10 milhões. Apesar de as verbas já estarem disponíveis, nenhuma família foi assentada. Nos 18 meses do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do governador Germano

Rigotto (PMDB-RS), foram realizados apenas dois assentamentos, beneficiando 53 famílias. A meta do governo Lula para o Estado é assentar 15 mil famílias em quatro anos.

OCUPAÇÃO DO INCRA Em Porto Alegre, cerca de 200 famílias ainda permanecem acampadas em um terreno ao lado da sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), desde 29 de junho, como forma de pressionar as autoridades no Rio Grande do Sul. O acampamento é formado pelas 500 famílias despejadas de uma ocupação na BR-386, no município de Nova Santa Rita. A iniciativa ocorreu logo após um grupo de trabalhadores ligados a diversos movimentos, como o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), além do MST, realizarem uma greve de fome que durou 15 dias. O objetivo era denunciar o descumprimento do compromisso firmado com os sem-terras por parte dos governos estadual e federal.

DISCRIMINAÇÃO

Campanha denuncia prática do racismo

Nestor Cozetti do Rio de Janeiro (RJ) “Discriminação: quem se omite, pratica”. Esse é o tema da uma campanha nacional, lançada dia 21 de julho, pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris). A idéia é “denunciar o que se passa disfarçado, ou seja, comportamentos discriminatórios”. O lançamento da campanha aconte-

ceu durante o seminário nacional “Racismo e intolerância – Desafios para a sociedade brasileira”, no Rio de Janeiro, que discutiu também a luta contra o preconceito desde a 3ª Conferência Mundial de Combate ao Racismo. Para Ubiratan Castro, da Fundação Cultural Palmares, enquanto houver racismo no Brasil “não se poderá falar em desenvolvimento e democracia”. Com ele concorda

Renato Emerson, do Programa Políticas da Cor (PPCOR) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que calcula que 287 instituições educacionais receberam e propuseram ações afirmativas. “O racismo é estrutural e está relacionado ao acesso às riquezas do país. Mas há instituições que resistem a conversar sobre o assunto. Os negros são alijados dos meios de produção do conhecimento. O nosso projeto

prevê sustentar economicamente o aluno das cotas”, disse. Frei Davi dos Santos, criador da Educação e Cidadania para Afrodescendentes e Carentes – Educafro, lembra que a política de cotas nas universidades para negros é fruto da luta popular. A mobilização dos negros garantiu, além do projeto de cursos pré-vestibulares para minorias, as primeiras vagas na UERJ.


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NACIONAL ENTREVISTA

É proibido denunciar grilagem

Dioclécio Luz O fado é brasileiro A edição do dia 20 de julho da revista Época traz entrevista com um dos maiores pesquisadores da música brasileira, José Ramos Tinhorão. Nela, uma revelação: o fado, gênero musical mais tipicamente português, teria nascido no Brasil, com os negros. “O fado chegou a Portugal no fim do século 18 como dança negra do Brasil. Há documentos que mostram mulheres fadistas em São Paulo já em 1740, quando nem se falava disso em Lisboa”, diz Tinhorão. E a bossa nova é estadunidense José Ramos Tinhorão à Época: “A bossa nova é uma variante americana do samba. É tão brasileira como um carro ianque montado no Brasil. João Gilberto inventou um jeito de cantar para adaptar a música brasileira à maneira americana. João Gilberto é americano”. Copa América e Globo (1) Existe um jogo acontecendo em campo, e um outro narrado pela equipe da TV Globo, sob o comando do torcedor Galvão Bueno. Como torcedor, ele xinga o juiz e escolhe seus heróis. Como Adriano não é Ronaldinho (o fenômeno do marketing), não lhe bastou ser o artilheiro e um dos melhores do Brasil na Copa América. Sem marketing não tem Globo. Copa América e Globo (2) Galvão Bueno estimula o telespectador a ter ódio dos argentinos. Quando os jogadores do time contrário batem, é porque é de sua natureza violenta. Quando o Brasil bate, é porque os jogadores brasileiros estão revidando à agressão sofrida. Os argentinos são sempre teatrais, maliciosos, maus-caracteres e querem humilhar o Brasil. Se o Brasil faz a mesma coisa, prova maturidade. Enfim, o procedimento é de um torcedor fanático e de pouco cérebro. Sugestão de pauta: Kyoto A revista do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea), de janeiro, fevereiro e março, anuncia um desastre planetário. Graças ao efeito estufa, alguns pequenos países localizados em ilhas do Pacífico já estão sendo submersos com o aumento do nível do mar. O aumento do calor na atmosfera é resultado da emissão de gás carbônico. Os Estados Unidos mandam 20% do gás para atmosfera, mas se recusam a assinar o Protocolo de Kyoto, para reduzir os níveis de emissão. Que se danem os pobres do Pacífico, que se dane o planeta – é a lei estadunidense, Rádio livre na USP No campus da Universidade de São Paulo (USP), quem sintonizar a 106,7 FM vai escutar uma rádio livre. A iniciativa “é de pessoas que acreditam na democratização do espaço das ondas eletromagnéticas. A classificação da nova rádio na USP como livre e não comunitária é uma opção do grupo”. A grade já conta com 40 programas semanais. Só há restrição à veiculação de propaganda. Dinheiro público para as novelas O Ministério da Cultura analisa mudanças na Lei Rouanet (que hoje, na prática, transfere recursos do Estado para projetos culturais). A TV Globo está querendo que as mudanças incluam a aplicação desse dinheiro nas novelas produzidas pela emissora. Se isso acontecer, será uma vergonha nacional. Mulher objeto “As estratégias de comunicação, em geral vinculadas ao mercado e à necessidade de vender produtos, geraram uma relação muito direta entre consumo, prazer e poder. E a mulher aparece quase que como o próprio produto de consumo. É assim que se vende qualquer coisa – a partir da figura feminina, especialmente a partir do corpo da mulher”. A avaliação é da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), relatora da Comissão Parlamentar de Inquérito Mista da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, em matéria publicada na Agência Carta Maior

Rádios comunitárias no Equador

A Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc) está cobrindo o Primeiro Fórum Social das Américas (FSA), até dia 30 de julho, em Quito, Equador, pela sua agência de notícias, a Púlsar. O acesso é gratuito: http:

//www.amarc.pulsar.org

Na Amazônia, Justiça persegue jornalista que atrapalha apropriação indébita de terras da Redação

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esde 1992, foram abertos 15 processos contra Lúcio Flávio Pinto no foro de Belém (PA). Dois prescreveram, os demais continuam em andamento – oito tratam de grilagem de terras e extração e exploração irregular de madeira. As ações judiciais envolvem basicamente acusações de calúnia, infâmia e ofensa, em questões que tratam da ordem pública (monopólio da imprensa, grilagem de terras, exploração clandestina de madeira, especialmente o mogno, e a conivência de integrantes do Judiciário com esses delitos). Assuntos que, há anos, estão na pauta do jornalista Lúcio Flávio Pinto, que mostra, em entrevista ao Brasil de Fato, a teia de interesses que envolve Justiça e setor privado. Brasil de Fato – Por que defende o controle externo sobre o Judiciário? Lúcio Flávio Pinto – Se alguém ainda tem dúvida sobre a necessidade deste controle no Brasil atual, o Estado do Pará oferece um bom exemplo em favor da tese. O caso envolve a maior grilagem de terras do país – e, provavelmente, do mundo: uma área situada no fértil vale do Rio Xingu, 800 quilômetros a oeste de Belém, atualmente sob o impacto de frentes econômicas pioneiras.

BF – Qual a área grilada? Lúcio Flávio – No mínimo, 5 milhões de hectares. Mas essa grilagem, que consiste no uso de fraudes para a apropriação ilícita de terras públicas, pode atingir até 7 milhões de hectares. A área corresponde a 6% da superfície do Pará, o segundo maior Estado da Federação. O principal atrativo da área é abrigar a maior concentração de mogno da Amazônia. Por seu valor, essa espécie florestal é chamada de ouro verde. Pode alcançar 1.800 dólares o metro cúbico na Europa, a partir do custo de extração na floresta de menos de 100 dólares. Por isso, é causa de conflitos e de mortes. BF – Como aconteceram as fraudes? Lúcio Flávio – O domínio daquela área era público em 1923, quando o governo do Pará assinou contratos de arrendamento com comerciantes da região, autorizando-os a explorar as árvores de castanha e seringa existentes em quatro glebas, que podiam alcançar até 30 mil hectares. O contrato tinha duração de um ano, e caducaria automaticamente se não fosse renovado. Em alguns casos, o arrendamento foi renovado. Em outros, evoluiu para o aforamento. Mas, naquelas quatro situações do Xingu, não houve qualquer novo contrato. Como o extrativismo entrou em decadência e a exploração dos altos rios foi abandonada, as coisas ficaram na base do dito pelo não dito. BF – O Estado fez corpo mole, e daí? Lúcio Flávio – A autorização caducou, mas o Estado nem se deu ao trabalho de formalizar o fim da relação. Os termos do contrato eram claros quanto à reversão das terras ao patrimônio público depois de um ano. Além disso, o que estava em causa eram apenas direitos de posse, materializados na presença física do concessionário na área. Mesmo assim, os sucessores daqueles coronéis de barranco, autorizados a fazer uso das terras devolutas, levaram os contratos para registro em cartório.

Agência Estado

Espelho

Quem é Brasileiro, de Santarém (PA), Lúcio Flávio Pinto é sociólogo, formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e foi professor visitante do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade da Flórida, em Gainesville (EUA). Jornalista profissional, iniciou atividades em A Província do Pará, de Belém, e passou pelo extinto Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. Percorreu, entre outras, as redações do Estado de S.Paulo (17 anos), Opinião, Movimento e Versus. Em 1988, passou a se dedicar ao Jornal Pessoal, boletim quinzenal que escreve sozinho, há 15 anos. Recebeu quatro prêmios de jornalismo: Esso e dois Fenaj, da Federação Nacional dos Jornalistas. Pelo conjunto de seu trabalho recebeu, em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’Oro per la Pace. Tem dez livros publicados, todos sobre a Amazônia, dos quais os mais recentes são: Hidrelétricas na Amazônia; Internacionalização da Amazônia e CVRD: a sigla do enclave na Amazônia. BF – Os cartórios não questionaram nada? Lúcio Flávio – A escrivã do cartório imobiliário de Altamira, a capital do Xingu, não hesitou em lançar no livro de propriedades o que não passava de posse. A partir daí, se sucederam operações comerciais tendo como base aquelas terras, já devidamente matriculadas. Mas, como nenhuma cadeia imobiliária pode ser formada senão a partir do desmembramento do imóvel do patrimônio público, uma dessas propriedades com sua matriz no extrativismo, a futura Fazenda Curuá teve como origem um “título hábil”. BF – Que título? Lúcio Flávio – Qual era esse título? Ninguém sabe, ninguém viu. O governo do Estado não encontra tal documento nos seus registros de concessão de terras. Os supostos detentores do documento jamais o apresentaram. O título é tão fantasma quanto Carlos Medeiros, personagem fictício que outra quadrilha de grileiros inventou para acobertar as apropriações de terras públicas que efetuou, até com maior gula (suas pretensões chegam a 12 milhões de hectares, espalhados por nove dos 143 municípios paraenses, incluindo a própria capital do Estado). Como no caso do “título hábil”, nenhum ser humano jamais viu o tal Carlos Medeiros em carne e osso, embora seus advogados se movimentem por cartórios e gabinetes de juízes em nome do cliente metafísico. BF – Onde Cecílio do Rego Almeida entra na grilagem? Lúcio Flávio – O que podia não passar de um incidente paroquial de fraude e promiscuidade provinciana de poder, transformouse num enorme escândalo. Foi quando a pretensão dos grileiros se multiplicou, ultrapassando 5 milhões de hectares. O personagem principal deixou de ser um coronel de barranco para ser um grupo empresarial, com várias faces jurídicas, mas que gravita em torno de Cecílio do Rego Almeida, dono da C. R. Almeida, uma das maiores empreiteiras do país. O objeto da empreitada comercial deixou de ser o látex da seringueira, ou o ouriço da castanheira. Além do ativo imobiliário, o principal alvo do negócio passou a ser o mogno. Os valores de referência passaram a ser medidos em dezenas de milhões de reais. Ou dólares.

BF – E o poder público continuou omisso todo esse tempo? Lúcio Flávio – Em 1996, impressionado com o tamanho do problema, o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) ajuizou uma ação na comarca de Altamira para cancelar o registro imobiliário da Fazenda Curuá, então com 4,7 milhões de hectares. Desde logo, independentemente do julgamento do mérito da questão, pendente até hoje, o Instituto solicitou ao juiz que fosse averbada a existência da contestação judicial à margem da matrícula do imóvel. A medida serviria de alerta para terceiros de boa-fé e acautelaria as providências posteriores. O suposto proprietário continuaria na área. Só não poderia passála adiante até que o contencioso fosse decidido. BF – O que decidiu a Justiça? Lúcio Flávio – O juiz Torquato Alencar antecipou liminarmente a tutela. A Fazenda Curuá recorreu da decisão. O desembargador (hoje aposentado) João Alberto Paiva revogou a decisão de primeiro grau, restabelecendo todos os efeitos do registro imobiliário. Ele afirmou que a área era “inquestionavelmente” de propriedade particular, embora todas as instâncias do poder público, da Polícia Federal à Procuradoria da República, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) à Fundação Nacional do Índio (Funai), já estivessem contestando essa dominialidade privada. Além do tamanho da área supostamente titulada. BF – Ficou por isso mesmo, ou as tramóias prosseguiram? Lúcio Flávio – O Tribunal confirmou por unanimidade a decisão do desembargador, numa sessão realizada uma hora antes de começar o expediente regular do fórum, às seis da manhã, algo absolutamente inédito nos anais forenses. Quando o procurador do Iterpa chegou para participar da sessão da Câmara, já os desembargadores se haviam retirado. Saíram mais cedo para uma viagem de trabalho ao interior do Estado. Foi a justificativa. BF – Depois desse golpe do judiciário, qual o passo seguinte da C.R. Almeida? Lúcio Flávio – Confirmada a plena disponibilidade sobre a Fazenda Curuá, o grupo conseguiu assumir o controle de uma outra extensa área próxima, o Seringal Monte

Alegre. Alegando que a área estava sendo invadida para a extração de mogno e cedro, a C. R. Almeida conseguiu um interdito proibitório judicial e indicou um “fiel depositário”, responsável perante a justiça pela madeira derrubada e equipamentos que haviam sido apreendidos. Como o bem estivesse sujeito a deterioração, acidentes naturais e roubos, o depositário dos bens, graças a um mandado de segurança, foi autorizado a – com recursos próprios – serrar, embalar, classificar e armazenar essa madeira. Só poderia vir a se ressarcir desse pesado investimento quando – e se – a Justiça deliberasse de vez o que fazer com a madeira (avaliada em R$ 120 milhões, ou 40 milhões de dólares). BF – A Justiça, então, continuou tardando e falhando? Lúcio Flávio – Embora a decisão proibisse a comercialização da madeira, o Ministério do Meio Ambiente reagiu imediatamente contra a decisão da desembargadora Maria do Céu Cabral Duarte. No dia seguinte, a presidente do tribunal chamou a colega e a convenceu a revogar seu ato, remetendo o processo para a Justiça federal, considerada instância competente em função do interesse da União pelas terras (a empresa está contestando essa competência). BF – O que mais acontecia? Lúcio Flávio – Os autos do processo principal, formado a partir da ação do Iterpa contra a grilagem, que haviam desaparecido em setembro de 2000, reapareceram em janeiro de 2002. O cartório registrou o dia em que o advogado da empresa retirou os autos, mas não o dia da devolução (a partir dessa omissão grave do responsável, assentamentos passaram a ser referidos como se existentes, embora possam ter sido feitos a posteriori). BF – O processo reapareceu tal qual era ou trazia mais surpresas? Lúcio Flávio – Materializado novamente, o processo trazia uma novidade: longa sentença, de 38 laudas, assinada pelo juiz Luiz Ernane Malato, datada de 19 de setembro de 2000. Na época, Malato atuava na comarca de Altamira. Quando os autos ressurgiram, o juiz estava licenciado, mas já de outra comarca do interior do Pará, Bragança, para estudar em São Paulo. BF – O que dizia a sentença? Lúcio Flávio – Na sentença, o juiz decidiu não examinar o mérito da questão, apesar da extensa argumentação do Iterpa. Simplesmente extinguiu o processo, por considerar que o Estado não havia provado sua titularidade da área. Para assumir a condição de parte legítima, o Iterpa precisaria ter discriminado as terras, provando que elas eram efetivamente públicas. BF – Se o Estado não comprovou sua titularidade, ponto para os grileiros? Lúcio Flávio – A presunção de domínio público, antes aceita, não satisfez o magistrado. Conseqüência prática da decisão: os registros em poder da empresa continuavam válidos, até demonstração positiva em contrário. BF – Como estão as coisas? Lúcio Flávio – A substituta na comarca de Altamira, juíza Danielle Bührnheim, revogou todos os atos decisórios que constavam dos autos, declarou a Justiça estadual incompetente para apreciar o feito e encaminhou o processo para a Justiça federal.


