Ano 2 • Número 90
R$ 2,00 São Paulo • De 18 a 24 de novembro de 2004
Mobilizações por um Brasil de todos P
ara os movimentos sociais, a atual orientação da economia impede avanços nas áreas sociais. Por isso, a Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) está organizando protestos em todo o país para o dia 25, pedindo a mudança da equipe econômica do governo Lula. Essas manifestações foram precedidas por mobilizações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) que foram às ruas, no início de novembro, exigindo mudanças da política econômica. Devido às restrições dessa política, por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) não cumprirá a meta de assentar 115 mil famílias em 2004. Dos R$ 1,7 bilhão anunciados pelo presidente Lula para fortalecer o orçamento do MDA, só R$ 600 milhões foram liberados. Para cortar gastos para pagar os juros da dívida externa. Págs. 3 e 4
João Zinclar
Coordenação dos Movimentos Sociais programa ações para o dia 25, para exigir prioridade para a área social
Em Iaras, interior de São Paulo, integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra exigem reforma agrária, compromisso firmado pelo governo de Lula
Documento revela torturas no Chile
Dezenas de milhares de palestinos saíram às ruas para homenagear o presidente palestino, Yasser Arafat, morto no dia 11. Mobilizações ocorreram em todas as grandes cidades do país. Durante o enterro, na capital Ramallah,
a população tomou a frente das autoridades que acompanhavam o cortejo e enterrou seu líder. Para o presidente da Confederação das Entidades Árabe-Palestina no Brasil, Farid Suwwan, o reconhecimento popular indica que a
vida de Arafat se mistura com a do povo palestino. Apoiado pela maioria das organizações do país, o governo provisório, liderado por Abu Mazen, marcou eleições presidenciais para 9 de janeiro. Pág. 9
Anja Niedringhaus/Associated Press/AE
Relatório sobre as torturas cometidas contra presos políticos durante a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990) está no centro da polêmica no Chile. É que o presidente Ricardo Lagos, ao receber o documento de uma comissão, ainda não decidiu se vai publicá-lo. Com base em testemunhos de 35 mil vítimas da repressão, o relatório traz uma lista de práticas, como abusos sexuais, queimaduras com cigarros, fios elétricos, entre outras. Pág. 11
De luto, palestinos pedem paz
OAB quer auditoria da dívida externa A Ordem dos Advogados do Brasil vai solicitar ao Supremo Tribunal Federal a formação de comissão parlamentar de inquérito para concluir uma auditoria da dívida externa brasileira. A iniciativa se fundamenta na Constituição Federal, que estabelece a realização de “exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro”. Marcado para ocorrer em 1989, o exame nunca foi concluído. Pág. 5
Historiadora analisa política de Chávez
Homenagem a Zumbi, herói da resistência
A aliança liderada pelo presidente Hugo Chávez foi a grande vitoriosa nas eleições regionais na Venezuela. O governo ganhou 20 dos 22 Estados onde houve disputa. Para muitos, significará o avanço da revolução bolivariana mas, para Margarita López Maya, da Universidade Central da Venezuela, é motivo de preocupação: “Sempre que vemos tanto poder nas mãos de um único partido dá muito medo”. Pág. 10
Entidades negras realizam, dia 20, manifestações para homenagear o herói Zumbi dos Palmares e protestar contra a exclusão social dos afro-descendentes. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostram que as taxas de analfabetismo entre pessoas com 15 anos ou mais é de 34% entre negros, e de 7,5% entre os brancos. No quesito renda mensal, um branco ganha, em média, o dobro de um negro. Pág. 8
Exclusão social e as muralhas da linguagem A causa de todos os males do país é a continuação de uma realidade que garante a Casa Grande para poucos, e mantém a imensa maioria na Senzala. Essa é a avaliação de Vito Giannotti, autor do livro Muralhas da Linguagem. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele afirma que a escravidão no Brasil ainda não acabou para milhões de homens e mulheres. Para ele, na Senzala não há boas escolas, e a baixa escolaridade e a exclusão social são as principais muralhas da linguagem. Pág. 16
Refugiados de guerra – Família de iraquianos deixa a cidade de Faluja, no Iraque, após intensa ofensiva dos soldados estadunidenses e das forças aliadas, que arrasou a região e causou a morte de mais de 1000 pessoas
Economia solidária, uma boa alternativa Pág. 6 E mais: DEBATE – Os especialistas Temístocles Marcelos Neto e Adilson Vieira analisam proposta de concessão de floresta na Amazônia, apontando conseqüências para o bioma amazônico e problemas do controle público. Pág. 14 ÁFRICA – Paulo Farias, africanista brasileiro, ressalta a importância de se estudar o continente para combater o racismo. Pág. 12
Ajuste fiscal Campanha exige arruína Estados respeito ao e municípios direito da mulher Pág. 7
Pág. 8
Água: um alerta contra a privatização Bem essencial ameaçado de escassez, a água está em perigo porque controlar regiões com abundância deste patrimônio é estratégico para os países capitalistas. A privatização e a mercantilização da água, que Roberto Malvezzi, da Comissão Pastoral da Terra, chama de hidronegócio, será uma das principais questões discutidas pelos movimentos sociais, organizações do campo e governo, durante a Conferência Nacional Terra e Água, que se realiza de 22 a 25, em Brasília. Pág. 13
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CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Marilene Felinto, 5555 Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Valter Oliveira Silva • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Dafne Melo e Fernanda Campagnucci 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
CARTAS DOS LEITORES ELEIÇÕES EM SÃO PAULO A eleição de José Serra para a Prefeitura de São Paulo deixou muitas indagações, na medida em que ele nunca foi muito claro quanto ao que iria fazer, deixando apenas a entender que continuaria todas as boas realizações da prefeita Marta Suplicy. E como não se colocou contra nenhuma delas, supõe-se que continuará todas. Nós, como tantos outros, que condenamos o governo Fernando Henrique, do qual Serra sempre participou em primeiro plano, um tipo de governo privatizante, condenado não só pelo povo brasileiro, mas também pelo povo argentino, pelo povo uruguaio e por tantos outros povos, desejamos a Serra, como Chávez desejou a Bush, que ele faça realmente um novo governo. Um governo que aprofunde a revolução iniciada por Marta no transporte da cidade, duplicando o passa-rápido (já que prometeu governar por 4 anos), garantindo que a maioria tenha prioridade sobre a minoria, o coletivo se sobreponha ao individual, assegurando que os interesses majoritários da população que nele votou estejam sempre acima dos interesses minoritários dos grupos que financiaram a sua campanha. Nayde Ribeiro de Carvalho São Paulo (SP)
YASSER ARAFAT O mundo assistiu perplexo aos dias de agonia que culminaram com o triste passamento do presidente da Autoridade Nacional Palestina Yasser Arafat, que de tanto lutar pela paz em seus territórios ganhou o Prêmio Nobel da Paz. O que deixa o mundo pensativo é o fato de haver fortes possibilidades de que esta personalidade, que jamais será esquecida, fosse vítima de um crime de envenenamento. Isto é profundamente lamentável, e atenta a garantia internacional da civilização contemporânea de todos os povos! Célio Borba Curitiba (PR) BRASIL DE FATO NA ESCOLA Os jornais que vocês nos enviaram, que falavam das “transnacionais dos transgênicos”, foram muito proveitosos para o nosso trabalho com os jovens carentes das nossas escolas, onde os mesmos despertaram para uma consciência crítica da realidade. Na qualidade de professor, analisei com bastante carinho e descobri que nossos jovens aprenderam bastante e têm um grande domínio do assunto. Francisco Canindé Taipu (RN)
