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Ano 2 • Número 78

R$ 2,00 São Paulo • De 26 de agosto a 1º de setembro de 2004

Terror contra moradores de rua em SP

Vigília no Centro de São Paulo lembra assassinato em série de moradores de rua, ocorrido durante as madrugadas dos dias 19 e 22 de agosto

Projeto agrada fazendeiros e pune sociedade

E o petróleo escorre entre nossos dedos

Pode se preparar: o projeto de Lei de Biossegurança vem à galope. Roberto Rodrigues, ministro da Agricultura, está pressionando o Legislativo para aprová-lo antes de outubro, quando começa o plantio da safra. A proposta, de interesse dos grandes fazendeiros, pretende liberar o uso de sementes transgênicas, sem estudo de impacto ambiental, e prevê anistiar quem as cultivou antes da legalização. De outro lado, a sociedade se responsabilizaria pelos encargos de pesquisa e fiscalização. Pág. 13

Não é fácil entender por que o governo realizou uma 6ª rodada de leilões de bacias petrolíferas. Os recursos arrecadados são baixos e a maior parte deles vai para o pagamento dos juros da dívida. Além disso, as licitações das reservas não têm trazido mais investimentos estrangeiros ao país, e mesmo as petrolíferas internacionais investem menos do que a Petrobras. Pior, não há dúvida de que o petróleo que vão extrair será exportado, comprometendo a auto-suficiência nacional, e a soberania do país. Págs. 2 e 4

Brasil apóia diálogo com Cuba Celso Amorim, ministro de Relações Exteriores, defendeu aproximação do Grupo do Rio com Cuba. “Devemos incluir Cuba dentro dessa grande fa-

mília latino-americana”, declarou Amorim na reunião dos chanceleres, dia 19 de agosto. A proposta foi criticada por países alinhados com os EUA, como o

Shakil Adil/AP/AE

O

assassinato em série dos moradores de rua na cidade de São Paulo mostra como a sociedade brasileira se relaciona com os pobres. Se não for confirmado que o crime foi cometido por grupo nazifascista, pode-se dizer que é uma atitude de fascismo primitivo, o que não seria novidade, analisa Roberto Romano, professor da Universidade Estadual de Campinas. Fascismo este que também se manifestou no massacre da Candelária, no Rio de Janeiro, no assassinato do índio Pataxó, em Brasília, ou de trabalhadores sem-terra. Além de o Brasil ter os piores índices sociais do planeta, agora há o aumento da violência física, com anuência da elite. “Existe uma ética insuportável na sociedade brasileira que precisa mudar com muita urgência. Há uma prática de guerra genocida contra os pobres”, constata Romano. Para Hédio Silva Júnior, da OAB, se os crimes foram cometidos por grupo organizado, esses atos indicam uma cultura de violência imensurável. Pág. 3

Alderon Costa/ Rede Rua

Assassinatos na capital paulista revelam guerra genocida contra os pobres, com anuência das elites e omissão do Estado

Modelo atual empobrece quem vive do trabalho sustentada. A matriz é a do enfraquecimento do mercado e de empobrecimento dos que vivem do trabalho, diz, em entrevista ao Brasil de Fato, o economista Dercio Munhoz, da Universidade de Brasília (UnB). Pág. 8

Recuperação da economia repõe perdas de 2003

Varig persegue funcionários e sindicalistas Pág. 4

No primeiro semestre, a atividade econômica deu sinais de vitalidade A produção industrial foi puxada pela demanda por automóveis e celulares, e pelas exportações. O emprego avançou, pouco, e as vendas do comércio cresceram, alimentadas pelo crédito. Os acordos salariais foram melhores do que em 2003. Pág. 7

Desempregados ocupam terras no Rio de Janeiro Pág. 5

Suruí querem preservar a sua cultura Pág. 16

Invasão do Iraque – 5 mil muçulmanos xiitas paquistaneses protestam contra os EUA em Karachi, Paquistão. Eles exigem a retirada das forças invasoras Maringoni

A economia brasileira pode estar atravessando um ciclo de crescimento de fôlego curto. Mas, como foi mantido o modelo da gestão do governo Fernando Henrique Cardoso, não há fatos novos que justifiquem previsões de uma retomada

México, e ficou fora da pauta do próximo encontro por não atingir consenso. Quem resistiu, prometeu refletir sobre o assunto. Pág. 11

Pacifista reforça luta contra muro Cidadão estadunidense morando em Israel há oito anos, Bryan Atinsky, integrante da organização palestina-israelense Centro Alternativo de Mídia, é reprimido pela polícia israelense por suas atividades em defesa da paz no Oriente Médio. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, ele defende a criação, a longo prazo, de um Estado binacional. “Palestinos e israelenses são dois povos semitas, com raízes culturais comuns”, afirma. Para melhorar a convivência na região, Atinsky considera tarefa imediata a remoção dos assentamentos judaicos nos territórios ocupados e do muro que está sendo construído por ordem do primeiro-ministro Ariel Sharon. Pág. 10

E mais: MÃOS À OBRA – Após a vitória no referendo, presidente Hugo Chávez tem o desafio de fazer uma reforma econômica para criar empregos e cuidar da saúde, educação e moradia da população. Pág. 11 BRASIL-ÁFRICA – Convênio de cooperação prevê transferência de tecnologia de combate à Aids e doação de coquetéis a alguns países, como a Nigéria e Moçambique. Pág. 12 DIREITOS – ONGs e movimentos sociais da Amazônia pedem ao governo federal para apurar assassinatos, ameaças de morte e crimes praticados contra a população ribeirinha e povos indígenas. Pág. 6


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De 26 de agosto a 1º de setembro de 2004

NACIONAL MORADORES DE RUA

Assassinatos expõem barbárie social Dafne Melo e Jorge Pereira Filho da Redação

Anderson Barbosa

Crimes contra pobres, que podem ter sido praticados por grupo organizado, são sintomas da cultura da violência

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Manifestação em São Paulo: assassinatos dos moradores de rua mostra como a sociedade se relaciona com os pobres

Seis morreram e nove estão feridos em estado grave. As investigações, feitas pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), apontam para um grupo organizado como autor do ataque. Para Hédio Silva Júnior, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) seção SP, essa hipótese é a mais grave. “Significa que há uma cultura favorável para o surgimento de grupos organizados, algo que pode ter um alcance incomensurável”, acredita Silva Júnior. Para o filósofo e professor da Universidade Estadual de Campi-

nas (Unicamp), Roberto Romano, o assassinato em série dos moradores de rua mostra como a sociedade brasileira se relaciona com os pobres. “Se não for confirmado a motivação por fascismo ideológico, ou seja, um crime cometido por um grupo nazifascista, pode se dizer que se trata de uma atitude de fascismo primitivo, o que não seria novidade na sociedade brasileira”, analisa Romano, recordando o massacre da Candelária, no Rio de Janeiro, o assassinato do índio Pataxó, em Brasília, ou de trabalhadores sem-terra. Segundo Romano, além de o Brasil ter os piores índices sociais

do planeta, há agora o recrudescimento da violência física direta, com anuência da elite do país. “Existe uma ética insuportável na sociedade brasileira que precisa mudar com muita urgência. Há uma prática de guerra genocida contra os pobres”, constata. Luciney Martins/Rede Rua

m toda a região da Praça da Sé, coração da capital paulista, cartazes exigindo respeito, fim da violência e com mensagens aos moradores de rua mortos e feridos compõem o cenário caótico de uma das áreas mais movimentadas da cidade de São Paulo. Em frente à Catedral, a poucas quadras de onde ocorreram os assassinatos, moradores de rua, a maioria homens, fazem fila para garantir uma vaga em um albergue. As inscrições são feitas pelos funcionários municipais do Programa Acolher. Mais do que garantir um abrigo para passar a noite, os moradores procuram por segurança. “Você já sabe? Mataram um monte de gente aqui”, conta Roberto Almeida, 37 anos, que desde os 21 não dormia em um albergue. “Eu não durmo aqui (no Centro), fico na Rua Vergueiro, no Paraíso (zona sul). Mas hoje vim para cá me inscrever, quero dormir no albergue depois do que aconteceu”. José Mendes, 22 anos, foge das perguntas, brinca, quer evitar o assunto. A funcionária da prefeitura interrompe a conversa: “Já se inscreveu?”. “Claro, e você acha que eu sou maluco? Não quero morrer, não”, diz em voz baixa. Esse é o clima entre os moradores de rua, depois dos crimes ocorridos durante as madrugadas dos dias 19 e 22 de agosto. No total, foram 15 pessoas agredidas a pauladas enquanto dormiam em ruas da região central de São Paulo.

Alguns números em São Paulo, retrato das desigualdades brasileiras, mostram que a população mais pobre é a maior castigada. Em média, em 2002, houve 58 assassinatos a cada 100 mil pessoas – média que coloca a cidade ao lado de Medellín e Calí, na Colômbia. Enquanto bairros de classe média, como Pinheiros, têm 10 homicídios a cada 100 mil habitantes, essa relação sobe para 103 a cada 100 mil habitantes em áreas mais pobres, como Parelheiros, na região sul. “Matar um ser humano a pauladas mostra que vivemos em uma sociedade selvagem. Lembrando Bertold Brecht, pode se dizer que o útero da besta ainda está muito fértil”, alerta Romano. Irmã Regina Maria Manoel, da Organização Auxílio Fraterno, que trabalha há 27 anos com população de rua, presenciou a explosão do número de moradores de rua em São Paulo – o crescimento foi de 30% entre 2001 e 2003, ultrapassando 10,4 mil pessoas. “Vivemos um momento delicado, em que o sistema econômico vigente gera um mecanismo de exclusão permanente. Quando a pessoa chega ao ponto de morar na rua, fica mais difícil fazer a sua inclusão social”, diz a religiosa.

Concentração de renda agrava situação A falta de moradia tem uma relação estreita com a concentração de renda e com o desemprego. O estudo mais abrangente a respeito da população sem-teto no Brasil foi feito pela Fundação João Pinheiro, de Minas Gerais, em 2000. O levantamento constatou a necessidade imediata de construção de 5,4 milhões de moradias, para suprir cerca de 20 milhões de brasileiros que não tinham onde morar ou viviam em situações emergenciais, como os moradores de rua. Havia ainda outros 45 milhões de cidadãos em habitações de condições precárias, em favelas, com superlotação e sem condições básicas de higiene. O instituto mineiro apurou, ainda, que 83% das famílias sem condições adequadas de moradia ganham até três salários-mínimos ou não têm uma fonte de renda. No Brasil, praticamente não há políticas habitacionais para essa parcela da população – a maior parte das medidas está voltada para famílias com renda acima de seis salários-mínimos.

As contradições não páram por aí. A especulação imobiliária agrava os problemas dos mais pobres. Mais uma vez, a realidade da cidade de São Paulo evidencia as desigualdades sociais brasileiras. O município tem 420 mil lares vagos, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizada em 2001. Enquanto isso, 2 milhões de pessoas vivem em condições inadequadas, de acordo com o Centro de Estudos da Metrópole.

PRECONCEITO GENE RALIZADO No entanto, ter um lar não resolveria todos os problemas de quem, hoje, não tem onde dormir. “O morador de rua não quer ir para o albergue. Ele necessita de muito mais, de uma atenção integral que lhe permita reencontrar a sua humanidade”, afirma a professora Cecília Loschiavo, professora da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do tema. Segunda ela, há um preconceito generalizado

contra as pessoas que vivem nessas situações. “Elas são freqüentemente humilhadas, rejeitadas. Ninguém quer ter perto de casa um morador de rua ou uma instituição que trabalha com essa parcela da população”, comenta Cecília, autora do livro Cidade de Plástico e Papelão, sobre a luta pela sobrevivência dos sem-teto. “Vivemos em um mundo sem emprego, que não oferece condições de vida à humanidade”, avalia Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, da Central dos Movimentos Populares (CMP). “Apesar de não assumirmos, estamos vivendo a barbárie há muito tempo. Essa violência e a falta de segurança mostram isso. Percebe-se também que o Estado burguês não tem muito o que oferecer ao povo. É preciso cobrar uma ação urgente do poder público, pois todos os brasileiros foram violentados pelos atentados. É uma agressão a todos nós, pobres, negros, homossexuais, lésbicas”, diz. (DM e JPF)

Imprensa manipula e forma opiniões preconceituosas sobre a população de rua

ANÁLISE

Olha nos meus olhos, sou ser humano! Alderon Costa Na madrugada do dia 19 de agosto, dez homens que dormiam nas ruas do Centro de São Paulo foram estupidamente agredidos, provavelmente por paulada ou barras de ferro. Desses, quatro morreram e os outros continuaram internados em estado grave nos hospitais da cidade. Se não bastasse, na madrugada do dia 22 de agosto uma mulher foi assassinada e mais quatro pessoas foram agredidas. Com a morte de mais um ferido, ao todo chegamos a seis vítimas fatais e nove feridos. A imprensa tem noticiado esses fatos com muita intensidade. Com ela, as apurações estão devagar; sem ela, não se teria nenhuma apuração. No entanto, só isso não basta

para dizer que a imprensa mudou sua relação com as pessoas em situação de rua. A imprensa continua perdida, manipulando e formando opiniões preconceituosas sobre a população de rua. As manchetes ainda são as mesmas: “Massacre de mendigos no centro”, no São Paulo Agora, dia 20; “Morre mais um mendigo e outro é achado ferido”, no O Estado de S. Paulo, dia 21; “Mais dois mendigos mortos” foi a manchete do Jornal da Tarde, dia 23. Isso só para ficar nessas três manchetes e chamar a atenção do leitor para essa visão preconceituosa que a imprensa insiste em impregnar no exército de reserva desse sistema que ela mesma exclui. Chamar de mendigos as pessoas que têm a rua como última chance

de sobrevivência é, no mínimo, irresponsável, e de um desconhecimento gigantesco dessa realidade que cada vez mais tem aumentado em todas as grandes capitais. Avanços já foram dados, alguns meios têm chamado essas pessoas de “moradores de rua”, “sem-teto”, “pessoas em situação de rua”. É óbvio que o conceito é tão importante como a prática. Se continuarmos com uma visão de mendigos, continuaremos a dar soluções assistencialistas. A mudança de conceito pode trazer benefícios para várias pessoas que estão na rua por conta do desemprego. Um cartaz, segurado por uma pessoa no ato ecumênico para lembrar as vítimas resumiu essa crítica à imprensa: “Olha nos meus olhos, sou ser humano!”.

As reportagens na imprensa escrita, em particular, fixaram-se nos crimes e nas histórias relacionadas com os fatos. Pouco se falou sobre a realidade, suas causas e possíveis saídas. Como não se teve nenhum fato novo, além das novas mortes do fim de semana, a imprensa tem divulgado possibilidades sobre quem estaria por trás dessas mortes. São perguntas cujas respostas já se sabe. São as tais hipóteses. Eis algumas delas: briga entre as pessoas em situação de rua, vingança de traficantes, ação de gangues, limpeza do Centro pelos comerciantes e até ações da polícia. Da fábrica de hipóteses à velha tática de criar conflitos para posteriormente se tornarem notícias.

Nesse sentido é que se insere o festival de acusações recíprocas entre município e Estado. Se não acontecer nenhum assassinato novo, o espaço será substituído pela eleição municipal. A população que está em situação de rua continuará nas ruas, exposta a todo tipo de violência, e ações concretas, como emprego, moradia, saúde e educação vão ficar para outro momento. As mortes vão continuar e o grande problema é que não serão mais um fato político e nem terão mais importância jornalística. Alderon Costa é jornalista, diretor do jornal O Treicheiro, coordenador da ONG Rede Rua e integrante da diretoria da revista Ocas


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De 26 de agosto a 1º de setembro de 2004

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Bernardete Toneto, 5555 Marilene Felinto, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Agê, Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, 5555 Natália Forcat, Nathan, Novaes, Ohi • Editor de Arte: Valter Oliveira Silva • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Dafne Melo e Fernanda Campagnucci 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: FolhaGráfica 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

NOSSA OPINIÃO

O petróleo é, decididamente, nosso

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o início dos anos 50, a defesa da nacionalização do petróleo brasileiro identificava-se com a luta pela afirmação da soberania nacional. A campanha, que tinha por lema “O petróleo é nosso”, e por ícone o escritor Monteiro Lobato, desembocou na criação da Petrobras, pelo então presidente Getúlio Vargas, mediante o Decreto Lei nº 2004, de 3 de outubro de 1953. O decreto passava ao controle do Estado todas as reservas, conhecidas ou não, e concedia à estatal Petrobras os direitos exclusivos de sua exploração. Foi um momento único de afirmação da identidade brasileira face ao imperialismo. Basta lembrar que, no Irã, em 19 de agosto de 1953, os serviços secretos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha patrocinaram um golpe que depôs o primeiro-ministro Mohamed Mossadegh, justamente por ter nacionalizado as reservas de petróleo em seu país, dois anos antes. No seu lugar, foi empossado o sangrento ditador Reza Pahlevi, deposto por Khomeini, em 1979. No Brasil, quase exatamente um ano após o golpe contra Mossadegh, o suicídio de Vargas denunciava as pressões do mesmo imperialismo golpista. Durante quase cinco décadas, o Brasil conviveu com a idéia de que “o petróleo é nosso”. As reservas do Brasil somam 16 bilhões de barris, suficientes para assegurar seu consumo interno, nos níveis atuais, durante 18 anos, e a auto-suficiência em 2006. Em grande parte, essa situação relativamente confortável se deve à

Petrobras, que se provou capaz de construir e elaborar uma tecnologia sem concorrentes no mundo, para localizar e explorar jazidas em alto mar. Apesar dessa história, o monopólio da Petrobras começou a ser questionado logo após a eleição de Fernando Henrique Cardoso à presidência, em 1994, sob o argumento de que a abertura à competição internacional contribuiria para aumentar a eficácia da própria Petrobras, e para diminuir o preço do combustível praticado no país. Em 1995, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional nº 9, que extinguiu o monopólio da exploração pela Petrobras. Em 1997, a Lei 9.478, que criou a Agência Nacional do Petróleo (ANP), regulamentou a decisão. A Petrobras ficou confinada em 397 áreas: 231 correspondiam a campos em produção, 51 a campos em desenvolvimento e 115 a blocos em prospecção, que passaram a ser chamados “blocos azuis”, selecionados pela própria empresa. As demais áreas (cerca de 90% do território brasileiro) foram entregues à ANP para serem leiloadas. Um golpe profundo contra a soberania nacional foi dado, então, pelo governo neoliberal de FHC, que organizou cinco rodadas para leiloar reservas. Enquanto esteve na oposição, o Partido dos Trabalhadores (PT) manifestou-se contra a absurda capitulação. Agora, porém, o governo federal, contrariando compromissos de campanha, dá

prosseguimento ao processo de privatização da Petrobras, como prova a realização da sexta rodada, em agosto, quando empresas transnacionais (as estadunidenses Devon Energy e Kerr-McGee Corporation, a canadense EnCana, e a coreana SK Corporation) adquiriram áreas estratégicas da bacia de Campos (RJ). O governo comete um erro dramático, sob todos os pontos de vista, ainda mais no quadro de uma conjuntura internacional dominada pela geopolítica do petróleo. Leiloar reservas, quando todos sabem que ter ou não petróleo pode significar a diferença entre autonomia ou subordinação de uma nação, equivale a um ato de suicídio estratégico. É também um tremendo erro político, por ferir o mais profundo símbolo do sentimento de nacionalidade já construído neste país. Não por acaso, a decisão de manter a sexta rodada provocou um dia de paralisação do setor petroleiro, puxada pela Federação Única dos Petroleiros e manifestações de protesto em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, além de ter causado uma batalha jurídica, graças a uma liminar do governador do Estado do Paraná, Roberto Requião, junto ao Supremo Tribunal Federal. Foram só os primeiros passos de uma resistência que será, sem dúvida, desdobrada e multiplicada nos próximos anos. A nação saberá demonstrar, mais uma vez, que o petróleo é, decididamente, nosso. OHI

