Ano 2 • Número 85
R$ 2,00 São Paulo • De 14 a 20 de outubro de 2004
Grito dos excluídos ecoa nas Américas Yuri Cortez/AFP
Protestos contra a militarização e livre comércio mobilizam milhares de pessoas em 23 países do continente e do Caribe
Grito dos Excluídos Continental, em San Salvador (El Salvador): protestos contra os acordos de livre comércio impostos pelos Estados Unidos
Justiça federal Venezuela proíbe suspende leilão as demissões do petróleo sem justa causa
Com apoio do PT, sinal verde para transgênicos à produtividade. Para o especialista Ariovaldo Umbelino, como o projeto voltará à Câmara, legalmente, o comércio de sementes e o cultivo de transgênicos estão proibidos. O problema está na política do fato consumado: clandestinamente, agricultores importam e plantam sementes, o governo aceita a ilegalidade. Págs. 2, 3 e 14
Senador do PSDB quer criminalizar a luta pela terra
Em defesa da comunicação democrática
Aliado dos ruralistas, o senador Álvaro Dias (PSDB-PR), usurpando funções da relatoria da CMPI da Terra, fez simulacro de relatório, “com propósito de atacar o governo do presidente Lula e criminalizar a luta pela terra”. A denúncia é do deputado João Alfredo (PT-CE), relator da CPMI, em nota do dia 12, relacionada a noticiário de dois jornais, baseado em dados sigilosos que receberam do senador. Pág. 5
Dia 17, diversas entidades promovem o Dia de Luta pela Democratização da Comunicação com eventos e manifestações. Em debate, o monopólio dos meios de comunicação no Brasil, onde dez empresas determinam o que se lê nos jornais, assiste na TV e ouve no rádio. Um destaque para este dia é a campanha “Faça uma ação contra a baixaria na TV”, que convida a população a desligar o aparelho das 15h às 16h. Pág. 4
Na Amazônia, Governo insiste inimigos internos em modelo preocupam econômico Os militares brasileiros cuidam da região baseados na doutrina de segurança nacional, formulada no Pentágono e cujo objetivo é impedir a ação de inimigos internos, entre eles os movimentos políticos organizados. A avaliação é do professor de Economia Política da Universidade Federal do Pará, Aloizio Lins Leal. Para ele, é aquela doutrina que norteia a ocupação das fronteiras, e fortalece a presença dos EUA na região. Pág. 8
O governo procura desqualificar seus críticos. Tarefas sérias, como manter a economia funcionando devem ser deixadas para Antonio Palocci e Henrique Meirelles. Os dois devem achar romântico o professor Carlos Eduardo Carvalho, que acredita num Estado capaz de fazer cumprir as leis trabalhistas e de oferecer serviços públicos de qualidade a todos. Para ele, a política econômica torna o país vulnerável a crises externas. Pág. 7
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Nova geração – em São Luís do Maranhão, o 4º Encontro Estadual dos Sem-Terrinha reuniu 600 crianças e adolescentes entre 7 e 14 anos, de 46 assentamentos e 11 acampamentos do MST no Estado Custódio/AE
Dia 6, o Senado aprovou projeto de lei de biossegurança do agrado das transnacionais, em particular a Monsanto. O texto tem pouco a ver com o aprovado na Câmara, e as mudanças foram propostas pelos senadores Aloízio Mercadante (PT-SP), Ney Suassuna (PMDB-PB), e Osmar Dias (PDT-PR), que consideram órgãos de fiscalização um entrave
Primeiro Nobel da Paz para uma africana
Rafael Bavaresco
Pág. 5
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ontra a militarização e os Tratados de Livre Comércio entre os Estados Unidos e algumas nações. Essa foi a tônica das manifestações da sexta edição do Grito dos Excluídos Continental, que começaram dia 12 e vão se estender em alguns países por todo o mês. Os protestos aconteceram em 23 países das Américas e do Caribe. “Nunca recebemos tantas manifestações de apoio e interesse pelo movimento como nos últimos dois anos”, afirma Luiz Bassegio, da Secretaria Continental, que representa dezenas de movimentos sociais. Segundo ele, a proposta do Grito tem sido compreendida pelos movimentos e redes que “lutam por uma nova sociedade, justa, solidária e sustentável”. Os movimentos criticam o fortalecimento do Plano Colômbia e os investimentos em bases militares na região, com um aporte de mais de 800 milhões de dólares ao Comando Sul, departamento das forças armadas dos EUA responsável pelas Américas do Sul e Central, e que atua em 31 países da América Latina e do Caribe. Pág. 9
E mais: GREVES – Sindicatos estão se mobilizando por todo o país. São milhares de trabalhadores organizando greves contra as políticas elitistas a que o país vem sendo submetido nos últimos 15 anos. Pág. 5 CULTURA – Até o dia 23, Mogi das Cruzes (SP) recebe a 2ª Bienal de Artes do Alto Tietê. O escultor Belini Romano é um dos expositores. Encarregado da sucata recebida pela empresa onde trabalha, nas horas vagas, aproveita certos objetos que coletou para fazer sua arte. Pág. 16
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De 14 a 20 de outubro de 2004
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
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NOSSA OPINIÃO
Os interesses das transnacionais
N
esses dois anos do governo Lula, em matéria de transgênicos, alguns ministros fizeram tudo o que as transnacionais e os grupos ruralistas mais conservadores queriam. Editaram duas medidas provisórias para legalizar o contrabando da soja geneticamente modificada da Monsanto. O governo não moveu uma palha para garantir que sua proposta de lei de biossegurança, que saiu da Casa Civil e que era razoável, fosse aprovada pelo Congresso Nacional. Ao contrário, seu próprio líder, Aldo Rebelo, encarregou-se de desfigurar o projeto, atendendo às pressões dos ruralistas e das transnacionais. Depois, o projeto foi para o Senado e aí foi uma tragédia. Primeiro, houve um relatório do senador Osmar Dias (PDT-PR), que humilha as teses nacionalistas do velho Brizola. Em seguida, um novo relatório do senador vende-pátria, Ney Suassuna (PMDB-PB), acabou com qualquer semelhança com o projeto original. Deveriam mudar o nome, não é mais lei de biossegurança. É a lei do vale-tudo. O projeto aprovado libera imediatamente o cultivo comercial de transgênicos, dá total poder à comissão de 15 pessoas da CNTBio para decidir tudo, elimina a necessidade de rótulo nos produtos etc. Mas, o que é pior, foi aprovado por 53 senadores. Apenas a senadora Heloísa Helena (PSOL-AL) e Flávio Arns (PT-PR) votaram contra. A Monsanto e as outras dez empresas transnacionais que controlam a agricultura e as sementes no Brasil e no mundo,
agradecem exultantes. Em todas as legislações do mundo, em especial da Europa, está garantido o princípio da precaução. Ou seja, devemos apoiar a pesquisa científica, em particular sobre transgênicos, mas somente liberar comercialmente as novas técnicas depois de ter um mínimo de garantias sobre seus impactos na saúde e no meio ambiente. Coisa que aqui no Brasil não acontece: ninguém fez pesquisas e muito menos apresentou seus resultados. Se os transgênicos são tão bons, por que não aceitam colocar no rótulo que o produto é transgênico? Há uma lei em vigor que exige a identificação no rótulo. Nesse ano foram comercializadas 8 milhões de toneladas de soja transgênica no mercado interno. E essa soja não aparece rotulada. Estranho! O governo vive se escudando em pesquisas de opinião pública para justificar certas medidas. Por que não se baseia na pesquisa do Ibope, que revela que 78% dos brasileiros não querem consumir transgênicos? Todos sabemos que, mais além das preocupações ambientais da ministra Marina Silva e de saúde pública, o que está por trás mesmo de toda a situação é o controle oligopólico das transnacionais sobre nossas sementes, nossa agricultura e suas taxas de lucro. A Monsanto cobrou R$ 80 milhões dos agricultores gaúchos, a título de royalties, sem plantar um grão sequer. E, com a nova legislação, os executivos da transnacional declararam na grande
imprensa que pretendem recolher, na próxima safra, R$ 400 milhões em royalties. Por outro lado, deveríamos ter uma legislação que, no minimo, garantisse o direito de os agricultores optarem; e deveríamos ter, também, a garantia de que sementes transgênicas não contaminariam suas lavouras. Assim como deveria existir ainda o direito de as Assembléias Legislativas dos Estados legislarem sobre transgênicos. As Assembléias do Paraná, Santa Catarina, Goiás e Pará proibiram transgênicos em seus territórios. Mas a nova lei derruba o poder dos deputados estaduais. No caso do Rio Grande do Sul, tivemos, na última safra, centenas de agricultores que plantaram soja convencional, mas suas lavouras foram mescladas pela soja transgênica do vizinho. E, assim, na hora de vender, a soja estava contaminada e eles tiveram de pagar royalties à Monsanto, e, ainda, sob pena de responder processo porque teriam mentido! O governo parece não saber a responsabilidade que tem para com as gerações futuras e para com o futuro de nossa agricultura. O ministro da Agricultura vive dizendo, e o governo repete, que é o mercado que deve regular. Ora, isso é a tese mais irresponsável e mentirosa que existe. O Estado existe para, justamente, em nome da sociedade, regular o mercado. Se tudo dependesse do mercado, por que eles são ministros? Para ser coerentes deveriam deixar o cargo e voltar para suas fazendas. OHI
FALA ZÉ
CARTAS DOS LEITORES SAUDAÇÕES Antes de mais nada queria dizer que acho o jornal fantástico. Vou prestar vestibular para jornalismo e planejo ser um profissional extremamente crítico e engajado na militância social. O Brasil de Fato é uma grande influência para todo o meu conhecimento e uma importante fonte de informação. Espero que vocês continuem com esse jornal – ele é fundamental. Ian Salvador (BA) Tenho 16 anos e leio o Brasil de Fato todas as semanas. Pretendo ser jornalista e, por isso, a leitura de jornais é muito constante no meu cotidiano. Mas o jornal de que mais gosto, sem dúvida, é o Brasil de Fato, por ser muito bem escrito e por possuir opiniões com as quais concordo. Continuarei sempre a ler o único jornal que denuncia de fato as injustiças, não só no Brasil, como no mundo. Pedro Tomé São Paulo (SP) ELEIÇÕES Certamente, a solução para os problemas sociais não se encontra nas eleições, tão pouco nas eleições municipais. Na história, o sufrágio universal tem sido um instrumento utilizado pelas classes dominantes como mediação entre as classes e de controle da erupção dos movimentos sociais em luta pelas suas demandas, suas reivindicações. Portanto, as classes dominantes têm feito uso das eleições a seu favor. Se a força contida nas manifestações populares foi responsável por mudanças em outras épocas, em outros países, e aqui no Brasil, nos anos 70 e 80, assim como
ocorre hoje com os movimentos de luta pela terra, provavelmente esteja aí o caminho. Como previsto, no dia 31 de outubro – segundo turno, onde houver – seremos obrigados a ir votar. É prudente, inteligente e politicamente correto escolher os candidatos que sejam ligados às causas populares que, se eleitos, seus mandatos favoreçam as classes subalternas, favoreçam os movimentos sociais. A resposta para os graves problemas do nosso país e para a conquista de uma vida mais justa e digna, está no coletivo. Edison Cardoso Reis Diadema (SP) TERRENOS ABANDONADOS Na divisa dos bairros Capão Raso com Cidade Industrial, entre as avenidas Pedro Gusso e das Indústrias, existe um imenso terreno há muitas décadas abandonado pelos proprietários. É conhecido pela população como “Matão da Ivone”, mas, segundo a prefeitura municipal, pertence ao exgovernador Jaime Canet. Em um país tão desigual, onde muitos não têm onde morar, um terrenão só acumulando valorizações imobiliárias é uma afronta à dignidade huminitária carente de um pedaço de terra, seja para o plantio ou para a básica necessidade de moradia. Por que a prefeitura não o adquire para repassar aos milhares de cidadãos curitibanos que “perecem” na fila da famigerada Cohab? Por que, em nosso país, há riquezas em posses nas mãos de ricos só para valorizar cada vez mais o imóvel? Até quando existirão injustiças como estas, que destroem a cidadania e os direitos do brasileiro? Célio Borba Curitiba (PR)
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CRÔNICA
O supermercado eleitoral tupiniquim Luiz Ricardo Leitão Suspeito que, em novembro, com o fim do segundo turno eleitoral, o IBGE anunciará que o desemprego, inclusive no setor informal, voltou a subir. Nem as vagas que o comércio costuma abrir no Natal e Ano Novo deverão ser suficientes para acolher a multidão de excluídos que, nos últimos meses, em troca de uma refeição diária e uma ajuda de custo, distribuíram panfletos e agitaram bandeiras. Relembro as eleições no final dos anos 70, quando a ditadura começava a desmoronar. Mesmo sob as amarras de um bipartidarismo oficial, o movimento social aproveitava o pretexto das eleições para invadir os bairros populares e organizar a luta pela volta da democracia, reclamando anistia e melhores condições de vida. Longe de mim qualquer nota de
nostalgia. Éramos infelizes e hoje padecemos as seqüelas daquela era. De quebra, os ideólogos de plantão também reduziram nossa pálida democracia a um mero supermercado eleitoral, em que os discursos e as idéias são postos à venda a preço de liqüidação. Pouco a pouco, a fiel militância de esquerda e suas palavras de ordem cederam espaço aos cabos eleitorais de aluguel e seus brindes de ocasião (bonés, camisetas, chaveiros...). Contudo, mesmo circunscrito à triste alienação da democracia burguesa, devo reconhecer que nem tudo é obra da ordem neoliberal. Isso, aliás, talvez explique o pífio resultado do PT em capitais como Rio e Salvador, onde Lula recebeu mais de 80% dos votos em 2002 e seus apadrinhados, agora, sequer foram para o 2º turno. E também nos alerta para surpresas como For-
taleza, em que uma dissidente do partido apostou suas fichas contra os acordos da Direção Nacional e saiu do 1º turno com pinta de favorita na disputa final. O entusiasmo, na verdade, hoje só existe nas agências de propaganda que comandam as campanhas e nos grupos evangélicos que louvam as virtudes do seu pastor-candidato, sem jamais se perguntar por que seu deputado ou senador também votou pela reforma da Previdência, em Brasília... Aqueles são os novos gurus da era midiática e estes, trôpegos simulacros dos novos militantes do Brasil neoliberal. Luiz Ricardo Leitão é editor e escritor. Doutor em literatura latino-americana pela Universidade de La Habana, é também professor adjunto da UERJ
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NACIONAL SEGURANÇA ALIMENTAR
Senado abre o caminho para transgênicos Agência Brasil
Novo projeto de lei de biossegurança reduz restrições, agrada o agronegócio e frustra ambientalistas e ONGs Tatiana Merlino da Redação
(PMDB/RS), comemorou a aprovação do Senado. Segundo ele, “o Senado consertou aquilo que a Câmara havia deformado e, felizmente, foi restabelecido o poder aos cientistas”. A seu ver, dificilmente o texto será modificado na Câmara “porque a consciência dos deputados evoluiu nesses meses. Eles perceberam que estamos perdendo riqueza e renda na agricultura”. Perondi acha que quem mantém uma “visão obscurantista, que pensa como se estivesse na Idade Média”, é a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, “que presta um desserviço à economia brasileira”. A ministra, que defende um processo mais lento para a liberação dos OGMs, não se manifestou depois da votação.
O
caminho para a liberação dos transgênicos no país está aberto. Dia 6, o Senado aprovou – com apoio de líderes do governo – um projeto de lei de biossegurança que transferiu competências, reduziu restrições e punições, agradou os defensores da biotecnologia e desapontou organizações não-governamentais e ambientalistas. O projeto de lei transfere a cientistas a competência para decidir se a introdução dos transgênicos pode ou não causar degradação ambiental. O texto retira o poder de veto sobre a liberação comercial dos organismos geneticamente modificados, que havia sido concedido pela Câmara dos Deputados aos órgãos de registro e fiscalização das atividades que colocam em risco a saúde humana, vegetal, animal e ambiental. As mudanças foram propostas pelos senadores Aloízio Mercadante (PT-SP), Ney Suassuna (PMDBPB), e Osmar Dias (PDT-PR). Para eles, os órgãos de fiscalização são um entrave ao desenvolvimento da produtividade agrícola do país, e um colegiado de especialistas é o foro adequado para garantir a segurança de um produto ou organismo geneticamente modificado (OGM) para consumo humano e para equilíbrio do meio ambiente.
PODERES DEMAIS Mercadante acredita que uma instituição como o Ibama, com poucas pessoas qualificadas para analisar o impacto ambiental de
PARANÁ LIMPO
O senador Mercadante discursa a favor da lei de biossegurança e defende a criação de uma MP para liberar os transgênicos
OGMs não pode impedir o avanço tecnológico na produção de alimentos. O projeto libera definitivamente o cultivo da soja transgênica e altera a composição da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), amplia o número de especialistas de notório saber científico e técnico, assim como a participação de representantes do governo. O projeto foi aprovado por 53 votos a favor, 2 contra e 3 abstenções. Apesar da ampla maioria, o resultado não encerra o debate: as novas regras para pesquisa, cultivo e comercialização de organismos geneticamente modificados, que po-
dem dispensar estudos de impacto ambiental, ainda dependem de nova votação na Câmara dos Deputados, assim como as pesquisas com célula-tronco a partir de embriões humanos.
IRRESPONSABILIDADE Entidades de defesa do meio ambiente criticam o excesso de poder conferido à CTNBio, o fato de o projeto passar por cima do princípio de precaução e de apoiar os interesses de corporações. As entidades que apoiavam o projeto inicial enviado ao Senado esperam que a Câmara reexamine as alterações feitas pelos senadores.
De acordo com o deputado federal Adão Preto (PT/RS) “o texto foi totalmente deturpado, mas tenho esperanças de que seja modificado quando voltar à Câmara”. Sobre a transferência de competência aos cientistas, Preto acredita ser uma grande irresponsabilidade. “Sempre é mais cauteloso deixar a responsabilidade a cargo do governo. Há muitos cientistas compromissados, mas grande parte trabalha em multinacionais”, diz, lembrando que, no jogo dos transgênicos, a “bancada ruralista está em grande vantagem”. Um dos membros da bancada, o deputado federal Darcísio Perondi
O governador Roberto Requião, do Paraná, declarou que o Porto de Paranaguá não vai embarcar soja transgênica, mesmo que a lei de biossegurança seja aprovada na Câmara dos Deputados. Segundo ele, o porto não tem como fazer a separação da soja e exportá-la de forma segregada, já que “99,9% da soja que chega para nós é pura e convencional”, afirmou. Para Requião, receber soja geneticamente modificada traria um grande risco de contaminação da safra convencional. O governador defendeu, novamente, a vantagem econômica da “soja limpa”. “Nossa soja pura encontra mercados e preços melhores no mundo inteiro. Por que vamos misturar e pagar R$ 120 milhões em royalties sobre o grão puro à Monsanto (detentora da patente da semente modificada)?”