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NOSSA OPINIÃO
Graves perdas para os progressistas
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ecididamente, as últimas semanas não foram boas para as forças sociais progressistas no mundo. Primeiro, foi a vitória eleitoral de Bush, que teve um significado simbólico, pois, de certa forma, demonstrou a ratificação, pela maioria do povo dos Estados Unidos, da política belicista de Bush. Embora, como noticiaram os jornais, dos cerca de 150 milhões de eleitores, Bush tenha sido reeleito com 58 milhões de votos. Portanto, a rigor, tem apoio de apenas 38% dos cidadãos eleitores estadunidenses. Mas isso faz parte das mazelas da chamada democracia formal, montada para que o povo não tenha participação efetiva. A segunda péssima notícia foi que o governo Bush resolveu usar o respaldo político da vitória eleitoral e o apoio da mídia estadunidense para massacrar a cidade de Faluja, no Iraque. As cenas de Guernica, com o massacre de Hitler-Franco, chegam a ser angelicais, perto do que aconteceu em Faluja. Nem o hospital sobrou. Os médicos foram seqüestrados e algemados. Imagine-se o que fizeram com as pobres criaturas que estavam por lá... Casas foram
bombardeadas por helicópteros. A cidade foi massacrada. E a mídia internacional, sustentada pelas gordas verbas publicitárias das transnacionais, ficou quieta. Porque, depois, estas mesmas transnacionais vão “reconstruir” Faluja, e vender mercadorias aos sobreviventes. E o escárnio e a prepotência do império são tão grandes que um general estúpido, da reserva do Exército dos Estados Unidos, teve a coragem de publicar no jornal New York Times , dia 11 de setembro, que a população estadunidense não se preocupasse, pois o seu Exército havia treinado muito na invasão do Panamá sobre como tomar cidades inimigas sem perdas de soldados americanos. Essa mesma informação, de treinamento prévio, circulou também na imprensa anteriormente: a notícia de que a tática do Exército de Israel de arrasar Jenin, dois anos atrás, fez parte de um exercício militar monitorado pelos Estados Unidos, já planejando a invasão de uma cidade árabe e hostil: Bagdá. Mas o povo do Iraque continua firme. E como já disseram vários analistas militares
internacionais, a guerra do Iraque está apenas começando. A terceira perda irreparável foi a morte de Yasser Arafat. Não se trata de endeusá-lo, nem de analisar virtudes e defeitos inerentes a qualquer ser humano. Mas Arafat foi, durante 40 anos, o porta-voz da resistência palestina. Foi um líder que dedicou toda sua vida a uma causa, a liberdade de seu povo e a conquista de um território. Andam circulando muitos rumores sobre um possível envenenamento, que foi produzindo efeitos ao longo de anos, o que impediria de identificar sua origem e forma. Oxalá, sua morte sirva para unir as forças populares da Palestina e dar mais ânimo ao povo para que continue sua luta. Uma luta que é também nossa, do mundo progressista. Todo povo tem direito a seu território. Assim como o povo israelita tem direito a um território, os palestinos precisam ser livres em sua terra. O mundo se move com ações e contradições. As forças progressistas da humanidade tiveram graves perdas nas últimas semanas. Mas haverá vitórias. Esperamos que em breve.
FALA ZÉ – Justiça
OHI
CRÔNICA
Evocações e lições do Recife Luiz Ricardo Leitão Volto de Pernambuco, depois de participar da 2ª Semana de Cultura do MST na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com os versos de Manuel Bandeira ressoando em minha memória: Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô... A viagem suscitou dentro de mim sugestivas reflexões acerca da riqueza cultural de nosso povo e da iniciativa exemplar dos companheiros sem-terra, que decidiram conceder à cultura nacional um espaço privilegiado em sua já abarrotada agenda de lutas. É claro que o trabalhador do campo, por experiência própria, não desconhece o peso dos elementos simbólicos no imaginário social. Ainda paira sobre o sertanejo o triste estigma do atraso cunhado por Monteiro Lobato na célebre figura do “Jeca Tatu”, vista por gente como Collor e FHC como um sério empecilho ao ingresso do Brasil na “modernidade” (o que, traduzido no jargão do agronegócio, nada mais é do que produzir soja e outros grãos transgênicos para os países do G-7). Por isso, nas suas escolas e em seus cursos de formação, além de estudar os ensinamentos de pensadores como
Florestan Fernandes e Caio Prado Jr., os trabalhadores também se dispuseram a pesquisar as linguagens artísticas e a produção cultural de nosso povo, conjugando, como requer o verdadeiro conhecimento, o urbano e o agrário, o erudito e o genuinamente popular. Algo como reunir, em um mesmo sarau, João Cabral de Melo Neto e Patativa do Assaré, Ariano Suassuna e o Maracatu Estrela Brilhante, ou até mesmo Chico César e o grupo de xaxado Cabras de Lampião. Esse é um desafio tão árduo quanto a própria luta pela reforma agrária, neste país em que o latifúndio parece ser o mais alto ícone de prestígio político e social. Pernambuco revelou-se um cenário perfeito para a insólita alquimia. Lá, onde o Brasil é mais ibérico sem perder suas raízes negras e ameríndias, estiveram reunidas todas as raças e todas as tribos, em um evento destinado a reafirmar que ainda somos capazes de resistir à avalanche de produtos pasteurizados que os arautos da globalização neoliberal insistem em difundir pelos quatro cantos do planeta. Sua herança cultural segue viva nas ruas de Olinda, onde as meninas ensaiam com som-
brinhas multicoloridas os primeiros passos do frevo e os tambores do maracatu invadem a Igreja de Santa Gertrudes na hora em que as noviças entoam o Laudes. É óbvio que nos bares e residências também se ouviam o plimplim global e os agressivos anúncios de celulares e automóveis, símbolos de um mundo virtual que nos promete, a cada dia, mais rapidez e integração. Todavia, das pontes sobre o Capibaribe ainda pude avistar, nos mangues e alagados, Severino retirante em pleno espetáculo da vida. Era ainda a primeira semana de novembro, mas o auto de Natal estava ali, diante de meus olhos, lembrando-me que é preciso resistir. E mesmo que alguns cursos de inglês e os clubes dos neocolonizados ostentassem os adereços do “Dia das Bruxas”, os rios do Recife me sussurravam: “Halloween é o cacete! Viva a cultura nacional!” Luiz Ricardo Leitão é editor e escritor. Doutor em Literatura LatinoAmericana pela Universidade de La Habana, é também professor adjunto da UERJ
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De 18 a 24 de novembro de 2004
NACIONAL MOBILIZAÇÃO
Sem-terra pressionam por reforma agrária Jorge Pereira Filho da Redação
A
campados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) decidiram intensificar, em novembro, suas ações para pressionar o governo Lula a cumprir as metas previstas no Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Dados do início do mês confirmam que o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) não conseguirá assentar as 115 mil famílias anunciadas no início do ano. Na melhor das hipóteses, 92 mil famílias serão beneficiadas, das quais 66 mil estão assentadas e 26 mil com o processo encaminhado. “A meta não será cumprida porque o Ministério da Fazenda não quer liberar os recursos para a reforma agrária”, avalia João Paulo Rodrigues, da direção nacional do MST. Dia 10, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, e o presidente do Incra, Rolf Hackbart, reuniram-se com representantes do MST e apresentaram os números oficiais da reforma agrária. Segundo o ministro, dependendo da verba que terá disponível, mais 12 mil famílias poderiam ser assentadas neste ano. “Estamos aguardando uma suplementação (acréscimo ao orçamento do MDA) que está no Congresso para avançar em relação a esses números, que já são importantes”, declarou Rossetto à imprensa. Ocorre que o MDA não pôde utilizar toda a verba anunciada para a reforma agrária.
