Ano 2 • Número 79
R$ 2,00 São Paulo • De 2 a 8 de setembro de 2004
Repúdio a Bush mobiliza Nova York Charles Dharapak/Associated Press/AE
Nas ruas, em protesto contra o presidente dos EUA, milhares de pessoas sitiaram a Convenção do Partido Republicano
Milhares de manifestantes vão às ruas em protesto contra George W. Bush e a convenção nacional republicana perto do Madison Square Garden, em Nova York
Frente às resistências contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), os Estados Unidos querem implantar o mesmo projeto por meio de Tratados de Livre Comércio (TLCs). Hoje, 14 dos 35 países do continente americano negociam ou já fecharam acordos bilaterais com a potência capitalista. “Os TLCs querem tornar o modelo neoliberal irreversível”, avalia o colombiano Enrique Daza. Pág. 10
O governo federal vai melhorar o atendimento às comunidades quilombolas. Em 2004, devem ser gastos R$ 20 milhões em projetos para a população
remanescente de quilombos, sobretudo nas áreas de habitação e saneamento. Os recursos integram o Programa Brasil Quilombo, lançado pelo presidente
Lula, em março, com objetivo de garantir boas condições de vida às famílias, respeitando suas diferenças culturais. Pág. 5
Neoliberalismo é uma farsa, afirma sociólogo O neoliberalismo é uma farsa, diz o sociólogo Theotônio dos Santos. Esta doutrina, disseminada pelas elites, conseguiu cooptar governos tidos como de esquerda e seu imenso poder de corrupção angariou apoio da mídia, da academia e de uma casta da burguesia que se contenta em ser intermediária de seus negócios. Pág. 8
Segunda maior área rica em diversidade biológica do Brasil, o Cerrado agoniza. E o agressor tem nome certo: o agronegócio. O alerta parte de diversas organizações que promovem o Grito do Cerrado, iniciativa que pretende mobilizar a sociedade e o poder público para a importância de se preservar a natureza e defender a sobrevivência dos povos que vivem na área. Pág. 4
Grito agita o 7 de Setembro em todo o país
Orçamento para habitação é insuficiente
PROTESTO – Mais de mil pessoas de todo o país foram a Brasília acompanhar a sessão da Câmara dos Deputados que homenageou os 25 anos da promulgação da Lei da Anistia; ativistas lembraram dos que não foram beneficiados Marcio Baraldi
O Programa de Crédito Solidário, para a habitação popular, irá atender apenas um quinto dos projetos enviados pelas cooperativas. Movimentos por moradia aprovam modelo construído em parceria com entidades populares, mas reivindicam continuidade e ampliação da verba. Outros projetos habitacionais não saíram da promessa e estão parados. Pág. 6
Agronegócio ameaça a vida no Cerrado
Saem recursos para quilombolas Celso Junior/AE
No varejo, EUA tentam impor Alca
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sentimento de rejeição dos estadunidenses ao presidente George W. Bush se materializou em gigantesca manifestação, como não se via desde os anos 80, durante a Convenção do Partido Republicano – que deve ratificar a candidatura Bush à reeleição. Nos dias 28 e 29 de agosto, diversos atos públicos e uma marcha de meio milhão de pessoas vindas de todo o país paralisaram a cidade de Nova York. Os republicanos foram sitiados no local da convenção e, na tentativa de conter os protestos, a polícia prendeu mais de 500 pessoas, entre elas os organizadores da mobilização, que pretendiam dar voz de prisão a Bush. Em uma segunda marcha, considerada ilegal, houve comício diante da sede das Nações Unidas. Nas faixas e palavras de ordem, o tom foi: “Tirem o verdadeiro terrorista da Casa Branca”, “Eleger um louco termina em loucura”, “Bush é uma arma de destruição maciça”, “Resgate os EUA, derrote Bush”, “Bush mente, quem morre?” Pág. 9
E mais: CONQUISTA – Depois de quase três anos de luta na Justiça, assentados da Fazenda Ypiranga, em Ponto Belo (ES), comemoram vitória no 2° Tribunal Regional Federal do Rio de Janeiro, que lhes deu parecer favorável. Pág. 4 ALTOS IMPOSTOS – Equipe econômica de Lula comemora a arrecadação nos primeiros sete meses de 2004: as receitas atingiram quase R$ 182 bilhões, num salto de 16,3% em relação ao mesmo período do ano passado. Pág. 7 AIDS NA ÁFRICA – Não se pode combater a Aids no continente apenas com preservativos. É o que defende o sociólogo brasileiro Acácio Sidinei Almeida Santos, para quem é preciso também levar em conta as crenças tradicionais dos povos africanos. Pág. 12
O Dia da Pátria, 7 de Setembro, mais uma vez vai ser em defesa da soberania do Brasil, e não apenas da mesmice das paradas militares. É essa a proposta da décima edição do Grito dos Excluídos, promovido pelas pastorais sociais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e dezenas de entidades e movimentos sociais. O lema “Brasil: mudança pra valer, o povo faz acontecer” vai embalar as atividades em 2 mil localidades do país. Págs. 2 e 3
Na Venezuela, prioridade para reforma agrária Pág. 11
Paraná vai suprir França com soja não-transgênica Pág. 13
Mercado das pulgas, novidade em São Paulo Pág. 16
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De 2 a 8 de setembro de 2004
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Bernardete Toneto, 5555 Marilene Felinto, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Agê, Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, 5555 Natália Forcat, Nathan, Novaes, Ohi • Editor de Arte: Valter Oliveira Silva • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Dafne Melo e Fernanda Campagnucci 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
NOSSA OPINIÃO
Um grito dos excluídos
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á uma tradição nas nossas escolas e colégios de sempre aproveitarmos a Semana da Pátria como uma semana de debates e de reflexão sobre os problemas da sociedade brasileira. Em outros tempos, havia também mais debates nos quartéis, nas universidades e na imprensa em geral. Agora, parece que nesses espaços já não há mais tanta preocupação com a soberania do país. E a data tem passado de forma alienada em muitos setores sociais, mais preocupados com o feriado, com o descanso. Talvez isso seja fruto da total subordinação ideológica a que se submeteram as classes dominantes brasileiras, que já não vêem sentido falar em nação, valores nacionais, cultura nacional. Para elas, tudo deve ser copiado. Imitado. É a recolonização política, econômica, cultural e ideológica de nossas elites. Mas, por outro lado, já se transformou numa tradição entre as classes populares a realização, no dia 7 de Setembro, do Grito dos Excluídos. Há dez anos, vários movimentos sociais, aglutinados em torno das pastorais sociais da CNBB realizam uma semana de conscientização, de debates sobre os problemas de nossa sociedade, culminando com passeatas e mobilizações no dia 7 de Setembro, em centenas de cidades. Em algumas localidades, os manifestantes se so-
mam às atividades oficiais. Mais do que nunca nosso país precisa de um grito de todos os excluídos. Embora a expressão excluídos não esteja bem colocada do ponto de vista sociológico, porque, de qualquer forma, todos participamos de uma mesma sociedade, ela é, acima de tudo, uma expressão política. De indignação. De revolta. De protesto. De denúncia. A sociedade brasileira está cada vez mais dividida. De um lado, os 10% a 15% de brasileiros que detêm a maior parte da renda e da riqueza, vivem como no primeiro mundo. No meio, uma classe média, empobrecida, assalariada. Na pirâmide, uma imensa maioria, de mais de 50% da população que passa todo tipo de necessidades. Que não tem renda, não tem trabalho, não tem casa, não tem terra, não tem acesso aos direitos fundamentais. Não tem acesso aos serviços públicos da educação, saúde. Estão excluídos da festa capitalista que privilegia sempre, e apenas, uma minoria. Como explicou em recente livro um dos idealizadores do grito, o bispo de Jales, dom Demetrio Valentini, as manifestações do Grito dos Excluídos, sempre foram “um grito de denúncia e de convocação”. Ou seja, não basta denunciar, berrar contra as injustiças. É preciso debater as causas das crescentes
desigualdades sociais de nossa sociedade e, sobretudo, organizar-se para combatê-los. Daí o sentido de convocação. Apesar do povo brasileiro ter votado contra o neoliberalismo, o governo Lula ainda não conseguiu implementar uma política econômica que representasse uma mudança, com distribuição de renda, garantia de trabalho, valorização dos salários, e universalização dos serviços públicos. As grandes corporações exportadoras, as transnacionais, o capital estrangeiro e os bancos ainda são os principais privilegiados da política econômica. É preciso mudar, se queremos melhorar a vida de todo povo brasileiro. E, de novo, a coordenação do grito dos excluídos acertou na palavra de ordem: “Para mudar para valer, só o povo faz acontecer!” O jornal Brasil de Fato tem se esforçado para estimular um intenso debate, em todos os setores sociais, sobre a necessidade de um novo projeto de desenvolvimento. Por isso, comungamos com todos os companheiros que participam da articulação do Grito dos Excluídos, em seu esforço de debater o Brasil e seus problemas na Semana da Pátria. E, oxalá, milhões de brasileiros se somem nas manifestações do Grito dos Excluídos, dia 7 de Setembro, em todo país. OHI
FALA ZÉ
CRÔNICA CARTA AOS LEITORES
Em defesa da imprensa independente São Paulo, 1º de setembro de 2004 Caros amigos e amigas Durante todo o ano de 2002, intelectuais, artistas, jornalistas e representantes de movimentos sociais somaram forças em nome de um projeto político e editorial. A idéia era construir um novo jornal que ajudasse a veicular informações não divulgadas ou noticiadas de forma deturpada pela mídia tradicional. A publicação também teria a missão de contribuir para a formação da militância social e da opinião pública em geral. Assim nasceu o Brasil de Fato. Seu ato de lançamento se transformou numa grande festa com a presença de mais de 7 mil militantes sociais, durante o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, em 2003. Para tocar o jornal, foi montada uma equipe de jornalistas comprometidos com o projeto. E todos fomos à luta. Nos últimos dezoito meses, o jornal sobreviveu graças a uma grande disposição de transpor os obstáculos que qualquer veículo da imprensa independente enfrenta, incluindo boicotes de todo tipo. Apesar de tudo, estamos resistindo!
Mas, neste momento, estamos precisando de apoio extra para driblar as dificuldades resultantes da concentração do poder econômico e do aumento dos custos de produção do jornal. O Brasil de Fato depende da valiosa contribuição de seus assinantes. Só assim vamos manter um veículo de imprensa independente e de esquerda. Mesmo elogiado por todos, tanto por sua linguagem quanto por sua linha editorial, o Brasil de Fato precisa aumentar o número de assinaturas para seguir adiante. Por isso, apelamos para sua consciência e seu compromisso pessoal. Se você ainda não é assinante, faça a sua assinatura. Se é assinante, conquiste mais uma assinatura com um(a) amigo(a). Se você é vinculado(a) a algum sindicato ou movimento, coloque nosso pedido na pauta da reunião da diretoria, para que a instituição faça assinaturas coletivas. Contamos com seu apoio. Ou melhor: a única alternativa que nos resta é o seu apoio. Atenciosamente Conselho Editorial do Brasil de Fato
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Dom Hélder Câmara, o santo rebelde Marcelo Barros Este é o título do novo filme da cineasta Érika Bauer, premiado no recente Festival de Fortaleza e que em breve estará nas telas do Brasil. Até dezembro, grupos religiosos de várias tradições e pessoas comprometidas com a educação para a paz organizam em cidades do Brasil homenagens ao bispo dom Hélder, no quinto aniversário do seu falecimento. A missão de uma pessoa religiosa é ser testemunha da presença divina e do amor no mundo. Infelizmente, essa não é sempre a forma como líderes religiosos e fiéis compreendem a fé. No mundo atual, um movimento que tem crescido muito é o fundamentalismo religioso, que em diversos credos propõe uma interpretação rígida e dogmática da fé. Na própria igreja católica, hoje em dia, nunca um homem como dom Hélder seria nomeado bispo. Até como padre ele teria dificuldade de ser aceito. Mas, para os grupos mais comprometidos com o diálogo e a paz, dom Hélder é referência de novo ânimo no caminho. Em 1969, no Recife, dom Hélder me ordenou padre e me escolheu para ajudá-lo no diálogo com outras tradições religiosas. Em 1999, vinte dias antes de sua morte, o visitei e lhe pedi uma palavra. Com esforço, sussurrou: “Não deixe cair a profecia”.
É bom lembrar alguns aspectos de sua profecia: 1 – Qualquer ser humano só pode ser verdadeiramente feliz no dia em que o mundo for um só e justo para todos. Dom Hélder dizia: “Nenhuma felicidade pode basear-se na infelicidade dos outros, porque ofenderia o sentido de justiça que diz respeito a todos (...) Deus deu ao ser humano o poder e a responsabilidade de não se conformar com o sofrimento e a dor do inocente, mas de combater o mal e a injustiça. Esta é a tarefa de todos nós”. 2 – Podemos nos constituir como “minorias abraâmicas”. O mundo não mudará pela ação isolada de líderes esclarecidos e sim pelo empenho comunitário de grupos de resistência e de profecia que se consagrem a transformar o mundo a partir de uma profunda convicção de fé no ser humano e na vida. Dom Hélder chamava esses grupos de minorias abraâmicas, por serem fecundos fermentos de uma humanidade nova. 3 – O compromisso com a paz e a não violência. A transformação do mundo começa pelo compromisso com a paz e por um método que elimine qualquer violência em nossa forma de ser e agir. Dom Hélder vivia isso profundamente. Diante de qualquer violência contra um pobre, ficava revoltado e tomava posições
até perigosas para si mesmo. Sempre apoiou e defendeu os lavradores sem-terra que continuam incompreendidos em sua causa. 4 – O compromisso com o macroecumenismo é mais do que o diálogo. Busca a comunhão das religiões e das culturas na construção da justiça e da paz. Dom Hélder vivia isso. Desde os anos 60, era amigo de sacerdotes e sacerdotisas da religião dos Orixás e defendia publicamente as religiões afro-descendentes. Em 1970, participou da Conferência das Religiões para a Paz em Kyoto no Japão. Ali, convocou representantes das diversas tradições espirituais a dar juntos testemunho do serviço aos excluídos. É preciso nos sentir convocados/ as de novo para esse mutirão de esperança e solidariedade tão urgente. Em 1994, dom Hélder mandava esta mensagem ao movimento italiano Mani Tesi (Mãos Estendidas): “…não estamos sós. Por isso, não aceito nunca a resignação nem o desespero. Um dia, a fome será vencida e haverá paz para todos. A última palavra neste mundo não pode ser a morte mas a vida! Nunca mais pode ser o ódio, mas o amor!”.
Marcelo Barros é monge beneditino e teólogo da libertação
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De 2 a 8 de setembro de 2004
NACIONAL MOBILIZAÇÕES
Grito vem com mais força este ano Com novidades como peças de teatro e concurso de redação, a manifestação vai atingir 2 mil localidades Fernanda Campagnucci Pereira da Redação
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Grito ainda é como os excluídos, mas estamos ganhando espaço”. É assim que Ari Alberti, da secretaria nacional do Grito dos Excluídos, descreve o movimento que acontece, em sua 10ª edição, no dia 7 de Setembro. Este ano, o Grito – que tem como símbolo a água e, como lema, “Brasil: mudança pra valer, o povo faz acontecer” – vai promover atos públicos, caminhadas, romarias, cursos, seminários, oficinas e apresentações de teatro em aproximadamente 2 mil localidades em todo o país. Otimista, Alberti avalia que o movimento ganhou força em relação ao ano passado, quando mobilizou cerca de 2 milhões de participantes: “As pessoas parecem ter compreendido melhor que, ou a sociedade se mobiliza e assume como protagonista, ou o Brasil não muda”. Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, presidente da Central de Movimentos Populares, também vê novo fôlego no Grito deste ano. Segundo Gegê, no ano passado havia a falsa ilusão de que o novo governo solucionaria sozinho os problemas sociais. “Parece que as pessoas perceberam que isso não é verdade”, conclui. Em João Pessoa (PB), por exemplo, o Grito acontece dia 3 com uma grande caminhada pelo Centro da cidade. A manifestação será dividida em três blocos temáticos: água, política econômica e desemprego. Haverá lavagem da escadaria da Assembléia Legislativa, do Palácio do Governo e do Poder Judiciário. Em Recife (PE), no dia 4, serão lavadas as escadarias do Palácio da Justiça. A Romaria a Aparecida do Norte (SP), cidade símbolo do Grito, sai de Registro, também em São Paulo, dia 31 de agosto. Existem algumas novidades nas mobilizações deste ano: o Teatro dos Oprimidos vai circular, durante as atividades antes do Grito, pelas
2004 - Brasil: mudança pra valer, o povo faz acontecer
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2001 - Por amor a essa pátria Brasil 2002 - Soberania não se negocia 2003 - Tirem as mãos... O Brasil é nosso chão
O Grito dos Excluídos nasceu no Brasil, em 1995, como continuidade ao debate da Campanha da Fraternidade, que naquele ano tratou do tema dos excluídos. A data de 7 de Setembro, Dia da Independência, foi escolhida como marco das manifestações por todo o país porque os movimentos sociais entendem que o Brasil não é um país independente, uma vez que não há trabalho para todos, educação e saúde de qualidade e soberania. periferias de Pernambuco. Have ainda uma peça de Teatro Popul em Belém. Nas escolas, os estudantes farão concursos de redação com a temática do Grito para rediscutir a soberania nacional, aprofundando os debates sobre educação. Nos dias 2 e 3, será lançado o livro Grito dos Excluídos – 10 anos de Luta
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em várias cidades (veja resenha da obra na página 15). Já, em Aparecida do Norte (SP), o Grito dos Excluídos iniciará um debate sobre a necessidade de um movimento sobre o controle de capi-
tais. “Estamos preparando um jogral contando a problemática. Queremos ampliar essa discussão sobre o tema, que já vem sendo discutida. Vamos falar sobre a problemática dos capitais internacionais especulativos e os
problemas que trazem ao país, como as elevadas taxas de juros”, apresenta Luiz Bassegio, da Secretaria do Grito dos Excluídos Continental. A idéia é envolver toda a sociedade em torno de uma mobilização pelo controle dos capitais financeiros. “Há países que fizeram isso, como a China e a Malásia, e tiveram sucesso. Hoje, têm taxa de crescimento superior a 5%”, aponta Bassegio.
