Ano 2 • Número 89
R$ 2,00 São Paulo • De 11 a 17 de novembro de 2004
Carajás: a impunidade continua Kevin Frayer/Associated Press/AE
Tribunal de Justiça do Pará julga recurso que pode anular absolvição dos policiais envolvidos no massacre de Eldorado
S
ob o olhar da sociedade brasileira e da comunidade internacional, o Tribunal de Justiça do Pará tem, dia 19, a tarefa de decidir o futuro do julgamento do massacre de Eldorado dos Carajás. Nessa data, serão apreciados os recursos do Ministério Público estadual, que pede novo júri para os 128 policiais absolvidos, e da defesa, que quer a absolvição dos dois únicos oficiais condenados pelo assassinato dos 19 sem-terra em
17 de abril de 1996. Para Nilmário Miranda, secretário Nacional de Direitos Humanos, a impunidade tem prevalecido. “O resultado não atende à expectativa da sociedade brasileira, nem das vítimas, nem da comunidade internacional”, pondera o ministro, que defende a federalização dos crimes contra os direitos humanos quando a Justiça local não atua conforme a gravidade da violação praticada. Pág. 8
A luta pela liberdade da Palestina não acabou Com o chefe da Autoridade Palestina, Yasser Arafat, fora do cenário político, Israel, Estados Unidos e os regimes árabes se articulam para garantir que “a era pós-Arafat lhes sirva do modo mais conveniente”. A partir dessa análise, o pesquisador árabe-estadunidense Ramzy Baroud avalia
o legado do líder palestino, diz que o povo “aprenderá a lidar com a vida sem Arafat e sua mística” e conclui: “O mais importante, agora, é manter a força da resistência palestina e sua capacidade de se impor frente ao poder de um Estado agressor”. Pág. 10
Governo promete As rádios avanços na comunitárias questão indígena unificam a ação
Ultradireita, a vitoriosa na eleição dos EUA Na véspera da eleição, esperava-se um recorde de até 120 milhões de votos, que beneficiariam os democratas. Não aconteceu. Mais gente foi votar, mas em Bush, escolhido por 45% dos jovens. Bush obteve quase 4 milhões de votos a mais do que Kerry. Pesaram mais nesse resultado a posição do governo contra o aborto e os casamentos entre homossexuais do que as torturas em Abu Ghraib e as mentiras sobre armas de destruição em massa. Pág. 11
Uma semana de cultura e reforma agrária A 2ª Semana Nacional da Cultura e da Reforma Agrária, dos dias 3 a 7, em Recife, foi mais uma oportunidade para difundir a arte camponesa, valorizar a produção cultural dos acampamentos e assentamentos do MST e apresentar à sociedade um projeto de reforma agrária para o Brasil. Na abertura do evento, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, lançou o Projeto Rede Cultural da Terra, em parceria com o MST e outros movimentos do campo. Pág. 16
Marcelo Buzetto
Palestinos acendem velas pela recuperação do líder Yasser Arafat durante vigília, em Gaza
Ao homologar 14 terras indígenas, dia 27 de outubro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que “poderemos chegar a 2006 com muitas terras homologadas”. Um dos símbolos dessa luta é a reserva Raposa Serra do Sol. No mês passado, todas as decisões referentes à Raposa Serra do Sol foram atribuídas so Supremo Tribunal Federal. Assim, Lula fica na confortável situação de não ter que decidir, mas apenas homologar a decisão da Suprema Corte. Pág. 5
Para resistir e enfrentar a repressão que sofrem da Polícia Federal e da Anatel, que agem em benefício das emissoras comerciais, as rádios independentes decidiram partir para ações conjuntas em defesa dos interesses de suas comunidades. Por exemplo, a veiculação de informações sobre saúde, assunto que conta com apoio de uma rede de universidades públicas e privadas no país. As rádios também vão fazer denúncias internacionais das violências sofridas constantemente. Pág. 4
População de Mauá exige direito de voto
Milhares de pessoas protestaram entre os dias 1º e 8 para exigir o direito de votar para prefeito em Mauá, São Paulo
E mais: GRUPO DO RIO – Representantes dos 19 países da América Latina se reuniram no Rio de Janeiro e discutiram, entre outras questões, a intervenção internacional no Haiti. Pág. 9 BARRA GRANDE – Em manifestação contra a Usina Hidrelétrica de Barra Grande, cerca de 300 agricultores iniciaram, dia 4, um bloqueio na rodovia que dá acesso ao canteiro de obras da usina. Pág. 13
Desde o dia 1º, os habitantes de Mauá (SP) realizaram três manifestações com milhares de pessoas. Eles exigem a realização do segundo turno da eleição para prefeito, cancelado por ordem judicial. A partir da mobilização, a população começou a debater problemas da cidade, como exclusão social. Integrantes de movimentos sociais pretendem construir um comitê, unificando o trabalho para melhorar as condições de vida do povo. Pág. 3
Violência da polícia do Rio não tem limites Pág. 6
Privatizado, setor elétrico gera dívidas Pág. 7
Bush volta a massacrar o povo do Iraque Pág. 10
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De 11 a 17 de novembro de 2004
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Marilene Felinto, 5555 Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Valter Oliveira Silva • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Dafne Melo e Fernanda Campagnucci 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
NOSSA OPINIÃO
Organizar a resistência mundial
A
vitória de George Bush júnior é o sintoma de uma poderosa onda conservadora, e por isso merece uma análise detalhada e cuidadosa por parte da esquerda mundial. Bush venceu com base no pânico artificialmente criado entre a população estadunidense e na desinformação. Nos dois casos, a mídia teve um papel importante de auxílio à Casa Branca. O medo foi construído ao longo dos meses e anos que se seguiram ao atentado de 11 de setembro de 2001. A Casa Branca criou um sistema de “alerta contra o terror” e atribuiu a cada faixa uma cor. Constantemente, as faixas eram modificadas, segundo “análises” das agências de informação sobre as supostas “probabilidades de um novo ataque”. Com isso, a população foi mantida em estado de tensão permanente, como se um novo atentado fosse sempre iminente. A desinformação sobre o significado das estratégias do governo Bush foi tal que quase 70% dos seus eleitores acreditam que os Estados Unidos descobriram “claras evidências” de que Sadam Hussein estava trabalhando em conjunto com a Al Qaeda, ao passo que um terço deles acredita que foram descobertas armas de destrui-
ção em massa no Iraque. E mais de um terço acredita que uma maioria substancial da população mundial apoiou a invasão liderada pelos Estados Unidos. Os índices, divulgados por Bob Herbert, colunista do jornal The New York Times, foram obtidos a partir de uma pesquisa feita logo após as eleições pelo Programa de Atitude Relativas à Política Internacional, da Universidade de Maryland. Mas não foi devido ao pânico e à desinformação que Bush venceu. Em onze Estados que realizaram plebiscitos sobre o direito ao aborto e ao casamento entre homossexuais, onze votaram contra, o que oferece um claro indício de uma forte tendência conservadora entre o eleitorado estadunidense. A contrapartida foi a total falta de uma perspectiva menos reacionária, para não falar de esquerda. O democrata John Kerry não ofereceu nada substancialmente distinto daquilo proposto por Bush, exceto no que se refere ao capítulo dos direitos civis. No essencial, não se colocou em questão a estratégia da “guerra ao terror”, nem a política agressiva do império contra o resto do planeta.
O resultado é que Bush se sente, agora, com as mãos livres para aplicar os seus planos com ainda maior ferocidade. Ele é portador da representatividade que lhe faltava no primeiro termo do mandato, adquirido de forma fraudulenta. As conseqüências para o mundo serão terríveis. O povo palestino, em particular, sentirá o impacto da permanência de Bush na Casa Branca, já que a sua vitória é interpretada pelo primeiro-ministro israelense Ariel Sharon como uma carta branca para o prosseguimento da política de assassinatos seletivos de lideranças palestinas, e da construção da “muralha da vergonha” que segrega os palestinos e os divide em novos bantustões. Para piorar, a ausência de Yasser Arafat criará um gravíssimo vazio de poder entre os palestinos, que ameaça desembocar em guerra civil. Mais do que nunca, é momento da esquerda mundial unir forças contra o império. Esse tema tenderá, forçosamente, a orientar boa parte dos debates no âmbito do próximo Fórum Social Mundial. É preciso organizar a resistência mundial contra a catástrofe que se anuncia.
FALA ZÉ – Eleições estadunidenses
OHI
CARTAS DOS LEITORES DEMOCRACIA ESTADUNIDENSE Curioso, para nós, o sistema eleitoral estadunidense. Cédulas enormes, pessoas demorando oito minutos para votar. Com todo o desenvolvimento tecnológico daquele país, incrível não terem desenvolvido um sistema eleitoral eletrônico. Junte-se ao fato, estranho para nós, de que os eleitores de lá não votam diretamente nos candidatos, e há o tal do colégio eleitoral. Para nós, isso parece eleição indireta, coisa atrasada, do tempo da ditadura. Nas eleições de 2000, Bush teve menos votos que Al Gore, e a coisa acabou decidida na Suprema Corte, deixando dúvidas sobre a legitimidade do atual presidente. Com o fracasso em encontrar armas químicas no Iraque e as torturas nas prisões, a maioria da população mundial preferia Kerry. Mesmo assim, os estadunidenses votaram de novo em Bush, legitimando-o no poder. Infelizmente, os estadunidenses agora foram contra o desejo do mundo. Por tudo isso, pode-se antever uma progressiva perda da simpatia dos povos em relação aos EUA, fato que Kerry já enunciou em sua campanha e que já acontece desde a invasão do Iraque. A democracia americana sai arranhada das eleições. Antonio Marcos Vicentini Campinas (SP) ELEIÇÕES MUNICIPAIS Quem perdeu mais nas recentes eleições municipais foi o governo Lula e as elites do PT. Lula, ao não cumprir com suas principais promessas de campanha, é o grande derrotado. E não poderia ter sido diferente, pois as medidas de seu governo, longe de atender aos
anseios do povo, apenas vêm colocando em perigo o pouco que restou da soberania nacional. João Gomes Porto Alegre (RS) BRASIL NO HAITI Enquanto o governo brasileiro tira proveito da calamidade pela qual passa o povo haitiano, visando se afirmar no Conselho de Segurança da ONU, a população daquele país está morrendo de fome e sede. Enquanto mandamos soldados, que já trocam tiros com os haitianos, Cuba enviou médicos e a Venezuela entrou com uma campanha humanitária onde, além de médicos, envia também remédios, água e comida. O presidente Aristide foi seqüestrado por uma ação do governo estadunidense. Mas os partidários do presidente deposto começam a se organizar e exigir a saída das tropas de ocupação da ONU. E o partido Lavalas lançou campanha para o recrudescimento dos confrontos. Não é à toa que a ONU solicitou envio de mais homens para reprimir o povo haitiano. Qual o papel do governo Lula no Haiti? Temos o direito de saber. Por que esconde a verdade, dizendo que as pessoas armadas são ligadas ao tráfico de drogas e outras falsas afirmações que não condizem à realidade no Haiti? Caso logre reprimir a resistência haitiana, nosso governo ganhará, como butim da guerra, a notoriedade de participar do Conselho de Segurança da ONU, e triunfará em cima dos cadáveres do povo daquele país. Marcelo Zelic São Paulo (SP)
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CRÔNICA
O legado de Arafat Renato Pompeu Meios palestinos mais de vanguarda já fizeram a sua avaliação sobre o legado de seu líder Yasser Arafat: ele revelou sempre coragem, e acima de tudo discernimento político em relação a seu próprio povo e aos governos árabes mais do que nas negociações com os Estados Unidos e Israel, diante de cujos governos foi considerado, por muitas lideranças palestinas, como ingênuo e disposto a acreditar mais nas palavras de estadunidenses e israelenses do que em seus atos. Duas são as grandes façanhas que tornaram Arafat um herói mítico. A primeira, na passagem dos anos 60 para 70, foi tornar conhecido o povo palestino. Até então, no Ocidente, não se acreditava na existência de uma nacionalidade palestina. O conceito de Estado-Nação, que data no Ocidente do século 16, era desconhecido no mundo islâmico até o século 19. Os Estados islâmicos sempre foram multinacionais e, fosse qual fosse sua etnia ou sua língua, os cidadãos eram distinguidos segundo sua religião – se eram fiéis muçulmanos, ou cristãos ou judeus, ou mesmo pagãos – e não segundo a sua nacionalidade. Os privilégios da cidadania eram reservados a todos os islamitas, podendo um albanês ser rei do Egito; os outros cidadãos eram sujeitos a restrições especiais ou a impostos adicionais. A isso acresce que grande parte dos islamitas falavam, sem serem árabes
na origem, a língua árabe, impostas pelos conquistadores islamitas originais, provenientes da Arábia. Também os cristãos que habitavam as regiões conquistadas foram levados a adotar o árabe – e assim aqueles a que chamamos de cristãos sírios ou libaneses ou iraquianos, são na verdade, na sua origem, assírios e caldeus. As nacionalidades que se islamizaram e arabizaram passaram a ser conhecidas pelo nome de seu território em árabe: árabes na Arábia, iraquianos na Mesopotâmia, jordanianos na antiga região dos amanitas, sírios na região dos antigos assírios (Síria e Assíria são a mesma palavra, sem e com o artigo, exatamente como Corão e Alcorão) e palestinos na Palestina (palavra derivada da pronúncia romana do nome “filisteus”, havendo uma só palavra para “Palestina” e “Filistéia” em árabe: Al Falastin). Mas como todos falavam árabe, foram indistintamente considerados árabes pelos ocidentais, mesmo porque em seus documentos não constava a nacionalidade, sim a religião. Quando a Palestina foi dividida em um “Estado judeu” e um “Estado árabe”, ao fim da Segunda Guerra Mundial, esquecida no Ocidente a ligação entre as palavras “Palestina” e “Filistéia”, o povo palestino, para os ocidentais, simplesmente não existia. Mesmo pessoas progressistas, como o casal de filósofos franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Be-
auvoir, eufóricos com a criação de um Estado que abrigava os judeus perseguidos, não se davam conta da existência dos palestinos. Foi Arafat que forjou o reconhecimento mundial de que havia uma nacionalidade palestina, que ficou duas décadas obliterada da consciência ocidental. Sua segunda façanha, na passagem dos anos 80 para os 90, foi, primeiro, convencer-se a si próprio, e segundo, convencer os palestinos e os outros árabes, de que a existência de Israel devia ser legitimada e de que devia haver dois Estados para dois povos. Se no Ocidente ele foi considerado “terrorista” antes de ser considerado um líder nacional, no Oriente árabe não faltou quem, inicialmente, o acusasse de “traidor”, por se dispor a reconhecer Israel. Mas, nas negociações com Israel e Estados Unidos, Arafat não teve êxito, talvez porque seu principal parceiro israelense, o primeiro-ministro Itzhak Rabin, foi assassinado por extremistas judeus que não esqueceram o Arafat que, antes de reconhecer Israel, dizia que “Israel irá de vitória em vitória até a catástrofe final”. Agora, os palestinos e árabes que não querem reconhecer Israel talvez reforcem suas posições, tornando ainda mais insolúvel o conflito. Renato Pompeu é jornalista e escritor
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NACIONAL MOBILIZAÇÃO
Em Mauá, a democracia se faz nas ruas João Alexandre Peschanski de Mauá (SP)
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m meio a uma aglomeração, dia 8, na Praça 22 de Novembro, no centro de Mauá (SP), Tânia de Oliveira pega o microfone: “Sou moradora de rua e quero desabafar!” No carro de som, a seu lado, tremulam uma imagem do revolucionário argentino Che Guevara e a bandeira do Brasil. Pede para as pessoas olharem para o principal centro comercial da cidade, que ostenta marcas de algumas corporações e brada: “Em Mauá, há dois mundos: o shopping, com seus produtos caros, e o dos moradores de rua. Minha família dorme sobre palafitas, perto do posto de saúde, e os políticos não se interessam se estamos bem ou mal, só se interessam pelos ricos do shopping”. De acordo com uma pesquisa da prefeitura da cidade, 48,3% da população recebe até dois salários-mínimos por mês e 4,8% recebem acima de 10 salários/mês. As centenas de pessoas reunidas na praça aplaudem Tânia. São militantes de movimentos sociais, estudantes, sindicalistas, pessoas dos movimentos religiosos ou gente que passava pelo local e decidiu participar. Aos gritos de “Democracia já, o povo quer votar!”, esses cidadãos participam de uma mobilização pela realização do segundo turno da eleição para prefeito da cidade, cancelado pela juíza eleitoral Ida Inês Del Cid (veja reportagem ao lado). O ato da Praça 22 de Novembro é o terceiro que ocorre em Mauá, em uma semana. No dia 1º, um dia após a data prevista para o segundo turno, dez mil pessoas tomaram as ruas da cidade, exigindo a realização do pleito. Dois dias depois, em outra marcha, participaram 3 mil pessoas. Segundo dados da prefeitura, a cidade tem 398.482 habitantes. José Alfonso Klein, da Asso-
Fotos: Marcelo Buzetto
População protesta e exige a realização do segundo turno da eleição para prefeito, cancelado por ordem judicial um comitê local para informar a população de Mauá sobre as razões do cancelamento da eleição. “Para termos melhores resultados, precisamos nos organizar. Se houver coordenação, conseguiremos ter mais impacto”, analisa Fábio de Souza, do Instituto Che Guevara de Culturas e Movimentos Populares, entidade que atua na formação política de trabalhadores. Em assembléia popular, dia 8, representantes de organizações definiram sua estratégia de atuação para as próximas semanas. Pretendem realizar atividades de formação em diversos bairros da cidade, informando as pessoas sobre a situação das eleições e discutindo os problemas da cidade. Um dos participantes da reunião chamou a estratégia de “ação pica-pau”, pois “vai-se batendo de porta em porta, e chamando as pessoas para a mobilização”.
ACAMPAMENTO
Entre os dias 1º e 8, a população de Mauá realizou três manifestações com milhares de pessoas exigindo o direito ao voto democrático
Juíza cancelou segundo turno da cidade Dezoito dias após o primeiro turno das eleições de Mauá, no dia 21, a juíza eleitoral Ida Inês Del Cid aceitou o pedido de cassação do candidato Márcio Chaves Pires (PT), atual vice-prefeito da cidade e primeiro colocado nos resultados do primeiro turno, com 45,77% dos votos. O segundo colocado foi Leonel Damo (PV), com 39,63%. O pedido partiu do vereador Manoel Lopes (PFL), sob alegação de infração do Artigo 73 da Lei Eleitoral, que caracteriza o ato de propaganda institucional proibida. De acordo com o vereador, a exposição “Túnel do Tempo”, que comemorava os 50 anos da cidade
e fora organizada por Chaves, era uma propaganda disfarçada. Em decorrência da cassação, a juíza determinou que Damo seria o novo prefeito da cidade. No dia previsto para a realização do segundo turno, não houve votação. Chaves apelou da decisão para o Supremo Tribunal Federal (STF), alegando que a decisão da juíza atenta contra a democracia e é inconstitucional. No dia 4, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo suspendeu a escolha de Damo para o cargo. Até o fechamento desta edição, o STF não havia determinado como vai ser feita a escolha do prefeito de Mauá.
Manifestante exibe seu título de eleitor como forma de protesto
ciação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) de Mauá, conta que o terceiro ato reuniu menos pessoas pois “jornais veicularam a informação de que a situação está resolvida e que a eleição vai ocorrer, mas isso é mentira”. Ele considera o voto um direito básico do povo, e espera que a mobilização permita uma discussão sobre a situação da cidade, onde, de acordo com ele, faltam políticas sociais que atendam a população desfavorecida.