FALA ZÉ

CARTA AOS LEITORES AULA DE DEMOCRACIA A Venezuela deu uma verdadeira aula de democracia ao resto do mundo. De maneira soberana, o povo reafirmou a sua escolha. O governo popular da Venezuela, eleito e reeleito pelo voto de seus cidadãos, estimula por toda a América Latina a luta por progresso, soberania e justiça social. Representa a consolidação da democracia e a ampliação das conquistas sociais. O povo venezuelano foi vitorioso, pois reafirmou o direito de decidir seu próprio destino. Chávez provou que seu governo respeita o princípio da autodeterminação dos povos e da não intervenção nos assuntos internos de cada país. Margarete Moraes Vereadora e presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre PANFLETO Desde a primeira vez que li o Brasil de Fato não gostei. Não era um olhar de esquerda crítico e independente, mas um panfleto dirigido para o povo da esquerda, batendo no EUA, ou mais precisamente, contra o povo que lá habita, os “estadunidenses”. É a mesma coisa que mandar uma carta para mim, toda semana, dizendo que a Scheila Carvalho é linda. Vou concordar, aplaudir, mas na segunda semana já não estou nem aí, muito menos desejaria assinar. Minha

sugestão é que mudem, façam um tablóide operário bem popular ou avancem para o tempo atual e lancem um jornal eletrônico enviado por correio eletrônico. Assumam postura mais independente e inteligente, ler toda a semana “mais do mesmo” não dá. É preciso um olhar de esquerda sobre tudo, não a esquerda em tudo. Maurício Pinheiro da Costa por correio eletrônico SAUDAÇÕES Força para o nosso Brasil de Fato. Sem ele, seremos ainda mais prisioneiros da nossa miséria política. Abraço fraterno. Ricardo Antunes por correio eletrônico Obrigada pela divulgação e força para continuarmos na “revolução”, por meio deste grande jornal. Além disso, parabéns a todos os que contribuem, em especial, Claudia Jardim, que está na luta na Venezuela, José Arbex Jr. e João Pedro Stédile. Redirecionei a mensagem para a Direção da Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (Denem), que representa 50 mil estudantes no país. Em defesa da soberania, da saúde dos povos e da democratização da mídia! Carolina Baldoni Bixana por correio eletrônico

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815

CRÔNICA

As lições da Venezuela Luiz Ricardo Leitão Irritado pelo desprezo que nossa mídia dedicou à histórica vitória de Hugo Chávez, assim como pela desproporcional atenção que a sociedade do espetáculo vem concedendo às Olimpíadas (essa overdose de chauvinismo incapaz de disfarçar a crescente mercantilização do esporte em um planeta neoliberalmente globalizado), julgo oportuno refletir sobre algumas lições da nossa vizinha Venezuela. A primeira questão oportuníssima foi formulada pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano: quantos governantes passariam pelo teste a que Chávez se submeteu? No Peru, a popularidade do presidente não chega a 7%. No Equador, o flerte deplorável de Gutiérrez com Bush e a traição às promessas de campanha suscitaram a mais ferrenha reação popular ao regime e a rápida debandada das forças de esquerda da máquina estatal. E o que dizer do nosso loquaz Luís

Inácio, após os primeiros frutos da “reforma” da Previdência e do salário “mínimo” a R$ 260? Mas o privilégio não é só da América do Sul: as balelas de Bush sobre as armas químicas do Iraque já não convencem ninguém, e a popularidade do perigoso mascate texano vem baixando a níveis inquietantes (para os “falcões” da Casa Branca, é claro!), às vésperas de mais uma farsa democrática em terras do tio Sam. Por falar em eleições e EUA, já não seria hora de acatar a bem-humorada sugestão do nosso amigo Maringoni e criar um Centro Chávez, para supervisionar o processo eleitoral ianque e, se a apuração na Flórida demorar mais de um mês, promover uma intervenção internacional no Império do Norte, zelando pela democracia ocidental e pela segurança de toda a humanidade? Em se tratando de democracia, quem vem dando lições ao mundo é a revolução bolivariana. Ao invés de propor a ampliação do seu

mandato, como o fizeram Fujimori, Menem e FHC, Chávez defendia, desde os anos 90, a convocação de uma Constituinte, a fim de revogar todo o arcabouço jurídico que concentrava os direitos sociais nas mãos da mais prostituída elite ao sul do Rio Grande. Eleito em 1998, não apenas patrocinou a confecção da nova Constituição, como também, em respeito à Carta Magna, aceitou submeter-se uma vez mais à prova das urnas em 2000 e, agora, protagonizou o inédito “referendo”, mediante o qual ele poderia ter sido destituído do poder. Uma lição, porém, jamais será aprendida pela cínica e presunçosa burguesia local. Como nos adverte Edgardo Lander, da Universidade Central da Venezuela, Luiz Ricardo Leitão é editor e escritor, doutor em Literatura Latino-Americana pela Universidade de La Habana, e professor adjunto da UERJ.

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Dioclécio Luz Indígenas dirigem rádio educativa Índios da reserva Amambaí, a cerca de 350 km de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, estão fazendo programa pioneiro de educação, com programação completa na língua guarani, na rádio mantida pela escola municipal Coroa Sagrada. A emissora faz parte do Projeto Educom.rádio, uma parceria entre o Ministério da Educação (MEC), o Núcleo de Comunicação e Educação da Universidade de São Paulo (USP) e a Secretaria de Educação do Mato Grosso do Sul. Mais informações em www.educomradio.com.br/centrooeste. Rádio comunitária: PF provoca morte Na semana passada a polícia federal esteve em Angra dos Reis, Rio de Janeiro, fechando diversas rádios “clandestinas”. Numa delas, levaram tudo que tinha pela frente. Um dos dirigentes da emissora passou mal. E depois faleceu. É mais uma ação do governo Lula? Jornalistas sob controle A Câmara Federal está analisando não uma, mas duas propostas que regulamentam o exercício da profissão de jornalista em todo o país: o Projeto de Lei 3.985/04, do Poder Executivo, que cria o Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), foi apensado (ajuntado) ao PL 6817/ 02, do deputado Celso Russomano (PPB-SP), que institui a Ordem dos Jornalistas do Brasil (OJB). O governo e as concessões “Entendo que o governo deve ter uma fórmula de avaliar o padrão de uma emissora, para ver se vai renovar essa concessão ou não, para tirar do ar certos programas e para aplicar um tipo de sanção em cada caso. O governo também tem de se coordenar para saber que determinado tipo de programa não pode ser patrocinado com recursos públicos, ou seja, que nele não podem ser veiculados anúncios pagos com recursos públicos. Isso é uma contradição. O Ministério da Justiça, de alguma forma, condena; outro, sem perceber, está apoiando. Então, é preciso haver um trabalho de coordenação”. (Cláudia Chagas, secretária nacional de Justiça, do Ministério da Justiça) O militar e o povo Simon Bolívar afirmava: “Maldito seja o soldado que ergue as armas contra o seu próprio povo”. (Hugo Chávez, em entrevista à revista Caros Amigos). Sugestão de pauta: o super-Dirceu Por que toda vez que se forma um conselho para discutir qualquer coisa, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, é autonomeado presidente? Coisa de quem tem o dom da ubiqüidade e a ambição pelo poder. Cineclubes apóiam Ancinav Quase 50 cineclubes de todo país assinaram nota em defesa da Agência do Cinema e Vídeo proposta pelo Ministério da Cultura. “O projeto procura consolidar um processo histórico de demandas do cinema brasileiro; (...) procurando garantir a primazia do benefício público sobre os interesses privados, a defesa do produto nacional e a equanimidade no tratamento da produção internacional, a geração de trabalho, renda e desenvolvimento para o país”, diz a nota. Sindcine não opina Em nota pública sobre a Ancinav, o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Cinematográfica do Estado de São Paulo (Sindicine) esclarece que não tem opinião. Só reclama que não foi chamado para discutir o projeto. Ah, claro. Ataque ao Cineclube Falcatrua Na Universidade de Vitória, no Espírito Santo, os estudantes montaram o cineclube Falcatrua. Lá, os estudantes apresentavam filmes que pegavam na internet. Os donos de salas Multiplex entraram na Justiça e conseguiram proibir o funcionamento do cineclube. O Falcatrua foi fechado. E as salas Multiplex continuam exibindo somente filmes estadunidenses e uns poucos da Globofilmes.

PETROBRAS

O petróleo não é tão nosso assim Argumentos em defesa dos leilões são falaciosos; transnacionais agradecem ao governo do PT Luís Brasilino da Redação

C

ontinua difícil de entender por que o Brasil leiloou, dias 17 e 18 de agosto, 913 blocos para exploração petrolífera. É verdade que a Petrobras arrematou a grande maioria das áreas (cerca de 69% delas), mas o governo arriscou perder reservas estratégicas da nação a troco de, praticamente, nada. Para Fernando Siqueira, diretor de comunicação da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), apesar de ter ficado com a maioria dos blocos, a estatal entrou como parceira em várias áreas – blocos que eram dela, terão de ser divididos. “Além disso, nenhuma proposta foi feita em áreas novas. Isso contraria até mesmo a filosofia da quebra do monopólio, leva a Petrobras a também parar de investir em terrenos desconhecidos e o país perde com isso”, completa. Dos R$ 665 milhões arrecadados na licitação, R$ 554 milhões (83%) foram referentes a blocos com grande probabilidade de ter óleo. A sexta rodada de licitação, promovida pela Agência Nacional do Petróleo (ANP), não só ameaça a soberania do país – o petróleo é um bem escasso e continua sendo a principal fonte de energia do mundo, inclusive do Brasil – como foi um mau negócio.

Protesto em frente à sede da Petrobras em São Paulo: sexta rodada foi mal negócio e ameaça a soberania do país

argumentam que, em função das licitações, o país receberá 20 bilhões de dólares em investismentos externos, mas não há um único fator que comprove tal afirmação. Ele informa que, nos contratos de risco dos leilões anteriores, os investidores estrangeiros aplicaram 375 milhões de dólares, em relação aos 26 bilhões investidos pela Petrobras.

NINHARIA

FALÁCIAS

Para dar uma idéia de como o valor arrecadado com os leilões é baixo, R$ 40,3 bilhões são quanto o Brasil deve pagar em juros da dívida externa em 2004, segundo estimativa do Banco Central. Ou seja, vendendo bens estratégicos como parte de suas reservas de petróleo, o governo amealhou pouco mais de 1,5% do que vai gastar com juros. Sem esquecer o fato de que 66% (R$ 437 milhões) dos recursos arrecadados vieram da Petrobras. Segundo Siqueira, a grande imprensa, a ANP e Dilma Rousseff, ministra das Minas e Energia,

“Nas demais licitações, nas quais foram vendidas 88 áreas, entraram 2,1 bilhões de dólares, que o governo federal pegou para fazer superávit primário. As transnacionais participantes da ‘privataria’ só usaram dinheiro do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e, ainda por cima, deram calote. Os lucros, contudo, remetem com avidez”, conclui o diretor da Aepet. As petrolíferas estrangeiras não só investem pouco no Brasil, como também estão muito mais preocupadas em exportar o óleo extraído.

De acordo com Siqueira, a Shell envia para o exterior 70 mil barris diários de óleo leve, de excelente qualidade, produzido no campo de Bijupirá/Salema, na Bacia de Campos (RJ). Operação realizada antes mesmo de o país atingir auto-suficiência no insumo, prevista para 2006. O argumento tradicionalmente utilizado para justificar os leilões é que o setor precisa de investimentos para produzir bastante petróleo, contribuir para o balanço de pagamentos, arrecadar impostos e taxas (as chamadas participações governamentais) etc., lembra Paulo Metri, conselheiro do Clube de Engenharia e ex-funcionário da ANP.

BONS NEGÓCIOS “Os que promovem os leilões consideram o petróleo uma commodity que estaria disponível para compra durante muitos anos, a preço razoável, no mercado mundial. Assim, se opõem a qualquer planejamento estratégico do abas-

tecimento de petróleo para o país, num horizonte de, no mínimo, 15 anos”, diz Metri. A seu ver, hoje, fica difícil continuar defendendo – com o barril a 45 dólares e com tanta guerra em torno dele – a exportação do petróleo, sem qualquer estudo que garanta o abastecimento de médio prazo do país, o que compromete o futuro das próximas gerações. Além disso, o preço do petróleo tem subido muito no mercado internacional – em 2003, o barril custava menos de 30 dólares. Segundo Metri, a alta de preços aumenta o interesse das transnacionais em participar dos leilões porque o negócio petróleo é cada dia mais lucrativo. “O preço de venda do petróleo tem subido muito mais do que os custos de prospecção e extração. Por isso, a alta das cotações também deveria ser levada em conta nos leilões, mas, aqui, muitos dos parâmetros das licitações atuais são os mesmos da primeira rodada, em 1999, quando o barril custava 13 dólares”, argumenta.

ILEGALIDADE

Varig faz perseguição política Os trabalhadores da Viação Aérea Rio-Grandense (Varig) estão acusando a direção da Fundação Ruben Berta (FRB) de perseguição política e de tentar impedir a organização dos funcionários. Segundo a Associação dos Pilotos da Varig (Apvar), de 2002 para cá, 63 diretores da entidade foram demitidos. As dispensas foram feitas quando a entidade percebeu que os gestores iam quebrar a empresa, conta Marcelo Duarte, assessor de relações institucionais da Apvar. A FRB controla 87% do capital total da Varig, companhia que ia muito bem na década de 90, mas não se adaptou à desregulamentação da aviação, feita durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Atualmente, as dívidas da empresa chegam a R$ 6 bilhões. As primeiras 32 demissões, em fevereiro de 2002, foram por justa causa. Todos os dispensados eram da direção da Apvar. No segundo semestre do mesmo ano, mais 31 funcionários tiveram suas demissões imotivadas assinadas pela empresa. Destes, quem não era diretor da Apvar, conDesregulamentribuia para um tação da aviação fundo que des– Até o início da década de 1990, o tinava recursos governo exercia um aos pilotos rígido controle sobre d i s p e n s ados os preços cobrados pelas empresas em fevereiro. aéreas. Seguindo a “Todos os cartilha neoliberal, f u n cionários FHC acabou com demitidos isso, deixando a regulação dos preços entraram na com o mercado. Justiça e isso

resultou num acréscimo de R$ 60 milhões no passivo trabalhista da empresa. As indenizações, no entanto, só serão pagas quando os processos terminarem (atualmente tramitam em segunda ou terceira instância). Assim, a situação das famílias de cada um dos novos desempregados está complicada. Estamos vendendo patrimônio, tirando os filhos da escola”, afirma Duarte.

Divulgação

da mídia

NACIONAL

Anderson Barbosa

Espelho

AUTORITARISMO Em um dos processos, a sentença proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul foi emblemática: “(...) A atitude dos dirigentes da Varig violou direito constitucionalmente assegurado (art 5º da CF), bem como o direito de defesa dos interesses econômicos e profissionais previsto em lei (art 511 da CLT). Os gestores da Varig, numa atitude autoritária e ao arrepio da lei e das normas de um Estado Democrático, ignoraram o artigo 7º da Constituição Federal, que visa a proteção do emprego contra atitudes arbitrárias do empregador extrapolando desta forma o direito potestativo que lhes é assegurado. Entraram no campo do abuso de direito e de violação aos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, além de infringirem normas coletivas e regulamentares”. Para Duarte, foi a má gestão que levou a Varig à situação atual. “A governança corporativa não foi

Diretores da Varig passam por cima dos direitos garantidos aos trabalhadores na Constituição

capaz de reagir à desregulamentação e é isto que vem matando a empresa”, afirma Duarte. “Pessoas se esconderam atrás da FRB,” continua, “quebraram a empresa e, hoje, estão ricos”. Para o assessor da Apvar, a situação está crítica a ponto de começar a comprometer a segurança de vôo.

FORA DA LEI Isso porque um dos artifícios usados pela Fundação para driblar seu estatuto (originalmente, a Fundação serviria para proteger e representar os trabalhadores) foi criar novas empresas e destinar a elas, paulatinamente, recursos da Varig. Assim, eles poderiam gerir

essas empresas sem se importar com o estatuto. É o caso da RioSul e da Nordeste, empresas aéreas do mesmo grupo da Varig, mas que pagam salários entre 15 e 30% mais baixos. Em 2003, houve uma tentativa fracassada de unir a Varig com a TAM. No entanto, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) – ligado ao Ministério da Justiça – vem dificultando essa saída, com receio que signifique formação de cartel. Então, no velho estilo de capitalismo de hospital, o governo federal vai entrar em campo para ajudar a salvar a Varig. Atualmente, está sendo estudado um empréstimo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a empresa. Para Marcelo Duarte, o governo não pode estatizar a Varig, nem repassar recursos diretamente aos atuais gestores, os mesmos que levaram a empresa à insolvência. “O governo deve transferir parte da empresa para os funcionários, convertendo as dívidas que a Varig tem conosco em ações”, propõe ele. Dos R$ 6 bilhões de dívidas, R$ 2 bilhões são com os trabalhadores. Os funcionários são os maiores credores da companhia e, assim, são os principais interessados na sua sobrevivência. Duarte ressalva que a intenção dos funcionários não é administrar a empresa. “Queremos, simplesmente, que ela seja bem administrada”. (LB)


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NACIONAL MOBILIZAÇÃO

Desempregados ocupam terras no Rio Rodrigo Brandão do Rio de Janeiro (RJ)

O

Movimento das Trabalhadoras e dos Trabalhadores Desempregados (MTD), surgido a partir da “Marcha Trabalho, Terra e Teto”, em 1999, liderou, dia 22 de agosto, uma ocupação de terras no Estado do Rio de Janeiro. Cerca de 50 desempregados, subempregados e sem-teto estão acampados no alto de uma chapada no Barro Vermelho, em Belford Roxo, Baixada Fluminense. A área, de aproximadamente 5 mil metros quadrados, pertence à Companhia Estadual de Habitação (Cohab). Até o fechamento desta edição (dia 24), 200 famílias acampavam no local. Integrantes do grupo já haviam participado de três ocupações no mesmo local nos últimos anos, mas problemas de organização e a ação das autoridades acabaram por inviabilizar os assentamentos. A Cohab chegou a apresentar, há cerca de uma década, um projeto para a construção de 5 mil casas populares no local, mas apenas 2 mil foram entregues. O acampamento conta com a colaboração do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Sindicato dos Traba-

ZulmairRocha/Sintuff

Famílias lideradas por movimento de desempregados ocupam área estadual em busca de melhores condições de vida

Movimento dos Trabalhadores Desempregados do Rio faz ocupações e quer desenvolver atividades com os sem-emprego

lhadores da Universidade Federal Fluminense (Sintuff) e do DCE da Universidade Federal Fluminense. Criado no Rio Grande do Sul em 2000, o MTD não se define como um movimento por moradia. “Não centramos nossa luta na questão da terra. Nosso movimento se propõe a organizar os trabalhadores das cidades. Fazemos ocupações, mas buscamos

desenvolver atividades produtivas que garantam trabalho para todos e sustentem o acampamento”, explica Maurício Viviane, um dos líderes da ação em Belford Roxo.

CHANCE DE VIRADA Eliane da Silva, 36 anos, e Luzia Ferreira da Silva, 42, eram vizinhas em Vilar Novo, bairro a cerca de

dez minutos de Barro Vermelho. Desempregadas e vivendo em casas de parentes, elas esperam encontrar na ocupação a chance de uma virada. “Tenho dois filhos pequenos para criar e estou na casa dos pais de meu ex-marido”, diz Eliane, que é professora e espera ser útil no acampamento, uma vez que uma das primeiras barracas

montadas foi a de Formação. Luzia, que é diarista mas está sem trabalho, pretende ajudar na cozinha do acampamento. Os coordenadores da ocupação esperam que o MTD tenha, no Rio, o mesmo sucesso experimentado no Sul – onde uma das principais conquistas foi a abertura, ainda no governo Olívio Dutra, das Frentes Emergenciais de Trabalho (FET). Por meio de uma lei estadual – cujo projeto foi preparado pelo MTDRS –, núcleos de base dos acampamentos cadastram participantes das cooperativas nas frentes. Durante seis meses, o cadastrado recebe um salário-mínimo e uma cesta básica. Hoje, mais de 4 mil famílias trabalham em cerca de 6 mil frentes, construindo casas populares, fiscalizando praças e jardins, trabalhando em restauração de monumentos. No interior dos acampamentos e assentamentos, trabalham (pelo regime de cooperativa) em metalúrgicas e confeitarias populares. “Moro de favor, com três netos. Sabe por que acredito em uma vida melhor? Amo Jesus e tenho fé”, resumiu a aposentada Divercinda Muniz, 78 anos, a mais velha dos ocupantes.