ENTREVISTA
Brasil de Fato – O governo está prestes a liberar o cultivo das sementes transgênicas por meio da lei de biossegurança. Quais são os reais interesses em jogo por trás disso? Ariovaldo Umbelino – Nós tivemos a aprovação de uma lei de biossegurança que o governo encaminhou ao Congresso, e o Senado fez alterações significativas no projeto original. Em função dessas alterações, o projeto terá que voltar à Câmara. Do ponto de vista estritamente legal, o comércio de sementes e o cultivo estão proibidos. O problema que o Brasil vive é o da chamada política do fato consumado. Os agricultores importaram e plantaram sementes clandestinamente, e o governo perdoou os crimes cometidos contra a legislação existente no país. Essa política tem um só objetivo, que é atender aos interesses das empresas do setor de biotecnologia, particularmente a Monsanto, que vive uma situação econômico-financeira de dificuldade nos Estados Unidos, e que vê na regulamentação do uso dos transgênicos no Brasil uma saída para a sua situação financeira. BF – Por que os ruralistas ganharam a briga mais uma vez? Umbelino – Porque, na realidade, o governo Lula comporta duas visões distintas, uma em relação ao meio ambiente, outra sobre a agricultura. Uma é a do chamado núcleo duro do governo, que vê na produção em grande escala para exportação uma alternativa econômica para o país. É por isso que esse núcleo também não faz grandes esforços para a execução da reforma agrária, que considera ser apenas uma ação de conteúdo social, e não econômico. A mesma contradição aparece em relação ao meio ambiente. Mesmo
Arquivo JST
Agronegócio: prioridade do governo Quem é Estudioso dos movimentos sociais na zona rural, Ariovaldo Umbelino de Oliveira chefia o departamento de Geografia e o laboratório de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo. É autor dos livros Modo capitalista de produção e agricultura (Ática), A agricultura camponesa no Brasil, A geografia das lutas no campo (Contexto) e Amazônia: monopólio, expropriação e conflitos (Papirus). que a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e seus assessores, tenham uma posição clara em relação à questão ambiental e aos transgênicos, eles são o chamado elo fraco dentro do governo. Todos sabem, todos assistiram o ministro da Agricultura fazendo a defesa direta dos transgênicos. BF – A medida indica que tipo de agricultura é prioritária para esse governo? Umbelino – A agricultura prioritária para o governo Lula é o agronegócio. Disso eu não tenho dúvida nenhuma. A reforma agrária não é prioridade para o governo. BF – Que problemas uma agricultura baseada no agronegócio podem trazer para um país onde a agricultura é um dos seus pilares de sustentação? Umbelino – Do ponto de vista legal, devíamos estar alertas para as conseqüências do uso de trangênicos. Se a aprovação da lei na Câmara repetir o que aconteceu no Senado, significará que o país vai se abrir integralmente à pesquisa e ao uso dos transgênicos. Assim, deveria constar da lei um
artigo para responsabilizar civil e criminalmente todos aqueles que adotarem pesquisas ou usarem as sementes transgênicas com relação a possíveis danos que a sociedade venha a ter no futuro.O que também está em jogo é o comportamento biológico de plantas milenares. Se houver problemas para o nosso patrimônio genético, não haverá volta. É a história do crime que não vai ter compensação. Por isso, a ministra Marina Silva adota o princípio da cautela. É preciso, primeiro, demonstrar que não há problema, e não o contrário. BF – Até parece que a ciência é infalível... Umbelino – O discurso que está na mídia econômica afirma que quem defende o princípio da cautela está contra o avanço da ciência. Existe um mito de que a ciência não erra, e há muitos exemplos recentes do contrário. Isso acontece porque há muitos interesses econômicos em jogo. As sementes foram sempre patrimônio da humanidade, estiveram à disposição das populações do mundo inteiro para que encontrassem seus alimentos
na natureza e, agora, isso será colocado em risco. Várias empresas de biotecnologia têm um gene chamado terminator, que impede a germinação da semente no segundo ciclo. Se o agricultor plantar a semente que colheu, ela não germina mais. Esse é um ponto que ninguém discute. Uma, duas, três ou quatro empresas terem o poder de decidir sobre a comida que a humanidade tem que comer. Isso é algo que tem que ser denunciado a todo custo. BF – Em todo o mundo, boa parte dos consumidores tem recusado a soja modificada. A adoção dos transgênicos pelo Brasil não será economicamente prejudicial? Umbelino – Há dois tipos de problemas. Um, é a recusa ao consumo. A União Européia tem uma posição clara nesse sentido. Ela não impede que o grão modificado chegue lá, mas quando chega, é rotulado, e o consumidor pode decidir se vai consumi-lo ou não. Como foi modificada no Senado, a lei praticamente acabou com a rotulagem. Nós já estamos consumindo e não sabemos o que contém transgênico. O segundo problema é de ordem econômica. Os Estados Unidos foram o primeiro país a plantar transgênicos em larga escala, em 1996. De lá para cá, a produtividade vem caindo. Os EUA, que sempre tiveram as maiores taxas de produtividade, perderam, primeiro, para a Argentina, e agora para o Brasil, que hoje apresenta as maiores taxas de produtividade da soja no mundo, porque não usava a soja transgênica. Com a adoção dos transgênicos, a produção não vai aumentar. BF – Quais as conseqüências disto tudo para a agricultura familiar?
Umbelino – Significará o fim definitivo de uma possibilidade de autonomia. Na realidade, se os camponeses não tiverem mais a possibilidade de terem sementes para cultivar seus produtos, estarão definitivamente subordinados às indústrias e, conseqüentemente, perderão toda a possibilidade de encontrar a liberdade, e um caminho autônomo para a produção de alimentos no Brasil. É uma derrota que levará o campesinato a ter que tomar uma atitude bastante dura, lutar para criar uma jurisprudência que responsabilize criminalmente aqueles que criarem problemas com a implantação desenfreada dos transgênicos. Acho que os pesquisadores deveriam ser os primeiros a consumir os produtos das suas pesquisas, ser as cobaias de seus experimentos. E só depois de comprovado que nada lhes aconteceu, colocar os produtos nas prateleiras. Eles provavelmente não vão comer. Mas, o que está em jogo não é a pesquisa, nem a soja, é o dinheiro. E dinheiro a gente não come. BF – Há possibilidades de se alcançar a soberania alimentar com uma agricultura baseada no agronegócio e na produção dos transgênicos? Umbelino – O governo Lula não se propôs a alcançar a soberania alimentar, mas a ter uma política de segurança alimentar, o que é diferente. Com segurança alimentar, o alimento pode vir de onde quer que seja, mas isso não é soberania. Aqui ninguém a defende, pelo contrário. Aqui, a soberania está, a cada dia que passa, sendo destruída. O que mostra uma contradição entre a política pregada lá fora, e a praticada aqui dentro. (TM)
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CONCENTRAÇÃO DA MÍDIA
Meta é romper o monopólio
Dioclécio Luz Contrabando & Monsanto Os produtores da soja transgênica Roundup Ready usaram semente contrabandeada, ou obtida de forma pirata, mas pagaram royalties de R$ 0,60 por saca de 60 Kg à Monsanto. Agora, enquanto o governo procura um jeito de liberar um novo plantio, a Monsanto avisa que vai cobrar o dobro, R$ 1,20. E festeja: vai faturar até R$ 400 milhões. Mais uma vez, todos se dobram à multinacional. Festival em Palmas Em Palmas (TO), “Oscar” não vale, vale o “Chico” – Festival de cinema e vídeo da cidade. A sua 5ª edição será realizada de 16 a 20 de novembro, e dividida em mostra universitária e mostra circuito aberto, nas categorias ficção, documentário e animação. Cinema-documentário O documentarista e engenheiro de som, Silvio Da-Rin lançou o (bom) livro “Espelho partido – Tradição e reflexão sobre o filme documental” . É para quem gosta de cinema e quer saber mais sobre o cinema-documentário. Quem faz as leis O jornal Congresso em foco (www.congressoemfoco.com.br) mostra que quem faz as leis no Brasil não é o Legislativo, mas o Executivo. Das 119 leis federais sancionadas pelo presidente Lula este ano, apenas 10% foram propostas por deputados e senadores. O Executivo produziu 87% das leis que entraram em vigor em 2004. Nobel da guerra Lançado o prêmio para escolher o maior criminoso vivo da humanidade. Em primeiro lugar, disparado, está o presidente dos EUA, George W. Bush; em segundo, seu secretário, Colin Powelll; depois, seu vassalo além-mar, Tony Blair. Mas há azarões como Uribe (presidente da Colômbia), e Pinochet, por causa do seu brilhante passado sangrento no Chile. TV internacional O presidente Lula assinou decreto que cria o comitê gestor que vai elaborar o projeto do canal público de TV internacional, que deve entrar em operação em 2005, operado e administrado pela Radiobrás. O comitê é formado pela Radiobrás, Senado Federal, Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal, Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da Presidência da República, Ministério das Relações Exteriores. Festival em Brasília O evento acontece entre os dias 23 e 30 de novembro. “As Vidas de Maria”, de Renato Barbieri, será o filme de abertura. Guerra santa No Congresso Nacional, as bancadas católica e evangélica apresentaram vários projetos para revogar artigo da lei das rádios comunitárias que impede as igrejas de serem proprietárias de rádios comunitárias. As igrejas (que já detêm uma imensa rede de rádios e TVs comerciais e educativas) querem também se apropriar das rádios comunitárias. A ambição não é nada santa. Fechada rádio dos índios O governo Uribe (defensor da ocupação estadunidense na Colômbia) mandou fechar a Radio Nasa, emissora do povo indígena, no ar desde 1996. Era o grande veiculo de comunicação dos povos da região e ganhou prêmio como a melhor experiência ambiental do planeta. Mercadante, direita volver Durante a votação do PL da Biossegurança no Senado, o líder do governo, Aloízio Mercadante (PT-SP), demonstrou posições ideológicas um pouco diferentes das anteriores. Agora, defende os interesses dos ruralistas, do PFL, da Monsanto. Responsável pelo acordo que gerou o monstro da nova proposta, Mercadante garantiu ao seu novo grupo que o governo brigará com unhas e dentes pelo projeto do Senado.
Seis empresas controlam mais de 600 veículos; é preciso lutar para quebrar a concentração Dafne Melo da Redação
o Dia Internacional pela Democratização da Mídia. No ano passado, cidades de mais de 24 países realizaram protestos. Para Herz, a luta consiste em mudar a percepção das pessoas acerca do papel da mídia, a fim de que possam deixar de ser apenas consumidores para serem cidadãos.
O
Dia de Luta pela Democratização da Comunicação, dia 17, deve ser marcado por uma série de eventos e manifestações em todo o país, promovidos por diversas entidades. No centro do debate e dos protestos, está a concentração dos meios de comunicação no Brasil, onde apenas dez grandes empresas determinam quase tudo o que se lê nos jornais, assiste na TV e ouve no rádio. Estudo do Instituto de Estudos e Pesquisa em Comunicação, feito pelo jornalista e membro do Conselho de Comunicação Social do Senado (CCS), Daniel Herz, mostra que, dentre aquelas empresas, seis controlam praticamente toda a radiodifusão, e uma outra tem em suas mãos mais de 69% do mercado de revistas. Segundo a pesquisa, divulgada em 2002, mas ainda atual, é em torno das redes abertas de televisão que gira o mercado de mídia no Brasil. TV Globo, Bandeirantes, Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), Rede TV!, Record e Central Nacional de Televisão (CNT) – são donas de 667 veículos de comunicação, entre rádios, canais de televisão e jornais impressos. O mercado de revistas é praticamente monopolizado pela Editora Abril, enquanto os grupos Folha da Manhã e Estado vendem 10% de todos os jornais que circulam no país. Orlando Fantazzini, deputado federal (PT-SP) e coordenador da campanha “Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania”, da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara de Deputados, acredita que a pior conseqüência do monopólio dos meios de comunicação é “a dominação ideológica”, pois, “em sua maioria, mostra uma única linha de pensamento, recrimina os movimentos sociais, desrespeita leis e estatutos”.
COMPLACÊNCIA Um dos fatores que permitem a elevada concentração é a legislação sobre propriedade dos meios de comunicação. “Não há legislação específica que regule a propriedade dos meios de comunicação e a pouca que existe é ignorada, como o Decreto-Lei 236, que estabelece que uma empresa pode ter, no máximo, cinco emissoras de TV em sistema VHS, sendo duas por Estado”, diz Herz. Ele explica que, para burlar a lei, os grupos de mídia fazem uso da propriedade cruzada dos meios de comunicação, que distribui as empresas entre membros de uma mesma família, tudo “com a complacência do governo federal, da Justiça e, em certa medida, da própria sociedade”. A propriedade cruzada, aquisição simultânea de diferentes meios de comunicação, não tem legislação que a restrinja. Desse modo, os únicos limites ao acúmulo da propriedade de veículos de comunicação é o Decreto-Lei 236. Complacente com os grandes
CIDADANIA
Redes abertas de televisão são donas de 667 veículos de comunicação
conglomerados, o governo é lento quando o assunto são iniciativas que de alguma forma procuram combater a concentração, como as rádios comunitárias. Em dezembro de 2002, segundo documentos oficiais do Ministério das Comunicações, havia 7.366 solicitações de autorização de funcionamento de rádios comunitárias. Até início de 2003, apenas 568 foram outorgadas.
OMISSÃO Herz conta que, ainda no início de 2001, foi montado um grupo de trabalho no Ministério das Comunicações com o objetivo de avaliar os mecanismos de liberação de con-
cessões públicas e sugerir maneiras de agilizar a legalização de iniciativas comunitárias na comunicação. Como um dos membros dessa comissão, ele conta que “a conclusão do grupo foi de que a estrutura existente no Brasil frustra o direito à comunicação, criando uma situação deliberada que favorece os oligopólios”. Herz ressalta que foi apresentada uma série de medidas para combater o problema, mas nada de significativo foi feito ainda. A luta pela democratização dos meios de comunicação ganhou importância no dia 17 de outubro de 2001, quando um grupo de estudiosos de Toronto, Canadá, criou
No Brasil, a luta pelo fim das oligarquias na mídia significa dar voz a uma grande massa de excluídos. “Os oligopólios não têm foco naquilo que é de interesse público, mas sim no privado, no que interessa a elas. Paralelamente, há milhares de pessoas que têm muito o que dizer, mas não têm como”, acredita Márcio Kameoka, do Coletivo Brasil de Comunicação Social (Intervozes). Outro ponto fundamental, para Herz, é educar as pessoas para a leitura de diferentes mídias, permitindo que cada uma entenda os mecanismos com os quais são construídas as diferentes linguagens usadas. “Isso é um direito do cidadão e essa leitura deve permear os currículos da educação formal, nas escolas. É inaceitável que as pessoas fiquem totalmente vulneráveis à mídia, sem perceber e sentir os efeitos que a mídia tem sobre elas”, defende o jornalista.
Proposta: desligar a TV por uma hora Desligar a televisão, das 15 às 16 horas, no dia 17, domingo, horário de grande audiência. Eis a proposta da campanha “Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania”, coordenada por representantes da sociedade civil e da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara de Deputados, para marcar o Dia Internacional pela Democratização das Comunicações, celebrado no dia 18 de setembro. Segundo o deputado federal Orlando Fantazzini (PT-SP), presidente da Comissão, a iniciativa tem um valor simbólico e pretende protestar contra a baixa qualidade da programação televisiva. Para ele, é importante unir o movimento pela democratização com a campanha pelo controle de qualidade na TV, uma vez que as duas discussões estão intimamente ligadas. Parte do trabalho da Comissão é acompanhar conteúdos veiculados nos programas de TV e listar os que ferem exigências constitucionais e a legislação que zela pelos direitos humanos. Periodicamente, é divulgada a lista dos programas “campeões de baixaria”, que também leva em conta as denúncias feitas pelo público no endereço eletrônico www.eticanatv.org.br, ou pelo telefone 0800-619619.
RESULTADOS “Procuramos envolver a população para discutir a qualidade da programação da TV, com a preocupação do respeito à dignidade e valorização da vida”, explica Fantazzini, que avalia positivamente os esforços da campanha em um ano
Revista Viração
da mídia
NACIONAL
France Presse
Espelho
Cartaz para divulgar a campanha “Faça uma ação contra a baixaria na TV”
e meio de sua existência. “O apoio da população e de outros setores, como os Ministérios Públicos de cada região, é maior do que esperávamos”, diz. Antes do horário marcado para desligar os televisores, será feito, às 14h, um debate ao vivo sobre a democratização dos meios de comunicação, transmitido por todo o país pela TV Câmara. A emissora abrirá o sinal de satélite para todas
emissoras de rádio e TV que queiram reproduzi-lo. Em parceria com o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), está sendo viabilizada a transmissão do programa em emissoras educativas, públicas, legislativas e comunitárias, em conjunto com a Associação Brasileira de Televisão Universitária (ABTU) e Associação Brasileira de Rádio e TVs Comunitárias (Abraço). (DM)
Um novo formato de distribuir informações A agência de notícias Envolverde, que até junho de 2004 cobrava pela distribuição e divulgação de seu conteúdo, decidiu mudar a forma de trabalho e abrir sua produção jornalística, sem cobrar nada por isso. Adalberto Marcondes, editor da Envolverde, conta que começou a repensar o processo no final de 1997, quando começou a crise que atinge o setor de mídia no Brasil, e a agência perdeu a maioria dos assinantes. “Decidimos, então, formular um projeto de informação cidadã. Não queremos mais vender informação.
Para isso, fomos buscar formas alternativas de financiamento, junto a ONGs e iniciativas públicas”, conta Marcondes. Uma das parcerias que possibilitou a mudança foi com a Inter Press Service (IPS), agência internacional com correspondentes em mais de 100 países e que concentra sua cobertura jornalística fora do eixo Estados Unidos – Europa. “Nós podemos traduzir e distribuir as notícias e artigos feitos por eles, que têm o mesmo enfoque da Envolverde”, explica Marcondes. Criada em 1996, a Envolverde produz
matérias voltadas para temas como direitos humanos, meio ambiente, conflitos internacionais e desenvolvimento sustentável.
PAÍS ADENTRO Para Marcondes, a iniciativa da Envolverde pretende contribuir para a democratização das informações. “Fizemos um levantamento informal e verificamos que, no Brasil, há cerca de 5 mil jornais. Desses, 50 estão no que chamamos de ‘clube da elite’, dos grandes conglomerados e 400 são de empresas bem estruturadas. O
que sobra são jornais sem qualquer tipo de apoio, sobrevivendo à margem do mercado publicitário e sem dinheiro para comprar conteúdo.” A intenção da agência é chegar aos veículos menores, que atingem as regiões mais distantes do país e, dificilmente, têm acesso à informação alternativa, mas apenas àquelas veiculadas pelos grandes canais de TV e rádio. “Temos que fazer notícia de acordo com o que a sociedade precisa, e não com o que acreditam que ela quer”, afirma Adalberto Marcondes. (DM)
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De 14 a 20 de outubro de 2004
NACIONAL CMPI DA TERRA
Vazam informações para incriminar MST Álvaro Dias, aliado dos ruralistas, passa dados sigilosos à imprensa e é criticado pelo relator da Comissão
A
bancada ruralista tenta, novamente, desmoralizar e criminalizar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e dificultar ainda mais a realização da reforma agrária. A última investida veio dia 10, em noticiário veiculado pelos jornais Folha de S. Paulo e Correio Braziliense. As pseudo-reportagens divulgam informações fiscais e bancárias sigilosas da Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab), em poder da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Terra. Ambas fazem menção explícita ao relatório parcial dos dados fiscais e bancários da Concrab, elaborado pela assessoria do presidente da CPMI, senador Álvaro Dias. Para o relator da CPMI, deputado João Alfredo (PT-CE), escoradas no “relatório parcial”, as reportagens promovem uma devassa na intimidade da Concrab, ao arrepio dos mais comezinhos princípios constitucionais que tutelam a vida privada. Desde julho do ano passado, quando o presidente Lula recebeu os sem-terra em Brasília e usou um boné do MST, os ruralistas estão tentando criar a chamada “CPI do boné” para criminalizar a luta pela reforma agrária. Tal CPI foi deixada de lado. Em seu lugar, acabou sendo criada uma comissão mista, integrada por senadores e deputados federais. Seu objetivo era “realizar amplo diagnóstico sobre a estrutura fundiária brasileira, os processos de reforma agrária e urbana, os movimentos sociais de trabalhadores, assim como sobre os movimentos de proprietários de terras”, de acordo com o requerimento aprovado pelo Congresso.
to, um relatório sobre um tema dessa envergadura não teria condições de ser elaborado em menos de um mês, sobretudo num mês tumultuado como o último. Nesse sentido, além de ser fruto de usurpação de poderes, as conclusões ali lançadas refletem um açodamento típico de quem pretende fazer uso político da CPMI”.