ORGANIZAÇÃO POPULAR Integrantes de associações e movimentos sociais da cidade pretendem unir esforços, formando
Após a ação nos bairros, as entidades querem realizar um acampamento – cujo local não está definido, mas deve ser no centro da cidade –, criando um fórum de debate e discussão sobre os problemas sociais de Mauá. “Os políticos precisam ouvir nossa voz na rua. Para isso, nossos vizinhos precisam saber o que está acontecendo”, afirma Severiana Santos, moradora de Mauá, que foi ao ato do dia 8 após ser avisada por uma vizinha. Se a eleição não ocorrer até o início de 2005, os integrantes das entidades também pretendem instaurar, em 1º de janeiro, o dia da desobediência civil. Souza explica: “Se não houver um prefeito aceito de forma legítima pela população de Mauá, o povo não precisa respeitar a ordem da cidade”. Entre outras ações, prevêem um boicote ao Imposto Municipal sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), uma das principais fontes de renda da prefeitura.
SEM-TETO
Tatiana Merlino da Redação Depois de uma longa noite, um grupo de sem-teto desocupou, no dia 8, um prédio da Caixa Econômica Federal na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo. Na noite do dia 7, de acordo com militantes dos movimentos em defesa da moradia, 150 pessoas ocuparam o prédio da Caixa, e outras 150 ficaram de fora. Elas foram impedidas de entrar pela polícia, que utilizou bombas de efeito moral, balas de borracha e jatos de pimenta. “Uma mulher grávida ficou ferida na cabeça, e várias pessoas ficaram machucadas”, conta Miriam Hermogenes, da coordenação da Frente de Luta por Moradia (FLM), que organizou a ocupação. De acordo com ela, os sem-teto foram muito agredidos e o confronto durou desde o início da ocupação, por volta das 19 horas, até meia-noite. Segundo militantes, até pessoas que passavam pelo local e moradores dos prédios vizinhos foram vítimas da violência. “Bateram numa mulher que saía do prédio em frente à ocupação, que dizia não ter nada a ver com os sem-teto”, diz Fábio Dias, integrante do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC). “Isso demonstra um grande despreparo da polícia. Eles estão perdendo as estribeiras”, afirma ele, que conhece várias pessoas machucadas em decorrência da violência policial. Um representante da Caixa esteve no local na manhã do dia 8 e disse que não haveria negociação. A polícia deu um prazo de 15 minutos para
Fotos: Anderson Barbosa
Polícia usa violência em desocupação
Movimentos permanecem na ocupação da Rua Rêgo Freitas, que está para sofrer reintegração de posse; à direita, polícia age com violência na noite do dia 7
a desocupação e as famílias foram obrigadas a deixar o prédio. Parte delas foi para outro imóvel já ocupado pelo grupo, na Rua Rêgo Freitas. Para Míriam, “o fato da desocupação ter sido promovida pelo governo federal é uma decepção”. “A gente não esperava isso”, diz ela, lembrando que negociações difíceis e violência são sempre “promovidas” pelo governo estadual. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), declarou que as invasões não têm sentido e parecem provocação.
A ação, desencadeada por doze grupos reunidos sob a denominação Frente de Luta por Moradia, entre eles o MSTC e os movimentos Sudeste, Campo Alegre e Casarão do Bresser, tem como objetivo protestar contra a ineficaz execução da política de moradia no país. Entre as reivindicações dos militantes, estão: um local para acomodar as pessoas da ocupação, uma política habitacional para pessoas que ganhem de zero a três salários mínimos, além da
desapropriação de prédios vazios há mais de dois anos. Dia 31 de outubro, sete imóveis foram ocupados. Os integrantes do movimento permanecem em quatro deles, na Rua Rêgo Freitas (região central), na Rua Francisco de Melo Palheta, em São Mateus (zona leste), na Avenida Casa Verde (zona norte) e na Rua Solon, no Bom Retiro (região central). Segundo militantes, a ação integrada mobilizou cerca de 3 mil pessoas, e os sem-teto querem permanecer nos imóveis até a
prefeitura aprovar um projeto de moradia definitiva para associados do movimento. Entretanto, um dos prédios, localizado na Rua Rêgo Freitas, está para sofrer reintegração de posse. O imóvel, que seria um presente da Santa Casa para a Liga Paulista contra a Tuberculose, está desocupado há dez anos. “É espantoso que um prédio que está sem cumprir sua função social há tanto tempo consiga uma liminar de reintegração de posse em três dias”, indigna-se Miriam.
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RÁDIOS COMUNITÁRIAS
Partindo para o contra-ataque
Dioclécio Luz Spots sobre aborto A Rádio Fala Mulher.com, da ONG Cemina, está colocando à disposição spots e entrevistas especiais sobre aborto. A produção faz parte da Campanha pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe, e foi realizada em parceria com a Rede Feminista de Saúde e com a Rede Jovens Brasil – Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. Também se pode ouvir, baixar, gravar e transmitir essa produção especial na rádio. Acesso: www.radiofalamulher.com <http://webmail.terra.com.br/ cgi-bin/vlink.exe?Link=http%3A// www.fw2.com.br/noticias/detalhes. asp%3Fcod%3D226> Rádios comunitárias 1 Depois de passar quase um ano se reunindo com entidades do movimento, o governo desistiu de fazer a Conferência de Rádios e TVs comunitárias. O governo queria discutir no evento outras questões, como código de ética e associativismo, mas a maioria do movimento quer saber até quando irá a repressão aos militantes, com Polícia Federal armada de fuzil e metralhadora, algemando e prendendo as pessoas. Rádios comunitárias 2 Acontece em Brasília, dias 11 e 12, o seminário sobre legislação de rádios comunitárias, promovido pela Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc). Câmara enterra Conselho Anunciado intramuros o enterro do projeto de lei de criação de um Conselho Federal de Jornalismo, apresentado pelo governo conforme proposta da Fenaj. A oposição exigiu seu velório para destrancar a pauta de votação da Câmara. Ecad fecha cineclube Os alunos da UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina) programaram para primeira semana de novembro um ciclo de palestras com exibição de filmes. Mas os fiscais do Escritório Central de Arrecadação (Ecad) acharam que deveria ser paga uma taxa pelos direitos autorais das trilhas dos filmes. Eles parecem desconhecer a Lei 9.610/98, que, no Art. 46 dispõe: “Não constitui ofensa aos direitos autorais: inciso VI – a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro”. A mostra foi cancelada. No reino da paranóia Deu no Jornal Terra (05/11) que dois surfistas brasileiros estão presos nos Estados Unidos, acusados de terrorismo. No dia 26 de outubro, eles tentaram embarcar no aeroporto de Miami, mas foram impedidos. Os jovens resolveram brincar com os policiais, dizendo que levavam uma bomba na bagagem. De fato, carregavam uma bomba de sucção, usada para fabricação de pranchas. Foram presos na hora, acusados de terrorismo. Dizem que os EUA são o império da democracia. Mais parece o da paranóia.
Defensores das emissoras livres de todo o país decidiram unificar a luta em defesa dos interesses Luís Brasilino, da Redação
C
ansados de resistir à repressão, defensores de rádios comunitárias de todo país resolveram se unir para enfrentar o poder daqueles que querem seu fim. Com esse objetivo, dia 4 foi realizada a “Discussão nacional sobre a repressão às emissoras de baixa potência e seus aspectos jurídicos”. Durante um dia inteiro, com transmissão por videoconferência, dezenas de pessoas participaram do evento em Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP) e Teresina (PI). “Como a repressão é unificada – em torno da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) –, percebemos que era necessário unificar a resistência”, explica José Guilherme Castro, coordenador de comunicação da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), uma das organizadoras do evento. “Estamos cansados de apanhar. Decidimos parar de só resistir. Vamos partir para o ataque. Vamos planejar manifestações de rua, ocupar rádios comerciais, fazer denúncias internacionais e chamar os movimentos sociais para participar da luta”, acrescenta Castro. No Brasil, existem mais de 20 mil rádios comunitárias e, só neste ano, pelo menos 3 mil foram fechadas. Em 2003, este número chegou a 4,4 mil, o que representou um aumento de 30% em relação aos anos de gestão Fernando Henrique Cardoso. Ao todo, 2 mil pessoas ligadas às rádios comunitárias foram presas, e mil estão sendo indiciadas em inquéritos da Polícia Federal (PF).
REPRESSÃO São dois os órgãos responsáveis pelo fechamento das emissoras, a PF e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Quando esta última foi criada, em 1997, ela foi proibida de fechar as rádios porque, segundo a Constituição Federal, “não se pode privar ninguém de sua liberdade nem de seus bens sem o devido processo legal”. O que a Agência fez, então, foi editar uma resolução interna que lhe deu poderes de lacrar, não fe-
Vidal Cavalcante/Adestado
da mídia
NACIONAL
Kita Pedrosa/Portal Viva Favela
Espelho
O nadador Gustavo Borges durante visita à radio comunitária da favela de Heliópolis, São Paulo, em março de 2003, à esquerda, Rádio Novos Rumos, no Rio de Janeiro
char, as rádios. Ou seja, por meio de uma artimanha, criou uma regra que lhe permite fazer exatamente aquilo que a Constituição proíbe. A Anatel lacra e depois a PF faz a sua parte, que é prender os que militam nas rádios comunitárias e seqüestrar os seus equipamentos. A polícia faz isso baseada numa lei do regime militar, criada em 1967 pelo general Humberto Castelo Branco e inalterada até hoje. Ela pune com um ou dois anos de prisão quem participa de rádios comunitárias. A lei de 1997, que criou a Anatel, também condena a prisão de quem opera “rádios clandestinas”. No entanto, de acordo com diversos juízes, ela não se aplica às rádios comunitárias. A discussão jurídica é extensa, mas, para os participan-
tes da videoconferência, a criminalização das rádios comunitárias tem motivação política.
AÇÕES “No grupo de trabalho criado pelo Ministério das Comunicações, no ano passado, para discutir as centenas de casos pendentes que envolviam rádios comunitárias, ouvimos da Anatel que seu papel é cumprir a lei. Aceitamos a fiscalização, mas sugerimos mudanças: queríamos um controle de caráter menos punitivo e mais educativo”, conta José Nascimento Soter, da coordenação nacional da Abraço. Uma das decisões da videoconferência foi aumentar a pressão para o governo federal aprovar essa proposta. Em julho de 2003 foi ela-
borada uma portaria que, para vigorar, necessita apenas da assinatura dos ministérios das Comunicações e da Justiça, e que contemplaria aquela sugestão. Até agora, nada foi feito. Na videoconferência também ficou decidido que as rádios comunitárias vão promover uma plenária sobre a repressão no próximo Fórum Social Mundial, em Porto Alegre; realizar audiências públicas estaduais nas comissões de direitos humanos em todas as assembléias legislativas; produzir um CD-ROM informativo sobre as rádios; fazer um levantamento, Estado por Estado, com as informações da PF e dos envolvidos nas rádios, comparando-as; sistematizar os documentos obtidos pela deputada federal Iara Bernardi (PT/SP) sobre ações de repressão; e elaborar documento para enviar à Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Também participaram da organização do debate a Associação Mundial das Rádios Comunitárias, a Federação das Associações de Rádios Comunitárias do Rio de Janeiro, o Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal e o gabinete do deputado federal Edson Duarte (PV/BA).
Um caso de repressão policial Quando Eduardo Estevam começou a participar de reuniões de rádios comunitárias, em 1992, não esperava que, dez anos depois, a atividade lhe rendesse uma fratura de fêmur, o esmagamento do calcâneo (osso da região do calcanhar), uma operação na mandíbula e a perda do olfato e do paladar. Além da companhia de uma bengala. No dia 4, na videoconferência “Discussão nacional sobre a repressão às emissoras de baixa potência e seus aspectos jurídicos”, ele relatou a repressão de que foi vítima. Em 1993, com um amigo, Estevam criou a Associação de Difusão Cultural e Comunitária de Taboão da Serra (cidade da Grande São Paulo), conhecida como Rádio Beta FM. Durante nove anos e meio, não houve qualquer tipo de perseguição. Mas, no dia 15 de maio de 2003, dois agentes da Polícia Civil foram à sua casa, sede da Beta FM.
Como tratar Bush? No primeiro discurso depois de reeleito, George W. Bush afirmou que vai continuar exportando “democracias” para o mundo. O seu modelo de “democracia”. Na prática, significa o direito de continuar invadindo, saqueando, roubando os países que não se dobram aos seus poderes. Como a imprensa vai tratar esse neonazista? Como antes, quando ele mentia e os jornalistas reproduziam suas mentiras? Ou vão dizer a verdade?
RELATO
Jô censura juiz? O paraense Jorge Vieira, primeiro juiz trabalhista a condenar um fazendeiro por trabalho escravo, foi convidado a dar entrevista ao Programa do Jô (TV Globo). Ele foi a SP com tudo pago pela emissora, mas, em cima da hora, foi avisado sobre o cancelamento da entrevista. A produção alega mal-entendido, mas o juiz desconfia de pressões. (Agência Carta Maior).
“Me pediram para sair para conversar, mas avisei que, sem um mandado, eu não ia. Continuaram insistindo. Deram a entender que queriam dinheiro. Comecei a citar o Código Civil sobre arrombamento e mostrei que já tinha entrado no Ministério das Comunicações com pedido de regularização da rádio. Nem quiseram saber. “Então, perguntei se a Anatel estava lá. Responderam que a Anatel
era eles. Eu disse que não entrariam. Então, um dos policiais ligou para o delegado e me avisou que me preparasse porque, quando o delegado chegasse e arrombasse a porta, ele ia colocar uma arma na minha boca.
BATALHA “Mandei minha filha correr para o quarto. Depois, subi na janela, me benzi e acabei pulando de seis metros de altura. Foi por apavoramento.” Radialista, em 30 anos de profis-
são, Estevam sempre trabalhou em rádios oficiais. Quando criou a Beta FM, manteve seu emprego na Rádio Tupi, de São Paulo (SP). Depois do acidente, parou e agora esperando regularizar sua situação para se aposentar. A Beta FM continua fora do ar e todos os seus equipamentos continuam apreendidos na Delegacia Seccional de Taboão da Serra. Nesse meio tempo, Estevam vem lutando na Justiça para receber indenização de R$ 500 mil do
Estado de São Paulo. Colocou um processo na Corregedoria do Estado e no Ministério Público Federal porque “o delegado que mandou arrebentar a porta da minha casa queria engavetar o processo”. No dia 2 de julho, recebeu uma intimação da Corregedoria de Taboão da Serra para prestar depoimento. Pediram que ele fizesse exames de corpo de delito e, até hoje, não conseguiu fazer todos os que são necessários. (LB)
Saúde pública para a comunidade Desde 1998, o médico Paulo Rogério Gallo, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, tomou a inciativa de organizar, nas dependências da escola, cursos gratuitos de saúde pública para comunicadores de rádios comunitárias. “Lá, a equipe que trabalha ao redor de um microfone tem um espaço para discutir os problemas de saúde da sua comunidade”, conta. “Em encontros com o pessoal das rádios, discutimos uma informação que julgamos importante no momento, avaliamos a situação de uma das comunidades presentes e, a partir disso, começamos a definir diferentes abordagens do problema – pode ser saúde ambiental, educação, assistência médica, saneamento etc.”, explica Gallo.
Para participar dos cursos, basta ter alguma ligação com o microfone de uma radio comunitária. “Independentemente da idade, cor, nível de instrução. O importante é fazer o aluno entender a informação sobre saúde e capacitá-lo para transmiti-la da forma que achar melhor para a sua comunidade”, diz o médico. Mas o número de inscrições é limitado. Gallo e os que participam da organização dos cursos escolhem as rádios participantes por meio de um cadastro. Os interessados podem ligar para a Faculdade de Saúde Pública (11-3066-7795) e falar com Janaína. No primeiro semestre de 2005, a expectativa é trabalhar com 60 pessoas em dois cursos, que funcionam na própria Faculdade de Saúde Pública (Avenida Dr. Arnaldo, 715, na
cidade de São Paulo). Sua duração é de dez a 15 encontros, sempre aos sábados. O próximo passo é integrar universidades de todo o Brasil em torno do projeto. “Desde o ano passado, detectamos a necessidade dessa integeração porque uma rádio distante, por exemplo, de Lençóis Maranhenses, não tem como vir à USP ou se deslocar para outros grandes centros. Ela precisa se ligar à universidade da sua região”, explica o médico. O projeto está avançando – uma rede de 33 universidades públicas e particulares, de diversos Estados já participa dele. A expectativa é que, em um ou dois anos, as instituições criem um núcleo de rádio comunitária especializado em saúde. (LB)
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De 11 a 17 de novembro de 2004
NACIONAL POVOS INDÍGENAS
Terras homologadas em clima de festa Funai e indigenistas discordam sobre número de terras indígenas que existe no país Priscila D. Carvalho de Brasília (DF)
ponsabilidade do Estado brasileiro sobre a transferência de pequenos agricultores já estava prevista desde a Constituição de 1988. Segundo Saulo Feitosa, vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), “do ponto de vista operacional o convênio é importante para
seu discurso, entretanto, Lula não falou em homologar todas as terras, mas disse que, mantida a média de homologações dos dois primeiros anos de governo, “poderemos chegar ao fim do mandato com muitas terras indígenas homologadas”. Pelos números divulgados pela Funai,
ainda precisam ser homologadas e registradas 188 terras indígenas. Para Saulo Feitosa, do Cimi, “no ritmo que vai é impossível demarcar todas as terras até o final do governo. Além disso, a lista de terras do governo sequer considera todas as terras indígenas do país”.
Fotos: Rose Brasil/ABr
F
oram homologadas 14 terras indígenas, dia 27 de outubro, em cerimônia no Palácio do Planalto, com presença de ministros e indígenas. A assinatura do decreto de homologação pelo presidente da República é a último passo para o reconhecimento de terras como pertencentes aos indígenas e garante aos povos o uso dos territórios que eles tradicionalmente ocupam. Das terras homologadas, onze ficam no Amazonas e são dos povos Deni, Diahui, Kulina, Mura, Tikuna, Tenharim, Tora e Apurinã. A terra Tarauacá, no Acre, é de grupos que vivem isolados. Também foram homologadas a terra do povo Krikati, no Maranhão, e a dos GuaraniKaiowá, no Mato Grosso do Sul. O discurso do presidente Lula destacou a terra indígena Panambizinho, dos Guarani-Kaiowá: “Depois de resistir por séculos à ocupação dos brancos, os GuaraniKaiowá vinham lutando há mais de vinte anos para que a terra fosse homologada. A região foi palco de conflitos freqüentes. Foram inúmeros os suicídios cometidos pelos índios, que viam o seu modo de vida desmoronar na mesma medida em que sua terra era diminuída”.
a regularização fundiária em áreas onde há conflitos que envolvem pequenos posseiros”. A nota divulgada pelo Ministério da Justiça no dia anterior à cerimônia das homologações afirmava que “a meta é homologar todas as terras indígenas do país até 2006”. Em
Lula assina decreto de homologação, à direita, conversa com o presidente da Funai Mércio Pereira Gomes, sendo observado pelo ministro da Justiça Marcio Thomaz Bastos
Raposa Serra do Sol depende do STF André Vasconcelos e Cristiano Navarro de Boa Vista (RR) e de Brasília (DF)
ASSENTAMENTO DE POSSEIROS
Coincidência ou não, depois da visita de uma comitiva de juízes acompanhada de militares à terra Raposa Serra do Sol, em maio de 2004, as comunidades indígenas começaram a acumular sucessivas derrotas no campo jurídico. Uma seqüência de liminares concedidas e mantidas em favor de fazendeiros e plantadores de arroz, em detrimento de direitos originários sobre a terra de 16 mil índios da região, criou um verdadeiro imbróglio sobre o ato presidencial de
Durante a cerimônia também foi assinado um convênio entre a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que prevê ações conjuntas de desocupação de terras indígenas e programas de reforma agrária. O convênio passa ao Incra a responsabilidade de reassentar posseiros clientes da reforma agrária e que vivam em terras reconhecidas como indígenas, como aconteceu em Panambizinho. A res-
homologação que já se arrasta por seis anos. “É muita pressão. Toda semana recebo intimações do juiz”, desabafa Jacir de Souza Macuxi, coordenador do Conselho Indígena de Roraima. Depois de sucessivas batalhas jurídicas, as comunidades avançaram num plano audacioso de reocupação da terra invadida pelo latifúndio. Cinco aldeias foram reconquistadas na região do Novo Jawri, na faixa sul da terra indígena, impedindo o avanço predatório da monocultura do arroz. Na última liminar concedida pelo juiz federal Helder Girão Barreto, em 9 de outubro, determinou-se a retirada espontânea de três comu-
nidades, ou, a retirada compulsória e pagamento de multa diária de R$ 10 mil caso as famílias permanecessem no local depois do prazo, que venceria dia 29. Insatisfeitos com a atuação do Judiciário, os líderes indígenas convocaram dois mil índios de toda a Raposa Serra do Sol. “Agora nós temos a nossa própria liminar, a nossa liminar é viver na nossa terra”, declarou o cacique Nelino Galé Macuxi. Um dia antes do vencimento do prazo dado pela Justiça, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) enviou uma comitiva a Roraima. “Estou muito triste com o que estão fazendo com este país”, desabafou dom Jayme
Chemello. Para ele, “se deixarmos essa situação assim (sem a homologação em área contínua) vamos pagar para a toda a eternidade por um crime pesado”. Antes do cumprimento da liminar concedida em primeira instância, o Supremo Tribunal Federal (STF) acatou o pedido da Fundação Nacional do Índio (Funai) e das comunidades para suspender a decisão. Com isso, todas as decisões referentes à Raposa Serra do Sol devem partir do STF. Assim, o presidente Lula fica na confortável situação de não ter que decidir, mas apenas homologar aquilo que for sentenciado pela Suprema Corte.
