Ano 2 • Número 84
R$ 2,00 São Paulo • De 7 a 13 de outubro de 2004
PT moderado sai vitorioso das urnas Hazem Bader/AFP
Com campanha despolitizada e muito dinheiro, partido foi o mais votado e fortaleceu seus setores mais conservadores
Palestina – Protesto contra muro de separação na Cisjordânia, em Hebron: ofensiva israelense já causa a morte de mais de 67 pessoas
Na Venezuela, serviço de saúde vai às favelas
Um grupo de motociclistas atirou contra dois jovens Xavante na terra Marãiwatsedé, no Mato Grosso, dia 4. Os indígenas ficaram gravemente feridos mas sobreviveram ao ataque. A Fundação Nacional do Índio (Funai) alerta que o conflito entre indígenas e fazendeiros pode se acirrar. Em 1957, os Xavante foram expulsos de suas terras. Em agosto deste ano, reconquistaram na Justiça o direito de retornar, mas os fazendeiros da região não aceitam a decisão. Pág. 4
O programa Bairro Adentro, que tem apoio de 11 mil médicos cubanos, atua nas favelas, usando métodos preventivos e evitando execesso de remédios convencionais. Segundo dados do Ministério da Saúde, de abril de 2003 a julho de 2004, 43 milhões de pessoas passaram por consultas e mais de 16 mil foram curadas. Entretanto, a falta de infra-estrutura hospitalar e de médicos ainda são problemas em um país onde 70% da população não tem atendimento básico. Pág. 10
Aborto, questão de saúde pública Comandada por movimentos feministas, a luta pela legalização do aborto comemora, em 2004, liminar do STF sobre casos de anencefalia e norma do Ministério da Saúde que garante atendimento humanizado às mulheres
em abortamento nos casos de estupro e/ou risco de vida. Além disso, a norma estimula os profissionais de saúde, independentemente de seus preceitos morais e religiosos, a preservar uma postura ética, garantindo o respeito aos
direitos das mulheres. Apesar dos avanços, as mulheres exigem que o governo revise as leis punitivas sobre o tema, conforme compromisso assumido em conferências da ONU. Pág. 5
Roberto Barroso/Abr
Indígenas são alvejados no Mato Grosso
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om crescimento de 40% em relação às eleições municipais anteriores, o Partido dos Trabalhadores (PT) levou, já no primeiro turno, 400 prefeituras – mais que o dobro das conquistadas no ano 2000. O apoio de 16,314 milhões de eleitores lhe rendeu a marca da legenda mais votada – o PSDB ficou em segundo lugar, com 15,726 milhões. Na opinião do sociólogo Theotônio dos Santos, é preciso analisar com cuidado se, de fato, a vitória corresponde a um avanço da esquerda brasileira: “Esse crescimento demonstra o deslocamento do partido, da esquerda rumo ao centro, pois o grupo que mais se fortaleceu foi exatamente o mais conservador dentro do PT”. Segundo o filósofo Roberto Romano, essas eleições consolidaram uma polarização entre as tendências de centro-esquerda – PT e PSDB –, o que determina também o cenário das eleições para presidente e governador, em 2006. Págs. 2 e 3
Brasil 1993-2003, país de desigualdades sociais do IBGE. O ano de 2003 foi o sétimo seguido de queda no rendimento do trabalhador e a maior delas, desde 1997. Mas a renda desconcentrou: os 10% mais ricos, que detinham 49% da renda total em 1993, diminuiram sua participação para 45,3%, e os 10% mais pobres, que detinham 0,7%, passaram a 1%. Porém, o rendimento médio mensal do trabalhador diminuiu 18,8% desde 1996. Pág. 6
Na nova safra, Líder operário o agronegócio é rememora fatos mais beneficiado do sindicalismo A força do lobby empresarial e o interesse do governo em produzir dólares a qualquer custo distorcem a política de crédito rural, que destina a maior fatia dos recursos ao custeio das safras para a produção de grãos e fibras destinados ao mercado internacional. Assim, as lavouras de exportação concentram mais da metade dos recursos (52% dos créditos de custeio), 60% dos quais emprestados a juros fixos de 8,75% ao ano, bem abaixo do custo do dinheiro no mercado. Pág. 7
Aos 83 anos, Clodesmidt Riani, ex-presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI) e da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), conta fatos inéditos do governo de João Goulart e fala do sindicalismo na época do golpe militar. Riani revela ainda que o ministro do Trabalho de Jango, João Pinheiro Neto, foi demitido pelo primeiro-ministro Hermes Lima, a pedido do embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Roberto Campos. Pág. 8
Greve dos bancários já dura 15 dias, sem acordo de reposição salarial; petroleiros também reivindicam reajuste – Pág. 4
Powell quer Movimentos Sem bibliotecas, apoio de Lula ao rejeitam acordo brasileiro não Plano Colômbia com europeus entende o que lê Pág. 9 Marcio Baraldi
Nos últimos dez anos, a renda do brasileiro caiu, o desemprego subiu, a concentração de renda recuou, o trabalho infantil continuou preocupante, as condições de habitação melhoram, o acesso aos serviços básicos persistiu deficitário, aumentou a presença de mulheres no mercado de trabalho, mas elas continuam ganhando menos do que os homens. Eis o retrato do país feito pela Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD),
Pág. 11
Pág. 16
E mais: ÁFRICA – Encontro no Dacar, capital do Senegal, tenta mobilizar intelectuais africanos para a integração do continente. Evento pretende discutir questão da dispersão dos povos africanos no mundo na condição de escravos. Pág. 12 DEBATE – Reinaldo Gonçalves, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), avalia que apesar do miniciclo de otimismo da economia, governo Lula promove transferência de renda dos trabalhadores para os bancos. Pág. 14
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De 7 a 13 de outubro de 2004
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
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NOSSA OPINIÃO
Os recados das urnas
A
s eleições municipais deste ano ainda não terminaram – em 44 grandes cidades do Brasil, a disputa continua e se resolverá no próximo dia 31, no segundo turno. Só então será possível fazer uma avaliação completa do significado do pleito. Alguns recados das urnas, porém, já podem ser analisados. Em primeiro lugar, após uma campanha morna e despolitizada na maior parte dos municípios, a eleição ganhou um caráter mais local do que nacional. É óbvio que a alta popularidade do presidente Lula pode ter ajudado o PT em diversas cidades menores, da mesma maneira que os efeitos deletérios da política econômica do ministro Antonio Palocci deve ter contribuído para que muitos petistas e aliados do governo – incluído o sucessor do próprio Palocci na prefeitura de Ribeirão Preto – tenham sido derrotados já no último domingo. De toda maneira, a verdade é que a eleição não foi um plebiscito sobre a gestão de Lula, como queria a oposição no início do ano (quando o governo estava fraco) ou os governistas a partir de julho (quando começaram a ser divulgados os bons resultados da economia no semestre anterior). Sem esse caráter plebiscitário, os recados das urnas são mais sutis. O PT cresceu bastante, foi a legenda mais sufragada e chegou a municí-
pios menores, onde tradicionalmente não conseguia espaço. Além disto, o partido foi capaz de manter, já no primeiro turno, duas capitais importantes – Belo Horizonte e Recife. Tal avanço já era esperado desde a eleição de Lula, pois pela primeira vez o PT disputaria uma eleição em situação de maior equilíbrio de meios com os candidatos da burguesia. Por outro lado, o PSDB também cresceu, conseguiu o segundo posto em termos de votação e assumiu definitivamente a liderança da direita no Brasil. O PFL, Cesar Maia à parte, foi até aqui o maior derrotado, diminuindo de tamanho em relação ao ano 2000. O PMDB permaneceu na liderança em número de municípios, embora tenha perdido boa parte das cidades que governava desde 2000, e manteve a tradição de ser votado nos chamados grotões. Alguns fenômenos específicos chamaram atenção no pleito de domingo. Em Fortaleza, Luizianne Lins não se dobrou à cúpula nacional do PT, bancou a sua candidatura, rachou a esquerda e corajosamente chegou ao segundo turno com grandes chances de bater o liberal Moroni Torgan no dia 31. Em Salvador, por outro lado, o candidato petista Nelson Pellegrino fez tudo que a direção nacional
petista desejava, teve o apoio de importantes integrantes do governo Lula, mas perdeu a chance de ir para o segundo turno, por estreita margem, para o candidato carlista César Borges (PFL), que teve a oportunidade de jantar com o presidente no Palácio do Alvorada há poucas semanas da eleição. Em outras palavras, o povo de Fortaleza premiou o arrojo de Luizianne, ao passo que Salvador castigou o comportamento dúbio do PT – entre o apoio à sigla que negociava com o carlismo e o próprio carlismo, os soteropolitanos ficaram com a segunda opção. Considerando a eleição para o legislativo municipal, é possível perceber mais nitidamente que ainda é preciso um longo esforço pela conscientização política. Em quase todas as cidades do país, ainda vencem aqueles que investem na formação de verdadeiros currais eleitorais, com ampla distribuição de cestas básicas, camisetas e outras benesses. Também os famosos – a maior parte, neófitos na política – recebem o voto entusiasmado de gente que os sufraga pela simpatia, não pela possibilidade de ter na Câmara Municipal um bom vereador. Ainda há muito o que aperfeiçoar na jovem democracia brasileira. OHI
FALA ZÉ
CARTAS DOS LEITORES ORIENTE MÉDIO Quero fazer um comentário sobre a crônica do monge Marcelo Barros. Sobre as religiões e a nova tarefa da paz, onde, segundo suas palavras, “governantes fanáticos como George W. Bush têm usado motivações religiosas para a sua senha guerreira”. Quero dizer que o sr. Bush não representa o movimento protestante mundial, nem o movimento pentecostal, do qual faço parte. Sou membro da Igreja Evangélica e fui contra a guerra desde o começo. Na realidade o pano de fundo dessa guerra é o apoio estadunidense histórico ao sionismo mundial, em detrimento dos árabes palestinos maometanos. Na verdade, é necessário que o povo israelense mude radicalmente seu governo direitista, violento e sanguinário atual. Os EUA também devem mudar sua política para o Oriente Médio, e usar um peso e uma medida justa para que haja paz entre judeus-maometanos, em vez de dar seu apoio unilateral a Israel. É oportuno dizer que a tarefa pela paz mundial, hoje, passa pela criação de um Estado palestino, que aliás foi prometido em 1947. Maurício Picazo Galhardo Sorocaba (SP)
você está com seu salário e sua renda defasada; se você não vê perspectiva de melhoria de vida para sua família; se você pretende continuar excluído e esquecido; e, finalmente, se você está satisfeito com tudo isso, vote, em outubro próximo, nos mesmos homens e nas mesmas idéias do chamado neoliberalismo da globalização mundial unilateral em vigor, ou então mude, vote pelo contrário, dê o seu voto para aqueles que defendem os interesses maiores do povo e que também são os seus! E agora? Agora, depois de decorridos quase dois anos, tudo está a indicar que o governo Lula (Lula/PT & cia.), então eleito pelo e para o povo, e que veio (pelo menos assim se apresentou) para atender aos anseios desse mesmo povo fazendo as mudanças tão necessárias ao desenvolvimento socioeconômico de todo país, realmente mudou. Mudou de lado, está mais do que claro até agora. Mudou, num continuísmo descabido do governo entreguista anterior, a trabalhar contra a nação e o pouco do que resta de sua soberania. João C. da L. Gomes, aposentado Porto Alegre (RS)
GOVERNO LULA Em maio de 2002 enviei para o PT um texto dirigido a todos os brasileiros assalariados, com a seguinte mensagem: se você está desempregado, alguns de seus parente e amigos também; se você está empregado, porém com medo de perder seu emprego; se
ERRATA Brasília Teimosa é um bairro de Recife (PE), não uma cidade, como publicado na matéria “Entidades denunciam perseguição”, da edição passada.
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CRÔNICA
O melhor presente para as crianças Marcelo Barros Ao se aproximar o Dia das Crianças, a preocupação primeira de pais e familiares costuma ser: que presente daremos aos nossos filhos? De fato, em um mundo transformado em um extenso e interminável shopping center, todas essas datas criadas para chamar a atenção ao cuidado com crianças, idosos, mães, pais ou mulher, se tornam pretexto para o comércio que quer vender e para a sociedade, que se embriaga no consumo como uma droga que envenena o cérebro e impede o coração de ser solidário. Em outros países da América Latina, o 12 de outubro é o Dia da Raça. A data recorda o 1492, em que os povos autóctones da Abya Yala foram invadidos pelos espanhóis que começaram a colonização e a escravidão que até hoje têm conseqüências. Neste 12 de outubro de 2004, em 22 países do continente se reúnem organizações negras, indígenas e comunidades populares no Grito Continental dos Excluídos, que denuncia as situações que provocam exclusão social e aponta alternativas para uma sociedade mais justa. É importante que, no Brasil, o Dia das Crianças, ao contrário das comemorações em outros países, não seja marcado pela
alienação e pelo descompromisso com a vida e o futuro do povo. Em 1989, a Organização das Nações Unidas aprovou a Convenção Internacional dos Direitos da Criança. O acordo foi assinado por todos os países, com exceção de dois: a Somália e, imaginem, os Estados Unidos (do Bush pai). Os países signatários comprometeram-se a combater o trabalho infantil, a utilização de crianças em guerras e a violência sexual contra menores. No mundo, um bilhão e meio de pobres têm menos de 18 anos. A cada ano, morrem 15 milhões de menores de cinco anos. Dez milhões vivem como “meninos de rua”. 150 milhões sofrem de má nutrição e não têm acesso à escola. Não há dados sobre quantas crianças são vítimas de violência sexual. Nos últimos anos, a sociedade tem despertado para a tragédia da pedofilia. A polícia tem desbaratado redes de pedófilos que, pela internet, oferecem como objeto sexual crianças de até três anos. Educadores e até ministros religiosos e padres têm sido denunciados e condenados por abusos sexuais contra menores. Outro lado da tragédia é o turismo sexual que envolve menores
e as explora. Conforme a Unesco, há mais de três milhões de crianças sendo prostituídas no mundo. A Associação Internacional contra a Prostituição Infantil (ACPE) denuncia que a maior parte dessas crianças vive em países pobres. O Brasil não está livre dessa chaga. O melhor presente que poderemos oferecer às nossas crianças não se compra em lojas. É uma educação crítica para não se conformar com esta desordem vigente e uma força ética para se defender dos ataques da propaganda enganosa e para construir juntos conosco um mundo mais justo, pacífico e em comunhão com o universo. A tradição judaico-cristã propõe colocarmos a criança no centro da vida social. Cada criança é revelação do amor divino presente em todas as pessoas para que estas, mantendo em si mesmas a infância espiritual, se divinizem cada vez mais. Nos Evangelhos, Jesus Cristo diz: “Quem acolhe a uma criança no meu nome, é a mim que acolhe” (Lc 9, 37). Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 24 livros, entre os quais o romance A Festa do Pastor, da Editora Rede
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De 7 a 13 de outubro de 2004
NACIONAL ELEIÇÕES
Avanço do PT não é avanço da esquerda João Alexandre Peschanski da Redação
O
Partido dos Trabalhadores (PT) foi o mais votado das eleições municipais deste ano, com 16,3 milhões de votos recebidos por candidatos a prefeito em todo o país. Em 2000, ficou em quarto lugar, ao atingir 11,9 milhões – um aumento de 36,65%, em quatro anos (veja reportagem abaixo).“Ninguém seria maluco de dizer que o PT não avançou. Conseguiu importantes vitórias, mas é preciso analisar com cuidado se essa vitória do PT corresponde a uma vitória da esquerda brasileira”, avalia o sociólogo Theotônio dos Santos, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ele acredita que o avanço nas eleições demonstra o deslocamento do partido da esquerda para o centro, pois o grupo que mais se fortaleceu foi exatamente o mais conservador dentro do partido. Segundo Santos, o PT tem uma origem de esquerda, que define como “um compromisso com as camadas populares e a luta pela distribuição de renda”. No entanto, comenta o sociólogo, o partido foi dominado por um grupo que não se reconhece nessa esfera ideológica, “como o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, cujo compromisso não é com os trabalhadores, mas com o sistema financeiro internacional”.
Antonio Milena/Abr
O partido foi o mais votado no pleito municipal, mas a vitória fortalece seu segmento mais conservador RESULTADO DOS PRINCIPAIS PARTIDOS Desempenho das quatro maiores agremiações nas eleições para as prefeituras PT Partido dos Trabalhadores Prefeitos eleitos em 2004: 400 Prefeitos eleitos em 2000: 187 Candidatos no 2º turno: 24 Votos recebidos: 16,3 milhões (17,1% do total) Vitórias em capitais*: Aracaju (SE), Belo Horizonte (MG), Macapá (AP), Palmas (TO), Recife (PE) e Rio Branco (AC) PSDB Partido da Social Democracia Brasileira Prefeitos eleitos em 2004: 861 Prefeitos eleitos em 2000: 990 Candidatos no 2º turno: 20 Votos recebidos: 15,7 milhões (16,5% do total) Vitórias em capitais*: – PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro Prefeitos eleitos em 2004: 1.048 Prefeitos eleitos em 2000: 1.257 Candidatos no 2º turno: 12 Votos recebidos: 14,2 milhões (15% do total) Vitórias em capitais*: Campo Grande (MS) PFL Partido da Frente Liberal Prefeitos eleitos em 2004: 790 Prefeitos eleitos em 2000: 1.028 Candidatos no 2º turno: 5 Votos recebidos: 11,2 milhões (11,8% do total) Vitórias em capitais*: Rio de Janeiro (PFL)
ORIGEM MISTA Santos conta que, na fundação, em 1980, o PT era composto por três principais segmentos, todos ligados a movimentos de trabalhadores e correntes de intelectuais. Havia um grupo que lutava pela democratização do país, para que os movimentos sociais pudessem ser protagonistas das decisões políticas. O segundo grupo, segundo Santos, acreditava que a democracia era um fim em si mesma e, quando atingido esse objetivo, as conquistas para os trabalhadores viriam de forma natural. O terceiro segmento era o mais conservador, reunindo “os que lutavam para diminuir a presença estatal nas relações sociais, pois a centralização do Estado era vista como um obstáculo para a liberdade”. Mesmo heterogêneo, analisa o professor da UFF, o partido tinha um impulso e papel de esquerda: “Havia grandes consensos entre os segmentos, como a necessidade de transformações econômicas, de democratizar o Brasil e de organizar os trabalhadores”. Conforme apurou a reportagem do Brasil de Fato, a orientação de esquerda estava explícita nos principais documentos de fundação do partido, como o Manifesto de Lançamento do PT, de 10 de fevereiro de 1980, onde se lê: “O Partido dos Trabalhadores nasce da vontade de independência política dos trabalhadores, já cansados de servir de massa de manobra para os políticos e os partidos comprometidos com a manutenção da atual ordem econômica, social e política. Nasce, portanto, da vontade de emancipação das massas populares”. A íntegra do documento pode ser encontrada no endereço eletrônico www.pt.al.org.br/biblioteca/ manifesto.htm.
HEGEMONIA CONSERVADORA Na opinião de Santos, desde as primeiras vitórias eleitorais o PT começou a ser dominado pelo grupo mais conservador: “De seu objetivo inicial, o afastamento do Estado das relações sociais, esse grupo passou a defender o mercado como principal ator social”. Segundo o sociólogo, com o grupo ligado a Palocci no poder, as orientações se tornaram ainda mais específicas. “O governo optou por favorecer o
Preocupado com resultados eleitorais, o Partido dos Trabalhadores conquista novos municípios e se aproxima do centro
sistema financeiro internacional, deixando de lado a vontade dos trabalhadores e os objetivos do empresariado mais ligado à produção industrial”, diz. Santos afirma que o grupo conservador foge do debate com os outros segmentos do PT, pois “não tem aptidões para o debate, não tem identificação ideológica clara, define-se mais pela estrutura de poder e faz de tudo para se manter no poder”. Para o sociólogo, o grupo carece de proposta e concepção política. “Eles fogem da esquerda e não são aceitos pela direita, que critica as orientações da política
econômica. São aventureiros, colhem o que querem do lado que melhor atender seus interesses”, explica.