PARCIALIDADE Pelo pouco que a relatoria viu dos documentos, continua, suas avaliações e percepções diferem substancialmente das conclusões lançadas no “Relatório Parcial” do senador Dias. Avaliações que serão devidamente apresentadas no prazo regimental para apreciação do plenário da Comissão.
O relatório do senador, diz a nota, sugere que os convênios do governo federal e de organismos internacionais com a Concrab seriam destinados à “formação de lideranças do MST”. Afirmações demasiadas genéricas e subjetivas, de acordo com João Alfredo, e que insinuam questões, sem a preocupação de comprová-las. O relatório do senador, acrescenta a nota, evidencia a parcialidade com que o presidente da Comissão trata do tema, de vez que, além de não abordar a problemática da violência no campo – tão amplamente constatada pelas atividades da Comissão – passa ao largo dos dados fiscais e bancários do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), entidade notoriamente vin-
culada aos ruralistas. Ao proceder desta maneira, destaca o deputado, o senador se distancia dos objetivos iniciais da CPMI, “quais sejam, traçar um diagnóstico sobre a situação fundiária do país e apresentar propostas para a superação da violência e da injustiça social no campo brasileiro”.
RESPONSABILIDADE Frisando que o “relatório” do senador não é um relatório da CPMI, posto que elaborado unilateralmente, João Alfredo declara que “toda e qualquer responsabilidade pelo vazamento das informações fiscais e bancárias da Concrab é de inteira responsabilidade do presidente da comissão, senador Álvaro Dias”. É curioso, segundo o deputado,
que o “documento” foi entregue aos parlamentares na sexta-feira, dia 8, enquanto a imprensa teve acesso no dia anterior, como informa a Folha de S. Paulo. “Tristemente, esta relatoria fica com a impressão de que a CPMI da Terra está se desvirtuando e poderá descambar para o mesmo pântano em que se meteu a CPI do Banestado. O que parece pretender o presidente da comissão é transformá-la na CPMI do Boné, proposta pelos ruralistas, com quem o senador é extremamente articulado. Quem perde com isso é o Congresso Nacional e o povo brasileiro, que adia a oportunidade histórica de contribuir com a realização da reforma agrária”, conclui a nota do deputado João Alfredo.
GREVES U. Dettmar/Abr
da Redação
SURPRESA A seguir, os principais trechos da nota do deputado João Alfredo, distribuída dia 12, sobre as citadas reportagens. Em primeiro lugar, assinala, a relatoria foi pega de surpresa tanto com o “Relatório Parcial”, elaborado unilateralmente pelo senador Álvaro Dias, quanto pelas reportagens que divulgam informações que deveriam estar protegidas pela CPMI da Terra. Segundo o deputado, a sessão da CPMI que deliberou sobre os sigilos da Concrab, Anca e Senar só autorizou a transferência, e não a divulgação dos dados, e o próprio ministro do STF, Gilmar Mendes, ao cassar a liminar anteriormente concedida, “fez ressalva expressa de que as informações bancárias e fiscais da Concrab deveriam permanecer sob sigilo, cabendo à secretaria e à presidência da Comissão a guarda dos dados e a proteção da vida privada da entidade, sob pena de responsabilidade”.
USURPAÇÃO Direta ou indiretamente, diz a nota, a publicidade das informações fiscais e bancárias da Concrab são de inteira responsabilidade do presidente da CPMI, “o qual, usurpando funções da relatoria, elaborou este simulacro de ‘Relatório Parcial’, com o claro propósito de atacar o governo do presidente Lula e de criminalizar a luta pela terra, o que, certamente, destoa dos propósitos de uma CPMI”. Os regimentos internos do Congresso Nacional, lembra, são categóricos em dizer: quem faz relatório é o relator e não o presidente. O deputado esclarece que as informações bancárias e fiscais da Concrab só foram liberadas para análise após o STF cassar a liminar anteriormente concedida, o que aconteceu dia 9 de setembro, em meio ao processo eleitoral. “Portan-
Bancários em greve aceitaram reduzir sua proposta para 19% de reajuste e R$1.500 de abono, mas banqueiros se mantêm irredutíveis
Paralisados, petroleiros, servidores e bancários Luis Brasilino da Redação Desde o dia 4, os petroleiros vem realizando paralisações surpresa de 24 horas, em diversas instalações da Petrobras. Eles reivindicam 13,2% de reposição salarial, fim das discriminações entre os trabalhadores, solução dos problemas da Petros (fundo de pensão da estatal) com inclusão dos novos empregados no plano de previdência complementar, nova política de segurança, fim da terceirização das atividades permanentes, cumprimento das leis de anistia e liberdade de organização por local de trabalho, entre outras. A segunda contraproposta da estatal foi de reposição de 12,1%, mas sem contemplar as outras demandas. Desde o dia 12, a Federação Única dos Petroleiros (FUP) convoca assembléias para as quais indica a rejeição da proposta e uma greve de cinco dias com parada na produção.
Para Fernando Siqueira, diretor da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), o governo está jogando duro para quebrar a categoria, como fez o ex-presidente Fernando Henrique, em 1995. “Na ocasião, o tucano induziu o pessoal a fazer a greve e liqüidou a categoria com punições duríssimas. Os petroleiros eram uma das categorias mais fortes do país e esta manobra abriu caminho para uma sequência de projetos de privatização. Agora, (o presidente Luiz Inácio) Lula (da Silva) segue os mesmos passos, só que, desta vez, para aprovar as reformas sindical e trabalhista e flexibilizar direitos”, avalia.
res do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A totalidade da categoria está em greve (6 mil servidores) desde o dia 29 de setembro, para exigir do governo o cumprimento de acordo firmado há 10 meses. “De lá para cá, nenhuma providência foi tomada. Notamos que o governo fica esperando as pessoas se mobilizarem para lhes dar algo”, conta Mirian. O governo apresentou uma proposta dia 6 mas, segundo Mirian, as assembléias realizadas entre os dias 13 e 14 devem rejeitá-la, porque “ela só cobre perdas salarias”.
BANCÁRIOS IBAMA Outros servidores estão paralisando atividades em protesto contra o governo federal. “Estamos nos aprimorando nas realizações de greve”, conta Miriam Vaz Parente, do comando de greve dos servido-
Mobilizações também atingem o setor privado. Dia 13, a greve dos bancários (instituições públicas e particulares), chegou à quarta semana. Os trabalhadores aceitaram reduzir sua proposta para 19% de reajuste e R$1.500 de abono. Mas
a Federação Nacional dos Bancos (Fenaban) se mantém irredutível. Desde o início da mobilização, não sentaram para negociar uma única vez sua proposta de 8,5% de aumento e R$ 30 de abono. A greve é a maior dos últimos 40 anos. Para Vagner Freitas, presidente da Confederação Nacional dos Bancários, ela é resultado de uma demanda reprimida de bancários de todo o país, massacrados durante os dez anos de governo Fernando Henrique, somada à intransigência dos bancos. “Eles acham que podem acabar com a greve por inanição, pois se acham donos do Brasil, acima do bem e do mal. Não têm compromisso com a sociedade brasileira: a forma como tratam os clientes, que precisam ‘pagar até para respirar’ dentro das agências, é a mesma dispensada a seus funcionários. Sugam seu sangue o máximo que podem”, diz Freitas.
PETRÓLEO
O país pode manter reservas estratégicas O Brasil ainda pode manter o controle de suas reservas estratégicas de petróleo. Graças à iniciativa da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), a juíza Adriana Barretto de Carvalho Rizotto, da 22ª Vara da Justiça Federal do Rio de Janeiro, dia 1º, concedeu liminar suspendendo o 6º leilão de bacias petrolíferas, realizado dias 17 e 18 de agosto pela Agência Nacional do Petróleo (ANP).
A ação contra o leilão foi movida por Sydney Reis Santos, diretor da Aepet, e garante a suspensão das assinaturas dos contratos referentes à 6ª rodada, previstas para o fim do ano. A base da argumentação foi um problema nas regras do leilão, denunciado pela Aepet em julho: o peso (40%) do item Conteúdo Local (CL) no valor total da compra. Segundo Fernando Siqueira, diretor da Aepet, o item é subjetivo.
Em carta à ANP, a Associação alertava: “Para uma empresa fazer uma oferta para um bloco situado no mar, especialmente em águas profundas, onde atualmente apenas uma pequena parte (30% dos serviços e equipamentos) é de conteúdo nacional, ela tem uma grande margem (da ordem de 70%) para apostar no crescimento da indústria nacional. Entretanto, tal aposta não pode ser garantida pela empresa ofertante, pois ela não é
a responsável pelo desenvolvimento da indústria nacional”. Siqueira resume: “A empresa que arrematar uma bacia não é a responsável pelo cumprimento deste item. A responsabilidade é da indústria nacional”. Assim, a estadunidense Devon Energy Corporation arrematou importante bloco na Bacia de Campos (RJ), oferecendo 81% de CL, contra 60% da Petrobras, e pagando menos. (LB)
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NACIONAL POLÍTICA ECONÔMICA
Hamilton Octavio de Souza MST homenageia dom Paulo Arns Uma delegação do MST entregou dia 7, o Prêmio Luta pela Terra ao arcebispo emérito de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns. A homenagem é destinada àqueles que defenderam a reforma agrária e as lutas sociais no Brasil nos últimos 20 anos Arapuca política O Partido dos Trabalhadores considera sua maior prioridade a reeleição de Marta Suplicy em São Paulo, mas não sabe ainda como reverter a vantagem do candidato José Serra, do PSDB. A questão central é: como se diferenciar da tucanagem se o governo Lula não criticou e não mudou a política econômica do governo FHC, do qual Serra era ministro? Resistência cristã Lançada em São Paulo, na semana passada, a Agenda Latino-Americana de 2005, coordenada por dom Pedro Casaldáliga, reuniu mais de 1.200 pessoas no auditório do Parlatino, a grande maioria vinculada aos movimentos católicos progressistas. O tom dos discursos foi de muita indignação com os rumos do governo Lula. Protesto geral Cada vez que o ministro da Educação, Tarso Genro, adota alguma medida relativa ao ensino superior, mais ele provoca a unificação da luta de estudantes e professores contra a reforma universitária. Até as entidades que apóiam as políticas oficiais por determinação partidária estão perdendo a sustentação das bases, que são contrárias ao processo de privatização conduzido pelo MEC. Contradição básica Pesquisas divulgadas recentemente comprovam o que muita gente sabia por experiência própria: o desemprego é mais alto e atinge 25% dos brasileiros com formação de nível superior. A exigência de escolaridade aumentou no neoliberalismo, mas o modelo não cuidou de abrir vagas e empregar. Essa exclusão deixa milhares de jovens bem preparados fora de qualquer atividade produtiva. Ilusão natalina Todos os anos, nesta mesma época, empresários, banqueiros e a imprensa burguesa costumam criar grande expectativa com o emprego temporário na indústria e no comércio devido às vendas de Natal. Doce ilusão, pois a cada ano se emprega menos e as demissões de janeiro são sempre maiores. Todo mundo sabe que essa situação só muda se o governo investir para gerar emprego e aumentar a renda. Reação mundial Os sindicatos de trabalhadores da Coréia do Sul têm realizado grandes mobilizações contra a lei de trabalho temporário. Na Europa, ocorrem manifestações de trabalhadores para a retomada de direitos perdidos nos anos dourados do neoliberalismo. Aqui, algumas categorias estão em luta. Será que está em gestação uma nova fase de conquistas sociais? Falsa globalização Premiada com o Nobel de Literatura, a escritora austríaca Elfriede Jelinek não tem nenhum livro publicado no Brasil. Ex-militante do Partido Comunista, considerada radical e crítica feroz do imperialismo e da guerra, ela foi ignorada pelo mercado editorial brasileiro, que é especializado em autores que agradam o circuito acadêmico e as elites liberais. Democratização já Estudantes de comunicação social e entidades engajadas na luta pela democratização da mídia, prometem realizar várias manifestações no domingo, 17, nas principais capitais do país. Em uma delas o alvo será o falecido proprietário da Rede Globo, Roberto Marinho, que montou o seu império em troca de favores para a ditadura militar.
Concentração de recursos Falta de políticas compensatórias para descentralizar o crescimento acirra a guerra fiscal Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
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os primeiros nove meses deste ano, as empresas das regiões Sul e Sudeste levaram praticamente 73% de todos os empréstimos desembolsados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Os desembolsos somaram perto de R$ 25,9 bilhões, dos quais R$ 18,8 bilhões foram para aquelas regiões, cabendo aos demais Estados uma cota equivalente a pouco mais de 27% do bolo, alguma coisa ao redor de R$ 7 bilhões. Houve, como alega a direção do banco, alguma melhoria em relação ao cenário observado entre janeiro e setembro do ano passado, quando as duas regiões mais ricas do país abocanharam nada menos do que 77% dos recursos da instituição – criada exatamente para financiar a desconcentração regional do crescimento, favorecendo proporcionalmente mais as regiões menos desenvolvidas. O fato, no entanto, é que isto não tem acontecido: o rico Sul/Sudeste tem sido privilegiado não só na distribuição do dinheiro do BNDES, emprestado a custos inferiores aos cobrados pelo sistema financeiro tradicional. Um levantamento recentemente concluído por um grupo de trabalho formado por técnicos das secretarias de Fazenda de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins e Distrito Federal, sob liderança do primeiro, deixa claro que há uma decisão política da equipe econômica de privilegiar as regiões mais desenvolvidas.
Maurício Lima/AFP
Fatos em foco
Produção de carros em São Caetano do Sul (SP): privilégios fiscais por parte dos Estados acaba afetando a economia
Estados respondam ao recente contra-ataque lançado por São Paulo contra os programas de incentivos e privilégios fiscais criados pelos governos estaduais a pretexto de atrair investimentos. Nas entrelinhas, os dados apurados pelas secretarias de Fazenda do Centro-Oeste indicam que a guerra fiscal entre os Estados surgiu como uma resposta à total ausência de políticas federais destinadas a estimular a desconcentração de riquezas e da renda. Mostram que prevalece uma política ostensiva de concentração de recursos, investimentos federais e benefícios fiscais nos Estados mais poderosos e mais ricos – o que está, na verdade, por trás do recente acirramento da disputa fiscal entre Estados desenvolvidos e menos desenvolvidos.
FALSA SOLUÇÃO O trabalho foi desenvolvido com o duplo objetivo de combater a proposta de reforma tributária que está parada no Congresso e reunir munição para que aqueles
LOTEAMENTO A “resposta” dos Estados, via concessão de privilégios fiscais indiscriminados, termina produzindo efeitos igualmente perversos
para a economia como um todo, ao favorecer grandes grupos econômicos e estimular, por sua vez, maior concentração de riquezas e da renda dentro dos Estados. Na maioria dos casos, os governos estaduais acabam loteando a arrecadação futura do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), a sua principal fonte de receitas, e desviando recursos públicos, do contribuinte, para grupos e empresas particulares. Entre 1997 e 2001, apurou o trabalho, o BNDES emprestou R$ 117,2 bilhões, dos quais R$ 80,1 bilhões (ou 68,3%) foram destinados ao Sul/Sudeste. A participação do Centro-Oeste, neste exemplo, limitou-se a 6,7% (R$ 7,9 bilhões). Nos três anos seguintes, houve um remanejamento daqueles recursos entre os Estados menos desenvolvidos, com perdas para o Nordeste e avanços para o Centro-Oeste e Norte. A fatia dos Estados nordestinos nos desembolsos do BNDES, que atingiu 22% entre 1997 e 2001, murchou para 7% entre janeiro
e setembro de 2004, enquanto o Centro-Oeste e o Norte avançaram, respectivamente, de 6,7% para 14% (duas vezes mais, portanto) e de 2,7% para 6%. A política econômica em vigor preferiu manter intocados os privilégios do Sul/Sudeste e mesmo ampliá-los, já que a participação daquelas regiões cresceu de 68,3% para 73% neste ano. O levantamento preparado pelas secretarias de Fazenda do CentroOeste mostra, ainda, que 64,5% de todos os incentivos federais concedidos por Brasília ficam no Sul/Sudeste, cabendo ao CentroOeste uma participação de 5,2% – embora sua participação no Produto Interno Bruto (PIB), que mede todas as riquezas geradas pelo país, alcance 7,2%. Neste ano, os benefícios fiscais federais estão previstos em R$ 24,2 bilhões e R$ 15,6 bilhões estão reservados ao Sul/Sudeste – o que significa dizer que as duas regiões receberão 81% mais do que todos os demais Estados juntos.
A MELHOR FATIA DO BOLO FEDERAL Participação por região, em % Regiões
Benefícios fiscais federais (2004) 20,05 10,24 5,22 51,52 12,97
Norte Nordeste Centro-Oeste Sudeste Sul
Desembolsos do BNDES (jan/set 2004) 6 7 14 48 25
Investimentos estatais (2003, exclui Petrobras) 12,92 19,06 2,7 52,07 13,25
Cide* 9,19 25,69 11,61 35,86 17,66
Lei Kandir (2001)** 5,57 10,52 6,22 54,03 23,65
(*) Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico/fundo para conservação e recuperação de estradas; (**) Distribuição das indenizações pagas pela União aos Estados pelos incentivos da Lei Kandir Fontes: Secretarias de Fazenda de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal e Goiás/BNDES
Uma política contra Estados pobres O governo federal contra-argumenta, dizendo que os benefícios fiscais guardam uma relação direta com o volume de impostos federais recolhidos em cada Estado. A questão que os Estados menos desenvolvidos pretendem discutir, no entanto, diz respeito exatamente à política de distribuição desses benefícios. Numa política que privilegiasse a desconcentração das riquezas, regionalmente, os Estados menos desenvolvidos teriam direito a uma cota proporcionalmente mais elevada, o que contribuiria para ajustar, gradualmente, o descompasso em relação aos mais desenvolvidos. Não é o que se percebe nas decisões de política econômica adotadas nos gabinetes acarpetados da Esplanada dos Ministérios, no coração da capital federal. No caso dos investimentos realizados pelas empresas estatais, excluída a Petrobras, para evitar distorções, nada menos do que 65% dos recursos previstos nas leis orçamentárias de 2002 e de 2003 estavam reservados para os Estados das regiões Sul e Sudeste.
CIDE E LEI KANDIR Tome-se o exemplo da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide). O fundo criado
com recursos da Cide sobre combustíveis para recuperação, reforma e construção de estradas, num total de R$ 2 bilhões, também privilegia o Sudeste. Dona de 23% da malha rodoviária nacional, a região Centro-Oeste ficou com apenas 11,6% dos recursos do fundo, cabendo quase 39% ao Sudeste, embora apenas 20,4% das estradas federais e estaduais cortem a região. Obviamente, são essas estradas, com destaque para São Paulo, que concentram maior volume de tráfego. “Contestamos os critérios utili-
zados para dividir o bolo da Cide”, reclama um secretário de Estado. No caso da Lei Kandir, promulgada em setembro de 1996, prevê-se que os Estados deveriam ser ressarcidos pela União por conta dos incentivos fiscais concedidos a exportadores e a fabricantes de máquinas e equipamentos, que pagam um Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) mais baixo que os demais setores da economia, ou recebem isenção total (caso das vendas externas de produtos semi-elaborados, como a soja).