TERRA
Thaís Brianezi de Apuí (AM) Quase metade das terras do município de Apuí, no Amazonas, estão griladas. Dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) apontam aproximadamente 2 milhões de hectares ocupados irregularmente. Isso significa 20 mil km2 em um município de 54.240 km2. Em todo sul do Estado, são mais de 6.800.000 hectares de floresta invadidos para especulação imobiliária. Essas terras estão espalhadas em seis municípios ao longo da BR230 (Transamazônica): Canutama, Humaitá, Manicoré, Apuí, Maués e Borba. Além da natureza, as grandes vítimas da grilagem são as populações tradicionais (seringueiros, extrativistas, pescadores e ribeirinhos), que estão sendo expulsas das terras onde vivem e trabalham. Para conter o avanço dos grileiros, o Incra acaba de criar em Apuí um Projeto Agro-Extrativista (PAE), em uma área de 1.380.000 hectares, onde vivem cerca de cem famílias. O nome do projeto já foi escolhido em uma consulta pública realizada na última semana: PAE AripuanãGuariba, referência aos dois principais rios da região. “O reflexo mais grave da grilagem é atingir as populações tradicionais dessas áreas”, avaliou Leonardo Marques, coordenador do Centro Nacional de Populações Tradicionais (CNPT), ligado ao Ibama. O agricultor Firmo Correa exemplifica o temor de Marques. No começo da década de 90, no auge da epidemia de cólera, quando morava no seringal São Adriano, ele perdeu no mesmo dia a mulher
Fotos: Thaís Brianezi
Grilagem avança no sul do Amazonas
João Pedro Gonçalves da Costa (esquerda), superintendente do Incra, e Aniceto Barroso, presidente do Iteam, verificam queimada na área grilada pelo coronel Mota
Deusunide (52 anos), a filha Lúcia (20 anos) e o neto Cristiano (12 anos). “Fiquei tão desgostoso que me mudei para Apuí, fui trabalhar com plantação de pasto. Mas eu sempre ia visitar os túmulos da minha família. Da última vez em que estive lá, no começo do ano, uns homens armados disseram que se eu voltasse novamente iam me receber à bala”, contou Correa. Abrir caminhos na mata – as chamadas picadas – para demarcar a terra; derrubar a floresta, vender as madeiras de lei e queimar o que sobrar no terreno; plantar capim e, então, vender a terra. Assim agem os grileiros, segundo Suiley Fernandes, chefe da unidade avançada do Incra em Apuí. Investigações da Polícia Federal apontaram um coronel reformado do Exército, Wilson Carvalho Mota, como um dos grandes grileiros do sul do Amazonas. Ele teria comandado a devastação de 93 mil hectares de
floresta, em Manicoré. Depois de supostamente dividir a área em 30 lotes e vendê-los, o coronel Mota entrou no Incra com um pedido de regularização da ocupação, usando o nome de uma cooperativa. Como há um decreto que estabelece que o tamanho máximo do módulo rural no Amazonas é de 100 hectares, o pedido foi encaminhado a Brasília, onde deverá ser apreciado. Outra estratégia dos grileiros é invadir áreas localizadas atrás dos loteamentos regulares, localizados a 100 km de cada uma das margens da Transamazônica. O comerciante Agenor Mattes é dono da Loja Salete, a maior de Apuí. Paranaense, ele chegou à cidade quando o município estava nascendo, junto com o Projeto de Assentamento Juma, em 1982. O PA Juma tem 689.000 hectares e capacidade para 5.500 famílias – o maior da América Latina. Mattes foi detido pela Polícia Federal em uma área grilada. Com ele,
os agentes encontraram um agenda com nomes, valores e apontamentos de coordenadas cartográficas que indicavam picadas na floresta. “Eu comprei terras irregularmente, mas nunca vendi. Só encaminhava aos vendedores pessoas interessadas em comprar. Não ganhava comissão, nada”, defendeu-se Mattes, que já foi duas vezes vereador de Apuí, pelo PMDB. Segundo ele, o hectare de terra em Apuí, com pastagem, custa R$ 400.
POPULAÇÕES TRADICIONAIS As famílias do PAE AripuanãGuariba são, na maioria, ex-seringueiros que vivem do extrativismo de castanha e copaíba. O agricultor Mair Pinheiro contou que vende cerca de 15 litros de copaíba, a R$ 7 por litro, aos atravessadores. Leonardo Marques afirmou que em Manaus o litro da copaíba, um óleo com poderes terapêuticos cicatrizantes, gira em torno de R$
12. “Outro dia um empresário me telefonou querendo comprar 2.500 litros de copaíba, mas eu não tinha uma comunidade com uma produção desse porte para indicar”, revelou Marques. Com o auxílio técnico que a criação do projeto trará, as famílias do PAE Aripuanã-Guariba poderão melhorar sua produção e o escoamento. Mas, para isso, segundo o superintendente regional do Incra, João Pedro Gonçalves da Costa, elas terão que se organizar. A comunidade Vila do Carmo, onde dia 4 foi realizada a reunião de criação do PAE Aripuanã-Guariba, não tem associação comunitária. “Mas quem é que fala por vocês quando alguém chega aqui?”, perguntou o presidente do Instituto de Terras do Amazonas (Iteam), Aniceto Barroso. “É a primeira vez que alguém chega aqui. E a maior parte da gente é analfabeta. O senhor deve saber como é: analfabeto mais ouve do que fala”, explicou Pinheiro.
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De 11 a 17 de novembro de 2004
NACIONAL DIREITOS HUMANOS
A truculenta polícia do Rio
Fatos em foco
Em 2003, a polícia matou mais de mil pessoas e os acusados continuam impunes
Hamilton Octavio de Souza
Autocrítica urgente Os dirigentes do PT e da CUT têm a obrigação política de iniciar processo de revisão interna imediatamente, pois conduziram o maior partido de esquerda da América Latina e a maior central brasileira de trabalhadores para uma situação de rendição ao capitalismo e ao modelo das classes dominantes. Milhões de brasileiros podem se sentir enganados. Ufanismo televisivo O Jornal Nacional, da TV Globo, esta semana, apresentou, com grande entusiasmo, a contratação de 90 mil pessoas, “em todo o Brasil”, para trabalho temporário no comércio, em função das vendas de Natal. A emissora esqueceu de mencionar que existem mais de 2 milhões de desempregados somente na região metropolitana de São Paulo. Missão infeliz O governo brasileiro aceitou prontamente o pedido dos Estados Unidos para comandar “a força de paz” no Haiti. A decisão, equivocada sob vários aspectos, parecia sem maiores conseqüências. Agora, poucos meses depois, a resistência e os conflitos internos começam a envolver as tropas brasileiras em ações de violência. Tudo indica que haverá baixas em breve. Previsão imprevisível Nos últimos anos, os índices da inflação real sempre ultrapassaram as metas estabelecidas pelo Banco Central. A fixação de metas tem sido uma verdadeira ficção, mesmo porque o país não controla o câmbio e continua vulnerável aos preços internacionais e aos fluxos do capital estrangeiro. Mas o BC não desiste e fixou, para 2005, a meta da inflação em 5,1%. Teste mobilizador Dezenas de entidades da área da educação estão mobilizando estudantes e professores para a marcha sobre Brasília, dia 25 de novembro, contra a reforma neoliberal do ensino superior. Entidades que apóiam o governo tentam esvaziar o protesto. Servirá de teste para medir o poder de mobilização das oposições nas universidades. Prioridade zero A Unesco divulgou, esta semana, o Índice de Desenvolvimento da Educação, no qual o Brasil aparece na 72ª posição. O índice considera a permanência do aluno até a 5ª série do ensino fundamental, o alcance da educação primária, a taxa de alfabetização de adultos e a paridade de gêneros (homens e mulheres) dentro da escola. Ou seja, a coisa está feia mesmo. “Inspiração casuística” Em parecer contra a medida provisória que deu status de ministro ao presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, o procurador geral da República, Cláudio Fontelles, argumentou que o ato do presidente Lula está cheio de falhas jurídicas (descaracteriza a hierarquia, demanda lei complementar etc), além de ter nítida “inspiração casuística”. Jogatina legal Após dois anos de governo Lula, o Banco Central não alterou “nadinha” o esquema de evasão de recursos por meio das CC-5, remessas de lucros, pagamentos de royalties e outras mutretas de quem tem dinheiro. Estima-se em mais de 150 bilhões de dólares os depósitos de brasileiros no exterior. Parte desse dinheiro é usada para especular aqui sem pagar impostos.
Tatiana Merlino da Redação
Seis anos depois, assassinato sem solução
A
violência policial é utilizada como política de segurança no Estado do Rio de Janeiro. Quando ocorrem mortes em decorrência de confrontos com a polícia, as autoridades comemoram, os acusados não são punidos, e começa o ciclo de impunidade. Essa é uma das conclusões do relatório “Violência Policial e Insegurança Pública”, divulgado dia 21 de outubro pela organização não-governamental Justiça Global. O relatório, apresentado simultaneamente durante audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, nos Estados Unidos, e no Conselho Regional de Serviço Social, no Rio de Janeiro, faz uma análise da atuação da polícia e das autoridades da área de segurança pública no Rio de Janeiro, nos últimos três anos. De acordo com o levantamento da ONG, o número de mortos em confrontos com a polícia – os chamados autos de resistência – aumenta a cada ano. Em 1998, foram 397 vítimas; em 1999, 298. Em 2000 e 2001, os números aumentaram para 427 e 592, respectivamente. Nos anos seguintes, a violência cresceu assustadoramente. Em 2002, foram mortos 900 supostos bandidos, e 1.195 em 2003. Ou seja, entre 1999 e 2003 houve um aumento de 313% no número de assassinatos.
No relatório da Justiça Global constam episódios de violência policial ocorridos há muitos anos e ainda sem solução, como o do jovem Wallace de Almeida, assassinado por policiais militares em 13 de setembro de 1998, na porta de sua casa. O inquérito policial sobre o crime não foi concluído e apresenta uma série de irregularidades. Os autos vêm sendo enviados da central de inquéritos para a delegacia e vice-versa, sem que qualquer diligência seja realizada.
de se defender”. Entretanto, apesar do aumento da quantidade de mortes de suspeitos, o número de policiais mortos em combate no mesmo período se mantém mais estável: 99 em 1998, 92 em 1999, 106 em 2000, 91 em 2001, 170 em 2002, 45 em 2003. De acordo com Sandra Carvalho, diretora da ONG, a discrepância entre os números de civis e policiais mortos em confrontos, é uma das provas “da truculência policial”. A principal constatação dos pesquisadores foi que a sociedade fluminense vive em clima de guerra, e que parte da população, em especial a mais carente, enxerga a polícia como principal inimiga.
DIREITOS CLIMA DE GUERRA A Justiça Global sustenta que as autoridades da área de segurança se valem dos autos de resistência para mascarar os assassinatos cometidos por policiais, e que, na maioria dos casos, “as vítimas são baleadas na cabeça, nuca ou costas, sem chance
Ignácio Cano, pesquisador de violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) refuta a constatação do relatório de que a polícia fluminense se comporta como se estivesse em uma guerra. “O objetivo que a polícia estabeleceu é destruir o inimigo, mas só vamos
No mesmo dia em que o relatório foi apresentado nos EUA, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA determinou a instalação de uma comissão para acompanhar ao andamento das investigações do caso. Em dezembro de 2001, familiares e organizações não governamentais apresentaram petição à OEA sobre a execução do jovem, em virtude da morosidade das autoridades brasileiras na apuração, investigação e responsabilização dos criminosos. (TM)
estar mais seguros no Rio no dia em que ela tratar um bandido como uma pessoa com direitos”, afirma. Os mandados de busca e apreensão em residências e favelas também contribuem para uma maior violência policial, de acordo com a Justiça Global. Sandra explica que os mandados resultam “na invasão de casas de inocentes por policiais, no espancamento de moradores e na destruição e roubo de pertences. As pessoas são tratadas como se fossem todas suspeitas”, diz. Outra crítica é relativa à demora na conclusão das investigações, que estaria relacionada à morosidade da Justiça e à incapacidade da Polícia Civil. Os policiais acusados de assassinato são submetidos a inquéritos que muitas vezes levam anos e, na maioria das vezes não dão em nada. Assim, se sentem à vontade para voltar às comunidades, ameaçar testemunhas e familiares das vítimas. No Rio de Janeiro, de acordo com Sandra, existe uma “criminalização” da pobreza. Assim, todo
pobre que morre em confronto com a polícia é criminoso, e acaba sendo exibido pela polícia como troféu. Para ela, além disso, a atuação “mais dura” da polícia tem respaldo nas camadas médias da sociedade, “amedrontadas”, e que legitimam as violações de direitos humanos.
RECOMENDAÇÕES No relatório, a ONG recomenda à Secretaria de Segurança Pública diminuir a violência policial, recorrendo a mecanismos como o controle externo da atividade policial pelo Ministério Público; a retirada das ruas de policiais suspeitos de crimes; a federalização dos crimes relacionados aos direitos humanos. Após a apresentação do relatório na OEA, a Justiça Global solicitou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA que envie uma comissão ao Rio de Janeiro para investigar as denúncias que relata. Marcelo Itagiba, secretário estadual de Segurança do Rio, contestou e criticou o relatório. Segundo ele, a polícia protege a população da ação dos criminosos, e o governo está trabalhando para reduzir os índices de violência. Ele classificou como “absurda” a afirmação do relatório de que, em 2003, 1.195 civis foram mortos pela polícia do Rio. “O relatório não traz provas que contestem as mortes de 1.195 criminosos em confronto com as Polícias Civil e Militar, que são as maiores defensoras dos direitos humanos, ao combater aqueles que, com armas de guerra, atentam contra vidas humanas”, afirmou o secretário. Itagiba criticou também a vinda de um inspetor da OEA para acompanhar as investigações de casos de violência policial. “Acho que a Justiça Global deve se preocupar com coisas globais e não com as coisas pontuais”, disse.
MEMÓRIA
Homenagem lembra morte de Marighella Cecília Luedemannde São Paulo (SP) Dia 4, às 14h, na Alameda Casa Branca, próxima à Al. Lorena, em São Paulo, foi erguida uma faixa com letras vermelhas: “Marighella vive! (1969-2004) 35 anos da morte do revolucionário brasileiro”. A homenagem foi parte do ato pela memória de Carlos Marighella, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) assassinado exatamente naquele local, em uma emboscada policial. Organizado pelo Espaço Cultural Carlos Marighella, de Guaianazes (periferia da zona leste da capital), e pela Câmara Municipal de São Paulo, com o apoio do vereador Carlos Giannazi (PT-SP) e do deputado federal Ivan Valente (PT-SP), o ato foi, nas palavras de Antônio Candido, professor emérito da Universidade de São Paulo, “uma homenagem àquele que renunciou à sua própria vida pela igualdade”. “É preciso desmistificar a idéia de que quem lutou contra a ditadura é terrorista. Não é. É um cidadão que luta por seus direitos, como fazemos hoje. Por isso, é preciso abrir os arquivos da ditadura, para que haja justiça”, disse Ramon Szermeta, da Secretaria Estadual da Juventude do PT-SP.
EMOÇÃO No mesmo dia, foi reinaugurado o Memorial Carlos Marighella, escultura em granito criada em 1999 pelo arquiteto Marcelo Carvalho Ferraz. O memorial foi removido pela atual prefeitura para restauração, e a sua recolocação foi cerca-
Antônio Milena/ABr
Sinal vermelho O recado das urnas de 2004 está direcionado para o governo federal e o PT: se não promoverem mudanças, urgentemente, o PSDB volta com força total e será muito difícil a reeleição do presidente Lula. Caminhar para a direita, como parece ser a direção indicada pelo Palácio do Planalto, só fortalece as virtudes do tucanato e do neoliberalismo.
A viúva de Marighella, Clara Charf, no local onde o líder guerrilheiro foi assassinado: marco e denúncia
da de polêmicas com os moradores locais, entre os quais militares reformados, que não queriam a escultura no local. Clara Charf, viúva de Marighella, desabafou, emocionada: “Este ato é importante para todos, para a nação; não só para mim, para a família. Marighella sacrificou sua vida duas vezes pelo povo desta cidade, deste país. A primeira, na ditadura de Getúlio Vargas; a segunda, na ditadura militar”. Neta do dirigente da ALN, Maria Marighella veio de Salvador, representando o pai, e contou, com orgulho, o que sabia do avô: “Foi uma figura rica, irreverente, à frente de seu tempo, a favor do divórcio,
da separação entre Estado e Igreja, um nacionalista que defendeu o nosso petróleo”. Segundo Maria, o avô foi um homem tipicamente baiano: a mãe negra, o pai italiano. “Meu pai sempre me lembrou um pensamento dele: felicidade, a gente faz do tamanho que a gente quer,” acrescentou.
mento de Ordem Política e Social (DOPS)”. Lá, contou, o (delegado Sérgio Paranhos) Fleury e outros investigadores estavam se armando para assassinar o Marighella. À noite, voltaram gritando nos corredores: “Matamos o chefe. Mariguella já era!”
JUSTIÇA LUTA Representante do Grupo Tortura Nunca Mais-SP, a jornalista Rose Nogueira recordou o 4 de novembro de 1969 como o dia em que a repressão cercou a ALN: “Fui presa em casa, separada de meu bebê de um mês, e levada para o Departa-
Ivan Valente evocou a imagem do herói nacional e a dívida com o passado: “Carlos Marighella, como comunista revolucionário, organizou a luta de resistência e manteve acesa a luz da revolta contra a ditadura. Este é o momento para a abertura dos arquivos da ditadura”.
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NACIONAL PRIVATARIA À BRASILEIRA
Um esqueleto de R$ 25 bilhões Desde 1993, governo se endivida para capitalizar o setor elétrico; pendência trabalhista põe a nu irregularidades Nelson Breve, de Brasília (DF)
melhor do que na véspera da privatização.