MST leva mostra de cultura a Ministério Uma apresentação da mística do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), feita por um grupo do acampamento Gabriela Monteiro, marcou, dia 23 de agosto, a abertura da Mostra História e Cultura MST, que acontece no complexo cultural do Ministério da Cultura (MinC), em Brasília, até o dia 27. O objetivo da mostra é levar à sociedade um outro olhar sobre a reforma agrária, valorizando a produção cultural do camponês. “Esse é um momento de mudança histórica no nosso país. Podermos sair do campo e entrar em um ministério para expor nossa cultura”, disse o coordenador nacional do MST, João Paulo Rodrigues. Segundo Rodrigues, faz parte dos desafios do MST libertar, por meio da educação e da cultura, cada um dos integrantes dos assentamentos e dos acampamentos. No lançamento do evento, o coordenador do MST sentou-se à mesa junto ao secretário da Identidade e da Diversidade Cultural do MinC, Sérgio Mamberti; à coordenadora de Projetos da Associação Nacional de Cooperação Agrícola (Anca), Evelaine Martines; ao coordenador de Produções da Fundação Cultural Palmares, Cleosmar Fernandes; e ao secretário substituto da Identidade e da Diversidade Cultural, Ricardo Lima. Mamberti ressaltou que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva não trata a cultura “sob conceitos estritamente acadêmicos, restritivos e elitistas”. “Temos caminhado no sentido de promover a diversidade cultural mediante o apoio à desconcentração de recursos para a área cultural, o incentivo às manifestações culturais em todo o território nacional, assim como o processo de regionalização dos conteúdos dos meios de comunicação”, acrescentou o secretário.

PONTA DE LANÇA Para ele, a Mostra História e Cultura do MST é a ponta de lança do projeto Rede Cultural da Terra, cujo lançamento oficial vai se dar na Segunda Semana Nacional da Cultura e Reforma Agrária, a se realizar no Recife, entre 3 e 7 de novembro. “A cultura deve ser entendida como fator de desenvolvimento, pois está estreitamente ligada aos processos de criação e da existência de uma

sociedade democrática e da coesão social”, disse Mamberti. Evelaine Martines explicou que a Anca é uma organização que nasceu para fortalecer a cultura do campo, uma cultura marcada por lutas. “Queremos continuar na

roça, mas lá podemos ter cinema, teatro, biblioteca. Queremos poder contar nossa história, fortalecer nossa identidade e ser os protagonistas de uma história, não apenas meros espectadores. Desde que o Movimento nasceu, ele produz

cultura por meio da luta, das ocupações, de cantorias e poesias, das artes plásticas. Pela linguagem da arte se fortalece a identidade cultural do camponês”, enfatizou. A exposição, organizada pela Secretaria da Identidade e da Di-

versidade Cultural e pela Anca, com o apoio da Fundação Cultural Palmares, é composta por painéis fotográficos de grupos artísticos do campo, uma feira de produtos da reforma agrária, uma mostra de vídeo e apresentações teatrais.

Fotos: Arquivo MST

Laura Muradi de Brasília (DF)

Fotos que integram a exposição no Ministério da Cultura, em Brasília, pretendem levar à sociedade um olhar diferente sobre a reforma agrária

ÁGUA

QUILOMBOLAS

Comunidades exigem devolução de suas áreas Erick Schunig de Vitória (ES) Entidades quilombolas do Espírito Santo cobram da Justiça a devolução de terras no norte do Estado, adquiridas pela empresa Aracruz Celulose. As entidades entraram com uma representação na Procuradoria Geral do Estado, dia 17 de agosto, alegando que essas terras eram habitadas por comunidades remanescentes de quilombos. O objetivo da representação é pedir providências legais para a anulação de legitimação das terras que se encontram em poder da empresa Aracruz Celulose. De acordo com as entidades, houve uma aquisição irregular de terras devolutas nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra, por 30 funcionários e ex-funcionários da Aracruz Celulose. Representantes de entidades quilombolas

afirmam que essas terras eram ocupadas por remanescentes de quilombos há várias gerações. As comunidades foram expulsas pela empresa Aracruz, com o apoio de órgãos estatais. Foram anexados à representação documentos comprovando a ocorrência de fraudes nas legitimações das terras. As entidades deram entrada numa notícia criminal, na Procuradoria Geral do Estado, responsabilizando os servidores, secretários e diretores que atuaram em processos de licenciamento da empresa. Os licenciamentos foram concedidos pela Secretaria de Estado para Assuntos do Meio Ambiente (Seama) e pelo Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal (Idaf). As entidades pedem a abertura de processo criminal com base na Lei de Improbidade Administrativa e de Crimes Ambientais.

Abaixo-assinado chega a 500 mil assinaturas da Redação O abaixo-assinado que propõe a revisão dos fundamentos da Lei nº. 9.433/97, de Recursos Hídricos, é uma ação concreta da Campanha da Fraternidade de 2004, que se encerrará dia 7 de setembro com o Grito dos Excluídos, em todo o país. O abaixo-assinado já contabiliza cerca de 500 mil assinaturas e será enviado ao Congresso Nacional pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), como um projeto de lei de iniciativa popular. Segundo estudos, a questão se agrava a cada ano e a conseqüência disso é uma multidão que não tem acesso à água ou, se tem, não sabe o tipo de água que bebe. Centrada nesse problema, a Campanha da Fraternidade 2004 afirma que será solidária aos “sem-água”, pessoas que, durante o ano todo, não têm um copo de água de qualidade para beber.

O abaixo assinado se baseia nos pressupostos do artigo 177 do texto base da Campanha, que assegura a água como o maior bem natural da humanidade, para sugerir itens na criação da Lei do Patrimônio Hídrico Brasileiro. Alguns deles são: a existência de uma legislação integrada da gestão do patrimônio hídrico brasileiro, unindo a legislação que dispõe tanto sobre seu uso quantitativo, mas também de sua preservação qualitativa; a instituição de uma política nacional de captação de água de chuva e a pesquisa e implementação do uso de outras fontes energéticas, para poupar nossos rios depredados pela construção das grandes barragens. Os interessados em assinar o documento podem ter acesso ao texto na página da internet do Centro de Estudos Bíblicos: www.cebi.ong.org (Adital, www.adital.org.br)


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NACIONAL DIREITOS HUMANOS

Amazônia cobra urgência

Fatos em foco Palavra empenhada A Central Única dos Trabalhadores (CUT) elaborou uma carta-compromisso para todos os candidatos a prefeito. A entidade quer saber quem vai mesmo assumir a defesa de propostas do interesse dos trabalhadores. E promete fiscalizar, depois, quem vai manter a palavra. Se fizer isso com deputados, senadores, governadores e até presidente da República, a CUT vai ter muitas decepções entre políticos oriundos da própria classe trabalhadora. Sem futuro No Estado de São Paulo, onde estão localizadas três grandes universidades públicas estaduais (USP, Unicamp e Unesp), apenas 1,8% dos jovens de 18 a 24 anos de idade têm acesso ao ensino superior gratuito. Como não está previsto nenhum aumento significativo de investimentos na área, o direito universal à educação não passa de um sonho impossível para grande parte da juventude. Tática biônica As empresas transnacionais de sementes transgênicas estão aplicando na lavoura do algodão o mesmo golpe do fato consumado que usaram no caso da soja. Ou seja, distribuem sementes para plantações ilegais e depois criam o “problema social”, usando agricultores como massa de manobra de seus interesses. O Ministério da Agricultura finge que está tudo tranqüilo no campo. Violência ilimitada Os assassinatos de moradores em situação de rua, na cidade de São Paulo, revelam o grau de enfermidade social que atinge a população dos grandes centros urbanos, onde a exclusão é mais violenta e onde as desigualdades estão expostas para todos. Na outra ponta, a nova “onda” é o abominável seqüestro de crianças e adolescentes das classes médias. Máquina contaminada A operação realizada pela Polícia Federal contra doleiros revelou que o combate aos crimes do colarinho branco – aqueles praticados cada vez mais por criminosos com curso superior, mestrado, doutorado e PhD – ainda está longe de alcançar resultados positivos, já que o próprio aparelho de Estado colabora com a ação criminosa. Novela inacabada Tudo indica que a CPI do Banestado foi mesmo parar numa pizzaria. A galera continua esperando os próximos capítulos sobre a sonegação de impostos do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, sobre as remessas ilegais de dólares de 29 banqueiros e sobre as movimentações de quase três mil usuários daquela “lavanderia”. Todos, naturalmente, ótimos brasileiros. Unanimidade tardia A imprensa brasileira tem dedicado amplo espaço para lembrar o cinqüentenário da morte do presidente Getúlio Vargas, que se suicidou em 24 de agosto de 1954. De maneira geral, gregos e troianos consideram que Getúlio foi um “grande estadista”, “o mais importante brasileiro do século 20”, o responsável pelo projeto de desenvolvimento nacional que mudou o país de 1930 a 1960. Agora, 50 anos depois, Getúlio é quase unanimidade. Lição de casa Do jurista Fábio Konder Comparato durante encontro da Coordenação de Movimentos Sociais, dia 21 de agosto: “Quem governa não pode ser soberano, só o povo é soberano, e assim mesmo a soberania do povo não é ilimitada. Assuntos como a Alca não podem ser decididos pelo governo, o povo precisa ser consultado”.

Verena Glass de São Paulo (SP)

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erca de 40 organizações não-governamentais (ONGs) e movimentos sociais divulgaram, dia 19, uma carta aberta pedindo medidas urgentes por parte do governo brasileiro em relação a denúncias de assassinatos, ameaças de morte, invasões e grilagens de terras públicas – já ocupadas por comunidades – e outros crimes praticados contra populações tradicionais e extrativistas, povos indígenas e ribeirinhos na região amazônica, especialmente no Pará. O documento vem a reboque de uma ação da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais (DhESC), rede nacional de ONGs pela defesa dos direitos humanos, que, há cerca de um ano, divulgou um estudo realizado pelo consultor da Organização das Nações Unidas (ONU) para os direitos humanos, Jean Pierre Leroy, sobre a situação de extrema violência vivenciada no Pará. “O estudo foi encaminhado para uma série de órgãos do governo federal e estadual, como os ministérios do Meio Ambiente e da Justiça, os ministérios público federal e estadual, a Secretaria de Segurança Pública etc., mas o que vimos a partir dali foi um recrudescimento da violência”, diz Carlos Rittl, assessor do Greenpeace. Dia 18, as organizações sociais participaram de uma audiência pública na assembléia legislativa do

Fotos: João Roberto Ripper

Movimentos sociais e ONGs reivindicam ação imediata do governo Lula

Hamilton Octavio de Souza

Carta de cerca de 40 ONGs pede medidas urgentes; falta de ações do governo será denunciada a entidades internacionais

Pará para fazer um levantamento das ações encaminhadas por cada um dos órgãos públicos responsáveis que receberam o documento da DhESC, mas compareceram apenas representantes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do Instituto de Terra (Iterra) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). “Não se avançou em nada. Não tivemos retorno algum”, diz Rittl. A carta foi encaminhada dia 20 para as autoridades governamen-

tais e os signatários dizem que a falta de ações dos governos federal e estaduais será denunciada à Organização das Nações Unidas, à Organização dos Estados Americanos e à Comissão Pan-Americana de Defesa dos Direitos Humanos. Entre as recomendações apresentadas está a investigação, apuração e efetiva punição imediata dos agentes públicos dos poderes executivo, legislativo e judiciário vinculados à violação de direitos humanos, sociais, ambientais, econômicos e culturais,

que facilitam a grilagem de terras e a destruição do patrimônio natural. As organizações também pedem a conclusão dos inquéritos e julgamento dos processos sobre grilagem de terras públicas e violência no campo, que se arrastam nas justiças federal e estaduais. Além disso, solicitam o fortalecimento do Ministério Público para investigação das irregularidades identificadas em órgãos públicos federais, estaduais e municipais. (Agência Carta Maior, www.ageciacartamaior.uol.com.br)

Siderúrgicas investem contra escravidão Mário Osava do Rio de janeiro (RJ) “Foi dramático ver homens de 30 anos chorando como crianças”, contou Carmen Bascarán, tentando transmitir o terror em que viviam carvoeiros do norte do Brasil, os quais acolheu há três meses. Eram 11 empregados de uma carvoaria do município de Dom Eliseu, no sudeste do Pará, que fugiram para escapar do trabalho em condições de escravidão e buscaram ajuda no Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos (CDVDH), na vizinha Açailândia. O Centro os alojou por alguns dias em uma casa na cidade, mas as ameaças dos patrões e o medo de perder a vida obrigaram esses trabalhadores a buscar um abrigo mais seguro. “À meia-noite os levamos para uma fazenda distante, pertencente a amigos, até que o Ministério do Trabalho interveio”, quinze dias depois, contou Carmen Bascarán. Como presidente do Centro de Defesa, ela já viveu muitos episódios semelhantes, tendo de proteger e esconder trabalhadores submetidos a condições desumanas, situação muito comum na região compreendida entre o sul do Pará e o sudoeste do Maranhão, onde fica Açailândia. Uma esperança de redução do trabalho escravo nas carvoarias da região surgiu há poucos dias, quando 15 siderúrgicas locais prometeram exigir de seus fornecedores de carvão vegetal que seus empregados tenham condições dignas de trabalho. O compromisso foi assinado em Brasília, entre a Associação das Siderúrgicas de Carajás, que agrupa as empresas, outros sindicatos da indústria do aço e organizações não-governamentais que promovem a responsabilidade social empresarial, como o Instituto Ethos e o Observatório Social. Há mais de uma década se tenta combater a escravidão moderna no Brasil, procurando mobilizar as indústrias no sentido de abolir o trabalho em condições humilhantes em toda a cadeia de produção. A siderurgia é um elo-chave por utilizar

A siderurgia é um elo-chave da escravidão por utilizar o carvão vegetal na primeiras etapas do processamento do minério

o carvão vegetal em suas primeiras etapas de processamento do minério de ferro. As carvoarias e as fazendas que estão preparando suas terras para a semeadura ou para o gado são as principais exploradoras de mão-de-obra escrava no norte do Brasil, segundo Buscarán.

RECORDE DE ASSASSINATOS A indústria siderúrgica se expandiu ao longo dos Estados do Pará e do Maranhão depois que foi implementada, nos anos 70, a mineração de ferro em Carajás, uma gigantesca reserva no sul paraense que permitiu ao Brasil aumentar suas exportações de minério de ferro. Essa expansão se fez aproveitando a abundante mão-de-obra desempregada, em uma parte do país onde o Estado é pouco presente e as leis têm escassa vigência nas relações de trabalho. Nessa região se registra o maior número de assassinatos rurais, cujas principais vítimas são líderes camponeses, sindicalistas e ativistas sociais ou pelos direitos humanos, bem como alguns sacerdotes católicos.

A escravidão se caracteriza pelo fato de os trabalhadores serem impedidos de se deslocar e deixar o local de trabalho porque “devem” dinheiro a seus patrões. As dívidas se acumulam por meio de diferentes artifícios, como cobrança do transporte desde o local de origem, dos instrumentos de trabalho fornecidos e alimentos, cuja venda é monopolizada pelo proprietário da terra ou pelo dono da carvoaria. Em muitos casos são mantidos como prisioneiros por guardas armados, sob constantes ameaças de torturas e morte, caso tentem fugir sem pagar a “dívida”. Seus direitos trabalhistas não são reconhecidos, não há contrato de trabalho, tratase de uma informalidade imposta unilateralmente. Os carvoeiros são submetidos a jornadas de até 14 horas diárias, sem a proteção de luvas ou calçados adequados, com alimentação precária, segundo Odilon Faccio, diretor do Observatório Social. Eles aceitam o trabalho diante de promessas de melhores condições e porque não há alternativa de

emprego na região. Existem agentes especializados em recrutá-los, chamados de “gatos”. No Maranhão e no Pará há entre 20 mil e 23 mil carvoarias, estimou Faccio. Entretanto, Carmen acredita que pode haver muitas mais, já que uma grande parte opera clandestinamente, em locais desconhecidos. O trabalho na produção de carvão vegetal é a tarefa mais prejudicial para a saúde, pela total insegurança, por causa de doenças respiratórias e de pele que provoca. Aos 40 anos, um carvoeiro já é um velho, sem forças, e os acidentes que causam mutilações são freqüentes, ressaltou a presidente do CDVDH. As empresas siderúrgicas aderiram à luta contra o trabalho escravo porque as denúncias contra seus fornecedores de carvão ameaçam causarlhes problemas judiciais e deixá-los sem crédito nos bancos oficiais. “Além disso, alguns mercados estrangeiros recusam o aço ou ferro-gusa produzidos com esse tipo de exploração de mão-de-obra”, explicou Carmen. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)


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NACIONAL CONJUNTURA

Crédito e dissídios animam a economia D

epois de longa e tenebrosa hibernação, a economia voltou a emitir sinais de alguma vitalidade no primeiro semestre deste ano. A produção industrial experimenta uma fase de reanimação, estimulada pela demanda por automóveis e celulares, e pelas exportações. O emprego avança, ainda timidamente, na indústria, puxando a folha de salários do setor. As vendas do comércio ensaiam o primeiro ciclo de crescimento em quase três anos, empurradas, também, pela oferta relativamente maior de crédito; e os dissídios coletivos indicam uma melhoria nos acordos salariais. Tudo somado, empresas e consumidores parecem se animar com a nova fase de reaquecimento verificada, agora também, no mercado interno. Ressalve-se que a presente recuperação, como anotam organismos empresariais e empresas de consultoria, a exemplo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) e a Global Invest, de Curitiba (PR), repõe, ainda parcialmente, as perdas sofridas ao longo dos últimos meses. Portanto, ainda não pode ser confundida com uma tendência firme de retomada do crescimento a prazos mais longos. No caso do comércio varejista, por exemplo, o volume de vendas aumentou 12,8% em junho, na comparação com igual mês do ano passado (quando o setor havia

Sinais positivos de reaquecimento da economia estão em setores como vestuário e calçados

registrado um tombo de 5,6%). No primeiro semestre, o crescimento acumulado do varejo atingiu 9,3%, depois de registrar um encolhimento de 5,6% na primeira metade do ano passado. Na verdade, este foi o primeiro semestre com dados positivos na série de sete semestres acompanhados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), desde que foi iniciada a pesquisa mensal

de vendas no varejo. Vale dizer, foi o primeiro desempenho positivo em quase três anos. A base utilizada para comparação é muito achatada e isso explica, em parte, os saltos observados neste ano. “A maior confiança do consumidor e uma parcial recomposição da perda de renda real da população, ocorrida no ano passado, são fatores que também estão sustentando o aumento do comércio varejista em 2004”, analisa o Iedi.

O RITMO DA PRODUÇÃO INDUSTRIAL

BENS DURÁVEIS

Fonte: IBGE

Média móvel trimestral, índices mensais de base fixa 2002 - 100%

A REAÇÃO DO COMÉRCIO

Fonte: IBGE

Variação mensal do volume de vendas, em relação ao mesmo período do ano anterior, em %

Na comparação mensal, tomando como base o mesmo período do ano anterior, as vendas crescem há sete meses consecutivos, depois de desabar ao longo de mais de 13 meses, sem pausas. O incremento tem sido liderado pelo segmento de móveis e eletrodomésticos (incluindo as vendas de celulares), com salto de 29,4% no primeiro semestre, seguido por veículos, motos e peças (mais 16,7%). Este último setor, no entanto, não entra no cálculo para definir a taxa de variação das vendas totais, porque não é classificado pelo IBGE como um segmento típico de varejo. As taxas de crescimento, de fato, indicam aceleração quando analisados os dois primeiros trimestres desde ano. Nos primeiros três meses de 2004, sempre em relação ao mesmo período do ano passado, as vendas haviam crescido

7,4% e passaram a indicar um avanço de 11,2% no segundo trimestre, com alta de praticamente 35% para móveis e eletrodomésticos. A novidade, no caso, foi o incremento observado para as lojas de tecidos, vestuário e calçados: depois de desabarem meses a fio, as vendas saíram de uma variação modestíssima (apenas 1%) no primeiro trimestre do ano, para um salto de 12,8% no segundo trimestre. Cabe relembrar que, no segundo trimestre de 2003, o setor de roupas e calçados havia desabado quase 6% frente ao mesmo trimestre de 2002.