Fotos: João Zinclar
Política econômica privilegia pagamento de juros da dívida e bloqueia gastos com assentamentos e desapropriações
Vista panorâmica de fazenda improdutiva ocupada pelo Movimento dos Tabalhadores Rurais Sem Terra
IMPUNIDADE Outro problema apontado pelos movimentos sociais do campo é que mais da metade dos assentamentos realizados pelo governo estão concentrados em áreas da Amazônia Legal. As localidades onde há maior pressão pela reforma agrária estão sendo desprestigiadas. Para se ter uma idéia, entre as 92 mil famílias assentadas pelo governo, apenas 7 mil estavam ligadas ao MST. Em todo o Brasil, o movimento conta, atualmente, com mais de 120 mil famílias acampadas. O Estado de Pernambuco, por exemplo, vem sendo negligenciado na política de assentamentos. “A situação, aqui, é gravíssima. O Incra do Recife tinha uma meta de assentar 6 mil famílias e, até agora, não assentou nenhuma. Já o Incra de Petrolina assentou apenas 900 das 2 mil famílias que havia previsto”, critica Jaime Amorim, dirigente do MST.
PROMESSAS No início do ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu acrescentar cerca de R$ 1,7 bilhão ao orçamento do MDA, fixado em R$ 1,4 bilhão. Até novembro, apenas R$ 600 milhões tinham sido, de fato, liberados. O restante foi bloqueado por decisão do Ministério da Fazenda para garantir o superávit primário – economia de gastos públicos feita pelo governo para pagamento de juros da dívida externa. A possibilidade de aquela verba sair até o final do ano é remota, se não houver mudança nos rumos da política econômica. Em setembro, o governo decidiu elevar a meta do superávit de 4,25% para 4,5% do Produto Interno Bruto (PIB) para 2004, o que significou um corte adicional de R$ 4,2 bilhões no orçamento público.
MERCADO A medida foi tão conservadora que recebeu críticas até mesmo do Fundo Monetário Internacional (FMI), que havia determinado para o país uma meta de 3,6% do PIB. A decisão foi coerente com a postura do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, que também em 2003 ele-
a atual orientação da economia. “O governo não vai mudar sua política apenas para fazer a reforma agrária. Por isso, precisamos de um grande esforço conjunto com outros setores prejudicados”, afirma. Segundo ele, outras forças sociais, como o movimento por moradia, por saúde e os universitários, também estão descontentes com as diretrizes irradiadas do Ministério da Fazenda para as áreas sociais do governo. Essa insatisfação vai desembocar, no dia 25 de novembro, em marchas organizadas pela Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) nas principais cidades brasileiras. A idéia é que sejam realizados protestos, sobretudo em frente às sedes das agências do Banco Central e do BankBoston, com o objetivo de pedir a substituição de toda a equipe econômica do governo Lula.
Integrantes do movimento entregam as armas para agentes da Polícia Federal
ÁREAS PÚBLICAS vou o superávit primário de 3,75% para 4,25%, superando os patamares exigidos pelo FMI. “O governo continua a cumprir seus compromissos com as instituições financeiras multilaterais e o mercado financeiro, mas não faz o mesmo com as metas acertadas com a sociedade”, critica Gilberto Portes de Oliveira, secretário-executivo do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo. Segundo ele, até o momento, a conduta do governo em relação aos problemas no campo tem como princípio a filosofia de “apagar incêndio”. “Onde há conflito, o governo vai lá e age pontualmente. Em vez de ter uma ação estrutural, há apenas uma política compensatória”, considera Oliveira. Para o secretário-executivo do Fórum, os responsáveis por essa prática não estão nas direções do MDA e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Assembléia antes da ocupação
“A essência dessa questão está em uma política macroeconômica voltada à exportação, que ignora os problemas sociais como o desemprego, da maioria da população”, avalia Oliveira, que alerta para uma ofensiva dos latifundiários contra os movimentos sociais. O secretário-executivo do Fórum defende uma ação
conjunta para alterar esse quadro (veja reportagem na página 13).
ALIANÇA João Paulo Rodrigues, do MST, concorda com Oliveira. O dirigente sem-terra afirma que é preciso construir uma aliança na sociedade para pressionar o governo a mudar
E mesmo os assentamentos realizados em Pernambuco não tiveram como foco o combate ao latifúndio improdutivo. Das 900 famílias beneficiadas, 750 foram assentadas em áreas públicas, e não em terras desapropriadas. Ou seja, os grandes proprietários de terra ficaram intocáveis. Apesar disso, a pressão social pela reforma agrária é crescente. O MST, em Pernambuco, organiza 169 acampamentos, com cerca de 23 mil famílias. No início de novembro, mais sete ocupações foram realizadas, envolvendo cerca de 500 famílias. “Vamos marcar posição para o Incra se estruturar e cumprir as metas determinadas”, diz Amorim. Em novembro, os sem-terra realizaram também ocupações de fazendas improdutivas no Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Goiás, Bahia, Paraíba e Maranhão, envolvendo milhares de famílias.
MAB também cobra mudança O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) também elegeu a luta contra o modelo econômico como elemento central em suas mobilizações. Em novembro, cerca de 5 mil atingidos insistiram na mudança de orientação da economia nos protestos que realizaram pelo país. “Estamos trazendo para o debate a questão que o modelo energético está atrelado ao modelo econômico. Hoje, a maior parte das empresas estatais têm de poupar dinheiro para o superávit primário (economia de gastos públicos para pagar juros da dívida) e não sobram recursos para atender às famílias atingidas pela construção das barragens”, analisa Gilberto Cervinski, da direção nacional do MAB.
As mobilizações dos atingidos tiveram como objetivo, ainda, denunciar as contradições do modelo energético brasileiro. De acordo com o MAB, a atual estrutura do setor beneficia as empresas transnacionais. “O preço da energia, para o cidadão, é de R$ 400 por megawatt (MW). Já as empresas donas de barragens que possuem fábricas de alumínio recebem eletricidade subsidiada e pagam menos do que R$ 100 por MW”, denuncia Cervinski acrescentando que a maior parte das construções de usinas são financiadas com dinheiro público. As transnacionais, por sua vez, ignoram o problema dos atingidos pelas construções das hidrelétricas. Na usina de Barra Grande, divisa de
Santa Catarina com o Rio Grande do Sul, por exemplo, os proprietários (a estadunidense Alcoa, a CPFL, a Camargo Corrêa e a CBA) rejeitam reconhecer o direito de parte dos agricultores da região.