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NACIONAL DIREITOS HUMANOS

Policiais atacam na periferia de São Paulo Assassinato de adolescente na Favela do Mangue revela prática de ameaças, suborno e violência adotada pela PM

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pós a execução de uma adolescente na Favela do Mangue, em São Paulo, dia 18 de julho, moradores da região estão aterrorizados com as ameaças sofridas. Segundo testemunhas, Jaqueline Duque Partriarcha teria sido morta com um tiro na cabeça por policiais militares, mas o principal suspeito não foi reconhecido, e o delegado responsável pelo caso descartou a participação da PM no caso. Quando voltava de um baile com uma amiga, por volta das 5h30, Jaqueline, de 13 anos, foi executada numa viela da Favela do Mangue, em Sapopemba, periferia leste da capital paulista. De acordo com uma testemunha, ela foi abordada por dois homens encapuzados, que usavam coturnos e calças cinzas. Uma garota, que mora num barraco na frente de onde o assassinato ocorreu, afirma ter ouvido Jaqueline implorar por sua vida: “Não sei de nada, senhor, pelo amor de Deus, não faz isso comigo. Minha mãe tem cinco filhos para criar”. Após o tiro, oito homens teriam saído da favela, sendo que cinco deles estariam fardados. Eles entraram em dois carros, uma Parati da Polícia Militar e um Fiat Pálio comum. Desde então, quem apura o caso é o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), que após a instauração do inquérito policial mudou a linha de investigação. Por foto, duas testemunhas apontaram um cabo da PM como o autor do disparo que atingiu a garota. O crime chegou a ser dado como esclarecido dia 22 de julho, quando, em nota oficial, o diretor do DHPP, Domingos Paulo Neto, informou que a prisão temporária do policial militar seria solicitada à Justiça. Dia 23, o departamento voltou atrás. Dia 27 de julho, após o suspeito não ter sido identificado pelas testemunhas, o delegado que conduz o inquérito, Sidney de Oliveira, afirmou que a PM não tem nada a ver com o caso. Para Oliveira, esse foi um “cirquinho armado”, mas não soube dizer por quem. Segundo a assessoria de imprensa do DHPP, as

FALTA DE COLABORAÇÃO

Mulheres são o alvo preferido do abuso de autoridade dos policiais militares na favela

No dia 23 de julho, o ouvidor das Polícias do Estado de São Paulo, Itajiba Farias Ferreira Cravo, reclamou da falta de colaboração da Polícia Militar. Ele declarou: “A ouvidoria também esperava que o DHPP cumprisse a decisão de pedir a prisão do suspeito, porque há indícios para isso”. Dias depois, pela sua assessoria de imprensa, disse que não ia fazer declarações até “que as coisas clareassem”, referindo-se à não identificação do suspeito. A advogada Valdênia Aparecida Paulino, do Centro de Direitos Humanos de Sapopemba, afirma que mesmo que as testemunhas não tenham identificado o suspeito, a hipótese de a polícia ser a autora do crime não será descartada. Valdênia disse que não pode admitir declarações como a do delegado, de que a PM não está envolvida no caso e que esse seria um “cirquinho armado”. “Se há um circo armado, não é por parte da população”, diz

ela. “Há indicativos veementes de que foi a PM, e a investigação tem que ser séria e célere”. Valdênia também questionou a atitude da Corregedoria da Polícia Militar, que logo após o crime levou uma das testemunhas para depor à força. “Causa estranheza que a PM tenha segurado a testemunha por horas e horas, dificultando a investigação da Polícia Civil”. Para ela, esse caso ultrapassou todos os limites. “Queremos uma medida mais técnica, séria. Está na hora de haver um controle mais sério, que não é da corregedoria da PM”. De acordo com ela, as práticas de tortura, execuções e invasão de domicílio não têm sido investigadas e a impunidade tem legitimado a ação dos policiais. Enquanto a investigação prossegue, a população continua exposta às ameaças. Após o assassinato, os moradores afirmam estar sofrendo ameaças diárias por parte da polícia. “Eles disseram que a morte era só o começo, que eles voltariam aqui para matar todos nós, que não ia sobrar nem criança”, relata uma senhora. Outra moradora conta que uma das ameaças dos policiais era matar aqueles que fossem testemunhar contra a PM, além de incendiar todos os barracos.

Rotina de violência inclui tortura e ameaças

De acordo com Marina de Lourdes Onofre, do Conselho Tutelar de Vila Prudente, o assassinato de Jaqueline Duque Partriarcha só veio reafirmar as arbitrariedades que ocorrem todos os dias na Favela do Mangue. “Eles fazem coisas absurdas. Os alvos preferenciais de violência são as meninas adolescentes e meninos de até sete anos de idade”. Uma das moradoras, Francisca*, que mora com três filhos, mostra a parede do barraco onde mora. A alguns centímetros do berço de sua filha, há vários buracos na parede, feitos por bala. “A polícia entra atirando. Nesse dia, minha filha estava dormindo e por pouco não levou uma bala”.

Segundo moradores, os policiais invadem casas, ameaçam de morte, ofendem e batem nas pessoas. “Essa turminha faz isso sempre, precisamos de justiça”, indigna-se Mariana*, que não se conforma com o fato de os policiais, que deveriam zelar pela segurança da população, serem os primeiros a violar os direitos básicos. “Eles vestem fardas para fazer isso com a gente”, diz a jovem, que afirma ter medo de morar na favela. As mulheres contam que, muitas vezes, quando vão fazer compras, não conseguem passar pelos policiais, que as obrigam a voltar para suas casas. “Eles impedem nossa passagem. Uma vez perguntaram quanto eu tinha na carteira e depois

me deram um chute”. As revistas em mulheres são sempre violentas, e adolescentes são obrigadas a ficar nuas. Uma jovem de 13 anos conta que policiais entraram em sua casa e mandaram ela e sua irmã tirarem a roupa toda. “Eles diziam: ou tira a roupa ou nós matamos vocês”. Outra vez, a menina levou chutes dos mesmos policiais quando voltava da escola. Ela conta que eles invadiram sua casa e levaram os R$ 20 que a mãe tinha para passar o mês. “São sempre os mesmos”. A jovem, refere-se aos policiais militares do 19º Batalhão Policial, onde trabalhariam também os assassinos de Jaqueline. Outra adolescente conta que ela e uma colega, após serem espanca-

das, chegaram a levar choques no bicos dos seios. Nem as crianças escapam. “Levei uns cascudos deles. É que diziam que eu tinha que cagüetar uma pessoa”, diz um menino de nove anos. Segundo os moradores, os policiais prometem carrinhos e bicicletas para as crianças que contarem sobre o paradeiro de traficantes. Outra jovem diz que até sua filha de três anos foi revistada. Além disso, policiais trocam de roupa num terreno nas proximidades antes de entrar na favela, segundo relatos. De acordo com eles, até os orelhões da região são quebrados para impedir denúncias. (TM) * Os nomes foram modificados por motivo de segurança

Em tempos de insegurança nuclear

Edson Duarte O Brasil possui quase 30 mil fontes radiativas, utilizadas nas mais diversas atividades humanas. Aí se incluem equipamentos da área médica, indústria, pesquisa e geração de energia. No entanto, fazemos o alerta: não há um controle rigoroso e complexo sobre as fontes, por ocasião do transporte, instalação, manuseio, operação e descarte. Estamos atravessando um tempo de absoluta insegurança nuclear. Como se sabe, a radiatividade representa um risco potencial à vida humana e ao ambiente. Nessa atividade, não se admitem erros. Um erro humano, como o de Chernobyl, na Ucrânia, em 1986, resultou em 10 mil mortos, e na definição de um círculo, com raio de 400 quilômetros, absolutamente imprestável para todo tipo de atividade humana por milhares de anos. No Brasil, em 1987, tivemos um caso em menores proporções: o do Césio 137, em Goiânia, em que 250 pessoas foram contaminadas. Não houve erro humano, mas ineficiência na fiscalização, função legalmente atribuída à Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). O que preocupa, hoje, é que casos como o de Chernobyl ou o de Goiânia podem voltar a acontecer no país. Quem faz o aviso à nação

Greenpeace

ANÁLISE

investigações prosseguem, mas “talvez não seja interessante para a polícia comentar o caso”. A assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública divulgou que o DHPP continua investigando o caso.

Alaor Filho/AE

Tatiana Merlino da Redação

Usina nuclear de Angra dos Reis (RJ), é necessário uma urgente reavaliação do programa nuclear brasileiro

é exatamente a Associação dos Fiscais de Radioproteção e Segurança Nuclear (Afen). Ela denuncia a CNEN por não fazer o controle sobre as fontes radiativas. O Tribunal de Contas da União (TCU) avaliza essa versão. Na verdade, não há fiscalização. Ou, se há, é precária e irregular. Falta infra-estrutura de operação e o reconhecimento da carreira. Além do mais, como esperar que haja isenção e autonomia na atividade

fiscalizatória, se os fiscais são servidores da CNEN com a atribuição de fiscalizar instalações da própria CNEN? É a CNEN que dá a licença, analisa e fiscaliza suas instalações. A mineração de urânio do município de Caitité, na Bahia, é um dos muitos exemplos. Ela pertence às Indústrias Nucleares Brasileiras (INB), que tem como maior acionista a CNEN. Assim, a mineração (da CNEN) é fiscalizada pela

CNEN. Talvez isso explique por que cada vez que há um acidente por lá – e já foram dois este ano –, contrariamente ao que determina a lei, demora 30 dias para os órgãos competentes serem notificados. A atitude primeira é sempre negar, como também aconteceu no caso do acidente da usina de Resende, no Rio de Janeiro, inicialmente omitido e depois reconhecido pela CNEN. Omitir, ocultar e distorcer in-

formações têm sido uma prática do programa nuclear brasileiro desde sua criação, no regime militar. A sociedade brasileira tem sido historicamente excluída dos debates sobre o tema. E até hoje os governos se recusam a discutir um modelo energético que ainda inclui usinas nucleares, apesar de serem fontes caras, sujas e perigosas. Nós não sabemos de onde virá a próxima notícia de um acidente nuclear. Sabemos de antemão, porém, que o acidente não foi recente, e que não aconteceu nas proporções relatadas pelos responsáveis – muito mais preocupados em mostrar que energia nuclear é segura, barata e “ecológica”, do que em falar a verdade. Ciente da fragilidade da nossa fiscalização, ter medo é hoje uma sensação absolutamente compreensível. Queremos uma revisão do modelo energético, com priorização para as energias renováveis. Queremos uma reavaliação urgente para o programa nuclear brasileiro. Propomos modificar a legislação, corrigindo as falhas do setor, mas é preciso que o Executivo faça a sua parte e chame a sociedade para rever o programa nuclear brasileiro. A situação é grave e exige rapidez. Edson Duarte é deputado federal pelo Partido Verde da Bahia


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NACIONAL EDUCAÇÃO

Ligações perigosas (1) Banqueiro brasileiro ligado a empresa de telefonia contrata empresa estadunidense de espionagem. O grupo utiliza informantes portugueses e ingleses para espionarem empresa de telefonia italiana, mas acabam grampeando funcionários do alto escalão do governo federal e de banco estatal brasileiro. Nem o cineasta Alfred Hitchcock conseguiu, no auge da “guerra fria”, produzir algo tão mirabolante. Ligações perigosas (2) Espionado por ordem da Brasil Telecom, empresa controlada pelo Banco Oppotunity, o governo Lula reagiu com a ação imediata da Polícia Federal. Coincidentemente, ambos – quem ordenou a espionagem e quem foi vítima da espionagem – alimentam o mesmo esquema de publicidade de Duda Mendonça. Ligações perigosas (3) O Sindicato dos Jornalistas da Venezuela, controlado por um grupo de oposição ao presidente Hugo Chávez, tem mantido boas relações com a diretoria da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), presidida por Beth Costa, da Rede Globo. É sempre bom lembrar que os veículos de comunicação da Venezuela participaram ativamente da tentativa de golpe contra Chávez, em 2002. Prioridade esquecida O Congresso Internacional de Educação, realizado em Porto Alegre (RS), aprovou resolução em que pede aos governos investimento mínimo de 6% do PIB de cada país em educação. O Brasil continua abaixo disso: em 2004, o investimento previsto é de 4,3% do PIB. Muito pouco para um país que precisa ampliar o acesso e melhorar a qualidade do ensino. Reprodução monetária O banco espanhol Santander, que em 2001 comprou o Banespa, acaba de comprar mais um banco, agora na Inglaterra, com uma boa ajuda dos trabalhadores brasileiros. É que, em 2003, o lucro do Santander com o Banespa ficou acima da expectativa dos donos, que era da ordem de 800 milhões de dólares. É assim que vive o capitalismo globalizado. Pauta recorrente Os jornais da imprensa comercialburguesa mantêm pauta permanente em defesa do agronegócio, que favorece grandes empresas multinacionais e bancos envolvidos com exportação; em defesa da autonomia do Banco Central, que favorece o fluxo do capital especulativo; e em defesa do controle do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), especialmente para permitir a entrada de “sócios” estrangeiros nas empresas controladas por fundos nacionais. Tudo muito simples, é claro. Realidades diferentes O jornal Folha de S. Paulo demitiu, na última semana, perto de 200 dos quase 1.300 funcionários, com um corte de 18% das despesas com pessoal. Segundo o diretor do jornal, Octavio Frias Filho, as demissões ocorreram para vencer “essa conjuntura adversa”. Estranho é que o corte, neste momento, não combina com o noticiário sobre crescimento econômico, redução do desemprego e outras manchetes tão positivas das últimas semanas. Escândalo abafado O Ministério Público investiga a sonegação de impostos de Henrique Meirelles, presidente do Banco Central do Brasil. Em 2001, quando presidia o Bank Boston, nos Estados Unidos, ele não declarou o imposto de renda. Mas tinha domicílio no Brasil, adquiriu imóveis e preparou sua candidatura para deputado federal pelo PSDB. Esse é um verdadeiro escândalo que a mídia tenta abafar.

Fórum Mundial, em Porto Alegre, analisa rumos e principais problemas da educação no país Luís Brasilino da Redação

O

3º Fórum Mundial de Educação (FME), realizado entre os dias 28 e 31 de julho, em Porto Alegre (RS), acontece em meio à tensão do setor de ensino no Brasil. Três das maiores associações de trabalhadores da educação estão em greve ou com indicativo de paralisação de atividades, reflexo dos baixos investimentos em políticas públicas feitos pelos últimos governos. Estão mobilizados a Federação de Sindicatos das Universidades Brasileiras (Fasubra), que agrega 40 sindicatos de funcionários de instituições federais de ensino, parados há mais de um mês; o Fórum das Seis, entidade que une os sindicatos de professores e funcionários das três universidades estaduais paulistas, em greve por dois meses; e o Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes), composto por professores das universidades federais e que indica o início de uma greve para 5 de agosto. “A educação nunca foi tão necessária às pessoas quanto é hoje. Mas, ao mesmo tempo, se vive um período em que se busca o lucro acima de tudo. Assim, se ataca a educação e, também, a saúde”, analisa o professor francês Bernard Charlot, membro do Conselho Internacional do FME. Para Edmundo Fernandes Dias, terceiro secretário do Andes, há um déficit financeiro crônico nas universidades públicas brasileiras. Ele conta que, no mandato de Fernando Henrique Cardoso, todo o funcionalismo público passou oito anos praticamente sem reajuste salarial. Paulo Henrique Rodrigues dos Santos, coordenador geral da Fasubra, explica: “Com o neoliberalismo e sua política de Estado mínimo, tivemos, nos últimos governos, um desmonte do serviço público. Ou seja, saúde e educação estão precarizados”.

FÓRUM MUNDIAL É com essa difícil realidade que os brasileiros, que integram o grupo de mais de 20 mil participantes do 3º FME, são obrigados a lidar. Mas o movimento está preparado. Se-

EDUCAÇÃO

Agência Brasil

Hamilton Octavio de Souza

Desmonte não poupa nem o ensino

A educação nunca foi tão necessária quanto é hoje; no entanto esse serviço público vem sofrendo crescente desmonte

gundo Charlot, uma de suas funções é levantar problemas mundiais. Ele explica que o Fórum possui uma dupla importância e a primeira delas é, justamente, enfrentar políticas neoliberais. “Existe uma nova lógica mundial, globalização, privatização e mercantilização. Para se opor a essa força, é preciso criar uma nova. Uma força em defesa da educação de qualidade para todos”, esclarece. “O segundo eixo do FME”, continua o professor, “é possibilitar e conectar dois discursos. Um para os políticos: a educação é um assunto político, mas também prático, ou seja, discursos não são suficientes, tem que ir à prática. E um para o docente: a política não é uma coisa abstrata e sim algo que se apresenta na prática – no dia-a-dia na sala de aula, no relacionamento com os alunos, com a escola etc”. Além disso, para Charlot, o grande desafio do FME é refletir sobre os investimentos na educação, tendo em mente os resultados. “Quando se muda alguma coisa, devemos saber se a mudança vai acarretar melhoras na qualidade da

educação. Não basta somente disponibilizar recursos”, afirma. A greve mais antiga é a das universidades estaduais paulistas – Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Estadual Paulista (Unesp). Há cerca de dois meses, professores e funcionários das três instituições pararam as atividades, depois que o conselho de reitores apresentou às categorias proposta de 0% de reajuste. Indignados, os estudantes também se mobilizaram para garantir mais recursos ao ensino.

SOLUÇÃO À VISTA Graças ao crescimento na arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), previsto já em maio pelos sindicalistas, em reunião no dia 26 de julho, os reitores propuseram reajuste de 2% sobre os vencimentos de maio, e mais 2,14% em agosto. O total de 4,18%, é o mesmo percentual de inflação de abril de 2003 a abril de 2004. Os índices negociados com os professores devem levar ao fim

da paralisação, no dia 28 de julho. O panorama é parecido no Andes. “O governo indicou (no dia 22 de julho) um aumento de quase 50% no montante de recursos para o reajuste. Isso mostra que percebeu que nós estamos com a razão”, conta Dias. A greve dos docentes do ensino superior, prevista para começar dia 27 de julho, foi adiada para 5 de agosto. Até lá, devem ocorrer novas rodadas de negociação. “A ausência de proposta iniciou a paralisação. Negociamos com esse governo e com o anterior, mas ainda constituímos a pior categoria: a falta de carreira, com baixos salários e nenhuma possibilidade de crescimento dentro da instituição”, afirma Santos Os grevistas da Fasubra querem que o governo envie ao Congresso Nacional um projeto de lei (PL) estabelecendo a carreira dos técnicos-administrativos. Em reunião no Ministério da Educação (MEC), dia 20 de julho, o ministro Tarso Genro apresentou aos trabalhadores uma primeira proposta para o PL, que deve ser debatida e, em agosto, enviada ao Congresso.