BONS NÚMEROS
A
De 1997 para 2001, a receita operacional aumentou 128%, o custo de pessoal caiu 38%, o número de consumidores cresceu 31% e a geração de caixa saltou de R$ 3,5 milhões negativos para R$ 181 milhões positivos. Além disso, a Celpa tinha se beneficiado de créditos fiscais (R$ 104 milhões), Fotos: Divulgação
té hoje, 15 anos depois, a disputa judicial de meio bilhão de reais entre a Centrais Elétricas do Pará (Celpa) e o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado do Pará (Stiupa) não acabou. Mas o caso mexe também na escandalosa privatização do setor elétrico, patrocinada pelo governo tucano com a cumplicidade do Congresso, que pendurou no BNDES uma conta de R$ 25 bilhões, conforme levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU). A ação trabalhista foi vencida pelos urbanitários há 12 anos, mas a Celpa arrasta o processo nos tribunais com os incontáveis mecanismos protelatórios que favorecem sempre os devedores. Para enfrentar um dos maiores anunciantes do Pará, o sindicato investigou o processo de privatização e as contas da empresa. Descobriu que os interessados na compra da Celpa sabiam do passivo trabalhista de R$ 155 milhões (valores de 1997), mas tinham a garantia de consultores jurídicos de que não pagariam o débito.
reavaliação de ativos (R$ 146 milhões) e financiamento do BNDES (R$ 130 milhões). Além disso, a análise apontou a transferência de R$ 378 milhões de recursos da Celpa para outras empresas do grupo Rede, incluindo a participação direta na construção da Usina Hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães, em Lajeado (TO). As operações indicavam que o conglomerado estava montando um caixa único entre suas empresas conces-
sionárias e não-concessionárias, captando recursos pela Celpa e transferindo-os para outros negócios.
IRREGULARIDADES Suspeitando que o Rede violava a legislação das concessões, o Stiupa foi à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que comprovou as irregularidades em novembro de 2002. O sindicato teve acesso a uma série de contratos de mútuo (empréstimos entre empresas) demonstrando que as transferências irregulares eram generalizadas. Novas fiscalizações
da Aneel indicaram que a empresa continuava desrespeitando as regras de transferências. Essas operações, permitidas para ajuste de caixa de curto prazo, vêm sendo utilizadas como empréstimos de longo prazo. Dando como garantia a carteira de recebíveis da Celpa (tarifas cobradas dos consumidores), o grupo toma empréstimos e transfere os recursos para outros negócios. Isso é proibido, pois coloca em risco o equilíbrio econômico-financeiro da concessão, prejudicando os consumidores.
GENEROSIDADE A privatização da Celpa, conduzida pelo atual governador do Pará, Simão Jatene (PSDB), foi uma das mais conturbadas. Depois de dois leilões frustrados, o governo do Estado e a Eletrobrás melhoraram a situação patrimonial da empresa e reduziram seu preço quase pela metade. Com a generosa ajuda do BNDES, a Celpa foi adquirida por R$ 450 milhões por um consórcio liderado pelo grupo Rede – um conglomerado de pequenas distribuidoras de São Paulo e do Paraná que comprou empresas menos atraentes para grandes grupos, como a Celpa, a Cemat e a Celtins. Para averiguar a alegação de que o pagamento do débito trabalhista colocaria em risco a saúde financeira da empresa, o Stiupa encomendou análise dos balanços da Celpa desde a privatização. O estudo, feito por professores e especialistas da Universidade Federal de Mato Grosso, da Unicamp e da USP, mostrou que a empresa estava em situação financeira bem
De que lado está a Justiça?
Fotos da usina termoelétrica Nova Piratininga, em São Paulo, pertencente a Empresa Metropolitana de Águas e Energia – Emae, setor em crise desde 1993
Vender o patrimônio é um tiro no pé O relatório do TCU, encomendado pela Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados e aprovado em maio pelo plenário daquele órgão (acórdão 548/04, de 25/05/2004), mostra que as irregularidades do grupo Rede são apenas parte de um problema gigantesco decorrente das privatizações de 20 concessionárias de distribuição – 17 empresas estaduais – e quatro companhias de geração, ao longo de uma década. Em 1993, na iminência de mais uma ameaça de crise no setor elétrico, o governo federal aportou R$ 26 bilhões em títulos públicos para capitalizar as concessionárias, e concedeu aumento real de tarifas da ordem de 70%. De 1995 a 2000, o total arrecadado com as vendas das empresas elétricas foi de cerca de R$ 25,9 bilhões. De 1995 até outubro de 2003, a participação do BNDES no financiamento do setor elétrico foi da ordem de R$ 22 bilhões, dos quais R$ 7 bilhões relativos ao financiamento das privatizações; R$ 8 bilhões a projetos de investimentos em usinas hidrelétricas e termelétricas, e R$ 7 bilhões relativos ao financiamento do Reajuste Tarifário Extraordinário, decorrente do racionamento ocorrido entre junho
de 2001 e fevereiro de 2002 – para evitar o apagão.
RISCO ILIMITADO Com mais R$ 3 bilhões do recém aprovado Programa de Capitalização das Distribuidoras de Energia (Proel), a carteira de créditos do BNDES no setor chega a R$ 25 bilhões. Ou seja, o governo se endividou para capitalizar o setor, se desfez do patrimônio público, mas continua tendo que bancar os investimentos. As regras de financiamentos do BNDES, que limitam a exposição ao risco, foram violadas para facilitar as privatizações da Coelba pela Guaraniana S.A., controlada pelo grupo espanhol Iberdrola; da Enersul pela Magistra Participações S.A., controlada pela grupo português EDP; da Cemat pela Paranapanema (grupo Rede) e Inepar; da Celpa pela QMRA Participações (grupo Rede e Inepar); da Celb pela PBPart (grupo Cataguazes); da Saelpa pela Energipe (grupo Cataguazes); e da Energipe pela Catleo Distribuidora (grupo Cataguazes). Mesmo assim, passados mais de cinco anos, o saldo devedor desses empréstimos é igual ou maior do que o valor inicialmente financiado.
Estudo da Aneel, em conjunto com o Ministério de Minas e Energia, o BNDES e a Secretaria do Tesouro Nacional, em maio de 2003, analisou a situação econômico-financeira de 26 empresas distribuidoras de energia, que representam 86% do mercado de distribuição. O relatório constatou que as empresas estão extremamente endividadas e com acentuada diminuição do patrimônio líquido – algumas com resultado negativo. A situação foi agravada pelo racionamento, que resultou em queda no consumo. O prejuízo líquido das 26 empresas passou de R$ 859,1 milhões, em 1999, para R$ 9,2 bilhões, em 2002. Seu endividamento líquido quase dobrou, e as operações de mútuo entre as coligadas saltaram de R$ 6,4 bilhões, para R$ 10,1 bilhões. O governo conseguiu remodelar o setor elétrico, com novas regras para ordenar o caos gerado pelas privatizações malfeitas do governo tucano. A privatização do setor elétrico foi um tiro no pé, e o Brasil está pagando muito caro por ela – uma conta que pode se tornar um esqueleto de R$ 25 bilhões nas costas do povo brasileiro. (NB – Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br)
Conforme a Aneel, desde a privatização, a Celpa transferiu R$ 513 milhões líquidos para a Cemat, que repassou R$ 477 milhões para a Caiuá Serviços de Eletricidade, que centraliza o caixa único. Até 31 de agosto, a Caiuá tinha um débito de R$ 770 milhões com sete empresas do grupo e um crédito de R$ 478 milhões com outras quatro. Deste total, R$ 324 milhões foram repassados para a QMRA Participações, que não é do setor elétrico e, portanto, não poderia ser beneficiária das transferências. Depois de aplicar sucessivas multas nas empresas do grupo por descumprimento das determinações, a Aneel revogou as autorizações para transferências de mútuo, a partir de setembro de 2003. Mas a empresa obteve liminar na Justiça Federal para atropelar as determinações da Aneel e continuar praticando as irregularidades – que ela nega, mas estão comprovadas em relatórios da Aneel e do TCU.
CONIVÊNCIA A Aneel recorreu da decisão, sem sucesso. Em seguida, a Agência procedeu a uma fiscalização no grupo e tentou fechar a brecha legal para certos tipos de transferências, como a de recursos provenientes de empréstimos repassados de uma concessão para outra. A Aneel convenceu o Ministério de Minas e Energia a proibir tais operações na medida provisória que reestruturou o setor elétrico. Mas a proposta foi alterada pelo Congresso, que permitiu transferências, desde que autorizadas pela Aneel. Diante do estoque das transferências irregulares do grupo, de R$ 1,8 bilhão, a Aneel se limitou a negociar com o Rede um plano de regularização. As empresas terão 10 anos, com carência de 18 meses, para reverter os valores transferidos, que serão remunerados por 100% da taxa dos Certificados de Depósitos Interbancários (CDI).
ORA, A LEI! De acordo com as novas regras do setor elétrico, o grupo terá de optar entre a distribuição e a gera-
ção. A decisão dos controladores teria sido manter as oito empresas de distribuição e alienar as 34 geradoras. Além disso, por solicitação da Aneel, a Comissão de Valores Mobiliários está abrindo processo administrativo para apurar conflito de interesses ou abuso de poder pelos controladores da Celpa, que deixaram a empresa inadimplente com obrigações intra-setoriais próprias para repassar recursos de seu caixa a coligadas. As regras para novos contratos de mútuo ainda estão em negociação, embora a empresa assegure que está fazendo operações com anuência da Aneel. O acordo mostra a fragilidade dos mecanismos de regulação das concessões do setor elétrico. Uma concessionária comete graves irregularidades na gestão, colocando em risco o equilíbrio dos contratos e a qualidade dos serviços, desobedece sistematicamente a agência reguladora, distorce a verdade sistematicamente para a opinião pública e seus acionistas, e tudo o que se faz para que seja punida é aplicar multas (das quais irá recorrer por 15 anos, face à morosidade do Judiciário), avisar a CVM e autorizar um plano de devolução parcelada do dinheiro desviado.
RABO PRESO Para a Aneel, não houve negligência de sua parte. Mas o fato é que as medidas mais incisivas contra o grupo Rede só começaram quando estava em curso uma fiscalização do TCU sobre a conduta da Aneel e do BNDES no processo de privatização do setor elétrico. A própria Agência reconhece perante o TCU que precisa fazer um monitoramento mais eficaz e detalhado sobre as operações e o desempenho econômico-financeiro das empresas. Ela tem até um projeto para ações preventivas, o Painel de Controle, que não avança pela falta de recursos imposta pelo contingenciamento orçamentário. Note-se que, de 1998 a outubro de 2003, as 64 concessionárias de energia elétrica receberam 138 multas, no valor de R$ 146 milhões. (NB)
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De 11 a 17 de novembro de 2004
NACIONAL IMPUNIDADE
Pará tem nova chance de fazer Justiça Jorge Pereira Filho da Redação
S
e a impunidade é o combustível das violações de direitos humanos, o Tribunal de Justiça do Pará terá uma oportunidade única, dia 19, para repudiar a triste sina desse Estado, líder no números de trabalhadores rurais assassinados no Brasil. Nessa data, os desembargadores vão apreciar recursos de apelação do julgamento do massacre de Eldorado dos Carajás, que condenou dois oficiais e inocentou 128 policiais pelo assassinato de 19 trabalhadores rurais sem-terra. Dois cenários se vislumbram: a Justiça paraense acolhe o pedido do Ministério Público (MP) local e realiza novo júri para os soldados absolvidos, atendendo à reivindicação da comunidade internacional e das organizações de direitos humanos. Ou, então, a Justiça aceita o pedido da defesa, inocenta os oficiais e ratifica a impunidade em um dos massacres de maior repercussão ocorridos no país. O massacre do dia 17 de abril de 1996 foi a expressão máxima de uma violência cotidiana sofrida pelos sem terra. Mesmo depois do episódio, entre 1997 e 2003, 99 trabalhadores rurais foram mortos no Pará, um terço dos homicídios no campo em todo o Brasil (veja quadro nesta página). Para os autores dos crimes, o recado de Carajás é tranqüilizador, por enquanto. Apesar de o caso ter sido condenado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pela Organização das Nações Unidas (ONU), a Justiça local não prendeu, até o momento, nenhum dos acusados. Os oficiais condenados, coronel Mario Pantoja e capitão Raimundo Lameira, respondem a todo o processo em liberdade. “Não se trata de um caso de homicídio simples, para que permaneçam em liberdade, mas sim de um crime contra a humanidade. Pantoja e La-
Sebastião Salgado
Responsáveis por massacre de sem-terra continuam livres, enquanto Estado é campeão em trabalhadores rurais mortos CRONOLOGIA DA IMPUNIDADE
Velório dos 19 trabalhadores assassinados durante o massacre de 17 de abril de 1996
meira deveriam estar presos”, opina Suzana Paim Figueiredo, advogada que acompanha o caso.
ASSASSINATOS NO CAMPO
MOBILIZAÇÃO Com o pedido de realização de novo júri para os soldados absolvidos, o MP estadual tenta impedir que os responsáveis pelo massacre continuem impunes. Mas, para tanto, o Tribunal de Justiça do Pará terá de se mostrar mais sensível à defesa dos direitos humanos. Organizações sociais, em conjunto com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), estão organizando uma vigília em frente ao Tribunal, em Belém, a partir do dia 18. “Queremos nos manifestar para o desembargador não inocentar os oficiais já condenados e somar forças ao Ministério Público. A possibilidade de o pedido do MP ser aceito é mínima, a não ser que haja uma ampla mobilização nacional e internacional”, analisa Charles Trocate, da direção nacional do MST no Pará. A previsão é de que
Ano
Pará
Brasil
2003 2002 2001 2000 1999 1998 1997
33 20 08 05 09 12 12
73 43 29 21 27 47 30
Fonte: Comissão Pastoral da Terra
cerca de mil pessoas participem do ato que contará com a presença de juristas, parlamentares e personalidades públicas. A preocupação das organizações se justifica pelo fato de o processo jurídico do massacre ter sido marcado por polêmicas e contestações. O primeiro julgamento, realizado em agosto de 1999 (veja quadro ao lado), inocentou todos os acusados. Meses depois, o Tribunal de Justiça decidiu anulá-lo, depois de comprovadas falhas processuais. Já o inquérito instaurado sobre o massacre está recheado de condutas atípicas. “Não houve uma apuração
detalhada. O objetivo era mostrar que as vítimas foram agressivas. Isso é nítido, não foi feito exame de pólvora nas mãos dos policiais, mas sim nas mãos dos mortos”, explica o jurista Nilo Batista, exgovernador do Rio de Janeiro que participou do primeiro julgamento como assistente da acusação.
HIERARQUIA E MENTIRA Segundo a advogada Suzana, que também atuou como assistente da acusação no primeiro julgamento, os argumentos da defesa são insustentáveis. Primeiro, disseram que os policiais não haviam iniciado o confronto, apenas revidando supostas agressões. Mas um laudo produzido pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) derrubou essa tese, confirmando que os policiais não só começaram a disparar contra os trabalhadores como executaram os sem-terra, com tiros no tórax e na cabeça. “Também não cabe o argumento de que os policiais são inocentes porque cumpriam ordens,
1996 5 de março – Sem-terra ocupam a fazenda improdutiva Macaxeira, leste do Pará, e cobram do Incra a sua desapropriação 8 de abril – MST inicia marcha para negociar com o governador Almir Gabriel (PSDB) 16 de abril – Sem-terra bloqueiam a rodovia PA-150 para pressionar governo. Policiais propõem que trabalhadores saiam da pista, enquanto levam reivindicações ao governador. A proposta é aceita. 17 de abril – Gabriel se nega a negociar. Trabalhadores voltam para a pista. Cerca de 150 policiais armados reprimem os sem-terra, matam 19 trabalhadores e deixam 60 feridos. 1999 16 de agosto – Primeiro julgamento sobre o massacre. Todos os policiais são absolvidos. 2000 11 de abril – Tribunal de Justiça do Pará anula o julgamento. 2002 14 de maio – Início do novo julgamento. Imprensa do Pará noticia que jurados são pressionados para absolver policiais. 10 de julho – Fim do segundo julgamento. Apenas 2 policiais são condenados. Ministério Público entra com recurso pedindo a realização de novo júri para os absolvidos. Defesa dos réus pede a anulação da condenação. 2004 19 de novembro – Julgamento dos recursos.
pois ninguém pode ser obrigado a obedecer a uma ordem quando é ilegal e injusta, sobretudo quando envolve a morte de tantas pessoas”, rebate Suzana. Para os movimentos sociais, a expectativa é de que um novo julgamento para os policiais absolvidos, por parte do Tribunal paraense, abra a possibilidade de levar o caso Carajás para outras instâncias. “Precisamos acumular forças na sociedade para que a reforma do Judiciário e a federalização dos crimes contra direitos humanos seja contemplada”, avalia Trocate, do MST (veja entrevista abaixo).
ENTREVISTA
Resultado de julgamento é insatisfatório
pectativa da sociedade brasileira, nem das vítimas nem da comunidade internacional, já que é um caso que ganhou o mundo. BF – Mesmo depois do massacre de Eldorado dos Carajás, o Estado de Pará continuou a registrar os maiores números de trabalhadores rurais assassinados no país, responde a mais de um terço do total no Brasil. O senhor acha que a impunidade está estimulando a violência? Miranda – Prefiro ver a coisa em outro ângulo. Desde o início do atual governo, não houve mais nenhuma morte provocada por agentes públicos. Avançou muito o instrumento de mediação de conflitos para evitar situações como aquelas. Avançamos a luta contra o trabalho escravo e a da reforma agrária. BF – O senhor é a favor da federalização dos crimes contra os direitos humanos. Que diferença isso faria? Miranda – O Conselho de Defesa
Quem é Secretário Nacional de Direitos Humanos, ex-preso político durante o regime militar, Nilmário Miranda foi também três vezes eleito deputado federal pelo PT de Minas Gerais. Propôs a criação da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e foi seu primeiro presidente. de Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) fez um relatório que, se fosse um inquérito, daria outro rumo para o julgamento de Eldorado dos Carajás. Mas como não há federalização, o relatório do CDDPH não produziu efeitos judiciais, nem na denúncia do Ministério Público. Isso também ocorreu no caso do Carandiru e da Candelária. Sem a federalização, o relatório não tem valor de inquérito, mostra a verdade, mas não tem desdobramento. Com a federalização, se um caso estivesse caminhando para a impunidade, como o de Carajás, haveria a possibilidade de transferi-lo para a esfera federal e reparar os equívocos. BF – Em que estágio está o projeto da reforma judiciária, em tramitação no Congresso, que prevê a federalização? Miranda – É importante que o Senado aprove essa proposta, mas há quatro destaques, em votação em separado, para a eliminação. O texto básico da reforma, que
contém a federalização, já foi aprovado no Senado e na Câmara. Mas, agora, os senadores terão de confirmar se querem manter essa medida. BF – A federalização busca também impedir que o poder local interfira nas decisões da Justiça de crimes de direitos humanos? Miranda – Há uma imensa confusão dos ministérios públicos estaduais, que são contra a federalização, achando que será reduzido o poder deles. Onde o sistema de garantia de direitos funciona, não vai ser preciso federalizar nada, pois não haverá
impunidade. Agora, onde há impunidade, mesmo existindo o ministério público e há clara interferência do poder, a esfera federal poderia reparar uma impunidade, em qualquer fase do processo. O ideal seria que jamais a federalização fosse utilizada e, quando houvesse um massacre de Eldorado dos Carajás, tivéssemos uma punição exemplar. Essa não tem sido a realidade. A federalização seria um recurso de excepcionalidade, quando a Justiça não funciona a contento, como no caso de Carajás, que não responde pela gravidade da violação praticada. (JPL)
Rafael Bavaresco
Brasil de Fato – O massacre de Eldorado ganhou ampla repercussão internacional. O senhor acha que a condenação de apenas dois oficiais corresponde ao repúdio e à indignação da sociedade perante o crime? Nilmário Miranda – Acho difícil opinar sobre uma decisão judicial, mesmo porque não estão esgotados os recursos. Mas é claro que a gente fica insatisfeito. Eu acompanhei muito esse caso, era da comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, fui até à Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), sempre me empenhei nesse caso. QueConselho de Defesa dos Direitos da ríamos que Pessoa Humana fosse um caso (CDDPH) – Coleemblemático giado formado por e tivesse um representantes do governo e da socieresultado sadade civil, que investisfatório. Por tiga denúncias de enquanto, o violações de direitos de abrangência naresultado não cional atende à ex-
Agência Brasil
“O resultado não atende à expectativa da sociedade brasileira, das vítimas ou da comunidade internacional”, avalia o ministro Nilmário Miranda, responsável pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, sobre o julgamento do massacre de Eldorado dos Carajás. Ex-preso político, Miranda defende, em entrevista ao Brasil de Fato, a federalização dos crimes contra os direitos humanos para evitar que julgamentos de graves violações, influenciados pelo poder local, acabem em impunidade.