RESISTÊNCIA INTERNA De acordo com Santos, o grupo conservador é hegemônico no PT, mas os segmentos de esquerda não desapareceram. “O partido está se deslocando para a direita, mas não há ainda um resultado definido, pois há grupos dentro do PT que resistem a esse processo”, comenta. Para o sociólogo, a cúpula do PT está progressivamente abandonando a esquerda, mas os grupos
de esquerda continuam tentando recuperar o partido para essa esfera ideológica. Representante destes segmentos da esquerda do PT, a candidata à prefeitura de Fortaleza, Luizianne, não recebeu apoio do grupo dominante do partido. No resultado do primeiro turno, aparece no segundo lugar, com 22,3%, e vai disputar a próxima fase da eleição com Moroni, do PFL, que recebeu 26,6% dos votos. Em entrevista coletiva, Luizianne disse que espera receber o apoio do PT. O terceiro colocado, Inácio Arruda, do PC do B, com 19,2% da esco-
* Resultados apenas do 1º turno. Das 26 capitais, 15 vão para o 2º turno. Fonte: Tribunal Superior Eleitoral
lha do eleitorado, garantiu apoio à candidata petista. “O PT teria alcançado uma vitória muito mais importante (nas eleições municipais de 2004) se tivesse dado continuidade ao fluxo que levou Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República (em 2002)”, avalia Santos, para quem a eleição de Lula teve um conteúdo de esquerda, como expressão do descontentamento popular com a política econômica dos governos anteriores. Para o sociólogo, o PT rompeu com a coerência e a expectativa popular, “e ficou aquém do que poderia ter realizado”.
Política converge para o centro Luís Brasilino da Redação As eleições municipais, realizadas dia 3, consolidaram uma polarização entre partidos de tendência de centro, dentro da conjuntura político-partidária. O PT e o PSDB se tornaram as principais opções eleitorais para os brasileiros. Segundo o filósofo Roberto Romano, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), os dois partidos saíram fortalecidos das eleições. “PT e PSDB são de centro-esquerda, apesar de terem diferentes origens históricas. Enquanto os integrantes do primeiro vieram do Partido Comunista, de grupos trotskistas e da esquerda católica, o tucanato veio da intelectualidade acadêmica. O (José) Serra, por exemplo, tem todos os elementos de um esquerdista dos anos 60, como várias outras pessoas do partido. A militância deles, no entanto, foi em direção ao PMDB, o grupo de oposição institucional durante a ditadura militar. Já a esquerda católica não tinha partido, era órfã, até a criação do PT”, afirma Romano. Os comportamentos dos partidos, no entanto, difere muito pouco um do outro.
A polarização ficou explicitada nos números deste último pleito. O PT foi o mais votado entre todos os partidos, com o apoio de 16,314 milhões de eleitores; o PSDB ficou em segundo lugar, com 15,726 milhões. Esses votos fizeram a legenda do presidente Luiz Inácio Lula da Silva faturar, já no primeiro turno, 400 prefeituras, mais que o dobro das conquistadas no ano 2000 (187). Das 26 capitais em disputa, conquistou seis – Aracaju (SE), Belo Horizonte (MG), Macapá (AP), Recife (PE), Rio Branco (AC) e Palmas (TO) – e levou mais seis prefeituras em grandes centros (mais de 150 mil habitantes). Concorre, no segundo turno, em nove capitais – Belém (PA), Cuiabá (MT), Curitiba (PR), Fortaleza (CE), Goiânia (GO), Porto Alegre (RS), Porto Velho (RO), São Paulo (SP) e Vitória (ES) – e mais 15 grandes centros. O partido do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso levou 861 municípios – 129 a menos que no ano 2000. Destes, dez são grandes centros: Betim e Governador Valadares (MG), Canoas (RS), Joinville (SC), Carapicuiba, Franca, Jundiaí, Mogi das Cruzes, São Jo-
sé dos Campos e Taubaté (SP). No segundo turno, os tucanos disputam em 20 grandes centros, incluindo capitais. Para Romano, essa polarização define como serão as eleições para presidente e governador em 2006. Por isso, ele chama atenção para as disputas entre tucanos e petistas no segundo turno em Curitiba (PR) e em São Paulo (SP). “Esses pleitos são nucleares, devem funcionar como um jogo de dominó, originando uma reação em cadeia e derrubando, de um lado ou de outro, as peças que estiverem por trás daquela que cair primeiro”, diz Romano.
DEMAIS PARTIDOS Maior partido da história democrática brasileira pós ditadura militar, apesar de ter perdido prefeituras (passou de 1.257, em 2000, para 1.048), o PMDB continua forte nas pequenas e médias cidades. Com 14,231 milhões de votos, ainda é o partido com o maior número de administrações municipais. Sua participação ganha destaque por ser, como define Romano, “um partido ônibus, que leva todo mundo”. O PMDB pode ser um importante aliado tanto do PSDB, quanto do
PT. É só lembrar que o PMDB esteve ao lado de José Serra, nas eleições de 2002, e hoje compõe a base governista de Lula. Embalados pelo avanço petista, partidos de esquerda e de centro-esquerda de menor tamanho também cresceram. PC do B, PPS e PSB, que tiveram 7,755 milhões de eleitores em 2000, passaram para 10,301 milhões nas últimas eleições. O PTB e o PDT mantiveram, em média, o mesmo número de votos e prefeitos, mas, segundo Romano, perderam força na base. Do lado da direita, os partidos se retraíram. O PFL caiu de 1028 para 790 prefeituras. O número de prefeitos do PP diminuiu de 618 para 550. Segundo Romano, o voto de cabresto diminuiu. “Apesar da influência da mídia e dos marqueteiros, dá para sentir um eleitorado mais preocupado com questões sociais, ao passo em que figuras como José Sarney (PMDB), Paulo Maluf (PP), Antônio Carlos Magalhães e Jorge Bornhausen (PFL) já não mandam tanto. A Marta Suplicy, por exemplo, teve uma votação mais expressiva na periferia, justamente, pelas coisas que fez lá”, constata o filósofo.
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da mídia
NACIONAL MOVIMENTOS SOCIAIS
Jovens Xavante são baleados
Dioclécio Luz Rio, capital do Brasil? Comoção nacional por conta de um arrastão nas praias cariocas, com cenas exibidas pela TV Globo. Eram turistas sendo furtados, mas, como é no Rio de Janeiro, o problema vira nacional. Cenas muito mais cruéis acontecem todos os dias em outras regiões. Mas não é o Rio. Em entrevista à CBN (30/9), o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, radicalizou na choradeira e na necessidade de ações urgentes: “O Rio é a capital do Brasil”. Ah, a gente pensava que era Buenos Aires. Lula fecha rádio em Guarulhos Foi como nos bons tempos da ditadura. Os agentes da Anatel, Alcides dos Santos Oliveira e Luís Antonio Gomes, acompanhados de PMS, invadiram o estúdio da Rádio Comunitária União FM, em Guarulhos, SP, e deram voz de prisão a quatro radialistas e à recepcionista. Foram levados à central da Polícia Federal no bairro da Lapa, na capital paulista. A delegada Fernanda Medeiros de Castro, formalizou “o flagrante” e mandou recolher os radialistas ao xadrez, acusando-os de “telecomunicação clandestina”, “formação de quadrilha” e “exposição de embarcações aéreas”. Governo Lula dá medo Quem faz rádio comunitária está com medo desse governo. Tem medo da Anatel. Tem medo de gente como essa delegada de Guarulhos. Fechar rádio comunitária é um ato político. Quando essa delegada diz que rádio derruba avião (ela chama avião de “embarcação aérea”), todo mundo entende afinal, esse argumento veio da propaganda da Anatel. Mas quando ela fala em “formação de quadrilha” é porque a questão passou dos limites. Essa delegada é um perigo para a cidadania, para o país, para a democracia. Seu salário, porém, é pago pela sociedade. “Justiça” ganha prêmio na França O documentário nacional Justiça ganhou o Prêmio “La Vague d’Or”, de melhor filme no Festival Internacional de Cinema Feminino de Bordeaux, na França. Esse é o segundo prêmio internacional recebido pelo filme. Em maio, Justiça recebeu o prêmio de melhor filme no Festival Internacional de Documentários “Vision du Réel”, em Nyon, na Suíça. Veja os nacionalistas A revista Veja faz campanha para derrubar dois servidores do alto escalão do governo Lula: Carlos Lessa, presidente do BNDES; Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-geral do Itamaraty. São artigos de quinta categoria, apelativos, tentando criar a imagem deles como incompetentes, esquisitos, estranhos à função. Por que a Veja é contra eles? Porque são nacionalistas, defensores dos interesses nacionais. Direitos autorais A Associação Brasileira de Direito Autoral (ABDA) enviou ao Ministério da Cultura parecer segundo o qual o projeto que cria a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) interfere no direito de compositores e músicos fiscalizarem a arrecadação e a distribuição de seus direitos autorais. Isso por causa da passagem, para a Ancinav, de atribuições na arrecadação e distribuição dos direitos de execução pública musical ora no âmbito do Escritório Central de Distribuição e Arrecadação (Ecad). Che turístico Junto com o lançamento do filme Diários de Motocicleta na Bolívia, os últimos passos de Che Guevara no país andino estão virando um roteiro turístico. O projeto, batizado de “Trilha de Che”, foi idealizado pelo governo e por grupos de assistência internacional. Segundo eles, o objetivo é intensificar o turismo no interior do país para ajudar os mais pobres. Alguém acredita?
Feridos, os rapazes sobreviveram, mas a disputa com fazendeiros na região pode se intensificar Cristiano Navarro de Brasília (DF)
D
ois jovens Xavante, Felisberto, de 18 anos, e o adolescente G., de 16 anos, caminhavam por sua terra Marãiwatsedé, no Mato Grosso, dia 3, quando um grupo de motociclistas surgiu na mata disparando vários tiros em sua direção. Os indígenas sobreviveram à tentativa de assassinato, mas foram atingidos pelos disparos. Felisberto fraturou uma perna, enquanto o adolescente G. teve uma costela e o braço esquerdo perfurados. A violência contra os jovens Xavante pode intensificar uma disputa com fazendeiros na região que se arrasta desde 1961, quando a terra indígena foi invadida pela primeira vez. Para a administração local da Fundação Nacional do Índio (Funai), a situação pode fugir do controle, “pois grande parte dos homens da aldeia, inclusive as lideranças, estão na cidade (vizinha) de Serra Dourada, em Mato Grosso”. Quando esses homens retornarem a suas terras, a Funai teme que a revolta se espalhe, devido à característica guerreira do povo Xavante. A situação de tensão já havia sido denunciada pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Apoiadores da causa indígena, como o bispo de São Félix do Araguaia, dom Pedro Casadáliga, também têm recebido ameaças de morte por sua luta junto aos povos.
RETORNO DO EXÍLIO Em agosto, logo depois de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecendo ao povo Xavante o direito de retornar à sua terra original, Marãiwatsedé, fazendeiros e políticos da região ma-
Cristiano Navarro
Espelho
Terra indígena de Marãiwatsedé, onde dois jovens foram baleados no dia 3; Funai teme que disputa se intensifique na região
to-grossense de São Félix do Araguaia fecharam a rodovia BR-158, cortando acesso à terra indígena. Os fazendeiros exigiam a saída dos Xavante e eram liderados por Mario César Barbosa, prefeito reeleito de Alto da Boa Vista – município onde se localiza parte da terra Xavante –, e pelo fazendeiro Dagmar Falheiros, radialista e candidato derrotado nas últimas eleições à prefeitura da mesma cidade. A rodovia foi bloqueada no dia em que os Xavante recebiam a visita de uma comitiva liderada pelo relator nacional para o Direito Humano ao Meio Ambiente, Jean-Pierre Leroy, que tem apoio da Organização das Nações Unidas (ONU). Com a barricada, a comiti-
va não pôde seguir viagem. Leroy ouviu dos indígenas denúncias de violações de direitos humanos que servirão de base para o relatório anual da ONU.
DISPUTA ANTIGA A disputa dos fazendeiros com os Xavante data de 1957, quando os indígenas da terra Marãiwatsedé tiveram os primeiros contatos com os brancos, num contexto em que o Estado estimulava o avanço sobre as fronteiras amazônicas. Quatro anos depois, com o apoio do governo, deu-se início a uma gigantesca invasão da terra Marãiwatsedé. Esse processo gerou o projeto que ficou conhecido como o maior latifúndio do Brasil, com cerca de
1,7 milhão de hectares, a Fazenda Suiá-Missú. Depois de resistir à invasão por cinco anos, em 1966, toda a população Xavante – 320 pessoas – foi deportada em aviões da Força Aérea Brasileira para a fazenda São Marcos. O contato com o homem branco, e a mudança de local trouxeram uma trágica epidemia para os Xavante. “Uma semana depois que chegamos em São Marcos apareceu o sarampo e morreram 150 pessoas”, recorda o cacique Damião Xavante. Em 1992, o Estado brasileiro reconheceu a ocupação tradicional da terra, registrando-a em nome dos Xavante. Porém, logo em seguida, a terra foi invadida, impossibilitando o retorno dos índios.
Como nos tempos da ditadura Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro (RJ) Uma manifestação pacífica de trabalhadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Centro do Rio de Janeiro, dia 28 de setembro, foi reprimida pela Polícia Militar com extrema violência, lembrando os tempos da ditadura. A fúria dos soldados ocorreu quando um grupo de integrantes do movimento, representante de 400 famílias assentadas há mais de quatro anos na Fazenda da Usina
Cambaíba, em Campos, se concentrou em frente à 2ª Região do Tribunal Regional Federal – local onde se decidiria sobre um recurso de desapropriação. Os manifestantes, que queriam entrar na sede do Tribunal para acompanhar a decisão, estavam reunidos pacificamente quando foram agredidos. Nem mulheres grávidas e crianças foram poupadas. A tropa da PM, armada com cassetetes, metralhadoras, fuzis e gás de pimenta, feriu várias pessoas. Agentes da Polícia Federal e solda-
Bancários e petroleiros ainda sem acordos Após quinze dias de greves em todo o país, os bancários ainda não têm um acordo a respeito da reposição salarial. Dia 4, a Executiva Nacional da Confederação Nacional dos Bancários (CNB-CUT) decidiu enviar uma contraproposta à Federação Nacional dos Bancos (Fenaban) e à direção dos bancos públicos, baseada no resultado de assembléias realizadas em todas regiões. A nova proposta pede 19% de reajuste salarial e um abono de R$ 1.500 para cada trabalhador. Inicialmente, o reajuste reivindicado era de 25%. Os bancos oferecem 8,5% de reajuste e abono de R$ 30 para quem ganha até R$ 1.500. Dia 1º, a Fenaban havia reiterado, diante do Tribunal Superior do Trabalho, a impossibilidade de oferecer o reajuste de 25%. De acordo com a assessoria de imprensa da CNB, até dia 5 os bancos ainda não tinham se manifestado oficialmente em relação à contraproposta e à rea-
Nesse dia, o secretário estadual de Segurança, Anthony Garotinho, se encontrava de licença do cargo para cuidar da campanha política. O subsecretário Marcelo Itagiba, egresso da Polícia Federal, era o segundo responsável – considerando-se que a primeira é a governadora Rosinha Garotinho – pela volta da truculência policial no Rio de Janeiro. A decisão do Tribunal Regional de Recursos foi contrária aos interesses das famílias de Campos que, segundo seus representantes, continuarão ocupando o local.
CASO TEIXEIRINHA
GREVES
da Redação
dos do Batalhão de Choque foram chamados para reforçar a repressão. Como nos anos 70, a polícia fotografava os manifestantes e também os repórteres que documentavam a ação da tropa de choque. Raimundo Nilo Mendes, um assessor do Sindicato dos Petroleiros do Rio de Janeiro, foi um dos feridos. Marina dos Santos, da direção fluminense do MST, disse que a PM foi denunciada pela agressão a um ato pacífico. Os responsáveis pela operação declararam que “os soldados agiram corretamente”.
bertura do processo de negociação. De acordo com Deli Soares, diretor executivo da CNB, as paralisações se mantêm em todas capitais, mas diminuiram no interior de São Paulo. “Nos bancos privados, os patrões foram muito duros, com intervenção policial inclusive. Acho que isso prejudicou as mobilizações”, diz o sindicalista. Entre os petroleiros, a Federação Única dos Petroleiros (FUP) decidiu realizar greves de 24 horas em diferentes unidades do país. Na Refinaria de Duque de Caxias (Reduc), no Rio de Janeiro, os trabalhadores decidiram manter a greve por tempo indeterminado. Os petroleiros reivindicam 13,2% de reposição salarial, que englobam um reajuste de acordo com a inflação e um aumento real. A Petrobras ofereceu 7,81%, índice, recusado pela FUP. De acordo com a Federação, caso a Petrobras não apresente uma nova proposta, a categoria decidirá por uma greve nacional.
Tribunal condena Estado a indenizar família da Redação Em decisão histórica, os juízes da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná decidiram, dia 5, manter a sentença que condenou o Estado a pagar indenização como reparação material e moral a Lúcia Mainko da Silva e Marcos Antônio da Silva, viúva e filho do líder sem-terra Diniz Bento da Silva, o Teixeirinha, assassinado pela polícia militar do Paraná em março de 1993. A ação, ajuizada contra o Estado do Paraná na 1ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba no ano de 1994, obteve julgamento favorável à família em primeira instância, em meados de 2002, quando a Justiça condenou o Estado do Paraná a pagar aos familiares uma pensão vitalícia no valor de 4,5 saláriosmínimos e uma reparação por danos morais no valor de R$ 150 mil. Essa foi a decisão mantida nesse segundo julgamento, quando o advogado Sérgio Luiz Zandoná sustentou que os policiais agiram
premeditadamente e de forma brutal caçaram e executaram o líder sem-terra, assassinado com dois tiros nos joelhos, um no abdômen e dois na cabeça. A defesa do Estado declarou que os policiais “estavam no estrito cumprimento da lei” ao visitar o acampamento a paisana, dando início ao conflito. O procurador do Estado Manoel José Carneiro tentou desmerecer o pedido de indenização, taxando-a de “escabrosa” e “exagerada”, resultado do “tumulto”. O Estado tentou ainda cancelar a indenização alegando que Teixeirinha era “invasor de terra” e que praticava “ato ilícito”, desmerecendo, inclusive, as provas de renda levantadas no processo. Mesmo assim, o desembargador-relator do processo, Nério Spessato Ferreira, reconheceu que “independentemente dos fatos” que envolveram a ocorrência, a ação dos agentes públicos levou prejuízo aos familiares da vítima. O Estado ainda pode recorrer em terceira instância.
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NACIONAL DIREITOS DA MULHER
Em defesa da descriminalização do aborto Vista como uma questão de saúde pública e de respeito à mulher, menos restrições podem diminuir uma prática letal Tatiana Merlino da Redação
uma das principais causas da mortalidade materna. A faixa etária média das mulheres que fazem aborto situa-se entre 18 e 23 anos. Em 1993, em função desta situação precária, o dia 28 de setembro foi escolhido para ser o Dia pela
rantem o aborto como uma decisão consciente das mulheres e, como tal, deve ser respeitada pela sociedade e garantida pelo Estado. Durante a campanha deste ano, que teve como tema, “Aborto, as mulheres decidem, a sociedade res-
Jaime Razuri/AFP
A
difícil batalha pela descriminalização e legalização do aborto no Brasil vem comemorando conquistas nos últimos anos. Uma das vitórias importantes de 2004 foi a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, apresentada em setembro pelo Ministério da Saúde, e que garante o atendimento humanizado às mulheres em situação de abortamento nos casos de estupro e/ou de risco de vida. Além disso, a norma incita os profissionais “independentemente dos seus preceitos morais e religiosos, a preservarem uma postura ética, garantindo o respeito aos direitos humanos das mulheres”, e pretende oferecer a profissionais e serviços de saúde “subsídios para que possam oferecer não só um cuidado imediato às mulheres em situação de abortamento, mas, também, na perspectiva da integralidade deste atendimento, disponibilizar às mulheres alternativas contraceptivas, evitando o recurso a abortos repetidos”.
Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe. A mobilização em torno do problema tem o objetivo de impulsionar o cumprimento das leis que permitem o abortamento, e conseguir novos avanços na legislação dos países que não ga-
ANENCEFALIA Outro avanço deste ano foi a liminar concedida em junho pelo Supremo Tribunal Federal (STF) autorizando a prática do aborto em casos de anencefalia. Com isso, as mulheres não precisam mais conseguir autorização judicial para fazer aborto nos casos de anencefalia comprovada, quando não há chance alguma de sobrevivência do bebê. A validade da lei será votada pelo plenário do STF em outubro. Até então, os únicos casos permitidos legalmente eram gravidez resultante de estupro, ou com risco de morte para a gestante. A lei existe desde 1940, mas foi só no final da década de 80 que os primeiros serviços públicos que realizavam o procedimento começaram a surgir. Só em 1999, o Ministério da Saúde divulgou uma norma técnica regulamentando o atendimento público nos casos previstos. Hoje, há cerca de 50 serviços em todo o país e, apesar de serem considerados uma conquista, é um número ainda pequeno. “Eles exercem um papel pedagógico, mas como são poucos, têm dificuldade em atender à demanda”, afirma Fátima Oliveira, secretária executiva da Rede Feminista de Saúde.