CORREÇÃO SALARIAL Parte dessa reação pode ser explicada em função do comportamento dos salários na primeira me-

tade do ano. Segundo levantamento divulgado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese), apenas 21% dos 264 acordos salariais analisados no período não conseguiram repor a inflação verificada nos 12 meses anteriores (ou seja, continuaram sendo arrochados). Mas a ampla maioria, representando 79% daqueles acordos, alcançou reajustes iguais ou superiores ao Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que mede o custo de vida para famílias com renda mensal entre um e oito salários-mínimos. No primeiro semestre do ano passado, a relação foi inversa, já que apenas 46% dos dissídios alcançaram taxas iguais ou superiores à inflação, diante de 54% que sequer conseguiram repor a variação do custo de vida. De janeiro a junho de 2004, 47% das negociações resultaram em reajustes superiores ao INPC e 32% conseguiram reposição equivalente à variação daquele índice. Isso significa algum fôlego para os salários, com reaquecimento relativo do poder de consumo das famílias.

REVERSÃO? Ainda que parcialmente, essa recomposição dos salários tem sido direcionada para o acerto de dívidas, como mostram as estatísticas mais recentes do Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC). Em julho, perto de 923,3 mil consumidores, em todo o país, acertaram suas contas e deixaram a lista negra do órgão. O saldo no ano, no entanto, ainda permanece negativo: entre janeiro e julho, 4,086 milhões de consumidores atrasaram prestações e foram incluídos na lista do SCPC, já descontado o total de clientes que colocaram suas contas em dia.

O AVANÇO DOS DISSÍDIOS

Acordos salariais no primeiro semestre de cada ano, em %

Fonte: Dieese

Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

Victor Soares/Agência Brasil

Vendas de carros e celulares explicam, em boa parte, a melhoria no desempenho da indústria e do comércio

* Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) afere a inflação para famílias com renda entre um e oito salários-mínimos

Empréstimos injetam quase R$ 18 bilhões no consumo A inadimplência elevada ainda é um obstáculo importante para que uma economia cresça continuamente, e a taxas cada vez maiores, como alardeiam porta-vozes de Brasília. No limite, se o acerto de dívidas pelo consumidor estiver sendo turbinado pela maior oferta de crédito, pode se estar gestando um novo ciclo de inadimplência (ou seja, de atrasos de pagamento de carnês e prestações, e de endividamento do consumidor). Os números do Banco Central (BC) sugerem que, para além da reposição do valor real dos salários, a maior oferta de crédito parece ter igual relevância na recente tendência de retomada das vendas no comércio. Nos primeiros seis meses de 2004, os empréstimos para pessoas físicas aumentaram 13,5%, acumulando uma variação de 21,5% na comparação com junho do ano passado. O saldo daqueles empréstimos saiu de R$ 82,3 bilhões para quase R$ 100 bilhões no final do primeiro semestre deste ano – uma injeção equivalente a R$ 17,7 bilhões em 12 meses (quase R$ 1,5 bilhão adicionais por mês, no período).

A maior variação ocorreu exatamente no crédito pessoal, estimulado pelos empréstimos em consignação (com desconto em folha). O saldo desse tipo de operação pulou de R$ 27,2 bilhões para R$ 36,7 bilhões entre junho de 2003 e igual mês deste ano, significando um salto de 35,2% (ou R$ 9,6 bilhões a mais). O crédito pessoal pode ser contratado sem destinação específica, ou seja, o consumidor não precisa declarar ao banco, ou à financeira, como e onde vai gastar o empréstimo. Por isso mesmo, o tomador pode muito bem usar o dinheiro para pagar dívidas em atraso.

ESTÍMULOS As operações de crédito pessoal responderam por 54% do crescimento do crédito total para pessoas físicas nos 12 meses encerrados em junho. Ocupando um segundo lugar, os empréstimos para financiar aquisições de bens (carros, geladeiras, aparelhos de som etc) cresceram 24,2%, para R$ 39,3 bilhões (R$ 7,7 bilhões a mais). A maior parcela daqueles em-

préstimos – 85,7% do total, precisamente – foi destinada ao segmento de veículos, o que ajuda a entender o avanço verificado nas vendas das montadoras. O saldo dos empréstimos destinados à compra de automóveis aumentou para R$ 33,7 bilhões em junho (R$ 6,6 bilhões a mais, correspondendo a incremento também de 24,2%). Direta ou indiretamente, o fator crédito ajudou a impulsionar a produção e o emprego na indústria no primeiro semestre de 2004. Em junho, pelo quarto mês consecutivo, a produção industrial avançou 0,5% diante de maio, e 13% em relação a junho do ano passado, encerrando o semestre com ganho de 7,7% – o melhor resultado, diz o IBGE, desde o primeiro semestre de 1995, quando a produção industrial havia crescido 9,8%. Taxas recordes, a esta altura, têm significado apenas relativo e devem ser colocadas em perspectiva para evitar conclusões apressadas – afinal de contas, a indústria apenas começa a sair do fundo do poço, depois de meses de crise. Até porque, a taxa de variação do

indicador trimestral da produção industrial, que antecipa tendências de curtíssimo prazo, aponta ligeira desaceleração no ritmo mensal do setor, passando de uma variação de 1,6% em maio para um incremento, mais modesto, de menos de 1% em junho, em relação aos meses imediatamente anteriores.

JÁ O EMPREGO... A reação na indústria tem sido influenciada pelo incremento da produção de bens de capital (máquinas e equipamentos, mas também ônibus, caminhões, maquinário agrícola) e bens duráveis (carros, eletrodomésticos e outros). O IBGE classifica até mesmo refrigeradores e congeladores na categoria de máquinas e equipamentos. E foram elas, juntamente com motoniveladoras, as principais responsáveis pelo aumento da produção de máquinas e equipamentos. No setor de duráveis, a produção foi alavancada pelo segmentos de veículos (e setores relacionados, como borracha e plástico, metalurgia básica, peças e acessórios etc.) e de celulares – ou seja, bens de

alto valor unitário e não essenciais. Somadas, as indústrias de veículos automotores, material eletrônico (leia-se, celulares), borracha e plástico e metalurgia básica (barras de aço e artefatos de ferro fundido) responderam por pouco mais de 42% de todo o crescimento industrial no primeiro semestre. O emprego na indústria, no entanto, não tem respondido na mesma intensidade. Ao contrário, o que se observa é uma variação bastante modesta no nível de emprego (contratações menos demissões): avanço de apenas 0,5% sobre maio, e uma variação acumulada no primeiro semestre de somente 0,1%. Em 12 meses, a taxa permanece negativa (menos 0,6%), embora, naturalmente, inferior à queda alcançada em 2003. Depois de três meses de baixa, a folha total de salários da indústria experimentou alta de 8,4% em relação a junho do ano passado, fechando o primeiro semestre com um incremento de 8,9% – o que parece indicar um aumento do salário médio pago no setor, confirmando o levantamento do Dieese.(LVF)


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De 26 de agosto a 1º de setembro de 2004

NACIONAL RUMOS DA ECONOMIA – ENTREVISTA

A retomada não é de longo prazo Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

A

economia brasileira pode estar atravessando, hoje, um ciclo de crescimento de fôlego curto, puxado pelo aumento da produção da indústria de automóveis, afirma, em entrevista ao Brasil de Fato, o economista Dercio Garcia Munhoz, professor da Universidade de Brasília (UnB). O atual governo, diz, manteve o mesmo modelo econômico adotado na gestão Fernando Henrique Cardoso e, portanto, não há fatos novos que justifiquem as previsões de uma retomada sustentada (ou seja, de longo prazo) da atividade econômica. “A matriz que continua funcionando é a matriz do enfraquecimento do mercado, de empobrecimento da população que vive do trabalho – autônomos, pequenos empresários, assalariados em geral”, critica. Brasil de Fato – Os salários não registram qualquer reação mais expressiva, enquanto o desemprego, embora em recuo, permaneça elevado. O que explica a tendência recente de recuperação da economia? Dercio Garcia Munhoz – Temos que separar o que é “efeito Duda Mendonça”, ou seja, o que é a tentativa de criar argumentos para levar ao palanque eleitoral, do que é efeito real. Feito isso, temos que discutir: a economia tem possibilidade de reação e como se daria essa reação? Ora, fundamentalmente, a matriz da economia brasileira é a mesma do Plano Real. Houve aumento da carga tributária, da receita fiscal do governo para pagar juros. Na medida em que se aumenta a carga fiscal e aumenta, em termos reais, os preços públicos, você está transferindo continuamente renda, no mesmo modelo do Plano Real, para o governo e para os setores que têm preços administrados. A contrapartida disso é uma redução da renda do trabalho, o que significa que a matriz que continua funcionando é a matriz do enfraquecimento do mercado, de empobrecimento da população que vive do trabalho – autônomos, pequenos empresários, assalariados em geral. O que pode surgir de novo para se contrapor a isso? Uma política de crescimento, de investimentos públicos e de criação de empregos que não existe, não está na mente do governo, e que contraria qualquer prática do PT atual. Se a saída não é por aí, a possibilidade seria o setor exportador puxar a economia, o que explicaria o atual boom da economia. BF – Haveria outros fatores? Munhoz – O que nós temos, até agora, é uma melhoria da venda de produtos agrícolas, sobretudo em função da alta de preços para culturas extensivas. Essas atividades são benéficas para o país, mas seu impacto direto sobre o emprego e a renda do trabalho é pequeno – nesse último caso, porque a renda gerada na produção e na exportação agrícola é privatizada e concentrada. Assim, uma das possíveis explicações para a retomada seria o grande aumento da exportação automobilística. Até março, o crescimento da economia em 12 meses era zero. Até dezembro era zero. Ou seja, a economia continuava parada lá embaixo. Em três meses, não pode ter acontecido um milagre. Pode ter havido um aumento de exportação da indústria automobilística, que tem um efeito para trás muito grande, puxa outros setores e contribui para alguma melhora no índice de emprego. Há uma certa perplexidade, não com o

Quem é Dercio Garcia Munhoz é economista, professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB) e conselheiro do Conselho Regional de Economia do Distrito Federal (Corecon-DF). Foi presidente do Conselho Federal de Economia (Confecon). Especialista em finanças públicas e Previdência, Munhoz é autor, entre outros, dos livros Economia Aplicada e Dívida Externa.

Marlene Bergamo

Hoje, o modelo econômico é o mesmo dos tempos de FHC, que resulta em empobrecimento da população trabalhadora

crescimento, mas em como a economia poderia ter crescido tanto, como diz o governo, sem terem surgido fatos novos considerados no período. Só quando saírem os dados das contas nacionais do segundo trimestre, e informações mais recentes das exportações da indústria automobilística é que a gente poderá dizer se há uma manipulação estatística, pura e simplesmente, ou se temos uma recuperação episódica, puxada pela indústria automobilística, repetindo, mais ou menos, o que aconteceu em 2000. BF – E o que houve naquele período? Munhoz – Em 1999, houve uma baixa produção automobilística e, em 2000, ela se recuperou e puxou a economia, episodicamente apenas. É possível que estejamos, agora, repetindo o ciclo de 1999/2000. Se a matriz é a mesma, o que significa concentrar mais renda como receita tributária do governo, ou como receita do setor privatizado e no setor de petróleo, significa que o modelo que continua funcionando é o de redução da renda do trabalho – seja via aumento dos preços administrados ou elevação brutal da carga tributária. A arrecadação da Cofins (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social) cresceu em torno de 40%, reais. No caso do petróleo, pode continuar a política de atrelar os preços internos dos combustíveis aos preços internacionais, para estimular o ingresso e a permanência de empresas estrangeiras no setor. Então, o que se coloca é: como não se mudou, na essência, a política econômica, é possível que esteja ocorrendo – não se tem certeza, ainda – um movimento de recuperação de um setor (automobilístico), que puxa outros setores. Agora, dizer que é desenvolvimento sustentável, isso é impossível. Por quê? Porque sem renda e sem emprego não há a possibilidade de recuperar a economia em bases duradouras. BF – Há sustentação possível desse crescimento? Munhoz – Não. A lógica do sistema capitalista é a manutenção da renda real das famílias, o que corresponde à manutenção da renda do trabalho. Para isso, tem-se políticas de salário, como tivemos durante 50 anos, ou políticas sociais, como outros países adotam. Nenhum país, por maior que seja o desemprego, permite que caia a renda das famílias. Isso é que dá sustentabilidade ao nível da demanda, da produção e do emprego. A partir de transferências de ganhos de produtividade do trabalho, o mercado se amplia. O crescimento da população, por menor que seja, e a transferência de ganhos de produtividade garantem um ganho real ao fator trabalho e às famílias. Com isso, a economia cresce, os investimentos são feitos. Se não vigorar a lógica de funcionamento do

Política prioriza setor financeiro; não o aumento do poder aquisitivo do trabalhador

sistema capitalista, de manter as famílias com poder de compra crescente, não há como o setor produtivo obter ganhos de produtividade que possam ser transferidos para as famílias. Essa é a força motora de uma economia capitalista. Como ela foi brutalmente interrompida com o Plano Real, a lógica foi invertida. BF – Como ocorre essa inversão? Munhoz – O neo-liberalismo foi introduzido no país, com o discurso da necessidade de redução do Estado. Porém, o tamanho do Estado está sendo quase dobrado, com a cumplicidade, o silêncio total de toda a sociedade que tem alguma influência. Por quê? Porque a grande estatização, hoje, é a estatização por meio dos impostos para pagar juros, com transferência de renda para o setor financeiro às custas da mutilação da economia. E ninguém diz que isso se dá pela maximização do tamanho do Estado. Então, está se fazendo a política econômica mais absurda, mais estúpida, mais anticapitalista, que inviabiliza o país, inclusive como uma economia exportadora de produtos industrializados. BF – Como vê as previsões de “apagão logístico”, provocado pelas deficiências de infra-estrutura de transportes, armazenagem, distribuição e dos portos? Munhoz – Desde que o país firmou, em 1983, acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que considerou investimentos estatais como déficit público, o Estado foi imobilizado como investidor. Como quem investe em infra-estrutura é o Estado, porque não são investimentos induzidos pelo mercado, não têm taxa de retorno competitiva, vamos ter estrangulamentos.

BF – Neste caso, eventuais problemas não serão uma decorrência do crescimento da economia? Munhoz – Não por problemas de demanda, mas porque a oferta foi imobilizada por muito tempo. Num primeiro momento, o governo fez a privatização com ativos subavaliados para garantir a taxa de retorno. Num segundo momento, teriam que ocorrer investimentos, o que não aconteceu porque eles só são induzidos pelo crescimento e pela lógica privada. E infra-estrutura é um setor que exige investimentos antecedentes, ou seja, investimentos têm que ser feitos antecipadamente para gerar uma oferta no longo prazo, sem retorno nenhum, para atender a uma demanda futura. Então, é incompatível imaginar que o setor privado invista em infraestrutura, com uma perspectiva de rentabilidade mínima. Então, vai haver estrangulamento. Aí, o governo vem com a Parceria Público-Privada (PPP), que é o pior exemplo em termos de privatização. Você não só transfere ativos ao setor privado, mas também futuros investimentos, dando a garantia de retorno capitalista a investimentos em setores que não têm rentabilidade garantida, tentando evitar esse apagão logístico. Essa política é própria do modelo neoliberal, e isso inviabiliza investimentos. Mesmo porque a PPP é a lógica do investimento sem risco, garantindo a rentabilidade, independentemente do nível de produção do insumo, do transporte, da demanda e da taxa de retorno do investimento. BF – O país reedita o capitalismo sem riscos... Munhoz – É. O impasse nasceu a partir do acordo com o FMI que, numa aberração total e ilógica, considera que qualquer investimento de empresa pública financiada por terceiros é déficit público, quando não tem nenhuma relação. Mas eles fizeram isso exatamente para estrangular o setor público, e forçar a privatização. Deu no que deu. BF – A despeito dos avanços na balança comercial, a economia ainda é dependente de recursos externos. A vulnerabilidade ex-

terna pode influir na recente tendência de recuperação da economia e, num prazo mais longo, como ela se refletiria nas estratégias de crescimento do país? Munhoz – Hoje, o país tem um equilíbrio externo, o que significa que não precisa de recursos externos novos. Mas os recursos velhos estão representados em parte por capitais de curto prazo, em parte por bônus ou títulos públicos e privados de prazos médios e, em parte, por investimentos privados, que são capitais financeiros registrados como se fossem investimentos. Portanto, são também voláteis. Então, o Brasil está montado numa soma de recursos voláteis, que têm que ser repactuados continuamente. Isso significa que, apesar do equilíbrio, o país continua vulnerável externamente. Garantindo o fluxo de capitais voláteis, que vêm como empréstimo e como investimento, o país contratou um empréstimo “guarda-chuva” ou de “prateleira” com o FMI, que não pode ser usado, tem que deixar na prateleira para o capital especulativo se sentir garantido de que terá como sair e de que receberá seus dólares de volta. O país paga juros pelo empréstimo, que só pode ser usado para pagar o próprio Fundo. Assim, vulnerabilidade com relação a capitais privados e perante o FMI. Na medida em que o país usa os recursos do Fundo exclusivamente para pagá-lo, o saldo das reservas cai e, quando isso acontece, o capital especulativo sente-se inseguro e o país tem que recorrer ao Fundo para restabelecer o empréstimo “prateleira”. BF – Por que considera que investimentos externos deveriam ser considerados também como capitais voláteis, que podem sair a qualquer momento, gerando crises? Munhoz – Grande parte dos investimentos estrangeiros foi capital financeiro que passou a ser registrado como investimento para fugir ao risco de moratória (ou seja, para fugir do risco de um calote). O investimento, tradicionalmente, não sofre restrições nem na remessa de lucros, nem na remessa de capitais. Então esses capitais passaram a vir, desde meados dos anos 70, quando foi alterada a Lei das Sociedades Anônimas, que criou a possibilidade de remunerar os acionistas das empresas por meio do recebimento de juros sobre o capital próprio. Assim, foi permitida dupla remuneração ao capital estrangeiro: remeter para fora do país os juros sobre o capital próprio e os dividendos sobre os lucros. A partir daí, diminuiu o fluxo de recursos de capitais de curto prazo e maximizou-se o volume de recursos registrados como investimentos. BF – O equilíbrio nas contas externas, assegurado pela diferença entre exportações e importações, pode ser mantido numa fase de crescimento mais intenso? Munhoz – Há, neste momento, uma terceira vulnerabilidade interna que é terrível. O equilíbrio nas contas correntes, que permite ao país não contratar dívidas novas, existe porque a economia está parada. Ou seja, o nível de importação está muito baixo. Se a economia estivesse crescendo, a produção e as importações também estariam crescendo e não haveria equilíbrio externo. Isso significa que o setor externo, aparentemente solucionado, está em situação realmente muito preocupante – a menos que se julgue que um modelo assim possa ser sustentável a longo prazo. Esse não pode ser um modelo de nenhum governo sério.