DIREITOS HUMANOS
Encontro discute ameaças a defensores na AL da Redação O paranaense Elemar do Nascimento Cezimbra, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Paraná, foi preso sem justa causa em maio de 2004, fato reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que concedeu habeas corpus e permitiu a sua libertação. Uma bomba molotov foi encontrada na sede da Casa da Mulher por integrantes da Organização Feminina Popular, em Barrancabermeja, Colômbia. O atentado seria uma resposta à campanha contra a violência doméstica, às vésperas do dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Na Guatemala, 25 líderes camponeses foram assassinados
entre os anos 2000 e 2004. Para discutir esses e outros atentados aos direitos humanos, em particular contra militantes de organizações defensoras desses direitos, foi realizada em São Paulo, de 25 a 27 de agosto, a 3a. Consulta Latino-Americana de Defensores e Defensoras dos Direitos Humanos, com a presença de 87 delegados de vinte países do continente, mais observadores da África, da Ásia e da Europa, além de representantes da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA). O encontro, criado em 2001 e patrocinado pela Anistia Internacional, entre outras entidades, tirou uma declaração final, em que os
participantes se propõem a “formular políticas ativas para deter as contínuas agressões e violações aos direitos humanos em geral. Iniciar campanhas para enfrentar não só as formas habituais de perseguição que sofram os defensores e defensoras dos direitos humanos, mas também para combater as novas tendências, em particular a criminalização da manifestação e do protesto social e as campanhas do desprestigio contra o ativismo social e a defesa dos direitos humanos”. “As ameaças aos defensores de direitos humanos estão aumentando em todos os países. Muitos Estados não entendem que um governo democrático também pode violar esses direitos. É fundamental que a
PERNAMBUCO
CPT critica governo federal da Redação Pernambuco foi sede de dois encontros da esquerda católica na semana de 23 a 27 de agosto: a 7ª Jornada Teológica Dom Hélder Câmara, organizada pelo Grupo de Leigos Católicos Igreja Nova, e a 12ª Assembléia Regional Nordeste da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Estiveram presentes dom Tomáz Balduíno, frei Betto e o padre José Comblin. Quanto à CPT, a assembléia reuniu dirigentes de Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Rio Grande do
Norte, para traçar prioridades políticas para os próximos três anos. O presidente da CPT, dom Tomáz Balduíno, fez críticas ao governo federal: “Não estamos contentes com o governo Lula, pois esperávamos mudança. Quem continua mandando no Brasil é o capital e a lógica neoliberal”. O professor de Geografia da USP Ariovaldo Umbelino discutiu a condução da reforma agrária no país: “Temos a triste expectativa de não cumprirmos as metas mínimas estabelecidas no rebaixado Plano Nacional de Reforma Agrária apro-
vado pelo próprio governo”. Com o tema “Dom Hélder e a Igreja que Jesus quer: pobre, participativa, libertadora e ecumênica”, a Jornada Teológica teve mais de mil participantes. No dia 27 de agosto, houve missa pelos cinco anos de falecimento de dom Hélder. Em palestra sobre o ideal de uma Igreja pobre, frei Betto falou do seu trabalho junto ao Fome Zero: “Não queremos dar nada aos pobres. Queremos que eles tenham os mesmos direitos que nós. Essa tem que ser a nossa luta. A luta por justiça”.
sociedade dê uma resposta a isso”, diz Santiago Cantón, secretário executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A Comissão deve concluir este ano um informe somente sobre a situação dos defensores no continente. Kerrie Howard, representante da Anistia Internacional, que avalia a situação dos defensores e defensoras de Direitos Humanos na América Latina e no Caribe há mais de dez anos, lembra que o tema dos ativistas foi um dos primeiros que as entidades brasileiras colocaram para o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva. “O governo respondeu com um plano cujos passos dados para aplicá-lo desconhecemos até hoje. Por isso é muito importante que cobremos dos governos as obrigações estabelecidas pela declaração das Nações Unidas sobre os defensores; que eles comecem a desenhar um plano para aplicar esses princípios. Podem começar, por exemplo, pelo combate à impunidade e pela investigação das agressões e ameaças”, aconselha. (Com informações da Agência Carta Maior, www.agenciacartami or.uol.com.br)
TRABALHO ESCRAVO
Acidente revela crime no Pará Juliana Cézar Nunes de Brasília (DF) Quatro trabalhadores morreram, dia 29 de agosto, em um acidente de caminhão no município de Rondon, no Pará. Eles faziam parte de um grupo mantido em regime de escravidão em três carvoarias. De acordo com a assessoria do Ministério do Trabalho e Emprego, o aliciador dos trabalhadores, Sérgio Venturini, tentou retirar os carvoeiros do local antes da chegada do Grupo Especial de Fiscalização Móvel. O caminhão contratado por Venturini capotou com 14 trabalhadores.
E o Grupo Especial conseguiu libertar 59 carvoeiros. A equipe, composta por auditores-fiscais do trabalho, policiais federais e um procurador do trabalho, permanece na região providenciando o levantamento das indenizações trabalhistas. Um levantamento da Secretaria de Inspeção do Trabalho e da Comissão Pastoral da Terra mostra que o Pará foi o Estado com o maior número de trabalhadores escravos libertados entre 1995 e 2003. Cerca de 4,6 mil pessoas foram encontradas submetidas a essa condição. (Agência Brasil, www.radiobras.gov.br)
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Espelho da mídia Dioclécio Luz NET será mexicana
A NET, transmissora de TV a cabo, que pertence à Globo, está sendo vendida à mexicana Telmex. Isso porque a Globo não conseguiu dinheiro nosso (via BNDES) para tapar sua dívida de R$ 1,4 bilhão. Ainda bem que Carlos Lessa, presidente do BNDES, não aceitou bancar o prejuízo deles. Como a NET só passa coisa estrangeira, e não dá emprego pra ninguém, não fará muita diferença para nós. Boicote a filmes estadunidenses
Em depoimento ao Conselho de Comunicação Social, o cineasta Noilton Nones pediu que a população brasileira boicote as emissoras de televisão que apresentam filmes produzidos nos Estados Unidos. Para Noilton, a televisão só dá acesso a produções ruins. Ele disse que é preciso despertar a consciência da população para valorizar o cinema nacional. Grécia deixou de existir
Com o fim das Olimpíadas, a Grécia – sua música, seu povo, sua cultura – deixa de existir para a grande mídia. A partir de agora lá não existe música, dança, fala, povo, gente... Voltamos à ignorância promovida pela indústria cultural e pelo jornalismo servil aos Estados Unidos. Alcântara: aniversário da sabotagem
Passou praticamente em branco o aniversário da sabotagem à base de Alcântara, dia 22 de agosto, quando 22 pessoas morreram. Por que nenhum veículo da imprensa ousa investigar isso? Talvez porque o principal suspeito da sabotagem seja os Estados Unidos. Com a Anatel não se bole
O governo apresentou um projeto para mudar as agências reguladoras. O mercado, porém, já manifestou sua posição contrária, em especial quanto à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). As agências foram impostas pelo FMI, por isso são tão amadas pelas empresas. Para elas, a Anatel é uma mãe. E com mãe não se bole. Poderoso do cinema ameaça Brasil
Steve Solot, representante das grandes empresas do cinema dos EUA no Brasil, não gostou do projeto que cria uma agência para o cinema e a TV (a Ancinav) porque cobra taxas justas pela distribuição de filmes. Como todo cowboy, acusou o Brasil de pirata, e ameaçou: se o projeto atrapalhar seu negócios no Brasil, os EUA vão impor subsídios para os produtos brasileiros. O cinema estadunidense ocupa 95% das telas do Brasil. E nós somos os piratas... Preço do ingresso pode aumentar
Os poderosos do cinema ameaçam aumentar o preço dos ingressos – que já é caro – se vingar a proposta da Ancinav. Para o Ministério da Cultura, isso é terrorismo. O projeto prevê que 10% do valor do ingresso seja direcionado para um fundo aplicado na criação de novas salas de cinema, independentes. Hoje são 1.600 no Brasil. Mas nada que seja independente é bom para os EUA. Gil e a Ancinav
É preciso reconhecer: Gilberto Gil foi corajoso em defender o cinema nacional diante dos tubarões nacionais e internacionais dispostos a comer tudo e todos. Tirando a turma da Globofilmes e as majors (representantes das empresas de cinema dos EUA no Brasil), os cineastas reconhecem que nenhum outro governo deu tanto apoio ao cinema nacional.
NACIONAL AMBIENTE
Ato tenta evitar morte do Cerrado Ambientalistas fazem o Grito do Cerrado e denunciam o impacto do agronegócio na região Luís Brasilino da Redação
B
rasília (DF) será palco, dias 9 e 10, do Grito do Cerrado, manifestação para defender essa região vital não só para seus moradores, como também para todos os brasileiros. Considerado o segundo maior bioma do Brasil, o Cerrado sofreu muita destruição nos últimos anos e os participantes da mobilização esperam sensibilizar a sociedade e o poder público para a importância de se preservar a biodiversidade e a natureza da área. Em 2003, a ministra do Meio Ambiente Marina Silva criou um Grupo de Trabalho (GT) específico para discutir os problemas do Cerrado. O grupo foi encarregado de criar um programa de conservação da região que vai ser entregue ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), dia 10, um dia antes da celebração do Dia Nacional do Cerrado (11). Fernando Lima, da Fundação Pró-Natureza (Funatura) e da Rede Cerrado (as principais organizadoras do evento), e um dos coordenadores do Grito do Cerrado, explica que os eixos fundamentais da manifestação são biodiversidade e água. Até o momento, as principais recomendações do GT são a alocação de recursos expressivos para o programa que será criado; uma legislação específica para o Cerrado; projetos eficientes de conservação da água; aumento da fiscalização para conter a extração de carvão vegetal utilizado por siderúrgicas mineiras; o fim dos projetos de grandes barragens nos rios que nascem na região; e a criação de um sistema de crédito, favorecendo empreendimentos ambientalmente sustentáveis como a agroecologia, o agroextrativismo (coleta de frutos, plantas medicinais etc.) e a piscicultura controlada.
DESTRUIÇÃO DO PATRIMÔNIO “O impacto mais destruidor é causado pelo agronegócio – especificamente a substituição de mata por plantações de soja”, revela Lima. O bioma do Cerrado é um dos mais ameaçados do mundo, sendo que, dos mais de 2 milhões Bioma – Conjunto de seres vivos de uma determinada área. O Brasil tem seis biomas: Floresta Amazônica, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pantanal e Zonas Costeiras. Biodiversidade – Diversidade de espécies biológicas. Rede Cerrado – Organização que engloba 72 entidades defensoras do Cerrado, entre ONGs, sindicatos, associações etc.
de hectares de vegetação nativa, restam apenas 20% e a expansão da atividade agropecuária avança cada vez mais sobre as áreas que sobraram. Estudos realizados por pesquisadores do Programa Cerrado da Conservation International do Brasil indicam que o bioma corre o risco de sumir, até 2030. Dos 204 milhões de hectares originais da região, 57% já foram completamente destruídos e a metade das áreas remanescentes está bastante alterada,
podendo não mais servir aos propósitos de conservação da biodiversidade (veja o quadro ao lado). O desmatamento chega a 1,5% ou 3 milhões de hectares por ano, o equivalente a 2,6 campos de futebol por minuto. A situação piora quando se analisa a complexidade da região. Segundo Lima, o Cerrado é a caixad’água do Brasil, ou seja, o berço dos principais rios da bacia hidrográfica Amazônica, da Prata e do São Francisco. Além disso, sua fauna e sua flora são extremamente ricas por conta da fronteira com outros importantes biomas (a Amazônia ao norte; a Caatinga a nordeste, o Pantanal a sudoeste e a Mata Atlântica a sudeste). Existem mais de 10 mil espécies vegetais (sendo 4.400 exclusivas da região), uma imensa variedade de vertebrados terrestres e aquáticos e um elevado número de invertebrados.
conta Lima. A expectativa é de que cerca de 10 mil pessoas apareçam, nos dois dias. “A manifestação vai trazer indignação às pessoas. Não é só água e biodiversidade. A destruição do Cerrado também acarreta perda da paisagem. Quem vai querer andar quilômetros e quilômetros vendo só plantação de soja para tudo quanto é lado? Ficaremos, ainda, sem o dinheiro do turismo”, afirma. A outra meta da mobilização é acordar o Congresso Nacional para aprovar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 115/95, que define o Cerrado como Patrimônio Nacional. Amazônia, Mata Atlântica, Pantanal e Zona Costeira já adquiriram esse status, fator que vem contribuindo para sua preservação. O projeto tramita na Câmara dos Deputados há quase dez anos e, até o momento, só foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da casa. Atualmente, está em discussão em uma comissão especial, mas o processo continua muito lento.
OS ALVOS DA MOBILIZAÇÃO “O Grito do Cerrado quer alertar a sociedade para essa situação”,
GRITO DO CERRADO Durante os intervalos entre as apresentações serão feitos pronunciamentos sobre o Cerrado e intervenções poéticas DIA 9
HORÁRIO 10h
Das 10h às 20h 10
10h
15h
17h 18h30 20h 21h 22h 23h30 meia-noite
ATIVIDADE Mesa-redonda sobre o Projeto de Emenda Constitucional do Cerrado Mostra de produtos sustentáveis da Rede Cerrado Entrega dos resultados do Grupo de Trabalho Cerrado à ministra do Meio Ambiente Concentração para manifestação pública Participação: Mamulengo Mulungu; Grupo Bagagem de bonecos gigantes; pernas de pau; trupe de palhaços Início da manifestação pública Participação: Flor de Pequi Jairo Mozart e Banda Show Canto do Cerrado Congo de Catralão - Dança Regional Roberto Correa - Viola Dança Indígena Brazucas – Reagee Banda Pé de Cerrado – Mistura de Ritmos Grito do Cerrado
LOCAL Auditório do Anexo 4 da Câmara dos Deputados Área externa, próxima ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) MMA
Gramado da Esplanada dos Ministérios
Palco, na área externa próxima ao MMA Idem Idem Idem Idem Idem Idem
QUESTÃO AGRÁRIA
Sem-terra conquistam assentamento da Redação O 2° Tribunal Regional Federal do Rio de Janeiro deu decisão favorável, dia 26 de agosto, à permanência do assentamento Otaviano Rodrigues de Carvalho, na Fazenda Ypiranga, município de Ponto Belo, Espírito Santo. O impasse jurídico entre os sem-terra e o proprietário da área se estendia há quase três anos. Com a decisão, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) deve fazer mais uma vistoria na área, para avaliar as benfeitorias construídas na fazenda, antes da imissão de posse para os sem-terra. Além disso, a indenização ao proprietário será em dinheiro à vista, e não por Títulos da Dívida Agrária (TDAs), usados na maioria dos casos de áreas destinadas à reforma agrária. O assentamento foi criado em 21 de abril de 2002, quando o Incra desapropriou a área de 1.132 hectares após vistorias que constataram sua improdutividade. Noventa e duas famílias foram assentadas no local.
O proprietário entrou com pedido de reintegração de posse e, mais tarde, recorreu da decisão de permanência dos sem-terra. Desde então, sob clima de tensão, os proprietários continuam dentro da área, junto aos trabalhadores rurais que estruturavam o assentamento e sua produção.
Segundo José Brito Ribeiro, integrante da direção estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a vitória representa uma dupla conquista: “primeiro, a consolidação do assentamento como resultado de uma intensa luta desses trabalhadores
rurais. Depois vem a simbologia dessa conquista para o MST. Esta é a região de maior concentração fundiária do Estado e um local com história de intensos conflitos. Dois companheiros já foram assassinados nos ataques dos latifundiários”, explicou Ribeiro.
MST anuncia retomada das ações no Rio Grande do Sul da Redação Dia 30 de agosto, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) lançou um anúncio à sociedade gaúcha denunciando o descumprimento, por parte dos governos federal e estadual, de todos os acordos e promessas de reforma agrária no Estado. No documento, o MST anunciou a retomada das ações e o início, dia 31, de uma marcha, que saiu do acampamento localizado no km 139 da BR 386 em Sarandi, com destino à Fazenda
Guerra, no município de Coqueiros do Sul. Segundo a direção do movimento, os trabalhadores rurais vão ocupar a área novamente. No Rio Grande do Sul existem 2.500 famílias vivendo em acampamentos, algumas à espera de terra há mais de cinco anos. Segundo o MST, apenas 52 famílias foram assentadas no Estado nos 20 meses do governo Lula. Neste ano, apesar da promessa de assentamento para duas mil famílias, ninguém recebeu terra. O movimento informa que durante todo esse período procurou
dialogar com o governo. Várias audiências foram realizadas com o ministro Miguel Rossetto, do Desenvolvimento Agrário (MDA), além de reuniões sistemáticas com o secretário executivo do ministério e a superintendência estadual do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). No entanto, segundo integrantes do MST, em cada uma das reuniões era criada uma nova expectativa e nada do que era acertado, inclusive os acordos judiciais, foi cumprido pelo governo.
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De 2 a 8 de setembro de 2004
NACIONAL REMANESCENTES DE QUILOMBOS
Governo libera verbas para benefícios O
governo federal investe na melhoria do atendimento às comunidades quilombolas em todo o país. Este ano devem ser gastos R$ 20 milhões em projetos para essa população, principalmente nas áreas de habitação e saneamento. Os recursos fazem parte do Programa Brasil Quilombo, lançado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em março. Nessa política, o governo elegeu como uma de suas prioridades sociais a resolução dos problemas da população quilombola, com o objetivo de garantir boas condições de vida às famílias, respeitando suas diferenças culturais. Os quilombos são comunidades negras rurais onde os moradores têm costumes, tradições e condições sociais específicas. Foram formados durante o período colonial, a partir das fugas de escravos. De acordo com a Constituição Federal, é obrigação do Estado garantir a preservação dessas comunidades. Com parte dos recursos, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), instituição ligada ao Ministério da Saúde que tem como responsabilidade garantir o atendimento das populações remanescentes de quilombos, assinou convênios para a construção de 400 casas e 1.200 unidades sanitárias (banheiro com pia, vaso sanitário e chuveiro) na região dos Kalunga, em Goiás. Nesse Estado, segundo a Funasa, existe a maior concentração de remanescentes de quilombos do país. De acordo com um levantamento realizado na comunidade em 1996, 6 mil Kalunga vivem em Goiás. Na comunidade Limoeiro e Ema, em Terezina de Goiás, as obras já começaram e devem favorecer 96 famílias que vivem no local. Em parceria com o Ministério das Cidades, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e a Fundação Universitária de Brasília, as comunidades nos municípios de Cavalcante e Monte Alegre, também em Goiás, devem receber recursos e apoio para a construção de um sistema de abastecimento de água.