Paz vira matéria de escola

Bernardete Toneto da Redação A conferência final do Fórum Mundial de Educação, dia 31 de julho, será sobre solidariedade, democracia e paz, com a presença do argentino Adolfo Perez Esquivel, Nobel da Paz de 1980, e de Nilcéia Freire, secretária especial de Políticas para as Mulheres. Na mesma mesa, está o padre Marcelo Rezende Guimarães, professor de pedagogia na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul e um dos fundadores da organização não-governamental (ONG) Educadores para a Paz, criada em 2002. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele fala do projeto educacional e da falência de um pacto social, pelo governo Lula, que poderia criar novos parâmetros de participação popular. A Educadores para a Paz já formou, em todo o país, mais de 800 educadores em educação para a paz e não-violência ativa. A entidade está ligada a uma campanha mundial de educação para a paz, lançada em 1999, em Haia, na Holanda, por ONGs de vários países. No Brasil, o trabalho é pioneiro, por romper com uma visão holística do pacifismo e defender a inserção de educadores nos movimentos sociais.

Divulgação

Fatos em foco

Quem é O padre Marcelo Rezende Guimarães é doutor em Educação, conferencista e um dos fundadores da ONG Educadores para a Paz, com sede em Porto Alegre (RS)

Brasil de Fato – A educação pode construir um novo mundo possível? Padre Marcelo Guimarães – Creio que já passamos da época da utopia pedagógica, em que se jogava na escola a responsabilidade pelo futuro. Eu acho que somente a educação não constrói um outro mundo possível, mas a sociedade, sem educação, também não consegue construir esse mundo que desejamos. BF – Pode-se aprender a paz na escola? Padre Guimarães – Até 50 anos atrás, a escola tinha a palmatória como instrumento pedagógico. Como foi configurada no Ocidente, a educação sempre esteve ligada à violência. E, note bem, não falo somente de escola, mas de educação, que inclui a sociedade, em que a violência é produzida culturalmente, que glo-

rifica o militarismo. Eu sonho com uma escola em que o aluno, além de saber o Teorema de Pitágoras ou a tabela periódica, saiba resolver os conflitos, inclusive os conflitos originados da desigualdade social e econômica. BF – Mas, na escola, quem manda é o professor. Padre Guimarães – A escola é onde se dão relações de poder. A educação para a paz tem como pólo a democratização. Temos de criar relações comunitárias na escola, que é por demais vertical e não cria espaços de reciprocidade. Se a escola quiser ser um centro produtor de paz, ela tem de ser um lugar onde se aprende democracia. Senão, vai ser como samba, que não se aprende no colégio. BF – O que a escola pode propor para a sociedade? Padre Guimarães – A escola tem de ser, em primeiro lugar, um es-

paço argumentativo. Até agora, ela não trata de assuntos fundamentais para o ser humano, para as relações sociais. Em segundo lugar, tem de quebrar a redoma e se unir aos movimentos sociais. Enquanto não acontecer isso, a escola vai sempre ser muito narcisista, preocupada consigo mesma. BF – Qual sua avaliação do trabalho do Ministério da Educação? Padre Guimarães – Minha decepção com o atual governo é que ele não conseguiu fazer uma discussão nacional sobre os problemas que afetam a educação. Tarso Genro, o atual ministro, não consegue fazer isso, talvez por não ser da área ou por não estar assessorado por pessoas da educação. E eu não vejo perspectivas de mudanças. Uma grande aberração é esse projeto de usar o Exército para capacitar os jovens. Ora, a função do Exército é defender o país, e olhe lá, que tenho dúvidas sobre isso. Mas se o governo quer capacitar os jovens, que dê escolas, crie um programa de serviço civil e mobilize as organizações nãogovernamentais, que no país são as únicas que estão conseguindo fazer isso bem.


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NACIONAL TRABALHO

Uma lenta e penosa recuperação

Taxa de desemprego recua pelo segundo mês, mas recuperação favorece principalmente ocupações de baixo salário

A

relativa melhoria observada no mercado de trabalho a partir de maio de 2004 reflete uma tendência tradicionalmente observada nesta época, quando as indústrias começam a se preparar para atender aos pedidos do comércio para os meses finais do ano. Depois de baixar do recorde de 13,1%, atingido em abril, para 12,2% no mês seguinte, a taxa de desemprego aferida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em seis regiões metropolitanas recuou para 11,7% em junho – abaixo, também, dos 13% observados em igual mês de 2003. A análise mais detalhada dos números produzidos pela pesquisa mensal de emprego e desemprego do IBGE sugere que o mercado de trabalho atravessa, sim, um período de recuperação. Mas indica que essa reação tem sido penosa e lenta, sustentada, ainda, por doses elevadas de informalidade e contratações de trabalhadores com baixos salários. O IBGE argumenta que esses números confirmam a tendência de recuperação, que o processo funciona assim mesmo: iniciase pela base, com o aumento de contratações sem carteira e com salários menores, para depois – se a economia continuar crescendo – se transformar em aumento dos empregados com registro e avanço sustentado dos rendimentos.

NADA DE NOVO Até o momento, no entanto, o cenário não está muito melhor do que esteve em 2000, até pelo contrário, como indicam as séries de dados estatísticos elaboradas pela consultoria Global Invest. O rendimento real dos trabalhadores, que indicou avanço de 1,8% na comparação entre junho e maio deste ano (com queda de 0,5% frente a junho do ano passado), estaria ainda perto de 20% abaixo da renda média observada entre maio e junho de 2000. A participação do consumo das famílias (ou seja, do total de gastos com o consumo de bens, mercadorias, serviços realizados pelas famílias) no Produto Interno Bruto (PIB), que soma as riquezas produzidas pelo país em determinado período, mantém-se, neste ano, ligeiramente abaixo de 56%, depois de representar pouco mais de 60% no primeiro trimestre de 2000. Mais claramente, não há fôlego

ANÁLISE

compor a renda familiar, achatada ao longo de 2002 e 2003 pelo arrocho salarial e pelo desemprego. Agora, com a tendência de melhoria na economia, teriam retornado a seus lares. O fato, no entanto, é que a reação dos rendimentos não foi ainda tão importante a ponto de compensar as perdas que estimularam aposentados e estudantes a procurar emprego. Pode-se dizer que os rendimentos deixaram de cair, muito mais do que teriam iniciado um processo de recuperação sustentado.

Renato Stockler

Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

PINGOS NOS IS

A queda do desemprego também se deve ao trabalho informal e à contratação com baixos salários

EMPREGO E DESEMPREGO EM JUNHO Dados em mil pessoas*

Variáveis Jun/03 População economicamente ativa 21.082 Pessoas ocupadas 18.347 Empregados no trabalho principal 13.455 Empregados com carteira 8.047 Empregados sem carteira 4.024 Pessoas ocupadas com rendimento/hora abaixo de um salário-mínimo 2.474 Desocupados 2.735 Desocupados sem instrução e menos de oito anos de ensino 916

Mai/04 21.488 18.865 13.925 8.277 4.295 2.173 2.623 798

Jun/04 21.460 18.945 13.961 8.301 4.291 2.928 2.515 738

(*) Região metropolitana de Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo Fonte: IBGE

suficiente, ainda, para um crescimento duradouro, de longo prazo, como alardeiam ministros e portavozes.

O QUADRO EM JUNHO De volta aos números do IBGE, nas seis regiões pesquisadas, o total de desempregados caiu de 2,62 milhões de pessoas, em maio, para 2,52 milhões em junho, depois de atingir 2,74 milhões em junho de 2003. Em relação a maio, houve uma redução de 4,1%, significando 108 mil desempregados a menos, com queda de 8% frente a junho de 2003 (menos 220 mil pessoas desocupadas). No lado do emprego, ao contrário, o desempenho foi bem mais modesto. O total de pessoas ocupadas de alguma forma, o que inclui “bicos”, ambulantes e empregados sem carteira, saiu de 18,35 milhões, em junho do ano passado, para 18,87 milhões em maio de 2004, subindo para 18,95 milhões no mês seguinte.

Comparado a maio, praticamente não houve alterações, já que apenas 80 mil conseguiram novas colocações, indicando uma variação pífia de 0,4% para o total de ocupados. Em relação a junho do ano passado, o total de ocupados cresceu 3,3%, com a incorporação de 598 mil pessoas ao mercado de trabalho.

GANHOS PÍFIOS Mas 76% daquelas quase 600 mil contratações foram ocupadas por trabalhadores com rendimentos inferiores a um salário-mínimo, que cresceram 18,3% entre junho do ano passado e igual mês deste ano (mais 454 mil). Os trabalhadores com rendimentos abaixo do mínimo oficial representavam 13,5% da população ocupada em junho de 2003 e passaram a registrar uma participação de 15,5% no mesmo mês deste ano. Praticamente 72% das novas vagas foram abertas no setor de

serviços (comércio, oficinas de veículos, imobiliárias, bancos, escolas, hospitais e administração pública), onde ocorrem com maior freqüência contratações sem registro e com baixa remuneração.

FORA DO MERCADO Como se pode observar, a queda no número de pessoas desocupadas foi mais intensa do que o crescimento do total de ocupados. No primeiro caso, deixaram a lista de desempregados quase 108 mil pessoas, mas apenas 80 mil delas conseguiram emprego entre maio e junho deste ano, indicando que 28 mil deixaram o mercado de trabalho. Na versão do IBGE, a redução do número de desocupados foi influenciada pela saída de aposentados e estudantes do mercado, motivada pela recuperação dos rendimentos. Na fase anterior, aquelas pessoas passaram a procurar emprego como forma de re-

Adicionalmente, a queda no total de desocupados foi determinada, em larga medida, pela redução no número de pessoas sem emprego com idade entre 25 e 49 anos – o que não caracteriza aposentados, nem estudantes. Dos 108 mil que deixaram a condição de desempregado em junho, na comparação com maio, seja porque desistiram de procurar emprego, seja porque conseguiram colocação, metade (ou 54 mil) tinha entre 25 e 49 anos. Idem na comparação com junho do ano passado: neste caso, dentre as 220 mil pessoas que saíram do desemprego, perto de 105 mil (48%) estavam naquela faixa etária. A queda do desemprego favoreceu especialmente a categoria incluída entre aqueles sem instrução e com menos de oito anos de instrução. Esta faixa teve uma participação equivalente a 81% das pessoas que saíram da condição de desocupadas na comparação com junho do ano passado (ou seja, 178 mil pessoas com baixa instrução voltaram a trabalhar e/ou abandonaram a busca por empregos, de um total de 220 mil). No curtíssimo prazo, comparando junho a maio deste ano, daqueles 108 mil que deixaram o desemprego, nada menos do que 60 mil tinham baixa ou nenhuma instrução, correspondendo a 55,5% do total. Para finalizar, embora o total de empregados sem carteira assinada tenha se mantido estável na comparação com maio, quando considerado em relação a junho do ano passado, aquele número aumentou 6,6%, com 267 mil empregados a mais sem registro (ou 44,6% dos novos empregos criados no período). Os empregados com carteira assinada cresceram bem menos (avanço de 3,2% frente a junho de 2003), correspondendo a 254 mil pessoas a mais.

Guinada à vista na política econômica?

da Redação No Palácio do Planalto, o presidente Lula ouvia as ponderações dos ministros sobre a elevação da alíquota de contribuição previdenciária das empresas. Para a equipe econômica, a medida seria necessária para compensar o gasto adicional do Tesouro Nacional com a correção dos benefícios de aposentados e pensionistas do INSS, prejudicados na conversão de moedas do Plano Real. Já tinham sido expostas as dificuldades que o governo teria no Congresso. Mas, armado com estudos técnicos, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, explicava que a medida não aumentaria a carga tributária, uma vez que se preparava um pacote para reduzir outros impostos. Foi quando o ministro da Casa Civil, José Dirceu, questionou: se vai aumentar agora, e depois diminuir, por que essa confusão? Palocci ficou mudo por um segundo. Foi o suficiente para o presidente

decidir não assinar nada. Não é a primeira vez que os argumentos de Palocci não convencem Lula. Mas, agora, o não à Fazenda indicaria uma mudança na correlação de forças internas do governo, que poderia ameaçar uma década de hegemonia monetarista, ditada pelos economistas radicais que rejeitam qualquer alternativa fora do receituário neoliberal para enfrentar as vulnerabilidades da economia brasileira.

BOM MOMENTO O momento para mudar seria favorável, graças, inclusive, ao cenário econômico, diante de uma perspectiva de estabilidade, a médio prazo, não de crise. Outros elementos estimulantes seriam o calendário eleitoral, o aumento da pressão por investimentos em infra-estrutura e na área social, a aproximação da metade do mandato, a saturação da carga tributária e a manutenção dos juros nas alturas. A tentativa de guinada seria

liderada por José Dirceu, que contaria com apoio de vários setores organizados da sociedade, angustiados para colher os frutos da esperança que plantaram. Querem ver Dirceu empunhando a bandeira do crescimento já!, para convencer Lula da necessidade de uma política econômica mais ousada. O presidente não está convencido de que o país pode crescer acima dos 4% fixados pela equipe econômica. Mas tampouco está convencido do contrário. Nove entre dez ministros acreditam que, mais do que possível, acelerar o crescimento é necessário para o sucesso do governo. Embora só Palocci tenha projeções e estatísticas para respaldar seus argumentos, a inflexibilidade da Fazenda e do BC tem causado aborrecimentos, como o da medida provisória dos aposentados. E o presidente Lula foi convencido a coloca-los à prova, com a criação da Câmara de Política de Desenvolvimento Econômico, instalada semana passada. Isso, na

prática, pode significar pouca coisa. Mas, no campo simbólico, a iniciativa representaria o fim de um ciclo. Inclusive, porque a competência para “formular políticas e estabelecer diretrizes gerais e planos nacionais e regionais de desenvolvimento econômico” sai da panela dos técnicos do tripé Fazenda-BC-Planejamento, e passa para a Casa Civil.

OUTRA CÂMARA A partir de agora, a função do colegiado da Câmara de Política Econômica, sob coordenação do ministro da Fazenda, fica restrita à formulação e proposição de políticas econômicas. A Câmara comandada por Dirceu, terá de “coordenar, articular e acompanhar a implementação dos programas e ações estabelecidos com vistas a promover o desenvolvimento econômico”. E poderá convocar técnicos de qualquer órgão governamental, ou convidar consultores de fora do governo para colaborar. Uma chance para concentrar cérebros que trabalhem

num modelo de desenvolvimento que combine crescimento com inclusão social. Dirceu já pediu ao ministro da Secretaria Especial do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico, Jaques Wagner, para procurar o ex-ministro Celso Furtado. Na instalação da Câmara, Dirceu assinalou que não pretende concorrer com a de Política Econômica. E Lula avisou que não quer ver divergências virarem nova crise estampada na imprensa. E que equilíbrio fiscal, inflação controlada e balanço de pagamentos favorável são condições prévias para qualquer política de desenvolvimento sustentável. Se tiver sucesso, Dirceu pode resgatar promessas de campanha, quando o candidato Lula repetia que a Fazenda e o BC não seriam as áreas mais importantes do seu governo. A crise econômica de 2003, impediu a mudança. Num cenário mais favorável, o plano começaria a sair da gaveta. (Nelson Breve, de Brasília, DF – Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br)


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NACIONAL DILEMAS DA HUMANIDADE

Socialismo é a saída para a crise

Intelectuais de diversas partes do mundo apontaram a necessidade de reforçar o combate ao imperialismo para resolver os problemas dos países pobres

representados por cinco variedades, por imposição do capital internacional. Assim, a alimentação, que deveria estar adequada ao ambiente em que se vive, é desestruturada. As transnacionais exercem o controle do comércio agrícola usando o discurso do livre comércio para disfarçar o desrespeito à soberania das nações. Outra forma de controle é exercida pela biotecnologia com suas leis de patentes”, afirmou Stedile.

MARGINALIZADOS

EVITAR O PERIGO Chossudovsky lembrou que o atual presidente do Banco Central do Brasil, Henrique Meirelles, foi um dos arquitetos do Plano Cavallo em 1996, que levou a Argentina à bancarrota. Assim, avaliou, o Brasil corre o risco de ter o mesmo destino e mergulhar numa crise econômica sem precedentes. O economista observou que “hoje, temos teatros de guerras por toda parte. O terrorismo e a Al-Qaeda, criados pela CIA, não passam de justificativas. Na verdade, tratase de uma guerra de imposição do modelo econômico estadunidense ao restante do planeta”. Ele acredita que, se não houver movimentos sociais fortes que se oponham diretamente ao capital, a situação deve piorar. “A decomposição do sistema financeiro e o empobrecimento da população tendem a se agravar,” disse O professor de Sociologia da Unicamp, Ricardo Antunes, falou sobre a degradação das condições de trabalho nos últimos 30 anos. Hoje, segundo a Organização Internacional do Trabalho, 1,2 bilhão de pessoas trabalham em condições precárias em todo o mundo, ou estão permanentemente excluídas do mercado. No Brasil, 60% da população economicamente ativa está na informalidade, e o país tem a maior taxa de desemprego no mundo, disse Antunes. O teólogo Boff mostrou-se pessimista com o destino da Terra: “Se a linha de aquecimento do planeta se cruzar com a linha de escassez da água, a Terra perecerá e todos nós também”. Lembrou que só o agronegócio consome 80% da água potável. Michael Löwy, professor brasileiro radicado na França e membro do Centro Nacional de Pesquisas Científicas francês, acredita que a catástrofe ecológica já começou e que para brecar o desastre é preciso correr contra o tempo. “O combate aos transgênicos é uma batalha

“O Brasil corre o risco de ter o mesmo destino da Argentina, e mergulhar numa crise econômica ” Michel Chossudovsky

ecológica, social, política e econômica”, afirmou. A professora chinesa Lau Kin Chi, da Universidade Lingnany, questionou o aumento de produtividade no capitalismo, porque gera modernização a altos custos ambientais, sociais e econômicos. Ela acredita que, além disso, é preciso lutar contra o tipo de consumidor que a lógica capitalista produz, que se rende ao fetichismo da mercadoria. Maria Adélia de Souza, da Unicamp, criticou os debatedores ao afirmar que não há escassez de água e de coisa alguma, mas má distribuição. E enfatizou: “Sou radicalmente contra o catastrofismo. O que temos que discutir é a desigualdade socioespacial”. Ao que João Pedro Stedile, dirigente nacional do MST, acrescentou que o problema fundamental da água é a privatização, não a escassez. “Hoje, 80% dos alimentos são Mauricio Scerni

MODELO DESTRUTIVO

mais do que um problema social, é uma questão política. “Colocam-se na mesma lógica movimentos sociais e o crime organizado”, disse. Relacionou isso com o individualismo e o medo crescente de sair à rua, que impedem as pessoas de se encontrar, prejudicando também o debate político. Mauricio Scerni

A

meta de alcançar o socialismo não se alterou. Mudou apenas a estratégia de como chegar lá, no momento em que o imperialismo dos Estados Unidos impõe ao mundo guerras preventivas para instituir o modelo de mercado que dá todo o poder ao capital. Esta é a síntese dos debates da Conferência Internacional Dilemas da Humanidade: Diálogo entre Civilizações, realizada entre os dias 21 e 24 de julho, no Palácio da Cultura, no Rio de Janeiro. O evento, organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), contou com as presenças do filósofo húngaro István Mészaros, do teólogo brasileiro Leonardo Boff, do economista canadense Michel Chossudovsky, do negociador venezuelano na Alca e professor Edgardo Lander, do cientista político cubano Jesús García Brigos, e dos intelectuais brasileiros Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Plinio de Arruda Sampaio e Paulo Arantes. Nunca o socialismo foi tão necessário como agora, afirmou o ex-deputado constituinte e presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária , Plinio de Arruda Sampaio. Em sua exposição, Sampaio disse que, no século 20 e no início do 21 o capitalismo não resolveu nenhum dos problemas da humanidade. E defendeu a formação de uma nova internacional socialista dos povos.