Ano 2 • número 78 • De 26 de agosto a 1º de setembro de 2004 – 9

SEGUNDO CADERNO ESTADOS UNIDOS

Democratas, esquerda, todos contra Bush Stephen Bartlett de Louis Ville (EUA) especial para o Brasil de Fato

João Peschanski

Com o país polarizado sobre as eleições, ativistas preparam protestos para o dia da convenção republicana

Q

PERDA DE EMPREGOS Muitos desses Estados estão sofrendo com a perda de empregos na indústria e nos serviços. As empresas estão preferindo ter atividades no exterior, onde os salários são mais baixos, o que está

Cerca de 250 mil ativistas anti-Bush estão sendo esperados em Nova York para a convenção do Partido Republicano; polícia se prepara para reprimir manifestação CMI

uem você acha que vai ganhar as eleições presidenciais estadunidenses, em novembro? “Bush vai perder. Suas mentiras, sua inflexibilidade vão derrotá-lo”, diz o arquiteto Bill Gillis, 52 anos, de Louisville, Estado do Kentucky. Perguntado se uma presidência de John Kerry diferiria da atual, Bill declarou: “Haveria mais respeito pelos outros povos, em vez de medo e miopia”. O programador de computação Doug Yaeger, 50 anos, pensa igual e justificou o fato de Kerry não estar pedindo a retirada imediata das tropas estadunidenses do Iraque: “Isso é para o centro indeciso; 1% a 2% dos votos podem fazer a diferença”. Pam Wiley, afro-americana de 30 anos, que organiza sessões de poesia em favor da mudança social, acrescenta: “Somos supostamente uma sociedade democrática, mas se Bush continuar no poder vamos ficar ainda mais longe de ser um país humanista.” O eleitorado nos EUA está extremamente polarizado, quase meio a meio, por causa das agressões de Bush contra o Afeganistão e o Iraque. As pesquisas indicam que restam poucos eleitores indecisos. Assim, tanto a esquerda como a direita acham que a chave das eleições são os Estados decisivos. A eleição presidencial estadunidense é indireta: o eleitorado de cada Estado escolhe o candidato em que vão votar os seus delegados no Colégio Eleitoral – que efetivamente elege o presidente. O número de delegados varia de acordo com a população do Estado. Por isso, pode ser eleito presidente um candidato com menos votos populares do que outro. A maior parte dos 200 milhões de dólares da campanha de Bush e dos 150 milhões de dólares da campanha de Kerry está sendo gasta em quinze Estados cruciais.

pondo em jogo a adesão dos estadunidenses aos tratados de livre comércio como o Nafta. O presidenciável democrata Dennis Kucinich, parlamentar do Estado do Ohio, fez uma campanha contra o neoliberalismo, pedindo a saída dos EUA da Organização Mundial do Comércio e a revogação do Nafta. Kucinich foi derrotado por Kerry, mas este adotou parte das idéias do adversário, e, como senador, apresentou uma emenda que proíbe a introdução, em acordos futuros, de cláusulas como as do capítulo 11 do Nafta, que garante a supremacia dos interesses dos conglomerados, quando as leis nacionais interferem nos lucros das transnacionais. Além disso, Kerry escolheu, como candidato a vice, o sulista John Edwards, populista e classista.

Há muito não se via os democratas tão unidos como agora, em torno do slogan “Qualquer Um, Menos Bush”, ou, “Vamos Derrotar Bush Outra Vez”, que alude às fraudes nas eleições de 2000, em que só na Flórida centenas de milhares de afro-americanos foram impedidos de votar sob a presunção de que eram sentenciados pela Justiça. Uma das estratégias da esquerda agora é estar hipervigilante quanto a fraudes eleitorais e distorções no noticiário, especialmente da rede Fox de televisão, e quanto às dúvidas sobre as novas máquinas de votar, semelhantes às brasileiras por não produzirem comprovante material em papel, e fabricadas por uma empresa que fez grande doação à campanha de Bush.

PROTESTOS EM NOVA YORK Desta vez, as ações do governador da Flórida, Jeb Bush, irmão do presidente, para intimidar os elei-

tores afro-americanos, não estão passando em branco na mídia, ao contrário do que ocorreu em 2000. Há ainda a influência de filmes documentários como A Empresa e Fahrenheit 9/11, que denunciam o poder econômico e a guerra no Iraque, e das notícias, embora já um tanto monótonas para o estadunidense médio, sobre os morticínios em território iraquiano. Estão também programados protestos durante a convenção do Partido Republicano em Nova York, entre 30 de agosto e 2 de setembro. A polícia de Nova York recebeu assessoria da polícia de Miami, que atuou nas manifestações contra a reunião da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) em Miami, em novembro do ano passado. Esperam-se mais de 250 mil manifestantes, a serem contidos por 30 mil policiais. Dia 29 de agosto, atrás do Madison Square Park, onde se realizará a convenção, deverá ocorrer uma grande passeata a ser encerra-

da por um comício no Central Park (a prefeitura vetou a manifestação mas os ativistas garantem que farão mesmo assim). Está prevista ainda a realização de uma Marcha dos Pobres rumo à Organização das Nações Unidas (ONU), uma Marcha Fúnebre do local onde ficavam as Torres Gêmeas até a Convenção, e a montagem da chamada Bushville – abrigos para os sem-teto. Teme-se que mesmo as manifestações pacíficas sejam reprimidas com violência. Em reação contra tudo isso, os republicanos estão mobilizando suas bases conservadoras com uma campanha contra o casamento entre homossexuais e com uma ofensiva de descrédito sobre a atuação de Kerry na Guerra do Vietnã, isto é, estão tentando desviar as atenções da guerra do Iraque e da má situação econômica da população estadunidense. (Da Latin American Liaison for Agricultural MissionsMisiones Agrícolas)

ALEMANHA

Governo quer acabar com conquistas sociais Protestos em seqüência. Multidões cada vez maiores nas ruas, até que o governo recue de suas reformas de cunho liberal. Essa é a previsão política para as próximas semanas na toda-poderosa Alemanha, onde o governo pretende acabar com antigos direitos sociais conquistados pelos cidadãos e consagrados, após a 2ª Guerra. No centro da polêmica estão os projetos do governo do premiê Gerhard Schröeder, chamados Agenda 2010 e Hartz IV, adotados há cerca de um ano, a pretexto de “reduzir despesas”. O descontentamento extravasou há quatro semanas, quando, na calculadora do governo, o sinal de menos passou a apontar para o seguro-desemprego. De maneira tímida, as mobilizações começaram circunscritas à região oriental (ex-comunista), onde se registram índices de desemprego até duas vezes superior aos do oeste do país. Em Magdeburg, por exemplo, 600 manifestantes saíram às ruas na primeira semana. Já eram 12 mil, em 9 de agosto, dia em que 40

pelas manifestações, ao dizer que “pressão das ruas não tem papel nenhum (nas decisões do governo)”. Os protestos, prometem os ativistas, só devem cessar quando e se o governo desistir de implementar as reformas, agendadas para entrar em vigor em janeiro.

Fotos: CMI

Wilson Sobrinho de Berlim (Alemanha)

POPULARIDADE DESPENCA

Protestos chegam a Berlim; à direita, na placa: “Schröder – Quem paga sua conta?”

mil alemães protestaram, em 55 cidades da antiga Alemanha Oriental. Dia 16, foram pelo menos 90 mil pessoas nas ruas. Além disso, os protestos chegaram pela primeira vez a Berlim, onde cerca de 15 mil pessoas se manifestaram.

CONQUISTA AMEAÇADA A idéia do governo é limitar o pagamento do seguro-desemprego, garantia essencial em tempos de demissões em massa. Atualmente, os alemães desempregados recebem, durante 32 meses, 60% do valor de seu último contracheque (67%, se têm filhos). O valor cai para cerca de 53% após esse período, mas permanece nesse patamar durante todo

o tempo que durar a desocupação. Schröeder quer limitar o benefício a apenas um ano – ou 18 meses, no caso dos trabalhadores com mais de 55 anos. Os protestos estão sendo chamados de “manifestações de segundafeira” – mesmo nome das mobilizações populares que culminaram na queda do muro de Berlim, há 15 anos. A palavra de ordem é também idêntica à usada na época: “Nós somos o povo”. Alguns setores políticos mostraram-se incomodados com a comparação. O ministro da Economia Wolfgang Clement, entusiasta das contra-reformas, qualificou os protestos de “insulto histórico”. E demonstrou desprezo

Apesar das declarações de seu ministro, Schröeder viu-se obrigado a pedir para que alguns de seus assessores antecipassem o fim de suas férias para discutir soluções ao impasse. Dia 11, o governo apresentou alterações cosméticas ao projeto, que mudam apenas a data de sua entrada em vigor. Além disso, segundo a agência Deutsche Welle, o governo pretende fazer uma campanha – principalmente na região Leste do país – para explicar sua posição sobre as medidas. Mas os problemas do governo podem estar apenas começando. Um das inquietações é que as manifestações tornem-se fortes no oeste. Além disso, com a proximidade das eleições regionais em algumas partes do país, “um clima de pânico já começa a preocupar os sociais-democratas”, segundo

descreveu a agência United Press International. A popularidade do governo vem caindo. Em alguns Estados, como a Saxônia, cujas eleições estão marcadas para a metade de setembro, espera-se que o partido de Schröeder fique com menos de 10% dos votos. No âmbito eleitoral, o enfraquecimento do governo pode beneficiar o Partido do Socialismo Democrático (PDS, antigo partido comunista oriental). A agremiação está vivendo uma “espetacular melhora nas pesquisas desde que começaram a ser aplicadas as reformas de Schröeder”, segundo a agência espanhola EFE. Outro motivo de preocupação para o primeiro-ministro é o posicionamento do seu ex-companheiro de partido e ex-ministro das Finanças, Oscar Lafontaine. Ele pediu a renúncia de Schröeder e sinalizou com a formação de um novo grupo político para disputar as eleições de 2006. “Se o partido não mudar o premiê, haverá uma nova iniciativa eleitoral, que muitos apoiarão. Esse grupo contaria com o meu apoio”, declarou Lafontaine. (Portal Planeta Porto Alegre, www.planetaportoalegre.net)


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De 26 de agosto a 1º de setembro de 2004

INTERNACIONAL ORIENTE MÉDIO

Nossa tarefa é lutar pela remoção do muro Mário Augusto Jakobskind e Rodrigo Brandão do Rio de Janeiro (RJ)

Mauricio Scerni

Pacifista estadunidense que mora em Israel, Bryan Atinsky acredita na criação de um Estado binacional

C

idadão estadunidense que foi morar em Israel, Bryan Atinsky tornou-se um ativista pela paz atuando no Centro Alternativo de Mídia (AIC, sigla em inglês). Sua militância tem lhe custado dissabores com a repressão israelense, como ele conta nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato. Socialista por convicção, Atinsky acredita que a longo prazo poderá haver um Estado binacional na região, pois palestinos e israelenses são dois povos semitas com raízes culturais comuns. Para ele, o sionismo e o fundamentalismo islâmico são obstáculos para a paz no Oriente Médio.

BF – Como está a situação do físico Mordechai Vanuno, que revelou os segredos nucleares de Israel? Atinsky – Vanuno não está preso agora, pelo menos “tecnicamente”. Mas continua sob vigilância cerrada do governo. Na verdade, ele está em prisão domiciliar, com vários policiais em frente à sua casa. O professor Vanuno também não tem permissão para falar com jornalistas estrangeiros. Não pode viajar ao exterior, seu passaporte foi confiscado. Jornalistas que tentaram entrevistá-lo foram retirados do país. Qualquer um que vá à casa de Vanuno, que fale com ele, passa também a ser seguido por policiais. O governo usa a desculpa da segurança para mantê-lo quase preso. E olha que os segredos que Vanuno revelou já datam de duas décadas. Podemos dizer que Vanuno está fora da prisão, mas não livre. BF – O que é possível fazer por Vanuno? Atinsky – Bem, protestos têm sido organizados em frente a embaixadas e consulados israelenses em todo o mundo, sob gritos de “Vanuno free (Vanuno livre)”. O que mais se pode fazer? Pressionar os governos dos países, para que protestem junto ao governo de Jerusalém. Fazer o mundo saber desse abuso. Denunciar que o governo israelense se recusa a admitir que tem um programa de armas atômicas. Vejam bem, se descobrissem sobre o Irã ou a Coréia do Norte o que foi revelado sobre Israel, o mundo estaria de cabeça para baixo. Já que não podem rebater as provas apresentadas por Vanuno, querem humilhá-lo, desacreditar suas palavras. BF – Com a construção desse muro (idealizado pelo governo Sharon para isolar os territórios ocupados), que já está sendo chamado de novo “muro da vergonha”, é possível vislumbrar alguma chance de paz entre israelenses e palestinos em um futuro próximo? Atinsky – Eu trabalho junto com um grupo de israelenses e pales-

Bryan Atinsky, 34 anos, nasceu nos Estados Unidos e mudou para Israel aos 26 anos. Integra o Centro Alternativo de Mídia (AIC, sigla em inglês), organização palestina-israelense que difunde informações, pesquisas e análises políticas.

tinos, na organização Centro Alternativo de Mídia, que acredita piamente nisso. Penso que temos o mesmo inimigo: o sistema de classes. Toda a agenda de lutas e reformas sociais na Palestina ocupada está condicionada à autodeterminação dos palestinos. Muito bem, identificamos o problema, já é um começo. Mas qual o passo seguinte? A meu ver, os dois povos precisam entender que isso não é uma questão de palestinos contra israelenses, mas uma luta contra o imperialismo estadunidense – que está conectada à elite israelense e seus bancos espalhados pela Europa e pelos Estados Unidos. Essa mesma elite sustenta o governo Sharon. BF – Fale um pouco sobre o seu trabalho de ativismo político. Atinsky – Sempre me senti um pouco israelense, como todo judeu americano. Fui educado em hebraico, não sabia ao certo se era estadunidense ou israelense. Minha família tem tradição de esquerda e luta pelos direitos civis. Nos Estados Unidos, já militava em movimentos anti-racistas. Mas confesso que era muito sionista. Depois, fui para a universidade e estudei um pouco mais sobre o conflito árabe-israelense, o que fez com que aos poucos mudasse meu ponto de vista sobre o Oriente Médio. Me transformei em um ardoroso defensor de um Estado binacional. Acredito decididamente que israelenses e palestinos podem perfeitamente

dividir um mesmo país. Afinal, somos ambos semitas. Claro que penso nisso a longo prazo. BF – Por que o senhor não acredita em dois Estados na região? Atinsky – Os recursos naturais, como os lençóis d’água, atravessam os dois lados, não há como separar uma coisa da outra. Os dois povos têm laços culturais muito fortes. Sou totalmente contra nacionalismos. No meu entender, o conflito desses sentimentos exacerbados só atrapalha.

A sociedade israelense é majoritariamente contra a ocupação BF – O senhor acha que os israelenses querem a paz? Estarão dispostos a substituir Sharon por um governo efetivamente empenhado em construir a paz com os árabes? Atinsky – Quando um Estado é construído, como é o caso de Israel, sob o signo do medo, com os jornais, as televisões, os professores nas escolas, os pais disseminando diariamente a idéia de que o mundo todo está contra nós, que os palestinos nos ameaçam, é muito difícil pensar em uma sociedade consciente, capaz de resistir a tudo isso. Mas posso assegurar-lhe que a sociedade israelense é majoritariamente contra a ocupação. É incrível, os jovens, principalmente, têm vontade de

CMI

Brasil de Fato – Na Conferência Internacional Dilemas da Humanidade, realizada em agosto no Rio de Janeiro, o senhor comparou a situação dos palestinos nos territórios ocupados à situação de favelados e moradores de periferias em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. Bryan Atinsky – O que ocorre no Brasil, essa política de perseguir, criminalizar, até mesmo assassinar determinados grupos considerados à margem do capitalismo, como os sem-terra, os desempregados, os favelados etc. é muito similar à política de assassinatos de populações promovida pelo governo do israelense Ariel Sharon.

Quem é

Palestinos e israelenses podem dividir o mesmo país, defende pacifista

mudar esse estado de coisas, mas aí chega a idade de servir o Exército – em Israel até as moças servem – e eles acabam sendo obrigados, como condição para serem considerados cidadãos, a ir contra o que acreditam. BF – Alguns jovens pilotos têm se recusado a bombardear os territórios ocupados. O que tem acontecido com eles? Atinsky – Não tem escapatória, infelizmente. Se você está em idade de servir, se você está na Força Aérea e desobedece seus superiores, vai parar atrás das grades. Há exceções, mas a regra é ingrata com esses jovens. BF – O socialismo é o único caminho para a paz? Atinsky – Como socialista que sou, acredito piamente nisso. Mas também sou pragmático. Enquanto não temos o socialismo, precisamos seguir lutando pela paz. Agora, é evidente que está tudo relacionado. Afinal de contas, o sistema de classes está muito enraizado nos territórios ocupados, por exemplo. BF – O senhor consegue ver um cenário com socialismo e sem paz no Oriente Médio? Atinsky – Na verdade, é difícil até pensar como seria o socialismo por lá. O que conhecemos como democracia dificilmente se aplicaria aos palestinos. Israel, ao nascer, era pretensamente um Estado socialista. Vocês me perguntaram antes sobre alternativas a Sharon e ao Likud (partido de direita, do governo). Quando os trabalhistas estão no poder, acontece uma impressionante corrupção dos dirigentes da Histradut, a União Trabalhista (maior central sindical israelense), que transforma-se em um braço do governo. São capazes até de impedir movimentos grevistas para não atrapalhar o Partido Trabalhista. Para piorar, após a emigração de muitos judeus do leste europeu para Israel, após o colapso da antiga cortina de ferro, muita gente não quer nem ouvir falar em marxismo em meu país. Nem sabem do que se trata porque nunca leram Marx e baseiam-se em uma frustrada experiência que foi tudo, menos socialista. Na verdade, os pseudomarxistas israelenses são de organizações anarquistas. Desculpe se sou por demais pessimista, mas essa é a realidade do movimento socialista em Israel. BF – Como enfrentar o nacionalismo exacerbado da região, que se manifesta no sionismo e no fundamentalismo islâmico? Atinsky – Eu, particularmente,

sou antinacionalista. O que acho engraçado – e ao mesmo tempo fascinante – em um país como o Brasil é essa diversidade cultural. São vários povos e ao mesmo tempo um só. Não há uma única identidade. Especialmente em um cenário de conflito como o árabeisraelense, essa idéia de que ou você está inserido em uma cultura, que representa determinado povo, determinada nação, ou você não é parte daquela nação, exclui, divide, é nociva, portanto. Quem vive entre os dois lados, quem convive na diversidade das culturas é visto com desconfiança. Quando destruirmos essa mentalidade e entendermos que nossas línguas são da mesma família de idiomas, que somos ambos semitas, estaremos dando um passo importante no caminho da paz. Temos que parar com nossa autodestruição. Precisamos olhar para o problema de forma objetiva. O que podemos fazer agora para melhorar nossa convivência, diante da atual conjuntura? Eu penso que a tarefa imediata é lutar pela remoção do muro e dos assentamentos judaicos nos territórios ocupados. BF – O senhor teve sua página da internet retirada do ar pela polícia israelense? Atinsky – Tudo aconteceu entre os últimos dias de 2003 e os primeiros deste ano. Já estava, sem saber, sob investigação da Inteligência de Israel por causa das charges que o Indymedia vinha publicando, consideradas ofensivas ao Estado. Mas a gota d’água foi quando publiquei uma caricatura de seu compatriota Carlos Latuff, em que o primeiro-ministro Ariel Sharon beijava Adolf Hitler na boca. Para piorar, as autoridades pensaram que Latuff era árabe, talvez por seu nome. Enfim, aleguei que mesmo administrando o portal não tenho o hábito de controlar estritamente o conteúdo ali publicado. Estive sempre tranqüilo a esse respeito. Não fazia nada de errado. BF – Mas a polícia foi até sua casa? Atinsky – Cinco ou seis dias após a publicação da charge, em janeiro, fui acordado às seis da manhã por três homens da polícia. Foi aquele susto, vocês podem imaginar. Os três estavam armados, achei que fossem me matar. Levaram meu computador – aliás, ainda estão com ele –, me levaram para a polícia política, não respeitaram meu direito legal de falar com um advogado. Fiquei oito horas no distrito. Mais de quatro vezes disseram: “Você é responsável pelo desenho”. Eu dizia que nenhuma lei de nenhum país responsabiliza o editor por publicações desse tipo. A responsabilidade cabe ao cartunista. Aí eu dizia: “Procurem as autoridades brasileiras, no Indymedia.com tem telefone e endereço de cada um dos jornalistas”. Os oficiais fingiam não entender. BF – O senhor foi detido? Atinsky – Seis meses antes de tudo isso, um processo semelhante terminou com o dono da página de internet declarado inocente. A mesma jurisprudência já segue as justiças européia e estadunidense. A responsabilidade é de quem faz, não de quem publica. Enfim, estive na polícia três vezes. Na segunda vez, me detiveram lá sob interrogatório por seis horas e na última vez, por quatro horas. No final, não conseguiram provar nada contra mim. Mas me prometeram que devolveriam o computador em seis meses. Estou esperando meu PC há sete meses e meio.