Em 2001, no exemplo apresentado pelo grupo de estudos, o valor da indenização paga pela União alcançou pouco mais de R$ 3 bilhões, dos quais R$ 1,65 bilhão foram para o Sudeste (54% do total). Detalhe: aquela região responde por menos de 46% das exportações de produtos semielaborados. Os Estados do Centro-Oeste, que realizam 9,4% das exportações de semi-elaborados, tiveram uma participação relativamente mais baixa, na faixa de 6,2%. (LVF)
Carga tributária cada vez maior da Redação A carga tributária (somatório dos tributos federais, estaduais e municipais arrecadados) cresceu 1,2 ponto percentual no primeiro semestre de 2004, em relação ao mesmo período do ano anterior. De janeiro a junho, a arrecadação total foi de R$ 311,28 bilhões, com crescimento real (corrigido pelo IPCA) de R$ 28,05 bilhões. Em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), a carga tributária do primeiro semestre de 2004 atingiu 38,11%, em comparação aos 36,91% no primeiro semestre de 2003.
Os maiores aumentos foram os da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) – variação real (corrigida pela inflação) de mais de 21%; contribuições para o INSS, ICMS, IR e tributos municipais. Na avaliação de Gilberto Luiz do Amaral, presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), a elevação da carga de impostos certamente se refletiu na queda da renda do brasileiro e no aumento dos preços. “Lamentavelmente, no segundo semestre estamos verificando a manutenção dos aumentos tributários, que têm
influenciado fortemente os índices de inflação”, diz Amaral. Segundo levantamento do IBPT, o crescimento real da arrecadação total (impostos federais, estaduais e municipais, além de contribuições sociais) no primeiro semestre foi de 9,9%, em relação ao mesmo período de 2003; a variação real dos tributos federais foi de 9,7%; a dos estaduais, 8,9% e a dos municipais, 16,9%. A carga tributária semestral per capita cresceu 14%. Em moeda, isso significou que cada brasileiro pagou R$ 206,88 a mais de tributos no semestre. No ano, pagará, aproximadamente, R$ 3.590,00.
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NACIONAL ENTREVISTA
Endividamento volta a aumentar N
ão há alternativas. Dita pela ex-primeira-ministra britânica Margareth Thatcher, há mais de duas décadas, a frase virou como uma maldição. Transformouse em símbolo da impotência a que supostamente estão submetidas nossas sociedades, desde que o capitalismo neoliberal venceu o bloco soviético, cooptou a socialdemocracia e elevou suas idéias ao status de pensamento único. Uma das dimensões mais trágicas desta castração mental é o fato de ser empregada, até agora com eficácia, também por forças de esquerda. O Brasil está se transformando num exemplo clássico. Criticado por ter conservado no poder as políticas de concentração de riquezas que condenava quando na oposição, o atual governo procura desqualificar e neutralizar seus críticos. Apoiado pela mídia, infantiliza-os. Segundo esta interpretação, os críticos são ótimos para fazer poesia sobre distribuição de renda. Mas as tarefas sérias, como enfrentar os riscos de crise e manter a economia funcionando e gerando dólares, devem ser deixadas aos cuidados do doutor Antonio Palocci e do banqueiro Henrique Meirelles. É bem provável, aliás, que os dois considerem românticas algumas das posições sustentadas pelo professor Carlos Eduardo Carvalho. Ele acredita, por exemplo, num Estado capaz de fazer cumprir as leis trabalhistas, de instituir um sistema de tributos que amenize as desigualdades sociais e de oferecer serviços públicos de qualidade a todos. E, a seu ver, as políticas tocadas – em nome do “realismo” e do respeito a certos contratos – pelo Palácio do Planalto tornam a economia brasileira mais vulnerável do que nunca a uma eventual crise externa. Além disso, Carvalho considera que o governo, desde que tivesse vontade política, poderia aproveitar a conjuntura internacional favorável para construir uma alternativa de política econômica. Duas medidas viáveis (o estabelecimento de controles sobre a entrada e saída de capitais e uma renegociação ampla da dívida pública) permitiriam estabelecer uma nova relação – não submissa – com os mercados financeiros. O Banco Central (BC) voltou a elevar os juros, sinalizou novos aumentos e jogou uma ducha de água fria em quem contava com o crescimento econômico. Por quê? Carlos Eduardo Carvalho – O aumento dos juros tem dois componentes importantes: um, é um viés ideológico da cúpula do BC, do governo, do PT e do Ministério da Fazenda. Querem “mostrar serviço” ao mercado financeiro. Como disse Paulo Nogueira Batista, são o Partido dos Juros Altos. Como a expectativa de inflação aumentou um pouco, sobem os juros para acompanhar. Parece uma ideologia da perversidade, pelo fato de contrariar as expectativas da imensa maioria da sociedade. Algo assim: “Vamos botar ordem no galinheiro: a economia supostamente está crescendo muito, o pessoal está recuperando emprego, há um movimento de elevação de renda. Chega: vamos recuperar o lucro dos bancos”. Evidentemente, quem ganha com o aumento dos juros são os banqueiros. Mas há também um aspecto preocupante: a avaliação que se faz, na Fazenda e no BC, sobre os riscos que pairam sobre a economia brasileira. Foi isso que levou à decisão de elevar ainda mais o superávit primário.
Quem é O professor Carlos Eduardo Carvalho é coordenador do grupo de pesquisa em moeda e crédito da pós-graduação da PUC-São Paulo. produtiva mudou muito, com o fim das empresas estatais e o avanço das multinacionais. Normalmente, os ciclos de crescimento tinham impulso muito forte dos gastos das estatais e da expansão do crédito do Banco do Brasil. Isso não existe mais. Contudo, a dúvida fundamental sobre a sustentação do crescimento é o quadro externo. A situação internacional continuará como está? Haverá espaço para as exportações seguirem nesse ritmo? A outra dúvida é se as empresas privadas vão investir.
Como assim? Carvalho – O ministro Antonio Palocci alegou que a elevação do superávit visava evitar um novo aumento de juros. Aparentemente, a equipe econômica e o Fundo Monetário Internacional estão preocupados com a manutenção da dívida pública em patamares muito elevados. Se lermos com atenção os elogios recentes do FMI à política econômica brasileira, veremos que a preocupação com a inflação aparece muito mais como justificativa geral. Ela vem sempre acompanhada com a preocupação com a estabilização da dívida e com os riscos de sua insolvência. Apesar de tudo o que o governo Lula fez para agradar os credores, a dívida líquida não caiu abaixo do patamar de 55% do PIB. Esse nível é muito acima do que o FMI considera confortável: 40% do PIB. A seu ver, o endividamento interno é alto, o que gera uma situação de fragilidade financeira preocupante.
Qual o papel, nesta conjuntura, da proposta de controle dos movimentos de capitais? Carvalho – Neste momento está entrando dinheiro à vontade no Brasil. Os conservadores poderiam alegar que falar em controle de capitais é coisa de gente ranheta, de fracassomaníacos. Mas deve-se lembrar que as crises cambiais do país foram sempre geradas nestas horas, nos momentos de euforia, de relaxamento, quando todos baixam a guarda. Há hoje, de novo, uma tendência de crescimento da dívida externa. As empresas privadas voltaram a tomar recursos externos, o dinheiro internacional anda barato e abundante. O novo ciclo de endividamento será tanto mais grave quanto mais durar. Nesta altura, a questão principal do controle de capitais deveria ser o estabelecimento de limites ao endividamento externo. Vale lembrar as lições da crise cambial de 1998. A dívida externa tinha crescido tanto que, quando a desvalorização do real se tornou inevitável, havia a ameaça de quebrar o setor privado – bancos e grandes empresas. Para evitar isso, o Estado assumiu a dívida. É o velho processo: o Estado assume as dívidas e gera uma crise fiscal. É esse circuito perverso que corremos o risco de desencadear de novo.
Economistas como Delfim Netto têm proposto o fim dos dispositivos constitucionais que obrigam o Estado a destinar parcelas do orçamento aos investimentos sociais. Também aqui o objetivo é abrir espaço para o pagamento de juros? Carvalho –Trata-se da chamada “desvinculação de receitas”. A idéia é criar um bolo comum para garantir que, em caso de turbulência, o governo use todo o dinheiro disponível para pagar os juros da dívida. Uma das grandes broncas que a direita e os liberais têm em relação à Constituição de 88 é que ela destinou parte dos recursos para os programas sociais. Eles não admitem isso. Dizem que o intocável é a remuneração da dívida. O governo alega que aumentou juros para conter a inflação. Carvalho – Esse alegado medo da inflação é uma cortina de fumaça – ou um viés ideológico, o que dá quase no mesmo. A inflação é sobretudo de custos, e o que mais pressiona o índice são preços indexados ao dólar: as tarifas dos serviços públicos e alguns outros produtos, como petróleo e aço. Estes preços não serão contidos com elevação da taxa de juros. Mas, para evitar a propagação de tais altas, o governo aborta o crescimento e contém a demanda na grande maioria dos setores, que não tem preços indexados. O atual ciclo de crescimento é sustentável? Carvalho – O ciclo iniciado no final de 2003 tem dois elementos difíceis de explicar. O primeiro é por que ele demorou tanto para ocorrer. A economia brasileira sempre teve grande capacidade de crescer e de responder a estímulos As exportações vinham avançando muito desde o final de 2002. Já era para a economia ter engatado um ritmo de crescimento. É possível que essa demora esteja ligada à carga tributária e à taxa de juros, muito altas. As causas do crescimento são óbvias: as exportações e seu efeito propagador, mas também a demanda reprimida. Mas falar em sustentação é outra história. A estrutura
O controle de capitais não poderia ser usado para reduzir os juros e estabelecer uma nova relação com o capital financeiro, num momento em que há recursos internacionais disponíveis? Carvalho – É claro. O controle de capitais tem de ser estabelecido, sobretudo, para aumentar a margem de manobra dos governos. Quando há crise e saída de capitais, o governo precisa responder com maior liberdade de ação. Isso lhe daria condições para impedir a fuga de divisas e manejar a taxa de juros. Vou além: creio que se o governo, agora, reduzisse os juros, não haveria fuga de recursos. O diferencial dos juros em relação ao exterior
é tal que provavelmente o dinheiro preferiria ficar aqui. Estamos desperdiçando a possibilidade de reduzir juros e baixar a dívida desde a posse do Lula. Pagamos aos credores uma remuneração extra desnecessária. Que mecanismos poderiam ser usados para controlar os fluxos de capital? Carvalho – Deveríamos estabelecer, primeiro, controles sobre a entrada de dinheiro, que impediriam um endividamento adicional, gerador de crises. Em relação à saída de recursos, no momento, não há crise. Deveríamos aproveitar e propor mecanismos permanentes de gerenciamento do fluxo de dinheiro. Esta era a hora de desmontar os esquemas da CC-5, as possibilidades de saída ilegal ou semi-ilegal. Um terceiro objetivo imediato é aumentar o controle da sociedade sobre o BC. De nada adianta um BC que tem instrumentos legais para controlar a entrada e saída de divisas e não os utiliza. Este é o momento de se discutir abertamente o próprio estatuto do banco. O governo Lula está implantando sua independência na prática. Se não houver pressão, vai implantá-la também na forma da lei, como tem insistido o ministro Palocci. Alguns tratam o controle de capitais como heresia. Por quê? Carvalho – Eles são mecanismos antiqüíssimos. Os Estados Unidos os usaram nos anos 60 e 70. Mas duas forças poderosas passaram a demonizá-los, nas últimas décadas. O mercado internacional – os grande bancos e fundos, que querem liberdade completa de ação. Globalização financeira é, essencialmente, liberdade de movimento para o capital financeiro. A segunda pressão é da elite doméstica, dos detentores de riqueza. No capitalismo contemporâneo, a maior parte da riqueza é financeira, portanto, inconversível, garantida unicamente por um contrato político-jurídico afiançado pelo Estado. Os grandes detentores de riqueza lutam pelo “direito” de mover esta riqueza, tirá-la do país, transformá-la em outra moeda livremente. Eles conseguiram transformar este desejo de segurança da elite num tema nacional. A enorme força política ideológica que têm se expressa, por exemplo, na capacidade de cooptarem governos. Fizeram isso com o PRI mexicano, com Menem na Argentina, com FHC e toda a tropa do PSDB. Estão fazendo, agora, com Lula e o PT. Como o controle de capitais se combinaria com redução das taxas de juros e transferência de riqueza para o setor financeiro? Carvalho – Se tivéssemos um governo disposto a mudar o país – ou quando o tivermos – uma alternativa será partir para um tratamento de choque em relação à dívida pública. Renegociar, em
Maurício Lima/AFP
Antonio Martins, Marcel Gomes e Rita Casaro* de São Paulo (SP)
Juliana Bruce/Planeta Porto Alegre
Empresas brasileiras voltam a captar recursos no exterior; é inadiável o controle de capitais para enfrentar turbulências
Bolsa de Valores de São Paulo: política econômica pode favorecer eventual crise
patamares mais baixos, um acordo mais ou menos consentido com os bancos. Tentar segurar o mercado financeiro, baixar os juros e começar a induzir um ritmo de crescimento econômico mais forte. Isso só é possível com o controle da saída de capitais. Tais políticas não são factíveis permitindo que os ricos possam tirar dinheiro do país. Pode-se adotar medidas que permitam a remessa de dinheiro de contratos que estão vencendo, mas são indispensáveis medidas que evitem saída de recursos em massa. Isso criará uma possibilidade de mudar os rumos da política econômica sem enfrentar o risco de uma quebra dos bancos o que, política, econômica e socialmente é uma catástrofe. Ou seja, estabelecer um novo contrato com o sistema financeiro? Carvalho – Isso é plenamente possível. Só depende da disposição do governo. O capital estrangeiro aceitava as restrições do Chile e aceita as da China. A Malásia cometeu pecados mortais, hoje é elogiada. Vale chamar atenção para um documento importantíssimo que, sintomaticamente, passou em branco na imprensa. É a versão 2003 do World Economic Outlook, relatório anual do FMI sobre o panorama econômico internacional, com uma seção sobre o endividamento público dos países emergentes. O relatório diz que o FMI estudou 26 casos de países que reduziram de forma drástica o endividamento público nos últimos 10 anos. Entraram na lista nações que reduziram o endividamento em até 18 pontos percentuais do PIB, em três anos consecutivos etc. Dos 26 casos, 19 foram feitos com default (moratória) da dívida, e quase todos tiveram sucesso. Igualar moratória ou controle de capitais ao caos é terrorismo de banqueiros, apoiados pelos economistas que empregam e jornalistas a quem subornam um lobby poderosíssimo. Como vê a renegociação da Argentina? Carvalho – A imprensa não informa, mas estamos diante da maior moratória de uma dívida de que se tem registro. A Argentina suspendeu o pagamento de 90 bilhões de dólares, a metade de sua dívida externa. Toda dívida com credores privados está em questão. O governo lançou uma proposta ousada – pagar apenas 25% da dívida, em 30 anos. Serviu-se de um argumento fantástico: o país (assim como o Brasil e boa parte da América Latina) pagou taxas de juros e spreads altíssimos durante muitos anos, justamente porque havia o risco de interrupção dos pagamentos. Portanto, argumenta Kirchner, já pagamos o preço de parar de pagar. O mais interessante é que o FMI e os credores não conseguem organizar uma ofensiva contra a Argentina. Todas as ameaças seqüestros de bens, intervenção norte-americana etc. têm sido esvaziadas porque o governo argentino está jogando habilmente com os elementos de que dispõe. Um deles é pagar o FMI e os governos. Isso revela que há margem de manobra. Não estamos condenados a seguir sempre as mesmas políticas. A situação a que a Argentina chegou desmoralizou a direita. Aqui, esta direita posa de séria. O Palocci diz que gostaria de erguer estátuas para o Armínio Fraga e o Pedro Malan. Se alguém propusesse uma homenagem ao Domingos Cavallo, provavelmente seria execrado. * Texto publicado em conjunto com as páginas de Liberdade Brasil e Porto Alegre 2003
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NACIONAL ENTREVISTA
Militarização avança na região amazônica Pesquisador paraense analisa estratégia dos EUA para garantir acesso aos recursos naturais da maior floresta do mundo
Brasil de Fato – Em 2004, pelo cronograma oficial, termina a última fase de implantação do projeto do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), que já está sendo operado. Uma empresa estadunidense, a Raytheon, venceu a licitação, sofrendo uma série de acusações de tráfico de influência e favorecimentos ilegais. Por que o Sivam é tão importante? Aloizio Lins Leal – O Sivam é, em princípio, um sistema de radar com objetivos militares para garantir a vigilância na região amazônica. Sabemos, no entanto, que o projeto se destina muito mais a monitorar a possibilidade de abastecimento das Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (Farcs). Alega-se que o Sivam vai servir também para controlar o tráfico de drogas, mas, na verdade, trata-se de uma ação preventiva de contenção da guerrilha. BF – O governo brasileiro diz que terá controle sobre os dados coletados pelo Sivam. Terá? Leal – Hoje, o projeto Sivam é apenas formalmente controlado pelo governo brasileiro. Mas não se pode partir da premissa ingênua de que os dados recolhidos pelo equipamento usado na vigilância, os radares da empresa Raytheon, vão ser exclusivamente conhecidos pelo Brasil. Uma prova disso é que a concorrência para a contratação da empresa foi um processo viciado. A proposta da empresa francesa, a Thompson, era muito mais interessante para o país, mas o governo Fernando Henrique, em um exemplo de subserviência canina, aceitou uma barganha do governo dos Estados Unidos que, em troca, ofereceu comprar aviões tucanos, fabricados pela Embraer. O Fernando Henrique pressionou para que a empresa estadunidense vencesse a licitação, mas depois ninguém comprou os tais aviões tucanos. Perdemos duplamente. O Sivam, hoje, é um projeto associado ao Calha Norte e ambos são orientados pela doutrina de segurança nacional. Infelizmente, os militares brasileiros ainda seguem essa orientação. BF – Como essa doutrina é aplicada hoje? Leal – Bem, essa doutrina geopolíCalha Norte – Projeto militar criado sob o argumento de proteger extensa faixa de fronteira na Amazônia contra o narcotráfico e as guerrilhas. Populações locais, como ribeirinhos e indígenas, reclamam de abusos cometidos pelos soldados enviados para a região. Sivam – O Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) tem como objetivo permitir o controle aéreo e terrestre da região por meio de radares e satélites. A empresa estadunidense Raytheon (fornecedora do Pentágono) foi contratada por R$ 1,4 bilhão para implantar o Sivam, depois de uma licitação polêmica. Denúncias veiculadas na imprensa acusam a Aeronáutica de favorecer os estadunidenses na licitação contra a empresa francesa Thompson.