Guito Moreto/Folha Imagem

Mário Augusto Jakobskind (*) do Rio de Janeiro (RJ)

Guito Moreto/Folha Imagem

É preciso repensar a estratégia de construir um mundo mais justo, lutando contra as guerras imperiais dos EUA

O filósofo húngaro István Mészáros alertou para a existência de um número cada vez maior de excluídos, e que, para controlar essas pessoas marginalizadas, as leis têm se tornado mais duras, e a polícia mais violenta. “Para que as coisas mudem, os trabalhadores precisam voltar a ter poder de decisão”, afirmou. Depois de destacar que o capital não pode eliminar todo o trabalho, mas que o trabalho pode prescindir do capital, Mészáros criticou os “pensadores pós-modernos” que ganham muito espaço na mídia para afirmar que o trabalho está desaparecendo. E alertou para o chamado “crescimento canceroso”, dizendo que o desafio não é parar de crescer, mas atentar para o tipo de crescimento. O israelense Bryan Atinsky denunciou que o governo Ariel Sharon continua a construir um muro entre Israel e as terras palestinas. Este muro, condenado pelo conjunto de nações, além de segregar várias comunidades sem comunicação entre si, avança sobre o território palestino o quanto pode, roubando-lhe terras.

CRIMINALIZAÇÃO O jurista brasileiro Nilo Batista chamou a atenção para o crescente processo mundial de criminalização. “A moradia é um direito, mas condenam-se as favelas; o trabalho é um direito, mas condena-se a informalidade. A massa de excluídos do neoliberalismo é controlada por um amplo processo de criminalização”. Informou que quatro jovens pobres e negros são assassinados, por dia, no Rio de Janeiro. O professor da UFRJ, Marildo Menegat, lembrou que a violência,

“No século 20 e no início do 21 o capitalismo não resolveu nenhum dos problemas da humanidade” Plinio de Arruda Sampaio

“Na China, há um excedente de 400 milhões de trabalhadores no campo” Wen Tiejun

LÍBIA, CHINA E VENEZUELA O professor e negociador do governo venezuelano na Alca, Luis Edgardo Lander, o economista chinês Wen Tiejun e o engenheiro líbio Milad Alshebani detalharam os modelos de representação em seus países. Alshebani criticou o sistema de democracia representativa, que considera um modelo em crise. Exemplificou com a Espanha, onde, apesar de 90% da população ter dito não à participação na guerra contra o Iraque, o governo José María Aznár enviou tropas para reforçar as forças de ocupação. Nos EUA, o voto não é obrigatório: “Apenas metade da população foi às urnas e Bush foi eleito por pouco mais de 25% dos americanos”. Alshebani explicou que, há 15 anos, os 6 milhões de habitantes da Líbia se organizam em cerca de 500 assembléias, as “Conferências Básicas do Povo”, e que esta é a única instância legislativa do país. Para o venezuelano Luiz Edgardo Lander, é preciso pensar no socialismo como uma idéia em debate, não como único caminho. “Muitos outros mundos são possíveis”, afirmou. Lembrou que as revoluções culturais mundiais de 1968, a queda do muro de Berlim e o colapso do chamado socialismo

real marcam uma nova época na luta pela liberdade, democracia, igualdade, diversidade, e por uma forma de estar na natureza que não ponha em perigo a vida no planeta.

BARBÁRIE DO CAPITAL O economista chinês Wen Tiejun, secretário-geral executivo da Sociedade para Reestruturação do Sistema Econômico de Pequim, destacou que 70% dos chineses vivem no campo, na agricultura de subsistência. Ao todo, são 500 milhões de trabalhadores rurais mas, na China, para garantir a produtividade e atender à demanda são necessários apenas 100 milhões. Ou seja, há um excedente de 400 milhões de pessoas. “Viemos para esta conferência no intuito de trocar experiências e aprender o modo de organização do MST para pensar em como resolver o problema dos sem-terra em nosso país”, concluiu. Para Plínio de Arruda Sampaio, o problema central, hoje, é a falta de sintonia entre governos, Estado e poder popular. A seu ver, o desafio urgente é a sociedade, em todo o mundo, se articular nas diferenças. “Precisamos criar uma nova Internacional dos povos, que é o que o Fórum Social Mundial vem fazendo”, afirmou. O filósofo e escritor francês Dany Dufour acentuou que o atual período pós-moderno se caracteriza “pelo desaparecimento da criticidade e da dimensão simbólica da vida”. Como os valores culturais – símbolos, crenças e modos de se relacionar com a realidade de cada povo – são importantes fontes de resistência, o processo neoliberal “desculturaliza” e “dessimboliza” para poder dominar. “O neoliberalismo impõe, pela cultura, a realidade da mercadoria, e isso não acontece de forma aparentemente opressora ou agressiva. A TV, a publicidade e a internet, por exemplo, têm aparência gentil, divertida, mas conformam as pessoas ao consumismo. Isso é uma agressão velada, consegue-se a sujeição por meio de uma ‘violência doce’”, explicou. O filósofo e professor da PUCRJ, Leandro Konder, elogiou o MST que, nestes 20 anos de existência, tem dado lição de coerência política e social, não perdeu suas características originais ao longo de sua trajetória, e sempre “ajuda a lembrar como a burguesia brasileira é tratante”. Tratante, explicou, é o mesmo que burguês, aquele que faz tratos, negócios. “Daí se pode tirar o que é a nossa burguesia”, ironizou. (*) Colaboraram Débora Motta, Rodrigo Brandão e Zilda Ferreira


Ano 2 • número 74 • De 29 de julho a 4 de agosto de 2004 – 9

SEGUNDO CADERNO

FÓRUM SOCIAL DAS AMÉRICAS

Alternativas para uma nova sociedade

Jorge Pereira Filho* enviado especial a Quito (Equador)

Arquivo Rits

Em Quito, no Equador, movimentos sociais discutem como unificar forças para criar outro mundo possível

E

m meio às cordilheiras dos Andes, a mais de 2,8 mil metros de altitude, o movimento continental contra o neoliberalismo tenta ganhar impulso com o 1º Fórum Social das Américas. O encontro, que compõe a agenda do Fórum Social Mundial, começou dia 25 de julho, em Quito, no Equador, e termina dia 30 de julho. Durante o curto período, cerca de 700 organizações sociais de 45 países presentes buscam fortalecer a luta por um projeto alternativo de sociedade. Quito deu uma cor própria ao Fórum Social, ratificando a presença do movimento indígena que, no Equador, derrubou dois presidentes nos últimos 15 anos. A partir desse fórum, temas como a construção de um Estado plurinacional e o respeito à diversidade étnica passam a compor a agenda alternativa. Esses assuntos enriquecem uma pauta comum dos movimentos continentais, centrada sobretudo na luta contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e os Tratados de Livre Comércio (TLCs), pelo não pagamento da dívida externa e contra a militarização. “O particular do fórum é o fato de que, desde 1994, há um processo de recomposição das forças sociais do continente. Aqui, temos um espaço de reflexão e articulação dessas redes e movimentos”, avalia Oswaldo León, da coordenação do Fórum Social das Américas.

REDESCOBRIMENTO Em 1994, movimentos de indígenas, camponeses, negros e outros grupos iniciaram a campanha dos “500 anos de Resistência Indígena, Negra e Popular”, cujo lema era “unidade na diversidade”. A iniciativa tinha como objetivo rejeitar a proposta do governo espanhol, de comemorar a chegada de Cristóvão Colombo às Américas, em 1494. Como decorrência da campanha, foram criadas a Coordenação Latino-Americana das Organizações do

1º Fórum Social das Américas foi marcado pela discussão de propostas alternativas ao modelo neoliberal e pela nova agenda de mobilizações

Campo (Cloc) e a Frente Continental de Organizações Comunais (Fcoc). Surgiram e ganharam projeção internacional também o movimento zapatista, no México, e o Movimento do Trabalhadores Rurais Sem Terra, no Brasil. “O fórum pode contribuir com esses processos, sendo um fator catalisador, tornando possível convergências de lutas, agendas e plataformas”, diz León.

As redes dos movimentos sociais trouxeram outro desafio para o Fórum Social: discutir um projeto de integração a partir dos povos. Tal discussão permeia boa parte das centenas de debates, divididos em conferências, seminários, painéis e oficinas. “Teremos de fazer a escolha entre dois projetos: o de morte, exclusão e dominação, e outro de integração e de defesa de nossa cul-

tura. Engana-se quem pensa que a dominação começa pela economia. A dominação, primeiro, é cultural”, considera o argentino Adolfo Perez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz de 1980. Também recebe atenção especial, entre os debates, o fortalecimento de projetos antiimperialistas no continente, como a defesa de Cuba e as transformações na Vene-

zuela, responsável pela maior delegação no evento. “Os governantes devem pensar em políticas locais, e não simplesmente em cumprir as correntes políticas e econômicas que vêm dos Estados Unidos. Hugo Chávez, por exemplo, tem governado com os olhos para a América Latina e proposto uma integração dos países”, avalia Esquivel. (*Colaborou Claudia Jardim)

Farah Fossé

Rosita Helena Manobanda caminha lentamente por uma das ruas do centro moderno de Quito. Uma multidão de idosos grita: “Lutando e criando o poder popular”. Rosita é uma das aposentadas há mais tempo em greve de fome: dez dias. Aos 75 anos, seu protesto poderia ser fatal, mas ela resiste. Outros 14 idosos não conseguiram suportar tanto tempo sem comer e morreram durante a ação realizada em diversas regiões do Equador. Os aposentados reivindicam aumento em suas pensões e o cumprimento, por parte do presidente Lucio Gutiérrez, da determinação constitucional de reajustar as aposentadorias. Com vestimentas típicas e um chapéu preto, Rosita é cumprimentada por todos os idosos. “Trabalhei 45 anos pavimentando ruas. Hoje, minha aposentadoria não basta para pagar minhas contas e comprar comida”, explica a ex-trabalhadora de uma empresa pública. Os aposentados no Equador não têm piso para seu rendimento mensal. Alguns recebem apenas 6 dólares (menos de R$ 20). “Gasto 50 dólares com luz, gáz e água. Só consigo comer porque meu filho me dá dinheiro. E meu outro filho migrou para a Espanha e me manda roupas”, conta Rosita. A luta dos aposentados equatorianos é mais que um conflito particular ou local. E talvez tenha sido obra do acaso para o governo de Gutiérrez que o protesto de-

Arquivo Rits

Aposentados dão mais vida a encontro

Rosita Helena Manobanda, 75 anos, protestou contra o imperialismo com dez dias de greve de fome

sesperado dos idosos ocorresse às vésperas do início do Fórum Social das Américas. Há meses sem solução, o conflito com os idosos rapidamente ganhou repercussão internacional. “Nosso dinheiro está sendo entregue ao Fundo Monetário Internacional (FMI). O

Congresso Nacional já aprovou um piso de 100 dólares para o salário-mínimo e reajustes escalonados para quem ganha mais. Mas Gutiérrez vetou o projeto porque diz que não foram identificadas as fontes de recurso”, explica Vicente Vargas, aposentado integrante do

Comitê de Greve. Mais que um fato isolado, a experiência dos idosos deu rosto, suor e coragem às reivindicações de um movimento global que luta contra o neoliberalismo. “As políticas sociais e econômicas dos países da América Latina são definidas

Marcha contra acordos com os EUA Uma nova jornada de mobilizações em todo o continente, para tentar barrar a estratégia de dominação econômica dos Estados Unidos para a América Latina. Essa foi a decisão dos movimentos sociais da Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, para tentar impedir os Tratados de Livre Comércio (TLCs), nova roupagem dos acordos bilateriais. Trata-se do chamado “plano B”, após o impasse das negociações

da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Os movimentos sociais correm contra o tempo. Enquanto se discutiam as conseqüências dos TLCs durante o 1º Fórum Social das Américas, dia 26 de julho, os presidentes dos países andinos – com exceção da Venezuela – avançavam nas negociações de um acordo, em Lima, Peru. Para o líder sindical colombiano Hector Moncayo, a saída é a mobi-

lização nas ruas, “a melhor maneira de educar o povo, senão eles vão nos aniquilar”. Por isso, as organizações sociais andinas decidiram “parar” seus países nos meses de setembro e outubro, antes da data prevista para a assinatura do acordo bilateral entre EUA e Equador. Para janeiro de 2005, está prevista uma grande marcha continental, que vai se unir à Campanha Continental Contra a Alca. (CJ)

pelo pagamento da dívida externa”, avaliou Bervely Keene, da Campanha Jubileu Sul, em uma mesa de discussão do Fórum Social. Ou como disse o venezuelano Edgardo Lander, em uma conferência: “A idéia de que o Estado tenha responsabilidades sociais, como o serviço de água, educação e saúde, é corrompida pelo neoliberalismo, que privatiza as relações sociais”. Ou, ainda, como defendeu José Nuñes, da República Dominicana, em um debate sobre migração: “O livre mercado dissocia a possibilidade do desenvolvimento econômico e do desenvolvimento humano”.

VITÓRIA DA PRESSÃO POPULAR Depois que começou o Fórum, o governo Gutiérrez cedeu à pressão dos aposentados e à ameaça do protesto ser encampado por outras organizações presentes no Equador. Dia 26 de julho, o presidente afirmou que iria atender às reivindicações e aumentar a pensão dos aposentados. Apesar de não saber se Gutiérrez vai cumprir a promessa, Rosita poderia voltar a comer. A pressão popular havia surtido efeito, como havia dito Lander: “Hoje, está aberta a possibilidade de repensar o mundo. A construção e a resistência atravessam o país”. Ou como resumiu o sociólogo peruano Aníbal Quijano, sobre a busca por uma alternativa: “Igualdade entre iguais é a redistribuição equitativa dos recursos humanos”. (JPF)


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AMÉRICA LATINA FÓRUM SOCIAL DAS AMÉRICAS

Indígenas fortalecem luta por territórios

A

presença de militares equatorianos armados ao redor do local onde se realizava a 2ª Cúpula Continental dos Povos Indígenas, em Quito, não intimidou os 600 representantes de 60 povos indígenas das Américas. A declaração final do encontro tem forte conteúdo político e denuncia governos e transnacionais. Além disso, reafirma a luta pelos territórios e direitos coletivos como elemento de unidade do movimento indígena. O documento também cobra do governo brasileiro uma solução para o caso da área indígena Raposa – Serra do Sol, em Roraima, “um conflito causado pela falta de garantias territoriais e de vida”. Na entrada do evento, soldados fardados, empunhando carabinas e escopetas, contrastavam com crianças – vestidas com trajes típicos de seus povos – que corriam e brincavam, indiferentes. Tal imagem se repetiu durante os cinco dias em que se realizou a cúpula, que terminou dia 25 de julho e antecedeu o Fórum Social das Américas. Na opinião de muitos, a declaração final avançou em relação ao resultado do primeiro evento, realizado no México, em 2000, cujas resoluções tinham conteúdo mais religioso e menos político. “Conseguimos obter uma unidade interna para impulsionar uma coordenação permanente no continente. Precisamos esConvenção 169 tar integrados, Importante conquista pois temos as dos povos indígenas que lhes garante mesmas necesreconhecimento de sidades”, afirdireito à autonomia, mou Gonzalo à igualdade de tratamento trabalhista e à Gusman, diripreservação de seus gente internaterritórios cional da Or-

Cúpula indígena reuniu 600 representantes de 60 povos das Américas para debater novas formas de mobilização contra a opressão de organismos como o FMI Divulgação RITS

Jorge Pereira Filho enviado especial a Quito (Equador)

Fotos: Verena Glass/Carta Maior

Cúpula de Quito, no Equador, aumenta articulação de movimento indígena e rechaça modelo neoliberal

ganização das Nacionalidades Quíchuas do Equador (Ecuarunari).