GRAVIDADE De acordo com o MAB, 1,5 mil famílias foram atingidas pela construção. As empresas, no entanto, só aceitam negociar com 650 famílias. Ainda assim, não cumprem com os acordos. “Há famílias que estão há mais de dois anos esperando ser assentadas”, conta Cervinski. Segundo ele, a política das empresas é protelar o assentamento para que os atingidos aceitem a indenização em dinheiro. “Assim,
eles não continuam organizados e param de exigir seus direitos”, explica o dirigente do MAB. Os atingidos anunciaram que vão impedir o desmatamento de araucárias na região, conforme prevê o projeto da usina, enquanto não houver uma solução para os problemas sociais e ambientais do empreendimento.
OMISSÃO Os atingidos pela construção da usina de Cana Brava, em Goiás, vivem drama semelhante. A construtora é a transnacional belga Tractebel, com empreendimentos em várias partes do mundo, sobretudo no controle de rios. A empresa se nega a reconhecer que tem dívida com as cerca de mil famílias que perderam
suas terras com a hidrelétrica. “Eles dizem que é um problema do governo que, por sua vez, não intervém no problema”, afirma Cervinski. Para ele, apesar de a ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, ter prometido chamar as empresas para discutir os problemas ambientais e sociais de seus empreendimentos, nada tem sido feito. “Não há uma barragem em que se tenha avançado nas soluções dos problemas. A experiência mostra que só há solução quando o movimento social faz pressão. A tarefa do povo brasileiro é sair às ruas para mudar o país, não podemos recuar, pois se trata da negociação dos que não têm nada contra os que detêm tudo”, conclui o dirigente do MAB. (JPF)
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De 18 a 24 de novembro de 2004
da mídia Dioclécio Luz
Ecad cobra indevidamente Uma rádio comunitária de Juazeiro, na Bahia, autorizada a funcionar, recebeu a visita do Ecad, com a cobrança: R$ 200, por mês. Ora, se a lei proíbe publicidade, obtenção de recursos públicos, qualquer tipo de negócio, como a rádio vai poder pagar ao Ecad?
NACIONAL EDUCAÇÃO Cristiano Couto/Folha Imagem
Espelho
Eleições no império “Não foi uma eleição, mas um posto de identificação. Aposto qualquer coisa que, se as cédulas eleitorais não tivessem os nomes de Bush e Kerry, mas a pergunta ‘Você assiste à Fox TV ou o lê o New York Times?’, o colégio eleitoral teria se dividido de maneira exatamente igual.” (Alberto Dines, do Observatório da Imprensa) Falsa imagem da guerra Todas as fotos publicadas na grande imprensa, obtidas no Iraque, foram submetidas à censura pelo governo dos Estados Unidos. São fotos de ficção, de uma guerra em que não há mortos, nem feridos. Claro. Os EUA não querem repetir o que aconteceu com o Vietnã, quando o mundo inteiro, estadunidenses, inclusive, só perceberam que era um massacre depois que as imagens pularam o muro da censura oficial. Aí todo mundo pediu o fim daquele massacre. O morticínio no Iraque vai continuar até o momento em que a verdade pular este novo muro da vergonha. Concorrência barata A rede de cinema Cinemark inventou uma promoção: durante todo o dia, suas salas exibirão filmes nacionais, com entrada a R$ 2,00. Resultado: salas lotadas. Isso incomodou a concorrência. No dia 08/11, dia da promoção no Cinemark, as salas da rede Severiano Ribeiro resolveram fazer promoção semelhante, também a R$ 2,00, mas exibindo filmecos estadunidenses. O capital não tem qualquer compromisso com a cultura. Curso grátis O professor Chico Lobo, antigo batalhador do movimento, está ministrando cursos gratuitos de rádios comunitárias para jovens carentes na faixa de 14 a 23 anos. O curso, com duração de 18 horas, inclui a distribuição gratuita de apostilas, material radiofônico e fonográfico. Informações: (11) 5834-1594 (Rodrigo). Casa da árvore A Rádio Câmara colocou no ar um bom programa infantil, o “Casa da árvore”, produzido e apresentado por Andréa Faulhaber. Fora de Brasília, ele pode ser sintonizado (e copiado) no endereço da Câmara (www.camara.gov.br). Tendo por tema central ecologia e cultura, tratase de um programa inteligente que respeita a inteligência das crianças. TCU dá bronca na Anatel Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) diz que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) não tem condições de avaliar se as empresas de telefonia estão cumprindo as metas de universalização. A Anatel, que se orgulha da aquisição de equipamentos de fiscalização de emissoras de baixa potência, é acusada pelo TCU de usar “técnicas defasadas” para avaliar se as empresas de telefonia estão cumprindo as leis. É por essas coisinhas que a Agência é tão amada pelas empresas. Análise da mídia pernambucana A Campanha contra a Baixaria, da Câmara dos Deputados, cuida somente do que acontece na TV. O Centro de Cultura Luiz Freire, em Recife, porém, optou por avaliar o que sai impresso nos jornais. O resultado – muito bom – está no endereço: www.ombudspe.blogger.com.br. Contém uma série de avaliações sobre matérias publicadas nos jornais do Estado. Eis um bom exemplo a ser seguido.
Estudantes protestam em frente à Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em Belo Horizonte, contra a reforma universitária
Protesto contra a reforma Para não dar na vista, governo está fatiando mudanças que favorecem universidades privadas Luís Brasilino da Redação
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em fazer alarde, o governo federal pode ter fatiado e estar, por partes, passando a reforma universitária. É o que acreditam os movimentos que organizam marcha sobre Brasília, no dia 25, para protestar contra as mudanças que o governo federal quer impor à educação no país. Caso a reforma, efetivamente, esteja sendo implantada por partes, no dia 4, foi dado mais um passo importante nessa direção. Na data, o governo encerrou as inscrições das instituições de ensino superior interessadas em oferecer vagas por meio do Programa Universidade para Todos (ProUni). O resultado foi muito bom, na avaliação do governo, que esperava abrir 40 mil vagas e quase triplicou suas estimativas. Para 2005, alunos de escolas públicas, professores, afrodescendentes e indígenas terão reservadas 115 mil vagas em cursos superiores privados. Dependendo de sua renda, eles vão receber bolsas equivalentes a 50% ou 100% das mensalidades. Quanto às escolas inscritas, serão beneficiadas com isenção fiscal.