MORTES Diariamente, no país, cerca de cinco mulheres procuram hospitais da rede pública em decorrência de complicações de aborto, que são
Protesto em frente ao Palácio da Justiça, em Lima, Peru; por ano, 80 mil mulheres morrem no mundo com abortos clandestinos
LEGISLAÇÃO SOBRE ABORTO EM PAÍSES DA AMÉRICA LATINA E CARIBE Situação em que a realização do aborto não é considerada crime – 1998 País
Por pedido da mulher
Razões Socioeconômicas
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Argentina Barbados Bolívia Brasil Chile Colômbia Costa Rica Cuba El Salvador Equador Guiana Haiti Honduras Jamaica México Nicarágua Panamá Paraguai Peru Porto Rico República Dominicana Suriname Trinidad Tobago Uruguai Venezuela
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Saúde da mulher ou anomalia fetal • (1)
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Decorrente de estupro ou incesto
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Risco de morte da mulher
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Em nenhuma situação
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Fonte: OMS, 1998 (1) Estupro de mulher portadora de deficiência mental; (2) Somente em caso de risco para a saúde da mulher; (3) Até a 8ª semana de gestação; (4) Inclui saúde mental; (5) Em alguns Estados do país (cada Estado tem seu próprio código penal); (6) Apenas durante o primeiro trimestre da gestação; para o aborto terapêutico não define prazo; inclui a defesa da honra.
Restrições excessivas não resolvem problema Apesar dos avanços, o movimento de mulheres acredita que ainda há muito o que fazer. “Queremos que o governo brasileiro revise as leis punitivas sobre o aborto, como assumiu em conferências da ONU”, afirma Fátima Oliveira, secretária executiva da Rede Feminista de Saúde, referindo-se às Conferências das Nações Unidas do Cairo (1994) e de Pequim (1995). Para ela, a Norma Técnica do Ministério da Saúde significa um ganho político, “mesmo depois de tantos anos”. Para as organizações feministas, no Brasil, o aborto constitui um problema de saúde pública e justiça social. Segundo Dulce Xavier, do Grupo Católicas pelo Direito de Decidir, se a questão fosse tratada como saúde pública, o número de abortos diminuiria. O ciclo de clandestinidade do aborto, observa, gera muitos desvios, entre eles a morte e a prisão de mulheres que abortam. “Aquelas que não morrem, ficam com seqüelas muito graves”.
peita, o Estado garante”, o movimento de mulheres organizou debates, programas de rádio, manifestações e atos públicos por todo o país. Todos os anos, 80 mil mulheres morrem no mundo por causa de abortos clandestinos, o que significa uma morte a cada 6 minutos. São 20 milhões de abortos realizados em condições precárias. De acordo com o Ministério da Saúde, a cada ano ocorrem de 750 mil a 1 milhão de abortos clandestinos no Brasil, enquanto cerca de 250 mil mulheres são internadas no Sistema Único de Saúde (SUS), vítimas de aborto inseguro. Delas, cerca de 10% morrem, influindo significativamente nos índices de mortalidade materna, e 20% ficam com seqüelas. Segundo Dulce Xavier, do Grupo Católicas pelo Direito de Decidir, mesmo com a norma do Ministério da Saude, “muitos profissionais continuam resistindo a atender às mulheres”. A seu ver, tal resistência se fundamenta “numa dificuldade ética e moral, baseada no pensamento cristão-católico”. Ela conta que há casos de profissionais que, para punir as mulheres que chegam aos hospitais após terem se submetido a abortos não seguros, partem para procedimentos como curetagem sem anestesia. “Esperamos que, com a norma, os funcionários da saúde não atuem como juizes, e tratem as mulheres de forma digna”, pondera Dulce.
No país, enquanto mulheres com recursos financeiros são atendidas de modo seguro, com qualidade e sem risco para a saúde e vida, pobres, negras e adolescentes são empurradas para o aborto clandestino e inseguro. Dulce lembra que as mulheres recorrem a práticas arriscadas como chás tóxicos, sondas e remédios caseiros de efeitos colaterais danosos. Ela cita casos de mulheres que, em desespero, chegaram a introduzir veneno de rato na vagina, ou até permanganato de potássio, um ácido que corrói a vagina.
RESTRIÇÕES “Nossa primeira reivindicação é que o aborto deixe de ser tratado como crime”, argumenta Dulce, acrescentando que nem por isso as mulheres deixaram de fazer abortos. E mais: junto com a legalização, o governo deveria se empenhar em campanhas de contracepção. “As mulheres não fazem aborto porque acham bom, mas é um recurso ao qual apelam em momentos
de desespero”, avalia ela. De acordo com o movimento de mulheres, ao tratar a questão como saúde pública, a tendência é que diminua a prática de abortos. Para Fátima Oliveira, o Brasil é um dos países que têm leis das mais restritivas sobre o aborto. “Cerca de 75% da população mundial vive em países onde a prática é legal”. Na América Latina e Caribe, a situação é bastante complicada. Segundo pesquisa da Organização Mundial de Saúde de 1998, anualmente, cerca de 4,2 milhões de mulheres se submetem a abortamentos, na maioria realizados na clandestinidade e em condições inseguras.
ANTIFEMINISMO Na opinião da representante do Grupo Católicas pelo Direito de Decidir, Dulce Xavier, isso se deve à dificuldade de consolidação de um Estado laico. “Há uma resistência muito grande dos setores conservadores fudamentalistas, que são contra as reividicações das feministas”.
Fátima concorda e lembra que há oito projetos sobre aborto em andamento no Congresso Nacional, quatro dos quais pretendem aumentar a criminalização da prática. “É uma luta política muito pesada contra as bancadas fudamentalistas evangélicas”, diz ela. A seu ver, hoje, quem é contra o aborto são os donos das clínicas de interrupção da gravidez e os setores mais atrasados da igreja. Há grupos religiosos, entre eles o Católicas Pelo Direito de Decidir, que defendem o Estado laico e respeitam a auto determinação humana. “A hierarquia católica tenta mostrar que a postura única da Igreja é contra o aborto, mas isso não é verdade. Há diferentes posições sobre isso”, garante Dulce. “Nós não defendemos o aborto, mas o direito das mulheres de decidir sobre o próprio corpo, e a diminuição do número de mortes em decorrência do aborto clandestino”, argumenta. (TM)
Articulação feminina Para ampliar o debate na sociedade e pressionar o governo federal foram criadas, no começo de 2004, as Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, articulação do movimento de mulheres e movimento feminista. As Jornadas pretendem estimular e organizar a mobilização nacional pelo direito ao aborto legal e seguro, apoiar projetos de lei que ampliem os permissivos legais para o aborto, contrapor-se aos projetos de lei contrários a essa prática e ganhar aliados em outros movimentos sociais. “Queremos ampliar o debate para amplos setores da sociedade”, diz Fátima Oliveira, secretária executiva da Rede Feminista de Saúde, uma das 28 organizações feministas de diferentes partes do país e de várias redes e organizações de âmbito nacional. (TM)
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NACIONAL PNAD 2003
Fatos em foco
Retrato do Brasil em uma década Rendimento cai, concentração de renda é alta, trabalho infantil subsiste, mulheres ganham menos
Hamilton Octavio de Souza da Redação Mudança mesmo Mais do que uma manifestação de concordância com a política econômica do governo Lula, o crescimento do PT nas eleições municipais de domingo passado reforça o mesmo sentimento depositado nas urnas de 2002: as bases populares do partido continuam clamando por mudanças no modelo econômico e nas prioridades governamentais. HabitaçãoÐ nº de moradias rústicas (feitas com material não-durável) caiu de 5,1% para 2,5% dos domicílios.
Orçamento fantasma Dados do próprio governo comprovam que, no primeiro semestre, foram executados apenas 41% da minguada verba orçamentária anual da área social. O gasto com saneamento básico foi 0,53% do orçado; e a reforma agrária recebeu somente 17% da verba prevista para o ano. Mais uma vez, a expectativa da prioridade social fica para o segundo semestre.
Sem pressa De acordo com o ex-secretário de Erradicação do Analfabetismo do MEC, João Luiz Homem de Carvalho, se o governo continuar no ritmo atual dos programas de alfabetização de jovens e adultos, somente em 2022 o Brasil terá alcançado a taxa atual de analfabetismo da Argentina, que é de 5%. Sem trégua A imprensa burguesa – em especial O Estado de S. Paulo e a Veja – continua com campanha orquestrada contra “nacionalistas” e “esquerdistas” do governo Lula. Ora atacam a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, e o ministro Miguel Rossetto, do Desenvolvimento Agrário, ora atacam o presidente do BNDES, Carlos Lessa, e o secretáriogeral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães. Os cães de guarda do neocolonialismo continuam a postos. Jogada empresarial Movimentação política de empresários tenta enfraquecer a política de negócios do Itamaraty e o ministro Celso Amorim, com críticas dirigidas aos contatos com países do terceiro mundo. Esse grupo empresarial, ligado à Câmara Americana de Comércio, prefere negociações exclusivas com os Estados Unidos, como se fosse uma preparação para a Alca. Aposta equivocada Em seu livro A Esperança Equilibrista, o cientista político e militante do PT Juarez Guimarães analisa que o governo Lula concentra suas energias num equivocado “pacto social”, já que a liderança das classes dominantes – o setor financeiro – não têm o menor interesse em assumir compromisso com contratos ou com regulações. Os altos lucros do setor decorrem exatamente da instabilidade geral do sistema. Indefinição favorável O aparente recuo do governo sobre a edição de medida provisória para liberar o plantio de soja transgênica só favorece, mais uma vez, o forte lobby da multinacional Monsanto, que inundou alguns Estados com a sua semente patenteada. Igual ao ano passado, a falta de definição antecipada levou à liberação da soja transgênica para não dar prejuízo aos produtores. Tudo conforme o roteiro da Monsanto.
RENDIMENTO CAI O ano de 2003 foi o sétimo seguido de queda no rendimento do trabalhador e a maior delas, desde 1997, quando a remuneração média de quem estava no mercado começou a despencar. Apesar disso, houve alguma desconcentração de renda na década. Os 10% mais ricos, que detinham 49% da renda total em 1993, passaram a deter 45,3%. No mesmo período, os 10% mais pobres, que detinham 0,7%, passaram a deter 1%. O resultado é que o índice de Gini (que varia de zero a um, sendo que quanto mais perto de zero, menor a concentração) caiu de 0,600, em 1993, para 0,555 em 2003, o mais baixo resultado desde 1981. Já em relação a 2002, as distâncias salariais não se encurtaram muito: o Índice de Gini naquele ano foi de 0,563. O rendimento médio mensal do trabalhador brasileiro diminuiu 7,4% no ano passado, em relação a 2002, e 18,8% desde 1996. A perda real atingiu todas as categorias: a dos trabalhadores domésticos caiu 5,4%; a dos que trabalham por conta própria, 6,6%; e dos empregados e empregadores, 7,5%. Entretanto, perderam mais os que ganhavam mais. A perda real entre os 50% ocupados e com os menores rendimentos foi de 4,2%, enquanto a perda entre os 50% com maiores rendimentos foi de 8,1%. A análise desses 10 anos, 1993 a 2003, mostra que os 10% dos ocupados com os maiores rendimentos, que detinham praticamente metade do total das remunerações (49%) em 1993, passaram, em 2003, a deter 45,3% do total. Na outra ponta, os 10% dos trabalhadores com os menores rendimentos, que ficavam com 0,7% do total das remunerações, passaram a receber 1% do total de todos os rendimentos, em 2003. Quando considerado o rendimento domiciliar, que reúne a remuneração de todas as fontes de rendimento dos moradores, a PNAD registrou queda de 8% de 2002 para 2003. A taxa de desocupação detectada pela PNAD passou de 9,2% para 9,7% nesse período.
TRABALHO Na década analisada pela PNAD, apesar de não acompanhar o crescimento populacional, o mercado de trabalho criou mais vagas
Indicadores refletem desigualdade
Desemprego – o mercado de trabalho cresceu menos do que a população; em 2003, o desemprego era de 9,7%.
Escolaridade – em 1993, 14% da população tinha 11 anos ou mais de estudo; em 2003, quase 25%.
Serviços básicos – 97% dos domicílios têm luz, a rede de esgoto só serve 48% dos domicílios, a coleta do lixo ainda é deficitária. Rendimento – o rendimento médio mensal do trabalhador diminuiu 18,8% desde 1996; todas as categorias tiveram perdas reais.
Concentração de renda – os 10% mais ricos tinham 49% da renda total, passaram a ter 45%; os 10% mais pobres, avançaram de 0,7%, para 1%. $
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Mulheres ganham pouco – desemprego é maior entre as mulheres, que continuam ganhando menos do que os homens.
com carteira assinada. A população ocupada cresceu 3,6% de 2001 para 2002 e 1,4% entre 2002 e 2003, ou seja, menos da metade do ano anterior e abaixo da taxa de crescimento da população de 10 anos ou mais de idade (apta para trabalhar), que foi de 1,9% em 2003. O desemprego passou de 9,2% em 2002 para 9,7% em 2003, mas houve aumento de 5,5% no número de vagas com carteira assinada. A taxa de desemprego entre as mulheres foi ainda mais alta, devido à forte pressão da população feminina para ingressar no mercado de trabalho. Enquanto o indicador de desocupação da população feminina foi de 12,3%, na população masculina, o indicador chegou a 7,8%. Segundo o IBGE, as mulheres não só estão pressionando mais o mercado, como estão permanecendo mais nele. O percentual de mulheres ocupadas, ou seja, trabalhando em 2003, foi de 44,5%, próximo aos 43,5% registrados em 1993. Já o percentual de homens ocupados no ano passado chegou a 67,2%, abaixo dos 71,9% registrados em 1993. Entretanto, as mulheres continuam a ganhar menos que os homens. Em 1993, o rendimento médio das mulheres com maior remuneração representava 59% do recebido pelos homens e, em 2003, ficou em 70%.
TRABALHO INFANTIL Na procura por trabalho, aumentou a escolaridade da população brasileira. Em 1993, de cada 100 jovens de 15 a 17 anos, 40 não estudavam. Em 2003, o número caiu para 18. Na outra ponta, os que tinham 11 anos ou mais de estudo eram 14,1% da população em 1993 e saltaram para 24,9%, em 2003, ou seja, de cada quatro pessoas, uma tinha 11 anos ou mais de estudo. No ano passado, eram 35,5 milhões os brasileiros com mais de 11 anos de estudo. Desses, 19,5 milhões eram mulheres. A média de anos de estudo passou de 5 para 6,4 anos, em uma década. Em 2003, entre os que estavam trabalhando, a média de anos de estudo era de 7,1 anos.
Trabalho – a proporção de crianças de 5 a 17 anos ocupadas é alta: de 15,2% entre os meninos, e 8,2% entre as meninas.
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Agricultura – um em cada cinco brasileiros ocupados trabalha na agricultura: eram 16,4 milhões, em 2003.
Pobres perdem menos – perda real entre os 50% ocupados e com os menores rendimentos foi de 4,2%, e a dos 50% com maiores rendimentos foi de 8,1%.
De acordo com a pesquisa, um em cada cinco brasileiros ocupados no país trabalha na agricultura. Eram 16,4 milhões, em 2003. E, nessa atividade, o contingente dos trabalhadores não remunerados caiu, mas o de trabalhadores por conta própria aumentou 7,2%, de um ano para outro. Também cresceu o número de trabalhadores com carteira assinada na agricultura. Apesar da redução expressiva no trabalho infantil entre 1993 e 2003, o número ainda é elevado. A proporção de crianças ocupadas no contingente de 5 a 17 anos de idade baixou de 24,5% para 15,2% entre os meninos, e de 13,5% para 8,2%, entre as meninas. Ou seja, os meninos continuam sendo os mais afetados pelo trabalho precoce. O percentual é de 7,7% entre os meninos de 5 a 14 anos, e de 3,8% entre as meninas.
ou tinham fossa séptica) cresceu de 58,8% para 68,9%. No período analisado pela PNAD, o Sudeste (de 78,2% para 86,3%) e o Sul (de 59,4% para 74,9%) continuaram apresentando os maiores percentuais regionais de domicílios com esgotamento sanitário adequado, e bastante distanciados daqueles do CentroOeste (de 36,7% para 45,4%) e do Nordeste (de 32,4% para 44,1%). Em relação ao número de moradias que tinham serviço de coleta de lixo, em um ano, o crescimento foi de 4,3%. Em 1993, 30% das residências não tinham serviço de coleta de lixo, um percentual alto que, dez anos depois, caiu para menos da metade (14,4%). Quanto ao abastecimento de água, em 1993, um quarto das habitações não tinha o serviço. Em 2003, esse serviço não atendia 17,5% dos domicílios.
SERVIÇOS BÁSICOS
MAIS IDOSOS
Em dez anos, apesar dos avanços, os dados da PNAD 2003 mostram que ainda permanecem as desigualdades regionais em relação a algumas características dos domicílios. O serviço com a maior cobertura continuou sendo o de iluminação elétrica, que atingiu 97% dos domicílios brasileiros. Quando comparado com 1993, percebe-se uma grande evolução, pois apenas 90% dos lares dispunham de iluminação elétrica. No Sudeste, a melhoria já atingiu quase a totalidade dos lares, passando de 96,4% para 99,4%. No Sul, esse percentual passou de 94,7%, em 1993, para 98,7% em 2003. No Centro-Oeste, o crescimento foi de 90% para 97,1%. Já o Nordeste, apesar de ainda apresentar o menor percentual entre as regiões, teve o maior crescimento no período: de 75,7% passou para 91,7%. A rede coletora de esgoto, ainda é o serviço com a menor cobertura nos lares brasileiros. A extensão do serviço cresceu de 39% dos domicílios, em 1993, para 48% em 2003. O percentual de domicílios que dispunham de esgotamento sanitário adequado (ou seja, que eram atendidos por rede coletora de esgoto
Com a queda nas taxas de fecundidade e mortalidade, a estrutura etária da população vem mudando. Em 1993, a taxa de fecundidade era de 2,6%. Dez anos depois, diminuiu para 2,1%. Essa progressiva redução teve início em meados dos anos 60 e se intensificou nas duas décadas seguintes. Em 1981, o grupo etário que tinha mais pessoas era o de 0 a 4 anos de idade; em 1986, o de 5 a 9 anos; em 1992, o de 10 a 14 anos; em 1998, os maiores percentuais estavam concentrados nas faixas de 10 a 14 e de 15 a 19 anos; em 2001, o maior era somente o de 15 a 19 anos, mas a sua proporção já começava a diminuir. Em 2003, o grupo etário de 15 a 19 anos ainda era o maior, mas a sua participação na população continuou em queda, aproximando-se daquela do grupo de 20 a 24 anos. No outro extremo, a população de 60 anos ou mais de idade continuou crescendo gradativamente: representava 6,4% do total em 1981; subiu para 8% em 1993 e chegou a 9,6% em 2003. Em números absolutos, isso significa que, dos quase 174 milhões de pessoas, 16,7 milhões tinham, no mínimo, 60 anos de idade.
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Dinheiro fácil Banqueiros estrangeiros e especuladores financeiros pressionaram o Banco Central do Brasil, esta semana, para aumentar o superávit primário já no primeiro semestre de 2005. A rapinagem é tanta que até o FMI, que sempre faz o jogo desses setores, considera o arrocho exagerado e contraproducente para o investimento interno. Na visão deles, o povo brasileiro que se dane.
N
os últimos dez anos (1993 a 2003), a renda do brasileiro caiu, o mercado de trabalho se tornou mais precário, a concentração de renda – ainda alta – recuou um pouco, o trabalho infantil ainda é preocupante, as condições de habitação (materiais precários de construção e serviços básicos de água tratada, saneamento, luz, coleta de lixo) melhoraram um pouco, aumentou a presença de mulheres no mercado de trabalho mas elas continuam ganhando menos do que os homens. Este é o retrato do Brasil apresentado dia 29 de setembro pela Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A comparação dos últimos dez anos da PNAD (1993 a 2003) mostrou que a proporção de habitações consideradas rústicas (paredes feitas com material não-durável, como madeira aproveitada de embalagens, taipa, palha etc.) se reduziu à metade, passando de 5,1% para 2,5%; que despencou a parcela de crianças de 7 a 14 anos que não freqüentava escola – de 11,4% em 1993, para 2,8% em 2003. Outro indicador que reflete o nível de instrução da população, o número médio de anos de estudo, passou de 5 anos em 1993, para 6,4 anos em 2003.