TERRA E RESISTÊNCIA O principal tema da declaração foi o da defesa dos territórios indígenas, ameaçados hoje por Estados, organismos internacionais e grandes empresas. “Os governos nacionais, seguindo a linha do Fundo Monetá-

Apoio a Cuba, Venezuela e Equador A declaração da 2ª Cúpula contém três moções de apoio à resistência dos cubanos, venezuelanos e equatorianos. “Solidarizamo-nos com o povo cubano por sua permanente luta antiimperialista”, registra o documento. Sobre a Venezuela, os indígenas avaliaram que o presidente Hugo Chávez tem se caracterizado pela defesa da soberania nacional, contra a grave ofensiva dos Estados Unidos. As organizações assumiram o compromisso de realizar mobilizações durante o

referendo venezuelano, que decide o futuro de Chávez em 15 de agosto. “O movimento indígena ganhou uma voz que não tinha quando Chávez chegou ao poder, em 1998. Pela primeira vez em nossa história vamos apoiar um governo”, explicou Nicia Maldonado, presidente do Conselho Índio da Venezuela (Conive). Segundo Nicia, Chávez assumiu o compromisso de que iria pagar uma dívida histórica com os índios – e seu governo tem honrado com a promessa. “Chávez tem feito

demarcações de terra, criou uma cédula de identidade para cada povo, recusou os transgênicos. Por isso, queremos que cumpra seu mandato”, explica. Os indígenas também prestaram ato de solidariedade para com a luta da Conferência das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), contra o governo de Lucio Gutiérrez e pela defesa de sua plataforma política de construir um Estado Plurinacional, onde as diversidades sejam respeitadas.

rio Internacional (FMI), do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), nos devastam com o pagamento da dívida externa e revertem nosso direito coletivo à terra, modificando legislações para permitir sua privatização e apropriação individual”, registra a resolução do encontro. O documento se opõe a todas as negociações de acordos de livre co-

mércio em curso. “A experiência de nossos irmãos mexicanos nos ensinou muito. Hoje, o México importa um alimento típico de seu país, o milho, de agricultores estadunidenses. Para piorar, compram milho transgênico. Não queremos isso”, explica Gusman, sobre os efeitos do Tratado de Livre Comércio do Atlântico Norte (Nafta). Nicia Maldonado, presidente do

Conselho Índio da Venezuela (Conive), concorda: “O neocolonialismo não nos mata fisicamente, mas pela fome e pela escravidão. Temos de somar forças continentais para enfrentar o sistema e mostrar que desejamos ser livres e autônomos”.

Organismos multilaterais são ameaça O debate sobre a relação dos povos indígenas com os organismos multilaterais foi uma das mais polêmicas discussões da 2ª Cúpula Continental dos Povos Indígenas. De um lado, estão entidades que acreditam que a única forma de defender os direitos indígenas é assumir uma posição crítica e combativa frente a organismos como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. De outro, estão representantes de entidades favoráveis a um diálogo com esses organis-

mos, não excluindo a possibilidade de serem contemplados em seus projetos. Na declaração final do encontro, prevaleceu o repúdio às políticas dos organismos financeiros internacionais. “Eles querem matar a fome nos presenteando com um bolo feito com milho contaminado. Eles nos oferecem migalhas para evitar que nos mobilizemos e lutemos por nossos direitos”, critica Salvador Zuñiga, do Comitê de Organizações Populares e Indígenas (Copin), de Honduras.

O colombiano Antonio Jacanamijoy, ex–coordenador do Fórum Permanente para as Questões Indígenas das Nações Unidas, procurou contemporizar: “Não podemos nos isolar do processo. Se o Banco Mundial e o FMI querem conversar conosco, vamos até lá colocar nossas posições”.

PERVERSIDADE LIBERAL A venezuelana Nicia Maldonado, presidente do Conselho Índio da Venezuela (Conive), também é contrária a acordos com as institui-

ções internacionais. “Não podemos legitimar suas políticas. De que me serve uma escola se não posso definir qual o conteúdo ensinado? Os organismos internacionais não querem nos apoiar, mas sim definir o que vamos pensar.” A saída, segundo Zuñiga, é o movimento indígena buscar projetos alternativos de desenvolvimento. “Temos de nos organizar, desde a base, para exigir autonomia para fazermos uso da nossa riqueza, nossos minérios, nossas florestas”, sugere o líder hondurenho. (JPF)

Os indígenas não estão satisfeitos com sua participação no Fórum Social Mundial, cuja quinta edição acontece em janeiro de 2005, em Porto Alegre (RS). “Não queremos ser convidados a ir ao Fórum, mas sim participar ativamente de todo o seu processo, inclusive das decisões”, comenta Blanca Chancoso, em entrevista ao Brasil de Fato, durante a 2ª Cúpula Continental dos Povos Indígenas, concluída dia 25 de julho, em Quito, Equador. Brasil de Fato – O que os povos indígenas esperam do Fórum Social Mundial? Blanca Chancoso – Aproveitamos a Cúpula para refletir sobre nossa participação nesse movimento por outro mundo possível, pois até agora os indígenas não estão atuando como deveriam. Não queremos ser convidados, mas ser parte integrante, ter igual-

Paulo Pereira Lima

Chancoso quer mais participação no FSM

dade de condições. Desejamos sentar na mesa com o mesmo nível que têm outros atores para discutir as definições do Fórum. Podemos contribuir muito nesse processo.

Quem é

A líder indígena Blanca Chancoso integra a Conferência das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) e coordena o capítulo equatoriano do Fórum Social Mundial.

BF – Na prática, como isso poderia ser feito? Blanca – É importante que os movimentos sociais respeitem nossas tradições e que façamos alianças verdadeiras. Temos uma herança milenar e defendemos a vida acima de tudo. Somos os mais atingidos pela globalização, os Tratados de Livre Comércio, a militarização. Por enquanto, estamos discutindo apenas politicamente, para ver como nós, povos

indígenas, podemos aumentar nossa integração e, depois, como podemos nos aliar também a outros povos empobrecidos pelo neoliberalismo. BF – No Equador, o movimento indígena já alcançou esse nível de reconhecimento popular. Blanca – Sim. Aqui, temos vivido um processo longo e se criou uma referência popular. Temos propostas e agimos dentro de princípios. Desenvolvemos um pensamento político coletivo. Nosso objetivo é construir um Estado Plurinacional, que contenha o lema “a unidade dentro da diversidade”. Queremos reafirmar nossa identidade. Obrigamos o Estado a nos reconhecer. Em outros países, não há isso e talvez seja esse o motivo da nossa pequena participação ainda no Fórum Social Mundial. (JPF)

DIREITOS COLETIVOS Os indígenas também se mostraram contundentes na exigência de que todos os Estados nacionais reconheçam e apliquem a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre direitos territoriais e trabalhistas dos povos originários. “Denunciamos que os Estados das Américas se caracterizam por violar instrumentos jurídicos nacionais e internacionais em detrimento dos direitos coletivos de nossos povos”, assinala o documento. Muitos Estados nacionais, como o Equador ou o Brasil, reconhecem direitos coletivos dos indígenas na Constituição. Na prática, porém, a história é outra. Tais governos desrespeitam preceitos básicos constitucionais, como o direito à diversidade cultural – com a preservação de suas culturas, línguas e tradições – ou o direito à gestão autônoma dos territórios indígenas. A Cúpula também teceu duras críticas à militarização que ameaça cada vez mais a soberania dos povos latino-americanos. “Trata-se de um processo de recolonização da América Latina por parte dos Estados Unidos, fato que se comprova pelas bases militares instaladas estrategicamente, como no Equador, na Colômbia, no Peru, em Cuba, em Honduras e na Argentina.”

PROPOSTAS DE LUTA Frente a esses desafios, os indígenas também elaboraram alternativas de resistência. Uma delas diz respeito à busca de alianças com outros setores da sociedade prejudicadas pelo neoliberalismo, sobretudo com os movimentos sociais. Outra exigência é a repatriação, sem restrições, dos recursos genéticos e culturais extraídos legal e ilegalmente das terras indígenas. A Cúpula também define a criação de uma agenda comum de ações e mobilizações para rechaçar o modelo neoliberal.


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INTERNACIONAL ENTREVISTA

“Tomar o poder para mudar o mundo”

Afirma Tariq Ali, para quem a América Latina está se rebelando contra o império estadunidense, como a Venezuela

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omar o poder para transformar o mundo, mesmo que seja em pequenas doses. Esta é a avaliação do escritor e cineasta anglo-paquistanês, Tariq Ali. A seu ver, a América Latina, laboratório de experimentos do modelo neoliberal, começa a se rebelar contra o “império estadunidense” e a Venezuela é uma amostra dessas mudanças. “Esse é um exemplo que os Estados Unidos querem eliminar”, diz Ali. O escritor, que esteve em Caracas semanas antes do referendo revogatório, avalia que mais do que basear-se em estereótipos para qualificar o governo Chávez, é preciso avaliar as mudanças que estão ocorrendo na vida das pessoas. Em contrapartida, critica o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, por não governar para a população que o elegeu. “Lula é um líder débil que está tão emocionado de estar no poder que se esqueceu por que está no poder”. Para ele, a solução para a crise que enfrenta a esquerda latino-americana, refletida em grande medida no Brasil, seria a criação de um movimento para a refundação da esquerda. Brasil de Fato – Como o senhor analisa a explosão dos movimentos sociais latino-americanos contra o neoliberalismo? Tariq Ali – A América Latina foi utilizada pelos Estados Unidos, durante muito tempo, como laboratório. Tudo que os EUA propunham, testava primeiro na América Latina. Quando queriam, utilizavam politicamente os militares para esmagar os movimentos populares, soltando as rédeas às ditaduras militares. Fizeram, no continente – Brasil, Argentina e Chile – três das ditaduras mais brutais que já vimos. Logo depois do colapso do inimigo comunista (União Soviética), baixaram a guarda na frente política, mas fecharam a América Latina com o punho econômico e disseram: “Essa é a única maneira de avançar”. Agora, porém, a América Latina, o laboratório do império estadunidense, é a primeira a rebelar-se contra ele. Por isso, muitos processos distintos e interessantes estão ocorrendo na região. Mas a grande debilidade desses movimentos é a sua incapacidade para se unir e refundar a esquerda latino-americana.

Quem é O escritor e cineasta anglopaquistanês, Tariq Ali, é um dos principais líderes mundiais do movimento antiglobalização. Entre outras obras, Ali é autor de O Choque de Fundamentalismos, sobre os atentados de 11 de setembro e Bush na Babilônia: A recolonização do Iraque. O escritor, que também edita a revista britânica New Left Review, esteve em Caracas para a entrega de um manifesto, articulado no Brasil, em solidariedade ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez. palmente de camponeses semterra e da classe trabalhadora desempregada, com muitos resultados. Por exemplo, a luta em Cochabamba, na Bolívia, contra a privatização da água; a dos camponeses de Cuzco, no Peru, contra a privatização da eletricidade. Em ambas, os governos primeiro reprimiram, e logo tiveram que retroceder. Depois, diante do colapso na Argentina, onde, em pouquíssimo tempo, ascenderam ao poder e foram depostos quatro ou cinco presidentes, começou a se evidenciar a crise do modelo neoliberal. No Brasil, com a pesada desindustrialização proporcionada pelo governo Fernando Henrique Cardoso que, inclusive, fez encolher a burguesia local, a economia do país começou a se decompor, com grande aumento do sofrimento e das dificuldades do povo brasileiro. Essa situação estimulou o avanço do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e um descontentamento generalizado da população resultou na vitória eleitoral de Lula, levando o PT ao poder. BF – Com o fracasso do modelo neoliberal, os EUA tentarão impor uma versão mais suave para seguir aplicando sua cartilha? Ali – Não acredito que estejam preparados para isso. Só farão isso se se sentirem ameaçados, e não estão. Os EUA não se sentem ameaçados porque existe um slogan idealista entre os movimentos sociais que diz: “Podemos mudar o mundo sem tomar o poder”. Este slogan não ameaça a ninguém, é um slogan moral. Quando os zapatistas, que ad-

“ Lula é um líder fraco que está tão emocionado de estar no poder que se esquece por que está no poder” BF – Quando o modelo neoliberal começou a se decompor? Ali – O que se iniciou aqui foi um processo de desindustrialização e de ingresso de investimentos estrangeiros especulativos. Os exemplos mais clássicos foram Chile sob (o general Augusto) Pinochet, Brasil com (Fernando Henrique) Cardoso e Argentina durante distintos governos sucessivos. Eles desindustrializaram seus países. Acreditaram que poderiam funcionar dentro de uma bolha econômica criada por um crescimento fictício, em grande parte impulsionado pelos capitais estrangeiros especulativos. No entanto, ao menor sintoma de risco (real ou imaginário) aqueles capitais iam embora. Eram capitais especulaltivos, sem qualquer interesse especial no desenvolvimento do Brasil ou da Argentina. BF – E quais foram as reações contrárias aos efeitos desse modelo? Ali – Entre elas, o surgimento de movimentos sociais, princi-

BF – Qual sua avaliação sobre o processo político liderado por Chávez? Ali – Acredito que necessita se fortalecer, ainda é débil. Creio que o movimento precisa se institucionalizar em todos os níveis, nos pequenos povoados, nas paróquias, e pode chegar a ser mais amplo, como nos Círculos Bolivarianos, ou qualquer outro nome que tenham, desde que se reúnam regularmente e que não sejam simplesmente algo dirigido de cima. Isso é muito importante, porque Chávez é um homem fora do comum na América Latina, muito especial e jovem, pode viver muitos anos ainda. Mas, mesmo assim, deve criar instituições que perdurem e transcendam sua presença no futuro do país.

Claudia Jardim

Claudia Jardim e Jonah Gindin de Caracas (Venezuela)

miro, marcharam de Chiapas até a Cidade do México, o que acreditavam que aconteceria? Nada aconteceu! Foi um símbolo moral, nem sequer uma vitória moral, porque não aconteceu nada. Ainda assim, creio que essa fase era compreensível na política da América Latina, onde o povo havia sofrido recentemente grandes golpes, como a derrota sandinista e dos movimentos armados, de modo que as pessoas se sentiam nervosas. Acredito, deste ponto de vista, que o exemplo venezuelano é o mais interessante, porque mostra que, para mudar o mundo, é preciso tomar o poder e começar a implementar mudanças, em pequenas doses se necessário, mas é necessário fazê-las. Ao contrário, nada mudará. BF – Se o movimento contra a globalização não aspira ao poder, qual suas alternativas então? Ali – Não têm qualquer alternativa. Eles crêem que é uma

“O modelo do MST no Brasil é muito mais interessante do que o dos zapatistas em Chiapas” vantagem não ter. A meu ver, isso é um sinal de bancarrota política. Se não há alternativa, o que dirão às pessoas quando elas se mobilizarem? O MST, no Brasil, tem uma alternativa. Eles dizem: “Tomar a terra e entregá-la aos camponeses pobres para que nela trabalhem”. Portanto, para mim, o modelo do MST no Brasil é muito mais interessante do que o modelo dos zapatistas em Chiapas, muito mais... BF – Nesse sentido, como o senhor analisa o impasse entre os movimentos sociais frente ao fracasso do governo brasileiro? Ali – Creio que o problema no Brasil é o seguinte: o PT captou as aspirações do povo, em especial dos pobres, mas não cumpriu nada até agora. A repressão contra o MST, no primeiro ano e meio de governo Lula, tem sido muito maior do que em qualquer ano do governo Cardoso. Isso não terminará bem. Isso acontece, a meu ver, porque o PT não se preparou seriamente para pensar sequer em uma alternativa real. Temo, porque Lula é um líder débil. Um líder débil que está tão emocionado de estar no poder que se esquece por que está no poder. O mesmo aconteceu com Lech Walessa na Polônia, quando um grande movimento de massas, o Solidarnosc, o lançou e finalmente o elegeu. O que cumpriu? Nada. E foi deposto pelo povo, em eleições. O mesmo acontecerá com Lula. BF – Qual o desafio aos setores da esquerda brasileira que restaram, que não foram cooptados pelo governo? Ali – O que necessitamos é um movimento para refundar a esquerda brasileira, que deve incluir aquelas pessoas dentro do PT, deputados, senadores e membros das bases, do MST e intelectuais socialistas, que atualmente estão muito desiludidos. Esses três componentes são muito importantes para refundar a esquerda brasileira. É uma besteira fazer isso só com algumas pessoas que renunciam e declaram “somos um novo partido”. Para refundar a esquerda brasileira se necessita de um novo tipo de movimento, de um partido distinto ao PT. Há que se refundar uma esquerda que

atente para as novas prioridades e realidades do Brasil, e não um retrato mitológico do passado. Antes das eleições, no Brasil, minha grande preocupação era que Lula, se eleito, esquecesse de quem havia votado nele e sucumbisse às políticas do Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e das instituições financeiras internacionais. Foi o que aconteceu. Para mim, a relação entre Lula e Cardoso é a mesma que a de (Tony) Blair e (Margareth) Thatcher. Blair emulou a Thatcher, assim como Lula está emulando Cardoso. As duas histórias se mesclam, o que é uma tragédia para o Brasil. Ao cabo de quatro, cinco anos, haverá uma desilusão massiva. Possivelmente, a direita ganhará de novo, e teremos que começar a luta desde o início.

BF – Por que o governo Chávez tem sofrido tantas pressões de Washington? Quais são os interesses em jogo? Ali – A Venezuela é um exemplo que os estadunidenses querem eliminar. Porque, se existe esse exemplo, os povos de outros países dirão: se os venezuelanos podem, nós também podemos. Desse ponto de vista, a Venezuela é um exemplo muito importante, por isso os EUA estão tão alterados. Por isso investem milhões de dólares para ajudar a estúpida oposição venezuelana, incapaz de oferecer uma alternativa real para as pessoas, sem contar com o que existia anteriormente: uma oligarquia corrupta e servil. Creio que, uma vez que Chávez, espero, ganhe o referendo, e depois as eleições regionais em setembro, deve empreender uma grande ofensiva de integração com o resto da América Latina. BF – Os meios de comunicação têm tido um papel político especial no cenário venezuelano, fazendo uma sistemática oposição ao governo Chávez. Como superar isso? Ali – O que faz falta, na América Latina, são meios de comunicação. Necessitamos de um canal satelital como a Al Jazeera (Oriente Médio), que poderia se

“Para mudar o mundo é preciso tomar o poder e começar a implementar mudanças, ainda que em pequenas doses” BF – Por outro lado, temos o presidente Chávez, da Venezuela, que, apesar das mudanças em seu país, tem sofrido alguma resistência por parte dos movimentos antiglobalização. Por quê? Ali – Enquanto os pobres da Venezuela apoiarem este governo, ele sobreviverá. Quando retirarem seu apoio, cairá. Seria útil que o movimento antiglobalização – e há muitas correntes diferentes ali – viesse observar o que se passa no país. Qual é o problema? Venham aos bairros, vejam como é a vida das pessoas hoje e como era antes do Chávez assumir o poder. Não se devem deixar levar por estereótipos. Não se pode mudar o mundo sem tomar o poder, e esse é o exemplo da Venezuela. Chávez está melhorando a vida de gente comum. Por isso é difícil derrubá-lo. Isso é algo que as pessoas do movimento antiglobalização devem entender, isto é política séria. Não tem importância simplesmente mudar de slogan, porque para gente comum, que o movimento diz lutar em seu nome, é muito mais importante a educação gratuita, a saúde gratuita, a comida a preço baixo, do que todos os slogans juntos.

chamar “Al Bolívar”. Faz falta alguém que reporte regularmente o que diz a direita; o que dizem os movimentos de esquerda; que relate o que quer o MST, mas de maneira independente. Este canal poderia ser muito importante para a América Latina em geral, para desafiar o mundo da BBC e da CNN, com um canal latino-americano. Isso é para o próprio interesse dos argentinos, venezuelanos... BF – Se Chávez ganhar do referendo, a oposição vai tentar novas manobras, por exemplo, acusar o governo de ter fraudado o resultado. Como enfrentar tal situação? Ali – Teremos que combater isso, quando acontecer, mas acredito que é por isso que o processo deve ser transparente e penso que virão muitos observadores. Se isso acontecer, o governo deve passar para a ofensiva e dizer que essa é uma clara vitória, dizer: “Isto aqui não é a Flórida”. Em todo caso, não se deve estar preocupado, ou entrar em paranóia. Deve-se contar com o apoio e a força do povo. Se o povo vota por Chávez e ele ganha o referendo, haverá celebrações por todo o país e o fato será óbvio.