ADESÃO A grande oferta de vagas resultou do elevado número de adesão: 1.168 das 1.652 – ou seja, 71% das instituições de ensino superior privadas existentes (segundo o Censo da Educação Superior, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep em 2003) se inscreveram para participar do ProUni. De acordo com o professor Osvaldo Coggiola, vice-presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), este resultado era mais que esperado. “O programa representa muitas vantagens para os empresários do ensino particular, o único setor ouvido nas discussões e também o único beneficiado”, afirma. Para o professor, o Universidade para Todos reflete a opção do governo de investir no ensino privado, ao invés do público. Ele acredita que o volume de recursos que será injetado nas escolas particulares por meio do programa é muito alto. Com a verba que vai deixar de ser arrecadada em função do ProUni, Coggiola calcula que seria possível dobrar o número de vagas nas escolas públicas. “Do ponto de vista do acesso, o
programa é demagógico, pois não altera o número de vagas públicas”, acrescenta Antonio David, do Diretório Central dos Estudantes da Universidade de São Paulo (USP). Coggiola acrescenta que o programa é uma via de mão única, onde as empresas de educação recebem sem dar nada em troca. “Eles têm grande capacidade ociosa, e nos seus vestibulares a oferta de vagas chega muito perto de 1 para 1. Ou seja, oferecer matrículas pelo ProUni não representa custo algum para as universidades privadas”, explica o professor. O Censo Educacional estima em 400 mil a capacidade ociosa dessas instituições. Roberto Leher, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vem seguidamente chamando atenção para mais um aspecto nefasto do Universidade para Todos. Para ele, o programa embute a concepção de que estudantes provenientes das classes populares devem ter ensino de baixa qualidade – em geral, os cursos particulares são notoriamente piores que os públicos.
EM FATIAS Coggiola considera o ProUni apenas um aspecto da reforma universitária. “Ela está sendo fatiada. São pequenas iniciativas que, no conjunto, transformam profundamente a educação brasileira”, analisa. Ele acredita que, se continuar assim, as mudanças promovidas pelo governo vão sucatear as universidades públicas, precarizar as condições de trabalho dos docentes,
promover o crescimento do setor privado e acarretar perdas para a pesquisa. Uma destas fatias é o Decreto 5205, editado pelo Ministério da Educação (MEC) e pelo Ministério de Ciências e Tecnologia (MCT) em 14 de setembro, que regulamenta a relação entre as fundações de apoio e as instituições federais de ensino superior. Para defensores do ensino público, as fundações são porta de entrada para a privatização das universidades federais e estaduais. Coggiola acredita que a Lei de Inovação Tecnológica segue este mesmo caminho. Aprovada na Câmara dia 7 de julho e em tramitação no Senado, a lei transforma a universidade em prestadora de serviço para empresas, transformando recursos para pesquisa em financiamento para atender demandas privadas.
AUTONOMIA Já a medida provisória 208/ 2004, editada no dia 20 de maio, muda para pior a remuneração dos professores de universidades federais. E, por fim, em 14 de abril, o governo criou o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), “o novo Provão”. “Ao estabelecer o funcionamento da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes), o governo tira a autonomia das universidades, na medida em que elas passam a ser subordinadas a um órgão ligado ao MEC”, afirma Coggiola. Segundo David, da USP, estas
medidas colocam o ensino público a serviço de demandas imediatistas, principalmente de empresários da educação. “Não somos contrários à mudança, pelo contrário, a situação atual é calamitosa”, completa o estudante. O momento para fazer mudanças poderia ser a reforma universitária. Mas, segundo Coggiola, o que vem sendo assim chamado pelo governo, na verdade, se resume a uma Lei Orgânica do Ensino Superior que visa regulamentar a existência das universidades públicas. “Isso também tira autonomia das instituições de ensino. Regulamenta um direito que poderia existir sem regulamentação”, esclarece.
A MARCHA Para protestar contra tudo isso, estima-se que 10 mil pessoas cheguem a Brasília dia 25. A marcha está sendo organizada pela Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas); Coordenação Nacional de Lutas Estudantis (Conlute); esquerda da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Partidos dos Trabalhadores (PT) e da União Nacional dos Estudantes (UNE); pelo Partido Socialismo e Liberdade (P-Sol) e pelo Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). Os protestos estão programados para começar a partir das 9 horas da manhã, e a marcha pela Esplanada dos Ministérios deve sair às 11 horas. Além da reforma universitária, os manifestantes têm como bandeiras a autonomia sindical e a reforma agrária.
Método cubano alfabetiza adultos da Redação O Brasil vai adotar o método cubano de alfabetização de jovens e adultos em dois municípios do Piauí. O ministro da Educação, Tarso Genro, reuniu-se com o ministro da Educação de Cuba, Luis Gómez Gutiérrez, para selar o protocolo de cooperação. “O nosso objetivo é, quem sabe nos próximos oito ou dez anos, chegar a uma taxa próxima de zero no analfabetismo no Brasil”, declarou Genro. De acordo com o secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), do Ministério da Educação, Ricardo Henriques, haverá uma adaptação da metodologia de Cuba, que trabalha com o sistema de educação semipresencial, com módulos em vídeocassete.
O método tem se mostrado eficaz em países como a Nicarágua. “A nossa intenção é testar a metodologia. A princípio, controlaremos a qualidade do processo, a implementação e o impacto, para avaliar se ele pode ser estendido para outras cidades do Piauí ou de outros Estados”, afirmou o secretário. Henriques disse que, se aprovado, o método vai funcionar dentro do Programa Brasil Alfabetizado e explicou que o projeto se iniciará no Piauí porque o Estado mostrou-se com interesse em absorver essa metodologia. “Achamos mais fácil fazer o projeto-piloto em um Estado que está mais interessado”, explicou. O número de alunos beneficiados com o programa ainda não foi definido. “Até dezembro vamos definir esse número. Em janeiro haverá uma visita de um técnico cubano ao Piauí, e a idéia é começarmos
o projeto em abril”. disse. Para o secretário, os resultados do programa Brasil Alfabetizado são extremamente promissores e os ajustes feitos para aumentar a qualidade do programa e transformá-lo em uma política pública, e não mais em uma agenda de campanha de enfrentamento do analfabetismo, são responsáveis pelo otimismo do ministro. “Um dos maiores problemas da história do Brasil, no que se refere ao enfrentamento do analfabetismo, é que isso sempre foi trabalhado em forma de campanha”, afirmou Henriques. Ele explicou que, à medida em que se aumenta a responsabilidade de Estados e municípios nesse processo, há uma probabilidade grande de que os alunos se alfabetizem e continuem no processo de escolarização. (Agência Nordeste, www.agne.com.br)
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NACIONAL ENDIVIDAMENTO
OAB quer auditoria da dívida externa Ordem vai ao STF exigir cumprimento da Constituição, que prevê apuração do endividamento do país
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artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988 é claro: “No prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro. § 1º – A comissão terá a força legal de comissão parlamentar de inquérito para os fins de requisição e convocação, e atuará com o auxílio do Tribunal de Contas da União. § 2º – Apurada irregularidade, o Congresso Nacional proporá ao Poder Executivo a declaração de nulidade do ato e encaminhará o processo ao Ministério Público Federal, que formalizará, no prazo de sessenta dias, a ação cabível”. Em 1989, portanto, foi instalada uma comissão mista para tratar do tema, sob relatoria do senador Severo Gomes (PMDB-SP). Ele fez um relatório parcial, mas foi substituído pelo deputado federal Luiz Salomão (PDT), cujo relatório final sugeria, entre vários itens, a suspensão dos pagamentos de quaisquer serviços da dívida até análise completa dos contratos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), para verificar cláusulas referentes à soberania nacional.