ATENDENDO A REIVINDICAÇÕES Dos recursos do governo, as comunidades no Vale do Ribeira, em São Paulo, vão receber cerca de R$ 300 mil para obras de saneamento. Para Oriel Rodrigues, morador de uma dessas áreas, Ivaporunduva, e integrante da Coordenação Nacional das Comunidades de Quilombos (Conaq), o programa do governo atende velhas reivindicações da população: “Lula abriu o debate. Pudemos expor nossas demandas, discutir soluções e trabalhar propostas em conjunto”. Segundo ele, foi o único governo que agiu desse modo. Rodrigues afirmou que esse não é o único projeto que trouxe benefícios à comunidade. “Há avanços em diversos aspectos, como a construção de casas e a regularização de terras”, analisou. Segundo ele, alguns funcionários da Funasa têm a preocupação de entender a realidade das comunidades antes de fazer seu trabalho. “Em Ivaporunduva, as casas são dispersas. As pessoas vivem em pequenos sítios, onde têm suas plantações. A Funasa tem a sensibilidade de não construir habitações onde as pessoas viveriam todas juntas. Eles sabem que não funcionaria, pois as pessoas iam preferir ficar onde estão”, explicou. Apesar dos avanços, Rodrigues tem a impressão de que o governo “está tímido” em relação às políticas sociais, especialmente para as comunidades remanescentes de quilombolas. “As melhorias são bem-vindas, mas são poucas. Atendem apenas quatro das 743 comunidades quilombolas reconhecidas. Esperávamos
Medida do governo prevê gasto de R$ 20 milhões em projetos para as comunidades quilombolas; no detalhe, Ivaporunduva, região do Vale do Paraíba, São Paulo, vai receber cerca de R$ 300 mil para obras de saneamento
mais verba”, disse. Para o integrante da Conaq, muitos projetos do governo não têm a preocupação de tornar as comunidades auto-sustentáveis: “Facilitar a venda das frutas que são produzidas nas áreas, como as
bananas, seria um modo de ajudar as pessoas a ter independência”.
INADEQUAÇÃO DA FUNASA O estudante Flávio Bassi, da Associação Ocareté, entidade que
realiza trabalho voluntário com comunidades remanescentes de quilombos, criticou a atuação da Funasa. Ele considera que a Fundação não tem estrutura adequada para desenvolver uma política para
populações culturalmente diferenciadas. “A longo prazo, perceberemos que as ações da Funasa não são efetivas por motivos práticos, como falta de manutenção das obras e de equipes nas áreas, e por motivos mais fundamentais, como falta de participação dos quilombolas na elaboração dessa política”, analisou Bassi, para quem os funcionários da Funasa deveriam gerir os recursos de modo mais participativo, ouvindo as lideranças comunitárias. O estudante diz que os quilombolas têm uma identidade muito relacionada à noção de resistência, baseada em sua própria história de luta, e a maioria das pessoas que trabalham na fundação não conhece isso. Ele aconselhou a Funasa a investir na capacitação de seu corpo funcional, especialmente em relação à cultura e à história dos remanescentes de quilombos.
Quilombolas precisam se mobilizar Os remanescentes de quilombos precisam se mobilizar e se organizar para conquistar melhorias em suas comunidades. A avaliação é de Tito Nery, coordenador da regional de São Paulo da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), instituição responsável por garantir o atendimento de saúde e saneamento de indígenas e quilombolas. Brasil de Fato – A regional da Funasa em São Paulo vai receber cerca de R$ 300 mil para investir em comunidades quilombolas. A população vai participar das decisões sobre o destino desses recursos? Tito Nery – Achamos que a comunidade deve participar, mesmo porque esses recursos vieram basicamente de mobilização, que nós incentivamos, da própria comunidade quilombola. Nossa intenção era atender todos os 51 quilombos de São Paulo. Mas com esses recursos não vai ser possível. Tivemos reuniões com lideranças quilombolas, onde discutimos a organização da população e questões relacionadas a saneamento na comunidade. Pensamos em criar um conselho gestor, justamente porque não vai dar para atender todo mundo. Acredito que, quando decidirmos os primeiros a serem atendidos, toda a comunidade, mesmo quem não mora lá, simbolicamente, vai estar sendo beneficiada, pois a discussão foi feita coletivamente, por meio desse conselho gestor. BF – Quais vão ser os impactos das obras? Nery – A verba está destinada a obras para a água. Nossa idéia é que esse recurso não seja somente de água para beber. Queremos que haja também uma sustentabilidade para essa comunidade quilombola. Foram 400 anos de invisibilidade pela qual a comunidade quilombola passou no Brasil e precisamos superá-la. É preciso salientar
Quem é O médico Tito Nery é coordenador da regional de São Paulo da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Um dos sócios-fundadores da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Cirurgia, durante os anos 60 atuou em organizações de luta contra o racismo. que a libertação dos escravos não ocorreu no dia da abolição, mas começou quando o primeiro quilombo foi instalado no Brasil. Assim, não vai ser somente com esse recurso que vamos reparar esses 400 anos de escravidão. Precisamos de escola, de trabalho, de atividades economicamente sustentáveis, cultura, esgoto e reconhecimento de terras. Agora, temos na nossa competência cerca de R$ 300 mil. Nossos engenheiros já foram nas comunidades quilombolas, já identificaram os principais problemas e, assim que for identificada a real necessidade do ponto de vista técnico, pretendemos dar início às obras. BF – Para as políticas da Funasa, o que significa o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter definido os quilombolas como prioridade? Nery – Por um lado, o presidente fez um reconhecimento da comunidade excluída como um todo, não só a quilombola. Lula, ao fazer isso, está pagando uma dívida histórica que o Brasil tem com essas comunidades. Agora cabe a nós transformar esse pouco recurso numa obra exemplar. Isso tem que ser nossa responsabilidade. Não só em São Paulo, como em qualquer lugar do Brasil. Esse dinheiro foi muito pouco para os quilombolas de São Paulo, mas é o possível. BF – Como se trata a questão da diversidade dos remanescentes de quilombos?
João Peschanski
João Alexandre Peschanski e Luís Brasilino da Redação
Fotos: Luciney Martins/RedeRua
Programa lançado pelo presidente Lula em março vai financiar obras de habitação e saneamento
Nery – A Funasa cuida exclusivamente da área de saneamento e não tem como interferir no atendimento de saúde na comunidade, nem nas escolas e nas atividades economicamente sustentáveis. Mas, mesmo assim, podemos colocar esse sistema de água ao lado de uma série de reivindicações. Na minha opinião, quando se conquista alguma coisa, ganha-se mais ânimo para buscar outras. E acho que é esse sentimento que a comunidade deve absorver. Conquista-se o saneamento hoje e a escola amanhã... Em resumo, você tem que conquistar cidadania. BF – Diversas instituições, como a Funasa, as secretarias estaduais, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e os ministérios desenvolvem políticas relacionadas a remanescentes de quilombos. Quais são os efeitos dessa descentralização de responsabilidade? Nery – Na verdade, são muitas instituições. Algumas federais, outras estaduais. Em alguns lugares, existem até iniciativas municipais. Todas essas instituições precisam dialogar. A comunidade negra, que construiu esse Brasil com seu sangue e sacrifício, muitas vezes encontra restrições dentro dessas instituições por não ser vista como parte do povo brasileiro. As instituições precisam modificar sua conduta. Um exemplo: nas reuniões com a comunidade, tenho falado muito
na sustentabilidade; a água é para beber, mas também tem que gerar algo economicamente proveitoso. Precisamos pensar uma atividade econômica que ajude a levantar a comunidade. Isso pode envolver a Secretaria de Turismo ou o Ministério do Meio Ambiente, para ecoturismo. Da parte da Funasa, temos consciência dessa responsabilidade. E acho que a comunidade quilombola também. BF – Parte dos recursos do governo veio do Banco Mundial. Quais são as contrapartidas para o envio das verbas? Nery – Os recursos de São Paulo não vêm do Banco Mundial, mas a verba de outros Estados sim. Para São Paulo, vêm só do governo e representam uma conquista política dos remanescentes de quilombos, porque essa comunidade se organizou e se fortaleceu. Ao mesmo tempo, acho que fica provado que, se não houver intervenção do governo, essas comunidades não vão conseguir atingir uma situação de cidadania. O recurso da Funasa é, como se diz, a fundo perdido. Ele é aplicado na comunidade e não precisa ser pago. A fundo perdido significa que a comunidade vai receber esse benefício, sem pagar por ele, o que aumenta mais ainda nossa responsabilidade de fazer com que ele seja bem aproveitado. É nosso interesse, aqui no Estado de São Paulo, que, depois de aplicar esses recursos, nós possamos verificar se houve redução da mortalidade infantil, melhoria das condições de vida. Não se pode só fazer a obra. É preciso acompanhar depois, porque certamente depois dela tem que ter outras obras. Dos 51 quilombos, com esses recursos, só vamos poder atender um. E os outros 50? Então temos que fazer e fazer muito bem-feito porque atrás desse tem mais outros 50 para receber atendimento. (JAP e LB)
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De 2 a 8 de setembro de 2004
NACIONAL HABITAÇÃO
Hamilton Octavio de Souza Alegria contida Com a mesma postura de dependência eterna e alinhamento subalterno automático às diretrizes da matriz, o Banco Central do Brasil já determinou novo ajuste nos juros dos créditos para pessoas físicas e jurídicas, conforme orientação das autoridades financeiras dos EUA. A farra da queda dos juros durou pouco. Apagão nos neurônios O documentário Getúlio do Brasil, de Chico Sant’Anna e Deraldo Goulart, transmitido pela TV Senado esta semana, reproduz discursos do ex-presidente entre 1950 e 1954, nos quais ele defende a nacionalização dos recursos naturais (petróleo, minerais, energia elétrica etc.) como essencial para a independência do país. Algo realmente aconteceu com a memória nacional. Cidadania mundana O modelo neoliberal continua avançando sobre os direitos dos cidadãos: primeiro empurrou setores da sociedade para os serviços privados de saúde e, agora, deixa que os planos de saúde privados realizem reajustes extorsivos. O governo continua assistindo de camarote ao ataque dos piratas. Até quando? Pobreza desigual Até na pobreza existe desigualdade brutal de condições entre quem vive no primeiro mundo e quem vive em país subdesenvolvido. É considerado pobre nos EUA quem tem uma renda anual inferior a R$ 28 mil; no Brasil é considerado pobre quem tem renda anual inferior R$ 1.500. Ou seja, o pobre de lá tem renda 18 vezes maior do que o pobre de cá. Último recurso A Suprema Corte do Chile ratificou a retirada da imunidade para processar o ex-ditador Augusto Pinochet por assassinato de militantes esquerdistas. A defesa dele agora alega que ele não tem saúde mental para enfrentar um julgamento. Mais um que se acovarda na hora de responder pelos crimes praticados na época em que tinha poder absoluto. Imunidade zero Acusado de remessa ilegal de divisas e sonegação de impostos, o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, continua prestigiado pelo Palácio do Planalto e pela base parlamentar do governo Lula. Não prestou depoimento no Congresso Nacional, ganhou status de ministro e ainda aparece na mídia como o sujeito mais poderoso do país. Qual o mistério? Mordeu a língua Paladino radical do neoliberalismo, o jornal O Estado de S. Paulo publicou, dia 29, amplo material com críticas ao repasse de recursos públicos para as organizações não-governamentais (ONGs), diferentemente do apoio que deu ao chamado terceiro setor, durante todo o governo FHC. A mudança de posição do jornal certamente tem a ver com a mudança de atuação de boa parte dessas organizações nas áreas mais carentes do país. Olimpíada social A delegação brasileira na Olimpíada de Atenas deixou o Brasil no 18º lugar no quadro de medalhas, com quatro de ouro, três de prata e três de bronze. Só para lembrar, o Brasil está no 100º lugar do mundo em mortalidade infantil, com 29,7 mortos com menos de um ano de idade em cada mil nascidos vivos.
Poucos recursos para baixa renda Com R$ 400 milhões, Crédito Solidário só poderá atender um quinto dos projetos recebidos Dafne Melo da Redação
A
nunciado em abril, só dia 23 de agosto o Ministério das Cidades divulgou a lista das entidades que serão beneficiadas pelo Programa de Crédito Solidário (PCS). A iniciativa é destinada a famílias que estejam organizadas em associações ou cooperativas, e que comprovem uma renda mensal de 1 a 3 salários-mínimos (R$ 260 a R$ 780). Os empréstimos, de até R$ 20 mil, poderão ser pagos em 240 meses (20 anos), sem juros, mas com correção monetária. Em maio, o Ministério das Cidades abriu as inscrições para receber projetos das entidades. De acordo com César Ramos, gerente de Projetos Especiais da Secretaria Nacional de Habitação, foram recebidas quase 3 mil propostas, que exigiriam um investimento de R$ 3,5 bilhões. Porém, com uma verba disponível de apenas R$ 400 milhões, só 684 projetos foram aprovados. A meta é beneficiar 40 famílias de todos os Estados, exceto Amazonas, Amapá e Rondônia, que não enviaram propostas. As cooperativas têm, agora, dois meses para entregar os documentos de viabilidade técnica e financeira dos projetos para a Caixa Econômica Federal, encarregada dos empréstimos. Os principais critérios utilizados para a distribuição dos recursos foram o déficit habitacional de cada Estado, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e a importância dos projetos. Os Estados que receberão maiores recursos são São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia que, respectivamente, concentram 17,4%, 9,5%, 7,6% e 8,73% do déficit.
AINDA É POUCO De acordo com dados do IBGE, de 1991 a 2000, o déficit habitacional do país cresceu 41,5%. Hoje, ele é estimado em 6,65 milhões de unidades. Só na cidade de São Paulo, segundo o Centro de Estudos da Metrópole, a cada oito dias, a cidade ganha uma nova favela. Em média, 74 pessoas se tornam faveladas por dia. Enquanto a população da cidade aumentou 8% de 1991 a 2000, no mesmo período, o número de favelados cresceu 30%. Donizete de Oliveira Fernandes, coordenador nacional da União dos
Anderson Barbosa
Fatos em foco
Desapropriação de sem-teto no Centro de São Paulo: promessa de Lula de ceder terrenos e prédios públicos não se concretizou
Movimentos por Moradia (UMM), acredita que os recursos ainda são escassos, mas considera importante a iniciativa do governo de trabalhar em cima de projetos das cooperativas. “Essa é uma reivindicação que os movimentos populares fazem desde 1991. A diferença é que va-
mos poder centralizar os recursos nas cooperativas e construiur as moradias em sistema de mutirão e autogestão”, diz Fernandes. Para as regiões metropolitanas, onde os terrenos são mais caros, ele considera que mesmo o valor máximo do empréstimo é pouco para construir uma moradia de qualidade.
“Uma saída é o governo liberar terrenos e imóveis desocupados pertencentes à União. O Lula, em um pronunciamento em Santa Catarina no ano passado, se comprometeu a ceder terrenos e prédios públicos desocupados, mas isso não se concretizou ainda”, conta o coordenador da UMM.
Orçamento não passa de promessa da Redação
a situação é ainda mais grave, já que não foram liberados mais do que 5% dos recursos prometidos para 2004, ou seja, apenas R$ 135 milhões de um total de R$ 2,9 bilhões, se transformaram em obras, segundo o Ministério das Cidades.
Muitas das promessas do governo acabam não passando de pura retórica. No começo de 2004, foi anunciado aquele que seria o maior orçamento de todos os tempos para habitação e saneamento básico, atividades que, sabidamente, geram emprego. Na prática, contudo, até agosto, dos recursos da ordem de R$ 5 bilhões do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) que se destinariam à habitação, foram de fato aplicados 33%, ou R$ 1,65 bilhão, de acordo com a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC). No setor de saneamento básico,
A SECO O levantamento da CBIC, apresentado em reunião do Conselho Curador do FGTS, também mostra que o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), principal projeto para a população de baixa renda, não recebeu um tostão. O programa contaria com R$ 1 bilhão do FGTS. Entre todos os programas de financiamento à habitação, especial-
mente o PAR é considerado fundamental para ajudar a reduzir o déficit habitacional. Nele, famílias com renda de até seis salários-mínimos pagam uma taxa de arrendamento de 0,5% a 0,7% do valor do imóvel, durante 15 anos, depois dos quais se tornam donas da propriedade. Outro programa, de financiamento direto às construtoras, tampouco passou de boa intenção. O FGTS repassou R$ 360 milhões, que ficaram parados na Caixa Econômica Federal esperando por regulamentação. Para a CBIC, financiamentos para imóveis usados e para material de construção são importantes para enfrentar o problema da moradia, mas é indispensável a oferta de imóveis novos.
RETRATO DO BRASIL
A classe média está sumindo da Redação Que o brasileiro empobreceu, poucos ainda duvidam. Assim, por exemplo, a classe média que, em 1981, representavava 42,53% da população do país, em 2002, teve sua participação reduzida para 36,03%. Resultado da estagnação da economia, este declínio significou que 11 milhões de pessoas migraram para classes sociais mais baixas (de menor renda). Os dados são de estudo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenado pelo professor Waldir Quadros, ex-diretor do Instituto de Economia da universidade. Segundo o professor, as informações mais recentes apontam para um cenário claramente desfavorável à ascensão social e encolhimento de oportunidades. No levantamento, a classe média foi segmentada em três estratos - superior, média e baixa, cujos níveis de renda (a preços de janeiro de 2004), foram calculados a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
UM RETRATO DA INJUSTIÇA SOCIAL Renda familiar mensal (R$)
Classe média
Participação da população (%) 1981 2002
+ de 5.000
4,37
4,14
Média
2.500 a 5.000
9,13
7,57
Baixa
1.000 a 2.500
29,3
24,31
Alta
Fonte: Pesquisa Unicamp
A participação de todos os três estratos de classe média na população caiu no período analisado, sendo que o maior declínio ocorreu na classe média baixa (veja tabela). Como
já vem mostrando os números do IBGE, o levantamento da Unicamp também indica que ter diploma universitário não garante melhores salários, que despencaram, com o
aumento do desemprego nessa faixa da população ocupada. Em 2002, a queda de renda dos trabalhadores com terceiro grau completo ou incompleto foi de 24,6%, em relação a 1981, declínio apenas menor do que o rendimento percebido por trabalhadores com segundo grau, que foi de 36,1%, no anos analisados. Para Waldir Quadros, as principais conseqüências sociais da estagnação econômica apuradas pela pesquisa são a marginalização dos operários e o desemprego dos trabalhadores com maior nível de escolaridade.
DIPLOMA NÃO GARANTE RENDA Evolução dos rendimentos por grau de escolaridade Nível de escolaridade
Ocupados (% do total)
Renda real (R$)
1981
2002
1981
1º grau
83,48
65,14
2º grau
10,44
3º grau
6,08
Fonte: Dados brutos da PNAD/IBGE
Queda da renda (%)
2002
2002/1981
516,61
421,18
18,5
23,60
1.206,87
771,17
36,1
11,26
2.921,43
2.203,24
24,6
7
De 2 a 8 de setembro de 2004
NACIONAL POLÍTICA FISCAL
União passa uma rasteira nos Estados Fatia das contribuições no total de receitas federais pula de apenas 6%, em 1988, para 47,5% neste ano Divulgação
Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
A
arrecadação federal bate recordes atrás de recordes, superando as previsões da equipe econômica. Nos primeiros sete meses de 2004, as receitas totais do governo federal, excluída a contabilidade da Previdência e do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), atingiram quase R$ 182 bilhões, num salto de 16,3% em relação ao mesmo período do ano passado. O resultado teria sido um pouco mais magro se não fosse o aumento das contribuições sociais e econômicas, criadas, em anos recentes, exatamente para reforçar o caixa da Receita Federal. Sem as principais contribuições, a arrecadação teria crescido 12,6%, somando R$ 97,3 bilhões. A cobrança de contribuições rendeu ao governo R$ 84,6 bilhões, num aumento, até julho, de quase 21%. Nesta conta, foram incluídas a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), cada vez menos provisória, a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), PIS/ Pasep, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), cobrada de empresas e bancos, e a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) incidente sobre os combustíveis.