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De 7 a 13 de outubro de 2004
NACIONAL SAFRA 2004-2005
Crédito favorece culturas de exportação Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
A
força do lobby empresarial e o interesse do governo em produzir dólares a qualquer custo distorcem a política de crédito rural, ao destinar a maior fatia dos recursos reservados ao custeio das safras para a produção de grãos e fibras destinados ao mercado internacional. Assim, as lavouras de exportação – soja, laranja, cana-de-açúcar, café e algodão – exploradas, em geral, por grandes produtores e grupos econômicos, concentram mais da metade dos recursos do crédito rural – 60% dos quais emprestados a juros fixos de 8,75% ao ano, bem abaixo dos custos de mercado. Em 2002, último ano para o qual há números oficiais disponíveis, segundo levantamento do Banco Central (BC), os bancos emprestaram R$ 8,151 bilhões, aplicados na compra de insumos e nas despesas com preparo do solo, plantio, tratos culturais e colheita da safra. Daquele total, as culturas voltadas para a exportação receberam uma injeção equivalente a R$ 4,207 bilhões, ou praticamente 52% do crédito de custeio, embora ocupem 49% da área total plantada, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
DESPROPORÇÃO As demais lavouras, com o grosso da produção reservada para o abastecimento do mercado interno, receberam R$ 3,944 bilhões (48% dos empréstimos), ainda que respondam por 51% de toda a área cultivada. A desproporção é ainda mais nítida quando analisado o número de contratos de financiamento firmados naquele ano e o percentual da área financiada por tipo de lavoura. As lavouras tipo exportação, lideradas pela soja, representaram 201,4 mil contratos, o equivalente a 23% dos 860,7 mil contratos assinados por produtores e cooperativas em 2002. A maior parte dos contratos (77% do total), foi fechada para o financiamento das culturas que asseguram, principalmente, a alimentação do brasileiro (arroz, feijão, batata, mandioca, milho, frutas, legumes e hortaliças em geral). Na média, cada empréstimo destinado à agricultura de exportação equivaleu a 3,5 vezes mais o
Orlando Kissner/AFP
Os empréstimos para o plantio da soja levam mais de 36% de todos os recursos destinados ao custeio agrícola continuarão a ser. Com 140,9 mil contratos de crédito rural firmados em 2002 (16,4% do total), os produtores do grão receberam R$ 2,95 bilhões, ou 36,2% de todo o dinheiro destinado ao custeio da safra. Os sojicultores conseguiram financiar o equivalente a 50,5% da área total destinada à soja.
FEIJÃO E MANDIOCA
As lavouras de exportação – soja, laranja, cana-de-açúcar, café e algodão – concentram mais da metade do crédito rural
DESIGUALDADE
A CONCENTRAÇÃO NO CAMPO Distribuição do crédito para custeio das lavouras em 2002* Variável Nº de contratos Participação no total (%) Valor financiado (em R$ milhões) Participação no total (%) Área financiada (em mil hectares) Participação na área total financiada (%) Área plantada (em mil hectares) Participação na área plantada total (%) Percentual financiado (%)
Culturas de exportação 201.414 23 4.207,4 52 11.324 58 27.714 49 41
Demais 659.333 77 3.944,1 48 8.217 42 29.035 51 28
Total 860.747 100 8.151,5 100 19.541 100 56.749 100 34,4
(*) Último dado disponível Fonte: Banco Central (BC)
SOBRAM FERTILIZANTES Produção, importação e entrega de fertilizantes ao consumidor final entre janeiro e agosto de cada ano, em mil toneladas Variável Produção interna Importações Vendas Estoques (produção + importações – vendas)
2001 4.829,5 5.836,1 9.727,0 938,7
2002 2003 5.400,3 5.686,4 6.843,0 8.700,3 11.499,0 12.910,6 744,3 1.476,1
2004 6.394,8 10.295,0 12.818,1 3.874,6
2004/2003 +12,5% +18,3% -0,7% +162,5%
Fonte dos dados brutos: Associação Nacional para Difusão de Adubos (Anda) Elaboração: Brasil de Fato
valor emprestado para o plantio de produtos básicos.
ALIMENTOS Por isso mesmo, os recursos foram suficientes para financiar o cultivo de 41% da área total ocupada pelas lavouras de exportação, enquanto os demais agricultores
conseguiram recursos para financiar apenas 28% da área reservada para os produtos de consumo predominantemente doméstico. Como o restante dos recursos teve que ser contratado no mercado, a custos mais elevados, a política de crédito rural favorece a concentração de recursos e de riqueza
Já os produtores de feijão e mandioca conseguiram bem menos. No primeiro caso, foram liberados R$ 155,53 milhões (1,9% do crédito total), para uma cultura que ocupa 7,2% da área agrícola total do país. Foram cultivados 302,2 mil hectares com recursos do crédito rural, ou apenas 7,4% do espaço reservado ao feijão nas três safras regularmente cultivadas. Para os produtores de mandioca, plantada numa área de pouco mais de 1,6 milhão de hectares, foram emprestados R$ 57,4 milhões, significando 0,7% do crédito total, suficiente para o plantio de 139,4 mil hectares – 8,5% da área ocupada pela raiz.
no campo também por um outro caminho, ao assegurar melhores condições de competição aos produtos exportáveis (via custos mais baixos), em detrimento daqueles tipicamente de consumo interno. Isoladamente, as lavouras de soja foram as mais favorecidas – e tudo indica que continuam e
O retrato da concentração fica nítido quando se observa a distribuição do crédito rural total, em todas as suas modalidades, por faixa de valor dos contratos de financiamento assinados entre bancos, produtores e cooperativas. Em 2002, para 1,719 milhão de contratos, foram liberados R$ 22,443 bilhões. Considerando-se os empréstimos no valor de até R$ 40 mil, foram firmados 1,622 milhão de contratos (mais de 94% do total), no valor de R$ 8,040 bilhões – 36% de todo o crédito, representando um valor médio por contrato de R$ 4,96 mil. Os restantes 97 mil contratos (cerca de 6% do total), ficaram com R$ 14,403 bilhões, correspondendo a 64% de todo o dinheiro, incluídos empréstimos para custeio e investimentos na agricultura e pecuária. No alto da pirâmide do crédito, os financiamentos com valor superior a R$ 300 mil somavam R$ 6,763 bilhões, distribuídos entre pouco mais de 5,8 mil contratos – o que correspondeu a um valor médio por contrato de R$ 1,156 milhão (233 vezes mais do que o valor médio dos contratos incluídos na base da pirâmide). Isso significa dizer, ainda, que 0,34% dos contratos levaram 30,1% dos recursos.
Previsões indicam manutenção da área plantada Os institutos de pesquisa começam a divulgar, em breve, as primeiras previsões sobre a intenção de plantio da próxima safra, que começa a ser semeada neste mês. As apostas se concentram, mais uma vez, na soja, já que os produtores tendem a reservar uma área ligeiramente menor para o cultivo de milho na safra de verão, preservando o espaço destinado ao arroz e feijão – salvo acidentes climáticos. A despeito de um incremento médio entre 20% a 30% no custo dos fertilizantes, na comparação entre setembro de 2004 e o mesmo mês do ano passado, pelos cálculos da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), as vendas de fertilizantes não chegaram a ser severamente afetadas – o que sugere uma tendência à estabilização da área a ser cultivada na safra 2004/2005. Entre janeiro e agosto deste ano, a indústria vendeu 12,8 milhões de toneladas de fertilizantes no mercado interno, num recuo de 0,7% na comparação com os primeiros oito meses do ano passado. A produção e as importações, ao contrário, caminharam a passos mais largos,
conforme apontam os números da Associação Nacional para Difusão de Adubos (Anda).
ESTOQUES Tomando os mesmos períodos, a indústria produziu 6,4 milhões (mais 12,5%) e importou 10,3 milhões (mais 18,3%) de toneladas de fertilizantes. Já que as vendas diminuíram, o setor registrou uma sobra recorde de quase 3,9 milhões de toneladas, suficientes para abastecer o mercado por quase dois meses e meio. Os estoques, que aumentaram 162,5% em relação ao mesmo período do ano passado, parecem sinalizar que a indústria ainda aguarda uma reação do mercado agrícola, em linha com as projeções antecipadas pela empresa Safras & Mercado, especializada em consultoria agrícola. As primeiras estimativas da empresa, realizadas em setembro, indicavam um avanço de 4% para a área destinada ao plantio de grãos e oleaginosas, passando de 45,9 milhões para 47,8 milhões de hectares. Se o tempo ajudar, e levando em conta que a soja não deve enfrentar
novamente os mesmos problemas ocorridos na safra recém-concluída (a ferrugem asiática e a estiagem causaram uma quebra de quase 10 milhões de toneladas), a produção de alimentos pode crescer quase 16%, passando para cerca de 136 milhões de toneladas – aumento concentrado, no entanto, nas lavouras de soja. A consultoria estima uma produção de 66,6 milhões de toneladas do grão, um pouco mais otimista que o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla em inglês), que projeta uma colheita em torno de 66 milhões de toneladas para o Brasil. Neste caso, haveria uma produção adicional de 16,7 milhões de toneladas, correspondendo a praticamente 90% de todo o ganho previsto para a produção agrícola brasileira em 2005. A safra doméstica de soja cresceria, naquela hipótese, 33% frente às 49,9 milhões de toneladas colhidas neste ano.
QUEBRA NO MILHO O avanço previsto para a soja ajudaria a compensar as perdas esperadas para o milho (41,9 milhões de toneladas em 2003/2004). O de-
sempenho da cultura na safra nova será influenciado pelo comportamento dos produtores do Paraná, que responde por quase um quinto da produção de verão. Na previsão do Departamento de Economia Rural (Deral), da Secretaria da Agricultura do Paraná, o Estado deve cultivar, na primeira safra do grão, 1,25 milhão de hectares, menos 7,3% em relação à safra passada. Poderá ser a menor área em 30 anos, se confirmada a projeção. Em condições normais de clima, a produção alcançaria, assim, 7,06 milhões de toneladas, num recuo de praticamente 8% diante da colheita deste ano.
PREÇOS BAIXOS Num quadro que tende a se repetir no resto do país, o agricultor paranaense deve optar pelo aumento do plantio da soja, produto que oferece maior facilidade de venda ao produtor e preços relativamente mais favoráveis do que o milho. No começo de outubro, a cotação da saca do milho girava em torno de R$ 10 a R$ 15,50 em Lucas do Rio Verde (MT) e Campo Mourão (PR). No primeiro caso, a saca estava sen-
do oferecida a um valor 9% inferior ao preço mínimo fixado pelo governo para o Mato Grosso. O Deral estima uma área de 4,09 milhões de hectares para a soja e produção de 12,44 milhões de toneladas. Os primeiros indícios, portanto, são de um abastecimento relativamente apertado no próximo ano. Para a Conab, os estoques de passagem do milho devem encerrar o ano próximos a 4,25 milhões de toneladas, com queda de 35%, em relação a 2003. O volume corresponde a 38 dias de consumo, menos que os 58 dias cobertos pelos estoques remanescentes da safra 2002/2003. No próximo ano, segundo estimativa do USDA, os estoques finais de milho em todo o mundo devem representar apenas metade das reservas acumuladas em 2000, suficientes para suprir 46 dias de consumo (diante de 102 dias em 2000). Depois de ocupar uma área de pouco mais de 3,7 milhões de toneladas na safra 2003/2004, o arroz poderá mesmo repetir aquela marca no ano agrícola 2004/2005, mas tende a não alcançar a mesma produção (na faixa de 13,2 milhões de toneladas) (LVF).
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De 7 a 13 de outubro de 2004
NACIONAL ENTREVISTA
O sindicalista que fez a história do Brasil Líder de trabalhadores revela bastidores do governo Jango e desmente ligação dos sindicatos com o presidente Mário Augusto Jakobskind
Maria Luiza Franco e Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro (RJ)
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a história do movimento sindical brasileiro, Clodesmidt Riani tem um lugar de destaque. Tanto Riani como outros sindicalistas que viveram o período anterior a 1964 são até hoje acusados de terem atrelado as suas entidades ao governo João Goulart. Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Riani, aos 83 anos, repele essa pecha histórica e conta fatos inéditos dos bastidores do governo Jango. Toda a participação de Riani na política brasileira está documentada no Centro de Memória e Documentação que tem o seu nome, e funciona em Juiz de Fora, onde ele mora. Brasil de Fato – Como começou a sua história no sindicalismo? Clodesmidt Riani – Na década de 30, meu pai foi presidente do Sindicato dos Têxteis de Juiz de Fora e dizem os amigos que foi um bom dirigente, chegou a estar com o presidente Getúlio Vargas. Eu, aos 14 anos, fui trabalhar numa fábrica de tecelagem. Aos 16, estava na Companhia Mineira de Eletricidade, que tinha os setores bonde, telefone e energia elétrica. O trabalho nos bondes era dos mais árduos e o sindicato do setor era muito ativo, fazia reivindicações e greves. Em 1947, entrei para o movimento sindical, muito em função das necessidades – tinha uma família grande, sou pai de dez filhos e tenho 18 netos e dois bisnetos. Não fiz mais porque fui preso. BF – Quando o senhor foi preso pela primeira vez? Riani – Foi no golpe de 64. Uma vez, numa assembléia, se discutia aumento salarial. Naquele tempo do (Eurico Gaspar) Dutra já tinha a turma de pelegos. A turma não tinha confiança no Dutra, que cassou líderes sindicais. Houve ainda um congresso sindical onde os pelegos perderam a parada. Aí o governo decidiu intervir e terminar o congresso. Uns 400 dirigentes sindicais foram destituídos e o Dutra fundou a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI), em 1946. O dirigente que assumiu a presidência da CNTI, Diocleciano Cavalcanti, considerado rei dos pelegos, tomou posse no próprio Ministério do Trabalho, na presença do Dutra. Ele só foi derrubado por mim, quinze anos depois. BF – Estamos falando de um episódio da década de 40, em plena democracia... Riani – Nós, os trabalhadores, seguindo a orientação de Getúlio Vargas, tínhamos ajudado a eleger o Dutra. Ficou a marca: todo sindicato bom, que defendia os interesses dos trabalhadores, era tachado de comunista. Lá no meu sindicato, eleito representante dos trabalhadores da força e luz. Foi assim que eu comecei. Quando fomos ao Rio de Janeiro discutir um problema com um preposto do ministro do Trabalho, ele logo disse: “Tem um problema: comunista, aqui, não tem vez. Comigo, o negócio é no cacete”. Respondi que não me incomodava porque não era comunista. Dois colegas da comissão eram comunistas e o governo sabia. Eu nem sabia o que era comunista. A comissão apresentou as reivindicações, veio um aumento de salário, em suma, o pessoal da força e luz ficou satisfeito com a minha atuação. Na época da eleição, fui candidato da oposição. Ganhei e entraram com um recurso, não me deixaram tomar posse. Alegaram que eu não pertencia à categoria
preponderante, pois a maioria era do bonde e não da força e luz. Nisso, a prefeitura, depois da concessão de 30 anos, decidiu romper o contrato com a empresa que explorava o serviço. Mandaram todo mundo embora. Aí os operários me colocaram numa comissão, mesmo eu sendo da força e luz e não do setor dos bondes. Ganhamos a parada e todo mundo foi indenizado. BF – O senhor conheceu os presidentes Getúlio Vargas e João Goulart? Riani – O Vargas, pouco. O Jango conheci em 1964, numa dessas reuniões sindicais que tentavam reunir direita e esquerda. Eu falei para o Jango: me perdoe, mas se depender de mim vou acender a vela da oposição porque não aceito isso. Na primeira não aceitei, na segunda tive de aceitar. Na terceira, pressionado pela CIA, o Jango, tentou me espremer. Queriam que ele dividisse a Federação. Não aceite, e respondi: para cima de mim, não. A classe operária não pode se dividir.
Eu era de confiança do Jango mas não fazia o que ele mandava BF – Era um projeto de Washington? Riani – Era. O Jango ficava meio assim, não queria conversar sobre o assunto. Larguei-o para lá e peguei a minha turma avisando que íamos pegar feio. O assessor sindical do Jango, o Crocket de Sá, chegou até a formar uma União Trabalhista Sindical. Diziam que ele fazia parte do esquema da CIA. Tanto é que pedimos para afastá-lo e o Jango concordou. O Jango me convidou três vezes para ser o assessor sindical dele e não aceitei. BF – O senhor acha que o Jango foi subserviente ao jogo da CIA? Riani – De jeito nenhum. Ele me levou na sua comitiva oficial para os Estados Unidos, em 1962. Fez um discurso lá no Congresso sendo interrompido oito vezes por palmas. Acabou o discurso lembrando que os Estados Unidos tinham ajudado os países, inclusive inimigos, depois da guerra, mas para América Latina, nada, e para o Brasil muito menos. Foi ovacionado. Aí os jornais estamparam nas manchetes que o presidente voltava dos Estados Unidos com o bolso vazio, mas com a cabeça erguida. BF – Quando Jango tentou a di-visão sindical, teria sido para evitar uma confusão no país? Por que ele cedeu naquele momento? Riani – O doutor Jango era muito habilidoso, honestíssimo, de um
caráter fabuloso. Ele contemporizava, ao contrário de Leonel Brizola. Mas Jango sabia o que estava fazendo. Lembra o episódio da renúncia do Jango? O Brizola ficou chateado porque o Jango aceitou a pacificação. E depois disso nós ganhamos 10 milhões de votos com o plebiscito. E tem mais; o primeiro-ministro ficou sendo o Tancredo Neves, que ficou com o Getúlio até o final. E Jango o indicou porque ele era seu amigo e defendeu o Getúlio em 54. BF – O que se diz até hoje daquele período é que os sindicatos e os seus dirigentes estavam todos atrelados ao governo. O seu nome inclusive está atrelado a esse tipo de análise. Riani – Nada disso! Eu era de confiança do Jango mas não fazia o que ele mandava, não! Eu o trouxe para Juiz de Fora quatro vezes, quando ele não era nada e o Carlos Lacerda inventou a “Carta Brandi” (falsificação histórica de uma carta a Perón em que se falava que haveria por aqui uma república sindicalista). Eu respeitava o Jango. Quando Lacerda caluniou o Jango, em 1963, ele ficou arrasado. Perguntei ao secretário dele se poderia visitá-lo. Tive a resposta de que ele recebe sempre os amigos. Fui ao apartamento do Jango em Copacabana. Ele abriu a porta e estava sozinho. Cheguei lá e ele foi logo dizendo “que bom você ter vindo, almoça comigo, estou só”. De repente chegou o Samuel Wainer e cortou o papo, que ficou sendo só político. BF – E o contato com o Getúlio Vargas? Riani – Tive, mas rapidamente. Consegui uma audiência e Getúlio, com um charuto na boca, escutou o que eu falava. Dava uma risadinha, mas falar que é bom, com o charuto na boca, nada... Eu fui um dos poucos líderes sindicais atendidos por Getúlio, Jango e Brizola. Em 1953, Getúlio pediu por favor para que eu não fosse embora sem ver o negócio do salário-mínimo. Vi que havia cinco elementos numa comissão de patrão, empregado e um do governo. No outro dia pedi emprestado 100 cruzeiros a um motorneiro de bonde. Fui atendido pelo Mario Maia, do Serviço de Estatística da Previdência do Trabalho. Expliquei então que eu representava 18 sindicatos e pedia para colocar alguém nosso na Comissão do Salário-Mínimo. Ele me disse que eu tinha chegado na hora, pois no dia seguinte iria levar o decreto para o Jango, então ministro do Trabalho. Estava comigo um colega eletricitário de Cataguazes. O Maia queria colocar meu nome, mas não aceitei, alegando que teria de consultar os que eu representava. O de Cataguazes aceitou colocar o nome na hora. Pedi para telefonar para
Quem é Ex-presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI) e da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), em 1962, Clodesmidt Riani elegeu-se deputado estadual pelo PTB de Minas Gerais. Depois do golpe militar, respondeu a 19 processos e ficou preso cinco anos e oito meses. Juiz de Fora para convocar os companheiros sobre a questão. Acabaram me escolhendo para a Comissão do Salário-Mínimo. Cheguei lá na Comissão e conheci os outros quatro representantes. Queriam que eu fosse o relator. Relutei. Fiquei como relator. BF – Aproveitando o gancho, o que o senhor acha do salário-mínimo atual? Riani – Isso aí não dá nem para falar, é o maior absurdo. BF – Como é que terminou a história da tal Comissão do SalárioMínimo em 1954? Riani – Depois de muita conversa, o governo acabou concedendo reajustes grandes. Houve marchas e contramarchas, muitos foram consultados, até o Juscelino Kubitscheck, e a decisão acabou voltando para a comissão decidir. Eu tinha sido escolhido relator, pedi um prazo de dez dias para resolver a questão, pois queríamos consultar mais advogados e trabalhadores. Veio um patrão lá e gritou que isso era uma chicana. Nem sabia o que significava e mandei o cara para aquele lugar. Aí acabou a reunião. Ia quebrando o pau. E veja só, hoje vem o Lula e dá um aumento mínimo. Sinto-me arrasado. O Getúlio veio a Belo Horizonte inaugurar a Manesmann em 13 agosto de 1954, em plena crise depois do atentado na Toneleros. Tínhamos marcado uma greve que acabou suspensa a pedido do PTB. Pedimos uma audiência com o Getúlio no Palácio das Mangabeiras. O Juscelino arrumou para nós. Eu cumprimentei o doutor Getúlio e lembrei que éramos da Comissão do Salário-Mínimo. Ele tirou o charuto da boca e disse que já tinha recebido a Comissão de Minas Gerais. Respondi: “O senhor vai me desculpar, mas o senhor recebeu uns safados, uns pelegos, uns cretinos, porque eu sou o relator da bancada”. Queríamos falar apenas uma coisa: “o senhor mantém o seu decreto que nós vamos manter a nossa greve”. Tirou o charuto e deu mais uma risadinha... Fui um dos últimos a falar com ele, que morreu a 24 de agosto. Ganhamos a parada porque tivemos reajustes bastante bons, chegando até a 144 % em Juiz de Fora.