COMISSÃO Apresentado em 14 de agosto de 1989, o parecer nunca foi votado. Por quatro sessões seguidas, não houve quórum. Pelo regimento do Congresso Nacional, o relatório de Salomão deveria ser submetido ao Plenário da Casa. Até hoje isso não aconteceu. No dia 8, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) aprovou em plenário o envio ao Supremo Tribunal Federal (STF) de uma Argüição de Descumprimento de Preceito
restringem ao aspecto econômico/ financeiro. “O problema não está na incapacidade de pagamento. A dívida pública faz parte de um sistema de dominação política”, salientou Beverly, uma das coordenadoras da Campanha Jubileu Sul na Argentina. As soluções para o problema da dívida, argumenta ela, são políticas. “O problema não se resolverá com mais dinheiro nos orçamentos de cada país. A auditoria da dívida não pode ser vista apenas como uma questão contábil. Trata-se de uma iniciativa para nos ajudar a entender esse mecanismo de dominação política”, complementou. Beverly explicou que o começo do ciclo da dívida ocorreu quando Robert McNamara se tornou presidente do Banco Mundial (Bird), em 1968, e começou a fazer grandes empréstimos aos governos. Em paralelo, patrocinou uma série de estudos que fundamentassem a expansão do endividamento.
Luciney Martins/Rede Rua
Maurício Hashizume de Brasília (DF)
UM MITO
Para coordenadora da Campanha Jubileu Sul, auditoria revela o mecanismo de dominação política
Fundamental (ADPF) que solicita a instalação de uma nova comissão mista para concluir uma auditoria da dívida externa brasileira. “Dispositivo constitucional não se cumpre pela metade”, declarou Arx Tourinho, membro do Conselho Federal da OAB. A Argüição proposta pela OAB materializa as posições defendidas pelos participantes do seminário “Ilegitimidade da Dívida: Um Caso de Auditoria”, realizado dia 11 no Senado Federal.
CONSTITUIÇÃO “Se cumpríssemos a Constituição, o Brasil não estaria nesta situação”, argumentou Tourinho. Para ele, o descumprimento do
dispositivo constitucional dificulta diretamente a garantia do artigo 3º da Constituição, sobre um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ainda segundo a Carta Magna, a comissão de auditoria da dívida externa terá força legal de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para fins de requisição e convocação, atuando com auxílio do Tribunal de Contas da União (TCU). Caso os parlamentares encontrem irregularidades em qualquer contrato da dívida brasileira, o Congresso poderá propor ao Poder Executivo a sua respectiva anula-
ção, encaminhando o processo ao Ministério Público Federal. A dívida pública externa está na casa dos 235 bilhões de dólares e a dívida pública interna chega a R$ 1 trilhão. Em 2004, o governo brasileiro está destinando um total de R$ 71 bilhões para pagamento do juros da dívida pública. Neste ano, os recursos para investimentos não ultrapassam R$ 12 bilhões.
CAMINHOS Especialista no tema, a norteamericana Beverly Keene enfatizou, no seminário, que a questão da dívida externa não é um problema específico dos países devedores, e seus fundamentos não se
McNamara conseguiu disseminar a idéia de que o progresso dos países estava ligado à capacidade de captação de recursos por meio do aumento das dívidas. “Dessa maneira, o mito da dívida externa foi sendo incrementado. A dívida não é natural. Isso tudo foi construído e vendido”, disse Beverly. Dos anos 70 até hoje, o processo de endividamento, criado em benefício dos que emprestam, não dos que tomam emprestado, só aumentou. A dívida externa da América Latina nos anos 70 era de 60 bilhões de dólares. Em 2000, o saldo devedor chegava aos 800 bilhões de dólares. Do início da década de 80 até 2000, os governos latino-americanos pagaram cerca de 1 trilhão de dólares em juros da dívida. A solução política, na opinião de Beverly, está na organização e alastramento de uma ampla “batalha cultural” para mudar a situação. (Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br)
RIO DE JANEIRO
Marcelo Filippo do Rio de Janeiro (RJ) Famílias que residem há mais de 45 anos na Vila dos Escoteiros, em Madureira, um dos bairros mais populosos da cidade do Rio de Janeiro, estão sendo ameaçadas de despejo. Segundo os moradores, em 1996 o proprietário da Vila, Valdir Yole Pereira, teria recebido uma intimação da Justiça para usar as casas para saldar “dívida particular” e não comunicou seus inquilinos – 13 famílias, num total de 40 pessoas. Oito anos depois, em abril de 2004, as famílias souberam de uma nova intimação e receberam uma ordem de despejo a ser cumprida em 15 dias. Paulo Sales, um dos líderes dos moradores, explica que eles foram pegos de surpresa, mas iniciaram a luta dos moradores para permanecer no local. O pequeno movimento de resistência recebeu apoio do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD) e da Rede Nacional dos Advogados e Advogadas Populares (Renap). Os moradores reivindicam não só o direito de posse das casas, como também melhoria das condições do terreno. Hoje, os próprios moradores se encarregam da limpeza e da manutenção do local. Além disso, segundo Michele Nicolau, outra liderança do MTD da Vila dos Escoteiros, há projetos que vão desde a criação de uma área de lazer, passando por um centro cultural, até a formação de um grupo
Fotos: Carlos Latuff
Famílias lutam por moradia e trabalho
de confecção de roupas para geração de trabalho e renda. “A Justiça brasileira só beneficia quem tem dinheiro. Uma briga particular entre pessoas de posse pode sacrificar famílias inteiras que vão ficar sem teto da noite para o dia. Nossa disposição é grande e não vamos deixar mais essa violência acontecer, essa é uma luta por direitos sociais”, diz Michele.
BARRO VERMELHO RESISTE Além de Madureira, o MTD mantém outra ocupação em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, no Barro Vermelho. No novo acampamento, 300 famílias se organizam e lutam por seus direitos de moradia, trabalho e renda. Em agosto de 2004, ao realizar a quarta ocupação,
Acampamento Carlos Lamarca, em Belford Roxo, onde 300 famílias se organizam e lutam por seus direitos de moradia, trabalho e renda
as famílias fixaram-se em um terreno da Companhia Estadual de Habitação (Cehab), área com aproximadamente 8 mil metros quadrados. Segundo Cláudio dos Santos, um dos líderes da ocupação, havia um projeto de construção de 5 mil casas populares, por meio de uma parceria entre o governo estadual e o Banco
Mundial. Porém, apenas 2 mil foram entregues, 8 anos atrás. Desde então, eles vem tentando ocupar o local. “O que o MTD faz é organizar e criar métodos de luta”, explica Marcelo Machado, um dos coordenadores do movimento no Estado. O acampamento, que recebeu o nome de Carlos Lamarca, tem co-
mo metas a urbanização da área e a geração de trabalho e renda. “A maioria das pessoas está acampada ou está desempregada ou na economia informal”, explica dona Apolonia Maria, do núcleo de confecção de roupas do acampamento. Existem ainda núcleos de alfabetização de crianças, jovens e adultos e estão sendo formados outros, como de artesanato, de crochê e até de atividades culturais. As mulheres têm uma participação bastante expressiva na comunidade e há regras rígidas determinadas pelos próprios moradores: na ocupação não entram bebidas alcoólicas, drogas e muito menos armas. O objetivo é manter a qualidade da convivência, evitar a favelização e a repressão policial.