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INTERNACIONAL ÁFRICA

Lula faz terceira visita ao continente

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presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixa hoje o arquipélago de Cabo Verde, em sua terceira visita oficial à África desde que assumiu o governo, em janeiro de 2003. Nos dias 26 e 27 de julho, Lula participou da 5ª Conferência de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), na cidade de São Tomé, capital do arquipélago de São Tomé e Príncipe. Nos dias 27 e 28, o presidente cumpriu agenda oficial em Libreville, capital do Gabão, país do centrooeste da África. Na tarde do dia 28, chegou à Cidade de Praia, capital do arquipélago de Cabo Verde. A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa reúne oito países-membros: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Juntos, formam um universo de mais de 230 milhões de falantes de português. Acordos na área de saúde, para o combate à malária e para prevenção e tratamento de portadores do vírus HIV, além da unificação da ortografia da língua portuguesa foram alguns dos resultados da 5ª Conferência da CPLP. Nessa reunião, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva passou a presidência rotativa da CPLP, por dois anos, ao presidente são-tomense, Fradique de Menezes. A secretaria-executiva do órgão caberá a Cabo Verde. Durante discurso na cerimônia de abertura da 5ª Conferência, Lula disse que “a CPLP vai ganhando voz e personalidade internacionais. É hoje uma organização madura, capaz de reagir prontamente a situações de crise”. Ele ressaltou que, durante os dois anos em que o país ocupou a presidência da CPLP, priorizou projetos de cooperação voltados para a prosperidade econômica, o bem-estar social e a estabilidade política. “Como presidente da Comunidade, busquei apoio internacional para a recuperação econômica e política de Guiné-Bissau. Em parceria com a Índia e África do Sul, o Brasil deu o primeiro passo ao criar um fundo social que ajudará a financiar o processo de desenvolvimento de Guiné-Bissau”, ressaltou. Lula disse também que a Comunidade tem “especial urgência” em ajudar a África “na luta contra o dramático ciclo de pobreza, violência e fatalismo” que atinge o continente. O controle da malária e da Aids no continente, segundo ele, é compromisso do Brasil com os africanos nos próximos anos. “O Brasil coloca sua experiência a serviço dos países atingidos por esses flagelos. É com essa convicção que o Brasil, e os cinco países, assinou na Cúpula Mundial sobre a Aids em Bangcoc o acordo para produção de remédios anti-retrovirais a baixo custo”, disse.

INCLUSÃO DIGITAL Lula aproveitou para agradecer o apoio dos chefes de Estado da CPLP à indicação do Brasil para uma vaga permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. “Sou especialmente reconhecido pelo endosso dos países da comunidade para que o Brasil ocupe um assento permanente no Conselho”. A Declaração de São Tomé, documento resultante da 5ª Conferência, oficializa esse apoio à pretensão brasileira. O assunto também esteve na pauta de encontros do presidente Lula no Gabão. O chanceler gabonês, Jean Pinn, assumirá ainda neste ano a presidência do Conselho da ONU. O governo brasileiro deixou em São Tomé um telecentro com dez computadores e um servidor, para serem utilizados no processo de

SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE Localização: África Ocidental Principal cidade: São Tomé (capital) Línguas: português (oficial), português crioulo e ngola Nacionalidade: são-tomense Divisão política: sete distritos Regime político: república parlamentarista População: 181 mil Moeda: dobra Religião: critianismo (95%) Hora local: + 3 Domínio na internet: .st DDI: 239 GABÃO

Lula é recebido pelo presidente Fradique de Menezes (à direita) em São Tomé e Príncipe, no dia 26 de julho

Mar Mediterrâneo

CABO VERDE Cidade de Praia SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE São Tomé GABÃO Libreville

OCEANO ATLÂNTICO OCEANO ÍNDICO

inclusão digital da sociedade e do governo local. O mesmo aconteceu na última etapa da viagem, em Cabo Verde. “Nossa comunidade é unida por princípios nascidos de uma vivência lingüística comum que queremos preservar e difundir”, disse o presidente Lula em São Tomé. “Queremos que as novas tecnologias de comunicação sejam instrumento de inclusão dos cidadãos. Estamos apoiando uma nova geografia econômica em parceria com o G-90, e desejamos contribuir para o êxito da nova parceria para o desenvolvimento africano”. A reunião da CPLP também serviu para o incremento de ações de cooperação já em implantação. É o caso, por exemplo, de 40 bolsas de estudos oferecidas pelo Conselho Nacional de Pesquisa Científica (CNPq), para mestrado e doutorado no Brasil. Segundo o ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, essas bolsas se destinam a cinco cursos na área de ciências naturais. “A Capes também está analisando a possibilidade de disponibilizar bolsas como essas para estudantes da CPLP”, afirmou o ministro. Ressaltou que a medida é importante para países como São Tomé e Príncipe, onde não existe curso universitário.

SAÚDE E EDUCAÇÃO A liberação de 650 mil dólares para a implementação de acordos realizados no ano passado com o governo de São Tomé beneficiará ações nas áreas de saúde, educação, agricultura e esportes. Os brasileiros levaram ao arquipélago um projeto piloto de prevenção e tratamento de portadores do vírus HIV. Em princípio, 100 pessoas que já desenvolveram a doença recebem tratamento. O objetivo, segundo o embaixador Pedro Mota Pinto Coelho, diretor do Departamento da África do Itamaraty, é expandir o projeto a outros países africanos do continente. Os países-membros da CPLP assinaram também acordo de cooperação para o estudo e combate da malária. À exceção de Portugal e Cabo Verde, nos outros seis países da comunidade a malária é endêmica. No Brasil, a doença atinge principalmente a região Norte. O governo brasileiro entregou kits para educação à distância nos

países que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva visitou. O ministro da Educação, Tarso Genro, informou, em São Tomé e Príncipe, que foram doados 3 mil livros “que se adaptam ao currículo deste país em seu ensino médio e fundamental”. Brasil e Portugal, lembrou o ministro, proporcionam assistência técnica, teórica e política aos países de língua portuguesa que estão em desenvolvimento do seu ensino superior. Sobre a unificação da ortografia da língua portuguesa entre os países da CPLP, Tarso Genro disse que esse processo de unificação é o que pode facilitar o intercâmbio educacional: “Sem uma base ortográfica cada vez mais firme, ele se torna menos completo, e esse é um

esforço que nós estamos fazendo”, destacou. O acordo de unificação ortográfica foi assinado no primeiro dia de trabalho da 5ª Conferência da CPLP. Segundo o embaixador Pedro Motta Coelho, o protocolo assinado permite que o acordo ortográfico da língua portuguesa – ainda não ratificado por alguns – entre em vigor imediatamente. O acordo foi ratificado por Brasil, Portugal e Cabo Verde. “Não é que os países sejam contra o acordo, mas é um processo que leva tempo. O acordo ortográfico da língua portuguesa é quase que um dicionário que trata do ordenamento da ortografia”, explicou o embaixador. (Com Agência Brasil, www.radiobras.gov.br)

Localização: centro-oeste da África Principais cidades: Libreville (capital), Port-Gentil, Franceville Línguas: fang, banto, francês (oficial) Nacionalidade: gabonense Divisão política: 9 províncias Regime político: república presidencialista População: 1,3 milhão (2002) Moeda: franco CFA Religiões: cristianismo (90%) e religiões locais Hora local: +4 Domínio na internet: .ga DDI: 241 CABO VERDE Localização: África Ocidental (Oceano Atlântico) Principais cidades: Cidade de Praia (capital), Mindelo, São Felipe Línguas: português (oficial), português crioulo Nacionalidade: cabo-verdiana Divisão política: 9 ilhas e 14 condados Regime político: república parlamentarista População: 446 mil Moeda: escudo cabo-verdiano Religião: critianismo (95%) Hora local: + 1 Domínio na internet: .cv DDI: 238

Relações comerciais crescem da Redação O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, fez um balanço bastante positivo da terceira viagem do presidente Lula à África e disse que, nos dois anos em que o Brasil esteve à frente da CPLP, a cooperação entre os países de língua portuguesa ampliou-se. Ressaltou a instalação de dois centros de cooperação na África. O primeiro, sobre excelência empresarial, em Angola, e o outro, de administração pública, em Moçambique. O ministro lembrou, ainda, que a CPLP teve uma importante ação para garantir a consolidação da democracia na Guiné-Bissau e em São Tomé e Príncipe. Em Bissau, a comunidade atuou para garantir as eleições legislativas que aconteceram recentemente, disse. Já em São Tomé, numa rápida ação política dos ministros que participam da CPLP, foi contida a tentativa de um golpe de Estado. Essa ação, acrescentou o ministro, foi possível graças também à participação de outros países africanos, como os integrantes da Comissão Econômica da África Central, que é presidida pelo Gabão. Amorim lembrou ainda que a CPLP é um organismo que cria “ambientes favoráveis para projetos bilaterais e trilaterais de cooperação”. E citou como exemplo os acordos entre Brasil e Moçambique no combate à Aids. O Brasil quer aprofundar suas relações comerciais com São Tomé e Príncipe, Gabão e Cabo Verde. Celso Amorim observou que os três países podem vir a ser importantes “janelas de oportunidades” para o incremento das relações comerciais brasileiras com a África. E ressaltou a decisão do presidente Lula de abrir novas embaixadas no continente. Em breve, afirmou Amorim,

Wilson Dias/ABr

da Redação

Ricardo Stuckert/PR/ABr

Presidente esteve em São Tomé e Príncipe, Gabão e Cabo Verde, onde colocou Brasil “a serviço da África”

Líderes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa reunidos em São Tomé

o Brasil terá representação diplomática na Etiópia, país que sedia a União Africana. “Não se pode querer ter uma política de aproximação com a África se não estamos representados diplomaticamente no país que sedia a União Africana”, destacou o ministro. O Gabão, por exemplo, é um país “muito bem localizado” para que o Brasil possa estabelecer ou melhorar relações com outras nações africanas, explicou. O ministro lembrou também a localização geográfica de Cabo Verde, país que na opinião dele pode vir a ser “um centro de difusão de ações brasileiras”. Celso Amorim informou ainda que as exportações brasileiras cresceram cerca de 50% no último ano, se forem comparados os números de janeiro a maio de 2003 com o mesmo período de 2004. “Já é um comércio significativo, acima de 1 bilhão de dólares. É um comércio que está crescendo”, afirmou. Ele acrescentou que ações concretas já estão em implantação desde o ano passado. Além da abertura de novos postos diplomáticos, o governo brasileiro também vai abrir uma agência do Banco do Brasil

em Luanda, capital de Angola. “Há pequenos empresários brasileiros instalados naquele país que se queixavam da falta de uma interlocução financeira”, justificou o ministro. A segunda etapa da viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à África, o Gabão, foi marcada por uma agenda essencialmente econômica, apesar da assinatura de acordos nas áreas de saúde e educação. A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) está aumentando seus investimentos na exploração de minas de manganês e o objetivo, segundo o ministro Celso Amorim, é fazer do país um dos maiores produtores do mundo. Ao Brasil também interessa entrar no mercado do petróleo gabonense, um grande produtor africano, acrescentou. Em Cabo Verde, última etapa da viagem, o presidente Lula foi condecorado com a medalha da Ordem Amílcar Cabral, guerrilheiro líder de movimentos de libertação em países africanos. Em 1956, Cabral fundou o Partido Africano, para lutar pela independência de GuinéBissau e Cabo Verde. Ele foi assassinado em 1973. (Com Agência Brasil, www.radiobras.gov.br)


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AMBIENTE SEGURANÇA ALIMENTAR

O pesadelo de quem cumpre a lei

Eduardo Luiz Zen de Porto Alegre (RS)

M

esmo com a propaganda ostensiva da transnacional Monsanto e de tentativas de persuasão de entidades ruralistas, o agricultor Luiz Antônio Schio decidiu continuar plantando soja tradicional na última safra. Assentado no município de Tupanciretã, localizado a 350 quilômetros de Porto Alegre (RS), o pequeno agricultor resolveu resistir, esperando vantagens comerciais em face da melhor aceitação da soja tradicional no mercado. No entanto, Schio viu suas expectativas serem frustradas por conta da contaminação de sua plantação por herbicidas trazidos pelo vento das lavouras transgênicas vizinhas e pela mistura de grãos tradicionais e modificados feita pelas cooperativas de comercialização. O uso de glifosato nas lavouras transgênicas da vizinhança acabou atingindo parte da plantação de Schio, causando perdas de 70% a 80% na parcela afetada. O herbicida causou estragos também nas plantações de frutas, legumes e verduras. Isso aconteceu porque a alteração genética da soja Roundup Ready foi feita com o objetivo de tornála resistente ao glifosato, que é um herbicida de largo espectro, que não poupa as outras culturas. Segundo o engenheiro agrônomo Enio Guterres, o glifosato, além de poluir o meio ambiente, atinge várias plantas, além da soja. “O glifosato mata tudo, menos a soja transgênica. A sua propagação pela ação do vento traz enormes prejuízos para culturas como árvores frutíferas e hortas”, declarou.

Greenpeace/Rodrigo Baleia

Agricultores do Rio Grande do Sul denunciam contaminação das lavouras convencionais e coação pela Monsanto

A soja transgênica contamina a lavoura de soja convencional, o que só é visto na hora da cobrança das taxas

lhe deu muita dor de cabeça. Ao entregar a produção para a Cooperativa de Comercialização de Cereais Cocevvil, foi informada que sua produção era transgênica e que deveria pagar royalties para a Monsanto. Surpresa, ela exigiu a realização de teste para verificar o tipo da soja. O laudo técnico emitido pela Cocevvil, que realizou o teste fornecido pela Monsanto, deu positivo para transgenia. Para poder comercializar sua soja, Ângela teria que pagar royalties de R$ 1,50 por saca, pois o preço de R$ 0,60 cobrado pela Monsanto

da Redação

Ângela Marlene Tavares Azevedo, também agricultora de Tupanciretã, está sofrendo por ter optado pela soja convencional. Ao contrário de seus vizinhos, que preferiram a soja transgênica, ela encontrou grandes dificuldades para conseguir sementes convencionais nas lojas agropecuárias e cooperativas da região. Integrante de uma feira de produtos agroecológicos, que funciona todos os sábados, Ângela produz, em 13 hectares de terra, mandioca, batata, amendoim, feijão entre outros produtos livres de agrotóxicos. Mas a safra de soja deste ano

Segundo um dossiê elaborado pelo Greenpeace, entregue ao Ministério Público gaúcho e à Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, a contaminação do grão convencional pelo geneticamente modificado pode acontecer por via sexual ou mecânica. No primeiro caso, ocorre a troca de pólen entre plantas diferentes, separadas por uma certa distância. Já a contaminação mecânica é a mistura das sementes convencionais e transgênicas ao longo de toda a cadeia produtiva.

GUATEMALA

A Guatemala, juntamente com o México, é berço da civilização maia, cuja cultura tem por base o milho. Por isso, as duas nações são consideradas reservas genéticas do cereal, que está sob perigo biológico por causa dos grãos geneticamente modificados. A disseminação da ameaça transgênica entre os guatemaltecos está sendo perpetrada pela Organização das Nações Unidas (ONU), conforme denúncia do ativista Manuel Chacon, da entidade ambientalista Colectivo Madreselva. “Tínhamos a suspeita de que, no país, estava sendo introduzido milho transgênico, por meio do programa mundial de alimentos da ONU. Começamos a realizar testes e análises químicas e descobrimos que o milho doado era da variedade BT, ou seja, transgênico”, declarou Chacon, em entrevista à Rádio Mundo Real. Antes da Guatemala,

a Cocevvil, que acabou admitindo que os técnicos que aplicaram o teste foram mal instruídos pela Monsanto, atribuindo transgenia onde na verdade existe soja convencional.

DE RÉU A CULPADO Casos como o de Ângela proliferam no Rio Grande do Sul. Na avaliação da advogada Maria Rita Reis, da organização nãogovernamental Terra de Direitos, é vantajoso para a Monsanto que mais agricultores declarem que plantaram transgênicos. “Isso faz parte da idéia do fato consumado, para forçar o governo a liberar os

Principal perigo é misturar sementes

TESTES MANIPULADOS

A contaminação mecânica pode ocorrer no uso das máquinas de cultivar, plantar e colher a semente, nos caminhões utilizados para o transporte do produto e nos silos de armazenamento. A contaminação transgênica das lavouras convencionais impedem os produtores de vender sua produção como soja convencional para as cooperativas, acarretando prejuízos financeiros. Um exemplo é o que ocorre na Cotrimaio, cooperativa localizada no município de Três de Maio (RS), que possui uma cotação diferenciada para soja nãotransgênica desde 2001, pagando mais por essa variedade.