Não aceitei dividir a Federação. A classe operária não pode se dividir BF – Qual foi a última vez que falou com o Jango? Riani – Dia 31 de março de 1964. Ele me telefonou e pediu para não fazer a greve. BF – A greve entrou para a história do Brasil. Dizem que foi precipitada e mal conduzida. Muita gente não pôde se locomover, inclusive para protestar. Riani – Nada disso! Houve o problema do golpe. Veja, fizemos comício dia 13 de março com
200 mil pessoas. Os jornais noticiaram. Foi muito complicada a mobilização. BF – O Jango tentou até a última hora que a greve geral fosse evitada? Riani – Exato. Pois bem, se a greve foi errada eu fui um dos que erraram, pois a apoiei totalmente. Várias categorias fizeram greve. No dia 4, quando tudo terminou, nos separamos. O Dante Pelacani ficou na CNTI e pulou fora. O meu advogado me aconselhou a pedir asilo no Chile ou no México. Decidi voltar para Juiz de Fora ver a minha família e segunda-feira estaria na Assembléia Legislativa fazendo o meu discurso de resistência. Assim fui preso. Mais tarde, depois da anistia, voltei a me eleger deputado. BF – O senhor lembra de outros fatos especiais da época do governo Jango? Riani – Quando houve aquele negócio da reforma agrária no comício de 13 de março, o nosso elemento da reforma agrária, o João Pinheiro Neto, então ministro do Trabalho, fez um acordo com Exército, Marinha e Aeronáutica. Eu fui chamado ao Rio e os companheiros me disseram que iam romper com o Jango porque não admitiam a exoneração do Pinheiro Neto. Respondi que não contassem comigo. “Se o Jango assinou, o problema é dele”, argumentei. No encontro com o Jango, eu lhe disse: ‘O doutor Getúlio, quando não pôde manter o ministro do Trabalho, que era considerado o ministro dos trabalhadores, não demorou seis meses”. Quando eu ia soltar a mão, ele ficou meio pálido e disse: “Riani, senta aqui e repete”. Quando deu 10 horas da noite, o Pinheiro Neto me ligou pedindo que eu fosse tomar um uísque com ele. Contou-me que o presidente queria falar comigo. O Jango me falou na maior sinceridade que tinha recebido um telefonema do então embaixador do Brasil nos Estados Unidos. BF – O Roberto Campos? Riani – Correto. Jango disse que o embaixador telefonou para o primeiro-ministro Hermes Lima, que o demitiu sem avisá-lo. “O que eu poderia fazer?”, justificou Jango. Essa história é verdadeira e estou contando isso pela primeira vez. Eu disse com toda a calma para o Jango: “Se ele foi bom ministro, coloque-o na Superintendência da Reforma Agrária, a Supra”. Fiquei sabendo ainda que o Hermes Lima chamou o João Pinheiro Neto para perguntar se era fato que ele tinha dado um parecer econômico que teria desagradado Washington. O Hermes Lima pediu que ele se demitisse. O ministro respondeu que não faria isso. Aí ele foi demitido. BF – Como são as diferenças entre o sindicalismo de sua época e o de hoje? Riani – Muito ruim. Porque a própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) é contra a unicidade do movimento sindical. Nós éramos pela unidade. É lógico que o Brasil não precisa ter mais de uma Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria, que pega todas as categorias. Agora é capaz de melhorar um pouco. Tenho a impressão de que os servidores públicos vão se juntar em uma só Confederação, a indústria em outra, o comércio, e assim sucessivamente. O pior é que na hora de colocar a cabeça lá, ninguém vai querer ceder. Foi o caso da CGT. Tamanha foi a nossa força que os sindicatos do comércio e outros estavam dentro.
Ano 2 • número 84 • De 7 a 13 de outubro de 2004 – 9
ANÁLISE
Powell tenta envolver o Brasil em militarização
U. Dettmar/ABr
SEGUNDO CADERNO
Em visita ao país, emissário do presidente George W. Bush cobra posição alinhada com os interesses dos Estados Unidos Laerte Braga
H
á um equívoco, provavelmente deliberado, linguagem diplomática, na interpretação do ministro Celso Amorim para as razões da visita do general Colin Powell, secretário de Estado do governo Bush, ao Brasil. O chanceler brasileiro terá sido gentil. Sabe que Powell deve ser substituído caso Bush se reeleja. O general está doente e desagrada ao grupo comandado por Dick Cheney, Donald Rumsfeld e Condolezza Rice. As declarações do general sobre ser o Brasil um candidato “consolidado” a uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU, têm um objetivo claro e que pode ser entendido mais ou menos assim: a promessa de um torrão de açúcar em troca de ingerir um vidro inteiro de óleo de rícino. Powell veio cobrar do governo brasileiro algo para além das inspeções plenas e totais em nossas instalações nucleares. Veio tentar engajar o país no Plano Colômbia, no Plano Patriota. O governo Bush segue ao pé da letra a máxima de Richard Nixon: “Para onde se inclinar o Brasil se inclina a América Latina”. Tem interesses em aumentar sua presença militar nesta parte do mundo, e Colômbia e Equador são os países onde se faz sentir com maior peso a intervenção dos Estados Unidos.
Os governos de Alvaro Uribe e Lúcio Gutierrez são títeres de Washington.
OCUPAÇÃO DO HAITI Os objetivos são claros e precisos: o efetivo poder sobre a América do Sul, forma de tornar inevitável a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), impedir o que chamam de “veleidades revolucionárias”, no caso de Hugo Chávez e um ponto de maior gravidade: a intervenção em Cuba. Além do medo da reeleição de Chávez e da vitória de um candidato popular na Bolívia. Isso significa a tomada de posse efetiva da Região Amazônica, a sujeição de países como o nosso à nova ordem política, militar e econômica, sem falar na questão da Tríplice Fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai), onde o governo dos Estados Unidos continua insistindo em denunciar a presença de “terroristas” ligados a Al Qaeda. Ali está, na região, um dos maiores aqüíferos do mundo, o Guarani. O único terrorismo real é o do 4º Reich, com sede em Washington. Lula sai nessa conversa em nítida desvantagem. A presença de tropas brasileiras no Haiti foi um desses erros que não têm volta, nem recuperação. Ainda que os meios de comunicação por aqui não toquem no assunto, há hostilidade dos haitianos contra os brasileiros. O próprio Planalto já foi avisado da possibilidade de confronto e o
O secretário de Estado dos Estados Unidos: plano para ampliar presença militar estadunidense na América do Sul
que mais se teme: morte de algum militar da Organização dos Estados Americanos (eufemismo para o golpe e a intervenção), leia-se brasileiro, por ação de grupos de resistência. O Brasil tem tentado, para usar uma linguagem bem nossa, enrolar o governo dos Estados Unidos ao longo dos quase dois anos de Lula. Negocia quanto aos termos da proposta para a Alca, mas aceita discutir uma contraproposta. Fala em paz no caso do Iraque, da Palestina, mas manda tropas ao Haiti a pedido de Bush. Assina acordos que contemplam os donos pela metade e continua a jogar com a outra metade. É dúbio em relação ao governo Chávez. Num primeiro momento Lula foi decisivo para abortar manobras golpistas mais ousadas dos EUA. Num segundo instante tirou o time de campo, faz que é mas não é e foi evidente o constrangimento de Lula quando se encontrou com Chávez da última vez.
PLANO COLÔMBIA Essa posição passa tanto pela necessidade de não complicar as relações com os Estados Unidos, não atrapalhar a política de exportações para agüentar a barra do Fundo Monetário Internacional (FMI), como pelo ego do presidente bra-
sileiro, destronado da condição de esperança da América Latina pelo venezuelano. O que os EUA querem é simples: controle absoluto do programa nuclear brasileiro de uma forma tal que impeça que novas tecnologias abram espaços para um salto de qualidade no setor e com conseqüências em vários outros, ameaçando o monopólio norte-americano. Envolver o Brasil no conflito com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs) na Colômbia e a partir daí criarem condições objetivas para o trânsito de tropas de apoio por aqui, até, chegarem à base militar. O jornalista José Arbex já denunciou em artigo sobre o assunto a ação fomentada pelos americanos, de guerrilha contra Chávez na Venezuela. Estender a guerra suja. A expressão terrorismo, com que o governo dos Estados Unidos classifica a força guerrilheira colombiana é parte do processo de massificação de governos e povos visando a posse de petróleo, água, o controle do comércio, do próprio território, o mundo transformado numa grande colônia do 4º Reich. A constante vinculação da guerrilha ao tráfico de drogas faz parte dessa estratégia. O próprio departamento de repressão a drogas nos EUA já listou o ditador Alvaro Uri-
be e os paramilitares como ligados ao narcotráfico. Há anos, ainda no governo Itamar Franco, estava em curso a construção do primeiro submarino brasileiro movido à energia nuclear. Foi abortada por Fernando Henrique Cardoso, continua em banhomaria no governo Lula, não interessa aos donos. É um dos aspectos da visita de Powell. Certificar-se que tudo continua como dantes. O que o secretário de Estado veio fazer aqui pode ser resumido num parágrafo: doente ou não, Powell veio dizer ao governo brasileiro que se quiser pode ser um parceiro diferenciado em relação a outros países. Ao invés de um só torrão de açúcar leva dois. Mas tem que engolir o óleo de rícino sem contestar. Até agora a posição do Brasil tem sido vacilante, mesmo com um ministro firme como Celso Amorim. Dá uma no cravo e outra na ferradura. Powell pega o presidente brasileiro um tanto vulnerável. Colheu algumas vitórias nas eleições municipais, umas tantas derrotas, mas ainda tem um jogo sério pela frente. O governo Lula parece estar numa encruzilhada levando em conta que só pensa em 2006, projeto de poder pelo poder, igualzinho aos tucanos. Laerte Braga é jornalista
ITÁLIA
Solange Cavalcante de São Paulo (SP) A unidade nacional italiana, costurada com a oposição pelo governo Silvio Berlusconi, durou somente até a porta do avião se abrir para as pacifistas Simona Torreta e Simona Pari, no aeroporto de Ciampino, em Roma. A partir daí, a direita passou a torcer o nariz para o mar de bandeiras da paz que invadiu a Itália. “Agora vamos salvá-las dos pacifistas”, publicou um jornal conservador. Frederico Bricolo, vice-presidente na Câmara da Liga do Norte, da direita separatista, declarou ser uma vergonha que as duas Simonas usem politicamente sua notoriedade para pedir a retirada das tropas italianas do Iraque. Diante dessa “ingratidão”, acrescentou Bricolo, o governo italiano deveria fazê-las pagar pelos custos de seu retorno, como fez o governo japonês quando um de seus reféns foi libertado. “Elas chegaram vestidas de beduínas e dizem que querem voltar ao Iraque. Que voltem”, disseram os separatistas, em seu programa na televisão. A Refundação Comunista pediu um debate na Câmara sobre a guerra. A intenção é fazer uma moção unitária dos partidos de oposição pela retirada dos três mil soldados italianos do Iraque. Mas não há muito entusiasmo para isso. A maioria governista é contrária à discussão. Será quase impossível colocar no calendário o debate e o
Vincenzo Pinto/AFP
Termina a trégua entre governo e oposição seqüestradores pedem um resgate de 5 milhões de dólares. O líder religioso intervém, e o acordo se fecha em 1 milhão de dólares. Tareq Alani, uma espécie de ministro de assuntos internos do líder religioso, revelou que recebeu o último telefonema dos seqüestradores: Simona Torretta e Simona Pari seriam libertadas e a Itália deveria enviar imediatamente um avião a Bagdá. Entretanto, essa é a versão do jornal kuwaitiano. O governo italiano e a Cruz Vermelha negam veementemente que tenham pago qualquer resgate.
A FUNDO PERDIDO
Simona Torreta e Simona Pari, após serem libertadas, pedem a retirada das tropas italianas do Iraque
voto da moção dos deputados pacifistas. Ainda na noite do retorno das voluntárias, Berlusconi disse aos jornalistas: “Vai tudo bem no Iraque. Só os semáforos não funcionam. Não vamos nos retirar”.
BASTIDORES DO SEQÜESTRO Na noite de 28 de setembro, já sobrevoando Roma depois de vinte e um dias seqüestradas no Iraque, Simona Torreta e Simona Pari vêem
o Coliseu iluminado. Na Itália, esta é uma conquista dos pacifistas contra a pena de morte: cada vez que uma sentença é comutada, em qualquer lugar do mundo, luzes coloridas são acesas no monumento. No caso, as sentenças suspensas eram as delas mesmas, e as de mais dois iraquianos. A história publicada no jornal do Kuwait Al-Rai Al-Aam é que, dia 19 de setembro, um funcio-
nário do governo italiano chegou a Bagdá, apresentando-se como negociador. O diálogo com os seqüestradores (sunitas, nacionalistas moderados), mediado por um líder religioso iraquiano, começou dia 21 de setembro. O funcionário italiano disse “não” ao pedido de retirada imediata das tropas italianas, e afirmou que só faria concessões “sobre bases econômicas”. Dia 25, os
Maurizio Scelli, comissário da Cruz Vermelha Italiana, declarou no canal de TV Rai Uno: “Os voluntários foram seqüestrados porque seus nomes estavam numa lista de espiões elaborada pelo serviço de inteligência estadunidense, junto aos nomes do jornalista Enzo Baldoni e do iraquiano Gaareeb”. Imediatamente, o país começou a perguntar: se existe uma lista, e se foi pago um resgate, para quem foi o dinheiro? Para um novo grupo da resistência iraquiana, em busca de financiamento? Ou para o mesmo grupo que seqüestrou e matou Baldoni? Fabio Mussi, vice-presidente da Câmara, pediu um inquérito parlamentar para saber quem forneceu a lista e quem é responsável pelo seqüestro e homicídio de pacifistas. “O governo deve responder imediatamente”.
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AMÉRICA LATINA VENEZUELA
Médicos cubanos levam saúde aos morros U
ma casa rústica e semi-acabada, no meio do morro. Um lençol divide o consultório da sala de espera. Raramente, quem chega precisa se identificar. “Como vai seu Antônio, a pressão baixou?”, pergunta a enfermeira venezuelana Carlota Núnez, de 53 anos. Antônio é atendido e o mesmo acontece, pouco a pouco, com outros moradores da favela Las Terrazas de Oropesa Castillo, periferia de Caracas. No consultório, um dos 11 mil médicos cubanos que integram o programa de saúde Bairro Adentro prestam atendimento básico à população. Controlar a pressão arterial, acalmar a crise dos asmáticos, vacinar as crianças e, inclusive, fazer partos, são algumas das tarefas do médico Carlos Cordeiro, que atende, em média, 25 pessoas por dia. O programa de saúde realizado pelos médicos cubanos é baseado na medicina preventiva, e neles estão incorporados 800 médicos venezuelanos. “A idéia é que as pessoas aprendam a viver melhor e que não precisem recorrer a medicamentos para ter boa saúde”, explica Cordeiro. Quando a saída é o remédio, mais de 100 variedades trazidas de Cuba estão à disposição dos pacientes. De graça. O terreno onde foi construído o consultório foi doado por uma moradora do bairro.”Tivemos que terminar de construir a casa. Um morador trouxe a mesa, outro fez a maca, outro doou os blocos e o cimento e, assim, construímos juntos. Estamos acostumados a trabalhar com pouco”, diz o médico de 31 anos, que há 11 meses deixou a família na ilha caribenha, para cuidar da saúde dos venezuelanos. Devido à falta de tecnologia e de infra-estrutura adequada nos hospitais públicos, nos últimos dois anos, cerca de 17 mil venezuelanos foram a Cuba se tratar e fazer cirurgias de olhos, ou relacionadas a algum traumatismo. Esta é uma das faces do programa de saúde que teve início em 2001, fruto do acordo de cooperação entre Cuba e Venezuela. Quarto maior exportador mundial de petróleo, a Venezuela envia 53 mil barris de sua produção diária à ilha. Em contrapartida, a ilha não apenas envia médicos e medicamentos ao país governado por Hugo Chávez, como também auxilia nos programas de alfabetização. Além do tratamento geral, há quatro meses foi incorporado ao programa o atendimento odontológico. De acordo com uma pesquisa nacional realizada pelo governo venezuelano, apenas 5,2% da população pobre tinha os dentes em perfeito estado. Para muitos, dentista era figura desconhecida. Atualmente, o programa conta com 2.493 dentistas espalhados pelo país.
DESMONTE O abandono do sistema público de saúde na Venezuela é um dos exemplos do desmonte provocado pela avalanche neoliberal que vem assolando a América Latina desde a década de 90. Em conseqüência da adoção de políticas de privatização, os hospitais públicos foram sendo substituídos pelo rentável negócio das clínicas particulares. À população pobre restaram duas alternativas: o pagamento de consultas médicas, que custam, em média, R$ 50, ou permancer dias na fila de espera para ser atendido em um hospital público. A privatização chegou a tal ponto que mesmo nos serviços públicos os pacientes foram “acostumados” a pagar pequenas quantias para ser atendidos, além de ter que arcar com os gastos dos insumos utilizados pelos médicos.
Serviços dos médicos cubanos contrariam interesses da indústria farmacêutica
Alternativa à receita do Banco Mundial Fachada de um dos consultórios construídos pelo governo venezuelano
“Antes, tínhamos que sair de madrugada, arriscando a vida. Ficava o dia todo na fila e, muitas vezes, voltava para a casa sem ser atendida”, conta Paula Paez, 77 anos. Diariamente, ela recebe a visita de um médico cubano para controle da pressão. “Aqui, muita gente morria por falta de socorro. Se tinha a pressão alta, até descer e tentar atendimento já era tarde, a pessoa enfartava”, comenta ela.
onde há toda sorte de marginais?” Para ele, não é possível exercer a profissão em condições precárias. “Não existe essa história de que com um estetoscópio se pode salvar vidas”, afirma. Dados do Ministério da Saúde apresentam números positivos do programa Bairro Adentro: de abril de 2003 a julho de 2004, em mais de 43 milhões de consultas, 16.485 pessoas foram salvas e 808 partos, realizados. A rejeição de grande parte dos médicos venezuelanos à prática da medicina preventina é plenamente justificável sob a ótica neoliberal. Afinal, reeducar a população para prevenir doenças significa caminhar na contramão dos interesses da indústria farmacêutica e das clínicas privadas. “Enfrentamos a resistência dos médicos que controlam o mercado da saúde porque, se conseguimos chegar à excelência no atendimento, acabamos com o negócio deles”, explica a médica venezuelana Diana Verdi, da coordenação dos comitês de saúde do Bairro Adentro.