Treinamento de militares brasileiros em região de fronteira na Amazônia
Quem é Professor de Economia Política da Universidade Federal do Pará (UFPA), Aloízio Lins Leal é especialista em militarização da Amazônia. Colaborador de diversas publicações, Leal escreve artigos sobre o Plano Colômbia e a estratégia dos Estados Unidos na região. tica nasceu no centro do comando das forças armadas dos Estados Unidos, substituindo boa parte das geopolíticas posteriores á Segunda Guerra Mundial. Foi uma espécie de bíblia dos militares dos países do Terceiro Mundo, sobretudo da América Latina. Todos os golpistas – brasileiros, argentinos e chilenos – tinham a doutrina de segurança nacional como um referencial de compreensão da realidade política do mundo. Esse pensamento tem como o foco o inimigo interno e substitui a visão de que o inimigo maior é um agente externo. Claro, isso serve só para os latino-americanos, porque os próprios Estados Unidos não seguem esses princípios. Assim, em vez de as forças armadas dos países subdesenvolvidos se preocuparem com a agressão externa, os militares se voltam para impedir uma temida agressão interna. Trata-se de um pensamento criado no âmbito da guerra fria para combater o comunismo. Daí, o empenho e a participação dos militares argentinos, brasileiros e chilenos em combater aquilo que chamam de subversão. Isso permanece até hoje. Há uns três anos, foram descobertos alguns prédios que serviam como braço do serviço secreto em Marabá, no sul do Pará. A região tem muitos conflitos de luta pela terra. Os documentos encontrados nesses prédios mostraram que os militares consideram o povo, ainda, como o maior inimigo. BF – E isso sempre norteou o pensamento militar na Amazônia? Leal – Sem dúvida. Os militares brasileiros imaginavam que a Amazônia tinha todas as condições para se transformar em um Vietnã sul-americano. Então, passaram a desenhar uma estratégia para ocupar a região. BF – Qual o impacto dessa doutrina, hoje, no cotidiano das populações da Amazônia? Leal – É importante ressaltar que, em alguns casos, os militares têm uma ação que tende a amenizar a inexistência do Estado. Por exemplo: um navio da Marinha percorre a calha do Rio Amazonas prestando assistência médica e odontológica. A Aeronáutica também tem serviços de assis-
A base de Manta, no Equador, é controlada por uma transnacional de guerra, formada por um pessoal egresso dos quadros militares dos EUA tência de saúde a áreas que não podem ser atingidas por rio ou por terra. O grande problema é que a preocupação dos militares não é essa, mas sim a segurança interna. Por isso, têm uma ação preventiva visando evitar a eclosão de um movimento subversivo ou qualquer coisa do gênero. Hoje, a intensificação do problema fundiário e o fortalecimento das organizações populares com caráter político preocupam muito mais os militares na região. BF – A militarização na Amazônia responde a isso? Leal – Eu vejo esse processo em três níveis. O primeiro é a onipresença dos Estados Unidos na região. A base de Manta, no Equador, é controlada por uma transnacional de guerra, a Dyn Corp., formada por um pessoal egresso dos quadros militares dos Estados Unidos. Os equatorianos têm apenas um papel figurativo nessa base. Na Colômbia, a Dyn Corp. aparelhou uma base militar gigantesca com equipamentos de alta tecnologia. O mesmo ocorre no Peru e na Bolívia. Apenas na Venezuela os Estados Unidos não estão presentes. Há poucos anos, os militares estadunidenses realizaram operações de treinamento na parte da floresta da Guiana. É verdade que o Brasil, na ocasião, fez um protesto, mas foi apenas
uma manifestação formal, porque os militares brasileiros não têm como orientação a garantia da soberania nacional frente a um inimigo externo. BF – E quais os outros aspectos desse processo de militarização? Leal – A militarização se expressa também por meio das forças armadas nacionais. Os estadunidenses estão infiltrados em todos os setores da força aérea colombiana. Já o presidente do Equador, Lúcio Gutierrez, deslocou 10 mil soldados para a região fronteiriça com a Colômbia. Isso responde a uma pressão muito grande dos Estados Unidos. Em terceiro lugar, vêm as políticas militares que significam a militarização das polícias. No Brasil, a PM é uma coisa só, controlada e fiscalizada pela política do Exército. Além de ser herdeira das piores tradições das forças armadas brasileiras, a PM é um segmento de ação contra o povo. Corumbiara e Eldorado dos Carajás são exemplos disso. Com o agravamento da questão social e o avanço da organização política das massas populares, cresce a necessidade de ação de repressão para manter a ordem institucional. BF – Mas, para o senhor, o interesse dos Estados Unidos se restringe a conter a ação do Plano Colômbia?
Em Santarém, os funcionários do Incra não têm nem combustível para fazer a vistoria de campo. Não existe controle da União sobre a devastação Antonio Scorza/AFP
“O
s militares brasileiros ainda entendem a Amazônia a partir da doutrina de segurança nacional”, avalia o professor de Economia Política da Universidade Federal do Pará (UFPA), Aloizio Lins Leal. Para o pesquisador do tema, a principal preocupação das forças armadas é coibir a ação de possíveis inimigos internos, como movimentos políticos organizados, e não proteger a região de uma agressão externa. Leal explica que tal pensamento, nascido no Pentágono, orienta hoje a ocupação das regiões fronteiriças com a Colômbia para bloquear as ações das Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (Farcs) e fortalece a presença estadunidense na região.
Leal – A intervenção sobre a Colômbia nasce a partir da importância que as Farcs ganharam sobre os camponeses colombianos e o potencial de se espalhar pela região. No entanto, a política dos Estados Unidos para a Amazônia é garantir acesso aos recursos naturais e estratégicos, sobretudo os energéticos. Isso foi declarado oficialmente, em 2001, pelo então responsável pelo Comando Sul (braço do Pentágono para a América Latina), general Peter Pace, em depoimento ao Congresso estadunidense. Isso significa que os Estados Unidos não vão deixar um país como a Venezuela, seu segundo maior fornecedor de petróleo, ter arroubos de soberania nacional, como quer o presidente Hugo Chávez. Há também interesse pelo gás boliviano, entregue pelo presidente deposto Sanches de Lozada a transnacionais estadunidenses.
Vanderlei Almeida/AFP
Jorge Pereira Filho da Redação
Soldado do Exército em ação na fronteira do Brasil com a Colômbia
BF – O senhor concorda que não há petróleo na Amazônia, como dizem, inclusive, muitos geólogos? Leal – Olha, na década de 1950, uma missão coordenada por um geólogo estadunidense declarou que a região não possuía petróleo. Logo depois, uma missão soviética veio ao país e desmentiu essas conclusões. A existência de enormes jazidas de gás natural, em Urucu e no Juruá, é indicativo da existência de petróleo. As jazidas de gás boliviano estão muito próximas da Amazônia brasileira. E há petróleo nos territórios amazônicos do Equador e da Colômbia. BF – A seu ver, há um tratamento especial do governo Lula para a região? Leal – Creio que a visão desse governo para a Amazônia pouco difere da dos militares. O Brasil é um país comprometido com a enorme coleira da dívida externa que nos cobra uma aliança incondicional com os interesses dos países credores. E o governo Lula não tem feito nada para coibir a terrível devastação da Amazônia, a partir da invasão da soja e do recrudescimento da exploração madeireira. Há um desaparelhamento completo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgãos responsáveis pela fiscalização da região. Em Santarém, os funcionários do Incra não têm nem combustível para fazer a vistoria de campo. Não existe controle da União sobre a devastação. BF – Na Amazônia, a soja está avançando por onde? Leal – O Terceiro Mundo está se especializando na tarefa de prover suprimentos alimentares para a produção de frango, boi e porco em regime de confinamento. A soja é um exemplo emblemático disso. Seu cultivo saiu do Rio Grande do Sul e do Paraná, entrou pelo Cerrado, tomou o Maranhão e agora corre para dentro da Amazônia, seguindo a rodovia Cuiabá-Santarém. A soja já chegou em todo o baixo Amazonas. A devastação toma boa parte da mata nativa dos municípios do sul paraense. Na cidade de Monte Alegre, todos os candidatos a prefeito tiveram como plataforma política o combate ao avanço do plantio de soja. Oposição e situação se aliaram para enfrentar os gaúchos, a forma como o pessoal chama os plantadores de soja. E não vemos nenhuma medida do governo para conter isso.
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SEGUNDO CADERNO GRITO CONTINENTAL
Movimentos protestam contra exclusão N
a sua sexta edição, o Grito dos Excluídos Continental ecoa ainda mais pelos quatro cantos das Américas e do Caribe. É essa a avaliação dos organizadores, após um balanço provisório da iniciativa que, este ano, aconteceu em 23 países. “Nunca recebemos tantas manifestações de apoio e interesse pelo movimento como nos últimos dois anos”, afirma Luiz Bassegio, da Secretaria Continental, que representa dezenas de movimentos sociais do campo e da cidade. Segundo ele, cada vez mais a proposta do Grito é compreendida e aceita pelos diversos movimentos e redes que “lutam por uma nova sociedade, justa, solidária e sustentável”. As manifestações tiveram início dia 12 e, em alguns países, se estendem por todo o mês. Alvos comuns dos protestos são a militarização do continente e os Tratados de Livre Comércio (TLCs) entre os Estados Unidos e alguns países. Os movimentos sociais criticam o fortalecimento do Plano Colômbia e os investimentos em bases militares na região, com um aporte de mais de 800 milhões de dólares ao Comando Sul, departamento das forças armadas dos EUA responsável pelas Américas do Sul e Central e que atua em 31 países da América Latina e do Caribe. No plano econômico, os TLCs Andino (EUA, Peru, Equador, Colômbia e Bolívia) e da América Central (Cafta – EUA, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e República Dominicana) representam uma estratégia adotada pelos EUA para amarrar vários países latino-americanos a acordos e legislações supranacionais que, na prática, implementariam as bases da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), cujas negociações andaram emperrando em função de desacordos entre as partes. Eles se caracterizam por uma série de demandas de abertura dos mercados de serviços e agrícola, mudanças nas leis de propriedade intelectual e acesso aos recursos naturais dos países latinos, em troca de uma promessa duvidosa
Na manifestação do Grito dos Excluídos, salvadorenhos bloquearam estradas para protestar contra os Tratados de Livre Comércio e a Alca
de abertura relativa do mercado estadunidense.
capital do país, para iniciar o abaixo-assinado.
ABAIXO-ASSINADO
GREVE GERAL
No atual estágio das negociações, com o TLC Andino em plena discussão e o Cafta esperando apenas a ratificação dos países-membros, o grande desafio dos movimentos é, por um lado, mobilizar a opinião pública e, por outro, tentar brecar ou interferir nos processos junto aos governos nacionais. Neste sentido, no Peru os movimentos sociais obtiveram uma primeira vitória com a autorização da Secretaria Nacional de Processos Eleitorais para realizar uma coleta de assinaturas que devem solicitar ao Congresso Nacional uma consulta popular sobre a ratificação do TLC Andino pelo país. No dia 12, a Campanha Nacional contra a Alca e o TLC fez uma grande mobilização na praça 12 de Maio, em Lima,
O mesmo ocorreu em Quito, capital do Equador, apesar de, no caso, a coleta de assinaturas não ser “oficial”. Por outro lado, a campanha pela consulta popular sobre o TLC está sendo encabeçada pelo prefeito de Quito, pela coordenação da Confederação das Nacionalidades Indígenas (Conaie), maior entidade indígena do país, e pela associação dos laboratórios farmacêuticos, entre outros. Já a Coalizão Democrática
DIREITOS HUMANOS
Assassinado líder rural colombiano Evandro Bonfim de Fortaleza (CE) Permanece sem pistas o assassinato do vice-presidente da Associação Camponesa de Arauca (ACA), Pedro Jaime Mosquera. O ativista foi encontrado morto, dia 6, na fronteira da Colômbia com a Venezuela, país onde tinha se refugiado devido a perseguições do Departamento Administrativo de Segurança (DAS) na sua terra natal. Segundo a associação camponesa, o corpo de Mosquera apresenta marcas de tortura, porém não existem outras evidências que esclareçam as circunstâncias da morte. No mesmo dia, ocorreu a execução extrajudicial de outros três líderes camponeses na região de Arauca, na própria Colômbia, e o aumento do número de paramilitares colombianos na fronteira com a Venezuela. Antes de morrer, o dirigente camponês tinha sido alvo de 17 detenções arbitrárias nos últimos dois anos, até que resolveu fugir para a Venezuela ao ser acusado do delito de rebelião. Então, a perseguição oficial se voltou contra a família de Mosquera, que teve um irmão preso sem ordem judicial.
“Esta grave ocorrência se constitui num ataque a mais contra a população camponesa do departamento de Arauca, e especificamente contra os dirigentes da ACA, organização que vem sendo vítima de uma terrível perseguição por parte dos organismos repressivos do Estado”, denuncia a associação. Os movimentos sociais colombianos, sobretudo camponeses, sindicalistas e de defesa dos direitos humanos, estão sendo acusados de colaborar com a guerrilha. No entanto, organizações como a Federação Nacional Unitária Agropecuária (Fensuagro), à qual a associação camponesa de Arauca é filiada, adverte que essas calúnias obedecem a um propósito bem especifico do governo. “Muitos camponeses filiados à federação e centenas de seus líderes nacionais foram ameaçados, outros estão desaparecidos e muitos foram massacrados. Querem aterrorizar e deter a luta pela terra, os direitos e a resistência social, limpando o caminho para os esquadrões da morte e os megaprojetos neoliberais das transnacionais estadunidenses”, proclama a associação.
colombiana (formada pelas três centrais sindicais, aposentados do país, por professores, associações de consumidores, trabalhadores rurais e outros movimentos sociais e políticos), conclamou para, dia 12, uma greve geral contra as negociações do TLC, a reforma tributária nacional (que pretende elevar o índice do ICM sobre os produtos da cesta básica), a reforma constitucional (que visa possibilitar a reeleição do atual presidente, Alvaro Uribe), e os assassinatos de lideres comunitários e sindicais que, segundo o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, já
vitimaram mais de 100 pessoas este ano. Na Bolívia, os movimentos sociais organizaram o 3º Encontro Boliviano contra a Alca e o TLC, contando com mais de 450 representantes de organizações de todo o país. As mobilizações para outubro pretendem, além do protesto contra o TLC Andino, realizar uma série de atividades vinculadas à luta contra a privatização dos derivados do petróleo, que estourou em outubro do ano passado. (Com agências Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br, e Adital, www.adital.org.br
LIVRE COMÉRCIO
Manifestação irreverente contra acordo lesivo ao Mercosul Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro (RJ) No dia 9, o calçadão da Avenida Atlântica, na praia de Copacabana, em frente ao tradicional Hotel Copacabana Palace, na cidade do Rio de Janeiro, foi palco de um protesto pacífico e irreverente contra as negociações do acordo que envolve o Mercosul e a União Européia. Enquanto no interior do hotel o ministro do Exterior, Celso Amorim, se reunia com os chanceleres do Mercosul, do lado de fora dez frangos comendo milho compunham o cenário em que os manifestantes gritavam: “Não trocamos frango e soja por soberania”. A manifestação foi promovida por diversas organizações sociais, entre elas o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a Coordenação dos Movimentos Sociais, a Central de Movimentos Populares, a Via Campesina e representantes de agremiações estudantis. Amorim e demais ministros discutiam, a portas fechadas, uma contraproposta apresentada pela União Européia ao Mercosul. A economista Sandra Quintela, coordenadora da Campanha contra a Alca, no Rio, conseguiu entregar a Amorim um documento que questiona o acordo. Segundo ela, o ministro se colocou à disposição para receber sugestões a serem apresentadas em próximos encontros com os delegados da União Européia. Os organizadores do protesto
Mario Augusto Jakobskind
da Redação
Yuri Cortez/AFP
Manifestações em 23 países das Américas e do Caribe alertam para o perigo dos acordos de livre comércio
No protesto simbólico: “Não trocamos frango e soja por soberania”
explicaram que os frangos e os grãos de milho simbolizam a cadeia alimentar do povo brasileiro, que será o grande perdedor, junto com os povos vizinhos, no caso de um acordo. “O milho é a comida tradicional de nossas populações, logo símbolo de nossa soberania alimentar. As galinhas, porque são justamente um dos fatores em negociação”, afirmou Quintela. A Europa, segundo analistas, tem pressa em celebrar o acordo com o Mercosul. É que o mandato do presidente da Comissão Européia, Romano Prodi, e de
seus comissários, expira no dia 31, quando uma nova equipe assumirá as negociações. Por esse motivo, há pressa em se fechar um acordo antes dessa data. Entre alguns pontos de discordância estão o acesso a setores de prestação de serviços financeiros e de telecomunicações, proteção de patentes, melhores oportunidades de contratos governamentais para empresas européias e a quantidade de produtos agrícolas vendidos no exterior pelos sul-americanos. (Colaboraram Zussele Hamoniviqs e Daniel Ribas)
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AMÉRICA LATINA VENEZUELA
Continuam proibidas demissões sem motivo Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)
A
s demissões sem justa causa continuam proibidas na Venezuela. O Ministério do Trabalho anunciou, dia 30 de setembro, a extensão, até março de 2005, do decreto que ampara os trabalhadores que recebem salário de até 600 mil bolívares (cerca de R$ 900). A medida, em vigor desde abril de 2002, foi criada para conter as demissões em massa provocadas pelos empresários alinhados com a oposição, que pretendiam criar instabilidade no país e promover o derrocamento do presidente da República, Hugo Chávez. O benefício atinge diretamente cerca de 35% dos assalariados. “A intenção é proteger os trabalhadores mais vulneráveis”, afirma a ministra Maria Cristina Iglesias. Apesar de não contemplar a proposta da União Nacional dos Trabalhadores (UNT), que pleiteava o teto de 800 mil bolívares (cerca de R$ 1.200), a medida foi comemorada pelos trabalhadores. “É muito importante porque nos dá estabilidade. Antes, quando se completavam seis meses de trabalho, as empresas demitiam para não ter que pagar os benefícios”, afirma Valdemar Alvarez, da direção do Sindicato Único dos Trabalhadores da Indústria Siderúrgica
Juan Barreto/AFP
Até março de 2005, quem ganha até 600 mil bolívares (cerca de R$ 900) não pode ser dispensado sem justa causa
Trabalhadores da estatal petroleira PDVA marcham em defesa da soberania nacional
(Sutis). “Ficavámos nas mãos das transnacionais, que demitiam para atacar o governo e aumentar o número de desempregados no país”, diz Alvarez. O decreto dá poderes ao Ministério do Trabalho para avaliar se as demissões são ou não legais. No entanto, de acordo com Pedro Eusse, da direção da Central Unitária de Trabalhadores da Venezuela
(Cutv), muitos trabalhadores deixam de ser amparados pela lei devido à morosidade no julgamento dos casos. “As empresas continuam demitindo porque o ministério não tem capacidade de julgar. Não basta prorrogar a lei, é preciso criar condições para que ela se efetive”, avalia Eusse. Nas semanas que anteciparam as discussões sobre a extensão do decreto, a UNT alertou
ter recebido uma série de denúncias de trabalhadores dos setores bancários e do comércio, os quais estavam sob ameaça de demissão assim que terminasse a vigência do decreto.
CAMISA DE FORÇA O setor empresarial criticou a decisão. Para a presidenta da Fedecámaras, Albis Muñoz, a extensão
do decreto é uma “falta de respeito com o setor empresarial”. Ela alega que a medida trará “conseqüências políticas e econômicas”. “Essa é uma camisa de força que prejudica ainda mais os trabalhadores e impede mudanças internas nas empresas”, disse Albis. No que se refere ao crescimento econômico, os empresários não têm o que temer. De acordo com o Banco Central, a economia deve crescer 10% este ano, o maior índice da América Latina. Em um país onde mais de 50% dos trabalhadores estão ligados à economia informal e o índice de desemprego é de 2% (abril 2004), o advogado trabalhista Francisco Iturraspe avalia que o governo não pode adotar medidas emergenciais como políticas permanentes. “Foi necessário conter as demissões no período de crise política. Agora é necessário criar uma política de pleno emprego e de melhoria das condições de trabalho”, afirma Iturraspe. Para o advogado, é preciso fazer um pacto nacional entre governo e empresários para garantir a proteção dos trabalhadores, a melhoria das condições de trabalho e a geração de empregos. “O pior inimigo do trabalhador são as filas de operários dispostos a se submeter às precárias condições de trabalho, com salários ainda mais baixos, porque não têm alternativa”, avalia Iturraspe.
Beto Almeida de Brasília (DF) Dentro do processo de integração econômica e política da América do Sul propugnado pelo presidente Hugo Chávez, da Venezuela, são indispensáveis também ações concretas para uma integração cultural, na qual os povos se reconheçam, reconhecendo a história e o presente de cada nação. O raciocínio é da jornalista Blanca Eerkout, diretora-presidente da ViVe TV, emissora cultural e educativa venezuelana, criada pelo governo. De passagem por Brasília, ao participar como conferencista do Festival da América do Sul, em Corumbá (MS), ela concedeu entrevista à TV Comunitária de Brasília, a partir da qual registramos algumas de suas declarações. A nova emissora estatal venezuelana, que completa um ano, surge “em meio à terrível guerra midiática lançada pelas grandes empresas de comunicação contra o governo Chávez, especialmente para impedir as transformações socioeconômicas que derrubam privilégios das classes ricas”, diz Blanca. Ela explica que, diante de um gigantesco processo de mudanças sociais, econômicas e políticas, o governo se viu cercado por um verdadeiro bloqueio da mídia, que impedia a população de tomar conhecimento do que realmente se passa no país. “As transformações foram ocultadas pela grande mídia comercial”, avalia Blanca, lembrando que, como a única TV nas mãos do governo, o Canal 8 era obrigado a responder aos ataques da oposição, sem oportunidade de uma ação comunicativa destinada a elevar política e culturalmente o povo venezuelano.
COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA Blanca define a ViVe TV como uma janela dentro de uma política de comunicação que também objetiva legalizar e consolidar os meios de comunicação comunitários, que estão recebendo apoio do governo para a compra de equipamentos e, inclusive, para a utilização de horários de satélites, de modo a ampliar seu alcance. “Era imprescindível dar visibilidade a esse país
Luis Acosta/AFP
Jornalista defende integração cultural na AL
O presidente Chávez em entrevista televisiva no programa Alô Presidente conta com boa audiência e convida a população à vigilância sobre o próprio governo
em transformações, mostrando o trabalho dos campesinos construindo a Lei de Terras (uma espécie de transformação agrária aprovada pelo parlamento), mostrando como avançam as comunidades afrodescendentes, pois a grande mídia privada apenas mostra a furiosa campanha de oposição das elites contra Chávez”, conta. A criação da ViVe TV não é, entretanto, a única mudança no painel da comunicação social no país que viu um golpe de Estado confessamente desfechado pela mídia, muito embora não haja nenhum jornalista preso ou processado em razão de suas deliberadas conclamações à ruptura da legalidade democrática ou em razão das ofensas ao presidente da República, difundidas em grande escala, algumas até de caráter racista, dada sua característica mestiça. Também vigora uma Lei de Responsabilidade Social dos Meios de Comunicação, que garante a participação social das comunidades e incentiva a produção
nacional. “Com a nova lei estamos desenvolvendo o conceito de controladoria pública, não estatal, dos meios de comunicação. Algo essencial, pois os meios são um poderio imenso, seja como poder econômico, político e também ideológico, que não deve estar à margem do controle social, em que a cidadania não possa participar”, argumenta a jornalista venezuelana.
DOCUMENTÁRIOS Uma outra mudança na área da comunicação na Venezuela é a criação da Escola Popular de Documentários Latino-Americana, destinada a preparar documentaristas dentro de uma visão libertadora da comunicação. O objetivo é mostrar os povos de toda a América Latina em suas lutas de libertação. Blanca informa que este ano a ViVe TV já exibiu uma grande quantidade de audiovisuais de toda a América Latina, inclusive vídeos que reportam a luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST), quando as TVs venezuelanas costumam exibir audiovisuais estadunidenses. Convênios de cooperação já foram firmados com o Canal 7, da Argentina, com a TV Pública do Uruguai. Também está em andamento um convênio de cooperação com a TV Comunitária de Brasília, embora já haja troca informal de vídeos entre as emissoras. Blanca informou ainda que a ViVe TV transmitiu por satélite o Fórum Social das Américas, realizado em julho, em Quito, disponibilizando o sinal televisivo para qualquer emissora interessada em reproduzi-lo, gratuitamente.
O COMUNICADOR Quem conhece presidentes da República que dialogam com o seu povo ao vivo pela TV e pelo rádio, às vezes durante 5 ou 6 horas, interrompendo para cantar uma canção revolucionária folclórica, ou mesmo o hino nacional? Hugo Chávez faz isso e, para desespero
da oposição, o programa Alô Presidente tem uma boa audiência, informa Blanca. “Como um portavoz do processo de transformações, Chávez elevou a linguagem popular, que é o seu jeito popular de comunicar, à estatura de governo. Ele identifica as raízes campesinas, indígenas e afro-descendentes, ao mesmo tempo que conclama o povo à participação, à vigilância popular sobre o seu próprio governo. Ele canta e se comunica com alegria, rompendo com o formalismo que sempre cercou os atos de governo”, explica Blanca. A cada domingo o programa é realizado a partir de uma região da Venezuela, seja numa zona pesqueira, numa área de comunidade afro-descendente ou indígena, em um lugar que no passado foi palco de um episódio da história, ou onde nasceu ou morreu um herói da pátria. “Desse modo Chávez vai expandindo a visão das pessoas, sua consciência sobre a história”, diz a jornalista.
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INTERNACIONAL ESTADOS UNIDOS
De novo, corrupção pode beneficiar Bush Gianluca Iazzolino de Washington (EUA)
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o próximo dia 2 de novembro, os estadunidenses decidem se vão dar um voto de confiança a George W. Bush e à sua guerra infinita contra o terror, ou se vão colocá-lo para fora da Casa Branca. O adversário nas eleições, o democrata John Kerry, favorável a uma política multilateral sobre questões internacionais e a devolver às Nações Unidas o respeito que Bush lhe negou, ultrapassou o presidente na última sondagem, dia 11. Sobre as eleições, porém, paira o fantasma de 2000, quando o “berço da democracia”, como os políticos estadunidenses costumam considerar o seu próprio país, foi envolvido pelo escândalo de um escrutínio bastante nebuloso. E a poucas semanas das eleições 2004, o alarme volta a soar, por causa do risco de repetição de 2000. Nesse sentido, as atenções se voltam para a Flórida. É que ali, em novembro de 2000, começou o grande imbróglio, revelando toda a fragilidade de um sistema mais complexo do que aparenta ser. O fato é que, quem elege o presidente dos Estados Unidos, não são os eleitores, mas um grupo de Grandes Eleitores. Todos os 50 Estados da federação têm um número de Grandes Eleitores igual ao de senadores (dois por Estado), mais o de deputados, que varia de acordo com a população do Estado (de três, para cada um dos Estados menos populosos, aos 53 da Califórnia, o Estado com maior número de habitantes).
FORA DO AR São 538 Grandes Eleitores nos Estados Unidos, por isso o vencedor deve ter pelo meno 270 votos. O Estado em que um candidado é vitorioso entrega a ele todos os
Spencer Platt/ Getty Images/AFP
Observadores internacionais europeus vão monitorar eleições, mas declaram que o sistema ainda não está pronto
Protesto contra a política terrorista de Bush e a tentativa de reeleição; segundo os próprios estadunidenses, o “berço da democracia” continua em perigo
votos dos seus Grandes Eleitores, que se reúnem em dezembro para proclamar oficialmente o candidato vencedor. O fato é que os números podem causar danos, como aconteceu em 2000. Naquela ocasião, o adversário de Bush, Al Gore, obteve um total de votos maior do que o republicano, mas menos Grandes Eleitores, justamente por causa da Flórida. O que aconteceu, de fato? A Flórida (governada pelo irmão de Bush) utiliza o voto eletrônico, mas o sistema ficou fora do ar, e a comissão eleitoral teve de imprimir todas as cédulas e fazer a contagem manual.
A esses votos somaram-se os enviados pelo correio, dos militares ou civis espalhados pelo mundo.
CAOS, OUTRA VEZ? A diferença entre Bush e Gore revelou-se mínima, até porque muitas cédulas foram anuladas por diversos motivos. A Corte Suprema dos Estados Unidas (dirigida pelo juiz William Rehnquist, conservador e de orientação republicana) decidiu pela vitória de Bush. Na contagem manual, Bush recebeu, na Flórida, 2.912.790 votos, enquanto Gore 2.912.253. Em todo o país, Bush ficou com 47,87%, e Gore, com 48,38%. De-
pois da decisão da Corte Suprema, Bush garantiu todos os 25 Grandes Eleitores da Flórida e, assim, ficou com um total de 271, contra os 267 de Gore. Apesar de ganhar menos votos da população, Bush venceu as eleições.
URNAS FALHAS Muitos, hoje, pensam que em 2 de novembro o caos pode se repetir. Porque a diferença entre Bush e Kerry é mínima, e porque os problemas ainda não foram resolvidos. A começar pelo voto eletrônico. “Na Flórida, não há requisitos de base internacional para se fazer uma eleição”, escreveu no jornal Washington
Post, Jimmy Carter, ex-presidente democrata e Nobel da Paz. As urnas eletrônicas ainda apresentam problemas técnicos e o próprio Carter acusa de “imparcialidade política” Glenda Hood, secretária de Estado da Flórida, responsável pelo processo eleitoral e amiga da família Bush. Observadores internacionais da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OCSE), convidados pela Casa Branca a pedido do Partido Democrata, vão monitorar as eleições. Em setembro, eles divulgaram um dossiê em que afirmam que o sistema não está pronto para as eleições.
ANÁLISE
A regressão do trabalho na Europa As últimas semanas de agosto foram carregadas de péssimas notícias para os trabalhadores provenientes da Europa. No território de origem do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), a burguesia acelerou sua ofensiva contra históricas conquistas da civilização. O pretexto usado pelo capital é de que a globalização exige maior competitividade das empresas, e que os direitos existentes engessam a disputa por mercados. Outro argumento é que a inovação tecnológica, na era da revolução informacional, requer uma mão-de-obra mais flexível e torna obsoleta toda a regulamentação erguida nas últimas décadas. Puros engodos! Em última instância, estas notícias confirmam que o sistema capitalista não tem mais nada a oferecer à humanidade e que ele, inevitavelmente, conduz os povos, inclusive do coração do sistema, à pura barbárie. O prometido paraíso das novas tecnologias salta aos olhos como triste falácia. Apropriadas pela minoria burguesa, essas inovações servem apenas para reduzir custos e aumentar a produtividade, desempregando milhões e elevando a lucratividade do capital. Já a badalada globalização, sob hegemonia neoliberal, gera recessão, concorrência entre os explorados e transferência de renda do trabalho para a ditadura financeira. Do ponto de vista imediato, tais notícias reforçam a necessidade de se intensificar a resistência ativa dos trabalhadores. No caso brasileiro, essa onda regressiva e destrutiva serve de alerta no momento em que
se inicia o arriscado debate sobre a reforma trabalhista. A burguesia, evidentemente, usará o exemplo europeu para se opor a qualquer avanço legal no país. Além de satanizar a proposta da redução da jornada, pregará descaradamente a flexibilização dos direitos existentes. Ela alegará que a legislação atual fere a lógica do “deus mercado” e inviabiliza a capacidade competitiva do país; e, inclusive, poderá apelar para o falso discurso da união nacional, acima dos interesses de classes, em defesa do Brasil! A batalha será titânica!
europeus terão que trabalhar mais horas por dia, e ganhar menos, para que seus países sejam mais competitivos e se adaptem à globalização, segundo as medidas impulsionadas por grandes empresas, aprovadas por alguns governos e negociadas em certos casos por sindicatos”.
Eric Feferberg/AFP
Altamiro Borges
RETROCESSO CRUEL
Protesto na França contra desemprego
SALÁRIO X TRABALHO Feito o alerta, vamos aos fatos deprimentes! Em agosto, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou o seu relatório anual sobre a Europa. Após projetar um crescimento de 2% no PIB em 2004, este organismo do capital fez questão de registrar que a economia ainda estaria deprimida “por culpa da inflexibilidade do seu mercado laboral”. Num desrespeito à soberania das nações, o informe orientou a União Européia (UE) “a ajudar na maior liberalização dos mercados de trabalho e a estimular o aumento do total anual de horas trabalhadas nos 12 países que usam o euro”. Segundo as estatísticas do FMI, os europeus trabalhariam menos do que os assalariados dos Estados Unidos, nação tida como a principal referência na flexibilização do trabalho. Após reconhecer que a legislação trabalhista é de competência de cada um dos Estados membros da UE, o FMI ainda teve a cara dura de sugerir a imediata aplicação dos
torniquetes financeiros fixados no Tratado de Maastricht para forçar os países a alterar as suas leis. “O principal objetivo estrutural na eurozona”, afirma o órgão, “é elevar o crescimento de longo prazo, em primeiro lugar reforçando os incentivos para o trabalho”. Como denuncia Juan Vigueras, ativista do Attac da Espanha, em outras palavras, o FMI propõe “cortar o seguro desemprego, as aposentadorias e as pensões públicas, e aumentar a jornada de trabalho”. O relatório do FMI, porém, não é um raio em céu azul. Como instância máxima do capital financeiro, esse organismo reflete os movimentos concretos da burguesia européia para golpear históricos direitos. Vários governos da UE já encaminharam propostas regressivas de reforma trabalhista; onde isso não ocorreu, as próprias corporações empresariais forçaram negociações que desrespeitam a legislação e anulam acordos coletivos. Para a especialista Alicia Fraerman, “os
Para impor esse cruel retrocesso, a burguesia “civilizada” da Europa ameaça com o abrupto deslocamento das empresas para os países com custos operacionais (salários e condições de trabalho) mais baixos. Essa foi a tática recente da Siemens, que ameaçou transferir a sua unidade de telefones celulares da Alemanha para a Hungria e, com isso, conseguiu forçar um acordo ampliando a jornada semanal de 35 para 40 horas, sem aumento de salário. Com essa chantagem, a poderosa multinacional cortou em 29% a sua folha de pagamento. Nesse diapasão, várias entidades patronais alemãs ousaram propor a introdução da jornada de 50 horas semanais “para evitar a transferência de empregos ao exterior” e o dirigente da Confederação do Comércio, Gerhard Handke, defendeu a redução das férias anuais, de 29 dias para uma semana. Esse é o mesmo estratagema usado por empresas francesas para sabotar a lei das 35 horas semanais sancionada pelo governo socialista de Lionel Jospin. Mesmo na Áustria, antes idílico paraíso do Welfare State, os empresários introduziram nas negociações coletivas desse ano a proposta da ampliação da jornada, sem elevação dos rendimentos. O mesmo ocorreu na Ho-
landa, na Dinamarca e na Bélgica, “onde a discussão alemã causa perplexidade”. Na maioria dos países europeus já ocorreu o aumento da jornada de trabalho, invertendo sua tendência histórica de queda. Na Alemanha, por exemplo, segundo o jornal Deutsche Welle, a média do trabalhador com carteira assinada é de 42 horas semanais - três vezes mais do que o fixado nos acordos coletivos. Além de ampliar o tempo de trabalho, um contra-senso na era da revolução informacional, a elite européia despede servidores públicos, reduz o seguro-desemprego, corta os adicionais de insalubridade e periculosidade e as bonificações de turno, e introduz o salário variável, entre outras medidas regressivas. No mês passado, o ministro da Economia da Grã-Bretanha, Gordon Brown, demitiu 104 mil funcionários do Estado. Na Alemanha, o primeiro-ministro Gerhard Schröder encaminhou o projeto de lei Hartz 4ª, reduzindo valor e prazo do seguro-desemprego. Antes, o desempregado recebia até 67% do último salário por um período de 32 meses; a partir de janeiro próximo, o subsídio só valerá por 12 meses e depois terá 30% do seu valor. Segundo o jornal Avante, estima-se que 3,2 milhões de pessoas sofreram drástica redução do rendimento. Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e organizador do livro A reforma sindical e trabalhista no governo Lula (Editora Anita Garibaldi)
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INTERNACIONAL ÁFRICA
Sai primeiro Nobel para mulher africana da Redação
recebeu a notícia em Nyeri, cidade onde vive, na região central do Quênia. No final dos anos 70, ela criou uma campanha de combate à destruição das florestas africanas chamada Movimento Cinturão Verde, formado principalmente por mulheres, que já plantou mais de 30 milhões de árvores África afora. O movimento desenvolve projetos de preservação da biodiversidade, educação ambiental e promoção dos direitos de mulheres e crianças. Wangari Maathai também se destacou por sua participação ativa no Jubileu 2000, movimento africano de luta contra o pagamento da dívida externa dos países do continente. E nos anos 70, trabalhou
P
ela primeira vez um Prêmio Nobel será entregue a uma mulher negro-africana. A professora universitária, parlamentarista e ambientalista queniana Wangari Maathai, 64 anos, foi a escolhida para ganhar o Nobel da Paz por sua atuação no campo da ecologia e dos direitos humanos. O nome da ambientalista estava entre os de 194 candidatos. O Prêmio será entregue em Oslo, capital da Noruega, no dia 10 de dezembro, e inclui cheque no valor de 1,3 milhão de dólares. O resultado foi anunciado no dia 8, para surpresa de Maathai, que
na Cruz Vermelha do Quênia e foi membro do Conselho de Desarmamento das Nações Unidas. Maathai foi perseguida e presa pelo regime do ditador Daniel Arap Moi (1978-2002), um dos mais corruptos da África, por sair em defesa de um dos principais parques do Quênia, o Uhuru Park, onde Moi quis derrubar milhares de árvores para construir um prédio de 60 andares. O feito rendeu-lhe fama internacional. A ambientalista, conhecida como “A Mulher-Árvore”, já recebeu diversos prêmios de renome, entre os quais. O Mulher Mundo, em 1989; Heroína do Mundo, no mesmo ano, além de ter sido incluída na “Calçada da Fama” em 1995.
Simon Maina/AFP
Wangari Maathai, ativista do meio ambiente e dos direitos humanos, foi escolhida para o prêmio na categoria da Paz
Wangari Maathai integra movimento contra o pagamento da dívida externa
Fotos: Save the Elephants
Os homens azuis do deserto Roberto Correa Wilson de Buenos Aires (Argentina) Os tuaregues são um dos povos africanos cuja vida é mais rodeada de mitos. Sua existência nômade há mais de mil anos transformou-os em uma lenda no deserto do Saara, o maior do mundo. Esse grupo é de raça berbere, mas de abundante mestiçagem com negros sudaneses. Caracterizam-se por possuir estatura elevada, pele morena e olhos escuros. O apelido de “homens azuis” vem da cor anil do véu que lhes cobre a cabeça e o rosto, deixando-lhes a cara com essa tonalidade. O território que serve historicamente de habitat tradicional dos tuaregues, o Azawad, compreende amplas extensões no sul da Argélia e da Líbia, no oeste do Níger, no norte de Burkina Fasso e no leste do Mali. A história dos tuaregues só é conhecida pelos textos de antigos cronistas árabes, que os localizaram originariamente no norte da África. Depois, eles foram se espalhando paulatinamente até o deserto do Saara. No século 15, converteram-se à fé muçulmana – embora ainda mantenham numerosas crenças animistas e tenham desenvolvido uma cultura nômade baseada na criação e no comércio de gado –, mas nunca se constituíram em entidade política centralizada. Até o século 19, os tuaregues não conheciam as fronteiras entre nações; e desenvolviam sua atividade de comércio e criação de gado livremente na imensa região de 1,5 milhão de quilômetros quadrados. O núcleo mínimo de organização dos tuaregues é o acampamento, composto geralmente por umas cinco ou seis famílias. A divisão reúne entre 10 e 20 acampamentos. O maior grau de organização é a confederação, que unifica várias divisões sob a direção de um líder.
dência de seu território tradicional, o Azwad, além de maior participação na ajuda internacional para o desenvolvimento, que ambos os países recebiam. A repressão foi terrível. Milhares de tuaregues morreram durante os enfrentamentos armados; seus poços de água foram envenenados, os acampamentos arrasados, enquanto muitas famílias fugiram da guerra, espalhando-se pelos países fronteiriços. O conflito armado com Mali e Níger terminou depois da assinatura de um pacto nacional de paz com os representantes governamentais. Os tuaregues começaram a voltar, mas a situação era crítica. As guerras e as fortes secas afetaram drasticamente os recursos hídricos, o que causou uma importante redução do gado, principal meio de sustento e do comércio.