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AMÉRICA LATINA VENEZUELA

Desafio, agora, é combater a corrupção A

pós a vitória no referendo de 15 de agosto, para o presidente venezuelano, Hugo Chávez, o próximo desafio é “aprofundar” a revolução bolivariana com reformas econômicas que possam garantir o acesso da maioria da população a serviços básicos como saúde, educação e moradia. Agora, com uma suposta trégua dos Estados Unidos que, embora tardiamente, reconheceram os resultados do referendo, e com uma oposição cada vez mais débil e isolada, o presidente tem força política e conta com o aparato de Estado para promover aquelas mudanças. Mas o desafio não é simples. A começar por uma das principais tarefas a serem cumpridas, que é o combate à corrupção. “Lutar contra a corrupção é uma das consígnias desta nova etapa. Os líderes terão que se desprender de todo bem material. Nenhum governador ou ministro deverá fazer negócios, abrir poupanças, construir casas. Nada. Quem quiser fazer negócios, que vá para outro lugar”, afirmou Chávez no programa “Alô Presidente” do domingo, dia 21, onde também anunciou a alteração em dois ministérios. Jesse Chácon (ex-Comunicação e Informação) assume a pasta do Interior e Justiça, e cede lugar a Andrés Izarra, que assume um ministério considerado peça chave para o governo venezuelano.

Chávez vota durante referendo em que saiu vitorioso das urnas mais uma vez; população espera a reforma do Estado e implementação de políticas sociais

para minorar a situação dos 16% da população que está desempregada e mudar a situação dos 52% dos trabalhadores que estão na economia informal.

CONCILIAÇÃO? A mudança de discurso de Albis Muñoz, presidenta da Fedecamaras (entidade patronal que reúne os principais grupos industriais do

país), que participou do golpe de 11 de abril e da sabotagem empresarial no final de 2002, pode ser um indício de que os empresários estão dispostos a atender ao chamado do presidente para estabecer um diálogo e amenizar os conflitos. “Temos que pensar em reconstruir a Venezuela economicamente. Temos perdido espaço empresarial. O país requer novos postos

de trabalho e estamos plenamente conscientes que só fortalecendo a empresa privada poderemos gerar estes novos empregos”, afirmou Albis em coletiva de imprensa, dias após o referendo. Outra deficiência do país está no setor agrícola. Sem tradição de produção alimentar, nesses cinco anos, o governo tampouco conseguiu superar o déficit agrícola.

“Temos avançado nos programas de desenvolvimento rural, mas ainda não conseguimos produzir a quantidade necessária de grãos e hortaliças. É um problema histórico”, analisa o vice-ministro de Desenvolvimento Rural, Leonardo Gill. Grande parte dos alimentos que os venezuelanos consomem é importada dos Estados Unidos, Colômbia e Argentina.

Depois da auditoria, oposição muda o tom A auditoria realizada em 150 mesas de votação do referendo revogatório ratificou o resultado das urnas e confirmou a legitimidade da consulta popular, vencida pelo presidente Chávez, que obteve 59% dos votos de mais de 10 milhões de eleitores. A auditoria “permite encerrar o capítulo das eleições”, assegura o reitor do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), Jorge Rodríguez. A inspeção foi realizada pelo CNE, sob a observação da Organização dos Estados Americanos (OEA) e Centro Carter para sanar as dúvidas da oposição, que não aceita os resultados do referendo. Mesmo diante das provas da auditoria, a opositora Coordenadora Democrática (CD) insiste em afirmar que houve manipulação no software das máquinas, o que permitiu que houvesse um “teto” para limitar o número de votos pelo “sim”, a favor da revogação do mandato presidencial. Entretanto, uma vez mais, a oposição teve que voltar atrás nas

TAREFA ÁRDUA O chamado à “honestidade” feito pelo presidente é um dos principais problemas enfrentados pelo governo que, em cinco anos, não conseguiu reformar a estrutura do Estado, essencialmente burocrática e corrupta, para conseguir implementar e desenvolver seus programas sociais. Com uma economia baseada essencialmente na exportação do petróleo (com status de quarto maior exportador mundial), o país sofre com a ausência de um parque industrial produtivo. Para 2004, a previsão é de um crescimento da ordem de 12%, talvez não o suficiente

Venpres

Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)

Fotos: Venpres

Chávez convoca a nação a levar adiante reformas para garantir acesso da maioria da população a serviços básicos

desde que validados pelo Centro Carter e pela OEA. Além de reivindicar a anulação do referendo, a oposição ameaça não participar das eleições estaduais e municipais de 26 de setembro, por considerar que o CNE Mesmo diante das provas, oposição insiste em fraude não tem credibilidade para garantir a suas declarações sobre os resulta- lisura dos pleitos. Os opositores do dos do pleito. Primeiro, a oposição governo Chávez controlam sete dos exigiu uma auditoria. Logo que 23 Estados venezuelanos e muitas a reivindicação foi acatada pelo das 337 prefeituras. CNE, a oposição a rechaçou. De outra feita, o deputado Júlio Bor- CÃO QUE LADRA... Os resultados do referendo ges, um dos porta-vozes da CD garantiu, dia 18 de agosto, que se os mostram que a oposição perdeu a votos fossem revisados, e a vitória maioria dos eleitores em Estados de Chávez ficasse comprovada, a nos quais, até então, tinha domínio oposição “aceitaria os resultados”. quase total. Jesús Torrealba, da CD, Nas semanas que antecederam o admite que a oposição corre o risco referendo, a CD também disse que de “cometer suicídio, ou ser morta” aceitaria os resultados do referendo nas eleições do próximo mês.

Mas o descontentamento da oposição já não repercute como antes. Internamente, apenas os líderes dos partidos políticos que fazem parte da CD seguem utilizando os meios de comunicação privados como palanque para alardear a acusação de fraude, sem apresentar provas. A Fedecamaras e outros setores empresariais, que apoiaram o golpe de 11 de abril, sinalizam um distanciamento da CD. Internacionalmente, o apoio dos Estados Unidos à CD também dá mostras de desgaste. Os opositores se dizem “abandonados”, como escreveu Rafael Poleo, em artigo no jornal El País. Os principais meios de comunicação estadunidenses, que antes definiam a oposição como um grupo de democratas e se referiam a Chávez como o presidente autoritário, mudaram o tom na última semana. Seus editoriais admitem a vitória de Chávez e criticam a oposição, chamada agora de antidemocrática, por não reconhecer os resultados. (CJ)

CUBA

Brasil defende integrar a ilha ao Grupo do Rio O governo brasileiro está propondo ao Grupo do Rio, articulação de países latino-americanos, aumentar o diálogo com Cuba. A sugestão foi oficializada dia 19 de agosto, na reunião de chanceleres, pelo ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim. “Não podemos deixar de discutir o impulso ao diálogo político. Devemos incluir Cuba dentro dessa grande família latino-americana”, discursou o chanceler brasileiro, na abertura do encontro. A proposta gerou polêmica no fórum multilateral de nações. Países da América Central e o México, mais alinhados com os Estados Unidos, ofereceram resistência à idéia de incluir Cuba no Grupo do Rio. A exclusão do país revolucionário do Grupo do Rio faz parte da estratégia estadunidense de isolar política e economicamente a ilha. Alguns países nem mesmo mantêm relações diplomáticas com Cuba. Já Argentina, Paraguai e ChiGrupo do Rio – Criado em 1986, na cidade do Rio de Janeiro, o grupo tem como principal característica ser uma articulação própria dos países latino-americanos e caribenhos, sem a presença dos Estados Unidos. Participam: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Costa Rica, Colômbia, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Venezuela, Uruguai e um representante da Comunidade do Caribe (Caricom).

le apoiaram os intentos brasileiros. Segundo o Itamaraty, todos os países da América do Sul aprovaram a sugestão. A falta de consenso entre os latino-americanos não permitiu que a proposta brasileira fosse incluída na pauta da próxima reunião de Cúpula do Grupo do Rio, no Brasil, em novembro, quando estarão

presentes os líderes presidenciais. “Não obtivemos consenso porque alguns chanceleres consideraram o tema sensível e disseram que seriam necessárias mais consultas internas. Achamos que, democraticamente, não deveríamos forçar o consenso”, avaliou Amorim ao final do encontro de chanceleres. O Itamaraty, no entanto, pretende

Venpres

Jorge Pereira Filho da Redação

levar adiante a proposta e insistir na inclusão do tema na Cúpula. O Brasil ocupa temporariamente a Secretaria Pro Tempore da aliança de países latino-americanos. Os chanceleres discutiram também outros assuntos, como a criação de mecanismos financeiros inovadores para impulsionar o desenvolvimento local e regional. Desde

a última reunião presidencial, em Cuzco, no Peru, os países discutem propostas para permitir que cerca de 20% das dívidas das nações sejam destinadas ao investimento em infraestrutura, sobretudo de integração física no continente. Em setembro, vice-ministros da Fazenda dos 19 países deverão se reunir, em Brasília, para aprofundar o debate.

Estados Unidos lançam ofensiva de mídia da Redação

Exclusão de Cuba do Grupo do Rio faz parte de estratégia estadunidense

A TV Martí, emissora financiada pelo governo estadunidense cujos sinais tinham sido bloqueados pelo governo cubano, retomou suas transmissões a partir do avião C130, em um vôo nas redondezas da ilha cubana. O projeto faz parte do plano do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, oficializado em 6 de maio, pelo informe “Comissão de Ajuda para uma Cuba Livre”, cujo objetivo principal é desestabilizar o presidente cubano, Fidel Castro. Estima-se que Bush esteja gastando 70 milhões de dólares apenas para fazer as transmissões das imagens a partir do avião. A primeira transmissão da TV Martí nos novos moldes durou quatro horas. O governo estadunidense informou que as imagens

foram feitas em “cumprimento de uma iniciativa adotada pelo presidente George W. Bush para acelerar a transição democrática na ilha”. O sinal da televisão, no entanto, não pode ser captado com facilidade pelos televisores cubanos, por problemas de sintonia ou de visualização. O governo cubano tem denunciado a ilegalidade das transmissões da emissora desde seu início, nos anos 80 e 90. Agora, Bush tenta viabilizar essa ofensiva contra Castro a partir do uso das suas aeronaves militares. O modelo do avião que emitiu as imagens para a ilha é o mesmo já utilizado pelos estadunidenses em operações de guerra no Iraque e no Afeganistão. O governo dos EUA informou que o avião continuará a fazer transmissões nos próximos dias. (La Jornada, www.jornada.unam.mx)


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INTERNACIONAL ÁFRICA

Genérico brasileiro trata Aids africana Leon Pardge de Pretória (África do Sul)

I

ntegrantes da organização nãogovernamental (ONG) Treatment Action Campaign (TAC – Campanha de Ação para o Tratamento), de combate à Aids, levaram do Brasil para a África do Sul, no início de agosto, medicamentos genéricos para o tratamento da doença. Os medicamentos serão usados no projeto da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) naquele país. O órgão sul-africano de controle e regulamentação farmacêutica, o Conselho de Controle de Medicamentos, autorizou o uso desses genéricos para o tratamento de pacientes com Aids na África do Sul. Zachie Achmat, da TAC, comenta: “Temos visto no Brasil o que acontece quando um governo decide fazer frente ao HIV/Aids. Oferecer tratamento anti-retroviral de forma universal, inclusive aos mais pobres, mantém milhares de pessoas vivas.” O êxito do programa no Brasil se deveu em grande parte à vontade de fazer tudo o que fosse necessário para obter medicamentos anti-retrovirais de qualidade ao menor preço. “Como esses medicamentos estão sob patente na África do Sul, nosso governo deveria emitir licenças obrigatórias para que se pudesse produzir e/ou importar genéricos mais acessíveis”, acrescenta Achmat. Na verdade, a vitória judicial do governo sul-africano contra as multinacionais farmacêuticas, em abril do ano passado, deixou o caminho livre para a obtenção de medicamentos mais acessíveis. “O governo sul-africano pode precisar de ajuda financeira internacional para oferecer tratamento, mas essa necessidade será drasticamente reduzida se tomadas as iniciativas necessárias para

ATTN News (Aids Therapeutic Treatment Now

ONG Médicos Sem Fronteira desafia governo da África do Sul e fecha acordo com Brasil para importar medicamentos

Remédio também chega a Moçambique e Nigéria da Redação

Sul-africanos reivindicam remédios acessíveis para o tratamento da Aids (Jul/03)

utilização de medicamentos mais acessíveis existentes no mercado mundial, já que o preço que as indústrias farmacêuticas cobram por esses remédios continua sendo alto”, afirma Dan Mullins, da ONG Oxfam. Embora o governo se negue a oferecer tratamento com anti-retrovirais, as três clínicas administradas pela Médicos Sem Fronteiras dentro do sistema público de atenção primária dão tratamento integral a pessoas que vivem com o HIV/Aids. Esse projeto foi assinado com o governo da província de Western Cape, com o objetivo específico de provar a viabilidade do tratamento anti-retroviral. Nas clínicas de Khayelitsha, um grande subúrbio da Cidade do Cabo (extremo sul da África do Sul), já há tratamento para as infecções oportunistas para mais de 2,3 mil pacientes. Em maio de 2001, iniciou-se a terapia anti-retroviral em um grupo de pacientes em fase avançada de Aids. Até agora, 85 dessas pessoas receberam o tratamento, parte delas com medicamentos de origem brasileira.

“Eu me beneficiei do programa de anti-retrovirais da Médicos Sem Fronteiras e viajei ao Brasil para trazer medicamentos genéricos para que mais pessoas como eu possam ter acesso a esses medicamentos”, conta Matthew Damne, que recebeu o tratamento no projeto da MSF. “O governo deveria reconhecer publicamente a eficácia dos medicamentos anti-retrovirais e torná-los acessíveis às pessoas com Aids na África do Sul”, afirma Eric Goemaere, da MSF-África do Sul. “Nosso projeto demonstra que o tratamento com anti-retrovirais é possível em um contexto de recursos escassos, contradizendo aqueles que insistem em que os africanos pobres não conseguem tomar esses medicamentos de forma adequada. Pacientes antes gravemente doentes estão retomando suas vidas. Somos testemunhas diretas de que esses medicamentos podem ser usados com segurança e eficácia aqui na África do Sul. Como profissionais médicos, é nosso dever oferecer esses benefícios ao maior número possível de pacientes.” A MSF assinou acordos com o Ministério da Saúde do Brasil

No início de agosto, o Instituto de Tecnologia em Fármacos – Laboratório Far-Manguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz, anunciou para o final de 2004 o lançamento de um comprimido único para portador de HIV. O medicamento vai permitir que os doentes, em vez de ingerir vários comprimidos ou cápsulas durante o dia, tome apenas dois. Segundo a direção do instituto, o novo medicamento vai diminuir também os custos de produção. O Far-Manguinhos já produz sete dos 16 tipos de medicamentos que compõem o coquetel distribuído aos portadores do vírus HIV no país. A produção começou em 1998. Além de atender ao mercado interno, parte da produção nacional é encaminhada a outros países da América Latina e África, nos convênios de cooperação

que o Brasil vem assinando tanto para a transferência de tecnologia, como para a doação dos coquetéis. Pesquisadores da Fiocruz estão desenvolvendo um trabalho na Nigéria, onde já existem fábricas ainda inadequadas para a produção dos anti-retrovirais. Em Moçambique, os técnicos da Fundação estão trabalhando na montagem de um laboratório de controle de qualidade, para garantir que os produtos adquiridos no mercado internacional sejam qualificados dentro daquele país. A Fiocruz acredita que o Brasil tem condições de ampliar a produção nacional para passar também a vender os medicamentos a outros países, embora defenda a criação de laboratórios próprios para a produção dos medicamentos que garanta a demanda interna, conforme acontece no Brasil. (Com Agência Brasil, www.radiobras.gov.br)

e com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituto público de pesquisa. O acordo de colaboração inclui cooperação técnica como resposta ao HIV/Aids para melhorar o tratamento em locais de poucos recursos. Além disso, o acordo com a Fiocruz permite que a MSF compre medicamentos anti-retrovirais do Instituto Far-Manguinhos, fabricante brasileiro dos remédios. Um aspecto inovador desse acordo é que o dinheiro que o MSF paga será destinado diretamente à pesquisa e ao desenvolvimento de técnicas de combate à Aids e doenças relegadas a segundo plano, tais

como a doença do sono, a doença de chagas e a malária (enfermidades para as quais não há tratamento adequado). Atualmente, a MSF emprega os anti-retrovirais AZT, 3TC, AZT/3TC e nevirapina produzidos pelo Far-Manguinhos. O uso desses medicamentos reduz pela metade o custo diário por paciente (de 3,20 dólares para 1,55 dólar). Em outras palavras, com o emprego de medicamento anti-retroviral genérico pode-se chegar a tratar o dobro de pessoas com a mesma quantidade de dinheiro. (Prensa Latina, www.prensa-latina.org)

da Redação O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem intensificando como nenhum outro as relações de cooperação e comércio com os países africanos, conforme anunciou ao tomar posse em janeiro de 2003. Exemplo disso é a recente reunião de um grupo de empresários brasileiros, no início de agosto, com o ministro do Desenvolvimento Industrial da República do Congo, Emile Mabonzo, na capital daquele país, Brazzaville, para tratar das oportunidades de investimento que o Congo oferece a empresas do Brasil. No encontro, Mabonzo entregou à delegação brasileira a lista de projetos já prontos para ser objeto de análise. Os documentos vinham acompanhados das fichas técnicas, da carta de investimento no Congo e da possibilidade de efetuar outros negócios fora do território congolês. Entre as oportunidades de investimento apresentadas aos empresários brasileiros estão a reconstrução da indústria de fabricação de azeite, destruída pela guerra, e a revalorização da cultura da cana-de-açúcar. A isso se junta a continuação do projeto de construção de uma pequena indústria siderúrgica na região central de Niari, destinada à fabricação de ferro e outros materiais recuperáveis. Mabonzo convidou os brasileiros a promover a construção de uma segunda fábrica de cimento no Congo, para resolver a ampla demanda local. A delegação brasileira anunciou que trabalhará de imediato para a construção de uma fábrica de automóveis no Congo.

PAÍSES COM OS QUAIS O BRASIL INTENSIFICA COOPERAÇÃO E RELAÇÕES COMERCIAIS

Wilson Dias/ABR

Cresce cooperação e comércio Brasil-África

Lula é recebido pelo presidente de Cabo Verde, Pedro Pires em julho

Os africanos, por sua vez, querem facilitar a entrada de seus produtos no mercado brasileiro. Em meados de julho, embaixadores de países da África pediram, durante audiência na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, o empenho do governo brasileiro nessa questão.

FRENTE BRASIL-ÁFRICA Embaixadores da Argélia, Cabo Verde, Camarões, Costa do Marfim, Congo e Nigéria elogiaram o

esforço do governo Lula de renovar as relações afetivas e comerciais entre Brasil e África. A reunião foi realizada com o objetivo de discutir a Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (Nepad). O projeto visa proporcionar uma arrancada no desenvolvimento africano a partir da aproximação entre os países da região com outras nações do mundo. O embaixador de Camarões, Martin Mbarga Nguele, disse, na audiência, que o Brasil ocupa papel importante em seu continente

como um aliado natural. Já o embaixador do Senegal, César Coly, ressalvou que o Brasil e os países africanos precisam incrementar o comércio bilateral. Também este ano foi instalada na Câmara dos Deputados uma frente de apoio ao continente africano, o Grupo Parlamentar Brasil-África, por ocasião dos dez anos do fim do apartheid na África do Sul – regime de segregação racial vigente de 1948 a 1994. O grupo agrega as seis frentes bilaterais que já existem na Câmara para Angola, Líbia, Tunísia, Marrocos, África do Sul e GuinéBissau, além de abrir o espectro para o restante do continente. O objetivo é unificar as ações que já existem e trabalhar diretamente com as embaixadas e representações de todos os países africanos, integrando empresários, estudantes e investidores.