Solidariedade – Cerca de 500 integrantes do MST do Maranhão realizaram, dia 9, manifestações na capital, São Luís, como parte da “Mobilização Nacional pela Reforma Agrária e Emprego”. Pela manhã, fizeram caminhada até o prédio do Ministério da Fazenda e realizaram, a céu aberto, debate sobre a conjuntura econômica. Na parte da tarde, os agricultores foram até a sede do Tribunal de Justiça do Estado para prestar solidariedade às vítimas de Eldorado dos Carajás.
Ano 2 • número 89 • De 11 a 17 de novembro de 2004 – 9
SEGUNDO CADERNO INTEGRAÇÃO Ricardo Stuckert/PR
Rio de Janeiro (RJ) - Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro Celso Amorim, ao lado de chefes de Estado, de Governo e Vice-Presidentes, na abertura da 18º Cúpula do Grupo do Rio
Grupo do Rio discute intervenção no Haiti Lula defendeu a soberania daquele país e Chávez disse que falta legitimidade ao governo imposto pelos EUA Nestor Cozetti do Rio de Janeiro (RJ)
A
situação atual do Haiti foi o principal assunto da 18ª Cúpula do Grupo do Rio, integrado por 19 países da América do Sul e Caribe, que se reuniu pela segunda vez entre os dias 2 e 5, na cidade da qual recebeu o nome, ao surgir, em 1986: o Rio de Janeiro. “Não abdicamos de tomar os nossos destinos em nossas mãos”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao abrir a cúpula presidencial. No mesmo dia, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, discordou da atuação da força de paz: “O governo que está hoje no Haiti não tem legitimidade por ter sido imposto pelos Estados Unidos. Cremos nas soluções que o próprio povo haitiano pode oferecer, acima das soluções propostas pelas elites nacionais e internacionais. Uma Assembléia Constituinte no Haiti é
a saída”, sugeriu. Chávez assinalou ainda, em nota distribuída aos jornalistas, que “andamos de cúpula em cúpula, e os povos, de abismo em abismo” Em entrevista coletiva à imprensa, no encerramento do encontro, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, junto com seus colegas da Argentina e do Peru, afirmou que “a presença da América Latina e do Caribe no Haiti tem de ser diferente do que ocorreu no passado, para se diferenciar das intervenções das tropas militares norte-americanas na América Central e Caribe, aniquilando governos que não lhes convinham”. Ao ser indagado se era verdade que o Brasil estaria enviando um mensageiro ao presidente deposto do Haiti, Jean Bertrand Aristide, Amorim respondeu que “deve ser aberto um canal de conversação com Aristide, não sabe-
mos como, mas deve ser feito”. Outra questão debatida pelos presidentes foi a criação de um fundo de investimento próprio dos países da América Latina para contrapor-se ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Dois presidentes não compareceram à Cúpula do Rio, o da Argentina, Néstor Kirchner, que optou por reunir-se com familiares de desaparecidos políticos, segundo informações extra-oficiais, e o do Equador, Lucio Gutiérrez, que enfrenta um processo de impeachment. Cuba não integra o Grupo, por veto da maioria dos integrantes da cúpula.
CHÁVEZ VISITA FIDEL À noite do último dia do encontro, o presidente Hugo Chávez falou aos estudantes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): “Os soldados da América Latina não nasceram para apoiar o im-
ANÁLISE
Na Colômbia e em muitos outros cantos do mundo muitos políticos, jornalistas e dirigentes populares vêm perguntando: por que o presidente Álvaro Uribe insiste na negociação com os paramilitares de direita, se a negociação é rejeitada pela maioria do povo colombiano e pela comunidade internacional? Para entender isso, é bom recordar que o presidente, pelo seu passado, é um homem comprometido com o narcotráfico e a delinqüência. Seu pai, Alberto Uribe Sierra, esteve ligado à família Ochoa, fundadora, junto com Pablo Escobar, do Cartel de Medellín. Por meio da influência dos narcotraficantes, o filho de Alberto Uribe, o atual presidente Álvaro Uribe Vélez, foi nomeado prefeito de Medellín pelo governador do departamento. Durante sua administração, favoreceu os narcotraficantes, infiltrados desde nas câmaras municipais até no governo central. Os narcotraficantes financiavam programas sociais (Pablo Escobar construiu mil casas populares para catadores de lixo) e assim se tornaram imprescindíveis para a maioria
uma extensa programação fora da Cúpula do Rio. No último dia, após almoçar com Lula, Chávez conversou com Gilmar Mauro, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com o teólogo Leonardo Boff e com o sociólogo Emir Sader, além de ter ido à Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Ao deixar o Brasil, Hugo Chávez foi para Cuba, em uma visita surpresa ao presidente Fidel Castro. “Vejo que você está muito bem, com uma cara boa”, disse Chávez a Castro. “Estou bem também de espírito”, retrucou, sorridente, o líder cubano. No encontro de oito horas, que reuniu representantes dos dois países, os presidentes revisaram acordos de cooperação bilateral, falaram do Grupo do Rio, dos pactos de integração latino-americana e da atualidade internacional.
CUBA
Filho de peixe, peixinho é Juan Leonel e Luis Pedro
perialismo. Se o império quer defender seus interesses, tem os seus próprios soldados. No Haiti, eu disse ao Grupo do Rio, está ocorrendo o mesmo que na Venezuela. Antes da fome, um povo tem dignidade. O povo do Haiti é também um povo digno. Os americanos levaram o presidente Jean Bertrand Aristide. O mesmo aconteceu comigo, me seqüestraram e me neguei a assinar a renúncia. E propusemos que, em vez de intervenção, vamos dar voz ao povo do Haiti, convocando uma Assembléia Constituinte para que possam votar. É o que fizemos na Venezuela e sugerimos no Haiti”. Chávez aproveitou a ocasião para mandar um recado ao presidente reeleito dos Estados Unidos: “Se vier com a mesma carga de agressões, se seguir por esse mesmo caminho, fará o sonho de Guevara porque irá surgir um Vietnã, um, dois, mil vietnãs neste mundo”. O presidente venezuelano cumpriu
dos políticos. Uribe foi diretor da Aeronáutica Civil de 1980 a 1982. Concedeu brevês a pilotos do narcotráfico e seu subdiretor, César Villegas, foi condenado depois a cinco anos de prisão por ter intermediado a doação de milhões de dólares de narcotraficantes para a campanha presidencial do candidato Samper, tendo sido assassinado em março de 2002, numa queima de arquivo. Já Uribe foi eleito governador do departamento de Antioquia. Durante a presidência de Ernesto Samper, de 1994 a 1998, Uribe ajudou a legalizar os paramilitares, por meio do decreto 356/940, como “serviços especiais de vigilância e segurança”, mais exatamente redes de apoio aos militares para exterminar opositores ao regime. Em 1996 esses serviços se reuniram nas Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), lideradas por Carlos Castaño, da extrema direita. A campanha presidencial de Uribe foi feita com a promessa de organizar um milhão de informantes, os “sapos”, e transformar em paramilitares cem mil camponeses. Sua atual negociação com os paramilitares é apenas continuação de suas atividades anteriores;
afinal, 35 % dos parlamentares da Colômbia são ligados aos paramilitares; toda a mídia colombiana está a favor de Uribe. Por trás de tudo isso estão o Pentágono (as empresas petrolíferas estrangeiras são protegidas na Colômbia por tropas dos Estados Unidos), a CIA, o governo estadunidense e a paraoligarquia mafiosa colombiana. Isso tudo é bem conhecido por jornalistas, políticos, sacerdotes, bispos, indígenas, donos da mídia e pelos estudantes e trabalhadores que têm visto seus líderes serem assassinados. Agora a mídia aponta como escândalo a extensão do paramilitarismo na Colômbia. Como o paramilitarismo não vai crescer, se o presidente Álvaro Uribe Vélez é o seu chefe? Não podemos esquecer: Uribe é um narcoparamilitar e fará o possível e o impossível para dar cobertura jurídica e política a seus esbirros e dessa forma assegurar sua reeleição para perpetuar o nefasto governo dos ricos, dos narcotraficantes e dos paramilitares. Juan Leonel e Luís Pedro são diretores do Centro de Estudos Latino-Americano
Sem maiores problemas, termina era do dólar Miguel Lozano de Havana (Cuba) Dia 8 de novembro chegou ao fim a era do dólar dos Estados Unidos no comércio em Havana, com um dia normal nos estabelecimento que até a véspera ofereciam produtos e serviços em moeda estadunidense. Em várias lojas, vendedores asseguraram que não houve diferença, em volume de vendas, em relação às segundas-feiras anteriores, embora a moeda fosse o peso conversível (em paridade com o dólar) e não mais o dólar, que estava em circulação há dez anos. As autoridades cubanas anunciaram em outubro a proibição do dólar no comércio interno, devido às pressões dos EUA contra o uso de dólares por Cuba em suas transações internacionais. A operação foi feita por etapas. Dia 28 de outubro começou a troca dos dólares em poder da população por pesos conversíveis. Embora o Banco Central de Cuba tenha deixado claro que os dólares poderiam continuar de posse das pessoas, centenas de milhares de correram aos postos de câmbio. Inicialmente estava previsto
que, a partir do dia 8 de novembro, haveria a cobrança de uma taxa de 10 % na troca de dólares por pesos conversíveis, mas isso foi adiado para o dia 14. Um dos objetivos dessa taxa é estimular o ingresso na Ilha de outras moedas, com as quais Cuba pode transacionar sem problemas no comércio internacional. Os visitantes que troquem qualquer moeda por peso conversível poderão trocar de novo a quantia não utilizada quando forem sair de Cuba, conforme a prática internacional. As autoridades informaram que houve um aumento considerável na abertura de contas bancárias em dólares, que não sofrerão a taxa de 10 %. Os especialistas cubanos e estrangeiros, inclusive diplomatas, calculam que a eliminação da circulação do dólar estadunidense não trará conseqüências negativas para os negócios, os investimentos, e nem para o envio de divisas pela remessa de emigrados. Calcula-se que 80 % dos turistas em Cuba venham da zona do euro ou de outros países que não os EUA e os emigrados poderão enviar suas remessas em outras moedas que não o dólar. (Prensa Latina, www.prensa-latina.cu)
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INTERNACIONAL IRAQUE
Estados Unidos atacam e devastam Faluja João Alexandre Peschanski da Redação
U
ma semana após a reeleição de George W. Bush à Presidência dos Estados Unidos, no dia 2, o Exército estadunidense lançou uma ofensiva em Faluja, a oeste de Bagdá, principal reduto de oposição à ocupação militar do Iraque. Organizações que atuam na cidade, principalmente de ajuda humanitária, denunciaram o massacre. Em relatório veiculado pelo grupo estadunidense Vote No War (do inglês, “vote não à guerra”), com base em documentos de entidades iraquianas, fala-se em 68 mortos. Além disso, milhares de famílias abandonaram suas casas, fugindo dos ataques. Estima-se que, em Faluja, vivam 300 mil pessoas. No dia 6, aviões bombardearam e destruíram o principal hospital da cidade. No ataque, seis pessoas morreram e o depósito de remédios foi incendiado. Em comunicado oficial, o governo Bush afirmou “controlar” a cidade e a região. Para o ataque, o Exército mobilizou 8.500 soldados. Em abril, dois mil soldados estadunidenses, e de outras nacionalidades que apóiam a ocupação do Iraque, haviam tentado tomar Faluja, mas recuaram ao encontrar muita resistência por parte da população local. A ofensiva do dia 2 surpreendeu a Organização das Nações Unidas (ONU), que condenou os ataques. Em nota, a instituição lembrou que,
Stefan Zaklin/EFE/AE
Entidades humanitárias contabilizam 68 mortos e milhares de famílias expulsas de suas casas, só no ataque do dia 2
Segundo relatório do grupo Vote No War, a ofensiva já resultou em 68 mortes
em sua campanha eleitoral, Bush afirmou que sua prioridade para o Iraque seria organizar eleições livres. Movimentos sociais dos Estados Unidos pretendem promover manifestações contra a ofensiva, exigindo a saída das tropas que ocupam o Iraque. Todavia, não marcaram data para as mobilizações.
LEI MARCIAL
Um tanque Bradley estadunidense participa da invasão à cidade iraquiana no dia 9
No dia 7, o primeiro-ministro interino iraquiano, Iyad Allawi, decretou o início da lei marcial no Iraque, determinando estado de emergência que deve durar por 60 dias. Nessa situação, o governo
interino tem poder para criar postos de controle, impor toque de recolher e deter pessoas sem precisar de justificativa legal. Para integrantes de Vote No War, a lei marcial não faz diferença, pois “de qualquer forma, os iraquianos não têm seus direitos respeitados”. Allawi justificou o decreto como sendo um meio para reforçar a repressão a grupos ligados a alZarqawi, líder da resistência à ocupação no Iraque. O governo dos Estados Unidos alega que al-Zarqawi é coordenador da al-Qaeda no país, grupo considerado terrorista pelas autoridades estadunidenses.
ANÁLISE
Ramzy Baroud de Washington (EUA) Se a doença e a inesperada ida de Yasser Arafat para a França representaram o fim de uma era, como alguns apressaram-se em dizer, é porque sua presença, mesmo como símbolo vivo, é assunto de grande importância. Deve-se cuidar, porém, que a luta palestina não seja mal interpretada, reduzida apenas ao legado de um homem. É cedo demais para avaliar as contribuições feitas por Arafat à luta palestina. Talvez isso só seja possível depois de alguns anos. O mais importante, agora, é manter a força da resistência palestina e sua capacidade de se impor frente ao imenso poder de um Estado agressor. Para alguns, Arafat é apenas mais um líder árabe autocrático que se segura em seu posto, recusando-se a dividir poder ou alocar responsabilidades para qualquer pessoa fora de seu círculo mais próximo, com nada de novo para oferecer que não a retórica gasta da “luz no fim do túnel”, e da “montanha que não pode ser sacudida pelo vento”. Mas aqueles que enxergam apenas esse lado de Arafat ignoram a astuta mistura política, cultural e intelectual nele representada, sua habilidade de significar muitas coisas diferentes para muitas pessoas diferentes. Arafat – quer deliberadamente ou não – conseguiu associar-se a cada dificuldade enfrentada pelos palestinos, ao longo de décadas. Desde os anos iniciais, como estudante ativista no Cairo, em 1949, até a decisiva formação do movimento Fatah, em 1965, Arafat sempre esteve presente. Para os líderes árabes, Arafat sempre foi um enviado divino (mesmo com as eventuais rusgas). A presença de Arafat justificava a ausência dos líderes. Foi ele quem insistiu em referir-se à Organização pela Libertação da Palestina (OLP) como “única e legítima” representante do povo palestino – slogan abraçado apaixonadamente pelos regimes árabes, liberando-os de sua
Global Research in international Affeurs (Gloria)
Yasser Arafat: a montanha e o vento
Arafat está internado desde o dia 29 de outubro, no hospital em Paris, França
A luta pela liberdade da Palestina prosseguirá, independentemente de guerreiros, sábios e líderes, que vêm e vão completa falha em defender a causa e o povo palestino. Mesmo os palestinos que se opõem à sua linha política, de acordos de paz incondicionais, vêem Arafat de modo especial. Quando o helicóptero militar o levou para fora de seu quartel general, em Ramalá (pondo fim ao cerco de três anos promovido por Israel), os palestinos observaram em silêncio sua mais recente partida, e associaram-na à história de privação da qual sempre fizeram parte. Comentaristas palestinos escreveram sobre histórias distantes – mas não esquecidas –, relacionando Amã a Beirute a Tunis a Gaza a Ramalá e, agora, a Paris.
SIMBOLISMO O legado de Arafat é de um simbolismo puro – simbolismo ao
mesmo tempo substancial e significativo. Mesmo que ele tenha agido como se sua jornada à França fosse como qualquer outra, todo palestino sabe que, desta vez, é diferente. Quando Arafat foi expulso do Líbano, em 1982, soldados palestinos atiravam nos céus. Arafat manteve sua pose desafiadora, e disse a seus camaradas que o caminho para Jerusalém estava mais próximo, que o Líbano era apenas mais uma escala em sua longa jornada de volta à terra natal. Eles acreditaram nele, e continuaram atirando. A distância de Beirute a Tunis pouco significava. A presença de Arafat pairava não apenas entre os refugiados libaneses, mas também nos campos de Gaza. Quando eu era criança, era comum que no meu campo de refugiados em Gaza soldados israelen-
ses forçassem jovens palestinos a se ajoelhar e, então, os ameaçassem com surras se não cuspissem numa foto de Yasser Arafat. “Diga que Arafat é um cretino”, gritavam os soldados. Ninguém trocaria sua segurança por um insulto à imagem de Arafat. Agüentariam ferimentos e dor, mas não diriam nada. Não era o caráter de Arafat o responsável por essa resistência, e sim o que ele representava. Isso explica o porquê da população de Gaza mobilizar-se, hipnotizada, quando “Abu Ammar” (como os palestinos o chamavam) falou sobre seu retorno após a assinatura do tratado de Oslo. Retrospectivamente, isso também explica o nível de traição sentido por muitos palestinos quando seu ícone – “divinizado” durante o exílio – falhou em corresponder às expectativas quanto à sua volta para a terra natal. A sensação era a de que, assim que retornasse a Gaza, no meio dos anos 90, a era de Arafat chegaria ao fim. Sentimentos alimentados não devido à sua idade avançada, nem à sua saúde frágil, nem pela sua irrelevante designação, por Israel, como parceiro para a paz – ou por qualquer outra coisa. Acontecia apenas que o homem que havia prometido a lua havia falhado em entregar um campo de refugiados desolado. O homem que havia prometido Jerusalém estava negociando a respeito do pequeno bairro de Abu Deis. O líder astuto que falava da paz dos bravos tinha pouco a dizer quando a Cisjordânia era mais uma vez tomada pelo maquinário militar israelense. Nunca foi fácil para Arafat manter sua imagem de guerreiro e burocrata. Israel queria que ele reprimisse aqueles que lutavam com ele e por ele. Os EUA queriam que ele “condenasse o terrorismo, não pelas palavras, mas pelos atos”. Mas foi a resistência armada que sustentou a luta de Arafat por décadas. Líderes árabes o pressionavam, levando o recado de Israel e EUA, mantendo-se totalmente à margem do que, por décadas, tem sido a causa árabe. Seus amigos o
exploraram. Seu ponto de equilíbrio foi perdido e sua aura apagouse aos poucos.