ORGULHO LENDÁRIO
O apelido de “homens azuis” vem da cor anil do véu sobre a cabeça; os tuaregues sofrem com a seca e as guerras
Acompanham as caravanas, encarregam-se da educação dos filhos e são depositárias e transmissoras das tradições, da cultura e do alfabeto tuaregue, o titinah, (ou tifinar, semelhante ao dos líbios antigos) que não possui expressão literária. O traje dos homens consiste em uma grande túnica (jehab), de cor geralmente branca, e calças largas, presas com um cinturão de couro cinzelado. O turbante ou lithan é uma peça de tecido de quatro metros, que se enrola na cabeça e no rosto, deixando somente os olhos à vista. Tanto pano serve para manter a umidade no deserto. O estilo de vida nômade permite acumular poucos objetos, e exige que estes sejam úteis e leves. Por isso o artesanato tuaregue é pobre e pouco elaborado. A maior parte das peças é de couro tingido e cortado em tiras, com o qual as mulheres fabricam e enfeitam cintos, bolsas, chicotes e selas de montar. Cada tenda, que se constitui num lar, é construída com cerca de 20 a 30 peles de cabra ou ovelha,
MULHER TUAREGUE As mulheres tuaregues são bastante liberadas. De forte tradição matriarcal, a sociedade é monogâmica e concede às mulheres o direito sobre questões amorosas e a ter o controle sobre o lar. Ao contrário dos homens, elas têm o rosto descoberto e atrasam o casamento o máximo que podem, para manter sua independência.
tingidas de cor argila e presas com pedaços de madeira decorados com motivos geométricos. O Festival de Bianou, que é celebrado na antiga cidade tuaregue de Agades, no Níger, é um dos mais importantes da África muçulmana. O ato principal da festividade é a dança de homens vestidos de guerreiros carregando seu fuzis no alto; lembra as guerras islâmicas.
Na década dos anos de 1990, os tuaregues protagonizaram uma revolta armada contra os governos centrais do Mali e do Níger; o conflito durou seis anos contra o primeiro e três anos contra o segundo. Os tuaregues exigiam que seus direitos fundamentais fossem respeitados. Os rebelados queriam mais autonomia, inclusive a indepen-
Tal como ocorre há séculos, as caravanas de tuaregues continuam viajando entre as cidades do deserto como Agades e ou Blida, para comprar sal e outros produtos que depois negociam em outras regiões. Mas o progresso sem dúvida os afetou. A introdução de modernos caminhões no deserto diminuiu de certa forma o tráfico de caravanas de camelos. Mesmo nessas condições, os orgulhosos nômades tuaregues, o povo lendário que tem sido amo e senhor do Saara por séculos, não emigra. Cada um de seus gestos revela a íntima certeza de que o elemento essencial de sua cultura é ser um povo totalmente livre. (www.argenpress.info)
Mar Mediterrâneo
Marrocos Argélia
Saara Ocid.
Mauritânia
Mali na Fasso
Líbia
TERRITÓRIO TUAREGUE
Níger Chade Nigéria
Tenda tuaregue, tingida de argila, no deserto do Saara: estilo de vida nômade permite acumular poucos objetos
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AMBIENTE ENERGIA LIMPA
Greenpeace mostra fontes renováveis N
a manhã do dia 5, o Greenpeace lançou a Expedição Energia Positiva para o Brasil, que visa promover as fontes de energia renováveis e sustentáveis, demonstrando sua viabilidade técnica e a possibilidade de sua aplicação no cotidiano do cidadão comum brasileiro. As fontes renováveis de energia oferecem inúmeras vantagens em relação às energias sujas (nuclear, carvão mineral e petróleo), como: assegurar a sustentabilidade da geração de energia a longo prazo; reduzir as emissões atmosféricas de poluentes; criar novas oportunidades de empregos; e diminuir o desmatamento de nossas florestas. “O Brasil está pronto para substituir as energias sujas pelas renováveis, graças às inúmeras fontes energéticas disponíveis no país”, afirmou Sérgio Dialetachi, coordenador da Campanha de Energia do Greenpeace. Além disso, as energias renováveis são inesgotáveis, não agridem o ambiente e não provocam grandes impactos socioambientais. Entre as energias renováveis destacam-se: solar (fotovoltaica e térmica), biogás (de lixo ou esterco ou esgoto), biomassa (restos agrícolas, serragem, biodiesel, álcool e óleos in natura), eólica (vento) e pequenas centrais hidrelétricas. A expedição vai abordar ainda a eficiência energética.
ENERGIA POSITIVA A expedição, que utilizará uma carreta movida a biodiesel e óleos in natura para transportar um contêiner de 12 metros, percorrerá cerca de 14 mil quilômetros de estradas e contará com uma exposição multimídia sobre as energias renováveis dentro do contêiner. O caminhão já rodou 1.500 quilômetros em testes, vindo de Rio Negro no Paraná até São Paulo, atingindo a velocidade de 110km/h, com um rendimento de 4km/litro de biocombustível. Toda a eletricidade necessária para o funcionamento da exposição e das atividades a serem desenvolvidas durante o trajeto será proveniente de 24 placas fotovoltaicas que transformam a energia do sol, gerando 2400 watts de eletricidade – o suficiente para alimentar simul-
Lançamento da expedição Energia Positiva para o Brasil, em São Paulo: 21 Estados serão percorridos, durante 80 dias, para a promoção do potencial energético
taneamente dois computadores, um aparelho de TV, um DVD, um vídeo cassete, um Datashow e 12 lâmpadas fluorescentes. As placas estão fixadas na parte superior do próprio contêiner. Serão percorridos 21 Estados brasileiros, durante 80 dias, incluindo algumas das principais cidades do país e promovendo o potencial energético de cada região. Em novembro, durante a passagem da Expedição por Brasília, será entregue ao governo federal um dossiê produzido por especialistas a respeito do potencial das fontes renováveis de energia no Brasil, realçando o número de empregos que podem ser gerados e o volume de recursos que pode ser movimentado.
EXPOSIÇÃO NO CONTÊINER A exposição sobre energias renováveis estará aberta à visitação pública. Autoridades, personalidades e pesquisadores serão convidados a conhecer de perto o projeto.
MINAS GERAIS
Ambientalistas querem anular licença da Nestlé Evandro Bonfim de São Paulo (SP) Entidades ambientalistas reunidas no Fórum de ONGs do Circuito das Águas de Minas Gerais apresentaram, dia 5, pedido de anulação da licença ambiental concedida à multinacional do ramo alimentício Nestlé, para a exploração de fontes de água mineral na cidade de São Lourenço. Trata-se do mais novo confronto entre a Nestlé, que vem operando na região por meio de liminares judiciais, e a sociedade civil, que reclama das irregularidades legais e prejuízos ambientais promovidas pela empresa. O pedido de revogação da licença deve ser incluído na pauta da reunião ordinária da Comissão Estadual de Política Ambiental de Minas Gerais (Copam), que a princípio estaria dedicada apenas ao “termalismo, pois o órgão está evitando tratar do caso Nestlé”, comenta Cristiane Miguel, conselheira do próprio Copam. Os fundamentos da petição são inúmeros, e resumem o histórico de lutas de ecologistas contra a presença da multinacional na região. Primeira-
mente, está a lavra da água mineral danosa ao meio ambiente, feita apesar do indeferimento do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), responsável por este tipo de atividade. Depois, está o beneficiamento da água PuriLife, que envolve desmineralização e remineralização do líquido extraído de São Lourenço pela Nestlé, processo que permanece ilegal no país. Portanto, o parecer do DNPM apresentado pela Nestlé para obter a licença da Copam estaria baseado em disposições contrárias às normas brasileiras para a comercialização de água mineral. Alguns ativistas que desejam o fim das atividades da empresa no circuito mineiro das águas acreditam que esta autorização do DNPM tenha sido fraudada para favorecer a Nestlé. Outro ponto, no mínimo curioso, diz respeito à promessa feita pela Nestlé ao obter da Copam a licença para atuar em São Lourenço, de que sairia da cidade até dia 31 outubro de 2004. “Nesse caso, por que então a empresa quis conseguir essa licença de 8 anos?”, questiona Cristiane Miguel. (Adital, www.adital.com.br)
Atividades promocionais como passeios ciclísticos, demonstração de tecnologias que usam energias renováveis ou produção de biodiesel ocorrerão ao redor da carreta. Palestras para grupos de estudantes e encontros com organizações não-governamentais locais também serão realizadas no contêiner. Ao término da expedição, o contêiner e os equipamentos serão doados à Cooperativa Mista dos Produtores Extrativistas do Rio Iratapuru, comunidade localizada a 420 km de Macapá, no Amapá. Nesse local, existe uma pequena fábrica de extração de óleo de
castanha, cuja produção é vendida para a empresa de cosméticos Natura, que utiliza a matéria-prima na produção de sua linha Natura Ekos. O contêiner solar irá gerar energia para apoiar a atividade produtiva da comunidade. A escolha da Cooperativa Iratapuru também se deve à sua preocupação com a conservação do meio ambiente. A comunidade acaba de obter a certificação do FSC Brasil (Forest Stewardship Council), entidade internacional que audita os processos de manejo dos ativos da natureza, para garantir que sejam sustentáveis. A Natura, parceira
da comunidade, criou um fundo de desenvolvimento sustentável da comunidade, repassando 0,5% da receita líquida obtida com a venda dos produtos que utilizam a matéria-prima proveniente de Iratapuru. A expedição faz parte do projeto internacional Solar Container, concebido pelo Greenpeace, que prevê a instalação de contêineres navais, adaptados e equipados com placas fotovoltaicas em comunidades isoladas e sem acesso à rede elétrica, para que iniciem seu processo de desenvolvimento sustentável. (La Insignia, www.lainsignia.org)
CEARÁ
Carcinicultura devasta manguezais da Redação Atividades tradicionais da comunidade de Curral Velho, localizada no município de Acaraú (CE), como a pesca e a mariscada, estão sendo prejudicadas pela expansão desordenada e predatória da carcinicultura (criação de camarão em cativeiro). Nos últimos 40 anos, a carcinicultura devastou praticamente a metade dos manguezais no mundo, para atender à demanda dos países desenvolvidos – sobretudo Estados Unidos e Japão. A atividade começou na Ásia e se expandiu nos países de clima tropical. A Tailândia perdeu mais da metade do seu manguezal a partir de 1960, com uma produtividade de 3.421 kg/hectare. Nas Filipinas, em 70 anos, os mangues diminuíram de 448 mil para 110 mil hectares. No Equador, a perda do manguezal varia de 20% a 50%, com uma produtividade de 633 kg/hectare. Essa atividade é uma das mais lucrativas do Nordeste brasileiro, responsável pela exportação, em 2003, de cerca de 240 milhões de dólares, segundo a Associação Brasileira de Criadores de Camarão (ABCC). Nos últimos seis anos, a produção pulou de 3.600 para 90 mil toneladas, com crescimento de 45% a 50% ao ano. A produtividade média que passou de 600 kg/hectare, em 1990, para 5.458 kg/hectare, em 2002, colocou o Brasil como o maior produtor mundial de camarões.
Jarbas Oliveira/Folha Imagem
da Redação
Flávio Cannalonga/Greenpeace
Expedição com carreta movida a biodiesel percorre todos os Estados para mostrar alternativas energéticas sustentáveis
Cultivo de camarões em fazenda de Beberibe (CE)
sa atividade, que vem sendo desenvolvida de forma negligenciada no campo socioambiental. O despejo do efluente (esgoto) dos viveiros de camarão é realizado sem tratamento. Quanto maior a produtividade, mais poluído é o esgoto – um dos principais causadores dos impactos ambientais dessa atividade, uma vez que há uma considerável diminuição da fauna nas regiões em que os dejetos são lançados. A comunidade de Curral Velho tem uma relação de subsistência com a biodiversidade do ecossistema manguezal e corre o risco de ser expulsa das suas terras devido ao impacto causado pela indústria da carcinicultura. Organizada, a população vem combatendo essa atividade há cinco anos, com a ajuda de ambientalistas, estudantes, organizações não-governamentais e pesquisadores.
NEGLIGÊNCIA Mesmo considerado Área de Preservação Permanente (APP) desde a década de 60, pelo Código Florestal, o manguezal é vítima des-
ATENTADOS Em agosto, seguranças de uma empresa de cultivo de camarão atiraram contra os pescadores da
comunidade de Curral Velho. A ação dos pistoleiros da produtora de camarão Joli Aqüicultura deixou menores seriamente feridos e alguns pescadores presos. O conflito começou quando os pescadores descobriram uma escavação que estava sendo feita nas áreas que não pertencem à empresa. Pescadores e empresa tiveram um encontro onde chegaram a um acordo que garantia que não haveria mais nenhuma escavação nesse local – um dos principais pontos de pescas da comunidade de Curral Velho. Os pescadores foram baleados quando se dirigiram para a empresa, após descobrir o rompimento do acordo. Para Soraya Vanini, coordenadora do Instituto Terra Mar, esse é mais um exemplo claro da violência gerada pelo crescimento ilegal da carcinicultura no Estado do Ceará. “É um atentado não só contra o meio ambiente, mas contra o ser humano”, ressaltou. (Centro de Mídia Independente, www. midiaindependente.org e Adital, www.adital.com.br)
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DEBATE RUMOS DO GOVERNO
A batalha da lei de biossegurança nativas de araucária brasileira, uma espécie em grave risco de extinção. Como resolver o problema? O realismo diz que, agora, nada mais há que se fazer, afinal a barragem está quase pronta. Inventa-se um remendo para compensar a devastação da floresta de pinheiros. Mas se acontecer algo grave com os transgênicos, que dirá nosso realismo tardio?
Frei Sérgio Görgen questão dos transgênicos volta ao centro dos debates nacionais com a proximidade do plantio da soja e da aprovação da lei de biossegurança no Senado da República. É importante recuperar o centro do debate. O projeto de lei que estava em debate no Senado – resultado de uma ampla discussão do governo com as forças organizadas da sociedade – não é contrário à liberação dos transgênicos, muito menos limitador à continuidade das pesquisas sobre os mesmos. Apenas propunha condições básicas de biossegurança – salvaguardas de proteção à saúde humana e ao meio ambiente – como condição para a liberação comercial ou normas de uso quando aptos e liberados para uso comercial. O lobby das grandes indústrias multinacionais como apoio de alguns ingênuos de plantão (acompanhados de plantonistas nada ingênuos), é para liberar de forma indiscriminada, sem nenhum tipo de controle. Para isto defendem: 1. Todos os poderes à CTNBio; 2. Nenhum teste de campo em solo nacional; 3. Anulação da funções legais da Anvisa e do Ibama; 4. Nenhuma rotulagem; 5. Livre cobrança de royalties sem nenhum controle; 6. Porteiras abertas para as multinacionais monopolizarem as sementes e insumos agrícolas.
A
O FIM DO PRIMEIRO ENCANTO
Kipper
Não há mais grandes entusiasmos com a soja transgênica no Rio Grande do Sul. Ainda não começou o desencanto, mas não tem mais o encanto inicial. Os custos subiram. Navios voltaram. Os preços caíram. A eficácia do roundup diminui ano a ano. Novas pragas surgiram. Os pomares e hortas próximos da soja envenenada minguam. A transgênica sofreu mais com a estiagem. A cobrança de royalties era verdade e não invenção dos inimigos da tecnologia. A onda de fanatismo que cegou a tantos está dando lugar a uma avaliação mais serena e mais pé no chão. OS INTERESSES EM JOGO
Algumas multinacionais querem monopolizar de ponta a ponta as principais cadeias produtivas de alimentos, principalmente os grãos. O controle das sementes e dos insumos é estratégico para que estas poucas multinacionais alcancem seus objetivos. E o controle de sementes patenteadas e viciadas em venenos – como são as transgênicas – é o Ovo de Colombo para estas indústrias.