O governo tentou impor a contribuição no mesmo ano de sua criação, o que obrigou a Justiça a declarar a inconstitucionalidade da cobrança ainda em 1988. A CSLL entrou em vigor em 1999, mas, nos anos seguintes, sua receita passou a ser apropriada para o pagamento de juros da dívida federal, desvirtuando sua destinação original. No ano passado, a Receita arrecadou, a título de cobrança da CSLL, R$ 16,7 bilhões e deve obter, neste ano, perto de R$ 22 bilhões (31% a mais), segundo projeções do IBPT.
CARGA PESADA
Gilberto do Amaral. presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT)
a instituição e majoração das contribuições sociais e econômicas. Na prática, a União aplicou uma ‘bicicleta’ nos Estados, já que a receita das contribuições não precisa ser dividida com governos estaduais e municipais, ao contrário dos impostos”, afirma Amaral.
FEDERAÇÃO? No ano da promulgação da Constituição, as contribuições não representavam mais do que modestos 6% na arrecadação total da Receita Federal. Hoje, quase metade da receita vem das contribuições. Em termos políticos e institucionais, a mudança no perfil da receita afeta o pacto federativo, na medida em que há uma concentração ainda mais ampla de recursos em poder da União, aponta Amaral. Nas estimativas do IBPT, neste ano, a União deverá concentrar entre 71% e 72% de todos os impostos, taxas, contribuições e tributos pagos por empresas e pessoas físicas, diante de uma participação de 70% em 2003. A fúria arrecadadora começa quando entra em vigor a nova Constituição, que havia estabelecido uma partilha mais equilibrada dos recursos dos impostos entre a União, os Estados e os municípios. O governo federal passou a abusar das contribuições como forma de burlar a Constituição, evitando repartir o
“BICICLETA” Apenas na soma destas contribuições, a Receita conseguiu assegurar 46,5% de sua arrecadação total. Os números do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), apresentados ao Brasil de Fato por seu presidente, Gilberto Luiz do Amaral, incluem todas as demais tipos de Cide (que ainda recai sobre a multa rescisória nas demissões sem justa causa e sobre parte dos recolhimentos ao FGTS) e mostram uma participação ligeiramente mais elevada: entre janeiro e julho deste ano, 47,5% da arrecadação da Receita Federal veio de contribuições, diante de 46,2% no ano passado. “Até a Constituição de 1988, havia, no governo, uma predileção pela cobrança de impostos. Em seguida, isso foi modificado, com
resultado da arrecadação com prefeituras e governos estaduais.
DISTORÇÃO Em 1995, a fatia das contribuições já havia crescido para 22%, alcançando 38% das receitas totais ao final de 2000. No ano passado, como visto, a participação atingiu 46,2% e deverá encerrar este ano, imagina Amaral, bastante próximo de 47,5%. Originalmente, a CSLL havia sido prevista na Constituição como fonte de receitas para o sistema nacional de seguridade social, de forma a permitir que os benefícios da Previdência fossem estendidos a trabalhadores rurais, idosos e incapacitados.
O antigo Finsocial, criado em 1980 com alíquota de 0,5%, aponta Amaral, chegou a 1988 turbinado, passando a 1,2%. Houve novo aumento, para 2%, até que o Supremo Tribunal Federal decretou a inconstitucionalidade das novas alíquotas, determinando seu retorno para 0,5%. Contrariado, o governo decretou o fim do Finsocial e criou a Cofins, que passou a vigorar a partir de abril de 1992 com alíquota de 2%. A contribuição subiu para 3% em 1999 e, desde fevereiro deste ano, aumentou para 7,6% – neste caso, no entanto, as empresas podem descontar, na negociação seguinte (na venda de produtos), a contribuição recolhida na operação anterior (na compra de insumos e matérias-primas). A mudança deveria ser neutra para as empresas, ou seja, não
CRESCE O PESO DAS CONTRIBUIÇÕES Arrecadação federal, valores nominais em milhões de reais Período Contribuições* Receita total Participação (%) 1992 10.260 36.914 27,8 1993 13.568 46.886 28,9 1994 21.743 64.320 33,8 1995 29.301 84.005 34,9 1996 34.459 95.097 36,2 1997 43.911 112.689 39,0 1998 44.596 133.144 33,5 1999 60.420 151.517 40,0 2000 77.395 176.814 43,8 2001 88.138 196.709 44,8 2002 106.108 243.005 43,7 2003 124.192 273.358 45,4 Jan/jul 2003 70.022 156.448 44,8 Jan/jul 2004 84.583 181.899 46,5 (*) CPMF (1997 em diante), Cofins, PIS/Pasep, CSLL e CIDE-Combustíveis Fonte: Secretaria da Receita Federal
deveria gerar aumento da contribuição. Mas, segundo pesquisa recente realizada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), ouvindo 1.297 empresas em todo o país, mais da metade delas (52%) afirma que houve aumento da carga fiscal (ou seja, tiveram que pagar mais pela Cofins).
SANGUESSUGA No caso das empresas, descontada a Cofins exigida dos bancos, a arrecadação aumentou 30,3% até julho, acumulando, nos primeiros sete meses do ano, um total de R$ 39,8 bilhões, saindo de 19,5% no mesmo período do ano passado, para 21,9% da arrecadação total. No total, somando bancos e empresas, a Cofins representou uma receita de R$ 42,7 bilhões, num incremento de praticamente 30% em relação a janeiro-julho de 2003. O IBPT trabalha com uma previsão de crescimento de 26% até o final do ano, o que elevaria a receita da Cofins para R$ 75 bilhões em 2004, diante de R$ 59,6 bilhões no ano passado (R$ 15,4 bilhões a mais), superando as previsões. A CPMF, que de imposto passou a contribuição e parece ter vocação para permanente, subiu de 0,25%, em 1993, para uma alíquota de 0,38% nos anos seguintes. Apenas no ano passado, arrecadou R$ 23 bilhões e deve crescer perto de 13% neste ano, para R$ 26 bilhões, prevê o IBPT. A caçula da turma – a Cide – recheou os cofres federais com alguma coisa ao redor de R$ 10 bilhões em 2003 e deverá permitir uma arrecadação em torno de R$ 12 bilhões neste ano, nos cálculos de Amaral. Considerando apenas a Cide/ Combustíveis, Cofins, PIS/Pasep, CPMF e CSLL, a receita das contribuições, segundo a Receita Federal saiu de R$ 10,3 bilhões em 1992 (27,8% da arrecadação), em valores da época, para R$ 124,2 bilhões no ano passado (45,4% da arrecadação), em grandes números. Isso representou um aumento de 1.110% (ou seja, mais de 12 vezes), enquanto a arrecadação total cresceu sete vezes (mais 640,5%) no período.
DEMOGRAFIA
População cresce; mortalidade infantil ainda é alta Em 34 anos, a população brasileira praticamente dobrou em relação aos 90 milhões de habitantes da década de 1970. Entre 2000 e 2004, aumentou em 10 milhões de pessoas. Em 2050, serão 259,8 milhões de brasileiros, cuja expectativa de vida, ao nascer, será de 81,3 anos, a mesma dos japoneses, hoje. Os novos dados sobre a população brasileira foram divulgados dia 30 de agosto pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mas o envelhecimento da população está se acentuando: em 2000, o grupo de 0 a 14 anos representava 30% da população brasileira, enquanto os maiores de 65 anos eram 5%. Em 2050, a participação dos dois grupos será a mesma: 18%. Mais: pela Revisão 2004 da Projeção de População do IBGE, em 2062, o número de brasileiros vai parar de aumentar. Quanto à mortalidade infantil, embora tenha caído, continua altíssima. Desde meados da década de 1940, a taxa vem diminuindo, devido às campanhas de vacinação em massa, à disseminação dos antbióticos e, mais recentemente, aos exames pré-natais, às campanhas de aleitamento materno e aos agente comunitários de saúde, entre
ano em 2004, cairá para 0,24% em 2050 e, finalmente, para zero em 2062, quando a população brasileira começará a se reduzir.
Agência Brasil
da Redação
ENVELHECIMENTO
Embora venha diminuindo devido às campanhas de vacinação e medidas governamentais, a mortalidade ainda é alta
outras medidas, governamentais ou não, analisa o IBGE.
MENOS FILHOS Em 1970, eram cerca de 100 óbitos para cada mil menores de um ano nascidos vivos. Em 2000, diminuiu para 30 por mil, um patamar ainda elevado, considerados, por exemplo, os países vizinhos: 21 por mil na Argentina, 15 por mil no
Uruguai e 12 por mil no Chile. No ranking dos 192 países, ou área, estudados pela ONU, o Brasil ocupa a 100ª posição, informa o IBGE. Em janeiro de 2004, a população brasileira ultrapassou os 180 milhões de habitantes. Esta é uma das conclusões da Revisão 2004 da Projeção da População realizada pelo IBGE. Outra, é que as famílias estão tendo cada vez menos filhos:
em 1960, a média era de seis filhos por mulher, caiu para 2,89 em 1991 e, em 2000, para 2,39. A projeção para 2004 é de 2,31 e, em 2023, a média deverá ser de 2,01 filhos por mulher – ou seja, a mera reposição das gerações. A população continuará crescendo, embora a taxas cada vez menores: dos 3% ao ano entre 1950 e 1960, a taxa caiu para 1,44% ao
A queda combinada das taxas de fecundidade e mortalidade vem ocasionando uma mudança na estrutura etária, com a diminuição relativa da população mais jovens e o aumento proporcional dos idosos. Em 1980, a população brasileira se dividia, igualmente, entre os que tinham acima ou abaixo de 20,2 anos. Outra comparação relevante: em 2000, 30% dos brasileiros tinham de zero a 14 anos, e os maiores de 65 representavam 5% da população. Em 2050, esses dois grupos etários vão se igualar: cada um deles representará 18% da população brasileira. Tais números, analisa o IBGE, ressaltam a importância cada vez maior da adoção de políticas públicas relativas à Previdência, diante do crescente número de indivíduos aposentados, em relação àqueles em atividade. Assim como de políticas de Saúde voltadas para a terceira idade: se em 2000 o Brasil tinha 1,8 milhão de pessoas com 80 anos ou mais, em 2050 esse contingente poderá ser de 13,7 milhões.
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De 2 a 8 de setembro de 2004
NACIONAL ENTREVISTA
Desafio é ter pensamento autônomo O
pensamento neoliberal é uma farsa, e não pode ser aplicado na prática. Essa é uma das principais leituras que o economista e sociólogo Theotônio dos Santos faz dessa doutrina econômica disseminada pelos grupos dominantes e que conseguiu converter, como seus seguidores, governos eleitos sob o clamor popular. Para Santos, com amplo poder de corrupção, o neoliberalismo disseminado pela elite financeira angariou apoio da mídia, da academia e de uma casta da burguesia que se contenta em ser intermediária de seus negócios no Terceiro Mundo. Em entrevista ao Brasil de Fato, diz que a saída dessa emboscada passa pela capacidade de os movimentos sociais e da própria esquerda desenvolverem um pensamento autônomo, que não dependa dos meios de comunicação hegemônicos. “A falta de uma imprensa de esquerda é algo muito grave, hoje. O Brasil de Fato é uma tentativa de romper isso, mas há muitas dificuldades. Mostra que o nosso movimento social e político não está suficientemente preparado para enfrentar um pensamento organizado e institucionalizado como esse”, afirma. Brasil de Fato – Em seu último livro (Do Terror à Esperança, Auge e Declínio do Neoliberalismo), o senhor estuda a origem do pensamento neoliberal. Quais as bases dessa doutrina? Theotônio dos Santos – O pensamento neoliberal que se impôs como hegemônico no mundo durante as décadas de 80 e 90 tem como fundamento a idéia do homem econômico, do século 18. Nessa perspectiva, se crê que a natureza humana, a felicidade do indivíduo está na luta pelo direito de propriedade individual. Constrói-se em torno disso uma sociedade, uma economia organizada em torno do livre mercado que permite ao ser humano agir de acordo com sua natureza. Bem, essa visão está totalmente ultrapassada. Durante os séculos 18 e 19, se avançou no conhecimento e no entendimento do que é a natureza humana – sabemos, hoje, que não se resume a essa idéia de indivíduo em luta pela posse. A própria economia capitalista passou por mudanças importantes. No final do século 19, já está formada uma economia mundial baseada fundamentalmente nos grandes monopólios. A partir dessa análise em que busco as origens históricas do pensamento neoliberal, procuro mostrar que não é possível aplicar a doutrina do pensamento neoliberal. Na prática, o que se faz é usar o neoliberalismo como referência ideológica para uma prática de política econômica que tem muito mais o objetivo de atender interesses de grupos do que realmente aplicar seus princípios.
Mais de um terço dos recursos públicos está destinado ao pagamento de juros BF – Ou seja, o princípio de que existe um livre mercado é falso? Santos – O que existe na realidade do mundo moderno é o mercado monopolista e a intervenção do Estado. No começo do século 20, 10% da economia era de responsabilidade do Estado. Hoje, o gasto público representa até 60% do Produto Interno Bruto
Quem é Theotônio dos Santos é sociólogo, mestre em Ciência Política e doutor em Economia. Já publicou mais de 43 livros, em 16 idiomas, em mais de 50 países. Hoje, é professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador da Cátedra e Rede da Unesco e da ONU sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentável. (PIB) de países como os nórdicos e a Alemanha. Este não é o mundo do livre mercado, mas o do monopólio, de um lado, e de outro, o da intervenção estatal, o capitalismo de Estado. Não há a mínima possibilidade de criar um mundo como descreve o pensamento neoliberal. BF – O que esse discurso esconde? Santos – A busca dessa referência ideológica neoliberal surge exatamente para permitir aos interesses capitalistas se juntar e deter o avanço do movimento popular, ou da intervenção estatal voltada para as necessidades sociais. Algo como uma contra-revolução, uma postura reacionária. É por isso que o pensamento neoliberal se concentra na eliminação dos direitos trabalhistas. Os neoliberais acusam o sindicalismo, a organização dos trabalhadores, de criar um monopólio contra o livre mercado. Para os neoliberais, as conquistas dos trabalhadores se convertem em um fator contrário ao investimento capitalista e impedem o crescimento econômico. Ocorre que o período em que mais se investiu no mundo foi exatamente o período do Estado de Bem-Estar Social, quando cresceu a intervenção do Estado na economia, voltada, sobretudo, para proteger os direitos sociais dos trabalhadores. BF – Qual o efeito dessas políticas? Santos – O resultado da política neoliberal foi uma economia desequilibrada no mundo inteiro, que vai levar a uma crise mundial extremamente grave, que leva de roldão países do Terceiro Mundo, alguns com certo grau de desenvolvimento, como o Brasil. Essas nações vão viver para pagar uma dívida externa criada com os grandes excedentes do petróleo na década de 70, os petrodólares, e avultada pelo aumento colossal da taxa de juros dos Estados Unidos. Isso vai nos obrigar a viver para pagar juros, situação que existe desde a década de 80 até hoje. Vai se fortalecendo, então, o predomínio dos interesses do capital financeiro sobre a economia real. BF – Não há oposição a esse pensamento? Santos – O neoliberalismo vai gerando contradições no nível mundial, aumentando a pobreza. Os efeitos negativos vão se aprofundando de tal maneira que hoje há uma oposição radical da parte do povo ao neoliberalismo. Em todos os lugares, nas eleições, nas manifestações populares, há uma rejeição a essa doutrina. Ocorre, contudo, que na elite continua havendo uma submissão a essa visão neoliberal comandada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Estamos vivendo uma situação muito grave em que a população vota, derruba governo, e os que assumem o governo terminam praticando a mesma política. Esse é um problema mundial, e não ocorre só no Brasil. Mas aqui a coisa é muito grave pela grande expectativa de mudança de política no país.
BF – Acredita que ainda há possibilidade de mudança no Brasil? Santos – É importante ver que a oposição à política neoliberal se estende por vários setores, não só os populares (trabalhadores em geral ou as grandes massas de desempregados), mas, também, por uma parte importante até da classe dominante, do empresariado, expressa na posição do vicepresidente José Alencar. Temos outras forças importantes, como a Igreja, que tem uma posição muito clara no Brasil contra as políticas neoliberais e a favor, no setor rural, do encaminhamento da reforma agrária. E tem um setor muito forte das forças armadas que vê no neoliberalismo uma política entreguista, contrária à soberania nacional. O movimento popular conta com apoios muito importantes para pressionar por mudança dessa política. Esse é um fator muito significativo que pode nos dar uma esperança de ter uma mudança sem a necessidade de um rompimento político – uma situação negativa, já que levaria muito tempo para reestruturar o movimento popular para retomar nossas lutas.
Temos o monopólio de um lado, e de outro, a intervenção estatal, o capitalismo de Estado BF – Pressionar por uma política de desenvolvimento? Santos – Temos de trabalhar para juntar todas as forças e derrotar a perspectiva neoliberal, retomando o desenvolvimento econômico. Aí, depois, vamos discutir o caráter desse desenvolvimento. As divergências poderiam ser discutidas no contexto de uma política de desenvolvimento econômico, voltada para o crescimento do país. Uma situação completamente diferente da que vivemos
hoje, pois está tudo paralisado por causa da manutenção dos juros altos. Mais de um terço dos recursos públicos está destinado ao pagamento de juros. Estamos impossibilitados de fazer política social, investimento, de qualquer política progressiva no país. BF – O crescimento econômico que está caindo vai continuar? Santos – O que permitiu uma certa recuperação foi a redução da taxa de juros, de 26,5% para 16%. Mas paralisaram essa queda há quatro meses e esse efeito positivo também será paralisado. Se chegarmos com crescimento de 2,5% até o final do ano, já vai ser uma grande conquista. BF – Haverá melhora na condição de vida da população? Santos – Esse pequeno crescimento, agora, teve algum efeito na geração de emprego, mas muito limitado. Hoje, há países preocupadíssimos, como a Coréia, porque a taxa de crescimento pode cair de 7% para 5%. Aqui, soltamos fogos porque estamos com 3,5%, ou porque geramos 20 mil empregos a mais do que perdemos. É uma mediocridade enorme, porque não vai atender à necessidade da população. BF – Nesse ano, o tema das desigualdades sociais está cada vez mais distante da agenda do governo... Santos – É. Pelo contrário, a tendência é favorecer a concentração econômica. É a mesma política do governo Fernando Henrique, que aumentou terrivelmente a concentração econômica no país. BF – Por que a rejeição do neoliberalismo ainda não foi capaz de criar um modelo alternativo de fato? Santos – O que se passa é que a penetração do neoliberalismo foi muito forte, não só nas políticas de Estado, mas também na academia e nos meios de comunicação. Essa política favoreceu muito
Marco/CIMI
Jorge Pereira Filho da Redação
Divulgação
Para Theotônio dos Santos, desafio dos movimentos sociais é não depender dos meios de comunicação hegemônicos
Protesto em Brasília, contra a Reforma Sindical e a Reforma Trabalhista
o setor financeiro que dispõe de uma capacidade de corrupção muito grande. O Brasil é o caso típico de um país em que uma ala enorme da classe dominante, da burguesia, se limita a ser intermediária dos interesses financeiros internacionais. Em todos os países do Terceiro Mundo, há uma casta da burguesia com função intermediária que renuncia à idéia de ser uma classe empresarial. BF – Por onde passa a construção de um modelo alternativo? Santos – Pela capacidade de os movimentos sociais e da própria esquerda de desenvolver um pensamento próprio e autônomo, que não dependa da crosta oficial e oficiosa dos meios de comunicação. A falta de uma imprensa de esquerda é algo muito grave, hoje. O Brasil de Fato é uma tentativa de romper isso, mas há muitas dificuldades. Mostra que o nosso movimento social e político não está suficientemente preparado para enfrentar um pensamento organizado e institucionalizado como o neoliberalismo.