ETERNO GUERREIRO Quando Israel bombardeou os quartéis-generais de Arafat em Ramalá e o confinou com a bênção dos EUA, não desejava dar ao velho líder palestino um motivo para que pudesse ser chamado de herói da resistência. A ocupação israelense da Cisjordânia e o confinamento físico de Arafat o absolveram diante de seu povo, ao mesmo tempo em que reforçou a imagem do guerreiro que nunca se entrega, mesmo derrotado. Mesmo com a luta de poder dentro da Fatah e as suspeitas de corrupção, Arafat manteve-se imune. O líder da Brigada dos Mártires de Al-Aqsa disse-me durante uma entrevista por telefone alguns meses atrás: “Arafat é o nosso símbolo e nosso líder e nada irá mudar isso”. Poucas pessoas podem outorgar-se um legado como o de Arafat, ou sua habilidade em juntar tantos interesses distintos. Mas ainda que seu fim seja adiado um pouco mais, a conclusão que fica é a de que sua era está acabando. Nos próximos dias, Israel, os EUA e os regimes árabes estarão engalfinhados em garantir que a era pós-Arafat lhes sirva do modo mais conveniente. No caso dos governos árabes, essa era deve absolvê-los de qualquer responsabilidade maior em relação à Palestina e seu povo. Mas os palestinos são fortes. Eles aprenderão a lidar com a vida sem Arafat e sua mística. Sua unidade nacional resiste, e ficará ainda mais forte com sua luta, mesmo em meio à dor. Guerreiros, sábios e líderes vêm e vão, alguns ficam por perto um pouco mais que outros. Mas a marcha rumo à liberdade continuará, pois a “montanha não pode ser sacudida pelo vento”. Ramzy Baroud é jornalista árabe-estadunidense, editor chefe do PalestineChronicle.com e chefe do Departamento de Pesquisa e Estudos da Aljazeera.net
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INTERNACIONAL ELEIÇÕES NOS EUA
O susto do país com dupla personalidade Ninguém esperava: com Bush, ganhou a direita ultraconservadora e religiosa, habilmente articulada por Karl Rove Até a noite da votação, ninguém, nem mesmo no seu próprio partido, acreditava que aquele ambiciosíssimo texano de 54 anos, ansioso para impor um domínio republicano durante décadas (nas suas próprias palavras) sobre a Casa Branca, tivesse razão quando afirmava que o voto religioso seria decisivo.
CMI
Gianlucca Iazzolino de Washington (EUA)
O
NÚMEROS CLAROS O êxito de Bush, desta vez, parece inquestionável. Se, em 2000 ele tinha perdido para Al Gore no voto popular, mas conquistado de maneira não de todo transparente o Colégio Eleitoral, agora, os números foram claros: quase 4 milhões de votos a mais do que Kerry, 8 milhões a mais em relação à sua própria votação em 2000. E conquistou, ainda, os eleitorados feminino e católico que, há quatro anos, tinham votado, na grande maioria, em Gore. Fazem o mea culpa também os meios de comunicação, que se perguntam como puderam se enganar tão clamorosamente. Porém mais surpreendentes foram as pesquisas feitas depois da votação, sobre os motivos que levaram os eleitores a escolher o seu candidato: 22% dos entrevistados disseram ter escolhido com base em valores morais; 20% levaram em conta a economia e o emprego; 19% a luta contra o terrorismo; só 15% se pautaram pela guerra do Iraque. Assim, os valores morais, ou seja, as posições do governo Bush
EM SILÊNCIO
Manifestantes em Nova York repudiam a vitória de Bush nas urnas: direita religiosa garantiu resultado das eleições
sobre o direito ao aborto e sobre os casamentos entre homossexuais teriam pesado mais sobre a consciência dos cidadãos do que os escândalos das torturas na prisão iraquiana de Abu Ghraib, ou do que as mentiras sobre as armas de destruição em massa. “O erro dos comentaristas políticos, mas também dos estrategistas da campanha democrata, foi pensar que a raiva fosse só contra os republicanos”, disse Anthony Corrado, analista político da Brookings Institution, um respeitado centro de estudos em Washington. “Quase todos pensavam que os enraivecidos eram só aqueles que se manifestavam contra a guerra ou contra as leis especiais contra o terrorismo. Mas havia outros Estados Unidos enraivecidos: os preocupados com os seus próprios valores morais”, acrescentou Corrado.
mado Cinturão da Bíblia, onde os maiores veículos de comunicação política são as igrejas evangélicas e as congregações batistas. Enquanto os democratas organizavam a campanha sob os olhos da mídia, com concertos dos astros da música, os Estados Unidos conservadores e ultra-religiosos se mobilizavam em silêncio para confirmar Bush na Casa Branca. E foram vitoriosos, sem que quase ninguém esperasse isso.
EXPLICAÇÕES Entre os democratas, muitos acusam Kerry de não ter decidido não se pronunciar sobre os casamentos entre homossexuais. O pre-
feito democrata de São Francisco, Gavin Nesom, um dos primeiros no país a celebrar núpcias entre homossexuais, foi acusado pelos seus companheiros de ter sido uma das causas da derrota. Ele se defende: “Apenas apliquei a Constituição, que garante a todos os cidadãos os mesmos direitos perante a lei.” Entre os republicanos, o vencedor indiscutível é o homem considerado o cérebro de Bush: Karl Rove, consultor político do presidente, chamado também de arquiteto, menino-prodígio, Maquiavel da Casa Branca. Incrédula, a mídia observa o feito de Rove, colaborador de Bush desde quando era governador do Texas.
Marcio Baraldi
dia 3 de novembro será lembrado como o dia em que os Estados Unidos descobriram que têm dupla personalidade. Dia 4, as entrevistas nas ruas de grandes cidades como Nova York, Los Angeles ou Chicago, davam voz a cidadãos estadunidenses que não sabiam mais em que país moravam. Na véspera das eleições, as listas eleitorais indicavam 4 milhões de eleitores novos e se esperava um comparecimento recorde entre 115 milhões e 120 milhões de votos. Historicamente, as grandes afluências às urnas tinham sempre beneficiado os democratas. Segundo os especialistas, isso ocorreria de novo. Grandes esperanças estavam depositadas nos votos dos novos eleitores, os jovens, que, certamente, de acordo com os analistas, seriam mais progresistas e votariam em Kerry. Nada disso aconteceu. É verdade que mais gente apareceu para votar, mas em Bush, e os jovens não foram tão progressistas como se esperava: 54% dos eleitores entre 18 e 29 anos votaram em Kerry, 45% em Bush. Assim, enquanto um festejava sua reconquista da Casa Branca, o mea culpa era generalizado entre os democratas e as entidades da sociedade civil que lutaram até o fim para abrir os olhos das pessoas em relação às mentiras do governo.
DIREITA Mais do que em quaisquer outras eleições, de fato, o êxito de Bush foi garantido pela direita religiosa, que tem influência sobretudo nos Estados do Sul. Para demonstrar sua teoria, Corrado sublinha o fato de que o maior comparecimento às urnas ocorreu nos Estados onde se votava também a respeito do casamento entre homossexuais. Em onze Estados, os cidadãos deviam decidir se aceitavam uma emenda constitucional para especificar que o casamento só pode ocorrer entre um homem e uma mulher. Os quase 4 milhões de votos a mais para Bush vieram dos que foram votar preocupados com o casamento gay. O boca a boca se difundiu de porta em porta, nas grandes áreas agrícolas do Meio-Oeste, no cha-
Karl Rove articulou ligações estreitas com os movimentos populares de direita dos Estados do Sul, espalhando mentiras e calúnias; estabeleceu contatos diretos com a base do partido e com os voluntário que andavam de casa em casa para convencer as pessoas a votar em Bush. Ele trabalhou pacientemente, em silêncio e, no fim, levou a mulher. Rove proporcionou a Bush muito mais do que uma vitória presidencial e a renovação da Câmara e do Senado (dando aos republicanos uma maioria que não tinham há tempos). O texano desencadeou uma verdadeira revolução reacionária no próprio coração dos Estados Unidos. Com um projeto teocrático de fazer inveja aos fundamentalistas islâmicos contra os quais os EUA estão em guerra, disseminou a raiva contra todos que querem rediscutir os aumentos de impostos para sanar o déficit público; o direito de escolha sobre o aborto; os direitos dos gays.
SEM LÍDERES Olhando os mapas da votação nos Estados Unidos (um bloco de Estados republianos circundados ao longo da costa por uma estreita faixa de Estados democratas), os democratas tomaram consciência desta revolução cultural e se sentem impotentes. Não há uma personalidade que surja como líder democrata, e os movimentos sociais estão desorientados. O cineasta Michael Moore, um dos maiores gurus do antibushismo, insta a quem votou no Partido Democrata a “não cortar os pulsos”. O fato é que, dos Estados Unidos de extrema-direita, pareciam não ter conhecimento, antes das eleições, os liberais (nome dado pelos estadunidenses aos progressistas), mobilizados pela palavra-de-ordem “Qualquer um, menos Bush”. No fim, Kerry não foi encarado como líder pelos estadunidenses que vêem George W. Bush, cristão renascido que se vangloria de rezar duas vezes por dia, como um homem de Deus. Kerry, sobretudo, não tinha muito a dizer sobre os três temas que fizeram, segundo os analistas, Bush vencer: Deus, gays e armas.
ALEMANHA
da Redação Autoridades policiais alemãs expressaram sua preocupação diante do crescente aumento do extremismo de direita no país. Dia 8, ao inaugurar um congresso sobre temas relativos a segurança, terrorismo e neonazismo, que acontece na cidade de Kiel, o ministro do Interior do Estado federado de Schleswig-Holstein (cuja capital é Kiel, no norte do país), Klaus Buss, afirmou: “Há anos se observa um aumento do anti-semitismo, em conjunto com o extremismo de direita e do neonazismo”. Buss admitiu que o extremismo de ultradireita e o anti-semitismo são exatamente a mesma coisa na Alemanha; e o último “é um fenômeno cotidiano há muito tempo”. O chefe da Polícia Federal de Investigações da Alemanha (BKA),
Fotos: CMI
Polícia admite crescimento da extrema-direita
Com o crescimento dos grupos neonazistas e anti-semitas, ativistas alemães protestam na cidade de Trier, dia 6
Jorg Ziercke, observou que o número de pessoas que incorporam essas idéias parece aumentar cada vez mais. Entre elas, lamentou, figuram cada vez mais universitários, pessoas de elevada posição profissional e de idade avançada. Com a aprovação, por parte do governo federal, de novas medidas antiterroristas, a BKA foi investida de autoridade para tra-
balhar de forma preventiva e centralizará essas operações. A medida foi anunciada em 25 de setembro pelo ministro do Interior, Otto Schilly. A Agência realizou, no início deste mês, seu congresso na cidade de Wiesbaden, no centro do país, onde também foi debatido o tema do extremismo de direita. Em relação ao anti-semitismo, Ziercke
observou que em poucas ocasiões seus ataques foram direcionados exatamente contra judeus, ainda que motivados pelo sentimento de ódio e discriminação. Os participantes da reunião de Kiel fizeram patente sua preocupação em relação à estratégia dos neonazistas, em criar uma Frente Popular de Direitas na Alemanha,
e a abertura do Partido Nacional Democrático (NPD) a elementos violentos da ultradireita. Em seu recente primeiro congresso federal, efetuado em Leinefeld, no Estado da Turíngia, o NPD integrou Thorsten Heise à cupula diretiva do partido. Heise é um militante neonazista com antecedentes criminais e penais. Essa decisão deverá levar ao partido cerca de cinco mil skinheads, de acordo com analistas. O NPD, pela primeira vez em 36 anos, ganhou uma representação parlamentar, ao obter 9,2% dos votos nas eleições ocorridas no mês de setembro, no Estado oriental da Saxônia. Nessa mesma ocasião, em Brandenburgo, a União do Povo Alemão (DVU, de extrema-direita) conseguiu revalidar sua representação parlamentar ao obter pouco mais de 6 % dos votos. (Vermelho, www.vermelho.org.br)
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INTERNACIONAL ÁFRICA
Ação anti-França abala Costa do Marfim da Redação
U
ma grave crise política e militar abala a Costa do Marfim (África Ocidental) desde o dia 6 de novembro, quando nove soldados franceses morreram e 31 ficaram feridos em conseqüência de ataques aéreos do governo marfinense a posições dos rebeldes no norte do país. Tropas francesas que integram a Força de Paz da Organização das Nações Unidas (ONU) na Costa do Marfim têm sua base na região das cidades bombardeadas, Bouaké (centro) e Korhogo (norte). Os franceses, que são acusados pelo governo de Laurent Gbagbo, presidente da Costa do Marfim, de apoiar e armar os rebeldes, retaliaram de imediato o ataque aéreo destruindo, no dia seguinte, praticamente toda a frota aérea marfinense. A situação na Costa do Marfim é tensa desde setembro de 2002, quando soldados revoltosos tentaram derrubar o regime do presidente Laurent Gbagbo. Desde então, o país encontra-se dividido. O norte é controlado pelos rebeldes golpistas do movimento Forças Novas, enquanto que o sul está nas mãos do governo. O quadro era relativamente calmo após a assinatura de dois acordos de paz mediados pela França, um em 2003 e outro em julho de 2004, que garantiam o cessar-fogo até o desarmamento das Forças Novas, prometido para outubro mas que não foi cumprido. O ataque aéreo das tropas do governo a Bouké levou ao reinício do confronto armado.
AFP Photo-Kampbel
Morte de soldados franceses em ataque de forças do governo reacende confronto que divide país desde 2002 COSTA DO MARFIM Localização: África Ocidental Nacionalidade: marfinense Cidades principais: Yamoussoukro (capital); Abidjan, Bouaké Línguas: francês (oficial), diula, baulê, beté, senufo Divisão política: 16 regiões Regime político: república presidencialista População: 17,3 milhões Moeda: franco CFA (da Comunidade Financeira Africana) Religião: religiões tradicionais (37%); cristã (32%) islâmica (30%) Hora local: +3 DDI: 225 Domínio na internet: ci.
Nas ruas de Abidjan, jovens demonstram apoio ao governo de Laurent Gbagbo e repudiam rebeldes do norte
Cerca de dez mil soldados da ONU (entre os quais 4 mil franceses) vigiam desde 2002 a zona de fronteira que separa o território norte, rebelado, do território sul. A operação deflagrada pelas tropas de Gbagbo e a retaliação francesa levaram o país a manifestações de claro sentimento antifrancês nas ruas de Abidjan (capital econômica do país) e outras cidades. Partidários do presidente Gbagbo atacaram e incendiaram casas, pontos comerciais e escolas de
franceses residentes em Abidjan. A Costa do Marfim é um país de marcada presença estrangeira. Há 20 mil cidadãos franceses vivendo ali hoje. Os marfinenses reclamam das regalias dadas a esses estrangeiros e da postura arrogante dos mesmos para com a população local. A Costa do Marfim foi colônia francesa até 1960. Depois do confronto da semana passada, a França enviou mais 300 soldados para reforçar suas tropas em território marfinense e posicio-
nou três aviões de combate do tipo “Mirage F1” em Libreville, capital do vizinho Gabão, onde os franceses também têm uma base militar. O presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, considerado bom negociador de conflitos no continente africano foi chamado pela União Africana para intermediar a crise. Em sua coluna semanal no site do Congresso Nacional Africano (seu partido), Mbeki disse que o fracasso da África em resolver a
crise na Costa do Marfim coloca “um enorme e urgente desafio” para o continente e para a União Africana. “Como africanos, nós devemos admitir abertamente que falhamos na ajuda para que os marfinenses superem a crise em seu país. Foi precisamente por causa dessa falha africana que a França fez uma intervenção militar, política e diplomática para ajudar a colocar a Costa do Marfim no rumo da paz”, escreveu Mbeki. O gabinete de Laurent Gbagbo, por sua vez, denuncia que o governo de Paris pretende voltar a colonizar a Costa do Marfim. O presidente da Assembléia Nacional marfinense, Mamadou Koulibali, disse, logo após a retaliação francesa, que as autoridades da Costa do Marfim consideram-se rebeladas “frente à ocupação estrangeira” e que organizaria forte resistência para enfrentá-la.
Franceses acusados de roubo a banco Em sua edição de 30 de setembro, o Brasil de Fato já noticiava um ato de repúdio experimentado pelas tropas da França na Costa do Marfim. No dia 23 de setembro, 12 soldados franceses foram acusados de roubar 100 mil euros (perto de R$ 400 mil) de uma agência bancária na cidade de Man, no oeste do país, o que levou grupos leais ao presidente Laurent Gbagbo a exigir a retirada das tropas francesas do país. Charles Ble Goudé, líder do grupo Jovens Patriotas, chamou os franceses de “tropas de ocupação” e ameaçou-os com represálias. Ele afirmou haver cumplicidade entre os militares franceses e as Forças Novas, que controlam a metade norte da Costa do Marfim. As Forças Novas, que encabeçaram a tentativa de golpe contra Gbagbo em 2002, negaram envol-
vimento com o ato e pediram a formação de uma comissão mista (nacional e internacional) para investigar outros roubos milionários em agências do Banco Central dos Estados da África do Oeste (BCEAO), no ano passado, nas cidades de Bouaké e Korhogo. PRESENÇA DA FRANÇA Séculos 16 e 17 – Depois da passagem dos portugueses pela região (séc. 16), chegam os franceses (séc. 17), que instalaram entrepostos comerciais ali. 1893 a 1960 – Em 1893, o território torna-se protetorado da França. Em 1960, a Costa do Marfim ganha sua independência, auge de um processo de emancipação que se iniciara em 1946. 1960 até hoje – A França mantém laços mais fortes com a Costa do Marfim do que com qual-
quer uma de suas ex-colônias africanas. Há 20 mil cidadãos franceses vivendo em território marfinense. O governo da França tem 4 mil soldados ali, destacados para proteger os interesses e investimentos franceses, que ainda representam fatia importante da economia marfinense. Entre 1960 e 1990, tropas francesas intervieram 20 vezes naquele país, alegando precisar proteger de ameaças internas e externas regimes amigos. Desde o genocídio de Ruanda, em 1994, quando tropas francesas foram acusadas de incitar o conflito, a França reduziu seu contingente militar na África. Em janeiro de 2003, o governo francês intermediou o acordo de paz de Marcoussis, assinado entre a administração de Laurent Gbagbo e o movimento das Forças Novas.
Conflitos pioram condições de vida da população da Redação Agências da Organização das Nações Unidas (ONU) na Costa do Marfim manifestaram, na semana passada, grande preocupação com que os conflitos ali piorem ainda mais as condições de vida da população. Alertaram para o fato de que o confronto compromete a colheita de produtos agrícolas básicos como o cacau, principal fonte de renda das áreas rurais no oeste e no sul deste país da África Ocidental. Outra causa de inquietação citada pelo porta-voz da ONU é o corte de energia elétrica em todas as zonas controladas pelos rebeldes das Forças Novas, no norte. Entre outras conseqüências previsíveis aponta-se a interrupção dos serviços hospitalares e a escassez de água potável a ser distribuída. Na ocasião, o Escritório de Coordenação de Ajuda Humanitária,
da ONU, já anunciara em Genebra a suspensão temporária de sua operação de ajuda na região. Representantes do Escritório disseram à imprensa africana que a retomada de hostilidades na Costa do Marfim ameaça privar milhares de pessoas de uma ajuda urgente. Cinco veículos da ONU foram confiscados e outro foi incendiado por grupos armados. Além disso, a movimentação do pessoal da organização foi impossibilitada por barreiras militares. Em meio a essas dificuldades, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) tomou medidas para proteger um centro de reabilitação de meninos ex-combatentes em confrontos armados no país. A Organização Mundial da Saúde (OMS), por sua vez, continua preparando uma campanha de vacinação antipólio prevista para o final do mês. A situação se deteriorou na
Costa do Marfim depois do bombardeio de forças governamentais ao reduto dos rebeldes das Forças Novas, no norte, e que atingiu também tropas da França instaladas na região, matando nove soldados franceses. O secretário geral da ONU, Kofi Annan, pediu urgência às partes na resolução do conflito, e recebeu imediato respaldo do Conselho de Segurança.