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NACIONAL ENTREVISTA
Hamilton Octavio de Souza Fato recorrente O Brasil tem sido o país das empresas pobres e dos empresários ricos. Muitas empresas funcionam assim: conseguem recursos públicos a juros baixos, desviam para bens pessoais de seus proprietários e renegociam as dívidas – inclusive com a Previdência, o FGTS e a Receita Federal – em muitas parcelas ou, simplesmente, dão o calote. O dinheiro de muitos vira o patrimônio de poucos. Dinheiro fácil Praticamente quebrado, o Banco Santos tem muita história para contar, a começar por uma super mansão inaugurada no Morumbi, em São Paulo, com 4.100 metros quadrados de construção, pertencente ao presidente do estabelecimento, Edemar Cid Ferreira. Agora, o banqueiro quer dinheiro público – R$ 700 milhões – para cobrir mais uma falência programada. Guerra aberta O presidente do BNDES, Carlos Lessa, atacado pela mídia burguesa, pelo empresariado e pelo lobby financeiro, não deixou por menos. Acusou o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, de articular o desmonte daquele banco estatal de desenvolvimento. A retaliação já está violenta. Marcha lenta A Polícia Federal prendeu, na última semana, o empresário paraibano Daniel dos Santos Moreira, que controla 39 empresas no Nordeste e cuja sonegação de impostos é estimada em R$ 25 milhões por ano. A investigação já havia identificado o crime e a quadrilha em 2001, mas só agora a operação foi concluída. Dúvida existencial O PMDB decidirá em dezembro se continua apoiando o governo Lula, ou se adota uma posição independente. O que está em jogo é a chapa presidencial de 2006: se Lula não garantir que o vice será do PMDB, esse partido deve se aproximar do PSDB, ou encabeçar outra chapa. Para acertar algo com o PMDB, o PT precisa romper acordos com o PL e o PTB. Reta final Vários segmentos da base do PT alimentam a expectativa de que a grande arrancada do governo Lula começa mesmo em janeiro de 2005. Acreditam que daí em diante haverá crescimento econômico e geração de empregos, mesmo porque, admitem, é a única chance de assegurar a reeleição em 2006. Discurso vazio Documento recente da Unesco recomenda que os países pobres, ou em desenvolvimento, invistam pelo menos 6% do Produto Interno Bruto em Educação. Os defensores da Educação, no Brasil, inclusive a militância do PT, sempre reivindicaram um investimento de 10% do PIB no setor. No entanto, o governo Lula segue a linha dos anteriores e aplica somente 4,2% do Produto em Educação. Empáfia tucana Vários caciques do PSDB têm ocupado grande espaço na mídia comercial, que é deles, para cantar em prosa e verso a volta ao governo federal. Na última semana, no jornal O Estado de S. Paulo, o ex-ministro Paulo Renato não apenas nomeou Geraldo Alckmin futuro presidente da República, como se autonomeou ministro, para começar “tudo de novo na Educação”. Repressão contínua Depois de ter realizado um verdadeiro arrastão contra as rádios comunitárias de Belo Horizonte, a Justiça Federal e a Polícia Federal, acionadas pela Anatel, estão atacando as rádios comunitárias de São Paulo. Inclusive emissoras ligadas à Igreja Católica, que funcionam há vários anos, estão ameaçadas de fechamento. Enquanto isso, milhares de pedidos de concessão continuam congelados no Ministério das Comunicações. É tudo muito suspeito.
Socialismo e capitalismo, juntos Paul Singer se diz socialista, acredita na economia solidária e critica a política econômica Renato Rovai e Anselmo Massad de Brasília (DF)
Agência Brasil
Fatos em foco
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os anos 80, o que o professor Paul Singer dizia, de alguma maneira era entendido como a palavra do PT sobre economia. De convicções socialistas declaradas, foi um dos primeiros militantes intelectuais do partido. Se Lula tivesse vencido em 1989, dificilmente seu principal ministro da Economia não seria ele. Lula venceu em 2002, numa outra conjuntura. O PT tinha mudado, a esquerda mundial idem, Singer ibidem. Em 2002, a militância do professor já era no campo da economia solidária. Ele trabalhava, há anos, com gente de todos os cantos do Brasil para construir um sistema cooperativo justo e distributivo. Hoje está no governo por isso. Nesta entrevista, Singer fala sobre os rumos da economia solidária, os caminhos da esquerda, sua concepção de socialismo, o governo Lula. A economia solidária tem caráter revolucionário? Paul Singer – Tem, porque é uma economia completamente oposta à capitalista em todos os aspectos importantes. Une o capital ao trabalho, que é o que o capitalismo separa. Isso muda a situação do trabalhador que, no capitalismo, por definição legal, não tem poder, nem responsabilidade. Na economia solidária é ele que tem responsabilidade total, coletiva, pela empresa. Há uma emancipação, uma desalienação. Não se pode ser parte de um todo e ficar alheio ao que acontece. Ao falar com um trabalhador cooperado de empresas grandes e antigas que passaram por crises e falências, todos dão este depoimento: “Antes era tão bom, podia ir para casa e esquecer a firma; hoje a levo comigo, sonho com ela”. Para Chico de Oliveira, a economia solidária mantém a lógica da estrutura capitalista. Já discutiu sobre isso com ele? Singer – Antes de responder, quero contar uma particularidade. O filho mais velho dele, Francisco, o Chiquinho, é secretário de Planejamento da prefeitura do Recife. E está na economia solidária há muitos anos. De vez em quando o encontro e ele me diz: “O velho tá começando a perceber”. A inserção da economia solidária na capitalista é uma constatação inegável. A tendência é tentar estruturar a economia solidária para que ela funcione em forma de rede. No Brasil ainda estamos muito distantes disso. Mas os assentamentos de terra, por exemplo, até o fim do governo Lula devem dobrar. A meta acertada com o movimento é de 500 mil famílias. Se conseguirmos transformá-los em redes, a economia solidária funcionará melhor. Formar redes seria encadear empreendimentos autogestionados, da produção à comercialização? Singer – Exato. Um exemplo: quase todo o movimento da reforma agrária é também verde. O MST fez a opção pela agricultura orgânica, sem o uso de agrotóxicos, que está ganhando espaço. Há um processo de comercialização solidária, que se chama comércio justo, que começa na Europa e se estende para cá. É bem provável que os produtos dos assentamentos sejam comercializados por entidades também de economia solidária, de maneira associada aos assentamentos. Isso já acontece em São Paulo. Qual o futuro da economia solidária no país? Singer – Não sou muito utópico e, sobretudo, tendo a ser modesto.
Acho que estamos caminhando para uma ou duas redes de empresas cooperadas. Uma é a Anteag (Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão) que reúne 300 ou 400 empreendimentos. A Unisol, da ADSCUT, está começando, congrega umas 80 cooperativas. Há uma nova lei de falência em discussão no Congresso e, nela, está previsto o arrendamento da massa falida pelos trabalhadores organizados em cooperativas ou associações. É uma das formas de recuperar uma empresa quebrada. Mas queremos mais. A intenção é ter uma política para incentivar esse tipo de iniciativa, para gerar ou, no mínimo, evitar o desaparecimento de trabalho e renda. Se conseguirmos isso, as cooperativas serão milhares, o que só não ocorre hoje porque a maioria dos trabalhadores não sabe que isso é possível. No momento, a massa falida não pode receber crédito, o que é totalmente idiota porque se uma empresa está inadimplente, não pode receber crédito, quer dizer, se tem uma dívida que não consegue pagar, nunca mais poderá pagá-la. É algo que também se pretende alterar.