A oposição à política neoliberal se estende desde os setores populares até a classe dominante BF – O senhor já elogiou a política externa do governo Lula. Mas não acha que o discurso do Itamaraty fica no marco do livre comércio? Santos – Esse é um limite dessa política porque está se jogando uma carta muito perigosa. A política externa não é totalmente voltada para a defesa do livre comércio, mas usa esse lema para obrigar os países desenvolvidos a abrir mais mercado para produtos agrícolas. Mas é perigosa tanta ênfase à exportação agrícola. Primeiro, porque seu valor agregado é baixo. Depois, porque ficamos na mão dos grandes monopólios que controlam os preços dos produtos agrícolas. E, terceiro porque, com isso, ficamos reduzidos ao setor do agronegócio, que não gera emprego massivamente. Mas, ao lado disso, a política externa procura se combinar com uma política de integração da América Latina, uma política industrial, uma política que favoreça a indústria de base no Brasil. BF – Qual a importância da integração da América Latina? Santos – Para dispor de alguma base autônoma e própria no mundo, do ponto de vista produtivo, econômico, é preciso atuar em mercados os mais amplos possíveis. A escala de produção é muito grande. E a quais o mercado tem acesso mais facilmente? Àqueles com os quais se tem identidade cultural, política, facilidade geográfica. É o que está ocorrendo em regiões com vínculo maior, como a América Latina. Há uma identidade política e ideológica na região, que formou um pensamento social comum, movimentos políticos parecidos entre si, em função mesmo do caráter da colonização que unificou povos inteiros na sua relação com o domínio imperialista espanhol e português, depois inglês, depois estadunidense. Isso tudo manteve na região uma unidade de visão e problemática, que forma um acervo extremamente positivo para uma perspectiva de desenvolvimento econômico, seja ela ainda dentro do capitalismo ou, melhor, se avançar para o socialismo.
Ano 2 • número 79 • De 2 a 8 de setembro de 2004 – 9
SEGUNDO CADERNO ESTADOS UNIDOS
Protestos superam as expectativas H
á uma espécie de epidemia nos protestos que estão ocorrendo esta semana por conta da Convenção Nacional Republicana em Nova York. Até a noite de 30 de agosto, no primeiro dia da Convenção, havia ocorrido várias mobilizações de massa. A começar da sexta-feira, dia 27 de agosto, e durante o fim de semana, 25 mil ativistas dos direitos reprodutivos (isto é, a favor do aborto e dos anticoncepcionais) marcharam pela Ponte do Brooklyn; 5 mil ciclistas causaram um enorme congestionamento de trânsito no centro de Manhattan, em protesto contra a poluição causada pelos automóveis. E no dia 29 de agosto houve uma marcha contra a reeleição de Bush, organizada pela Coalizão dos Unidos pela Paz e pela Justiça, estimada tanto pelos organizadores como pela polícia em 500 mil pessoas, em sua maioria famílias. Essa marcha foi a maior em Nova York, desde o começo dos anos 80, época das manifestações contra a energia nuclear. A prisão de mais de 500 manifestantes não afetou o ânimo das pessoas mobilizadas. Dia 30 de agosto, foram organizadas duas manifestações principais, em nome de pessoas excluídas. A primeira, promovida pela Coalizão Ainda Resistimos, foi formada por imigrantes, sem-teto ou pessoas em más condições de habitação, ativistas da Aids, grupos contra o racismo e contra a exclusão econômica, ativistas antiguerra. A segunda foi liderada pela Campanha das Pessoas Pobres pelos Direitos Humanos Econômicos. A primeira marcha tinha autorização oficial e, no momento em que todos tinham deixado a praça Union Square para a caminhada de dois quilômetros até o Madison Square Garden, onde se realiza a Convenção, contava com sete mil manifestantes. Havia anarquistas tocando tambores, imigrantes de várias etnias e ativistas de diversas organizações comunitárias. As pessoas gritavam frases como “Há um terrorista atrás de cada Bush” (o sobrenome do presidente significa “arbusto”, em inglês), “Por uma Intifada global” e “Eduquem, não prendam”.
MANIFESTANTES DETIDOS Durante a segunda marcha, considerada ilegal, houve um comício diante da sede das Nações Unidas. Muitos discursaram, inclusive o secretário-geral do Conselho Nacional das Igrejas dos EUA, Bob Edgar; um poeta hiphop afro-americano, vários líderes dos sem-teto, como Kiana Black, que trouxe seu filho de dez anos do Kentucky. O sistema de som estava ruim e muitos manifestantes estavam cansados de andar por toda Manhattan nas marchas anteriores. Mas, no momento em que as pessoas presentes ao comício fizeram uma oração pela sua causa e para que ninguém fosse detido (afinal, esse protesto era ilegal), a reunião atingia 2.200 manifestantes. Ao fim do comício, iniciou-se uma caminhada tendo na linha de frente representantes de uma organização de surdos, idosos em cadeiras de rodas e mães solteiras com os filhos ao colo. Não houve prisões. Um policial corpulento, na esquina da Segunda Avenida, acenava para que as pessoas marchassem. Foram vários quilômetros rumo ao sul, depois para o oeste e, finalmente, para o norte, na Oitava Avenida, com viaturas policiais abrindo caminho e fileiras da tropa de choque marchando nas laterais. Pessoas se aglomeraram nas calçadas para assistir à marcha,
Ativistas estadunidenses e povos de outras partes do mundo se uniram por toda Nova York para dizer não à reeleição de Bush e sua política
cantando e dançando e, muitas delas, aderindo à manifestação, batendo palmas e bradando palavras de ordem. Quando a noite caiu e a marcha se aproximou do Madison Square Garden, sede da Convenção Americana, já reunia 15 mil manifestantes.
Quando a marcha chegou, no começo de noite, às últimas barricadas que defendiam a Convenção, os organizadores pretendiam dar voz de prisão a Bush dentro da Convenção (qualquer cidadão, nos Estados Unidos ou no Brasil, tem o direito de prender um criminoso
em flagrante delito), mas a polícia organizou uma barreira que separou a vanguarda dos demais manifestantes. A multidão reagiu. Só havia dois policiais a cavalo, insuficientes para conter os manifestantes. A situação começou a sair de controle, mas logo chegaram reforços policiais – centenas deles, em vários tipos de veículos, inclusive lambretas. Ônibus lotaram a Sexta e a Sétima Avenidas, presumivelmente para abrigar manifestantes detidos. O fotógrafo Anuradha Mittal testemunhou o uso de gás de pimenta pelas tropas de choque. Enquanto as cerimônias de abertura e os discursos da Convenção Republicana estavam sendo acompanhados por toda a grande mídia, com sua festiva comemoração do
desempenho de Bush na presidência, sem-teto de todas as etnias e idades estavam sendo encurralados e violentamente reprimidos a três quarteirões da sede da Convenção. Mesmo assim, tentavam reagir e marchar em frente, bradando “Isso é que é democracia!”. A polícia de Nova York se viu, assim, na incômoda situação de defender a exclusão e a falta de dignidade. Os republicanos tinham esperado usar Nova York como um símbolo da luta contra o terror, lembrando os ataques de 11 de setembro de 2001. Mas muitos nova-yorkinos aderiram aos manifestantes vindos de todo o país. Os republicanos ficaram sitiados em sua Convenção, sob a proteção da maciça tropa de choque.
O mundo diz não a Bush Jim Cason e David Brooks de Nova York (EUA) A ira pessoal contra um presidente acusado de mentiroso, cínico e até criminoso multiplicou-se, dia 29 de agosto, em Nova York, por centenas de milhares de vozes que formaram um coro ensurdecedor de “Já basta!”. A celebração de resistência foi tão ampla que, em alguns instantes, não cabia nas grandes avenidas da cidade. A multidão, extraordinariamente diversificada, estava unida pelo repúdio a George W. Bush. Não era necessariamente a favor de seus opositores, do Partido Democrata. Expressava uma idéia mais ampla, registrada na faixa que encabeçava a marcha: “O mundo diz não a Bush”. Todos os participantes tinham motivos e razões. Alguns, porque seus filhos morreram no Iraque. Outros, porque seus familiares, mortos pelos atentados de 11 de setembro de 2001, foram utilizados como justificativas para outras mortes. Milhares de trabalhadores representavam os milhões que perderão ou poderão perder seu emprego, enquanto os ricos estão a cada dia mais seguros. Mulheres lembraram que se sentem ameaçadas, junto com homossexuais, imigrantes, ambientalistas, latinos, negros e defensores dos direitos civis – cujas conquistas podem ser anuladas em razão das políticas da Casa Branca. Mas no dia 29, quase ninguém
CMI
Stephen Bartlett especial para o Brasil de Fato de Nova York (EUA)
Fotos: Anuradha Mittal
Mobilizações populares reúnem centenas de milhares de pessoas e republicanos ficam sitiados em sua convenção
Manifestantes foram violentamente agredidos por policiais durante protestos
sentiu necessidade de explicar por que estava marchando. Bastava frisar que Bush é “um mentiroso”, como afirmavam milhares de cartazes. Uma mulher de cerca de 50 anos explicou: “Estou aqui porque creio que a guerra contra o Iraque é desnecessária, e porque Bush não está agindo segundo os interesses da maioria do povo deste país”.
ARMA DE DESTRUIÇÃO A senhora Kernaghan, uma avó de 87 anos e em cadeira de rodas, era mais direta. Usava um broche que declarava simplesmente: “Fuck Bush” (F...-se Bush). Comentou que estava presente porque “as políticas do presidente são um desastre para os estadunidenses e para o mundo”.
Essas duas palavras, Fuck Bush, foram certamente as mais populares na manifestação. Era possível vê-las no traseiro dos participantes, em camisetas sobre o peito das mulheres e em dezenas de milhares de cartazes. “Tirem o verdadeiro terrorista da Casa Branca”, “Eleger um louco termina em loucura”, “Bush é uma arma de destruição maciça”, “Resgate os EUA, derrote Bush”, “Bush mente, quem morre?”, e variações infinitas dessas frases criaram um mar de faixas, cartazes, globos, camisetas, bonecos. As frases eram reescritas com giz nas ruas e paredes ao longo da marcha. Houve teatro. Os “Bilionários por Bush”, vestidos de smoking,
fumando charutos, bebendo champanha e usando pérolas, uniram-se aos manifestantes gritando: “De quem é a mídia? Nossa! De quem é o petróleo? Nosso! De quem é o presidente? Nosso!”. Exibiam cartazes pedindo “Salário-mínimo mais baixo”, “Privatizem o Central Park” (principal área de lazer de Nova York), “2 milhões de desempregados: um bom começo”, “Cheney é inocente”, “Tirem as mãos da Halliburton”. Os Bilionários ironizavam os manifestantes por se preocupar tanto com coisas secundárias, como os direitos humanos. Esta semana, os Biliónários, um grupo satírico, vai realizar vários atos de “apoio” ao presidente que eles “compraram”: entre eles, uma partida de críquete no Central Park e uma manifestação para que se revogue a liberdade de expressão garantida pela Constituição. Milhares de participantes expressaram sua identidade. “Mais um veterano contra a guerra”, “Trabalhadores dos Correios contra a guerra”, “Irlandeses contra a guerra”, “Coreanos pela paz”, “Budistas pela paz”, “Uma família de militares contra a guerra”, “Veterano da 2ª Guerra Mundial pela paz”, “Sindicalistas estadunidenses contra a guerra”, e muito mais. Mil caixões de papelão com bandeiras estadunidenses passaram em procissão diante do Madison Square Garden, como lembrança solene das baixas da guerra. (La Jornada, www.jornada.unam.mx)
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AMÉRICA LATINA LIVRE COMÉRCIO
De grão em grão, EUA constroem a Alca Estratégia é fechar tratados com países da América Latina e minar a resistência contra as negociações da Alca Jorge Pereira Filho da Redação
DIVISÃO Mas os Estados Unidos e governos aliados – como os do México, Colômbia e Chile – recuaram e voltaram a defender um tratado abrangente. Já o Mercosul, sobretudo Brasil e Argentina, quer um acordo menos ambicioso e cobra a eliminação dos subsídios e apoios internos concedidos pelo governo estadunidense a seus agricultores. A Venezuela, por sua vez, propõe a discussão de um outro projeto de integração. Com os acordos bilaterais, os Estados Unidos arregimentam países menores e, ao mesmo tempo, enfraquecem uma possível articulação latino-americana. Por isso, a decisão dos movimentos sociais que participaram na Campanha Continental contra a Alca, em Quito, durante o Fórum Social das Américas, de estender sua aliança para rejeitar toda iniciativa de acordos de livre comércio na região, e não somente a Alca.
LUTA UNITÁRIA “Os TLCs formam parte da mesma estratégia da Alca. O próprio governo colombiano tem dito que a diferença entre ambos é apenas o número de participantes. Os capítulos são os mesmos, mas a capacidade de negociação é menor, pois não se conta com a possibilidade de coordenar posições com outros países”, avalia Enrique Daza, da Rede Colombiana de Ação frente ao Livre Comércio e à Alca (Recalca). Desde o início do ano, os Estados Unidos querem que Colômbia, Equador e Peru assinem o Tratado de Livre Comércio Andino. Os prazos determinados para a conclusão do acordo são reduzidos. A expectativa dos estadunidenses é concluí-lo até 2005.
RESISTÊNCIA O conteúdo das negociações é mantido em segredo e a mídia comercial desses países faz propaganda das vantagens do TLC. “Não houve o mínimo interesse do governo em fazer um debate público sobre a questão, caso contrário seria convocada uma consulta popular. Não é só uma questão de força do império, mas também de um entreguismo das elites dominantes
TRATADO DE LIVRE COMÉRCIO ANDINO
ÁREA DE LIVRE COMÉRCIO DAS AMÉRICAS (Alca) Países: Todas as nações do continente americano, menos Cuba. Situação: acordo em discussão desde 1994. Eleições nos Estados Unidos e resistências a um tratado abrangente paralisaram negociações.
TRATADO DE LIVRE COMÉRCIO DA AMÉRICA DO NORTE (Nafta, sigla em inglês)
Situação: Acordo assinado em junho de 2003, nos moldes do Nafta. Está em vigor desde o início de 2004. EUA-PANAMÁ Situação: Em negociação.
TRATADO DE LIVRE COMÉRCIO DA AMÉRICA CENTRAL (Alcac ou Cafta, em inglês)
EUA-URUGUAI
Países: EUA, Costa Rica, Guatemala, El Salvador, Honduras e Nicarágua Situação: acordo assinado pelos presidentes dos países em janeiro deste ano. Para entrar em vigor, resta aprovação no Congresso de cada uma das nações e alterações em suas respectivas constituições.
Os países da América do Sul selecionados para firmar acordos de livre comércio com os Estados Unidos fazem parte de uma seleta lista de governos alinhados com os interesses imperialistas. A começar pela Colômbia, onde o atual presidente, Álvaro Uribe, aceita a ingerência externa em assuntos nacionais e coloca o país como uma porta de entrada para forças militares estadunidenses na região. “O governo colombiano é o mais dócil aliado de Washington na América do Sul e sua adesão à política de segurança dos Estados Unidos o torna mais fraco ainda nas negociações”, explica Enrique Daza, da Rede Colombiana de Ação frente ao Livre Comércio e à Alca (Recalca). Os governos de Equador e Peru também estão afinados com os interesses estadunidenses. O presidente equatoriano, Lucio Gutiérrez, depois de ser eleito com forte apoio do movimento popular local, sobretudo dos indígenas, abandonou suas propostas de governo e assumiu uma política claramente neoliberal. SUBMISSÃO
Hoje, Gutiérrez tem elevado índice de rejeição popular, mas segue no poder alinhado com as forças mais retrógradas da política equatoriana. No Peru, o economista e ex-funcionário do Banco Mundial, Alejandro Toledo, governa o país com uma aliança de centro-direita, reprimindo movimentos sociais. A submissão é tamanha que, no Equador, antes mesmo de o TLC ser assinado, debate-se a possibilidade de se adaptar a Constituição às cláusulas previstas no acordo bilateral. “Ao aceitar normas com maior alcance do que a Constituição nacional, o modelo neoliberal se torna irreversível, perde-se a soberania alimentar e se abandona qualquer esforço de industrialização autônoma, além de minar a capacidade de o Estado ter políticas sociais e de desenvolvimento”, avalia Daza. (JPF)
em nossos países”, critica Alberto Acosta, economista equatoriano. Apesar da falta de transparência e do caráter impositivo das negociações, a resistência aos TLCs é crescente. Para o dia 12 de outubro, os movimentos populares do continente estão preparando mobiliza-
ACORDOS BILATERAIS EUA-CHILE
Países: EUA, Canadá e México Situação: em vigor desde 1994.
Governos facilitam acordos
Países: Colômbia, Equador e Peru. A Bolívia participa como observadora e pode entrar na mesa de negociação, se assim desejar. Situação: Acordo em negociação. Previsão é que entre em vigor em 2005.
Situação: Presidente uruguaio, Jorge Battle, já acenou favoravelmente à negociação de um TLC com os Estados Unidos. Todavia, não foi iniciada qualquer discussão. EUA-REPÚBLICA DOMINICANA Situação: Antigo governo da República Dominicana assinou acordo para integrar o Cafta.