MARFINENSE PURO Desde setembro, o Conselho de Segurança da ONU vem advertindo o governo de Gbagbo a proceder a uma emenda constitucional para alterar o artigo 35 da Constituição marfinense, o que poderia eliminar uma velha fonte de tensão política. Esse artigo proíbe a candidatura à presidência de qualquer político cujos pais não tenham nascido na Costa do Marfim, país de acentuada imigração.
O Conselho de Segurança também tem insistido para que as partes envolvidas no conflito cumpram o compromisso de paz “Accra III”, assinado em julho. O acordo de Accra (capital de Gana) estabeleceu, entre outros pontos, que as Forças Novas deveriam ter começado em outubro um processo de desmobilização, desarmamento e reintegração de seus combatentes. A União Africana (UA) poderá mediar o confronto na Costa do Marfim diante do perigo de uma guerra civil, conseqüência de dois dias consecutivos de bombardeio do governo a posições das Forças Novas. A UA convocou uma reunião urgente de seus membros para analisar a situação. O presidente da Nigéria e atual líder da União Africana, Olusegum Obasanjo, reuniu-se dia 6 de novembro com o Conselho da UA e
seu diretor, Alpha Oumar Konare, bem como com representantes da Comunidade Econômica dos Países da África Ocidental (Ecowas), e expressou a preocupação desses organismos com a retomada das agressões na Costa do Marfim. O encontro definiu as seguintes ações: chamar todas as partes envolvidas na crise marfinense para o cessar imediato das hostilidades; formar uma comissão mista, AUEcowas, para tratar da questão política; fazer pedido conjunto (AU-Ecowas) à ONU por uma mudança nas regras de envolvimento de sua Força de Paz na Costa do Marfim, com vistas à prevenção da violência. Também ficou acertado no acordo de Accra que haveria eleições livres e transparentes na Costa do Marfim em novembro de 2005. (Com Prensa Latina www.prensa-latina.org)
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AMBIENTE CAPÃO XAVIER
CPI vai investigar crime ambiental Dafne Melo da Redação
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erão apuradas por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) as irregularidades nos processos de licenciamento ambiental da empresa Minerações Brasileiras Reunidas (MBR), na mina de ferro de Capão Xavier, em Nova Lima, região metropolitana de Belo Horizonte. A CPI foi aprovada dia 20 de outubro, pela Assembléia Legislativa de Belo Horizonte, notícia que foi muito bem recebida pelo Movimento Capão Xavier Vivo, que congrega diversas entidades em defesa da preservação do meio ambiente e de mananciais de abastecimento público da região metropolitana da capital mineira, incluindo os municípios de Ribeirões de Fechos, Mutuca, Catarina, Barreiro e cidades integrantes do sistema Alto Rio das Velhas. A mina de Capão Xavier encontra-se sobre um grande aqüífero que abastece 320 mil pessoas, o equivalente a 9% da população de Belo Horizonte e a 7% da região metropolitana. Apesar da lei estadual 10.793/92, que proíbe exploração de minas em áreas de mananciais de abastecimento público, a MBR atua na extração de minério de ferro nessas regiões há quase 30 anos. Em nota oficial, o movimento declarou esperar que a CPI contribua firmemente para a interrupção das atividades minerais da MBR, além de oferecer subsídios para demonstrar a responsabilidade pessoal de agentes públicos pela prática de atos de improbidade que permitiram à mineradora contornar a lei. Para o frei Gilvander Moreira, essa irregularidade foi fruto de um acordo entre a MBR, a Companhia de Saneamento (Copasa), o Instituo Estadual de Floresta (IEF) e a prefeitura de Belo Horizonte, que desrespeitam as leis ambientais. “Lamentavelmente a Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam) e o Conselho de Política Ambiental (Copam), concederam as licenças para a operação da mina, em um processo viciado, pois pessoas
Raimundo Machado
Parlamentares vão apurar irregularidades na concessão da licença ambiental obtida pela mineradora MBR
Movimento espera que CPI contribua para a interrupção das atividades da MBR, que também é responsável por destruir outros mananciais da região
comprometidas com os interesses da MBR participaram da votação”, conta o frei.
LUTA ANTIGA Segundo o movimento, a atividade da MBR na região já destruiu parte do Patrimônio Histórico Natural de Minas Gerais, como a Serra do Curral, o Pico do Itabirito e outros mananciais nas cidades de
Macacos e Itabirito. Além disso, deixou uma enorme cratera sem recuperação em Águas Claras. A luta pela defesa dos mananciais não é recente. Em 1975, uma CPI apurou as ações da MBR na região. O relatório conclusivo deixou claro que as atividades da MBR provocaram a poluição da água, no município de Nova Lima. Na ocasião, o prefeito Rubem Costa Lima
confirmou que todos os mananciais que serviam a Nova Lima já estavam poluídos. Além de ameçar o aqüífero, a atividade mineradora põe em risco a rica biodiversidade da região. “Há ocorrência de microcrustáceos com 500 milhões de anos, um verdadeiro fóssil vivo. Há também grutas, de rara formação, com 20 metros de profundidade, como a de Capão
Xavier. Entre as 3500 grutas cadastradas no Brasil, só existem seis grutas semelhantes”, conta. Para Gilvander, a questão que está posta é: mineração ou água? “Trata-se de uma escolha. Ou água para consumo humano, para a flora e fauna e para assegurar o abastecimento das futuras gerações, ou toneladas de ferro de alto teor para a MBR”, conclui.
BARRA GRANDE
Agricultores bloqueiam acesso à barragem da Redação Em manifestação contra a Usina Hidrelétrica de Barra Grande, entre os municípios de Pinhal da Serra (RS) e Anita Garibaldi (SC), cerca de 300 agricultores atingidos pela construção da usina iniciaram, dia 4, um bloqueio na rodovia que dá acesso ao canteiro de obras da usina. Dezenas de carretas carregadas de cimento formaram filas no local. A construção da barragem pela empresa Baesa foi autorizada a partir de uma fraude no Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima), que
escondeu a existência de grandes áreas de mata de araucária, característica da mata atlântica na região sul. Além da ameaça de destruição dessa floresta, que corre risco de extinção e é protegida por lei, a construção de Barra Grande está expulsando cerca de 1.500 famílias de suas terras. O início da operação da usina está previsto já para o próximo ano, mas até o momento a maioria das famílias atingidas ainda não foi reassentada. Dia 3, entidades ambientalistas e representantes de igrejas e movimentos sociais estiveram reunidos com a coordenação do Movimen-
to dos Atingidos por Barragens (MAB) na cidade de Vacaria (RS), paradiscutir e planejar as ações de resistência contra a barragem. As organizações querem que o governo federal cancele a licença da obra e pedem respeito à liminar emitida pelo juiz Osni Cardoso Filho, da 3° Vara Federal de Florianópolis, que caçou a autorização de supressão da vegetação e desautorizou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) a conceder a licença de operação da barragem. Apesar da liminar proibindo a derrubada da mata de araucária estar em vigor
desde 27 de outubro, a Baesa continua tentando desmatar a região, especialmente nas comunidades do lado catarinense do Rio Pelotas. O desmatamento está sendo impedido por bloqueios permanentes formado pelos moradores. Dia 5, coordenadores do MAB fizeram uma queixa crime na delegacia de Anita Garibaldi contra a empresa, anexando a liminar do juiz catarinense ao processo. Segundo o advogado do MAB, Alvenir de Almeida, fotos e filmagens das tentativas de desmatamento foram enviadas a Florianópolis para que a Justiça tome providências.
ENERGIA
Mário Osava do Rio de Janeiro (RJ) A alta do preço do petróleo e a iminente entrada em vigor do Protocolo de Kyoto, graças à ratificação por parte da Rússia, aceleram um processo que leva o Brasil a se afirmar como uma potência da bioenergia. As exportações de álcool produzido a partir da cana-de-açúcar devem passar de 800 milhões de litros, no ano passado, para dois milhões este ano, e a expansão tende a se manter com independência dos preços do petróleo. São muitos os países que, como o Japão, se preparam para adicionar etanol à sua gasolina ou aumentar a quantidade desse álcool no combustível, para reduzir a poluição. Espera-se que as fontes renováveis tenham um decisivo impulso global com a entrada em vigor do Protocolo de Kyoto, que controla a emissão de gases causadores do efeito estufa, responsáveis pela mudança climática. O Senado da Rússia anunciou, dia 27 de outubro, a ratificação do tratado. Uma vez promulgado pelo Executivo, o Protocolo entrará em vigor, pois estará completado o número de países necessários: aqueles que emitem 55% dos gases que provocam o efeito estufa. No Brasil, o combustível de fonte renovável recupera a popularidade que teve nos anos 80, e não apenas pelo seu preço menor.
Agência Brasil
Brasil, a superpotência da bioenergia
Petrobras de olho no biodiesel de mamona, problemas com alto custo
Cresce rapidamente a procura por automóveis bicombustíveis, que podem utilizar gasolina, álcool ou qualquer mistura de ambos, que foram lançados no ano passado. Em 1985 e 1986, os veículos movidos a álcool atingiram a fantástica proporção de 76% do total produzido no Brasil. Mas problemas de abastecimento e preços afetaram a credibilidade do programa Proálcool, de substituição de combustíveis,
iniciado depois da crise do petróleo de 1973.
RECUPERAÇÃO LENTA A produção de automóveis a álcool atingiu o fundo do poço em 1997, quando foi de 0,06% do total, segundo dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Desde então, registrou uma lenta recuperação, acentuada desde o ano passa-
do, quando 84.173 automóveis que usam álcool combustível, incluindo bicombustíveis, representaram 4,6% do total produzido. Este ano, essa quantidade deve crescer cinco vezes, já que a produção de janeiro a setembro somou 253.817 unidades, sendo que em setembro foram 32% do total do mês. A possibilidade de usar um ou outro combustível contribui, junto com o preço, para resgatar a confiança no álcool, uma vez que elimina o risco de desabastecimento ou súbito aumento de preços. Além disso, toda gasolina no Brasil contém de 20% a 24% de álcool anidro, reduzindo o consumo de petróleo e a poluição. E já se começa a produzir aviões para fumigação movidos a etanol. O subsidiado desenvolvimento do Proálcool custou cerca de 40 bilhões de dólares, mas o país “já recuperou esses gastos” e agora colhe os frutos, inclusive pela tecnologia desenvolvida, diz o pesquisador Osvaldo Stella Martins, do Centro Nacional de Referência em Biomassa. A cana necessária para fazer do Brasil o maior produtor mundial de açúcar e álcool gera grande quantidade de bagaço, fonte de calor e eletricidade, que serve o mercado energético, além de alimentar as próprias centrais açucareiras e destilarias. Agora, o novo programa de biodiesel entusiasma pesquisadores e empresários. O governo anunciou que autorizará, em novembro, sua
adição ao diesel, na proporção de 2%, que chegará a 5% dentro de alguns anos. Além de reduzir importações e melhorar o ambiente, esse programa será de inclusão social, ao gerar centenas de milhares de empregos e favorecer a agricultura familiar em áreas pobres, segundo o ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos.
ÓLEO DE MAMONA Por essa razão se pensa em priorizar a produção a partir da mamona no Nordeste, a região mais pobre do país, mas o biodiesel de mamona deverá ser fortemente subsidiado, já que custa o triplo do petrolífero, explica Martins, engenheiro mecânico com doutorado em Ecologia e Recursos Naturais. O óleo de mamona, matéria-prima de centenas de produtos químicos, medicinais e cosméticos, tem grande demanda mundial não atendida, e seria mais lógico promover sua produção como insumo industrial, em lugar de utilizá-lo para biodiesel e carregar a sociedade com o custo dos subsídios para “resolver um problema” da Petrobras, acrescenta o especialista. O problema é que a Petrobras deve produzir diesel sem enxofre, por motivos ambientais, e lhe convém substituir esse aditivo lubrificante por biodiesel, transferindo custos à sociedade, explica Martins. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
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DEBATE RUMOS DO GOVERNO
Reforma sindical e propaganda enganosa João José Sady epois de mais de um ano de atividades, o balcão de transação entre patrões e empregados, denominado de Fórum Nacional do Trabalho, vem divulgando, oficiosamente, um bojudo anteprojeto de lei para desenhar a reforma do modelo sindical em vigor no país. Muita água já rolou debaixo da ponte desde que se iniciaram essas negociações, sendo que a maioria das centrais sindicais já se retirou do mesmo por diversas razões de protesto. No entanto, o anteprojeto não é divulgado oficialmente e, à luz do dia, foi anunciada somente a proposta de emenda constitucional que tem a finalidade de preparar o terreno para que tal reforma seja possível. O exame da mesma, contudo, desperta grande inquietação. O texto atual diz que “é livre a associação profissional ou sindical”, sendo que a proposta sugere que se inscreva que “é assegurada a liberdade sindical, na forma da lei...”. O texto atual não contém essa restrição, justamente para que o “na forma da lei” não seja o caminho para que seja suprimida a liberdade anunciada na frase anterior. É perigoso dar essa autorização ao legislador infraconstitucional. O cheque, contudo, não vem completamente em branco, porque é adicionado um “observando o seguinte”, no qual, a única novidade é que “as entidades sindicais deverão atender a critérios de representatividade, liberdade de organização, democracia interna e de respeito aos direitos de minoria”. Essa reforma introduz, portanto, um novo mecanismo no sistema que é o critério de representatividade. Elaborado nos moldes do sistema argentino de personeria gremial, o artefato é a peça-chave da proposta sob exame: acabar com os sindicatos pequenos. Essa modalidade de
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darwinismo sindical tem como ponto de partida a idéia de que sindicato que não é forte não tem razão de existir porque não apresenta qualquer serventia aos seus representados. Então, a idéia consiste em praticar uma concentração de entidades muito maior que a atual, permitindo que as entidades se organizem somente por ramos, exponenciando o atual conceito de categoria. O problema é complexo. No modelo vigente, os sindicatos devem se organizar por categoria, mas a ordem jurídica não impõe o que seja tal referencial, razão pela qual os sindicatos proliferam de forma desenfreada, atingindo a cifra de dezenas de milhares. A proposta de reforma diz que pretende instituir a liberdade sindical, mas seu objeto reside, assumidamente, em dar fim a essa multiplicidade de entidades, permitindo somente a criação de grandes entidades, que concentrariam as atuais categorias em ramos de atividade que seriam posteriormente fixados pelo Estado. Assim, as dezenas de milhares de sindicatos atuais poderão continuar a existir e até a mul-
tiplicar-se, mas não vão dispor de personalidade sindical. Esta somente poderá ser deferida às grandes entidades, organizadas por ramo e com altos índices de sindicalização. LEGISLAÇÃO SORRATEIRA
É o tipo da legislação sorrateira que se espera de uma ditadura militar e não de uma república democrática. Ao invés da proposta assumir que implicará numa concentração da unicidade sindical hoje existente e na devastação das pequenas entidades, anuncia o falso discurso de que vai trazer o reino da liberdade sindical. É inconcebível que se legisle com um discurso que diz uma coisa mas que vai organizar um sistema que é o contrário do que se promete.
Fora isso, a PEC merece somente mais uns poucos comentários. Transforma em norma constitucional, com outro nome, a atual contribuição assistencial que o Ministério do Trabalho, paradoxalmente, proibiu há pouco tempo como se fosse algum monstrengo. Acrescenta ao direito de greve dos servidores públicos o direito à “negociação” coletiva. Puro engodo, porque eles já dispõem desse direito e precisam é da possibilidade da “contratação” coletiva. Afinal, a negociação tem que terminar em contrato ou não serve para nada. Seria preciso, na outra ponta, reformar a CF para que não fique o poder público limitado ao acolhimento das reivindicações pela lei. Sem tal mudança, deferir a negociação coletiva aos servidores públicos deixa-os no mesmo cenário atual. Vale dizer que eles vão continuar na chuva porque os participantes do consórcio entre patrões e empregados que elaborou o projeto se restringe ao setor privado e não quiseram colocar as mãos nesse complicado vespeiro. Finalmente, a norma atual que garante o direito à eleição de
A pasteurização dos partidos Hamilton Octavio de Souza s eleições municipais deste ano consolidaram o processo de pasteurização dos principais partidos políticos brasileiros: agora todos fazem parte do mesmo centrão integrado por dois blocos de partidos neoliberais, o original e o alternativo, que devem se revezar no governo para cumprir o projeto das classes dominantes sob a hegemonia do capital financeiro. A perda de identidade tem sido acelerada, seja pelo oportunismo eleitoral, pela continuidade das políticas governamentais, pela promiscuidade das alianças e coligações partidárias, ou seja pelo mesmo grau de submissão aos verdadeiros donos do poder – internos e externos. A guinada do PT para o centrão incluiu aliança com o PL e setores do empresariado nacional; a capitulação frente ao capital estrangeiro (Carta aos Brasileiros); a ampla articulação parlamentar com Antônio Carlos Magalhães, Sarney e outros caciques do conservadorismo brasileiro; o acordo fisiológico com o PTB em inúmeras cidades, e, no segundo turno da eleição municipal em São Paulo, para espanto geral, o apoio de Paulo Maluf para a prefeita Marta Suplicy. Os partidos políticos, no Bra-
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sil, sempre careceram de aprofundamento ideológico e de base social mais sólida. No entanto, o espectro definido com a redemocratização, de 1979 em diante, na fase de distensão da ditadura militar, que ia da esquerda (PT) à direita (PDS/PPB/PP), passando pelo centro direita e centro esquerda (PMDB/ PSDB/PDT/PTB) carregava alguma identidade própria e estabelecia diferenciação de programa, discurso, composição social e de métodos de organização e de luta. Tudo indica que esse quadro – fragmentado por inúmeras siglas nos anos seguintes – está definitivamente enterrado, principalmente porque já não guarda mais tantos aspectos de diferenciação, tanto na prática cotidiana – especialmente no exercício de mandatos legislativos e executivos – quanto nos objetivos maiores de médio e de longo prazos. Os partidos deixaram de representar os anseios e as propostas de segmentos da sociedade brasileira, como o empresariado produtivo (descolado do capital financeiro especulativo), as lutas dos trabalhadores e excluídos, o nacionalismo existente entre trabalhadores, empresários
e nas Forças Armadas. Enfim, essa antiga vocação partidária ficou superada no processo de pasteurização ideológica.