DOENÇA DE RICOS O acesso à favela não é fácil. Para chegar, é preciso tomar os velhos microônibus ou jipes que circulam pelas ruas estreitas e ladeiras do morro. À noite, elas ficam desertas e não há qualquer tipo de transporte. Médicos venezuelanos educados na lógica do negócio da saúde privada se negam a subir os morros para socorrer a população. O presidente da Federação Médica Venezuelana (FMV), Douglas Léon Natera, defende a categoria: “O governo disse que não poderia garantir nossa segurança. Como vamos nos meter no meio da favela,
Mesmo que os 11 mil médicos venezuelanos que se negam a trabalhar em regiões pobres resolvessem se incorporar ao programa Bairro Adentro, apenas metade do problema estaria resolvido. A crise também está na educação. Segundo Hector Navarro, ex-ministro de Educação Superior, faltam 20 mil médicos e cerca de 70% da população não tem atendimento básico. “Temos uma crise humanitária nas mãos”, diz Navarro, justificando a necessidade da ajuda oferecida por Cuba. Assim como em outras áreas, o problema da saúde não pode ser dissociado do modelo de desenvolvimento econômico adotado para a Venezuela. Nos anos 70, período do auge da produção de petróleo, prevalecia a lógica da importação de bens de consumo. Desse modo, tornou-se dispensável o desenvolvimento industrial e tecnológico e, de resto, desnecessário investir em educação superior. “À época, o Banco Mundial orientava para que os recursos destinados à universidade fossem utilizados na formação técnica”, explica Navarro.
URGÊNCIAS Com a falta de investimentos e incentivo à formação superior, apenas uma classe de privilegiados ingressou na universidade, sendo esse um dos fatores que explicam o
elitismo arraigado de grande parte dos atuais médicos venezuelanos. Uma das alternativas propostas pelo Ministério de Educação Superior (MES) para tentar amenizar esse déficit tem gerado polêmica: a adoção de um novo modelo de ensino para capacitar, num período curto, novos profissionais da saúde. O ex-ministro Navarro defende que, em pouco mais de três anos, é possível formar um médico para o atendimento básico, nas áreas de cirurgia e primeiros socorros. Aqueles que se opõem à proposta argumentam que é preciso zelar pela qualidade do ensino. “Este conceito de qualidade está totalmente divorciado da realidade e, neste caso, é uma hipocrisia. O oposto à qualidade é a justiça. Sem justiça não há qualidade”, argumenta Navarro. Outra solução, pelo menos a médio prazo, é o retorno dos médicos venezuelanos recém-formados na Escola Latino-Americana de Medicina, de Havana, que abriga mais de 7 mil estudantes de todo o continente. O primeiro grupo de 500 médicos retorna ao país no final deste ano. “À medida que se formam novos médicos, vamos substituindo os cubanos. Sabemos que não podemos contar com essa ajuda por toda a vida”, afirma Navarro. (CJ)
CUBA
O furacão humano que o Ivan não previu Idania Trujillo de Havana (Cuba) Diz o dito popular que um homem prevenido vale por dois, mas, quando se trata de furacões e, mais ainda, do Ivan, o Terrível, ficou provado que também um país prevenido vale por dois. Caía a tarde do dia 2 de setembro quando o terrível furacão começou a semear a morte e a incerteza sobre o Caribe. Depois de passar pela Jamaica, ameaçou Cuba pelo sul, mas antes rodeou as Antilhas e açoitou a região com seus 500 quilômetros de diâmetro, aguaceiros torrenciais e ventos arrasadores. Mas, em Cuba, não causou todo o dano previsto, graças aos anticiclones que o impediram de atravessar a ilha de um lado para o outro. Afetou o extremo ocidente da ilha, onde só não foi mais letal pelo alerta oportuno dos meteorologistas, radares, postos de observação e pela vontade e solidariedade de um povo que sabe crescer diante das desgraças. Em Cuba, o olho do furacão não atingiu a terra firme, mas a ilha
AFP PHOTO/Adalberto Roque
Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)
Fotos: Jonah Gindin
Nas favelas, profissionais atendem aos mais pobres e os ensinam a não depender muito de remédios
Solidariedade e disciplina para minimizar os danos provocados pelos furacões
sofreu, como as outras Antilhas, os seus ventos de mais de 200 quilômetros por hora, com rajadas de 260 quilômetros. Porém, sem perda de vidas humanas.
CUIDADOS Foram evacuadas mais de 1,5 milhão de pessoas e levados a lugares seguros mais de 333 mil
estudantes e mais de 7 mil turistas. Por orientação do Estado-Maior Nacional da Defesa Civil, foram ativados postos para casos de catástrofes nas 14 províncias e nos 170 municípios. Quando, finalmente, o Ivan passou pelo extremo mais ocidental de Pinar del Río, a mais de 100 quilômetros de Havana, 195,5 mil
pessoas estavam mobilizadas pela Defesa Civil e havia disponíveis mais de 11 mil veículos. Naquela cidade do oeste cubano, foram evacuados bairros inteiros. Foram consideráveis os danos no Cabo San Antonio e em toda a península de Guanahacabibes, declarada em 1987 Reserva da Biosfera pela Unesco. O povo respondeu também com mais disciplina e solidariedade. Rapidamente, houve poda de árvores e limpeza de redes pluviais, esgotos e drenagens naturais nas cidades e povoados. Os agricultores abrigaram 1,5 milhão de animais, em especial aves e gado bovino, além de acelerar a colheita e armazenamento de café, cítricos e outros cultivos. Igualmente, foram tomadas medidas para proteger instalações, equipamentos, maquinários, armazéns, produtos químicos e sementes. Isso não foi em vão. Nas zonas de maior risco do furacão estavam 48% dos cultivos protegidos da nação, bem como 73% das máquinas de irrigação.
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INTERNACIONAL LIVRE COMÉRCIO
Europeus exigem mais e travam negociação União Européia fica insatisfeita com as concessões do Mercosul; movimentos sociais pedem fim das negociações
A
s negociações de um Tratado de Livre Comércio (TLC) entre os países do Mercosul e a União Européia (UE) tiveram uma reviravolta nos últimos dias. A proposta dos países sul-americanos, que incluía concessões em áreas estratégicas (investimentos, compras governamentais, serviços), foi duramente recusada pelos europeus, que exigiram mais abertura comercial. Como contrapartida, os negociadores da União Européia pioraram a antiga oferta feita ao Mercosul. Os últimos movimentos apontam para o fracasso da intenção inicial dos governos de fechar o acordo até 31 de outubro. A avaliação, no governo brasileiro, é que os europeus não estão interessados em fazer concessões e – ao mesmo tempo – querem obter o máximo de garantias do Mercosul. O motivo dessa posição mais ofensiva da UE seria a interrupção das negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Sem a pressão de que seu principal concorrente geopolítico – os Estados Unidos – pudesse fechar um acordo com os latino-americanos para expandir sua influência, os europeus assumiram uma posição menos flexível.
Mas é ilusão imaginar que esse cenário não mudará. Dia 4, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, afirmou à imprensa que as negociações da Alca vão ser retomadas tão logo se definam as eleições presidenciais nos Estados Unidos. Ele também defendeu a negociação de um acordo bilateral entre o Mercosul e a potência capitalista. “Temos de avançar nessa negociação ‘quatro mais um’, como fizemos com a União Européia, embora não tenhamos chegado a uma conclusão”, afirmou o chanceler à Radiobrás.
Movimentos Sociais e Via Campesina, entre outras. Também assinam a declaração organizações da Argentina (Autoconvocatória contra a Alca), do Uruguai (Campanha Nacional por Soberania), Paraguai (Consulta Popular Paraguay) e a Aliança Social Continental. A carta critica a ausência de transparência e a velocidade em que o acordo está sendo negociado.
“Não entendemos e não aceitamos as razões pelos quais os governos e os interesses dos capitais por eles defendidos tenham tanta pressa em celebrar acordos de livre comércio”, pontuam os movimentos sociais, citando como exemplo o próprio processo de construção da União Européia, que dura mais de 50 anos. Por enquanto, tudo indica que os
diplomatas vão insistir no mesmo formato de negociações. Segundo a imprensa, o Itamaraty convocou uma reunião com representantes empresariais para discutir a posição brasileira – ignorando o debate com os parlamentares e com outros setores sociais. Depois de 12 de outubro, está agendada uma reunião dos governos do Mercosul para definir uma resposta oficial aos europeus.
Rodrigo Arangua/AFP
Jorge Pereira Filho da Redação
SEM NEGOCIAÇÕES Enquanto isso, os movimentos sociais do Mercosul estão exigindo que os governos interrompam as negociações do TLC com a União Européia e iniciem um diálogo com a sociedade sobre a pertinência desse acordo. “Exigimos dos negociadores e dos governos do Mercosul que realizem consultas populares e setoriais antes de reiniciar as negociações e envolvam os parlamentares em todas as etapas das novas negociações”, registra a nota oficial, assinada pelas entidades brasileiras Associação Brasileiras de ONGs (Abong), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Confederação Nacional dos Trabalhadores em Agricultura (Contag), Campanha contra a Alca, Coordenação dos
GRITO DOS EXCLUÍDOS
Grito contra a exclusão Manifestação na Colômbia contra os tratados de livre comércio; proposta do Mercosul é recusada e negociações param
tados Unidos negociam com países latino-americanos, conforme ficou definido pela Assembléia dos Movimentos Sociais, em julho, no Fórum Social das Américas. No Equador, a meta será recolher um milhão de assinaturas para exigir do governo Lúcio Gutierrez a convocação de uma consulta popular sobre a negociação com os Estados Unidos. Nos países da América Central, o foco dos protestos será a rejeição à criação da Área de Livre Comércio da América Central (Cafta, na sigla em inglês). O acordo, proposto por George W. Bush, já foi aceito pelos governos de Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua, mas para entrar em vigor depende da aprovação do poder legislativo desses países. (JPF)
ANÁLISE
A OMC ressuscitou graças às ONGs? Peter Rosset
Divulgação
O dia 12 de outubro ficará neste ano, mais uma vez, marcado pelas mobilizações populares na América hispânica. Nesta data, os movimentos sociais preparam o Grito dos Excluídos Continental, um processo iniciado no Brasil e que, desde 1999, ocorre no resto do continente. A mobilização é fruto de uma articulação de movimentos sociais, igrejas, Organizações Não-Governamentais (ONGs) e outras entidades da sociedade civil. Durante o Grito, são realizadas diversas intervenções públicas com o objetivo de denunciar as desigualdades sociais e propor alternativas para sua superação. Em 2004, os destaques serão os protestos contra os Tratados de Livre Comércio (TLCs) que os Es-
Depois do desastre em Cancún, a Organização Mundial do Comércio (OMC) parecia moribunda. As negociações não avançavam. Os Estados Unidos e a União Européia não cediam às demandas de acesso a seus mercados e de redução de subsídios agrícolas feitas pelos grandes agroexportadores do Sul, liderados por Brasil e Índia, agrupados no G-20. Tampouco cediam aos pedidos do G-33 e do G-77 – grupo dos países mais pobres – para um trato especial que lhes permitiria proteger seus mercados nacionais e pequenos produtores rurais. Já os países do Sul resistiam aos intentos das superpotências do Norte para impor uma nova rodada de negociações sobre novos temas, como investimentos e concorrência. Tudo indicava que o sacrifício do camponês coreano Lee Kyung Hae e a luta popular em barricadas em Cancún haviam contribuído para um golpe quase mortal contra essa nefasta instituição de poder das grandes corporações transnacionais. Mas a OMC é como um gato com nove vidas. Quando parece estar morta, seus patrocinadores do Norte encontram uma forma de revivê-la. Os Estados Unidos e a Europa tiraram uma vitória da cartola no acordo conhecido como “Avanço de Julho” (July breakthrough, em inglês). Tudo parece indicar que uma traição do Sul, por parte dos governos de países líderes do G-20, somada à antiga defesa de várias ONGs internacionais a favor do conceito da “Caixa de Desenvolvimento” abriu caminho para a vitória do Norte. E nisso há lições importantes para os movimentos sociais. Primeiro, demonstra que é uma ilusão confiar em governos de países com economias gigantescas e interesses particulares, como Brasil e Índia. O Brasil queria, nas negociações, garantir a seus agroexpor-
tadores maior acesso aos mercados estadunidenses e europeus. Lamentavelmente, o tão esperado governo Lula amarrou sua carroça no cavalo da agroexportação. O ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, é ex-presidente da Câmara da Agroindústria, ex-consultor da Monsanto e feroz defensor dos transgênicos. Os interesses dos latifúndios de agroexportação são contrários aos interesses de um sem-terra ou de um camponês pobre. A explosão do cultivo de soja no Brasil e na Argentina está expulsando milhares de famílias rurais do campo. Maior acesso aos mercados do Norte não tem significado positivo para os pobres. A grande maioria dos produtores rurais precisa de preços justos e acesso a seus próprios mercados locais e nacionais. Essas demandas são incompatíveis com o livre comércio, que permite às corporações estrangeiras usarem os preços artificialmente baixos (concorrência desleal) para capturar os mercados dos camponeses locais. Daí, o lema da Vía Campesina: “acesso a mercados sim, mas que seja acesso a nossos próprios mercados”. Segunda lição: é uma armadilha perigosa crer que é possível uma “OMC com cara humana”. Há alguns anos, ONGs internacionais como a Oxfam (Reino Unido) defendem o conceito de “Caixa de Desenvolvimento” como um mecanismo para proteger os camponeses do Sul dos efeitos nocivos da OMC. A idéia original era negociar uma “caixa” na OMC – conjunto de exceções – na qual os países pobres poderiam colocar produtos sensíveis a importações baratas, como são os alimentos básicos de suas populações, produzidos por camponeses. A essa idéia, o governo da Índia agregou a demanda de maior acesso a mercados – conforme as posições da Oxfam e de outras ONGs – e algum corte de subsídios nos EUA e na Europa.
Desde o início, tal proposta foi criticada pelos movimentos sociais, alertando que esse enfoque aceitava as regras do jogo da OMC e que, no melhor dos cenários, em troca de frágeis proteções, deixaria a porta aberta para a liberalização e a privatização de todo o resto. Segundo o analista Walden Belo, depois de Cancún, esse conceito ficou como uma idéia que parecia carecer de apoio. Mas diante da negativa dos países do Sul de avançar, os negociadores do Norte (sobretudo Robert Zoellick, dos Estados Unidos) decidiram aceitar, pelo menos aparentemente, as demandas do Sul que poderiam não ser tão negativas para o Norte. A Caixa de Desenvolvimento foi reduzida ao essencial – proteções especiais muito limitadas, acesso a mercados e quiçá corte de subsídios – e se tornou a chave que necessitavam as superpotências para conseguir anuência do G-20 (Brasil e Índia) ao desbloqueio das negociações na OMC. A grande novidade de julho foi um acordo Norte-Sul de reduzir mais suas tarifas (maior abertura de mercados de todos os lados) e a “promessa” do Norte de negociar, no futuro, sem detalhes acertados, proteções especiais e cortes de subsídios. Ou seja, mais livre comércio por todos os lados e mais promessas. Trata-se de um verdadeiro desastre. De novo, o trem da morte avança sobre nossas sociedades. Demonstra a falência da noção de que uma OMC ou uma Área de Livre Comércio das Américas (Alca) sejam possíveis. E demonstra mais uma vez que não se deve confiar nos partidos políticos de esquerda light no poder. Peter Rosset é presidente da Coordenação Food First, organização estadunidense que defende a reforma agrária
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INTERNACIONAL ÁFRICA
Intelectuais discutem integração em Dacar da Redação
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Primeira Conferência de Intelectuais Africanos e da Diáspora, sob o tema “África no século 21: Integração e Renascimento”, realiza-se esta semana, de 7 a 9, em Dacar, capital do Senegal (África do Oeste). Aproximadamente 600 participantes são esperados no evento, organizado por iniciativa do presidente senegalês, Abdoulaye Wade, com apoio da União Africana (UA). Chama-se diáspora africana à dispersão dos povos africanos no mundo na condição de escravos. Um dos objetivos do encontro é sensibilizar e mobilizar os intelectuais africanos e da diáspora para a União Africana e a Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (Nepad). Documento da UA relacionado à conferência afirma que a organização está empenhada em “procurar canais os mais diversos de expressão para a intelligentisia africana, expressão que está hoje represada e marginalizada tanto dentro de casa como no estrangeiro, num mercado em que as únicas idéias aceitas são as da classe dominante. É urgente assegurar que os intelectuais da África e da Diáspora, que estão hoje fragmentados e espalhados, se juntem para transformar a luta de cada um na luta por transformação e liberação do continente da ditadura de terapias apressadas e da lógica de ajustes sem controle”. Na mais recente reunião de líderes africanos da União Africana, em Addis Abeba (Etiópia), em julho de 2004, o presidente da UA, Alpha Omar Konaré, observou que “os melhores africanos e africanas e os melhores da diáspora devem pôr-se ao serviço da pátria” para que o continente obtenha mais influência nas questões de ordem mundial. Estarão presentes na conferência de Dacar o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, e vários chefes de Estado e de governo, bem como celebridades africanas e da diáspora, incluindo vários ganhadores do Prêmio Nobel, entre os quais os sul-africanos Nelson Mandela e Desmond Tutu, o nigeriano Wole Soyinka e o egípcio Naguib Mahfouz. Os principais temas em discussão no encontro serão: o Panafrica-
AFP Photo/Gianluigi Guercia
Eruditos africanos e da diáspora se reúnem para tratar do desenvolvimento do continente no século 21
Presidentes de Ruanda, Paul Kagame (à esquerda), e Nigéria, Olusegun Obasanjo (à direita), abrem reunião do Nepad em Kigali (Ruanda), em fevereiro de 2004
nismo no século 21; a contribuição dos intelectuais da África e da diáspora para o fortalecimento da integração africana; identidade africana num contexto multicultural; relações entre África e a diáspora; ciência e tecnologia. No que se refere ao tema da diáspora, as abordagens tratarão, entre outras, das relações entre a diáspora e os Estados africanos e com os movimentos sociais, além de incluir um possível acordo institucional para reforçar a participação da diáspora nos esforços da integração africana. No que se refere à identidade africana, os debates levantarão questões como: identidade africana intracontinental e extracontinental; a história africana, valores e línguas como componentes da identidade; infra-estrutura cultural e indústrias como veículos de identidade cultural; produções simbólicas e socioculturais emergentes de identidades africanas. Documento da União Africana afirma que a instituição “quer que a África trace o curso de seu desenvolvimento a partir de sua própria visão
e projeto. Deve fazer isso recorrendo a seus próprios cérebros dentro e fora do continente e dando prioridade aos interesses de seus filhos e filhas em casa e na diáspora. Para tanto, é imperativo que os intelectuais da África e da diáspora dêem vazão a seus pensamentos, vozes e sentimentos e se façam ouvidos”. “A União Africana também planeja dar aos intelectuais africanos a oportunidade de se expressarem e participarem, por meio do poder das idéias, na formulação/conceituação de um projeto que deverá despertar tanto entusiasmo quanto o da descolonização; projeto de uma África mobilizada para sua integração e seu renascimento. Essas duas noções, destacadas no tema da Conferência não são novidade. De fato, a idéia de renascimento ganhou evidência nos anos de 1940, enquanto, até os anos de 1980, a integração estava em alta na agenda. Mas essas idéias têm uma nova conotação. O renascimento africano, como visualizado por Thabo Mbeki e outros, já não é apenas cultural, como há tempos se acredita, relacionando-
se o fato, talvez, ao Renascimento europeu dos séculos 14 e 15, depois do desolador período da Idade Média. É um renascimento político, econômico e social. A integração a que nos referimos já não é apenas uma questão para Estados e pessoas do continente, mas também para as diásporas, independentemente do status legal das mesmas nos territórios onde vivam.” Líderes africanos têm concordado com a urgência de acelerar o processo de integração do continente diante dos desafios do regionalismo e da globalização. Do ponto de vista geral, a África continua a ser marginalizada, e os esforços realizados rumo à integração regional, mesmo dentro do continente, não produziram ainda os resultados esperados. Além das celebridades do Nobel, já citadas, serão palestrantes no encontro intelectuais e especialistas em África de destaque na cena mundial, entre eles, o pensador egípcio neo-marxista Samir Amin, o antropólogo Mahmood Mandani, o historiador senegalês Mamadou Diouf e o nigeriano Adebayo Olukoshi,
atual secretário-executivo do Conselho para o Desenvolvimento das Ciências Sociais na África O objetivo ideal da reunião de Dacar ou o sonho acalentado como ponto a alcançar no futuro é a proposta de gradual erradicação de todas as fronteiras entre nações africanas rumo a um “Estados Unidos da África”. “Essa reflexão vital também deve focar-se nas maneiras e meios de se alcançar a unidade política da África por meio dos Estados Unidos da África. Claro que o progresso nessa direção será mais rápido e mais fácil em uma África de mais paz e estabilidade”, diz documento da UA. Entre as atividades da conferência, destaca-se o “Diálogo de Gerações: Os Sábios e os Jovens da África Diante do Século”. Centenas de jovens africanos são esperados para debater o tema com as personalidades presentes. No centro do debate está a pergunta: “Que África queremos para o século 21?”. (Primeira Conferência de Intelectuais Africanos e da Diáspora na internet: www.au-ciad.org )
da Redação Reunião de três dias entre delegações do Mercosul e da União Aduaneira da África Austral (SACU – Southern African Customs Union) na semana passada, em Brasília, definiu salvaguardas comerciais e detalhes das linhas de comércio preferencial entre os dois blocos. A SACU – formada por Botsuana, Lesoto, Namíbia, Suazilândia e África do Sul – vem negociando um acordo de livre comércio com o Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) desde junho de 2003. O Mercosul tem ainda como associados (mas não membros fixos) Bolívia, Chile e Peru. O encarregado de negociações internacionais do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, Regis Arslanian, disse em entrevista coletiva em Brasília que o acordo de preferências comerciais é o primeiro passo para se chegar a um tratado de livre comércio com os países da África Austral. O acordo entre a SACU e o Mercosul beneficiará inicialmente uma lista de mil produtos de cada bloco, com redução de tarifas que pode chegar a zero em alguns casos. Segundo Arslanian, os dois blocos têm interesse na troca comercial de produtos dos
Ana Nascimento/ABr
Avança acordo entre Mercosul e nações africanas
Presidente Lula com o presidente da Namíbia, Sam Nujoma, em junho de 2004
setores automotivo, têxtil, químico e agropecuário. No último dia da reunião foram definidas as normas para os certificados de origem dos produtos, entre outras questões. Para acertar os últimos pontos do acordo, haverá ainda duas reuniões nos próximos meses, uma em Pretória, capital sul-africana e outra em Brasília. Esta que terminou dia 1º em Brasília foi a quinta reunião negociadora entre Mercosul e SACU. As negociações de acordo comercial começaram entre o Mercosul e a África do Sul. Foram ampliadas em junho de 2003 para
incluir os demais países da SACU. O maior volume de negócios do Brasil com esse bloco africano sempre foi com a África do Sul, sendo a balança comercial favorável ao Brasil. Os países da África Austral têm reunido esforços no sentido de unir suas economias e trabalhar juntos para ganhar competitividade e obter melhor acesso aos mercados globais. A SACU ocorre no âmbito de outra organização maior, a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), criada em 1992 para incentivar as relações comerciais entre seus 14
países membros: África do Sul, Angola, Botsuana, Lesoto, Maláui, Maurício, Moçambique, Namíbia, República Democrática do Congo, Seicheles, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue.