Luciney Martins/Rede Rua
O
s movimentos sociais latinoamericanos têm um desafio urgente para os próximos meses: barrar a evolução dos tratados de livre comércio, os TLCs, no continente. Com a paralisação momentânea das negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), os Estados Unidos vão costurando acordos bilaterais para impor o mesmo projeto aos povos latino-americanos. Os tratados bilaterais estão sendo negociados em ritmo acelerado, com prazos curtíssimos, e muitos deles estão com as primeiras etapas concluídas. Um exemplo é o da Área de Livre Comércio da América Central (Cafta, na sigla em inglês), preparado durante o ano de 2003 e assinado pelos presidentes da Guatemala, El Salvador, Costa Rica e Honduras. Para entrar em vigor, agora, o Cafta precisa da aprovação do Congresso desses países, além de alterações constitucionais. Os TLCs vêm ganhando mais força desde fevereiro de 2004, quando as negociações da Alca emperraram. Em uma reunião na cidade mexicana de Puebla, os diplomatas dos 34 países das Américas (exceto Cuba) que discutem o acordo não chegaram a um consenso sobre como prosseguir, a partir dos parâmetros definidos na Reunião Ministerial de Miami (novembro de 2003), ocasião em que se reduziu a abrangência da Alca.
A OFENSIVA DO IMPÉRIO
Com os acordos bilaterais, os Estados Unidos arregimentam países menores e enfraquecem uma articulação latino-americana
Redução dos direitos trabalhistas Os Tratados de Livre Comércio (TLCs) e a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) não são o princípio de algo novo, mas o ponto de chegada do ajuste estrutural. Essa é a avaliação do economista equatoriano Alberto Acosta, estudioso do tema. Para ele, tais acordos consolidam um projeto hegemônico dos Estados Unidos. “Os TLCs querem tornar eterno o Consenso de Washington. Esses países já têm abertura comercial, mercados livres e flexibilização das relações de trabalho. Os TLCs querem ir além, ser mais extremistas no ajuste estrutural”, analisa Acosta. Segundo ele, os trabalhadores serão os maiores perdedores do acordo negociado entre Colômbia, Equador e Peru. “Haverá muito mais flexibilização, é preciso uma mão-de-obra barata, principalmente aqui no Equador, depois da dolarização”, afirma Acosta. Em 2001, o Equador substituiu sua moeda pelo dólar estadunidense. Até mesmo setores da classe do-
ções em todos os países para denunciar os perigos desses acordos. Nos países, as organizações sociais têm assumido também a missão de colocar o tema em discussão. “Por nossa conta, e independente do governo, estamos com a tarefa de revelar o perigo do tratado e realizar um debate nacional”, conta Daza, acrescentando que os movimentos andinos já têm uma coordenação regional e uma agenda comum.
MOBILIZAÇÕES O equatoriano Acosta também está otimista. “O prazo definido para a negociação do TLC é realmente curto, mas há uma crescente mobilização social que pode barrálo”, analisa o economista. Na Costa
Já Carlos Aguilar, pesquisador do Departamento Ecumênico das Investigações e secretário do Encontro Popular, rede contra o livre comércio da Costa Rica, destaca que a Área de Livre Comércio da América Central (Cafta, na sigla em inglês) vai reduzir o acesso aos medicamentos genéricos, que têm papel fundamental na saúde pública. “A ampliação, na prática, das patentes concedidas aos medica-
mentos pode acabar com o fornecimento de remédios pelo Seguro Social”, alerta Aguilar, ressaltando que o Cafta reforçará o modelo agroexportador e aprofundará a crise de soberania alimentar do país. O pesquisador considera que os camponeses serão um dos grupos mais afetados com o Cafta, não somente do ponto de vista econômico. “Os acordos de livre comércio atentam contra as formas de vida dos camponeses, sua forma de produção e de conhecimento acumulado durante gerações”, diz Aguilar. Para ele, as mulheres também sofrerão com os TLCs. “Por isso, a resistência a esses acordos é um voto pela continuidade da vida em nossas comunidades. Não se trata de negarmos o comércio, ou defender posições protecionistas que enriqueceram alguns empresários nacionais. Pensar e organizar alternativas deve cruzar a raíz organizativa e nossas próprias formas de vida”, propõe o costarriquenho. (JPF)
Rica, apesar de o acordo com o Cafta já ter sido assinado pelo presidente, as organizações sociais estão com esperanças de brecar o processo no Legislativo. “Nesse momento, existe um crescente movimento popular contra o acordo e a correlação de forças no Congresso não tem favorecido o Executivo. Estamos preparando atividades para os próximos meses como bloqueios de estradas, manifestações e uma possível greve nacional”, relata Carlos Aguilar, pesquisador do Departamento Ecumênico das Investigações e secretário do Encontro Popular, rede costarriquenha contra o livre comércio. O país vive um clima de mobilizações sociais. Desde o dia 23
de agosto, trabalhadores da ilha da América Central estão bloqueando estradas e avenidas contra a empresa transnacional Riteve, da Espanha, que monopolizou o mercado de oficinas mecânicas. A manifestação também rechaça o Cafta e outras políticas neoliberais. Já o Panamá – outro país da América Central que negocia um tratado de livre comércio com os Estados Unidos – passou também por dias de mobilização. Recentemente, as pastorais sociais panamenhas lideraram uma consulta popular com o objetivo de levar à população o debate sobre os riscos do TLC. O resultado do processo foi a rejeição de 87% dos mais de 8 mil panamenhos que participaram do processo.
minante estão receosos em firmar o TLC Andino. “Muitos empresários colombianos enxergam mais ameaças do que oportunidades, mas sofrem chantagem do governo e não se atrevem a se opor ao processo”, aponta Enrique Daza, da Rede Colombiana de Ação frente ao Livre Comércio e à Alca (Recalca). O colombiano relaciona que o principal interesse dos Estados Unidos em seu país são os setores de telecomunicações e petróleo, o financeiro, o agronegócio, educação e saúde.
CAFTA
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AMÉRICA LATINA VENEZUELA
Chávez manda acelerar a reforma agrária E
mpenhado em acelerar a reforma agrária, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, ordenou que o Comando Unificado da Força Armada Nacional (Cufan) faça, em duas semanas, o mapeamento dos latinfúndios do país – que é o quarto maior exportador de petróleo mundial, mas importa mais de 70% dos alimentos consumidos pela população. “Chegou a hora de democratizar a terra na Venezuela. Quero ver resultados rápidos. Terra para os camponeses, terra para quem trabalha, terra para o povo trabalhar e produzir”, disse o presidente, dia 29 de agosto, no programa dominical Alô Presidente. Para Chávez, que teve seu mandato ratificado no plebiscito de 15 de agosto, até agora seu governo cumpriu a Constituição apenas “superficialmente”. A seu ver, a aplicação da Lei de Terras é uma das medidas para aprofundar a chamada “revolução bolivariana”. “Nessa nova etapa da revolução, exijo a aplicação severa da Constituição e da Lei de Terra”, disse o presidente. Criada em 2001, a Lei de Terras – criticada pela oposição – define como latifúndio toda propriedade rural com mais de 5 mil hectares. O proprietário que não utiliza a terra para a produção pode ser punido com pagamento de uma multa que varia conforme o número de hectares improdutivos. Se, ainda assim, a propriedade continuar sem produção, aciona-se um processo de desapropriação semelhante ao brasileiro, em que o Estado paga pela aquisição da terra. Em cinco anos, o governo assentou cerca de 130 mil famílias em mais de 2 milhões de hectares. Os números, no entanto, não garantem a mudança nas condições de vida dessas famílias. Muitos continuam sem acesso a crédito agrícola para produzir ou sem infra-estrutura básica, como escolas e hospitais. Para Franco Manrique, do Comitê de Terras Urbanas, a iniciativa do governo é bem-vinda desde que seja assegurado que o modelo de
produção dos grandes proprietários não seja reproduzido. “Eliminar o latifúndio não significa acabar com o modelo latifundista de produção. O governo tem que impedir as relações capitalistas e o uso de nossas terras pelas transnacionais”, avalia Marinque. Em sua opinião, é preciso fortalecer a organização dos movimentos camponeses para que, com acesso ao crédito agrícola, os trabalhadores possam formar cooperativas e garantir a diversidade de alimentos necessários à população. “Grande parte do crédito agrícola continua nas mãos dos grandes produtores que não têm capacidade de alimen-
Para Chávez, aplicação da Lei de Terras aprofunda a “revolução bolivariana”
tar a população”, critica Franco Manrique, referindo-se à produção em grande escala de poucas variedades de alimentos. Entre os grandes produtores venezuelanos está o grupo Polar, maior processadora de alimentos e bebidas do país e a principal empresa a aderir à sabotagem industrial de dezembro de 2002, para promover o falso desabastecimento à população durante dois meses. Chávez anunciou, ainda, a criação do Ministério da Alimentação, que por enquanto servirá apenas para ampliar a venda de alimentos, importados, a baixo custo para a população.
Manifesto para aprofundar a “revolução” Fazer uma rebelião contra a burocracia e a corrupção. Essa é uma das propostas de ação dos movimentos sociais venezuelanos. Em uma assembléia realizada dia 29 de agosto, onde os principais movimentos sociais e líderes comunitários do país se integraram ao grupo Conexão Social, foi elaborado um manifesto com as reivindicações da frente popular venezuelana ao governo federal. Reestatização da empresa de telecomunicações CanTV, controle do Banco Central, participação popular na estatal Petróleos de Venezuela (Pdvsa), democratização e regulamentação dos meios de comunicação e combate à corrupção são os pontos mais relevantes do documento, que será entregue ao presidente da República e à Assembléia Nacional. Após terem garantido a continuidade do governo Chávez no referendo de 15 de agosto, os apoiadores do governo prometem voltar às ruas para reivindicar o aprofundamento da revolução. “Vamos fazer manifestações em todo o país, para garantir os avanços deste governo. Temos que acabar com o velho Estado corrupto”, afirma Roland Denis, vice-ministro de Planificação e Desenvolvimento, em 2001, e um dos principais ativistas sociais do país. Os mais de 150 representantes populares reunidos na Assembléia
na qualidade. É preciso aprofundar a formação política e cultural”, avalia o artista plástico Arturo Lopez, morador do bairro popular de Petare, oeste de Caracas.
Miraflores
Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)
Claudia Jardim
Presidente quer mapear latifúndios e implantar medidas para garantir produção de gêneros alimentícios
CHAVISTAS NA MIRA
Presidente venezuelano inaugura mercado popular no bairro de San Cristoban decidiram que, em 13 de abril (data em que o povo tomou o Palácio Miraflores para exigir a volta de Chávez, seqüestrado durante o golpe) do próximo ano, será realizado o Congresso Nacional da Frente Popular. De acordo com os movimentos, o evento deverá ser palco para
o debate político e para a definição de estratégias de aprofundamento da “revolução bolivariana” para além das ações dos partidos políticos venezuelanos, cuja atuação é “essencialmente eleitoreira”. “É preciso acabar com o discurso voluntarista. A tarefa, agora, é investir
Um dos pontos de ampla discussão na Assembléia foi a imposição das candidaturas a governadores e prefeitos, por parte do comando político do governo. Muitos chavistas que aspiram aos postos não são bem-vistos pela população. No programa Alô Presidente do dia 29 de agosto, Chávez criticou os “franco-atiradores internos”, referindose às críticas feitas aos candidatos chavistas. “Já temos os candidatos anunciados e esses são os candidatos. Quem não quer unidade, que se vá com os escuálidos”, disse o presidente venezuelano. A divergência entre Chávez e grande parte de seus apoiadores, que exigem eleições primárias para definir os candidatos, pode sinalizar o fracasso do governo – com índice de aprovação em torno de 60% – nas eleições de setembro. “Voltar a votar nos mesmos não significa proteger o presidente e a revolução, mas aprofundar a corrupção. Não vou concordar com isso”, crtica a líder comunitária Odalis Mendes, uma das milhares de voluntárias que ajudaram na campanha política do referendo. (CJ)
EQUADOR
Movimento indígena rejeita a Petrobras no país No Equador, o movimento indígena ainda aposta na liderança política do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a América Latina. Embora Lula não tenha incluído em sua agenda encontro com líderes indígenas e populares durante sua visita a Quito, dias 24 e 25 de agosto, eles entregaram a seus assessores uma carta em que pedem que lidere a nova integração dos povos latino-americanos. O documento assinado por líderes como Humberto Cholango, Leonidas Iza e Gilberto Talahua considera o presidente brasileiro “um marco histórico na luta dos povos mais necessitados da região, por suas idéias firmes e suas posições coerentes na defesa da soberania”. No entanto, a própria Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), ao lado de outras organizações sociais, protestou contra a licença dada pelo seu governo à Petrobras, para que explore petróleo no Parque Nacional Yasuní, na Amazônia Equatoriana, declarado uma das maiores reservas mundiais. Os movimentos sociais argumentam que a entrada da Petrobras na Amazônia Equatoriana viola a Constituição do Equador e o
milhões de habitantes e um Produto Interno Bruto de mais de 1 trilhão de dólares”, disse Lula.
Agência Brasil
Jairo Rolong de Quito (Equador) especial para o Brasil de Fato
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
Lula recebe homenagem do presidente equatoriano Lucio Gutiérrez, durante sua visita a Quito, nos dias 24 e 25 de agosto
Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Os Huaoranis e Kichwas temem ter, com a Petrobras, o mesmo destino do povo Sarayaku, que denunciou ao mundo os estragos ambientais provocados pela empresa petrolífera argentina CGC, na região de Pastaza. A Petrobras e o governo brasileiro guardaram silêncio sobre o assunto.
O assessor de Lula para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, respondeu aos líderes indígenas que “é preciso fortalecer a unidade dos pobres da América Latina e pensar como fortalecer o Mercosul”. Porém, pelos acordos assinados entre Lula e o presidente equatoriano Lucio Gutiérrez, os “sócios do Brasil” para avançar seus planos econômicos não são os povos, mas
sim os governos e as empresas. Em declaração feita durante a homenagem que recebeu do Congresso Nacional do Equador, Lula manifestou satisfação com a conclusão das negociações entre a Comunidade Andina e o Mercosul. “Com a associação dos dois principais blocos do continente, forma-se uma aliança econômica estratégica, que congrega uma população de cerca de 350
Além de propor a integração do Equador no Mercosul, o governo brasileiro anunciou que a Petrobras deve investir entre 120 milhões de dólares e 150 milhões de dólares no país nos próximos dois anos. A empresa também vai colaborar na modernização da Petroequador. Os acordos prevêem ainda parceria para a construção de aeroportos e estradas na Amazônia, um programa energético envolvendo petróleo, gás natural, eletricidade e fontes renováveis, investimento em telecomunicações e cooperação em saúde. Além disso, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) vai financiar a construção da Usina Hidrelétrica de San Francisco. Dos 325 milhões de dólares previstos para a obra, 243 milhões de dólares serão financiados pelo BNDES. Embora Lula defenda a integração sul-americana sem a tutela dos Estados Unidos, dias antes no Chile, ele afirmou que o presidente George W. Bush “é um companheiro indispensável para o Brasil e para a América do Sul”. Essa posição não está longe da do presidente equatoriano, forte aliado dos Estados Unidos e a favor do Tratado de Livre Comércio e do Plano Colômbia.
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AMBIENTE TRANSGÊNICOS
Soja limpa do Paraná para a França Jonas Oliveira/Folha Imagem
O Estado pode ser o maior fornecedor do grão convencional para grandes regiões produtoras de alimentos do país da Redação
O
Paraná, um dos Estados brasileiros livres de transgênicos, pode se tornar o principal fornecedor mundial de soja convencional para a regiões da Bretanha e do Pays de Loire, na França, que estão se transformando em uma área não-transgênica. A proposta foi divulgada dia 30 de agosto, durante o seminário “Soja – safra 2004/ 2005 – Paraná Livre de Transgênicos”, promovido pelo Greenpeace e pelo Departamento de Estudos Socioeconômicos Rurais (Deser), em Curitiba. A comitiva francesa foi integrada por Pascale Loget, vice-governadora da Bretanha, René Louail, da confederação dos agricultores familiares da Comunidade Européia, e Yvan Le Mevel, do Conselho Agrícola da Bretanha.
DEPENDÊNCIA
Colheita de soja convencional no município de Cornélio Procópio, norte do Paraná
“O consumidor francês é extremamente exigente com a questão alimentar, incluindo a cadeia produtiva. Ele percebeu que não existe processo de rastreabilidade capaz de garantir 100% de produtos livres de transgênicos para alimentação animal. Por isso, é necessária a criação de áreas livres de transgênicos. Esperamos uma parceria do Porto de Lorient com o Porto de Paranaguá”, afirmou René Louail.
Segundo Louail e Pascale, a França é dependente das importações de proteína de soja, uma vez que o déficit do produto é de cerca de 80%. Atualmente, o país compra no exterior 5 milhões de toneladas de soja, boa parte das quais vão para a Bretanha e o Pays de Loire, regiões que respondem por 65% da carne suína, 40% do leite e 50% dos ovos produzidos na França. “O que está em questão é o suprimento de toda esta produção”, disse a vice-governadora da Bretanha. “É em vocês, caros amigos do Paraná, que queremos depositar a confiança de que esse trabalho está sendo realizado adequadamente”, complementou Louail. Dos três maiores exportadores mundiais de soja, o Brasil é o único capaz de atender à demanda do mercado internacional por produtos isentos de organismos geneticamente modificados. A maior parte da produção dos outros dois grandes fornecedores – Estados Unidos e Argentina – é transgênica. “A sociedade civil organizada apóia a política do governo paranaense em se manter livre de transgênicos e incentiva, também, a produção de soja convencional em outros Estados sem a destruição de nossas florestas. Isso garantiria vantagens comerciais para o Brasil”, afirmou Ventura
Barbeiro, engenheiro agrônomo da campanha de Engenharia Genética do Greenpeace. O seminário contou, ainda, com a participação de Carlos Alberto Salvador, chefe de Defesa Sanitária da Secretaria do Estado de Agricultura e Abastecimento do Paraná, e Maria José, da Campanha Brasil Livre de Transgênicos.