OS PODERES DA CTNBIO
A CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) é um colegiado de cientistas que se reúne esporadicamente para dar pareceres e emitir decisões sobre autorização de pesquisas e liberações comerciais de organismos geneticamente modificados, entre eles, os transgênicos. É uma comissão técnica, sem estrutura orgânica e administrativa para acompanhar testes ou mesmo se suas determinações estão sendo corretamente executadas. Seus membros não são remunerados e nem profissionalizados para o cumprimento das tarefas em tempo integral. Como um comitê de cientistas e especialistas em várias áreas do conhecimento afeitos à questão, seu parecer é muito importante à luz dos conhecimentos até então acumulados. Mas transferir-lhes poderes absolutos para decisões definitivas sobre uma tecnologia tão controversa como os transgênicos, sem a mínima estrutura de acompanhamentos, avaliação e fiscalização de campo, é uma aventura e uma temeridade, inclusive para os cientistas que a compõe. O MEDO DOS TESTES
Os transgênicos que hoje se quer liberar no Brasil foram “engenheirados” (produzidos em laboratório com técnicas de engenharia genética) em países do norte do planeta, a maioria nos Estados Unidos, em regiões de climas frios e pouca variabilidade biológica e utilizando material genético de bactérias e vírus adaptados a estes ambientes. Nosso clima é tropical e subtropical, nossa biodiversidade é enorme, a microbiologia de nossos solos é diferente e a interação entre os microorganismos também é diversa. Por isto que estes produtos precisam ser testados aqui, com testes sérios e independentes e avaliados com todo o pacote tecnológico e tratos culturais a que serão submetidos em estado real quando cultivados a campo. Não bastam os relatórios de lá e não bastam as informações
SOBERANIA NACIONAL
da empresa interessada. São insuficientes as informações dos cientistas pagos pelas empresas donas da tecnologia. Precisam ser testados por quem tem atribuição legal para tanto e se responsabiliza judicialmente pelo que escreve nos relatórios oficiais. E isto cabe, pela legislação brasileira, à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) no que tange à Saúde; ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) no que tange aos efeitos no solo, na água e na natureza em geral; ao Ministério da Agricultura no que tange à certificação das sementes e ao Ministério da Pesca no que tange a reprodução de peixes transgênicos. É difícil entender porque tanto medo destes testes em solo, clima e meio ambiente brasileiro. Será porque os próprios promotores dos transgênicos já sabem que há sérios problemas, aliás já alertados por inúmeros cientistas independentes em várias partes do mundo? Quem não deve, não teme. E onde tem fumaça, tem fogo. AVALIAÇÃO DE CAMPO
Pareceres formulados exclusivamente em escritórios ou em comissões técnicas enclausuradas podem ser enganosos. Vamos a um exemplo concreto. A Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) aprovou a construção da Barragem de Barra Grande, no Rio Pelotas, na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, próximo à cidade de Vacaria. No Estudo
Prévio de Impacto Ambiental – feito por uma empresa privada e sem conferência a campo por parte do órgão ambiental – nada foi detectado que impedisse a construção da barragem. A Aneel, baseada nos relatórios e sem fazer conferência dos dados a campo, licitou a construção. Agora, quando a barragem está quase pronta, técnicos do Ibama chamados ao local, descobriram lá 6.000 hectares de florestas
No polo oposto da dialética, uma nação com enorme potencial agrícola como o Brasil, tem que pautar seu desenvolvimento rural nas potencialidades de sua enorme agrobiodiversidade, em seus sistemas camponeses de produção e convivência com os agroecosistemas locais e na independência tecnológica, científica, industrial e comercial nesta área vital para nossa soberania e nosso desenvolvimento. O PAVOR DO RÓTULO
Parte da indústria de alimentos diz-se favorável aos transgênicos, mas foge do rótulo como o diabo da cruz. Mas se os transgênicos são tão bons e seguros, porque tanto medo do rótulo? Porque não fazem disto um mote propagandístico: “Coma transgênico, é seguro, saboroso e barato?” A rotulagem ainda não chegou
às prateleiras dos supermercados brasileiros, mesmo transformada em lei há mais de um ano. O MONSTRENGO DO SENADO
O projeto aprovado no Senado e que agora volta para ser discutido na Câmara dos Deputados só aumentou a confusão já existente. Além trazer de volta a questão das pesquisas com células-tronco embrionárias que nada tem a ver com transgênicos, anulou as funções do Ibama e da Anvisa, dispensou o Estudo Prévio de Impacto Ambiental e reforçou os poderes da CTNBio. Atendeu ao lobby das multinacionais e deixou o povo brasileiro desprotegido diante de uma tecnologia de risco. Os senadores, capitaneados por Ney Suassuna e Aloizio Mercadante, produziram um monstrengo transgênico que só vai aumentar a confusão jurídica e a falta de segurança da população. Mas o projeto de lei volta para a Câmara dos Deputados e a luta continua. A DISPUTA DE FUNDO
A luta é dura e será longa. A lei de biossegurança é só mais uma batalha. Não estamos disputando apenas o uso de um conhecimento e um instrumento tecnológico. O que está em disputa são dois modelos de desenvolvimento rural: um centrado no latifúndio, controlado pelos grandes grupos multinacionais, baseado nas monoculturas dependentes dos insumos químicos; o outro, centrado nas pequenas e média unidades de produção agropecuária, organizado em redes de cooperativas, agroindústrias locais, empresas nacionais, empresas públicas estratégicas e baseados na diversificação produtiva e em tecnologias orgânicas e agroecológicas. O primeiro aprofunda nossa dependência externa. O segundo fortalece o projeto nacional: de uma nação livre, soberana e justa, voltada ao bem-estar de seu próprio povo. Esta disputa de fundo é que guia as disputas imediatas. As multinacionais do agronegócio sabem o que querem e onde querem chegar. Os transgênicos são apenas mais uma importante frente de batalha para elas e para os que querem um Brasil soberano, com uma agricultura camponesa forte produzindo alimentos saudáveis e variados em grande quantidade para nossa população e para o mundo. Frei Sérgio Antônio Görgen é deputado estadual pelo PT do Rio Grande do Sul
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agenda@brasildefato.com.br
NACIONAL
JORNADAS DAS MULHERES ATIVISTAS 16 e 17 Organizadas pela Marcha Mundial das Mulheres de São Paulo, as jornadas convocam as mulheres sob o seguinte lema: “Se você não está contente: com o mundo machista em que vivemos, com a imagem-mercadoria que fizeram do nosso corpo, em ser agredida e ainda levar a culpa, em ter que engolir a desigualdade como se fosse natural, em ter que comprar coisas de que não precisa, em ser carne barata no mercado, com o seu salário menor que o do seu colega incompetente, em ter que ser passiva, parideira, heterossexual, branca de cabelo liso, alta e magra como uma modelo anoréxica, em ter que ser ao mesmo tempo a carregadora de piano e a cerejinha do bolo no seu próprio espaço de militância... Enfim, se você é das nossas... Não deixe de participar
LIVRO Suburbano Convicto O cotidiano do Itaim Paulista O segundo livro do escritor Alessandro Buzo traz um “romance de formação” sobre a trajetória de um morador do Itaim Paulista, bairro do autor, no extremo leste da cidade de São Paulo. A região é sempre lembrada pelos altos índices de violência, o que resume um pouco a vida na periferia. Mas Buzo procura ir além da catástrofe, fazendo um relato franco e bem-humorado em primeira pessoa. Com capa feita por Magu e imagens de vários fotógrafos, o romance tem prefácios dos rappers Sandrão e Helião, ex-componentes do grupo RZO. O livro tem 128 páginas e custa R$ 20 Mais informações: (11) 9419-6250, 6567-9379 alexandrebuzo@terra.com.br
BAHIA RODA DE CHORO até 29/12, todas as quartas, das 17h às 20h A reunião de chorinho, que acontece no Cabaré dos Novos, continua na programação musical de Salvador pelo quarto ano consecutivo. Toda quarta-feira, o grupo Mistura e Manda, formado por Elisa Goritzki (flauta), Juvino Alves (clarineta), Gerson Almeida (cavaquinho), Milton Candeias (violão 7 cordas) e Cacau (pandeiro), promove os Encontros com a Música Brasileira, que reúnem músicos e atraem os amantes da música nacional. Entrada a R$ 10 e R$ 5. Local: Teatro Vila Velha, Av. 7 de Setembro, Salvador Mais informações: (71) 336-1384
Sustentável e Democrático vem desenvolvendo, no âmbito do Programa Cone Sul e em interlocução periódica com os projetos Chile e Uruguai Sustentáveis, um estudo que visa a construção de um sistema de indicadores chamados de Linha de Dignidade. Esse estudo tem o objetivo de transcender os limites dos indicadores normalmente em uso, como as cestas básicas, as Linhas da Indigência e da Pobreza e, mesmo, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do PNUD. Local: Hotel Mirador, R. Toneleros, 338, Copacabana, Rio de Janeiro. Mais informações: (61) 3033-5535, coordenacao@fboms.org.br
RIO DE JANEIRO
RIO GRANDE DO SUL
SEMINÁRIO LINHA DE DIGNIDADE - CONSTRUINDO A SUSTENTABILIDADE E A CIDADANIA 2 a 5 de novembro Há quatro anos, o Projeto Brasil
LUPICÍNIO RODRIGUES - 90 ANOS Até 7 de novembro Em comemoração aos 90 anos que
Anderson Barbosa
AGENDA
das jornadas das mulheres ativistas”. Durante as Jornadas haverá debates e oficinas e uma ação na Avenida Paulista. Os temas que serão discutidos são feminismo e movimentos sociais. O debate e
as oficinas são só para mulheres, mas a ação na Paulista é aberta aos homens. As inscrições para as oficinas podem ser feitas pelo do telefone (11) 3819-3876, com Júlia ou Elaine
Local: Concentração em frente ao prédio da Gazeta, Av. Paulista, 900. Mais informações: (11) 3819-3876 jornadas@riseup.net
Lupicínio Rodrigues completaria dia 10 de setembro, está aberta uma exposição de partituras, fotos, textos, capas de discos e outros materiais do cantor e compositor. Entrada franca. Local: Casa de Cultura Mário Quintana, R. dos Andradas, 736, Porto Alegre Mais informações: (51) 3221-7147
ção Imprensa Social da Imesp, por indicação do Instituto da Mulher Negra. Os 15 artigos analisam, sob diferentes enfoques, a maneira como a imprensa brasileira vem abordando a questão racial. Entre outros temas, o tratamento dispensado a personagens negros (as) quando são notícia no rádio, na TV ou no jornalismo impresso, a cobertura de eventos como a Copa do Mundo de Futebol, o 4° centenário da morte de Zumbi, a Conferência Mundial de Durban e a presença dos afro-descendentes nas redações de jornais. Entre os colaboradores estão Muniz Sodré, António Sérgio Alfredo Guimarães, Cremilda Medina, Solange Couceiro, Antonia Aparecida Quintão, Ricardo Alexino e Fernando Conceição. O livro tem 190 páginas e custa R$ 15. Local: Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, R. Rego Freitas, 530, São Paulo Mais informações: (11) 3217-6299
2º ENCONTRO FUNARTE DOS TRABALHADORES DA CULTURA 18 a 20 O evento pretende discutir as regulamentações da área cultural, reunindo artistas, sindicatos, cooperativas e demais entidades do setor. As discussões, que serão orientadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, buscam estabelecer um modelo de legislação trabalhista que atenda aos novos parâmetros e conceitos na atuação do profissional da cultura. Além disso, o evento contará também com o lançamento do Fundo de Pensão para os Trabalhadores da Cultura (Culturaprev), uma ação do Ministério da Cultura, por meio da Funarte e do Ministério da Previdência Social. A presença do ministro Gilberto Gil no lançamento está confirmada. Mais informações: (11) 3662-5177, anna-junqueira@funarte.gov.br
SÃO PAULO LANÇAMENTO DE LIVRO ESPELHO INFIEL O NEGRO NO JORNALISMO BRASILEIRO 15, a partir das 19h Publicado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp), o livro é uma coletânea organizada por Flávio Carrança e Rosane da Silva Borges, como parte do trabalho da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Espelho Infiel foi incluído na cole-
PERSONALIDADES
da Redação Dia 9, em Porto Velho (RO), foi assassinado durante um assalto o sertanista e ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Apoena Meirelles. Nascido numa aldeia xavante, em Pimentel Barbosa (MT), desde cedo acompanhou o trabalho do pai também sertanista, Fernando Meirelles. Autor de um projeto de descentralização da Funai, Meirelles ocupou a presidência da instituição entre novembro de 1985 e maio de 1986. Acompanhou a luta de dezenas de povos indígenas e havia se aposentado na Funai. Convidado a voltar ao trabalho, ocupava o cargo de coordenador da região de Rondônia, onde possuía contatos com os povos Uruí, Soro e, especificamente, os Cinta-Larga do Estado e da reserva de Apurinã (MT). Meirelles estava em Rondônia com a missão de explicar aos CintaLarga a recente decisão do governo de fechar os garimpos da região. Ele trabalhava como coordenador da Operação Roosewelt, que pretendia encontrar os responsáveis pela chacina que vitimou 29 garimpeiros no início deste ano e encontrar uma solução viável para o problema da extração de diamantes. A Polícia Federal e a Polícia Civil de Rondônia investigam o caso e não descartam nenhuma hipótese. Segundo Edson Beiriz, administrador da Funai em Goiás, o trabalho que a fundação vinha desenvolvendo em Porto Velho na defesa dos direitos dos Cinta-Larga era perigoso. “É difícil prever à distância, mas eu não duvido de que o assassinato tenha alguma relação com isso”, afirma. (Com Agência Brasil www.radiobras.gov.br)
Gervásio Baptista/ABr
Defensor dos povos indígenas é assassinado
Filhos, lideranças políticas e indígenas prestam homenagem ao sertanista Apoena Meirelles, assassinado dia 9
Haiti perde um de seus principais intelectuais Blanche Petrich da Cidade do México (México) Morreu, dia 10, pouco depois do meio-dia, no Hospital Cira García, em Havana, Cuba, onde estava internado por pneumonia, o intelectual e militante haitiano Gerard Pierre-Charles, aos 68 anos. Ele influenciou lideranças de toda a América Latina, inclusive João Pedro Stedile, do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em Porto-Príncipe, capital do Haiti, amigos e inimigos o reconheceram como uma das figuras mais notáveis do país. Pierre-Charles nasceu em Jacmel, em 1935. Já na Juventude Operária Católica militava contra o tirano Papa Doc Duvalier. Em 1960 se exilou no México, onde organizou o Partido Unificado dos Comunistas Haitianos. Sempre foi
solidário com a Revolução Cubana. Lecionou na Universidade Nacional Autônoma do México. Em 1986, as mobilizações camponesas expulsaram o ditador Baby Doc. Com mulher e filhos, o ativista voltou para sua pátria, após 26 anos. Apoiou o presidente Jean-Bertrand Aristide, que, porém, contou com a ajuda de grupos paramilitares que tentaram assassinar Pierre-Charles.
Os Estados Unidos acabaram derrubando Aristide em fevereiro deste ano, instalando o terrível governo de transição. Assim, Pierre-Charles morreu em meio a mais uma situação de desespero em seu país – mas, como ele sempre foi imbatível em sua esperança, a homenagem fúnebre nas rádios de Porto-Príncipe foi a canção folclórica Haiti, mama cherie – “Haiti, mãe querida”.(La Jornada, www.jornada.unam.mx)
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CULTURA
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ARTE/ESCULTURA
A história de Belini Romano e sua sucata João Alexandre Peschanski de Mogi das Cruzes (SP)
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o meio da sala, dois montes de sucata. Rodeadas por quadros de pintores locais, as duas peças centrais causam estranhamento aos que visitam a 2ª Bienal das Artes do Alto Tietê, em Mogi das Cruzes (SP). “Tem gente que olha para as esculturas e não vê mais que sucata, e tem sucata para ver mesmo, mas tem mais e este algo a mais é o sentido da arte”, explica o sorridente artista plástico Belini Romano. “Corrupção” e “Ambição” são os nomes das obras que apresenta na exposição, “mas o título é um detalhe, pois o que importa é o que sente o público ao ver as esculturas”. Romano se define como um autodidata da arte. Ele fez sua primeira escultura, “O Brasil Através da Mecânica”, quando ainda era adolescente. A peça era composta por materiais que usava no dia-a-dia de seu emprego. Na época, trabalhava como ajudante de mecânico. Antes disto, conta, passou “muita necessidade”, trabalhando como engraxate para comprar livros escolares, e como vendedor no trem que vai de Mogi das Cruzes a São Paulo.
Fotos: João Peschanski
O artista plástico e operário aproveita o material, abundante na empresa onde é empregado, para criar suas esculturas
PROVOCAÇÕES Hoje, com 44 anos, ele diz que sua situação financeira melhorou. Trabalha desde 1986 em uma empresa da cidade. Sua função é inspecionar a sucata que é reaproveitada para fazer barras de aço. Durante seu turno, Romano aproveita para garimpar objetos que vai usar em suas esculturas. “A sucata é o material mais fácil para mim, e dificilmente uso outro. Tenho ainda muito a aprender no modo como devo trabalhá-la”, avalia. Romano confessa: “Muitas pessoas me provocam, dizendo que não faço arte, que tudo o que faço é juntar sucata”. Ele diz não se abalar com críticas, pois não pauta sua criação no que as outras pessoas acham bom, mas no que ele considera bom.
DOIS OLHARES Na empresa onde trabalha, Romano diz que cultiva dois tipos de olhar: o atento e preocupado, característico da responsabilidade de seu cargo, e o do artista, que define como sensível e criativo. “Todos podem mudar o modo como vêem as coisas, como faço, mas as pessoas estão tão preocupadas, que não conseguem achar tempo para a arte”, comenta. Segundo ele, o olhar artístico favorece até mesmo o trabalho, pois torna o empregado mais
Um dos destaques da 2ª Bienal das Artes do Alto Tietê, em Mogi das Cruzes (SP), o artista plástico e escultor Belini Romano se define como um autodidata da arte
atento aos ruídos das máquinas, à sua temperatura e movimento. Romano diz ter transmitido sua idéia dos dois tipos de olhar para sua obra “Ambição”. Nela, afirma, reuniu elementos considerados típicos do mundo do trabalho, como definir claramente um objetivo, e da criação, pois “os caminhos para o fim são tortuosos e estão em constante movimento”. De acordo com ele, “Ambição” mistura equilíbrio e harmonia, características que são realçadas pelas cores vibrantes – amarela e vermelha – da escultura.
SENTIMENTOS A mensagem da obra, salienta Romano, é mostrar que a ambição é positiva, desde que seja controlada. Diz: “As pessoas precisam encontrar seu objetivo, como ter uma casa ou montar uma família, e lutar por isto. Não adianta cruzar os braços e esperar”. Para ele, o valor da arte está em sua capacidade de comunicar idéias e sentimentos.
“Não creio que tenho algo para ensinar às pessoas, mas apenas sentimentos a transmitir. Não coloco em minhas obras experiências de minha vida, ou meus ensinamentos, pois acho que é muito pouco, quando se tem uma sociedade toda a nosso redor”, comenta o artista. Segundo ele, as dificuldades que enfrentou na vida lhe servem para ser teimoso e continuar fazendo arte, não “para dar lições de moral”.
APRENDIZADO Para Romano, todos têm a capacidade de ser artista, mas é preciso aprender a criar. “A rotina da arte é a educação do olhar e força de vontade”, comenta. Ele também destaca a importância de entender e reconhecer o trabalho de outros artistas, independentemente de suas áreas. Ele afirma que aprendeu a valorizar diferentes formas de expressão artística na faculdade de artes que cursou. Como estudante, entrou em contato com dois pintores que diz
adorar: o espanhol Salvador Dalí (1904-1989) e o brasileiro Cândido Portinari (1903-1962). A seu ver, muitos artistas conhecidos só ganham renome em função de uma boa estratégia de marketing. “É preciso reconhecer os que realmente fizeram uma diferença para o mundo”, afirma. O escultor acredita que a qualidade do grande artista é romper barreiras, sejam elas sociais ou morais, como “aqueles que ousam ir contra todas as crenças de uma sociedade, pois chegaram, pela arte, a outras crenças”.
VIDA DIFÍCIL Apesar de trabalhar em suas obras dezenas de horas por mês, Romano considera que não pode sustentar a si e sua família com a venda de esculturas. “Minha arte e eu sobrevivemos de minha profissão”, explica. Após seu horário de trabalho, das 7 às 17 horas, ele fica até as 20 ou 22 horas em um ateliê improvisado na empresa onde é empregado.
Para ele, a situação tem suas vantagens: “Se a arte fosse minha profissão, a forma de minhas obras seria outra, pois teria que fazê-las na obrigação. Seriam meu sustento, o meio para pagar minhas contas”. Ele pretende, um dia, dedicar-se apenas à arte. No entanto, fica desolado ao ver as dificuldades pelas quais passam os artistas, principalmente os de Mogi das Cruzes, que conhece mais. “Não têm dinheiro para comprar o mínimo necessário”, constata o artista, para quem esta situação é inadmissível. Por conta disto, conclui, muitas pessoas, com grande capacidade, abandonam o mundo da arte. (As obras de Belini Romano podem ser conferidas na 2ª Bienal de Artes do Alto Tietê, na R. Coronel Souza Franco, 993, em Mogi das Cruzes (SP). A exposição está aberta de segunda a domingo, das 9 às 21 horas, até o dia 23. A entrada é franca.)
Olhar as nuvens e descobrir as imagens As peças que o artista plástico Belini Romano usou na montagem de sua obra “Corrupção”, em exposição em Mogi das Cruzes (SP), foram encontradas nas milhares de toneladas de sucata que a empresa onde trabalha recebe por semana. Por dia, diz, tira um ou dois objetos. Segundo ele, encontrar as peças com valor artístico no meio das montanhas de sucata requer concentração, disciplina e sensibilidade. “Olhar o lixo ou a sucata é como olhar as nuvens. Numa delas, pode-se ver um gato, uma árvore, um dinossauro. Cada nuvem carrega uma imagem, que é diferentemente analisada por cada um de nós. Para ter acesso à imagem que traz a nuvem, é preciso estar com a mente aberta”, explica. Nas suas esculturas, aproveita todas as formas e tipos de sucata, principalmente as que “têm, em sua própria natureza, movimento”. Segundo ele, já encontrou objetos que eram tão perfeitos que
eles mesmos se tornaram a obra: uma porta de automóvel amassada, comenta, pode trazer, no desenho de seu amassado, a imagem de uma mulher, e então, analisa, este pedaço de sucata tem, em sua própria essência, expressão artística. Romano explica seu método: “Dificilmente corto, amasso ou transformo o material que uso para as esculturas. Apenas monto as peças, pois busco unir a natureza artística de cada uma delas”.
DESABAFO Romano representou a corrupção como um homem-máquina: “A pessoa que só calcula não vive como um homem, mas é levada por aspectos mecânicos”. Ele acha indecente que pessoas passem fome e os ricos acumulem cada vez mais bens e propriedades. “Meu desabafo é mais voltado contra alguns políticos que usam o público para chegar ao poder e exploram a sociedade”, acrescenta. Em agosto, encontrou, em seu trabalho, a peça que originou a
peça: uma válvula de retenção usada. Para Romano, entretanto, o objeto era outra coisa, representava o acessório que considera mais marcante de um corrupto: a cartola. “No momento em que achei a válvula, tinha montado a escultura, bastava juntar e montar as peças umas com as outras”, conta. Uma bóia de caixa d´água lhe serviu de cabeça; para os braços, usou tubos hidráulicos... Coletou e montou as peças até formarem sua imagem do corrupto: um ser monstruoso, com cabeça de homem, corpo de máquina e pernas de bicho de praia. Na representação de Romano, a criatura aparece esmagando a cabeça do que ele chama “a classe inferior”. Define a categoria como o grupo de pessoas que é continuamente explorado. A opressão, segundo ele, está caracterizada pelo braço do ser monstruoso, em forma de canhão, pois “quando você tira a condição de vida de uma pessoa, você a está matando”. (JAP)