Outro custo adicional é provocado pela necessidade de adotar medidas para evitar a contaminação, como a limpeza do maquinário e a separação entre sementes transgênicas e não-transgênicas para a comercialização da safra. Além disso, os produtores que optaram plantar soja não-transgênica são obrigados a pagar royalties se a safra não é separada ou se ocorrem erros nos testes para detectar a presença de sementes geneticamente modificadas. Ao entregar o documento, o Greenpeace pediu proteção para os agricultores que plantam soja convencional e a garantia do direito de

ONU prejudica milho nativo Divulgação

Evandro Bonfim da Cidade da Guatemala (Guatemala)

é restrito a quem declarou ter plantado soja transgênica. Como se não bastasse, a agricultora foi ameaçada de ser levada à Justiça, para pagar multa de R$ 16 mil, por não ter assinado o termo de compromisso, previsto na Lei Federal nº 10.814, que liberou o plantio de soja transgênica na safra 2003/2004. Inconformada com a situação, a agricultora buscou a realização de um segundo teste, desta vez em Porto Alegre, no Laboratório Regional de Apoio Vegetal (LARV/ Sul), ligado ao Ministério da Agricultura. Como era esperado, o resultado deu negativo. Com o novo laudo em mãos, Ângela retornou

transgênicos”, afirmou. Segundo Maria Rita, muitos agricultores declaram ter plantado transgênicos com medo das penalidades previstas na Lei nº 10.814 e para não pagaram mais royalties do que os demais agricultores. No Rio Grande do Sul, cerca de 81 mil agricultores declaram ter plantado transgênicos, menos do que o previsto inicialmente pelas entidades que defendiam a liberação das sementes geneticamente modificadas. Mesmo assim, conforme a advogada, tudo que foi criado veio para prejudicar quem está dentro da lei. “São os agricultores que plantam soja convencional que estão tendo que provar que sua produção está livre de transgênicos, quando deveria ser ao contrário”, sentenciou. A realidade no campo mostra que a convivência das sojas convencional e transgênica é impossível. Além do glifosato afetar as plantações convencionais, a inexistência de segregação promove a mistura dos grãos, fazendo com que toda a safra seja considerada transgênica. Como se não bastasse isso, os agricultores, que rejeitam a nova tecnologia, têm ainda que enfrentar a coação realizada pelas cooperativas de comercialização e pela própria Monsanto, que usam das mais diversas artimanhas para forçar que declarem, no ato da venda, a transgenia dos grãos, independentemente do mérito. “Cabe ao governo preservar o direito dos agricultores que não plantam transgênicos. A Monsanto deve ser responsabilizada pelos custos extras do processo de segregação”, defende o deputado Frei Sérgio Görgen (PT/RS).

O milho faz parte não só da alimentação, mas da cultura maia: a modificação genética é uma falta de responsabilidade

diversos países da África registraram a presença de transgênicos nos envios de alimento pelas Nações Unidas.

Há três anos a Colectivo Madreselva promove campanhas contra o uso indiscriminado de transgênicos, contra a mineração

com cianureto e contra a exploração de petróleo em áreas protegidas. “Desde nossa denúncia, pelos meios de comunicação, começou

cultivar soja não-transgênica sem que tenham de arcar com custos extras em função da contaminação. Segundo previsão da Associação Brasileira de Sementes (Abrasem), na próxima safra de soja, cerca de 35% da produção será transgênica. O plantio de sementes geneticamente modificadas volta a ser feito de forma clandestina e sem estudo de impacto ambiental. Dos cerca de 83 mil agricultores que cultivaram soja transgênica no Brasil, na safra 2003/2004, mais de 81 mil estão no Rio Grande do Sul. (Com informações da Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br)

uma discussão pública do tema. Passamos a denunciar e questionar a atitude do governo a partir daquele momento, pela irresponsabilidade que tem vitimado duplamente a população”, explicou Chacon. Para ele, embora toda a população guatemalteca possa ser prejudicada pela contaminação das variedades crioulas pelos transgênicos, o principal grupo implicado vai ser outra vez os indígenas, devido sua dependência do grão. Cerca de 80% da população maia vive na pobreza, sendo que esse grupo étnico representa mais da metade da população guatemalteca. “Quando falamos da ameaça dos transgênicos, os que mais vão ser afetados são as populações maias, visto que, nesse caso, a ameaça se dirige às sementes, ao milho. O cereal integra a cosmovisão dos indígenas. E, ao se contaminar o milho, isso compromete toda a vida do povo maia”, lamenta Chacon. (Adital, www.adital.com.br)


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DEBATE ELEIÇÕES ESTADUNIDENSES

Para onde vai a América?

Immanuel Wallerstein

P

ara onde vão os Estados Unidos? Todos querem saber isso, inclusive os próprios estadunidenses. Houve uma época, não faz tanto tempo, em que o mundo se dividia entre os que saudavam os Estados Unidos como líder das forças mundiais pela liberdade humana, e os que os consideravam uma potência imperialista, que se opunha ao que dizia defender. Não há estatísticas, mas uma suposição prudente é de que a divisão era de 50% a 50%. Na era de George W. Bush, esse alinhamento mudou radicalmente. A arrasadora maioria da população mundial considera os Estados Unidos um gigante perigoso. E pela primeira vez na minha vida, um número significativo de estadunidenses também se preocupa e faz restrições ao que o seu próprio país poderia fazer. E o que ninguém parece saber é para onde se encaminham os Estados Unidos. A pergunta é, provavelmente, a mais significativa da política mundial, pelo menos nos próximos dez anos. Depois talvez vá se tornar irrelevante, ou pelo menos talvez terá importância secundária. Porque os Estados Unidos estão numa encruzilhada, e não têm plena consciência das dimensões dessa encruzilhada. Haverá, é claro, as eleições de novembro de 2004, que a mídia já assinala como as mais importantes que jamais ocorreram. Isso é um pouco exagerado. Mas fica claro que o eleitorado está muito polarizado, e a divisão é entre duas partes quase iguais. Talvez o Partido Republicano nunca tenha sido tão agressivamente de direita desde 1936. O Partido Democrata nunca foi tão apaixonado em sua oposição

ao presidente no poder. A palavra de ordem “qualquer um, menos Bush” se ouve em toda parte. O apoio interno com que contam Bush e sua política se diluiu de maneira considerável no último ano, em grande parte por causa do que ocorreu no Iraque. E, não obstante, como assinalam todas as pesquisas, a queda no apoio a Bush não vem sendo acompanhada de um aumento do apoio ao candidato democrata, o senador John Kerry. Foram dadas muitas explicações para esse paradoxo, entre as quais a principal se refere à personalidade de Kerry. Creio que a explicação é mais simples. No fundo, muitos dos que não estão contentes com a política de Bush duvidam que John Kerry vá atuar de modo muito diferente. ALTERNATIVAS CONTRA BUSH

Assim, a pergunta número um é: para reverter os objetivos de Bush, por razões morais ou políticas, qual política alternativa os Estados Unidos poderiam empreender para restaurar sua autoridade moral aos olhos da opinião pública? Para responder a isso, devemos visualizar a evolução interna estadunidense. Desde o fim da Guerra Civil, em 1865, e até a eleição de Franklin Delano Roosevelt em 1933, o governo dos Estados Unidos ficou sob o controle dos republicanos. Em seguida, com o desencadeamento da Grande Depressão, os democratas do New Deal assumiram o poder e introduziram duas mudanças fundamentais: legitimaram o estado de bem-estar social e levaram o país, do isolamento dominante, para uma política ativa de intervencionismo nos assuntos mundiais. Depois, no período posterior a 1945, os Estados

Unidos se assumiram como país “multicultural”. Católicos e judeus, em grau semelhante, ascenderam nos campos político e social. Atrás deles vieram os negros, os latinos e outros grupos marginalizados. Este segundo conjunto nunca alcançou a aceitação social conseguida pelos (brancos) católicos e judeus, mas as discriminações piores e mais claras chegaram ao fim, notadamente nas Forças Armadas. Diante de um país agora dominado pelo Partido Democrata, houve uma reação “conservadora”, ao estado do bem-estar social, ao multiculturalismo e ao “internacionalismo”. Os que lideraram esse movimento viram sua salvação na transformação do Partido Republicano num agrupamento de direita, nada centrista. O que esses conservadores precisavam, acima de tudo, era de uma base de massas. E a encontraram no grupo que hoje é conhecido como a direita cristã, composto por pessoas particularmente incomodadas pela liberalização dos costumes morais e pelo fim da dominação social garantida por parte dos protestantes brancos. A direita cristã estava muito interessada nos chamados assuntos sociais, em particular o aborto e a homossexualidade. Conseguiu tirar eleitores do Partido Democrata (os democratas que votaram em Reagan) e mobilizaram pessoas que antes não votavam. De Nixon a George W. Bush, passando por Reagan, o Partido Republicano caminhou continuamente para a direita, no que diz respeito aos assuntos sociais. Mas também desmantelaram o estado de bem-estar social e substituíram o “internacionalismo” por algo que se consolidou

com George W. Bush: um unilateralismo baseado no direito dos Estados Unidos a empreenderem guerras preventivas. Com o fiasco do Iraque, as forças de antes disseram basta e querem “qualquer um, menos Bush”. E SE KERRY VENCER?

A pergunta mais importante enfrentada pelos Estados Unidos e pelo mundo é: o que acontecerá se Kerry ganhar? Kerry e os que o rodeiam parecem convocar a um retorno aos bons tempos de Clinton. Querem retomar as coisas no ponto em que os democratas centristas caminharam mais para a direita. Isso é possível? Seria aceitável para os eleitores estadunidenses? Isso apaziguará os antigos aliados dos Estados Unidos, hoje afastados? Seja qual for o resultado das eleições, as paixões em torno do aborto e da homossexualidade, que tanto dividem o país socialmente, não se aquietarão. E as tentativas de salvar os níveis de vida estadunidenses, diante de um déficit tão incrível, deixarão claro que não é possível continuar reduzindo os impostos ao mesmo tempo em que crescem os gastos em saúde, em educação e em garantias para os idosos. É muito provável que as pressões sobre os Estados Unidos, vindas do resto do mundo, aumentem

Immanuel Wallerstein é sociólogo, diretor do Centro Fernand Braudel, da Universidade de Binghamton, em Nova York

U

m jornal do establishment, o Boston Globe, de seu Estado natal, chamou-o de camaleão. Não se expõe com tonalidades imutáveis, joga com as circunstâncias. O Village Voice, da intelectualidade liberal, foi mais direto. Acusou-o de evitar definições, de ser escorregadio, de tentar driblar os fatos. O Counterpunch, mais à esquerda, disse que dentro dele convivem um doutor Jekyl e um senhor Hyde, ou seja, um médico e um monstro. “Não pode ser encarado como alternativa a Bush”, é a sentença do coordenador da maior coligação pacifista dos Estados Unidos, inconformado com a pouca clareza quanto à retirada das tropas americanas do Iraque. A expectativa entre os que se opõem à guerra de modo militante era a de promessa de um gesto à espanhola, vitória nas urnas e saída imediata. Frustração. Será que isso significa que John Kerry, candidato presidencial democrata, de oposição a Bush, não merece o voto dos que querem mudar o rumo dos Estados Unidos? Os eleitores que procuram simplesmente acabar com Bush, e não são poucos, segundo as pesquisas, parecem não se importar com esses tipos de indagações. Mas Kerry tem uma biografia, e ela não pode ser esquecida no momento em que é um dos dois protagonistas numa das eleições mais dramáticas da história americana. Kerry fez sua carreira política oscilando entre as frações liberal e conservadora do Partido Democrata. Escolhido candidato de oposição, como o mais viável por

situar-se no “centro” – aceitável à esquerda e sem meter medo na direita – prometeu que, caso vença, fará Bush prestar contas como responsável pela guerra do Iraque. Ao mesmo tempo, de olho nos críticos republicanos que o acusam de fraqueza em questões de segurança, lembrou ter votado a favor do maior orçamento militar já transitado pelo Congresso. Eleito senador pela primeira vez em 1984, Kerry apoiou a criação de armas de alta tecnologia usadas no Iraque. Defende-se hoje dizendo ter sido mal assessorado. Em 1983, ainda aspirante a senador, criticou Reagan por ter mandado invadir a ilha de Granada, mas voltou atrás alegando que não havia compreendido a “majestade” da decisão de Reagan, de subjugar pelas armas meia dúzia de gatos pingados metidos a bestas. “Nunca me opus publicamente”, desculpou-se. Negou apoio à resolução do Congresso autorizando o uso de força contra o Iraque em 1990. Diante do triunfo militar rápido, aplicou nova reviravolta e tornou-se partidário da guerra. Os próprios assessores de Kerry já se mostraram descontentes com esse “camaleonismo”, porque não é fácil administrá-lo. Em outubro de 2002, Kerry, como todo o Senado americano, apoiou a invasão do Iraque. Tornou-se depois antiguerra. Em 2001, votou a favor da aprovação do Patriot Act. Mudou. Não quer a prorrogação do Patriot Act, com o argumento de que “somos uma nação de leis e liberdades e não de murros na noite”. Em seus 19 anos de Senado, Kerry assumiu posições nada liberais. Em conferência na Universidade de Yale, onde

estudou e integrou um grupo de jovens conservadores, o Skul and Bones (literalmente, caveira e ossos), culpou as “permissividades” dos anos 60 por “desintegrações sociais” nos Estados Unidos. Em 1994, quando os republicanos deram um banho nos democratas em eleições parlamentares, Kerry disse que seu partido fora punido por “excesso de liberalismo”, como por exemplo defender um sistema de saúde universal. Ele é o parlamentar mais rico, segundo a Forbes, com fortuna estimada em 550 milhões de dólares. Isso se deve, em boa parte, à herança recebida por sua mulher, Teresa Heinz, viúva de um senador bilionário. Quando Kerry lançou seu programa de política externa, o analista Rob Watson, da BBC, concluiu que é difícil encontrar muita diferença entre o candidato de oposição e Bush. Questão de ênfase, não de conteúdo. Como prioridade, Kerry citou a guerra contra o terrorismo. No problem para Bush, com prioridade igual. Os Estados Unidos, segundo Kerry, devem continuar sendo soberanos em poder militar. Ele promete, no entanto – e isso é algo que pode ser pinçado como diferença – que só usará força “depois de esgotada a diplomacia” e que reconstruirá alianças ao redor do mundo. Sobre o Iraque falou pouco. Apelou para que Bush procure mais ajuda internacional, mas foi omisso quanto à retirada das tropas. Muitos democratas se sentem frustrados com a ausência de críticas duras à ocupação do Iraque. Kerry e os seus jogam com a convicção de que a falta delas não fará com que os eleitores votem em Bush.

Kipper

As duas caras de Kerry Newton Carlos

radicalmente depois das eleições. A quase inevitável retirada estadunidense do Iraque (talvez mais a curto prazo com Bush do que com Kerry) será considerada uma derrota, no interior dos EUA e no exterior, e isso levará a terríveis acusações internas nos Estados Unidos. Talvez a Europa e a Ásia Oriental prestem menor atenção à diplomacia estadunidense. O dólar se debilitará. E é possível que a proliferação nuclear se torne um lugar-comum. Diante de tal cenário, os Estados Unidos poderão se recompor? Claro que sim. No entanto, isso depende de como definimos “recomposição”. Num momento em que as forças armadas estadunidenses estão extenuadas até o limite, e sofrem baixas constantes, e em que a dívida nacional aumenta em níveis recordes, não só terminam os tempos de hegemonia, como também os dias de “dominação” e talvez os de “liderança”. Recompor-se significaria reavaliar internamente os valores, a estrutura e os compromissos sociais. Exigiria superar a maior polarização social, econômica e política dos últimos 30 anos. E tudo isso ficaria muito ligado a uma reavaliação do modo pelo qual os Estados Unidos se relacionam com o resto do mundo. Quo vadis, América? Os Estados Unidos se defrontam com o dilema de ou se reconstituírem como um país com importância (em sua própria visão e aos olhos do mundo) ou ficarem divididos internamente e serem considerados irrelevantes.