BIOSSEGURANÇA Ao mesmo tempo em que iniciativas como a do Paraná ganham reconhecimento internacional e garantem vantagens econômicas para o Estado, o Senado brasileiro pode votar a favor de uma lei que vai justamente na contramão deste processo. O Projeto de Lei de Biossegurança pode excluir a obrigatoriedade de as empresas realizarem o licenciamento ambiental e a avaliação do Ministério da Saúde. Isto é, o PL aprovado pelos deputados, que já era ruim, pode ficar ainda pior. “Retirar a competência de avaliação do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Saúde seria de extrema irresponsabilidade e ameaçaria ainda mais a biodiversidade e a agricultura do país”, afirmou Mariana Paoli, coordenadora da campanha de engenharia genética do Greenpeace. (www.greenpeace.org.br)
ANÁLISE
Afinal, o que querem o governo e o PT? Está chegando outubro, época de plantio, e os interessados exigem a liberação do plantio da soja geneticamente modificada. Como o governo Lula não sabe o que fazer quando o assunto é transgênico, vacila entre a presão dos ruralistas, das empresas de biotecnologia e dos cientistas – a turma que defende a liberação da soja da Monsanto. Dia 27 de agosto, o governador do Rio Grande do Sul, Germano Rigotto (PMDB), foi cobrar do presidente da República a liberação do plantio. Ao final da reunião, foi cogitada a possibilidade de fatiar o projeto de lei de biossegurança, que está no Senado, só aprovando o artigo que libera o plantio da soja da Monsanto. Até agora, o governo disse que descarta a edição de uma nova medida provisória sobre o assunto. O senador Osmar Dias (PDT-PR) apresentou substitutivo que muda substancialmente o texto aprovado PROTESTO Às vésperas de o Senado votar o regime de urgência do Projeto de Lei de Biossegurança, o Greenpeace realizou, dia 24 de agosto, um protesto em Brasília lembrando aos parlamentares que a ampla maioria (73%) dos brasileiros rejeita os transgênicos. Os ativistas da organização ambientalista colocaram um mastro em cima de uma caminhonete e hastearam uma bandeira com o símbolo oficial da rotulagem de transgênicos e um ponto de interrogação. A ação foi encerrada quando os ativistas foram retirados do local pelos bombeiros, encaminhados à delegacia – onde foi feita uma ocorrência –, mas liberados em seguida. O objetivo da manifestação foi questionar o Senado, mostrando que a sociedade está acompanhando com apreensão a tramitação do PL de Biossegurança, que corre o risco de excluir a necessidade da avaliação ambiental e de saúde. Entidades civis estão preocupadas com a possibilidade do PLC 009/2004 ser aprovado nos próximos dias com o substitutivo do senador Osmar Dias (PDT), que não garante a obrigatoriedade das empresas em realizar o licenciamento ambiental e de avaliação do Ministério da Saúde.
Os ruralistas defendem a CTNBio Instalada no governo Fernando Henrique Cardoso, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) deveria zelar pelos interesses do país, advertindo sobre os riscos de organismos geneticamente modificados (OGMs) para a saúde e o meio ambiente. Nunca fez nada disso, já que sem-
pre atuou estreitamente associada aos interesses dos ruralistas e dos fornecedores de OGMs. Foi assim em 1997, quando aprovou a liberação da soja transgênica Roundup Ready, da Monsanto, baseando-se exclusivamente nos laudos apresentados pela multinacional, sem um só estudo feito no
Brasil. O pior da CTNbio, e o que a levou ao descrédito, foi ter se tornado um meio de propaganda dos transgênicos. Todos os textos da Comissão relevam a nova tecnologia, sem mencionar seus possíveis riscos à saúde e ao meio ambiente. Mudou o governo, mas a CTNBio continua atuando da mesma forma.
na Câmara Federal, adequando-o ao desejo dos ruralistas. Nem por isso, porém, o líder do governo no Senado, Aloíso Mercadante (PTSP), deixou de aprová-lo. Mas a líder do PT no Senado, Ideli Salvati (PT-SC) rejeitou o substitutivo.
clarava que aquele era o projeto do governo. Não era bem assim, já que, na Câmara, o governo entregou sua relatoria ao deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), que tratou de modificálo conforme queriam os ruralistas. Quando Rebelo ganhou um ministério e saiu da Câmara, foi indicado como relator o deputado Renildo Calheiros (PCdoB-PE). Ele refez o trabalho de Rebelo. Depois de muita negociação, foi aprovado na Câmara um PL um pouco melhor. O problema, portanto, não é o
projeto, ou se é época de plantio ou de colheita de transgênicos, mas uma disputa entre dois modelos. Um, defendido pelo agronegócio e pelos empresários da biotecnologia. Outro, pelos que reivindicam melhor distribuição de renda, reforma agrária, prioridade à produção de alimentos, soberania alimentar, meio ambiente equilibrado – aqui estão todas as forças progressistas do país, incluindo os movimentos do campo, ambientalistas, entidades de defesa do consumidor.
DIVERGÊNCIAS Não é de hoje a contradição. No ano passado, o governo elaborou um projeto de lei de biossegurança que contemplava os interesses da sociedade e a ministra Marina Silva de-
O substitutivo de Osmar Dias O senador Osmar Dias apresentou um substitutivo ao projeto de lei da biossegurança aprovado na Câmara dos Deputados, mudando substancialmente o texto original, fazendo-o mais ao agrado dos ruralistas. Se for aprovado, o PL retorna à Câmara para nova votação. O substitutivo propõe que:
Juan Pratginestós/Greenpeace
Dioclécio Luz de Brasília (DF)
1. A avaliação de liberação comercial de organismos geneticamente modificados (OGMs) seja feita unicamente pela CTNBio, retirando as competências técnicas dos ministérios da Saúde, Agricultura e Meio Ambiente. Assim, os OGMs seriam liberados independentemente da posição destes ministérios. Isso significaria que o poder público ficaria dependente do colegiado da Comissão. 2. O Conselho de ministros só funcione por determinação da CTNBio. Se algum OGM apresentar problemas, o Conselho pode, no máximo, pedir à CTNBio que reavalie sua liberação. 3. Alimentos que contenham substâncias químicas com função de agrotóxicos sejam produzidos e comercializados sem a análise específica prevista pela Lei de Agrotóxicos. Assim, o Ministério da Saúde não poderá exigir testes sobre efeitos para a saúde. 4. A CTNBio passe a emitir decisões, e não mais pareceres, como antes. 5. A legislação brasileira referente à saúde e meio ambiente é descartada, uma vez que apenas um órgão vai decidir por todos. 6. A CTNBio tem poder para deliberar sobre a necessidade ou não de licenciamento ambiental. 7. Os órgãos de registro e fiscalização não poderão fazer exigências técnicas que extrapolem o que for decidido pela CTNBio. Ibama e Ministério da Saúde não poderão questionar nenhuma decisão da CTNBio. (DL)
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DEBATE 50 ANOS SEM VARGAS
Referência indispensável para o Brasil Dom Demétrio Valentini a semana passada transcorreram os 50 anos da morte de Getúlio Vargas. Sua figura permanece referência indispensável para compreender o Brasil. O país deve a Getúlio as decisões estratégicas que até hoje respaldam a trajetória do seu desenvolvimento. Na hora das opções para superar os impasses que hoje se atravessam, sua lembrança volta à tona, como inspiração, e como sentimento de carência de sua visão e de sua coragem. Passada a febre da globalização indiscriminada dos anos noventa, que quase vitimou a soberania dos países do terceiro mundo que a abraçaram cegamente, volta-se agora a falar em projeto de desenvolvimento nacional. Ficou evidente a inconsistência política dos que apregoavam a superação da “era Vargas”, talvez esperançosos de substituí-la por outras “eras” que levassem o nome deles. Agora, vê-se que eles “já eram”, mas Getúlio permanece. Na última reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social o assunto central girou em torno da política energética. Na tentativa de remediar estragos causados por privatizações equi-
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vocadas, o governo busca uma regulamentação severa do setor hidroelétrico, sob a atenta e inteligente coordenação da ministra Dilma Rousseff. Cabe ao governo colocar critérios ao capital privado quando este atua em setores de evidente dimensão pública, como é o caso da energia elétrica. Nessa perspectiva, torna-se possível superar o falso dilema entre “estatização” e “privatização”, na medida em que, sob a ação do poder público, se convoca e se disciplina o capital privado, para que preste sua colaboração no atendimento de serviços públicos, garantindolhe, para tranqüilidade dos investidores, a sua adequada remuneração, sem prejuízo do interesse social dos serviços prestados. Esta é a nova função do governo, nesses tempos de “capitalismo financeiro” que estamos vivendo. No debate em torno da política energética, foi muito elucidativa a lembrança do discurso de Getúlio Vargas na fundação da Eletrobrás. Com muita lucidez, Getúlio colocou princípios e critérios que ainda hoje deveriam ser seguidos. Em primeiro lugar, enfatizou que a energia elétrica é um serviço público, indispensável para o desenvolvimento do país. Por isso, continuou Getúlio, o governo precisa garantir uma oferta
sempre maior que a procura, para facilitar o crescente emprego da energia. E por último, como estratégia de soberania num setor tão fundamental, os empreendimentos no setor deveriam ser financiados por capital nacional. Na continuidade dos debates sobre desenvolvimento nacional, o economista Luiz Gonzaga Beluzzo trouxe cópia do editorial de um grande jornal do país, no dia da assinatura do decreto da criação da Petrobras por Getúlio
Vargas. Pois bem, o jornal preconizava que a Petrobras seria inútil, só iria dar prejuízos ao Brasil, sobretudo porque essa questão de energia deveria ser deixada para a iniciativa particular! Com 50 anos de distância, com tudo o que significou a Petrobras para o Brasil, percebe-se melhor o equívoco desse jornal. A mesma miopia leva ainda hoje a ignorar o legado de Getúlio Vargas para o país. Diante dos desafios que a reali-
dade apresentava, Getúlio soube tomar as decisões estratégicas que abriram caminho para a solução dos problemas. Hoje o país está sufocado por uma dívida enorme. Seu pagamento corresponde a mil salários-mínimos por minuto! Os desafios são outros. Mas a lucidez e a coragem para enfrentá-los deveriam se inspirar em Getúlio Vargas. Dom Demétrio Valentin é bispo de Jales, São Paulo
As cartas do Brasil Flávio Aguiar etúlio Vargas, que deixou uma carta mitológica, chamou os trabalhadores pelo nome, e espelhou-os no poder. É claro que fê-lo em imagem refratada, que tanto acolhia como reprimia. Mas espelhou-os. Por isso seu fantasma segue por aí, 50 anos depois. Na história do Brasil há três cartas mitológicas. O resto é epistolografia: pode ser da melhor qualidade, mas é apenas história. A primeira é a carta de Pero Vaz de Caminha. A segunda é a de D. João VI a seu filho D. Pedro, aconselhando-o a proclamar a Independência antes que algum aventureiro o fizesse. A terceira é a Carta-Testamento de Getúlio Vargas, lida e relida hoje no 24 de agosto de 2004, 50 anos após sua morte. Algo chama a atenção nas leituras que hoje se fazem do fenômeno Vargas. Esse algo pode ser expresso assim: “Ele está vivo”. Isso é o “algo comum” a essas leituras; tanto nas que o exaltam, mesmo que relativamente, quanto nas que procuram diminuí-lo, ou até mesmo acusá-lo pelos desmandos que cometeu ou em que se viu envolvido. Isso está presente até naquelas leituras que procuram ignorá-lo. A Carta-Testamento, gravada em bronze agora em pelo menos duas capitais brasileiras (Rio de Janeiro e Porto Alegre), e em duas versões diferentes, reapareceu como polêmica: quem de fato a escreveu? Há poucas dúvidas sobre a participação em sua redação de José Soares Maciel Filho, que escrevia discursos para Getúlio. Há poucas dúvidas sobre que, se Getúlio não a escreveu, pelo menos a sancionou. É mais provável, como aponta Cícero Antonio F. de Almeida na revista Nossa História, da Biblioteca Nacional, em sua edição de número 10, à pág. 23, que tenha havido
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uma espécie de “composição conjunta”, com Getúlio escrevendo um rascunho, e Soares Maciel a “copidescando”. Dúvidas como essa só intensificam a aura mítica do personagem, aquela que faz com que ele “permaneça” entre nós. Esses personagens míticos costumam ter origens duvidosas, longínquas ou lendárias; em sua trajetória experimentam revelações e ascensões espantosas, bem como quedas e mergulhos em mundos ínferos tenebrosos; são partejadores de leis e de novas sociedades; prometem um novo futuro, são uma espécie de cotovelo da história, onde ela muda de rumo; cometem ações violentas e perturbadoras, nem tudo é aplauso em seu caminho; depois, ao invés de morrer, passam para um plano superior da existência, onde “permanecem”, sepultos e insepultos ao mesmo tempo. Suas ações têm um caráter luminoso e carismático; sua presença galvaniza, comove, arrasta. Ao mesmo tempo essa presença guarda a marca de um lado sombrio, misterioso, enigmático, pois ela provoca várias versões e várias interpretações sobre seu comportamento, suas razões e motivos. Tudo isso se aplica a Getúlio. Hoje as pessoas ainda se referem a ele em termos pessoais, como se fosse alguém que pudéssemos aplaudir ou vaiar, beijar ou malhar. Vejam esta frase: “Eu devo isto a Vargas”. Ela pode vir tanto de um esquerdista ressentido pelas brutais perseguições que ele e seus correligionários sofreram; quanto de um velho trabalhador que teve pela primeira vez uma carteira assinada. Ninguém fala: “Eu devo isto ao Geisel”, nem mesmo “eu devo isso ao Juscelino”. Pode-se dizer: “O Brasil deve a abertura ao Geisel”; ou “deve Brasília ao Juscelino” etc. Mas Getúlio invadiu a vida de cada um. E foi por causa de sua Carta-Testamento: há algo de bíblico nela, por isso as cidades
brasileiras a incrustam na pedra, como os mandamentos, e a moldam em bronze, que na Antigüidade era o metal que reunia o trabalho humano à percepção da perenidade. Até o dilema de sua autoria ajuda nisso, pois não tendo sido escrita apenas por sua mão ela, ao invés de cair em descrédito, parece emanar de “uma ordem superior” da existência; ela veio, ela paira, ela pode até não fascinar mais do mesmo modo, mas certamente obriga quem passa por ela a se deter. As múltiplas manifestações a partir do cinqüentenário de sua morte trouxeram algumas considerações importantes à reflexão. A primeira é a de que temos uma excelente oportunidade para a escrita de um romance policial conspiratório. São pequenos indícios aqui e ali que, reunidos, deixam as dúvidas senão no ar, no fundo das gavetas, de onde nascem os bons romances. Dia 23, em noticiário de televisão, um senhor nonagenário, testemunha ocular do assassinato do major Vaz, afirmava que logo depois do tiroteio Lacerda não devia estar ferido no pé, pois ele o vira entrar correndo na garagem de seu edifício, sem mancar nem sangrar, até ajudando a levar o já corpo do major. Assim dita, a interpretação pode ser contestada: há casos em que pessoas feridas ou machucadas realizam proezas devido à adrenalina despejada em seu sangue, e só depois vão cair em si na real de seus ferimentos. Mas, se juntarmos esse detalhe com outro, publicado três semanas atrás em reportagem da Folha de S. Paulo, segundo o qual Lacerda recusou-se a entregar o seu revólver para exame de balística durante o inquérito que se seguiu (e isso ficou por isso mesmo!), mais o detalhe de que o condenado Gregório sempre negou tudo e que pelo menos um dos pistoleiros no local diz até hoje que “ainda tem o que contar”, pronto: necessitamos de um bom Conan Doyle ou de uma Agatha Christie para juntar esses fiapos e montar uma história convincente, a “outra”, não a oficial. Por ora estamos no terreno das vagas conjeturas, ainda não da
reflexão consistente. Mas avancemos um pouco mais. Vendo-se agora tudo de tão longe, e com nossos olhos já treinados e bem treinados pelas construções fantasmagóricas na ou da mídia em torno de fenômenos como a guerra do Iraque, a guerra do Vietnã, o golpe de 64 no Brasil e até a nossa antiga guerra de Canudos, podemos perguntar serenamente: onde, de que lado de fato estava o povo brasileiro, na noite de 23 para 24 de agosto de 1954? Havia uma campanha infernal e barulhenta, agitando “o mar de lama” que as próprias classes dirigentes tinham criado, ampliado e nele chafurdado, contra o presidente. No Rio, solitária, a Última Hora defendia Getúlio. Houve até, nesses dias de hoje, a repetida lembrança de que esse jornal teria sido o verdadeiro pivô da crise, pois sua fundação apoiada por Vargas enfurecera os ambientes na Tribuna da Imprensa e nos Diários Associados. A imprensa de esquerda, do Partidão, calava reticente, ou também malhava o chefe da nação. Desse coro cujo registro ficou na história, nasceu a versão de que, na manhã de 24, a multidão, que saía às ruas para festejar a queda do ex-ditador, voltouse em fúria contra aqueles que o derrubaram. Até eu mesmo já usei esta imagem em algum lugar. Pois o exame mais atento dos relatos, das memórias, das reconstituições orais daqueles momentos, mostra que não havia multidão nas ruas, nem saindo às ruas. A multidão saiu à rua, isto sim, depois da divulgação da notícia do suicídio e da leitura repetida da Carta-Testamento, e saiu para quebrar as sedes dos partidos e dos jornais antigetulistas. Assim foi, tanto no Rio de Janeiro, como em Porto Alegre, as cidades em que se registraram os acontecimentos mais contundentes e graves. Não havia multidão antes disso. Havia sim gente ressentida com Getúlio, pelas mais variadas razões, tanto à direita como à esquerda, tanto com razão como sem; havia uma enorme gritaria pela mídia, tanto programática quanto de ocasião, e de quebra, havia, é claro, aquela “multidão solitária” que,
passiva, assistia à deposição de seu ídolo. Esta sim, foi a multidão que saiu, e saiu galvanizada pela leitura e pela oitiva (nas ruas e no rádio) da Carta-Testamento. Tanto a esquerda como a direita sempre tiveram muita dificuldade para entender, digerir ou aceitar a popularidade de Getúlio, preferindo-a atribuir a termos sobre ou sob os quais paira uma aura pejorativa: “Passividade das massas”, “demagogia”, “manipulação” etc. Pois bem, é chegada a hora de dar nome ao touro: a popularidade de Getúlio deveuse ao trabalhismo, à famigerada Consolidação das Leis do Trabalho. Li em algum lugar que Getúlio não era um grande orador. Parece que não era. Pelo menos para os intelectuais, ou para as classes dirigentes. Mas é fato que daqueles idos, além de jingles, programas de auditório e outras minigâncias esportistas, as maiores impressões auditivas que se guardam nas memórias ambulantes e espontâneas por aí são a voz do Repórter Esso e a frase nominal e vocativa de Getúlio, “Trabalhadores do Brasil!”. Getúlio chamou os trabalhadores pelo nome, e espelhou-os no poder. É claro que fê-lo numa imagem refratada, que tanto acolhia como manipulava e reprimia. Mas espelhou-os, no poder e na lei. Era e é uma lei permeada de defeitos, problemas e armadilhas. Mas não houve outra. Nem há. E hoje querem reformá-la pela direita, não pela esquerda. Querem reformá-la contra o povo, não a seu favor. Por essas e por outras razões é que o fantasma de Getúlio continua por aí, com seu sorriso enigmático, sempre deixando a história para entrar no mito, e voltando dele para remexer a história com sua presença. Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA
RIO DE JANEIRO 1º FÓRUM NACIONAL SOBRE GOVERNANÇA COSTEIRA 6 e 7 de outubro O Fórum tem como objetivos principais discutir de forma democrática a governança costeira no Brasil e incorporar a participação da sociedade civil na sua concepção. O tratamento de pensamento coletivo, por meio de discussão de uma política soberana que tenha a participação conjunta da sociedade civil, dos órgãos governamentais e do setor empresarial, será um dos temas centrais do Fórum. O evento contará com a presença de pessoas ligadas a movimentos pesqueiros, turismo, agricultura, investimentos imobiliários, empresas dos setores de mineração, siderurgia, portuária e do setor de petróleo e gás. Os temas serão: “O plano nacional de gerenciamento costeiro”; “Os atores sociais e a sustentabilidade”; “A governança costeira e os investimentos para o desenvolvimento”. Local: Museu do Forte de Copacabana, Pça, Coronel Eugênio Franco, 1, Rio de Janeiro Mais informações: (11) 4152-8491 www.institutopharos.org
RIO GRANDE DO NORTE NATAL: A CIDADE QUE TEMOS É A CIDADE QUE QUEREMOS? 2a4 Seminário que pretende estimular a participação integrada da sociedade civil, do Estado e do setor produtivo no processo de construção e implementação da Agenda 21 de Natal. A abertura oficial será dia 2, às 18h, com a conferência: “Ética e desenvolvimento sustentável: múltiplas
10º GRITO DOS EXCLUÍDOS 1º a 7 de setembro A décima edição do Grito dos Excluídos tem manifestações programadas em mais de 2 mil municípios. A maior concentração ocorre sempre na Basílica da cidade de Aparecida, interior do Estado de São Paulo. O tema deste ano é “Brasil: mudança pra valer, o povo faz acontecer”. O Grito converge mobilizações sociais desde 1995 no Brasil, sempre na Semana da Pátria. Local: em todo o país Mais informações: (11) 2720627, gritonacional@ig.com.br
responsabilidades na construção da cidade que queremos”, com Sebastião Pinheiro. Nos dias seguintes, serão debatidos outros temas. Local: Palácio da Cultura, Pça, 7 de setembro, s/n, Centro, Natal Mais informações: (84) 211-6415, 211-9234
RORAIMA 6º SEMANA DE GEOGRAFIA 20 a 24 “Geografia, espaço e inovações tecnológicas” é o tema da semana deste ano, que vem sendo realizada anualmente pela Universidade Federal de Roraima. Aberto a toda a comunidade, o evento reúne alunos, profissionais e áreas afins para aperfeiçoamento, atualização e difusão do conhecimento. Durante a semana serão promovidas palestras, atividades, cursos, mesas-redondas e apresentação de comunicação oral e painéis. Inscrições até o dia 20 de setembro, no Instituto de Geociências ou por correspondência (Instituto de Geociências, bloco 4, Campus do Paricarana, Av. Ene Garcez, 2413, Aeroporto, CEP 69.304-000). Se o candidato quiser participar de todo o encontro, será cobrada uma taxa de R$ 30; mas os que desejarem estar somente num evento será cobrado o valor de R$ 15. Estudante de graduação, com a respectiva carteira, e que apresentar um trabalho para ser discutido, estará isento da taxa de inscrição. Local: Auditório da Universidade Federal de Roraima, Campus do Paricarana, BR 174, s/n, bairro Aeroporto, Boa Vista Mais informações: (95) 623-1253
SÃO PAULO AS REVOLUÇÕES DO SÉCULO 20 E O SOCIALISMO DO SÉCULO 21 14 de setembro a 7 de outubro, às 19h Ciclo de palestras promovido pela Biblioteca Mário de Andrade, que
AMÉRICA LATINA EM MOVIMENTO 2 e 3, das 14h às 18 h Mostra de filmes e debates sobre as diferentes lutas sociais na América Latina promovida pela Pontifífica Universidade Católica (PUC-SP). Dia 2, serão exibidos documentários sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); O fogo e a palavra, sobre o Exército Zapatista de Libertação Nacional e A revolução não será televisionada, sobre a revolução bolivariana na Venezuela. Às 19h haverá uma mesa-redonda entre Gilmar Mauro (MST), Antônio Martins (ATTAC), José Arbex Jr. (jornalista e professor), entre outros. Dia 3, serão exibidos, no mesmo horário, os documentários Um homem, uma mulher e uma bandeira, Raiz forte, Casos de violência contra comunidades indígena, Outra maneira é possível... na Venezuela. A mesa redonda terá participação de Gilberto Maringoni e Regina Gaelha, entre outros. Local: R. Ministro Godói, 969, Perdizes, São Paulo Mais informações: www.pucsp.br/ site/americalatina.htm
Divulgação
3º FÓRUM SOCIAL MINEIRO 3a7 Espaço de diálogo entre os diversos movimentos sociais, o Fórum vai abordar o tema “Soberania e Participação Popular”, preparando as discussões do Fórum Social Mundial, que será realizado em Porto Alegre, em janeiro de 2005. O evento vai articular os movimentos mineiros, promover uma discussão sobre a conjuntura e criar condições para que os movimentos organizem suas lutas. O Fórum Social Mineiro será um espaço democrático e pluralista, aberto à participação de todos que compartilham com o compromisso de construção de um outro mundo possível e necessário. Local: Complexo da Pça. da Estação Ferroviária e Pça. Rui Barbosa, 50, Belo Horizonte Mais informações: (31) 3261-5806 www.fsmmg.ongnet.org.br comitemineirofsm@yahoo.com.br
NACIONAL
tratará das experiências revolucionárias do século 20, seus sucessos, dificuldades e derrotas; e dos problemas do socialismo no século 21. Entre os palestrantes estão estudiosos como Osvaldo Coggiola, Armando Boito Jr.,César Benjamin, Virgínia Fontes, Gaudêncio Frigotto, Ruy Braga, Daniel Aarão Reis, Luis Fernando Ayerbe, Wladimir Pomar, Isabel Loureiro, Valério Arcary, Emilia Viotti da Costa. Local: Biblioteca Mário de Andrade, R. da Consolação, 94, Centro, São Paulo Mais informações: (11)3241-3459 colegiodesp@prefeitura.sp.gov.br www.prefeitura.sp.gov.br/ mariodeandrade
CINEMA NA CASA DAS ÁFRICAS 8, às 19h Sessão do filme À l’école nomade, de Luc Federmeyer, na Casa das Áfricas. A obra conta a história dos Touaregs, uma tribo africana que sempre se recusou a mandar
suas crianças para as escolas dos colonizadores, reconhecendo sua superioridade militar, mas desejosos de conservar sua independência. Atualmente, após a grande seca que dizimou seus tropeiros, após a guerra e o marasmo econômico, e com a situação política parecendo se estabilizar, os Touaregs constroem as écoles de nattes, que seguem os acampamentos para onde forem. A aprendizagem do francês é vista como uma possibilidade de maior decisão no seu futuro. O filme é legendado em francês. Local: Casa das Áfricas, R. Engenheiro Francisco de Azevedo, 524, São Paulo Mais informações: (11) 3801-1718 MOSTRA DE CINEMA ARGENTINO 7 a 12 O Centro Cultural São Paulo realiza de 7 a 12 de setembro a Mostra “Cinema Argentino: Filmes adaptados pela Família Torre Nilsson”. O maior destaque fica para a pré-estréia de Vereda Tropical, de Javier Torre. O filme ganhou dois kikitos de ouro no último festival de Gramado nas categorias melhor diretor (Javier Torre) e melhor ator (Fabio Aste). A programação completa está no site do Centro Cultural. Local: R. Vergueiro, 1000, Paraíso, São Paulo Mais informações: (11) 3277- 3611 (ramal 250), www.centrocultural.sp.gov.br
A reação dos setores marginalizados A Editora Expressão Popular apresenta um novo lançamento, iniciativa da Coordenação Nacional Grito dos Excluídos, em parceria com a Faculdade de Jornalismo e Relações Públicas da Universidade Metodista de São Paulo (o Grito é promovido pela Pastoral Social da Igreja Católica que, desde o início, conta com inúmeros outros parceiros ligados às demais igrejas do Conic, movimentos sociais, entidades e organizações). Amplamente ilustrada, a obra – comemorando a 10ª edição de um espaço de participação livre e popular em que os excluídos, junto com seus vários aliados, fazem seu protesto e suas reivindicações – traz uma “biografia” do Grito, um conjunto de manifestações realizadas para chamar a atenção da sociedade para as condições de miséria absoluta em que vivem parcelas crescentes da população brasileira. Para tanto, responde, didaticamente, a algumas perguntas – o que é, como nasceu e quem o promove, por que o Grito, por que a data de realização, quais as suas principais lições, quais seus horizontes – e estimula o leitor a
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MINAS GERAIS
também se fazer presente, a se tornar sujeito nessa reação dos setores marginalizados contra a barbárie resultante das relações capital/trabalho nos dias atuais. CONFIRA Grito dos Excluídos – 10 anos de luta
Coordenação Nacional Grito dos Excluídos 104 páginas, R$ 10 Editora Expressão Popular R. Abolição, 266, Bela Vista São Paulo – Tel. (11) 3112-0941 www.expressaopopular.com.br Grito dos Excluídos Tel. (11) 272-0627 gritonacional@ig.com.br
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CULTURA
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FEIRA POPULAR
“Pulgueiro” renova circuito alternativo Mistura de feira comercial com atividades culturais, evento reúne várias tribos no Centro de São Paulo
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niciativas artísticas, ambientais e comunitárias estavam expostas na grande feira “Pulgueiro”, realizada entre 28 e 29 de agosto, na zona central de São Paulo. O nome não é folclórico, mas sim uma referência cultural aos antigos Mercados de Pulgas realizados em Paris, na França, onde não se fazia só a venda de objetos usados (cheios de pulgas, daí o nome do mercado), mas também aconteciam apresentações de ópera, de teatro e outras exposições artísticas. Para que a feira Pulgueiro fosse diferente de outras feiras de moda, como o Mercado Mundo Mix, com que foi muitas vezes comparada, o organizador Heitor Werneck partiu para uma concepção alternativa, questionando o modelo de exposição e de promoção de marcas de roupas. A moda do Pulgueiro se limitou a apenas uma das partes do evento, e ainda assim, na placa de setor, foi nomeada “Moda de quem?”. Werneck explica que os nomes das áreas do Pulgueiro, especialmente esse, foram idealizados com o intuito de refletir sobre quem dita esses modelos: “A moda é a sua moda, a minha moda, é o que cada um quer vestir”. Os expositores e os participantes da feira foram cuidadosamente escolhidos. As atrações artísticas incluíram apresentações de bandas de rock, audições de canto lírico denominadas “Suspensão humana” e a exposição “Zoológico humano”. Os artistas tinham em comum a necessidade de divulgar seus trabalhos, dado que vivem no circuito
grafites, mas sempre para um público dos próprios grafiteiros. Para as crianças, uma tábua de arvorismo era a opção de atividade radical. A criançada podia escalar pela tábua construída com material compensado de madeira e material reciclado, ou descer pelo escorregador feito com plástico biodegradável.
Fotos: Cristina Uchôa
Cristina Uchôa de São Paulo (SP)
CONTINUIDADE
Com atividades diferentes de outras feiras de moda, “Pulgueiro” traz apresentações de hip hop e espaços para os grafiteiros
alternativo, e a vontade de vibrar com um público que realmente admirasse seu trabalho. Bella Guima, uma das cantoras que se apresentou sob chuva no primeiro dia do evento, foi convidada a voltar para o segundo dia, tamanha a empolgação que trouxe ao público de algumas centenas de pessoas. “Já toquei para milhares, como para dois ou três, e a vibração é a mesma, quando se sabe que as pessoas estão curtindo o seu trabalho. Entre divulgar meu trabalho e vibrar com o público, fico com os dois motivos para justificar por que estou aqui”, diz a cantora. Entre os expositores, organizações não-governamentais (ONGs)
de terceira idade e de ambientalistas. Werneck conta que, para escolher as ONGs que convidaria, selecionou aquelas que realmente fazem um trabalho sério dentro de sua área de interesse, e não atuam como meras captadoras de recursos. Em frente ao espaço da ONG ambiental Caa-óby (Folha verde, em tupi-guarani), duas grandes esculturas feitas de material reciclado chamavam a atenção. O representante da organização, o biólogo Vinícius Cantarelli, explica que a iniciativa de unir a arte à conscientização ambiental surgiu como atividade interdisciplinar no movimento estudantil universitá-
rio, quando estudantes dos Centros Acadêmicos de artes plásticas e de ciências naturais resolveram unir as duas áreas de atividade e, mais tarde, deram corpo à ONG. Em feiras como o Pulgueiro, além de levantar alguns fundos com a venda de produtos com a marca da Caa-óby, a instituição promove a consciência ambiental e amplia a lista de filiados. Atrás das esculturas de reciclados, um espaço chamado “Os Mano e as Mina” abrigou os adeptos do hip hop. O grafiteiro Paçoca achou interessante pintar no Pulgueiro. Ele conta que há, até, muitos eventos em que eles podem mostrar seus
Werneck ressalta a dificuldade de colocar em pé o Pulgueiro. Conseguir recursos não foi fácil, ainda que tenha contado com o apoio da Coordenadoria de Juventude do Município de São Paulo, que cedeu o local, a Casa das Retortas, perto do antigo gabinete da Prefeitura. Possíveis patrocinadores não quiseram participar do evento ao perceber que não seria um espaço de simples divulgação de suas marcas. Na negociação, chegaram a solicitar a Werneck que tirassem uma atividade ou outra da feira, para não comprometer sua marca. Com a negativa do produtor, as empresas negaram patrocínio. Com a proximidade das eleições municipais e a incerteza da continuidade dessa equipe na Coordenadoria de Juventude, Werneck não garante o futuro do evento, mas confirma a realização de pelo menos mais duas edições do Pulgueiro este ano – uma para setembro, outra para outubro. SERVIÇO PULGUEIRO Casa das Retortas R. da Figueira, 77, em frente ao Palácio das Indústrias, Pq. Dom Pedro II. São Paulo, SP
Abaixo-assinado pede criação do Dia Nacional do Saci Depois de passar pela fase de emendas, o projeto instituindo o 31 de outubro como Dia Nacional do Saci está para ser votado na Câmara Federal. Idealizada pela irreverente Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci), a proposta tem como meta combater os estrangeirismos da indústria cultural, tirando o poder dos super-heróis estadunidenses para preservar a cultura popular brasileira. O Dia do Saci já foi instituído oficialmente em São Luiz do Paraitinga e na capital paulista. Depois, tornou-se comemoração de todo o Estado de São Paulo. A idéia também já chamou a atenção em cidades como Curitiba (PR), Juiz de Fora (MG), Vitória (Espírito Santo) e Manaus (AM). O projeto de lei em tramitação na Câmara é fruto da junção de propostas da deputada Ângela Guadagnin (PTSP) e do ministro Aldo Rebelo, da pasta da Coordenação Política e Assuntos Institucionais. “Mas o objetivo não é oficializar um dia e sim fazer com que os governos estejam atentos aos valores culturais de nosso povo”, diz o economista e educador Mário Cândido da Silva Filho.
COMBATE AO IMPERIALISMO Para pressionar pela aprovação do projeto, está circulando um abaixo-assinado, que recebeu mais de 3 mil adesões. O movimento é levado adiante pela Sosaci, que em seu pouco mais de um ano de exisSaci – Personagem mítico que nasceu entre os indígenas da região das Missões e incorporou elementos africanos e europeus. É representado como um moleque negro, de uma perna, gorro vermelho, fumando um cachimbo. Halloween – Festa do dia das bruxas, de origem celta-saxônica, levada aos Estados Unidos pelos imigrantes irlandeses. Celebrada em 1º de novembro, movimenta milhões de dólares em todo o mundo.
tência já tem 314 associados, que se auto-intitulam “saciólogos”. A idéia é da Sosaci, que nasceu em 21 de julho do ano passado, de uma brincadeira de um grupo de 10 pessoas, indignadas com os festejos de halloween em escolas públicas brasileiras. Numa roda de bate-papo, em São Luiz do Paraitinga (SP), amigos como o violeiro Ivan Vilela, o jornalista Mouzar Benedito e o economista Cândido da Silva Filho propuseram uma sociedade que lutasse por “um saci longe do cativeiro”. A primeira atividade da Sosaci foi o “Grito do Saci”, em setembro de 2003, numa paródia do grito do Ipiranga. Nessa data, tomando como exemplo o Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, eles divulgaram o Manifesto do Saci, no qual, usando citações de Karl Marx e Friedrich Engels, defendem o saci como força de resistência cultural. A íntegra do manifesto e mais informações sobre o movimento estão na página da internet www.sosaci.org. Ilustrações: Ohi
Bernardete Toneto da Redação
Mito é símbolo de resistência De personagem mítico, o saci passou a ser símbolo de resistência cultural e do homem livre. Essa é a opinião do saciólogo Mario Cândido da Silva Filho, da Sosaci. Citando o folclorista Luís da Câmara Cascudo, morto em 1986, ele lembra que o repertório mitológico do nosso país é bastante rico, permitindo trocas de mão dupla com os cidadãos da comunidade planetária. Segundo Cândido, o mito do saci é encontrado também na Argentina e no Paraguai, como um curumim (criança indígena) peralta, com duas pernas e um rabo. No Brasil, sai a cor morena dos índios e, associado à mitologia africana, se torna um negrinho que perdeu uma perna lutando capoeira e ganhou um cachimbo, tradicional da cultura negra. O grande símbolo de liberdade
do saci é o gorro vermelho. Tratase da tradução abrasileirada do piléu, que era dado aos escravos alforriados no Império Romano. É esse também o símbolo do barrete frígio, que se tornou a imagem da liberdade individual e coletiva.
FOLCLORE E MASSIFICAÇÃO Nascido no Rio Grande do Norte, Luís da Câmara Cascudo foi o primeiro folclorista brasileiro a estabelecer a ponte entre a cultura popular e o folclore, que classificou como um patrimônio de tradições. Em um de seus livros mais conhecidos, Folclore do Brasil, ele afirma que “o folclore, sendo uma cultura do povo, é uma cultura viva, útil, diária, natural. Como o povo tem senso utilitário muito alto, as coisas que vão sendo substituídas por outras mais eficientes e cômodas passam a circular mais lentamente”.
Segundo Câmara Cascudo, os seres que povoam o imaginário dos brasileiros são constituídos por imagens trazidas por índios, negros e portugueses, que se modificaram e ajustaram-se, pelo processo de aculturação. Para ele, o saci pererê, a iara, o boitatá ou o lobisomem servem ao imaginário do povo, não tanto para assustar mas para destruir outros medos mais concretos. “Todas as assombrações e visagens que povam as águas, serras e cidades do Brasil, as que aparecem nas estradas e ruas desertas às horas abertas, meio-dia e meia-noite, crepúsculo matutino e vespertino, modificaram-se sensivelmente. Os nossos monstros aceitaram o processo aculturador para adaptação psicológica ao novo ambiente, com os brancos portugueses e os pretos da África Oriental e Ocidental”, relata. (BT)