A SADC reúne uma população de 206,4 milhões de habitantes e produz um Produto Interno Bruto (PIB) de 162,2 bilhões de dólares, exportando 52,4 bilhões de sua produção e importando 50,8 bilhões.
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AMBIENTE AQUECIMENTO GLOBAL
O mundo deixa de ser refém dos EUA Verena Glass de São Paulo (SP)
está se fortalecendo, um movimento global contra o aquecimento do planeta. A União Européia, por exemplo, já está incorporando várias diretrizes do Protocolo em suas relações comerciais, explicitando restrições nos acordos bi e multilaterais. Ou seja, para vender para a Europa, o fornecedor tem que se adequar a certas normas ambientais”, explica Dialetachi, para quem os EUA forçosamente terão que adotar mudanças no seu modelo produtivo.
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epois de muitas idas e vindas, posicionando-se por vezes de modo contrário, por vezes em dúvida quanto à ratificação do Protocolo de Quioto, o governo russo finalmente bateu o martelo e decidiu, dia 29 de setembro, ratificar o principal acordo de controle do aquecimento global das Nações Unidas. Agora, falta apenas a aprovação da câmara baixa do Parlamento do país, onde o governo tem maioria. Com a adesão russa, cumpre-se a cláusula do Protocolo de Quioto que exige que no mínimo 55 países signatários da Convenção do Clima da Eco-92 ratifiquem o acordo – sendo que, desse conjunto, façam parte países industrializados que juntos sejam responsáveis por 55% das emissões de poluentes no mundo. O protocolo de Quioto, que deve entrar em vigor três meses após a ratificação da Rússia, prevê, entre 2008 e 2012, a redução média de emissão de gás carbônico por parte dos países ricos em 5%, tomando como base os índices de 1990. Para Sérgio Dialetachi, coordenador da Campanha Energia do Greenpeace, com a decisão russa o mundo deixa de ser refém dos Estados Unidos – responsável por 25% da poluição que está causando o aquecimento global e ferrenho opositor do Protocolo –, por entender que as medidas de redução de emissão de CO2 limitam a produção e o crescimento industriais do país. Segundo Dialetachi, nos últimos dez anos a Rússia esteve fazendo um jogo duplo com a União Européia, favorável ao Protocolo, e os EUA, contrários, procurando tirar vantagens de ambos os lados. “Agora, com a adesão da Rússia ao Protocolo de Quioto, os EUA ficaram isolados de um processo que
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Após dez anos de barganhas com a União Européia, favorável ao Protocolo, e com os EUA, contrários, Rússia ratifica acordo
OPORTUNIDADE PARA O BRASIL Paulo Moutinho, coordenador de pesquisa do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), considera a decisão russa um referendo político do esforço da diplomacia internacional no enfrentamento das mudanças climáticas, mas também vê na validação definitiva do Protocolo uma abertura de boas oportunidades para o Brasil, país que, por constar da lista dos “em desenvolvimento”, não está obrigado a diminuir a emissão de gases mas que pode atrair investimentos externos em projetos de desenvolvimento limpo. “Por um lado, o mercado de CO2 pode ser bastante promissor, no sentido de que os países industrializados podem cumprir suas cotas de eliminação de poluentes também com investimentos em mecanismos de desenvolvimento limpo em países como o Brasil. Calcula-se, hoje, que a tonelada de gás carbônico, retirado da atmosfera ou evitado que seja produzido, possa valer de 3 dólares a 7 dólares no mercado internacional. Por outro lado, o Brasil, considerado um grande poluidor em função das queimadas na Amazônia, poderá entrar na lista dos que tem cotas a diminuir em 2012”, diz Moutinho. Isso poderá pressionar o país a diminuir o ritmo da destruição ambiental de suas florestas. (Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br)
Poluição nos céus da Malásia: os EUA são responsáveis por 25% dos poluentes, mas se opõem ao Protocolo
ANÁLISE
Roberto Malvezzi (Gogó) É preciso politizar a sede como Josué de Castro politizou a fome e Paulo Freire, a educação. Sem a politização da sede é impossível entender uma obra como a transposição do Rio São Francisco com todos os interesses subjacentes à sua insana implantação. A crise planetária da água, a sua privatização, a sua mercantilização, seu uso intenso na irrigação, indústria e carcinicultura também estão incluídas na busca alucinante por seu controle. O mapa da sede no Brasil é simples de ser visualizado. Em primeiro, está no meio rural. Se 20% da população brasileira (cerca de 37 milhões de brasileiros) não tem acesso à água potável, 90% da população rural brasileira não tem saneamento ambiental, incluindo aí a água potável. No meio rural, o problema está obviamente mais centrado no semi-árido, a região mais rural do Brasil, com os menores índices de saneamento. A sede está também nas periferias das cidades, principalmente de médio e grande porte. Enfim, são os pobres que passam sede. Entende-se por sede a falta de água para ingestão “em quantidade, qualidade e regularidade”, que não garanta a uma pessoa, uma família ou uma comunidade o mínimo necessário para garantir as suas funções orgânicas normais. Essa quantidade é calculada em dois litros de água por dia. Entende-se por “insegurança hídrica” a falta de água em “quantidade, qualidade e regularidade” que não garanta a uma pessoa, família, comunidade a quantidade mínima de água para
Fotos: www.kamekaze.org
São Francisco: geografia da sede e hidronegócio
Trechos do Rio São Francisco em Sobradinho, na Bahia: projeto de transposição atinge apenas 5% da região semi-árida
ingestão, higiene e demais necessidades do seu cotidiano doméstico. Essa quantidade é calculada pela Organização Mundial da Saúde em quarenta litros de água por dia. Quando qualquer um desses fundamentos falha – quantidade, qualidade ou regularidade – então caracteriza-se uma situação de escassez. Na verdade, hoje a escassez só é reconhecida quando falta água em “quantidade”.
SEM GARANTIA Para todas as finalidades, a Organização das Nações Unidas (ONU) considera que há estresse de água abaixo de 1.000 m³ por ano, por pessoa. É sempre bom lembrar que nosso Estado mais pobre de água é Pernambuco, com uma disponibilidade média de 1.270 m³ por pessoa, por ano. Portanto, 270 m³ acima do mínimo. Evidente, média é uma abstração, não significa o acesso efetivo das populações à água, mas significa que a disponibilidade de água existe. A transposição do Rio São Fran-
cisco também não oferece em seus propósitos segurança hídrica para as populações mais necessitadas do semi-árido. O projeto atinge apenas 5% do semi-árido. Mesmo ignorando todos os problemas ambientais, sociais e técnicos, o projeto sequer se propõe resolver os problemas de sede e insegurança hídrica de nossa população mais necessitada de água. Essa população está espalhada pelo semiárido, muitas vezes a milhares de quilômetros dos eixos da transposição. Mas a sede e a insegurança hídrica estão também nas populações vizinhas à calha do São Francisco e no entorno dos grandes açudes do Nordeste, inclusive o setentrional. Aduzir mais água a esses açudes não significa fazer a água chegar ao povo que dela precisa. Todos sabem inclusive que um dos principais objetivos do projeto é alimentar o Castanhão, que vai abastecer o porto de Pecém, em Fortaleza. É água para a indústria, não para a saciar a sede humana, prioridade em
nosso velho Código de Águas em qualquer circunstância. Portanto, a transposição é a última grande obra da indústria da seca e a primeira do “hidronegócio”. A indústria da seca está para o hidronegócio assim como o latifúndio está para o agronegócio, isto é, um representa o atraso e o outro a modernidade, mas ambos são indissociáveis. É preciso saber que a água do semiárido será drenada para a irrigação, carcinicultura, indústria e população de centros urbanos, embora seja feita em nome da população sedenta do semi-árido. Para saciar a sede humana existem muitas outras propostas mais simples, baratas e eficientes.
CRISE MUNDIAL O raciocínio do ministro Ciro Gomes, da Integração Nacional, é uma projeção de escassez de água daqui alguns anos, forçando a migração. Ora, segundo a própria ONU, a crise será mundial – já o é para 1,4 bilhão que não têm acesso à água potável e para 2,4 bilhões que
não têm acesso ao saneamento – se não forem mudados os parâmetros atuais de gestão das águas. Portanto, a solução não está em obras gigantescas, mas no cuidado e no aproveitamento racional da “gota disponível” para que chegue a cada pessoa, para relembrar mais uma vez Aldo Rebouças. Parece ainda que a transposição é a obra que o presidente Lula escolheu para imprimir seu nome na história. Assim como Getúlio Vargas construiu Volta Redonda; Juscelino Kubitschek construiu Brasília; os militares, grandes barragens; Fernando Henrique Cardoso, o Plano Real; Luiz Inácio Lula da Silva quer deixar seu nome impresso na transposição. Ele pode estar imprimindo seu nome no maior elefante hídrico do país. Se for assim, tristemente, a transposição é um caso mais para Freud do que para Marx. Roberto Malvezzi é coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra
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DEBATE RUMOS DO GOVERNO
Superávit de otimismo Reinaldo Gonçalves aior que o superávit fiscal e o comercial, somente mesmo o superávit de otimismo. Todos fazem mal para o Brasil. Para começo de conversa, a política econômica de Luiz Inácio Lula da Silva é extraordinariamente incompetente. No entanto, os defensores do governo chamam atenção para indicadores que apontam para o crescimento da produção industrial, o controle da inflação, o aumento da demanda e a recuperação, ainda que modesta, do emprego. E, ademais, grandes empresas anunciam aumento de investimentos. Entretanto, quando se analisa atentamente a conjuntura econômica, verifica-se que a melhora cíclica dos indicadores econômicos tem pouco a ver com a natureza da política econômica de Lula que, além de incompetente, também é inconsistente ou ambígua. Temos três fatos concretos. O primeiro é que o Brasil vem “descendo a ladeira” há três anos, pois a renda cresceu somente 3% nesse período. Isso significa que a renda per capita caiu 1,5% em três anos. Estamos mais pobres, mais subdesenvolvidos. O resultado é que a máquina de lavar do seu Antônio quebrou faz um ano. No fogão da dona Maria só duas bocas funcionam. O toca-CDs do aparelho de som do Fernandinho não funciona. O carro da dona Maristela está quebrando a toda hora. E, com isso, as pessoas estão se endividando para repor equipamentos domésticos (bens de consumo duráveis) que se deterioram há anos. Esse é o principal setor que tem crescido nos últimos doze meses, juntamente com a exportação de produtos agrícolas. O segundo fato é que no primeiro semestre do ano passado houve uma forte queda do nível de atividade e, portanto, as comparações estão sendo feitas com uma base que foi fortemente comprimida pela política recessiva de Lula em 2003. Deve-se notar, também, que a política econômica de Lula continua fortemente restritiva, tanto a monetária (juros altos), como a fiscal, a creditícia e a salarial. E, por último, o principal fator de expansão da renda tem sido as exportações de produtos agrícolas. Ademais, a política econômica de Lula agrava os problemas sociais. Nos últimos 18 meses o desemprego aumentou, a renda do trabalhador caiu, o saláriomínimo teve um reajuste ridículo, o investimento despencou. Houve, ainda, uma enorme transferência de renda do trabalhador para os banqueiros e rentistas. Na realidade, o governo Lula é responsável direto pela maior transferência de renda do trabalhador para os banqueiros nos últimos vinte anos. Se o partido no poder fosse o PFL e o presidente da República fosse Jorge Bornhausen, daria para entender. No caso de Lula e do PT só dá para entender quando levamos em conta a função-objetivo de Lula (máximo de governabilidade) e a sua estratégia de governo (seguir a linha de menor resistência). Isso implica o abandono de um projeto de sociedade a favor, exclusivamente, de um medíocre e mesquinho projeto de poder de um grupo dirigente. Não podemos esquecer, também, que os bancos têm tido lucros estratosféricos, em contrapartida o desemprego continua alto e a distribuição de renda desprezível. Precisamos melhorar esse quadro a favor do povo. O problema é que Lula en-
Kipper
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tregou o Banco Central (BC) para os representantes do sistema financeiro. Nem durante o governo Fernando Henrique Cardoso essa entrega foi tão descarada. Além dos bancos terem capturado a autoridade monetária, o governo Lula não tem um núcleo de formulação de estratégia na área econômica. ALTERNATIVAS
Já que estamos tratando de estratégias e políticas, para começar o presidente Lula deveria demitir o presidente do BC e os diretores que representam o sistema financeiro. Em seguida, caberia introduzir controles sobre os fluxos de capitais externos e fortalecer significativamente a área de fiscalização do BC. Haveria, ainda, uma mudança na natureza da política monetária. A taxa de juro básica (Selic) deveria ser reduzida significativamente, pois ela serve para remunerar os títulos públicos. Dessa forma, a taxa de juros seria usada para ajustar as contas públicas. Ao mesmo tempo, o governo deveria desvincular a taxa de redesconto (empréstimos do BC aos bancos) da taxa Selic. Assim, quando houver inflação de demanda, o BC poderia usar ativamente a taxa de redesconto, os depósitos compulsórios e o IOF para regular o crédito. Se tecnicamente essas medidas são triviais, politicamente elas exigem que o governo saia da atual trajetória de pusilanimidade vis-à-vis aos banqueiros. Não há dúvida que é muito mais
fácil impor ônus a pensionistas e aposentados, e cortar o ponto dos bancários do Banco do Brasil e da Caixa Econômica do que enfrentar os banqueiros, principalmente, aqueles que financiam campanhas eleitorais. O presidente Lula anunciou que está se iniciando um novo ciclo de crescimento. No entanto, Lula perde credibilidade com o exagero na retórica. Reconheço que Lula precisa reverter a atual trajetória de forte perda de credibilidade tanto sua como do conjunto do governo. Mas, sem resultados efetivos e sustentáveis, o choque de expectativa pode gerar um choque de credibilidade. O risco é de perda de legitimidade e, portanto, de governabilidade. O fato relevante é que a economia está vivendo um miniciclo de otimismo. E que este ciclo corre sério risco de ser abortado nos próximos meses. A renda caiu 0,2% em 2003 e os otimistas estão prevendo um crescimento da ordem de 4% esse ano. Entretanto, vale repetir, há fortes restrições tanto pelo lado da demanda como da oferta. Pela demanda, as evidências de aumento do emprego e da renda do trabalhador não são conclusivas. E, a massa de salários continua caindo. As políticas monetária e fiscal continuarão restritivas no futuro, conforme anuncia o próprio governo. O aumento dos investimentos dos últimos meses pode ser um surto, de fôlego curto, tendo em visto a queda extraordinária da taxa de investimento nos últimos anos. Pelo lado da oferta, além de restrições sérias em energia e outros setores estratégicos, alguns ramos industriais já mostram sinais de plena capacidade. Essas restrições pelo lado da oferta podem implicar que, mesmo um crescimento modesto da ordem de 3,5% (que não reduz o estoque de desempregados), pode ser acompanhado por pressão inflacionária. Ressalte-se
que os preços por atacado têm subido nos últimos meses. Essa inflação deve transbordar, cada vez mais, para os preços ao consumidor. No que se refere à retomada do crescimento, tomemos o caso do Rio de Janeiro. Enquanto o governo comemora a recuperação da economia, no Rio de Janeiro a produção industrial ficou estagnada no primeiro semestre deste ano, no pior resultado entre as 14 regiões pesquisadas pelo IBGE. O crescimento industrial no ano (seis primeiros meses) foi de 6,5% para todo o Brasil. Ocorre, que foram as indústrias mais sofisticadas, de bens de capital e de bens de consumo duráveis, que tiveram crescimentos significativos. As indústrias de bens intermediários tiveram um crescimento modesto, enquanto as indústrias de bens de consumo semiduráveis e não duráveis tiveram um crescimento pífio de 1,3%. Considerando que o setor industrial do Rio de Janeiro é menos sofisticado que o de São Paulo e alguns outros Estados, o Estado se ressente do desempenho medíocre das indústrias de bens semiduráveis e de não duráveis. Além disso, o setor informal (que é muito forte no Rio) tem sofrido muito com a queda da renda real do trabalhador ao longo do governo Lula. Assim, sem renda, não há consumo e, portanto, não há produção.
por FHC – não tem volta? Ainda há espaço de disputa no interior do governo para a retomada de um novo caminho que aponte para distribuição de renda, pleno emprego e crescimento? Não acredito em disputas dentro do governo. É ilusão imaginar que há um grupo monetarista e outro desenvolvimentista, um grupo internacionalista e outro nacionalista, um grupo democrático e outro autoritário, um grupo neoliberal e outro intervencionista, um grupo retrógrado e outro avançado. Esse governo é marcado por forte centralização, linha de menor resistência, pusilanimidade e pela ambigüidade. Quem manda nesse governo é o Luiz Inácio Lula da Silva; os outros, obedecem. O resto é lorota para confundir os acomodados e iludir os ingênuos. A ambigüidade do governo Lula (por exemplo, políticas monetária e fiscal restritivas e discurso desenvolvimentista) está associada à ânsia de poder, à ausência de um projeto de sociedade e à estratégia da linha de menor resistência. O movimento social, o movimento sindical e as forças de esquerda sairão ainda mais fragmentados e enfraquecidos com o término do governo Lula em 2006. Para ilustrar esse argumento, podemos citar a luta dos funcionários e docentes das instituições federais de ensino superior. A percepção que se tem é que nas negociações com Lula, eles estão recebendo um tratamento tão ruim, ou até mesmo pior do que aquele recebido durante o governo FHC. Isso é imperdoável e não deve ficar sem resposta. Podemos ser derrotados, mas jamais humilhados. Nesse sentido, cabe aqui um registro. No Rio de Janeiro, em Fortaleza e em outros locais, os candidatos a prefeito apoiados por Lula foram derrotados, inclusive, pelas forças de esquerda dentro do próprio PT. Dessa forma, foi enviada uma clara mensagem ao PT-palaciano. Pode-se enganar a muitos durante algum tempo, mas não a todos durante todo o tempo.