No início de agosto, novas conversas deram continuidade às negociações que visam à exploração brasileira de jazidas de carvão na África do Sul e Moçambique. Estiveram em Pretória e Maputo representantes da indústria brasileira Companhia Vale do Rio Doce e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) O BNDES tem interesse especial no coque metalúrgico (material sólido) produzido a partir do carvão porque esta é uma das matérias-primas que faltam para o desenvolvimento da indústria siderúrgica. Durante a viagem, foram feitos contatos não só com empresas, mas também com presidentes e ministros de Minas e Energia dos dois países. O banco pode vir a financiar projetos da Vale para exploração das jazidas africanas. (Com Prensa Latina www.prensa-latina.org e Agência Brasil, www.radiobras.gov.br)


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AMBIENTE BIOSSEGURANÇA

O povo paga a conta das empresas João Alexandre Peschanski da Redação

Agência Brasil

Projeto beneficia corporações e grandes fazendeiros, com anistia a quem já planta transgênicos O governo vai precisar reestruturar o Ibama e a Anvisa para fazer a fiscalização dos transgênicos, avalia a agrônoma. Além disso, comenta, o governo vai precisar contratar e formar pessoas capacitadas para o trabalho. “O investimento é muito alto e, segundo o governo, será feito antes de ocorrer a liberalização, mas isto é impossível. Os órgãos públicos estão desmontados. Não têm tecnologia e pessoal. Se for assim, os transgênicos vão ser liberados e não vai ter como controlar”, afirma Ângela.

O

governo pretende apressar a votação e a aprovação do projeto de Lei de Biossegurança. Segundo o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, a proposta, apresentada pelo senador Osmar Dias dia 10 de agosto, deve ser aprovada no Senado na última semana de agosto e na Câmara, até 20 de setembro. Os prazos são fundamentais, pois permitiriam ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionar o texto antes de outubro, quando começa o plantio da safra 2004/2005. A pressa do governo, comenta a engenheira agrônoma Ângela Cordeiro, especialista em biossegurança, tem dois motivos: “Lula não quer mais aprovar a safra transgênica por medida provisória (MP), pois isso desgasta sua imagem, e o lobby da agroindústria pressiona a liberalização dos organismos geneticamente modificados (OGMs)”.

FUNDO PARA POBRES

Protesto de manifestantes contra o projeto de lei favorece os grandes fazendeiros e empresários do agronegócio

No final de 2003, durante uma viagem aos Estados Unidos, Lula orientou o vice-presidente, José Alencar, a emitir uma MP para liberar o plantio de soja transgênica, submetendo-se à pressão de produtores e empresários do agronegócio. Os grandes agricultores se dizem satisfeitos com o projeto de Dias, que autoriza a pesquisa e a comercialização de alguns produtos transgênicos, além de aumentar o poder da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que passa a deliberar sobre o uso de OGMs. Segundo Ângela, a proposta de lei favorece os grandes fazendeiros e empresários do agronegócio, pois lhes dá carta branca para plantar produtos transgênicos, mais baratos, mas cujos impactos ambientais não foram avaliados. Em seu artigo 30, o texto prevê a anistia de todos

Lobby – atividade de pressão de um grupo organizado sobre políticos e poderes públicos, que visa exercer sobre estes qualquer influência ao seu alcance, mas sem buscar o controle formal do governo. Medida provisória (MP) – instrumento do governo para implementar leis, que entram em vigência imediata e provisoriamente, só precisando passar por votação no Legislativo para se tornarem permanentes. Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) – formada por ministros, funcionários, empresários, fazendeiros e representantes da sociedade civil, tem como objetivo prestar apoio técnico e assessorar o governo na formulação e implementação de políticas ligadas à biossegurança. Agroecologia – conhecida como agricultura alternativa, se pauta na realização de cultivos sem o uso de agrotóxicos e venenos, favorecendo pequenos propriedades, em que ocorre a renovação natural do solo e a preservação dos recursos naturais.

os agricultores de OGMs que conseguiram parecer favorável, na Justiça ou com órgãos de fiscalização, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), antes da aprovação da lei. “No Rio Grande do Sul, com base em processos confusos e contraditórios, vários agricultores conseguiram na marra o direito de produzir soja transgênica, mas não houve tempo para se fazer um estudo do impacto de tal cultivo. A anistia, nesse caso, quer dizer: liberou geral!”, analisa a engenheira agrônoma.

ENCARGOS SOCIAIS De acordo com Ângela, a matemática do projeto de Dias é perversa: “Os grandes fazendeiros têm benefícios econômicos, o governo

controla as decisões políticas e o contribuinte paga a conta”. Em seu artigo 17, a proposta sugere que a fiscalização da liberalização dos transgênicos seja realizada pelo Ibama e pela Anvisa, a partir de solicitações da CTNBio. A finalidade dos órgãos seria controlar as atividades de fazendeiros e corporações que usam OGMs. “O correto seria as empresas e fazendeiros que fazem uso dos transgênicos financiarem as pesquisas e a fiscalização de seus produtos, pois estes pressupõem equipamentos e tecnologia que o Estado não tem. Hoje, em um momento em que os transgênicos não estão liberados, não há funcionários para fiscalizar. Imagine quando for liberado”, explica Ângela. Segundo ela, averiguar se uma semente é transgênica custa de 3 a 5 dólares e, no caso do cacau, pode subir a 300 dólares.

No artigo 21, o projeto de Dias prevê a constituição do Fundo de Incentivo ao Desenvolvimento da Biossegurança e da Biotecnologia para Agricultores Familiares (FIDBio), cujo objetivo é prover universidades e órgãos públicos de recursos para projetos em benefício dos pequenos camponeses, como pesquisas sobre os produtos componentes da cesta básica. Os recursos do fundo devem vir de uma taxação sobre a comercialização e importação de sementes e mudas geneticamente modificadas. “É o fundo para os pobres! O governo libera geral para as grandes empresas e dá um fundo de esmola para os pequenos agricultores”, ironiza Ângela. Segundo ela, movimentos sociais e cientistas entregaram diversas propostas para o governo sobre como melhorar substancialmente a alimentação dos brasileiros, principalmente com base em investimentos em agroecologia, que seriam mais baratos e mais produtivos, mas que nunca foram implementados. “Não são os transgênicos que vão acabar com a fome e a pobreza no Brasil, mas a mudança na lógica da produção agrícola”, conclui.

ANÁLISE

Sob o Signo das Bios O avanço vertiginoso da ciência e sua aliança com o capital, nas últimas décadas, assinala uma aceleração econômica e tecnológica nunca vista. Seus efeitos sociais, éticos, políticos, econômicos e culturais, no entanto, ainda não têm sido avaliados suficientemente pela sociedade civil. Em geral, as informações e as decisões sobre questões que dizem respeito à vida, ao meio ambiente, à saúde e ao futuro ficam restritas a círculos técnicos ou políticos. O fato de a vida (bio) ocupar o centro das políticas econômicas globais deveria integrar as preocupações de homens e mulheres, pois diz respeito à nossa vida individual e social – o que comemos, o que respiramos, a água que utilizamos, os remédios que compramos, as políticas públicas que propomos, o destino do conhecimento produzido. De certa forma, a vida foi sempre objeto de decisão política de alguns poucos. No entanto, algo mudou na história humana. Fundamentalmente, modificou-se a forma de conhecer. Com o microscópio fomos para dentro das coisas e dos seres vivos, chegamos às suas células e moléculas – o que levou à descoberta de que aquilo que conhecíamos podia ser experimentado e transformado em objeto de poder. A biotecnologia contemporânea é um dos sustentos do sistema econômico capitalista vigente.

O CUSTO DOS BENEFÍCIOS Os agricultores, ao longo do tempo, melhoravam naturalmente suas sementes por um processo cuidadoso de hibridação e as reservavam para seus futuros plantios.

anos e pagar pelos “benefícios” tecnológicos das mesmas às empresas multinacionais. Muitos cientistas pregam que a ingestão de alimento geneticamente modificado é inofensiva à saúde. No entanto, evidências recentes mostram que há riscos potenciais no consumo desses alimentos à medida em que as novas proteínas neles contidas poderiam produzir toxinas ou substâncias alérgicas e alterar o metabolismo do alimento, reduzir sua qualidade nutricional, como no caso da soja resistente a herbicida, que continha menos substâncias de proteção a diversos tipos de câncer em mulheres.

Márcio Pena/Greenpeace

Alejandra Rotania

CONFIANÇA CEGA

Protesto em frente à sede da Monsanto, em Porto Alegre

Agora, a melhoria e a modificação genética das sementes são feitas no laboratório de grandes corporações multinacionais e são incapazes de se reproduzirem, de modo que os agricultores devem comprá-las todos os

As preocupações sociais e políticas com o meio ambiente, a agricultura ou a natureza não humana tem avançado na análise dos impactos e conseqüências das mudanças ocorridas. Mais recentemente, a preocupação com o sistema de propriedade intelectual e a fabricação de medicamentos e sua relação com os tratados da Organização Mundial do Comércio têm impulsionado análises, ações de resistência e políticas públicas dos países em desenvolvimento. Porém ainda é insuficiente a reflexão sobre o fato de como a biotecnologia pode afetar diretamente os corpos de homens e mulheres, as gerações futuras, sua saúde, sua identidade. Parece haver uma confiança cega na capacidade do desenvolvimento científico na área das Bios para a cura de doenças ou para dar alegria a casais inférteis. Portanto, um passo importante para exercermos a responsabilidade social que nos cabe é começar a fazer perguntas. Quais os impactos do uso de sementes, alimentos, me-

dicamentos ou substâncias modificados geneticamente na saúde humana, no meio ambiente, no modo de organização econômica e social? O mercado vem ditando formas de mercantilização da vida em suas múltiplas expressões, os governos vêm buscando estabelecer leis, normas e estratégias de desenvolvimento, os setores religiosos estão atentos às questões éticas e morais que suscitam o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Mas o que têm para dizer os pesquisadores responsáveis, os ativistas das organizações sociais em torno de questões de gênero, saúde, desenvolvimento, direitos humanos, raça/etnia, indígenas dentro deste tema e seus significados?

Até o momento, a discussão nesse campo tem sido travada com insuficiente participação da sociedade civil organizada. Mas é preciso reconhecer que uma problemática com esse grau de grandeza demanda ampliar a base social, fortalecer o diálogo, inventar uma verdadeira pedagogia da inclusão que não significa necessariamente a participação nesse modelo tal como ele se apresenta, mas a participação crítica e efetiva na tomada de decisão sobre os caminhos do desenvolvimento humano. Alejandra Rotania é coordenadora executiva de programas do Centro de Estudos e Ação da Mulher (Ser Mulher)

SEMINÁRIO

Simpósio discute participação da sociedade da Redação Com o objetivo de propiciar um encontro entre os diversos segmentos sociais que atuam no campo da biossegurança, buscando difundir informações e torná-las acessíveis para a sociedade, assim como pensar nas possibilidades de participação política, será realizado o simpósio “Sob o Signo das Bios: tecnologia, ética, política e sociedade”, dias 2 e 3 de setembro, no Hotel Glória, no Rio de Janeiro. Realizado pela Fundação Heinrich Böll e pelo Centro de Estudos e Ação da Mulher (Ser Mulher), o evento vai abordar os seguintes te-

mas: “Novas Tecnologias, Propriedade Intelectual, Recursos Biológicos e Conhecimento Tradicional: Conceitos e Debates”, “Biotecnologia e impacto nos seres humanos: perspectivas intersetoriais desde uma visão intergral”, “Os conceitos e os valores: Bioética e Direitos Humanos” e “Estratégias Políticas na área das Bios: Possibilidades e Impasses”. Entre os palestrantes, estão Marcos Terena, do Instituto Indígena Brasileiro de Propriedade Intelectual e do Conselho Indigenista Missionário; o jornalista Marcelo Leite e a deputada Luci Choinacki, que tratará da Lei de Biossegurança.


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DEBATE MINISTÉRIO PÚBLICO

Poder de investigar ou dever de controlar Em memória da companheira Maricélia Valência, advogada popular. Seguindo na luta. Aton Fon Filho epois que os ministros Marco Aurélio de Mello e Nelson Jobim manifestaram em votos seu entendimento de que a Constituição Federal não autoriza o Ministério Público a realizar investigações criminais, integrantes dessa instituição desencadearam uma campanha visando a obter apoio social para uma decisão que lhes garantisse os poderes investigativos. A discussão, que deveria ser apenas de ordem jurídica e institucional, transbordou esses limites, adquiriu outros contornos de histeria e se espalhou pela sociedade brasileira, em especial entre os militantes da área de direitos humanos.

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A QUESTÃO JURÍDICA

justiça devam vestir a condição de agentes policiais, em lugar de serem controladores da polícia. A QUESTÃO ÉTICA

Contrária ao direito, a defesa dos supostos poderes investigativos do Ministério Público implica também um grave confronto com a ética democrática e dos direitos humanos. Ferida pelo crime e pelo medo, a sociedade se vê desprotegida muitas vezes pela omissão da instituição policial; outras tantas, pela ação criminosa. Em tal ambiente não costumam faltar aqueles que se apresentam como os paladinos da lei e da ordem, e que, com o espectro da marginalidade e da corrupção pretendem que a sociedade lhes autorize violar a lei, para supostamente defendê-la. Nesse particular, o argumento de que a sociedade precisa do MP investigando (ainda que isso seja inconstitucional), porque somente este poderia eficientemente enfrentar a corrupção e o crime, não é diferente daquele que invocavam os integrantes de

Kipp er

a investigação, deve ser dele o direito de investigar. O argumento não poderia ser mais falacioso. Para começar, porque o inquérito policial é instrumento preliminar de coleta de elementos, não excluindo a atuação do promotor de justiça no processo, quando ele próprio é o responsável pela produção de provas. Depois, porque o fato de ser o titular da ação penal não faz dele o destinatário das provas produzidas, sendo este, em última análise e sempre, o magistrado que as examinará para proferir decisões. De outra parte, nada impede, ao contrário, a Constituição determina, que o Ministério Público exerça o controle da atividade policial e que requisite a instauração do inquérito criminal e realização das diligências investigativas que julgar adequadas, desde que fundamente juridicamente seu entendimento. Esse poder do MP não pode ter sua importância diminuída, ao contrário do que se vem pretendendo, particularmente quando se justifica a atuação investigativa do MP com a ineficiência, o corporativismo ou a corrupção policiais. Responsável pelo controle da atividade policial e pela fiscalização do inquérito criminal, o promotor de justiça é guardião da sanidade e eficiência da investigação e da polícia, tendo lhe cabido já desde antes, no acompanhamento do inquérito determinar as atividades investigativas que a seu juízo forem necessárias e responsabilizar a autoridade e o servidor policial que se omitirem do cumprimento do dever legal. O abandono desse papel em prol da assunção direta da função policial permite que vicejem descontrolados no organismo policial exatamente aqueles vícios que se alega seriam indutivos da atividade investigatória do promotor de justiça. Com o argumento da necessidade de suprir a ineficiência policial, os representantes dessa tese logram apenas agir como a autoridade que aconselha o cidadão a não sair à noite, dado o risco de assalto, em lugar de promover a segurança pública. Não é, pois, o reconhecimento de que o Ministério Público não tem atribuição de promover investigação criminal que o diminui, mas seu próprio entendimento de que os promotores de

Ilustr açõe s

A questão jurídica envolvida tem sido a primeira vítima desse processo de discussão, por isso, iniciemos por ela. A Constituição Federal delimitou, no art. 129, as funções do Ministério Público. Elenca a propositura da ação penal pública, de modo privativo, e da ação civil pública. Atribui-lhe “promover” o inquérito civil e a ação de inconstitucionalidade, mas no que toca ao inquérito penal dispõe que compete ao Ministério Público “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial”. Já daí não poderia caber nenhuma dúvida de que em nosso ordenamento não tem abrigo a pretensão de que os promotores de justiça possam ser titulares da investigação policial. Mas, não fosse isso suficiente, no art. 144 ficam expressamente definidos os órgãos que exercem a segurança pública, limitados às polícias federal, rodoviária federal, ferroviária federal, civis, militares e aos corpos de bombeiros militares. Às polícias federal e civil é atribuída expressamente a investigação das infrações penais. E novamente nenhuma menção a poderes investigativos do Ministério Público. A ausência de qualquer atribuição expressa de poderes investigativos ao Ministério Público na Constituição Federal não tem caráter aleatório, mas é decorrente da sistemática dos freios e contrapesos sempre adotada. Isso porque, sendo o Ministério Público o titular da ação penal, quis o constituinte fosse outro organismo a coletar os elementos informativos daquela, visando exatamente a garantir os direitos das pessoas ante a possível – previsível, poder-se-ia dizer – atitude autoritária do ente estatal. Não sendo aleatória, não é, por outro lado, desprovida de significado. Uma das mais preocupantes atitudes nesse debate consiste em afirmar – não em artigos ou qualquer meio permanente, mas em discussões informais – que se a Constituição não autoriza, também não proíbe o Ministério Público de conduzir investigações criminais. A afirmação é uma fraude porque, ao contrário do que se refere aos direitos do cidadão, quando se considera permitido tudo que não é legalmente proibido, no que se refere aos poderes do Estado, se considera proibido tudo que não seja expressamente autorizado. Inconformados com a proibição constitucional, representantes da tese autoritária do MP têm buscado se firmar no entendimento de que, sendo o promotor de justiça o titular da ação penal, a ele está dirigido o inquérito policial. E sendo a ele dirigida

esquadrões da morte, uma vez que também estes se vendiam como defensores da sociedade contra criminosos protegidos por leis ineficazes. Afrontada e atemorizada pelo crime e desprotegida pela falta ou ineficiência da atuação policial a sociedade busca defensores em outras partes, em lugar de buscar a submissão da polícia ao dever legal. Já tentou isso outras vezes, invocando a atuação das Forças Armadas na luta contra os marginais. Com o resultado, de todos conhecido, de envolvimento de militares com a criminalidade. Fale-se da polícia, das Forças Armadas ou de quem quer que seja, não se pode dizer que tal ou qual órgão seja mais ou menos sujeito à corrupção e à ineficiência. O que importa é reconhecer que inexiste qualquer condição intrínseca ou qualquer vacina que, diferenciando um promotor de justiça e um procurador da República de um delegado da polícia civil ou federal, pudesse imunizar aqueles e não estes contra a corrupção e a sedução do crime. A suposta prevalência ética do Ministério Público em face das outras instituições tem, assim, o DNA do autoritarismo e a marca da deficiência ética de todos que se julgam superiores aos demais. E, no entanto, pode-se afirmar que se a polícia não pode contar com uma vacina contra o crime e contra a corrupção, dispõe de um poderoso antibiótico, se convenientemente aplicado, isto é, se aplicado como manda a Constituição: a ação controladora do Ministério Público. Por isso, a defesa de uma atividade investigativa criminal do Ministério Público traz também a nota antiética da omissão do cumprimento do dever legal e da permissão para que policiais ineficientes, omissos e criminosos sigam violando a lei e afrontando a sociedade. A ética da defesa da sociedade, a ética da defesa dos direitos humanos não pode, por sua vez, ceder à chantagem dos supostos paladinos da luta contra a corrupção, permitindo que tantos militantes comprometidos com a proteção da cidadania e dos direitos humanos se vejam cauda-

tários da defesa da violação da lei em nome da melhor repressão das infrações a ela. Autoritária e abusiva, a atividade policial que o Ministério Público se pretendeu outorgar foi submetida ao crivo de outro Poder, igualmente independente e com funções igualmente definidas constitucionalmente: o Judiciário. A meio caminho da jornada do julgamento interrompido por pedido de vista, desencadeouse a atual campanha em que, a par de se assustar a sociedade, busca-se jogá-la contra os julgadores, atribuindo a estes a possibilidade de superveniência de nulidade do trabalho realizado pelos promotores de justiça e procuradores da República, com abuso de poder. Afirma-se que da decisão do STF que reafirme a autoridade da Constituição decorrerá a impunidade de pessoas acusadas em ações penais decorrentes do suposto poder investigativo do MP. Oculta-se que, assim como as confissões obtidas com emprego de tortura, os atos já eram nulos ao tempo em que foram produzidos, de forma que não é da responsabilidade dos ministros do STF torná-los válidos, cabendo-lhes apenas reconhecer sua imprestabilidade. É hora de acordar! É hora de ver que no mesmo posto onde outrora segmentos sociais pretenderam entronizar violadores da lei travestidos de defensores da sociedade, corre-se o risco de ver outros alçados. O Ministério Público precisa se orgulhar de suas funções constitucionais e exercê-las com completude. Mas esse compromisso com a lei exige dele que à Constituição se subordine, como exige dele que imponha à polícia a mesma subordinação. O Ministério Público merecerá nossa admiração e nosso orgulho se for capaz de exercer seus poderes constitucionais, inclusive o de fazer a polícia investigar, em lugar de se render e buscar assumir funções que não lhe competem. Aton Fon Filho é advogado e integrante da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e da Rede Nacional de Advogados Populares (Renap)