É a estratégia. Aglutinar o “antibushismo” sem alienar o centro. Na questão da guerra, dos jogos patrióticos, Kerry joga com a condição de herói condecorado do Vietnã. Vai ser longa e dura a jornada até as eleições presidenciais nos Estados Unidos, em novembro, algo como um overkill, segundo o New York Times. A palavra em inglês foi muito usada no auge da corrida armamentista, quando os Estados Unidos e a ex-União Soviética construíram arsenais capazes de destruir o mundo várias vezes. Uma supercarnificina, em termos políticos, ou até de retaliações pessoais, seria a imagem adequada para o que se avizinha, já carregando nuvens pesadas. Há confiança, entre os seus, de que Kerry sairá vitorioso nos “jogos patrióticos” lançados pela

campanha de Bush, a segurança nacional como tema central. Herói da guerra, e depois pacifista, ciente da tragédia que era o Vietnã, Kerry foi convidado a depor no Congresso. As conversações de paz se estendiam, à procura de uma saída menos desonrosa quanto possível. A derrota era favas contadas. “Cometemos um erro invadindo e não é justo pedir a alguém que seja o último a morrer, porque há gente morrendo enquanto se conversa indefinidamente”, disse Kerry a deputados e senadores, depoimento que se tornou histórico. Outro aparente trunfo de Kerry são os “Bush-haters”, os que não suportam Bush, sua voz, arrogância, ignorância, olhares, jeitão de capataz e até o modo como anda. Para os que “odeiam Bush”, tudo no presidente é insuportável. A tribo dos odiadores cresce e se torna mais agressiva. As armas de destruição em massa no Iraque, justificativa da invasão, não foram encontradas e o caos tomou conta do país ocupado. Documentação digital de abusos contra presos iraquianos foi amplamente divulgada. Um concurso intitulado “Bush in 30 seconds” (Bush em 30 segundos) premiou os melhores videoclipes de televisão antibush. O ganhador foi homenageado numa cerimônia pública em Nova York. Um dos clipes mais festejados carrega na ironia com o lema: “Não deixemos nenhum bilionário abandonado na estrada”, alusão a um dos slogans eleitorais de Bush, “não deixemos nenhuma criança abandonada na estrada”. Newton Carlos é jornalista. Esse artigo foi publicado originalmente na revista Fórum


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AGENDA GOIÁS

AMAZONAS

2ª CONFERÊNCIA NACIONAL POR UMA EDUCAÇÃO DO CAMPO De 2 a 6 de agosto

ção do campo e buscar apoio para a construção de políticas públicas relacionadas ao segmento. É organizado pela Via Campesina, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Fundo das Nações Unidas pela Infância (Unicef) e Universidade de Brasília, entre outros. O atual modelo educacional imposto aos camponeses não atende à realidade do campo. Seu enfren-

tamento exige uma articulação dos movimentos do campo e também de diferentes setores da sociedade para elaborar propostas e alternativas para o desenvolvimento camponês. A 1ª Conferência foi realizada em 1998 e teve um papel significativo no que diz respeito à educação no campo. Na ocasião, foram denunciados problemas como a ausência de escolas, falta de infra-estrutura

nas já existentes e os altos índices de analfabetismo. Desde o último evento, o trabalho avançou em diversos Estados, com a ajuda de organizações e programas de formação de educadores. Uma das conquistas mais recentes foi a aprovação das “Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo”. Informações: mpa@mpa.org.br

est rouge (1977), sobre o maio de 68 na França, dirigido por Chris Marker; e Ernesto Che Guevara, Journal de Bolivie (1994), do suíço Richard Dindo, nunca exibidos no Brasil. Grátis (Retirar senha no local) Local: R. Primeiro de Março, 66, Rio de Janeiro Mais informações:(21) 3808-2040

Até 1º de agosto Durante a mostra haverá espetáculos, finalizando com festa. O evento terá também a participação de convidados. Local: R. Scipião, 67, e R. Guaicurus, 1394, São Paulo Mais informações: (11) 3675-8828 http://www1.sp.senac.br/hotsites/ cca/teatro/prog.html

Local: Instituto Pólis, R. Araújo, 124, São Paulo Mais informações: www.polis.org.br/formacao

W. Bush, nas eleições marcadas para novembro. Local: em todos os Estados Mais informações: (11) 3105-2516 plebiscitoalcasp@terra.com.br;

SEMINÁRIO ESTADUAL DE GÊNERO Dias 13 e 14 de agosto O seminário, organizado pela CUT-RJ, vai discutir as várias formas de violência contra a mulher. Local: Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (Sepe), R. Evaristo da Veiga, 55 - Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2233-6734

CURSO - ESTATUTO DA CIDADE: EXPERIÊNCIAS DE IMPLEMENTAÇÃO Dias 9 e 10 de agosto Promovido pelo Instituto Pólis, o curso pretende difundir o conhecimento sobre a aplicação do Estatuto da Cidade, a partir da sistematização e discussão crítica de experiências, fornecendo subsídios para aqueles que elaboram e monitoram políticas territoriais municipais. As aulas terão duração de uma hora e meia, divididas entre exposição e debates.

Em Luziânia (GO), evento vai reunir camponeses, educadores, representantes de organizações não-governamentais e do Ministério do Desenvolvimento Agrário, para tentar fortalecer a mobilização popular pela educaAgência Brasil

3ºAMBIENTAL - FÓRUM DE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO HUMANO De 4 a 6 de agosto Promovido pela Fundação Rede Amazônica, o evento vai reunir estudiosos, pesquisadores, cientistas, estudantes e profissionais da Amazônia, do Brasil e do exterior em torno de questões relacionadas ao desenvolvimento sustentável da Amazônia. Local: Centro de Convenções do Studio 5, Manaus Mais informações: portalamazonia.globo.com/ ambiental/apresentacao.htm

agenda@brasildefato.com.br

PARANÁ

RIO DE JANEIRO DEBATE - MODELO DE ORGANIZAÇÃO SINDICAL Dia 30, às 14h30 No debate serão discutidas as modificações no modelo de organização sindical, com a proposta de reforma, recentemente aprovada no Fórum Nacional do Trabalho. Organizado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-econômicos (Dieese), no evento será apresentada a proposta final de reforma sindical – Rede de Apoio à Negociação Coletiva (RAN) –, que pretende apoiar o movimento sindical nas negociações. Também será apresentado conjunto de kits temáticos, para aprimorar as atividades de formação sindical, voltadas para a negociação coletiva. Local: Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), R. Primeiro de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2518-4381 ENCONTRO INTERNACIONAL DE CINEMA - DE OLHOS BEM ABERTOS De 3 a 15 de agosto Durante o encontro, dedicado ao engajamento político e social, serão exibidos mais de 40 filmes, recentes e inéditos e sem perspectiva de exibição comercial no Brasil. A mostra traz filmes da Palestina, Síria, Camboja, Nigéria, França, Bélgica, Hungria e Estados Unidos, entre outros. Sweet Sixteen, o mais novo filme do cineasta inglês Ken Loach, será exibido pela primeira vez no país. Serão exibidos cinco filmes por dia, seguidos de debates. Além disso, haverá duas mesas-redondas por semana, com a participação dos diretores internacionais e de convidados brasileiros. Serão apresentados também documentários com trajetória de sucesso em grandes festivais internacionais. Da programação destacam-se, ainda, dois grandes clássicos da cinematografia engajada: Le fond de l’air

SÃO PAULO 1ª MOSTRA TEATRAL DO CENTRO DE COMUNICAÇÃO E ARTES

ENCONTRO TEMÁTICO - O DESAFIO DOS CONSELHOS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO CONTROLE DOS RECURSOS E DA GESTÃO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Dia 13 de agosto, das 8h30 às 16h30 O objetivo do encontro é refletir sobre os desafios da política de assistência social Local: Salão Vermelho - Prefeitura Municipal, Av. Anchieta, 200, Campinas Mais informações: (19) 3735-0281 MOBILIZAÇÃO CONTINENTAL CONTRA A REELEIÇÃO DE BUSH De 27 a 29 de agosto Movimento organizado em todo o continente contra a reeleição do presidente estadunidense George

1º ENCONTRO DE MULHERES DE BIRITIBA MIRIM Dia 14 de agosto, às 13h O objetivo do encontro é a troca de informações e experiências entre as mulheres diante dos problemas enfrentados na cidade, como desemprego, gravidez precoce e surto migratório. O encontro conta com a participação de representantes de diversos setores da sociedade e exposições de empresas, órgãos públicos e entidades sociais. Local: Clube de Campo Vale Encantado, Biritiba Mirim Mais informações: (11) 4726-5897, www.conectas.org/coloquio; / www.conectas.org/coloquio; coloquio2004@conectas.org

LIVRO

Muralhas da Linguagem revela injustiça social Antony do Valle do Rio de Janeiro (RJ) O livro Muralhas da Linguagem, de Vito Giannotti, foi lançado pela Editora Mauad, no dia 13 de julho, no Rio de Janeiro. Na obra, o autor mostra que a divisão da sociedade brasileira entre a “casa grande” e a “senzala” gera exclusão também por meio da linguagem, utilizada como um instrumento de opressão em relação aos pobres. Giannotti considera importante “aprender a traduzir, sem simplificações idiotizantes e sem paternalismos”, para se comunicar de modo que todos possam entender. Sem esse esforço, a libertação dos trabalhadores fica difícil. Brasil de Fato – Por que esse livro sobre linguagem? Vito Giannotti – Na verdade, é um livro de política. O problema central é a necessidade de chamar as pessoas a elaborar juntas o tipo de sociedade que queremos. E para convencer e arrastar milhões de pessoas para esse projeto político, é necessário comunicar, falar, escrever, mostrar. Ou seja, a comunicação é uma parte central na des-

Divulgação

ROMARIA DA TERRA Dia 22 de agosto, às 8h Neste ano, a Romaria da Terra, organizada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Paraná, destaca a luta contra a privatização das sementes. O objetivo é chamar a atenção para o processo de mercantilização das sementes, para a perda da biodiversidade, a apropriação intelectual sobre a vida, a erosão genética e a esterilização das sementes. A romaria se insere na campanha internacional que pretende declarar as sementes como patrimônio da humanidade, tentando impedir sua apropriação por empresas privadas transnacionais. No evento, serão apresentadas as centenas de variedades selecionadas e resgatadas no trabalho realizado em Cruz Machado. Em protesto contra a privatização das sementes, serão queimadas várias sacas de grãos vendidos por empresas transnacionais que dominam a agricultura. Local: Centro de Cruz Machado, de onde sai caminhada até a zona rural do município, onde haverá uma feira de sementes. Mais informações: (41) 224-7433

Quem é Vito Giannotti, italiano, vive no Brasil há cerca de 40 anos. Exoperário metalúrgico em São Paulo, onde se engajou na luta contra a ditadura, ajudou a criar o Núcleo Piratininga de Comunicação, que se dedica a melhorar a comunicação dos trabalhadores. Giannotti, que participa do conselho político do Brasil de Fato, escreveu cerca de 20 livros sobre o movimento sindical e a comunicação dos trabalhadores, como O que é jornalismo sindical, da coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense.

truição da sociedade de opressão e exploração e na construção de uma sociedade totalmente nova. BF – Por que o título Muralhas da Linguagem? Giannotti – Muitas vezes, a linguagem de que queremos uma outra sociedade, uma sociedade socialista, impede que nossas idéias e planos sejam espalhados e possam arrastar as chamadas massas para a ação política. É como se, entre a pessoa que gostaria de comunicar suas idéias e os que gostaria de atingir, houvesse uma enorme muralha. No livro, repito umas

cem vezes que, no nosso país, está fortíssima a divisão entre a “casa grande” e a “senzala”. Todas as estatísticas falam de um país com a quarta pior distribuição de renda do mundo. E essa estrutura capitalista não tem nenhum problema em manter traços da velha escravidão. A primeira muralha a ser destruída é a da péssima escolaridade do nosso povo. Das escolas saem pessoas que nunca irão entender palavras como “irreversível”, “conjuntura” ou “inveterado”. E o pior é que muitos militantes e educadores populares, preocupados em mudar este mundo, não se dão conta desta realidade. BF – Qual sua análise da linguagem na busca pela transformação social?

Giannotti – Não encaro a linguagem como secundária. É evidente que o que conta é o conteúdo, a política, as propostas de mudanças, o nosso projeto. Mas de nada adianta falar em chinês, ou em árabe, se as pessoas não conhecem esta língua. Para disputar a hegemonia na sociedade é necessário criar uma força social organizada capaz de implantar um novo projeto. Este é o primeiro aspecto da hegemonia. Mas como criar esta força organizada? Como convencer milhões de pessoas? É necessário comunicar. E para isso é necessário falar para ser entendido e não esconder a política atrás de uma muralha impossível de ser superada.


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CULTURA TRADIÇÃO

A força da arte do cerrado

Fotos: Rose Brasil/ABr

De 29 de julho a 4 de agosto de 2004

Festival cultural do Centro-Oeste resgata manifestações artísticas populares, em vias de extinção, e dá voz e vez às festas tradicionais da Redação

C

ontra a hegemonia cultural, a riqueza da arte feita pelo povo. Esse é o pano de fundo de um encontro da cultura popular do Centro-Oeste, que está sendo realizado na Vila de São Jorge, pequena vila de ex-garimpeiros no município de Alto Paraíso de Goiás, na entrada do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Desde dia 23 de julho, até 1º de agosto, acontece o 4º Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, com muita música, dança, teatro e artes plásticas. O evento foi criado para divulgar e fortalecer manifestações tradicionais populares. Em 10 dias, são apresentados grupos de culturas remanescentes da região da Chapada dos Veadeiros e também das culturas indígenas e afrobrasileiras dos Estados de Goiás, Minas Gerais e Tocantins. Entre as expressões culturais estão a catira e a curraleira dos foliões de São João da Aliança (GO); a sussa dos kalunga do Vão do Moleque e do Vão das Almas (GO); o lundu e o batuque que compõem a caça da rainha de Colinas do Sul (GO), o congo dançado pela comunidade de Niquelândia (GO), a dança dos reis de Cacetes (MG) e os foliões do Divino Espírito Santo, de Almas (TO). Para atrair mais visitantes, a cada ano um artista conhecido faz a apresentação final; em 2004, o escolhido é o multiinstrumentista Hermeto Pascoal. Ao todo, 27 grupos do Distrito Federal, Bahia, Pernambuco, Mato Grosso, Minas Gerais, Tocantins e de Goiás fazem a festa. O coordenador do evento, Juliano George Basso, conta que a concepção surgiu da necessidade de divulgar as tradições, místicas, crenças e culturas locais. “Quando cheguei aqui percebi um movimento muito forte de preservação da natureza e muito preconceito e desprezo pela cultura local”, afirma o matogrossense, que chegou na região ainda adolescente. Segundo Basso, “os ambientalistas e ecologistas chegavam com uma visão de uma sabedoria maior que a do povo que já vivia aqui. A gente viu que o povo daqui é quem detém a sabedoria do local. Então decidimos divulgar essa sabedoria e a mística do catolicismo popular que impera na região”, explica o coordenador.

ARTE PARTILHADA O princípio que norteia o encontro é o da reciprocidade. É assim na Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, onde professores de Brasília e Goiânia e artesãos locais ensinam sua arte à população rural. No centro de cultura, e também na praça do povoado, crianças, adultos e velhos aprendem a reciclar papel, a criar brinquedos com sucata e a fazer máscaras que serão usadas nas folias. Uma das atividades é a oficina que a arte-educadora Doroty Marques faz, há um mês, com as crianças de Vila de São Jorge. Musicista e compositora, Doroty desenvolve um trabalho de defesa do meio ambiente e de valorização da cultura rural. Ela já trabalhou com mais de 150 mil crianças de todo o Brasil, criando centros culturais e desenvolvendo projetos de arte-educação com crianças carentes. Em Goiás, o resultado do trabalho com as crianças será mostrado no palco, dia 1º de agosto, juntamente com as outras atrações artísticas. Junto com ela está o violeiro e pesquisador Roberto Corrêa, que promoveu durante o mês de julho um laboratório de memória oral com a comunidade.

Outra das nove oficinas é a que ensina a arte da confecção da viola de cocho, instrumento muito utilizado no Mato Grosso e que deu origem ao ritmo siriri ou cururu. Quem ministra as aulas é o luthier Manoel Severino, violeiro desde os dez anos de idade. Cada instrumento leva, pelo menos, 15 dias para ficar pronto “porque demora a secar”, explica o luthier. O segredo da cola, ele não se intimida em revelar. “A cola pode ser tirada do sumbaré (fruto parecido com a batata) ou da poca (bexiga) da piranha, mas com saliva por cima é que a cola tem mais resistência e seca mais rápido”, conta Severino, ex-construtor de casas, que hoje se dedica integralmente à música e chega a produzir dez violas por mês. Trabalho comunitário é palavra-chave na região. A Vila de São Jorge fica na entrada do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, um lugar que, por causa das altas altitudes, contribuiu para o isolamento de várias comunidades, que mantiveram sua cultura praticamente intacta nos últimos 250 anos. Uma das manifestações culturais que ainda persistem nessas comunidades é a Caçada da Rainha, que traz ritmos populares como o batuque e o lundu.

Encomendadeiras de almas, de Correntina, Bahia, fazem procissão pela cidade

GLOSSÁRIO

A banda brasiliense Mamembricantes abre o primeiro dia do festival

Batuque - Dança de origem africana, caracterizada por requebros, palmas e sapateados. Caçada da Rainha - Auto de um conto em que a Princesa Isabel, depois de assinar a Lei Áurea e, acreditando que tivesse desagradado ao rei, fugiu para o mato. A festa consiste na busca da rainha (uma moça da localidade), que é escondida no cerrado, e levada de volta para a cidade. Catira - Dança com palmas e sapateados, acompanhados sempre por duplas de violeiros. Tradicionalmente é dançada por homens, que demonstram habilidade com os pés e as mãos. Congada - Dança de origem africana, na qual, em procissão, cantando e batendo caixas, os foliões homenageiam São Benedito. Alguns possuem rei, rainha e vassalos, representando embaixadas e lutas. Curraleira - Dança folclórica da região de Minas Gerais e Goiás, praticamente extinta. Semelhante ao congo, remete à raiz sertaneja da região, ou aos “currais”. Sussa - Dança folclórica, de origem africana, mantida pelos kalunga, a maior comunidade remanescente de quilombo do Brasil.

Violeiros defendem preservação ambiental da Redação

Música

O bom violeiro, para ser afinado e tocar direito, tem de ter coragem e cumprir algumas tarefas: desde fazer uma cascavel virgem passar entre os dedos (para aceitar as cordas da viola) até ir ao cemitério à meianoite e convocar a alma de violeiro ali enterrado. Essas tradições, levadas de pai para filho, foram contadas no 1º Festival de Inverno de Alto Paraíso, realizado dias 21 a 25 de julho, em Alto do Paraíso, a 420 quilômetros de Goiânia (GO). Além de homenagear a viola e os violeiros do país, o evento quis chamar a atenção para a preservação do cerrado brasileiro. O festival foi promovido pela organização não-governamental Oca Brasil, voltada à preservação ambiental. “Com o festival, quisemos utilizar a música para chamar a atenção para a necessidade de promover a sustentabilidade do cerrado. A música, particularmente a música de viola, é talvez a melhor expressão cultural para casar a valorização humana com a conservação ambiental”, disse Paulo Maluhy, diretor-presidente da entidade. “Isto aqui é área de proteção ambiental estadual e nacional, é patrimônio natural da humanidade, reserva da biosfera da Unesco,

Manoel Severino veio do Mato Grosso para ministrar Oficina de Confecção de viola de cocho

é o segundo bioma brasileiro”, considera Maluhy. Ele se refere à reserva da biosfera do cerrado, denominação dada pela Unesco para áreas consideradas essenciais para a preservação. A reserva abrangia, inicialmente, apenas o entorno de Brasília. Com a ampliação passou a conter, também a Chapada dos Veadeiros.

O conceito de reserva da biosfera foi criado pela Unesco em 1971. Desde então é utilizado como um instrumento de planejamento estratégico para combater os efeitos dos processos de degradação dos grandes ecossistemas. O Brasil possui seis reservas da biosfera reconhecidas pela Unesco, de um total de 440 já designadas em todo o mundo. No

entanto, em área, as reservas brasileiras equivalem a cerca de 1,3 bilhão de quilômetros quadrados, correspondentes a mais da metade da soma das demais reservas do mundo. Os valores correspondem a 15% do território brasileiro: Mata Atlântica, Cinturão Verde de São Paulo, Pantanal, Amazônia Central, Cerrado e Caatinga. (Com agências)


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