Alguém ainda acredita que o PSDB, o PDT, o PPS, o PSB ou o PMDB, queiram mesmo e estejam lutando para implantar no Brasil o modelo social democrata semelhante ao dos países do norte-europeu? Alguém acredita que o PT, o PCB ou o PCdoB ainda estejam acumulando forças para construir o socialismo?
representantes dos empregados é mantida e expandida para todas as empresas, mas sem deferir o requisito essencial necessário, ou seja, a estabilidade no emprego para esses representantes. A CF já vigora há dezesseis anos com esse direito que continua a não ser concretizado porque, sem a estabilidade, não há como implementar a norma. Assim, a proposta, nesse campo, tem apenas efeito cosmético. Em apertada síntese, estes são os traços da PEC divulgada. Não passa de fruto de um acerto político entre os grandes sindicatos para eliminar os pequenos que, com a atual liberdade sindical, vão minando os poderes e os cofres das entidades mais poderosas. Expondo a questão em termos metafóricos, a proposta é que liberdade deve existir, apenas, para cachorro grande e o resto da cachorrada tem que ser expulsa de campo. Chega a ser ridículo que, com tal proposta, fiquem a propalar que viabilizam a adesão à convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho e destroem a estrutura autárquica varguista. A única parte hoje remanescente da estrutura autárquica varguista consiste, justamente, nos atuais grandes sindicatos e a PEC pretende liberá-los do assédio dos pequenos e potencializar ainda mais a concentração de poder ínsita à unicidade sindical e que é o grande apanágio do corporativismo celetista. O apogeu da razão cínica como alavanca do processo legislativo faz com que se chegue a esse cenário doentio em que a discussão sobre a reforma seja ofuscada por uma política em que se anuncia algo e se faz o contrário. João José Sady é advogado, mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor na Universidade São Francisco, em São Paulo
Está claro que existe um abandono sutil ou escancarado das mais expressivas bandeiras de luta das esquerdas brasileiras. E há, ao mesmo tempo, uma capitulação disfarçada ao modelo neoliberal – o qual, todos sabemos, representa um grande retrocesso na medida em que retoma o capitalismo selvagem e altamente predatório, com forte concentração da renda e da riqueza e uma exclusão social sem precedentes. A lógica dominante, reforçada pela maioria dos partidos e atores políticos, com maior ou menor grau de cumplicidade, é uma só: os trabalhadores, os pobres e os miseráveis que se danem! O máximo que será “dado” a eles é a esmola dos programas assistencialistas – nada de direitos e nada de dignidade. Há, evidentemente, muita gente séria comprometida com a transformação social que acredita que vários desses partidos ainda possam ser recuperados ou redirecionados para as suas bandeiras históricas. A questão é saber até quando valerá a pena insistir em instrumentos de luta que perderam a energia e a vontade política transformadora e revolucionária – num país onde o povo ainda tem um longo caminho de conquistas para percorrer. Hamilton Octavio de Souza é jornalista, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e diretor do Centro Universitário da Fundação de Ensino Octávio Bastos (Unifeob)
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA LIVRO REFORMA AGRÁRIA: OS CAMINHOS DO IMPASSE Com apresentação de dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia, Mato Grosso, o livro de Débora Lerrer reúne depoimentos reveladores e polêmicos – como os do ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, que acredita ser legítima a ação dos proprietários rurais de se armarem para enfrentar os militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. O livro mescla fatos históricos sobre o tema e entrevistas com personagens envolvidos na questão. Na primeira parte, são apresentados dados estatísticos e históricos da distribuição populacional e de terras, que explicam por que o Brasil é o segundo país no mundo com maior concentração fundiária, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). A autora faz também um levantamento histórico de como surgiu o problema fundiário no Brasil e as tentativas de solucioná-lo até os anos do governo Fernando Henrique Cardoso. O livro, editado pela Editora Garçoni, tem 334 páginas e custa R$ 40. Mais informações: www.editoragarconi.com.br
BAHIA 10º SIMPÓSIO BAIANO DE PESQUISADORAS(ES) SOBRE MULHER E RELAÇÕES DE GÊNERO 1º a 3 de dezembro O objetivo do encontro, que terá como temática “Gênero, idades e gerações”, é articular um espaço de reflexão que incentive o debate e o intercâmbio entre pesquisadoras que desenvolvem estudos e pesquisas sobre mulher e relações de gênero na Bahia. Pretende ainda incentivar o crescimento e o aprofundamento desses estudos e
pesquisas; promover uma articulação de âmbito regional entre os núcleos universitários, instituições de pesquisa e pesquisadoras que lidam com a temática da mulher e relações de gênero; contribuir para a formação de jovens pesquisadora nesse campo dos estudos na Bahia e sugerir parcerias entre pesquisadoras e instituições na perspectiva da ampliação de estudos articulados sobre gênero e geração. Local: Estrada de São Lázaro, n.º 197, Salvador Mais informações: (71) 237-8239, neim@ufba.br, www.ufba.br/neim
PERNAMBUCO 1º FÓRUM SOCIAL NORDESTINO 24 a 27 Desdobramento do Fórum Social Mundial, a proposta do Fórum Social Nordestino é semelhante à do evento mundial, ou seja, injetar fôlego nos movimentos sociais e nas discussões sobre melhorias da qualidade de vida da população, além de abrir um espaço para o diálogo entre as diferentes pessoas envolvidas em projetos sociais, com o diferencial de ter a região Nordeste como foco dos debates. Sob o tema “Um Outro Nordeste é Possível”, o fórum terá três eixos: Projetos de desenvolvimento para o Nordeste, Radicalização da democracia e Movimentos sociais no Nordeste. Local: Campus da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Av. Professor Moraes Rego, 1235, Cidade Universitária, Recife Mais informações: sg@cutbahia.org.br. SEMINÁRIO NACIONAL DE AUTOGESTÃO NA HABITAÇÃO POPULAR 12 a 14 Realizado pela União Nacional por Moradia Popular e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem
Teto de Pernambuco, o encontro acontece num momento em que o movimento popular acaba de conquistar, junto ao Ministério das Cidades, o Programa Crédito Solidário, que poderá atender, em regime de mutirão autogestionário, já em sua primeira fase, cerca de 40 mil famílias sem-teto em todo país. Refletir e trocar experiências sobre formas autogestionárias de construção entre associações e cooperativas foi uma das formas que a União Nacional de Moradia Popular encontrou para ajudar a garantir que essa proposta se espalhe por todo Brasil. Local: Centro de Treinamento Cristo Rei, R. Avenida Belmiro Correia, 144, Camaragibe Mais informações: (11) 3825-5725 e (81) 3223-2049, unmp@uol.com.br, mtstpe3@hotmail.com
RIO DE JANEIRO CANDACES - A RECONSTRUÇÃO DO FOGO 18 e 19, 19h30 Espetáculo apresentado pela Cia. dos Comuns, grupo teatral carioca integrado somente por atrizes e atores negros. A peça, criada e dirigida pelo ator Hilton Cobra, vai antecipar as celebrações pelo Dia Nacional de Consciência Negra (20) e homenagear duas personalidades negras – o senador Abdias Nascimento e a memória da antropóloga Lélia Gonzalez. Candaces recebeu quatro indicações para um dos maiores prêmios teatrais do país, o Prêmio Shell/2003: direção - Marcio Meirelles; música - Marcos Povoas e Puan Vianna; figurino - Biza Vianna e categoria especial/ coreografia - Zebrinha, tendo sido agraciado com o Prêmio Shell 2003 de Melhor Música. Local: Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Pça. Marechal Floriano, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2299-1711, 2262-3935
RIO GRANDE DO SUL 2º FÓRUM GAÚCHO DA JUVENTUDE 12 a 15 O Fórum terá como eixos temáticos: Resgate de utopias; Desenvolvimento sustentável; Políticas públicas para a juventude; Cultura da paz. Os objetivos do encontro são: implementar círculos de convivência social que possibilitem o desenvolvimento de aprendizagem; estimular a auto-organização, a elevação cultural e a auto-estima, contribuindo no combate às diversas formas de manifestação da violência; promover encontro para a formação de lideranças populares; contribuir para a inclusão social incentivando a formação e a produção artísticocultural; proporcionar a interação de jovens de todas as idades e de localidades. Local: Parque de Exposições, Três de Maio Mais informações: www. forumgauchodajuventude.com.br
SÃO PAULO WORLD PRESS PHOTO Até 5 de dezembro A mostra fotográfica apresenta 201 trabalhos escolhidos entre as mais de 60 mil imagens jornalísticas do ano de 2003. Local: Sesc Pompéia, R. Clélia, 93, São Paulo Mais informações: (11) 3871-7700 1º SIMPÓSIO ESCOLA, NUTRIÇÃO E SAÚDE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS 17 e 18 O evento é parte das atividades desenvolvidas pelo Grupo de Estudos em Nutrição e Pobreza, do Instituto de Estudos Avançados da USP, cujos objetivos são a divulgação e discussão de pesquisas e projetos voltados ao tema do combate à desnutrição. O simpósio pretende promover, numa perspectiva in-
terdisciplinar, a discussão de pesquisas, de políticas e de projetos educacionais em saúde e nutrição destinados à melhoria das condições de vida e de formação das crianças e dos jovens nas escolas públicas brasileiras. Local: Faculdade de Educação da USP, Av. da Universidade, 308, Cidade Universitária, São Paulo Mais informações: (11) 3091-4442, mgifalli@usp.br, www.usp.br/iea, www.fe.usp.br SOBRE SER TÃO TERRA MAR 19 O fotógrafo Maurício de Paiva participa de um bate-papo informal sobre seu mais recente trabalho, no Pará, que foca as comunidades ribeirinhas e marítimas, e o Mercado Ver-O-Peso. Entrada franca. Local: Riguardare Scuola di Fotografia, R. Aguiar de Barros, 43 - 5º andar, São Paulo Mais informações: (11) 3105-7792 SEMINÁRIO LÊNIN: 80 ANOS 23 e 24 de novembro e 2 de dezembro Encontro organizado pelo Centro de Estudos Marxistas (Cemarx), Instituto Latino-Americano de Estudos Sócio-Econômicos (Ilaese), pela revista Crítica Marxista e pela revista Outubro. Durante o seminário serão discutidos temas como: O marxismo de Lênin; Partidos e sindicatos; Imperialismo e revolução; Estado e transição socialista; Leninismo e a luta socialista hoje. Entre os palestrantes estão: João Quartim de Moraes (Unicamp), Marcos Del Roio (Unesp/Marília), Osvaldo Coggiola (USP), Armando Boito Jr. (Unicamp), Ângela Lazagna (Unicamp), Eduardo Almeida (PSTU), Plínio de Arruda Sampaio Jr. (Consulta Popular). Local: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH/Unicamp), Cidade Universitária Zeferino Vaz, Campinas Mais informações: (19) 3788-1579
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CULTURA
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ARTE POPULAR
Semana de Cultura integra campo e cidade Rodrigo Valente de Recife (PE)
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ma efervescência cultural e política rara nas instituições acadêmicas agitou o campus da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em Recife, entre os dias 3 e 7 de novembro. Mais de dois mil militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) realizaram, em parceria com a reitoria da universidade, o Ministério da Cultura (MinC) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a 2ª Semana Nacional da Cultura e da Reforma Agrária. Mais um evento comemorativo dos 20 anos do MST, a Semana contou também com o apoio da Petrobras e da prefeitura do Recife. Ao ampliar o diálogo entre campo e cidade, a Semana ajudou a difundir a arte camponesa, valorizar a produção cultural dos acampamentos e assentamentos do MST e dialogar com a sociedade um projeto de reforma agrária para o Brasil. Segundo Ana Claudia Pessoa, uma das coordenadoras do encontro, a proposta era de contrapor a cultura popular de qualidade à de mercado. “O povo tem sido alimentado com um certo tipo de informação e produção cultural que leva à mediocridade. Se oferecermos alternativas, se as pessoas têm acesso a outras opções, certamente os padrões de exigência mudam. Isso também faz parte do processo de luta do MST”, disse Ana.
REDE CULTURAL DA TERRA Durante a cerimônia de abertura da Semana, no teatro do Centro de Convenções da UFPE, o ministro da Cultura Gilberto Gil lançou o Projeto Rede Cultural da Terra, em parceria com o MST e outros movimentos do campo. Gil reconheceu a necessidade urgente de valorização da cultura popular e camponesa no Brasil, afirmando ser prioridade do governo apontar uma nova perspectiva para as políticas públicas de cultura.
Fotos: João Lucas Medeiros
Pela segunda vez, evento se torna marco na produção e na difusão de arte popular de qualidade
A Semana Cultural ajudou a difundir a arte camponesa, valorizar a produção cultural dos acampamentos e assentamentos do MST e dialogar com a sociedade um projeto de reforma agrária para o Brasil. À esquerda, oficina de maracatu e abaixo o ministro da Cultura Gilberto Gil com Jaime Amorim, da coordenação da nacional do MST
O Projeto Rede Cultural da Terra pretende valorizar a cultura das pequenas cidades e da população rural. No caso do MST, o programa atuará em acampamentos e assentamentos, capacitando 200 agentes culturais que funcionarão como multiplicadores em suas regiões e atuarão a partir de 16 pontos de cultura já existentes. “O MST já desenvolve atividades de educação e cultura há muito tempo. O que vamos fazer é um trabalho sistemático de apoio à formação, difusão e acesso aos diferentes meios culturais”, explicou Sérgio Mamberti, secretário da Identidade e Diversidade Cultural. Após a assinatura do convênio, o ministro visitou a Feira da Reforma Agrária e até deu uma “canja” no palco. Cerca de 30 barracas com produtos de 15 Estados mostraram a diversidade da produção nos assentamentos. Além de comidas, bebidas e artesanato típicos de cada região, a feira também contou com apresentações de vários artistas do MST e de comunidades do Recife.
Interação é marca da Semana Os intercâmbios de militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) com comunidades da periferia da cidade do Recife foram alguns dos momentos mais bonitos e significativos da Semana de Cultura. Os encontros foram marcados por apresentações culturais e discussões sobre a história e a realidade de cada comunidade. Alto José do Pinho, Ilha de Deus, Morro da Conceição e Brasília Teimosa foram alguns dos locais visitados. “Essas visitas são sementes que se plantam. Espero que este encontro seja o primeiro de muitos que se seguirão”, diz Mauricéia Santiago, moradora do Morro da Conceição. Mais de 35 oficinas foram ministradas por estudantes, profissionais e vários grupos culturais durante o encontro. Diversas danças e ritmos, artesanato, teatro, cinema e fotografia eram algumas das possibilidades de trabalho. O
destaque ficou para as ligadas diretamente à cultura pernambucana, como as de Maracatu, Coco e Frevo. A idéia é que os participantes levem para seus assentamentos o que aprenderam nos minicursos. A variedade cultural foi outra marca da Semana. A programação noturna contou com nomes de peso como Chico César, Xangai, Bonsucesso Samba Clube e Quinteto Violado, além de violeiros e cantadores do MST. A Mostra de Cinema e Vídeo teve documentários, filmes e videoclipes. Os participantes também puderam conferir, nas exposições fotográficas, uma mostra dos 20 anos do MST e um pouco da vida povo indígena Xukuru, do agreste pernambucano. Além disso, o ilustrador Jô Oliveira – autor do cartaz do encontro – expôs a arte de 30 selos sobre a cultura popular brasileira que fez para os Correios (ECT). A interação entre a Semana de Cultura e a comunidade universitária
também foi intensa. Era comum, por exemplo, ver seguranças e funcionários da UFPE usando bonés do MST. O encontro também serviu para desmistificar o MST para um grande número de estudantes. Segundo a aluna de Serviço Social Cíntia Neves, “a Semana de Cultura serviu para mudar a visão que eu tinha por conhecer pouco o movimento”. Durante o evento, o MST preparou um grande café da manhã para a comunidade universitária em agradecimento. O encerramento da 2ª Semana de Cultura foi marcado pela visita dos militantes do MST a Cidade Alta de Olinda. Ao som de uma orquestra de frevo, os participantes fizeram um verdadeiro carnaval pelas ladeiras do centro histórico. Recebidos pelo vice-prefeito de Olinda, Paulo Valença, fizeram um grande ato em frente à prefeitura em defesa da cultura popular e camponesa. (RV)
HIP HOP
As favelas não produzem apenas violência Morador da comunidade de Cavalcanti, zona norte do Rio de Janeiro, Thogun foi um dos promotores do Favela Festa, evento que ocupou toda a última semana do mês de outubro no espaço do Circo Voador, no tradicional bairro da Lapa. A programação teve cinema ao ar livre, espetáculos de música, roda de samba, funk, hip hop, folia de reis, percussão, capoeira, pagode, dança, teatro, feira, exposições, desfiles, oficinas e debates. O Favela Festa “quer mostrar que a arte também tem o seu lugar para o pessoal da favela”, diz Thogun nesta entrevista ao Brasil de Fato. Brasil de Fato – Qual a proposta do Favela Festa? Thogun – O maior objetivo do Favela Festa foi dar visibilidade a todo o povo que produz cultura dentro das favelas e criar um mercado alternativo, promovendo os produtos dessa gente. Um modo de comércio direto entre o produtor e o consumidor. E também quisemos valorizar os artistas que estão isolados, mostrando Hip hop – Movimento cultural da juventude pobre das grandes cidades, que se manifesta de formas artísticas variadas (dança, rap, grafites etc.). Rap (rhythm and poetry, ritmo e poesia em inglês) – Gênero de música popular, urbana, que consiste numa declamação rápida e ritmada de um texto.
Quem é Thogun, ou Sérgio André Teixeira, carioca, 34 anos, estudante de jornalismo com a matrícula trancada, é um rapper – praticante de rap – militante do movimento hip hop, ou, como se considera, “um poeta urbano”, compositor das músicas que canta. Thogum é também um dos três principais protagonistas do filme documentário Fala Tu, que aborda o cotidiano do hip hop do Rio de Janeiro. que as favelas não produzem somente violência. Tivemos centenas de artistas reunidos, dentro do espaço Circo Voador. Foi um evento grande em tudo, desde o transporte que foi dado para as comunidades. Mas o legal foi reunir muitas favelas. BF – O que foi apresentado? Thogun – Tudo o que você imaginar de produção cultural. Desde o jongo (dança de roda de origem africana) à escola de samba, uma orquestra de violinos e uma orquestra de pandeiros. E o cinema também, a gente está mostrando que essa arte tem o seu lugar para o pessoal da favela. Conseguimos trazer filmes brasileiros consagrados e passar para toda essa galera longas-metragens como Bala Perdida, Fala Tu, Domésticas, entre
Porque existem os shoppings que obrigam a gente a sair de nossa comunidade, ir comprar lá e se endividar todo, quando podemos produzir isso dentro das comunidades? Não só móveis como outras coisas. Isso é auto-sustentabilidade real, não é assistencialismo desmedido, em que as pessoas estão sempre atreladas a um governo que nem sempre está a fim de investir, ou só investe para usar aquelas pessoas como massa de manobra.
Nestor Cozetti
Nestor Cozetti do Rio de Janeiro (RJ)
outros, sempre visando o cinema nacional. O pessoal curtiu cinema de graça, isso é importante frisar. E foi um público alternativo, que não tem oportunidade de estar dentro das salas de cinema. BF – Como é sua relação com as manifestações culturais populares? Thogun – Eu não faço rap social, faço rap existencial. Todo mundo tem o direito de existir. Já estou há 15 anos no movimento hip hop. Acredito que o grande termômetro para perceber essa cultura como movimento de transformação é o povo. Temos que fazer rap pensando na comunidade porque nós somos o reflexo natural dela. A gente sai de lá, continua excluído pelo mercado fonográfico e tal, que não existe para o rap. Então criamos tudo no alternativo, fazemos nossas cópias e distribuímos, damos
para os colégios, desenvolvemos projetos dentro das comunidades. A cultura hip hop está espalhada no Rio de Janeiro inteiro. Vários caras da velha escola do hip hop já entenderam que agora é hora de politizar as comunidades, de torná-las auto-sustentáveis, de criar um centro de referência da cultura no Rio. O que une as organizações não-governamentais nesses centros de referência é a obrigação de estar trabalhando pelas comunidades tornando-as auto-sustentáveis. BF – Como assim, auto-sustentáveis? Thogun – Por exemplo, se tenho um marceneiro, vamos investir nele e daí criar uma marcenaria comunitária, onde as pessoas não só vão aprendendo, se profissionalizando, mas onde sejam fabricados móveis para toda a comunidade, numa espécie de cooperativa.
BF – Hoje a música de protesto são vocês que fazem? Thogun – Sim. Chico Buarque falou que se ele nascesse quinze anos atrás, hoje ele seria rapper. Hoje, para resgate da auto-estima e a elucidação das coisas, é o rap. BF – Conte sobre sua participação no filme Fala Tu? Thogun – O Fala Tu é um filme que retrata a minha vida, a do Macarrão, a da Combatente e também a do DJA, ou seja, três rappers e um DJ, porque este também é um elemento da cultura hip hop, além do rapper, do grafitte e do breackers. Um filme feito na base de muita simplicidade, que retrata o nosso cotidiano, a maneira simples de viver desafiando sempre os limites, independentemente das circunstâncias em que se viva, às vezes negativa. É um filme também de superação dos preconceitos que muitos têm.