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agenda@brasildefato.com.br

AGENDA CEARÁ 4ª SEMANA SOCIAL BRASILEIRA 26 a 28 de agosto O tema debatido por representantes de entidades e fóruns será “Mutirão por um novo Nordeste que queremos”. Dia 26, o encontro terá início às 19h30. O encerramento está marcado para as 16 h do dia 28. Os assessores serão padre Manfredo Araújo de Oliveira, filósofo, escritor e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC); Alba Pinho de Carvalho, professora do Departamento de Ciências Sociais da UFC; Carlos Américo, professor do Departamento de Teoria Econômica da UFC e Francisca Sena, assistente social e técnica da Cáritas Brasileira Regional Ceará. A Semana é uma promoção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), sendo articulada no Estado pelo Regional Nordeste 1. Os organizadores planejam a realização de uma feira com material produzido pela economia solidária, como artesanato, remédios caseiros e outros, que deverão ser levados pelos próprios participantes, da capital e do interior do Estado. Local: Praia de Iparana, s/n, Caucaia Mais informações: (85) 272-3100, lino@anote.org.br 2ª ASSEMBLÉIA GERAL DA REDMANGLAR 30 de agosto a 3 de setembro Fortaleza sediará a rede latino-americana pela defesa dos ecossistemas marinhos e costeiros e da vida comunitária associada a esses ambientes. Participarão 60 delegados, representantes do Brasil, México, Guatemala, Honduras, El Salvador, Venezuela, Equador, Colômbia, Peru, Panamá, Nicarágua, Belice, Costa Rica, República Dominicana, Cuba, da organização Greenpeace Espanha e Internacional. A Assembléia acontece a cada dois anos e a sua realização no Brasil pretende chamar atenção para os sérios impactos dos projetos de carcinicultura, nos moldes que vêm sendo desenvolvidos no país. A programação inclui visitas tanto às comunidades atingidas pela carcinicultura quanto às que desenvolvem projetos alternativos de geração de renda, a exemplo do turismo comunitário. Acontecerão ainda o lançamento do vídeo “Manguezais e carcinicultura – o verde violado”, realizado pelo Fórum em Defesa da Zona Costeira do Ceará (FDZCC) e pela fundação inglesa EJF; a exposição fotográfica “Povos do Manguezal do Equador”; e o lançamento internacional da cartilha “A saga de Pistolinha, o camarão brasileiro em defesa dos manguezais, contra a febre dos viveiros”. A proteção espiritual da Assembléia será feita pelo pajé Tremembé Luiz Caboclo. Local: Hotel Colonial, Av. Barão de Aracati, 145, Fortaleza Mais informações: (85) 226-2476, (85) 226-4154, www.redmanglar.org

PERNAMBUCO ENCONTRO DE FORMAÇÃO Dia 28 de agosto, das 8h às 17h A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Coordenação Estadual dos Movimentos Sociais de Pernambuco promovem um encontro de formação para discutir a soberania e o desenvolvimento do Brasil. Os temas serão: “Alca e Livre Comércio”, “Dívida Externa e Militarização”. Local: Sede da CNBB, R. Monte Castelo, 176, Boa Vista, Recife Mais informações: (81) 3222-5162 (período da manhã)

ciar as agressões ambientais que afetam os grupos menos favorecidos, dando maior visibilidade à questão ambiental. O evento vai contar com a presença de Reinaldo Barros, presidente do Crea-RJ e terá exposições de Henri Acselrad, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, IPPUR, e coordenador do Mapa. Entre os debatedores estarão Marize de Oliveira Pinto, secretária de Políticas Sociais da CUT-RJ e José Luís Patrola, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem TerraRJ, entre outros. Local: Crea-RJ, R. Buenos Aires, 40, Centro, Rio de Janeiro Mais informações: www.fase.org.br

RIO DE JANEIRO 1° ENCONTRO NACIONAL DE ESCRITORES INDÍGENAS Dias 22 e 23 de setembro O encontro será realizado durante o 6º Salão do Livro Infantil e Juvenil. Iniciativa do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (Inbrapi), organização não-governamental indígena com sede em Brasília e São Paulo. O evento vai discutir temas ligados aos direitos autorais e à defesa dos bens culturais e do patrimônio material e imaterial dos povos indígenas. Local: Galpão das Artes do Museu de Arte Moderna (MAM), Av. Infante Dom Henrique, 85, Parque do Flamengo, Rio de Janeiro Mais informações: www.inbrapi.org.br MAPA DOS CONFLITOS AMBIENTAIS 30 de agosto, 18h30 Lançamento da obra realizada por pesquisadores dedicados a eviden-

MOSTRA – DA QUEDA DO MURO À QUEDA DAS TORRES 10 a 30 de setembro Composta por 35 filmes, a mostra é um grande painel dos últimos 15 anos, partindo da queda do muro de Berlim, iniciada em 9 de novembro de 1989, e indo até a queda das torres do WTC, em 11 de setembro de 2001. Globalização, crise econômica, guerras, consumismo, são alguns dos temas abordados em filmes como os Adeus, Lenin!, Osama e 11’09’’01, o argentino Lugares Comuns e o canadense vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, As Invasões Bárbaras. Local: Centro de Artes da UFF, R. Miguel de Frias 9, Icaraí, Niterói Mais informações: (21) 2629-5021, www.uff.br, cartes@vm.uff.br

RIO GRANDE DO SUL 10° COLÓQUIO NACIONAL E 8° COLÓQUIO INTERNACIO-

NAL DE EDUCAÇÃO POPULAR 1º a 4 de setembro O evento vai debater o tema “Movimentos e Organizações Populares: além da encruzilhada” e tem como público-alvo professores, agentes educacionais, estudantes, lideranças comunitárias e sindicais e representantes das comunidades municipais e regionais. Local: Universidade de Passo Fundo, Campus 1, km 171, BR 285, Passo Fundo Mais informações: (54) 313-2247

SÃO PAULO AULA MAGNA 28 de agosto, 13h30 Como atividade paralela do projeto “450 Pautas - Descobrir São Paulo, Descobrir-se Repórter”, e organizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigo (Abraji) e a ONG Oboré, será realizada uma Aula Magna com o historiador José Luís Del Roio, para falar sobre o Fórum Social Mundial, e com o maestro Martinho Lutero, que discutirá o Fórum Coral Mundial. O projeto “450 Pautas” é voltado a estudantes de jornalismo. Sua proposta é sugerir e realizar matérias relacionadas aos que vivem e trabalham na cidade e que ainda não foram exploradas pela grande imprensa. O curso é coordenado pelos jornalistas Sérgio Gomes e Fred Navarro (Oboré) e Marcelo Soares (Abraji). Local: Oboré, R. Rego Freitas, 454, 8º andar, São Paulo Mais informações: www.obore.com, (11) 3214-3766; www.abraji.org.br, (11) 3214-3766

5ª SEMANA DA ALFABETIZAÇÃO 31 de agosto a 4 de setembro Com o tema “Alfabetização: responsabilidade e inclusão social”, a Alfabetização Solidária (Alfasol) promove este ano a 5ª Semana da Alfabetização. O evento tem como objetivo discutir a alfabetização e a educação de adultos. Nesse contexto, a Alfasol pretende discutir a idéia de que a educação de jovens e adultos é um direito humano e a alfabetização é a primeira etapa do processo de inclusão de significativa parcela da população mundial, debatendo ainda todas as dimensões da responsabilidade social. Local: (1º/09) Blue Tree Convention Plaza, Av. Ibirapuera, 2927, Moema; (3 e 4/09) Teatro Cultura Artística, Rua Nestor Pestana, 196, Centro - São Paulo Mais informações: www.semana.org.br OFICINA - CULTURA DA VIOLÊNCIA X COMUNICAÇÃO PELA DIVERSIDADE Setembro Organizada pelo Centro das Culturas e o Movimento Humanista a oficina vai capacitar guias sociais para que sejam capazes de dar referências humanistas na comunidade em que vivem, com a proposta de discutir e superar a cultura global da violência. Serão abertas duas turmas, uma na zona Central e outra na zona Leste. A contribuição para participar é de R$ 30 – ou R$ 10, para quem for da Zona Leste. Cada participante receberá apostila e materiais. Durante o mês de setembro. Local: Zona Central, R. Vergueiro, 819, sala 6, São Paulo Mais informações: (11) 3209-7024, 9252-5837.

Um projeto social ancorado no neoliberalismo Jesus Ranieri É duro constatar, mais uma vez, que a história social do Brasil é sinônimo de autocracia. Essa assertiva é repetida e demonstrada exemplarmente nesse mais recente livro do professor Ricardo Antunes, obra que reúne uma série de artigos publicados originariamente em jornais e revistas, tanto do Brasil quanto do exterior, nos quais o autor passa em revista os projetos políticos e, conseqüentemente, as políticas econômicas de Fernando Collor de Melo, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, ou seja, o princípio e a vigência atual de um projeto social ancorado, de Collor a Lula, no neoliberalismo. A diagnose é dolorosa: desde o aprofundamento “do modelo produtor para exportação, competitivo ante as economias avançadas, o que supõe a franquia da nossa produção aos capitais monopólicos externos”

(p.09), passando pela subserviência à “ciranda financeira mundial” que acompanhava uma efetiva “desmontagem de tudo ou quase tudo que foi criado desde o varguismo, por meio da ação de décadas de trabalho operário sob comando do capital produtivo estatal – uma vez

que nosso capital privado sempre viveu a reboque do Estado” (p.38), até, nos dias de hoje, sob Lula, a constatação de que o PT, esse partido “que nasceu (...) na luta de classes (e) se converteu no partido que incentiva a luta intraclasse” é o mesmo partido que ousa manter “uma política econômica que aprofunda a sujeição, amplia o desemprego e a informalidade do trabalho, além de estancar a produção em benefício dos capitais financeiros” (p.166), o que se percebe é a definitiva recusa de um projeto que inclua as massas trabalhadoras e se converta, pelo menos, numa minuta fria de projeto nacional. A pungência da situação não está necessariamente no oportunismo e arrivismo dessas gestões, mas na dura constatação de que a via brasileira não encontra potencialidades possíveis num projeto efetivamente aberto “pela esquerda”. Às vezes conciliadora (exceção concêntrica à socialidade autocrática imanente), a situação

de (des)mando político perdura como uma ave de rapina que se nutre da ausência intrínseca de uma postura ofensiva que tome a posição e a condição “de classe” como sua verdadeira “razão de ser”. O que o livro de Antunes sugere, porém e felizmente, é que a conflagração dá sinais de seu vir-a-ser quando o sentido da manipulação não mais omite a ordem da desfaçatez das classes proprietárias, o que, por si só, já o torna leitura instigante e obrigatória. Jesus Ranieri é sociólogo e professor da Universidade Estadual Paulista e Universidade Estadual de Campinas

CONFIRA A desertificação neoliberal no Brasil 171 páginas Editora Auditores Associados


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CULTURA

De 26 de agosto a 1º de setembro de 2004

POVOS INDÍGENAS

Os Suruí querem ser educados em Suruí João Alexandre Peschanski de Cacoal (RO)

Carla Ferrari

Índios lutam para criar uma escola “culturalmente” deles, projeto que sofre resistência do governo estadual

Fabrício Manis

Camila Bassi

E

m um certo momento da história, todos os homens foram devorados pela onça, Mekô. Os ossos, constantemente vigiados, estavam na aldeia das onças. O pai de todos, Palóp, quis criar novamente os homens e mandou o veado, Itchiab, buscar os restos dos homens. Coberto de veneno, para espantar Mekô, o veado entrou na aldeia e roubou os ossos. Na pressa, Itchiab agarrou pedaços de diferentes tipos. Palóp não pôde fazer homens iguais e criou diferentes povos. Os dentes dos não-índios, Iara, foram feitos de ossos e os dos Suruí, de caroços de milho – por isso são mais frágeis. O professor indígena Arildo Suruí, morador da aldeia Lapetanha, em Cacoal, no sul de Rondônia, não acredita em mitos, como o da origem dos povos, mas também não deixa de acreditar. “Não estão certos ou errados. Não são verdade ou mentira. São trechos da memória e da identidade dos Suruí”, comenta. Em sua comunidade, ele tenta resgatar um pouco das histórias, ensinando-as nas salas de aula, mas afirma que é difícil concorrer com um processo que define como invasão cultural. “Ir à igreja, jogar futebol, até mesmo saber português não é certo ou errado. O problema é quando os índios deixam de conhecer suas tradições, se afastam de sua cultura e esquecem sua língua. Aí está errado”, explica. Antes do contato com os não-índios, isto é, até junho de 1969, os Suruí, autodenominados Paíter – que, em seu idioma, significa “nós” ou “a gente” –, eram dezenas de milhares. Hoje, são cerca de mil. As lideranças da população acreditam que muitos índios desapareceram nos intensos fluxos migratórios para Rondônia. Na época, uma criança, Anine Suruí, cacique da aldeia chamada Linha 12, fala desse período como um dos piores de seu povo: “Morriam índios por doenças que não conhecíamos, eram assassinados enquanto caçavam na floresta ou abandonavam as aldeias para tentar a vida no mundo dos não-índios”.

As fotos foram tiradas por integrantes da Associação Ocareté, um grupo de estudantes que realiza trabalho voluntário com populações em estado de vulnerabilidade social, como indígenas, quilombolas e sem-terra, e devem ser expostas em universidades e centros culturais. Durante todo o mês de julho, os estudantes viveram nas aldeias Suruí, realizando oficinas com os índios, principalmente na área de saúde e revitalização cultural. A reportagem do Brasil de Fato acompanhou as atividades.

O LUGAR DO CONTATO Nas aldeias, as moradias indígenas, as malocas, desapareceram. Foram substituídas por casas de madeira ou de alvenaria. Os índios, que antes ouviam os mitos de seu povo, contados pelos anciãos da aldeia, discutem hoje as cenas do próximo capítulo da novela. As festas tradicionais dos Suruí deram lugar a cultos nas igrejas, principalmente batistas, que se instalaram nas próprias aldeias. Para Anine, os Suruí estão cada vez mais deixando de ser um povo, pois incorporam totalmente a cultura que lhes vem de fora. Com o apoio de entidades como a Proteção Ambiental Cacoalense (Paca) e a Associação Ocareté, Anine está construindo uma escola Suruí em sua aldeia. O nome do projeto é Pawentiga, que, traduzido, significa “o lugar do contato”. Das três malocas que devem ser parte da instituição, apenas uma está concluída e os cursos ainda não começaram. “Esse não é um projeto pequeno. Precisa ser pensado e realizado com tempo. É o sonho de uma vida”, salienta o cacique, para quem a escola vai ser um espaço de resgate e de revitalização cultural dos Suruí. Não há previsão para o fim das obras. Na escola, Anine prevê a realização de aulas de Suruí, artesanato, caça, organização de festas e celebrações, culinária e música, além de oficinas sobre o uso de plantas medicinais e a recuperação de mitos e histórias tradicionais. O cacique também pretende criar um museu da cultura Suruí. “Não queremos rivalizar com as escolas pú-

blicas, mas queremos nossa própria escola, onde prevaleça nossa cultura. Se aprendemos apenas do jeito dos não-índios, perdemos parte de nossa identidade”, avalia. O objetivo da escola é atender gratuitamente todas as pessoas das aldeias Suruí, especialmente os jo-

vens, com professores assalariados pela Secretaria de Educação do Governo do Estado de Rondônia (Seduc). Segundo Anine, alguns dos cursos devem ser dados pelas pessoas mais idosas das aldeias, “do mesmo modo como fazíamos antigamente, antes do contato”.

Para receber financiamento regular do governo e ter assegurado seu estatuto de escola, o Pawentiga precisa ter seu programa curricular reconhecido pela Seduc. Em uma visita à Linha 12, um integrante da instituição elogiou o projeto, mas disse que não se tratava de uma escola de verdade; por isso não poderia receber apoio oficial. Segundo conta Anine, o funcionário da Seduc disse que o Pawentiga não atende às exigências para a criação de um local de ensino. E afirmou que poderia pleitear, na secretaria, investimentos para a criação de uma “escola de verdade” – na sua opinião, que siga os critérios oficiais.

Para Anine, construir uma escola de não-índios na aldeia seria intensificar a perda da identidade dos Suruí: “Os índios têm seus próprios meios de passar o conhecimento e esse deveria ser reconhecido e valorizado”. Para saber mais sobre a história e mitos dos Suruí: Nós Paíter: os Suruí de Rondônia(Editora Vozes, 1985) e Vozes da Origem, Estórias sem Escrita: Narrativas dos Índios Suruí de Rondônia (Ática, 1996), escritos pela antropóloga Betty Mindlin, que morou vários anos nas aldeias desta população

SABEDORIA POPULAR

O saci é genuinamente brasileiro, sim senhor Anamárcia Vainsencher da Redação Agora, vamos falar sério. E devolver ao Saci, o que é do Saci, que brinca de dar nó em minhoca só pelo prazer de vê-la se safar; faz trança em rabo de cavalo; treina hipismo montado em tatu. Qual é a bruxa capaz de fazer essa e muitas mais estrepolias, numa boa? Não existe. Uma boa razão para as crianças brasileiras não deixarem que bruxa alguma tome conta do Sacizinho. Dia 22, Dia do Folclore, o Ditão, grande contador de histórias de São Luiz do Paraitinga (SP), ficou desfiando causos no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, na festividade “O Saci de todos os cantos”, evento organizado em parceria com a Sociedade dos Observadores de Saci – Sosaci, e que contou com a participação da Orquestra Filarmô-

nica de Violas, da região de Campinas, regida por Ivan Vilela. Criada em julho de 2003, a Sosaci vem conquistando espaços importantes. Depois da cidade-sede da Sociedade, São Luiz do Paraitinga, município e Estado de São Paulo já aprovaram lei que institui o 31 de outubro como Dia do Saci. Projeto idêntico tramita no Congresso, para criar o Dia Nacional do Saci.

MITOLOGIA NOSSA Xenofobia terceiromundista? Longe disso, como declara o Manifesto do Saci: “A Sosaci não é uma entidade xenófoba. Nem pretende trafegar na contramão da história do mundo globalizado. Mas ela tem orgulho de ser brasileira e, ao lado dos povos irmãos da América Latina, reivindica reciprocidade na relação com as nações hegemônicas do dito Primeiro Mundo. Ela crê que o

repertório mitológico do nosso país é bastante rico, permitindo trocas de mão dupla com os cidadãos da comunidade planetária.” O Brasil possui um dos folclores mais ricos do mundo – danças, festas, comidas, obras de arte, superstições, comemorações e representações por todos os quatro cantos do país. Folclore é um saber expresso pelas festas, mitos, lendas, crendices, artesanatos, costumes, danças, superstições, entre tantas outras formas de manifestação artística de um povo. É simplesmente para não deixar morrer esta riqueza que a Sosaci batalha pela reconquista do imaginário infantil. Por isso, o Saci e “ outros expoentes do imaginário cultural brasileiro – como o Boitatá, a Iara, o Curupira e o Mapinguari” se reuniram e escreveram manifesto para denunciar o pernicioso assédio do

“imperialismo cultural”. Diz o documento: “A cultura popular é um elemento essencial à identidade de um povo. As tentativas insidiosas de apagar do imaginário do povo brasileiro sua cultura, seus mitos, suas lendas, representam a tentativa de destruir a identidade do nosso país. (...) Hoje, como ontem, o Saci apóia (...) qualquer iniciativa no sentido de contestar a arrogância, a prepotência e a destruição de que é portadora a indústria cultural do império.” Mais: “O Saci não se reivindica como símbolo único e incontestável da cultura popular brasileira. O Saci trabalha pela união e pelo entendimento das várias iniciativas culturais que devolvam ao nosso povo a valorização de sua identidade cultural.”Quem quiser assinar o manifesto e/ou obter mais informações, está tudo no endereço www.sosaci.org.


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