DUAS QUESTÕES PARA O FUTURO
Considerando a análise acima, há duas questões relevantes: o modelo econômico – de aprofundamento do caminho trilhado
Reinaldo Gonçalves é professor titular de Economia Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA
LIVROS Miséria à Americana Para escrever este livro, a autora estadunidense Barbara Ehrenreich deixou uma vida confortável na Flórida (EUA) e foi viver como trabalhadora pobre, inspirada na retórica da Era Clinton, segundo a qual conseguir qualquer emprego era passaporte para uma vida melhor. Barbara foi de faxineira a atendente em asilo de idosos e garçonete, e chegou à óbvia conclusão de que o self-made-man (o homem que se faz por seu próprio esforço) não passa de ilusão, ao menos para a maioria dos trabalhadores. O livro, lançado pela Editora Record, é o relato de suas experiências. Com 252 páginas, custa R$ 39. Estamos Vencendo! Resistência Global no Brasil Em 1999, durante as célebres manifestações em Seattle (EUA) que impediram a realização da reunião da OMC, os muros da cidade apareceram grafitados com a frase “Estamos vencendo!”. Daí vem o título deste livro, que documenta o movimento antiglobalização capitalista no Brasil. De autoria de Pablo Ortellado, ativista do CMI (www.midiainde pendente.org) e doutor em Filosofia pela USP, e André Ryok, fotógrafo e historiador pela mesma universidade, o livro, da Editora Conrad, tem 176 páginas e custa R$ 35.
CEARÁ 1º PAMENCRIANDO 7e8 O evento, promoovido pela Pastoral do Menor (Pamen), visa integrar e apresentar as ações de arte e cultura desenvolvidas por crianças e adolescentes acompanhados pelas instituições e grupos articulados pela Pamen, assim como comemorar o mês das crianças. Entre as atividades, estão diversas apresentações de dança, música e teatro. Local: R. José Vizeu, 300, Fortaleza Mais informações: (85) 9117-3218, (85) 226-2041, pamentk@veloxmail.com.br DIA DAS CRIANÇAS EM ITAITINGA 12 A Pastoral do Menor de Itaitinga, embora questione sobre “o que comemorar” no Dia da Criança, realizará atividades para marcar a data. A comemoração é em nome do sonho de cada criança de participar de uma festa, com brinquedos e presentes. Assim, às 9 horas, haverá uma celebração. Em seguida, meninos e meninas que participam da Oficina de Contação de Histórias farão apresentação de uma peça teatral escrita e montada por eles. Às 10 horas, haverá jogos de futebol e vôlei. Ao meio-dia será servido um almoço e, a partir daí, haverá uma tarde de brincadeiras com distribuição de picolés. Local: R. Boa Esperança, 107, Ponta da Serra, Itaitinga. Mais informações: (85) 377-2224, pauloafonso13@secrel.com.br ÊXODO DAS COMUNIDADES 10 a 17 Realizado pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o evento é um abraço simbólico nas comunidades periféricas de Fortaleza. Durante a semana de missão serão
Local: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Av. Fernando Ferrari, s/n, Vitória Mais informações: coletivocapixaba@uol.com.br
SÃO PAULO
29, 17h – Caminhada com saída da Igreja da Consolação, até a Praça da Sé, trajeto do enterro de Santo Dias; 19h – ato celebrativo da memória do militante e lançamento do livro sobre a vida de Santo Dias (Luciana Dias) na Câmara Municipal de São Paulo. 30, 14h – Manifestação em frente à fábrica Sylvania, (R. Quararibéia, 242, Santo Amaro), onde ele foi assassinado e ato celebrativo no cemitério Campo Grande, onde está enterrado.
visitados os bairros: José Walter (Pantanal e Itaperi), Granja Portugal, Guajeru, Dendê, Serviluz, Otávio Bonfim, Barra do Ceará (Mercado Velho e Centro). O Êxodo é um momento de evangelização em que as CEBs poderão se inteirar dos problemas das comunidades e atuar junto delas em busca de soluções. Mais informações: (85) 492-0165 7º ACAMPAMENTO MISSIONÁRIO 15 a 17 Realizado pelo Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM), o tema do acampamento deste ano é “Eu estava com sede e me deste de beber... era migrante e me acolheste” (Mt 25,35), acompanhado do lema “Dá-me de beber” (Jô 4,7). O evento tem o intuito de conscientizar sobre a migração na cidade, bem como de motivar a comunidade a acolher os migrantes, além de estimular uma maior participação nas atividades comunitárias. A programação terá início às 13 horas do dia 15, com armação da tenda, acolhida e uma celebração, às 19
horas. No dia 16, serão realizadas as visitas. Às 8 horas do dia 17, terão início dez oficinas numa escola local, sobre: vivências grupais, bijuterias, cestas de jornal, cartões, biodança, massoterapia, pão caseiro, Bíblia, alimentação alternativa e grupo de crianças. Local: Comunidade do Catolé, paróquia São João Batista, Horizonte. Mais informações: (85) 245-1661, clscapini@uol.com.br
culturais e políticas, conferências, reuniões de articulação, exposições, debates e proposições dos movimentos sociais locais. Esses espaços buscarão alternativas para o Brasil e para o Espírito Santo, além de fortalecer os movimentos sociais e a luta contra o imperialismo.
SEMINÁRIO - A QUESTÃO AGRÁRIA, OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A MÍDIA NO BRASIL 16 e 23, das 9h às 18h Promoção conjunta entre MST, Fundação Cásper Líbero, Escola Nacional Florestan Fernandes e o Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária, a atividade é dirigida a estudantes universitários – principalmente de Comunicação – e jornalistas que atuam na cobertura das questões agrárias. As inscrições devem ser feitas antecipadamente até dia 14. Entre os temas que serão abordados estão: história da questão agrária e dos movimentos sociais no Brasil; história do MST, reforma agrária e direitos humanos, reforma agrária e mídia: uma visão crítica, agricultura familiar e agronegócio, conjuntura brasileira e reforma agrária. Palestrantes: Bernardo Mançano; Plínio de Arruda Sampaio; Aton Fon Filho; Inês Büschel; Nilton Viana; Verena Glass; Ariovaldo Umbelino; Leonilde Medeiros; João Pedro Stedile. Local: Auditório da Fundação Cásper Líbero, Av. Paulista, 900, São Paulo Mais informações: (11) 3361-3866 revista@mst.org.br,
Divulgação
FÓRUM SOCIAL MUNDIAL Estão abertas as inscrições para o Fórum Social Mundial 2005, que acontecerá em Porto Alegre, entre 26 e 31 de janeiro. A programação está sendo elaborada com a participação de mais de 1.800 entidades que indicarão temas para discussões durante o evento. O prazo final para inscrições individuais e de entidades é dia 30 de novembro. Mais de 70 mil participantes são esperados. Mais informações: www.forumsocialmundial.org.br
CELEBRAÇÃO EM MEMÓRIA DE SANTO DIAS 29 e 30 – Santo Dias, um dos mártires da luta contra a ditadura militar, será homenageado em uma série de atividades em memória de sua morte.
Paulo Pereira Lima
NACIONAL
ESPÍRITO SANTO 2º FÓRUM SOCIAL CAPIXABA 9 a 12 O Fórum contará com atividades
Vencidos, mas não derrotados Canudos foi um dos movimentos sociais mais importantes da América do Sul. Culminou – assim como Cabanagem, no Pará, e Contestado, em Santa Catarina – em uma sangrenta guerra civil, quando, indistintamente, a morte foi literalmente banalizada. A guerra, liderada por Antônio Conselheiro, foi a conseqüência extrema das contradições existentes naquela época e que ainda persistem nas relações sociais do setor agrário brasileiro. Eclodiu na zona agropecuária dos grandes latifúndios baianos e a violência dos combates travados entre os chamados “fanáticos” e as tropas do exército reflete o grau de antagonismo das relações entre o latifúndio e a massa camponesa explorada. Muitos já escreveram sobre esse movimento, classificando-o de messiânico, religioso, místico e mesmo pré-político, de um simples movimento de “fanáticos”.
Mas nunca, ou quase nunca, foi classificado como um movimento de protesto e de luta da massa camponesa por melhores condições sociais de vida e de trabalho. Tais obras desconsideram, em prejuízo da real compreensão da história, consciente ou inconscientemente, o estudo do movimento de Canudos, e também de outros movimentos, como parte integrante da análise do processo de transformação social do Brasil. Belo Monte é uma contribuição para trazer à luz e perpetuar a verdade dos fatos relacionados a Antônio Conselheiro e sua aguerrida comuna. Essa é a opção assumida pelos autores, sob a ótica dos dominados, para explicar e apreender os dados históricos, as ações dos conselheiristas e a repressão a que foram submetidos os sujeitos desse importante momento da nossa história. Em verdade, os conselheiristas foram vencidos, mas não derrotados.
CONFIRA Belo Monte – uma história da guerra de canudos José Rivair Macedo e Mário Maestri 200 páginas, R$ 8
Editora Expressão Popular R. Abolição, 266, Bela Vista – 01319-010, São Paulo, SP Tel/fax: (11) 3112-0941 www.expressaopopular.com.br vendas@expressaopopular.com.br
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CULTURA
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LEITURA
Jovens criam bibliotecas comunitárias Ana Lucia Pires de São Paulo (SP)
“U
m país se faz com homens e livros”, disse o escritor Monteiro Lobato. Se o caminho é esse, o pernambucano Claudemir Alexandre Cabral, de 23 anos, já pode dizer que ajudou a formar um pedacinho do Brasil. Ele é o fundador e responsável pela Biblioteca Escola Crescimento Educação Infantil (Becei), no bairro de Paraisópolis, zona oeste da cidade de São Paulo. Embora a biblioteca seja denominada “infantil”, seus 8 mil livros são destinados a toda a comunidade, sobretudo aos jovens que freqüentam a escola. No acervo, é possível encontrar de tudo: literatura, auto-ajuda, psicologia, poesia, entre outros títulos. “Os mais procurados são romances e, agora, o Harry Potter”, conta Cabral, cujas aventuras colocariam o menino bruxo no chinelo. Nascido em Orobó (PE), ainda criança, Cabral veio com a mãe e os irmãos para São Paulo. Com 10 anos, montou uma sala de aula no barraco de madeira onde morava, para ensinar os vizinhos. “Eram 30 crianças de manhã e 30 adultos à noite. Eu dava aula de português, matemática, ciências e estudos sociais”, recorda.
Fotos: Luciney Martins/ Rede Rua
Enquanto o governo está omisso, multiplicam-se as iniciativas locais para montar centros de leitura
Claudemir (no detalhe) e a biblioteca que montou para saciar a sede de leitura de outros jovens da periferia de São Paulo
ra, de 18 anos. “Eu sempre gostei de ler. Agora que estou na faculdade, uso a biblioteca mais ainda”, ressalta. Moradora de Paraisópolis, ela freqüentou um cursinho popular para conseguir ingressar no curso de letras na Universidade de São Paulo (USP).
PRIMEIRO PASSO
INICIATIVAS
Em 1995, já com 15 anos, juntou um pouco mais de dez livros e criou uma pequena biblioteca. “No primeiro dia, levaram todos os livros, então tive que fechar as portas”. O sonho de Cabral poderia não passar de sonho, não fosse uma jornalista providencial. “Em junho de 1996, um jornal veio fazer uma reportagem com o meu irmão sobre um time de futebol feminino que ele treinava. Então, a jornalista viu no barraquinho uma estante com livros, uma mesinha, parecendo um escritório, com telefone e tudo. Ela perguntou o que era aquilo. Meu irmão mandou me chamar e disse com um tom de ironia: ‘Ah, é uma biblioteca que ele pensa em montar’. No final, o jornal falou mais da biblioteca que do time dele”, lembra Cabral.
“A biblioteca me ajudou muito. Eu peguei os livros para o vestibular aqui”, lembra a estudante que adora poesia. “Para mim, a leitura é uma fuga da realidade. Porque a realidade é tão seca, tão amarga,
que é uma forma de esquecer”, completa. Se com a ajuda da biblioteca comunitária, Simone consegue driblar a realidade, muitos brasileiros não têm essa possibilidade. Segundo um estudo da Organização Não-Governamental Ecofuturo, 957 municípios brasileiros não têm bibliotecas. Imagine-se, então, a dificuldade dos estudantes que moram em uma dessas cidades: como fazer para estudar, concluir trabalhos, pesquisas e leituras para o vestibular? O governo federal lança, em novembro, o programa Fome de Livro,
Múltiplas opções para cada vez mais gente Nem tudo está perdido. Em todo o país há projetos de organizações não-governamentais (ONGs), comunidades e pessoas que querem ajudar o Brasil a ler mais. Um desses projetos é o Ler é Preciso, desenvolvido pelo Instituto Ecofuturo, e que pretende incentivar a leitura e combater o analfabetismo funcional. A iniciativa prevê a construção ou o fortalecimento de bibliotecas comunitárias, em todo o território nacional, priorizando os municípios com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). De acordo com Christine Fontelles, diretora de educação e cultura da ONG, o trabalho é desenvolvido em parceria e as bibliotecas são geridas pela comunidade, para “criar um sentimento de pertencer a um grupo, e diminuir os custos”. Ela diz que o acervo das bibliotecas implantadas (desde 1999, foram 25 em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Maranhão e Bahia) é bastante rico e variado. E conta que, em Suzano (SP), por exemplo, um garoto de 13 anos dizia que freqüentava a biblioteca para copiar
AJUDA Depois da reportagem, a biblioteca recebeu inúmeras doações de pessoas e empresas. Hoje, são 600 associados que pagam R$ 2 por mês. Porém, como a maior parte é inadimplente, Cabral não consegue arrecadar mais do que R$ 300 mensais. Como essa quantia não dá nem para começar a pagar as despesas, ele conta com a ajuda da mãe, a diarista Gessi Maria da Conceição Cabral. Uma turma de sete voluntários também dá uma força, ajudando a cadastrar livros, atender aos usuários, auxiliar nas pesquisas. Victor Pinheiro de Abreu, de 13 anos, é um deles. “Trabalhar na biblioteca ajuda a gente na escola. A leitura fica mais fácil e também posso estudar aqui”, diz o garoto, que está na 7ª série. A biblioteca também é um lugar muito especial para Simone Olivei-
receitas, pois ele era o responsável pelo almoço em sua casa.
DIVERSIDADE “O Programa Ler é Preciso pretende colocar a literatura no cotidiano de crianças e jovens do todo o país, reduzir o analfabetismo funcional e aumentar a inclusão digital. O livro tem que estar próximo da criança e do jovem. O que forma um cidadão é a diversidade de leitura. A pessoa tem que ter disponíveis livros variados, gibis, literatura clássica, para escolher o que quer, ou não, ler”, argumenta Christine. O trabalho é desenvolvido com apoio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e também promove a formação de professores e lideranças comunitárias para que se tornem promotores da leitura. Cada biblioteca implantada dispõe de uns 3 mil títulos. Segundo Christine, até o final de 2004, serão implantadas mais 15 bibliotecas (dez delas em Pernambuco). Atualmente, o programa atende 9 mil pessoas por mês nas 25 bibliotecas. (ALP)
O país que não compreende o que lê Laura Gianecchini Se déficit de bibliotecas no Brasil é alto, e se a qualidade dos espaços existentes ainda deixa muito a desejar, o problema não pára por aí. Quando o brasileiro tem acesso aos livros, nem sempre ele compreende o que lê. É o que constata o 3º Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional (INAF), pesquisa realizada pela ONG Ação Educativa, em parceria com o Instituto Paulo Montenegro – Ação Social do Ibope – com 2 mil pessoas, entre 15 e 64
com o objetivo de construir cerca de mil bibliotecas até 2006 (leia reportagem abaixo). Porém, enquanto não se alcança essa meta, quem dá um jeito na situação são as bibliotecas de instituições e comunidades, como a de Paraisópolis. Segundo a Ecofuturo, o Brasil tem 14 mil bibliotecas, das quais apenas 5.035 são do governo. Traduzindo: 9 mil bibliotecas no país são iniciativas de comunidades, empresas, ONGs e outras instituições. Para estas bibliotecas, há pouco apoio. Segundo Galeno Amorim,
coordenador do programa governamental Fome de Livro, o déficit nessa área é grande e, no momento, a prioridade do governo é a construção de bibliotecas nos municípios que ainda não as possuem. “Talvez, no futuro, o governo possa dar maior apoio às bibliotecas comunitárias”, diz. Em 25 cidades grandes, o projeto pretende fundar bibliotecas juntamente com o movimento Hip Hop, que funcionarão como acervos comunitários. “É fundamental que as bibliotecas comunitárias se inscrevam no Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas. Com isso, receberão algum apoio do Fome de Livro, como a visita de escritores, exposições e, quem sabe, posteriormente, livros”, informa Amorim. Enquanto o poder público não aparece, resta a Claudemir Cabral contar com a ajuda de empresas e pessoas. Nas penúltimas eleições para prefeito e governador, alguns candidatos apareceram em Paraisópolis para conhecer a biblioteca. Nunca mais voltaram. (Revista Viração, www.revistaviracao.com.br)
anos, em todo o país, e de todas as classes sociais, divulgada em setembro de 2003.
CONFIRA ALGUNS RESULTADOS:
• Apenas
25% da população demonstra habilidades plenas de leitura e escrita; 67% dos brasileiros são analfabetos funcionais (só conseguem ler e escrever frases simples), sendo que 30% são capazes de localizar informações simples em enunciados com uma só frase e 37% têm um nível básico de alfabetização,
•
conseguindo identificar uma informação em textos curtos como cartas ou notícias; 8% dos brasileiros são analfabetos absolutos. As informações não apresentam muitas diferenças com os números encontrados no 1º INAF, realizado em 2001; 60% dos entrevistados não têm a escolaridade mínima obrigatória de 8 anos; 34% afirmam nunca ter ido a uma biblioteca, sendo que nas classes D e E, o percentual sobe para 49%. (Setor 3, www.setor3.com.br)
•
• •
Ministério da Cultura quer implantar 1,3 mil bibliotecas comunitárias
Ministério quer aumentar índice de leitura no país Alessandra Bastos de Brasília (DF) Espalhar bibliotecas por todo o país, aumentar o número de livrarias, diminuir impostos de livros e formar mediadores e incentivadores da leitura – eis as principais metas do Plano Nacional do Livro, Leitura e Biblioteca – Fome de Livro, que será lançado no fim de novembro pelo Ministério da Cultura (MinC). A idéia do primeiro programa nacional de incentivo à leitura é formar uma rede com a participação de 14 ministérios, fundações, institutos, organizações não- governamentais (ONGs), estatais, governos estaduais, editoras e livreiros. O MinC quer implantar 1,3 mil bibliotecas públicas até 2006 nos municípios que não contam com qualquer unidade. Além disso, com a participação dos demais ministérios, quer instalar bibliotecas rurais, por meio do programa Arca das Letras (Desenvolvimento Agrário), nas escolas (Educação), em hospitais (bibliotecas Vivas do Ministério da Saúde) e montar mil bibliotecas comunitárias nos Pontos de Cultura, “que incluem comunidades indígenas, quilom-
bolas e movimentos sociais como o hip hop”, destaca o coordenador do plano, Galeno Amorim.
ACERVOS Cada biblioteca terá acervo inicial de 2.500 títulos, dos quais 2 mil foram selecionados por uma comissão formada por representantes das várias regiões do país. Os outros 500 serão escolhidos pelos Estados, para que as bibliotecas tenham “forte característica local, além de obras da literatura nacional e universal”, informa Amorim. Já as bibliotecas comunitárias terão mil exemplares cada, e o seu acervo deve ser constituído junto às comunidades. As bibliotecas escolares devem ser montadas juntamente com os professores. “A preocupação é levar em conta o que as pessoas querem ler”, ressalta o coordenador. As primeiras bibliotecas vão ser instaladas onde o déficit é maior. No total, 20% das cidades brasileiras não têm bibliotecas, percentual que chega a 50% em cidades do Norte e Nordeste. “Será dada prioridade aos locais onde a situação é mais crítica”, explica Galeno Amorim. (Agência Brasil, www.radiobras.gov.br)