Quem é Formado em Economia e Administração, doutor em Sociologia, autor de inúmeros livros, o professor Paul Singer, da Faculdade de Economia e Administração da USP, hoje é secretário Nacional de Economia Solidária do governo Lula. trabalho, o que não ocorre em todos os outros meios de produção não-capitalistas. A propriedade dos meios de produção está unida com o trabalho não só na economia solidária, mas na atividade do camponês, do pescador, do artesão, do pequeno comerciante, do pequeno prestador de serviços etc. Qual o país cuja economia está mais próxima de sua concepção de socialismo? Singer – A Islândia, uma pequena ilha perdida no oceano Atlântico. Pelo que leio, é uma economia agropecuária, em que 80% de tudo está organizado em cooperativas. São basicamente camponeses que se juntam para industrializar a produção, comprar o que precisam. Os países escandinavos não chegam a tanto, mas se aproximam. Na Europa, há muita economia solidária na agricultura. Nesse setor, a indústria é capitalista, mas os fornecedores são camponeses. Santa Catarina é uma espécie de Islândia porque no Estado o cooperativismo é muito forte. Existem várias empresas por lá, como a Sadia. O Furlan é o exemplo típico do novo capitalista, que explora, mas precisa manter uma vasta base de fornecedores, que se organizam em cooperativas para se defender do capitalista.
Na área econômica, a linha é tão ou mais conservadora do que o governo anterior. Mas isso não é o governo todo Então, acredita que a economia solidária pode transformar o conjunto da economia? Singer – Parto de um princípio diferente do do Chico de Oliveira: acho que a economia brasileira não é capitalista por inteiro. Menos da metade da população economicamente ativa vive na lógica capitalista. Muitos trabalham por conta própria, as atividades dos camponeses, pescadores, artesãos, donos de bar, feirantes não fazem parte da economia capitalista. Não acredito que daqui a 50 anos a economia solidária será a única no país. Não é nem desejável, porque é sadio para ela própria que haja alternativas, inclusive a capitalista. O senhor é um socialista convicto, ou mudou de opinião? Singer – Não mudei nada. A diferença é que, até os anos 80, acreditava que a sociedade teria de ter apenas um modo de produção. Era uma postura do Marx que se revelou falsa. Hoje, parte dos trabalhadores quer ser assalariada, e não levar uma empresa para casa. Quando uma empresa entra em crise e os trabalhadores decidem assumí-la, nem todos optam por integrar a cooperativa. Se isso não fosse possível, seria uma forma de restrição às liberdades individuais. Qual sua concepção de socialismo? Singer – Sonho com um socialismo em que as pessoas tenham mais chances de escolha, não menos. A empresa capitalista é quase uma anomalia, porque na lógica assalariada do capitalismo há separação entre capital e
Várias vozes dentro do governo têm manifestado posições contrárias à política de juros. Há debate interno? Singer – Pelo que sei, não há debate. O que o governo quer é que o debate fique restrito à equipe econômica, que é basicamente a diretoria do Banco Central e a cúpula do Ministério da Fazenda. Aí ele não existe, exceto se o aumento será de um quarto ou de meio ponto percentual. É pouco, porque o governo está cheio de economistas que não estão na equipe econômica. No governo Lula, nós, economistas não pertencentes à equipe econômica, não temos espaço para discussão.
distribuição de renda. Há vários caminhos para resolver o problema, um deles é crescer a um ritmo maior do que o crescimento da dívida. Com isso, a dívida vai diminuindo em relação ao PIB. Minha preocupação atual é a de que o crescimento seja muito frágil, e um dado divulgado em setembro mostra-se especialmente preocupante. A taxa de desemprego aumentou, depois de três meses de queda, e a renda do trabalhador diminuiu. Pode ser um acidente, mas eu ficaria preocupado, já que o dado foi divulgado poucos dias depois de a taxa de juros e do superávit primário terem sido elevados. São medidas que podem desacelerar a economia. Apesar da política macroeconômica ortodoxa, o senhor acredita que esse governo tem programas transformadores e, por isso, continua nele? Singer – Macroeconomia não é tudo. Há, sim, um esforço pela construção de alternativas e políticas em outras áreas, e é por isso que estou no governo. Esses caminhos não estão apenas na economia solidária, mas em outras mudanças que se busca promover. Isso se percebe, por exemplo, na política externa, nas relações com a China, a Índia, a África do Sul. É uma mudança que tem efeitos na economia reduzindo a fragilidade externa. Sempre afundamos a cada crise internacional que bate. Agora, estamos com um superávit comercial que acredito ser o maior da história. Estamos até com superávit em conta corrente. Há uma política interna de reforma agrária, de economia solidária. Isso acontece porque esse é um governo de esquerda. A maioria das pessoas que o compõem são de esquerda. Há políticas de educação, saúde e meio ambiente importantes. Não se pode julgar o governo pelo Palocci e pelo Meirelles. É verdade que nessa área, a linha é tão ou mais conservadora do que no governo anterior, mas isso não é o governo todo.
Mas uma parte do governo não quer a independência do BC? Singer – Uma parte pequena, a do ministro Palocci. Que é a parte que tem decidido porque tem o apoio do presidente. É uma pena. Preferiria que fosse diferente.
Então, se o país não mudar para melhor, os movimentos sociais terão de fazer uma profunda autocrítica? Singer – Exatamente. O governo atual, se tiver tempo, pode mudar, de fato, a distribuição social. Há gente boa pensando. O PT entrou prontinho para governar. O sonho do PT sempre foi o crescimento distributivista. A política macroeconômica atrapalha um bocado, mas o Fome Zero é um sucesso. Outro programa importante é o da compra de produtos antecipada, para a agricultura familiar. O combate à pobreza é prioridade em todo o governo, em programas picadinhos. Não adianta querer ser stalinista e acabar com a pobreza de um jeito só. O melhor é ajudar os pobres a se mobilizar para que deixem de ser pobres, o que é a beleza da economia solidária.
No modelo atual, parece haver duas opções: aumentar juros ou o superávit primário para reduzir a proporção dívida/PIB. Ou os dois. Singer – As duas são recessivas e se reforçam mutuamente. Se não se aumentasse o superávit, o dinheiro seria devolvido à economia, em obras de saneamento, habitação e outras áreas prioritárias. Diminuir a dívida pública é desejável por uns 20 motivos. Para começar, porque ela concentra a renda, na medida em que se tira dinheiro da população para pagar aos donos da dívida pública e a todos os investidores. Se a dívida pública fosse metade do que é, haveria mais
As mudanças que o senhor cita podem puxar a política econômica mais para a esquerda? Singer – Adoraria que isso acontecesse, mas não estou certo de que vai ser assim. O pronunciamento de Lula na ONU, criticando o FMI, afirmando que o novo colonialismo é o endividamento perpétuo das economias pobres, é uma posição de esquerda da qual não posso discordar. Ao mesmo tempo, ele considera importante manter o apoio do Fundo ao país, ao firmar um acordo que, na minha avaliação, era desnecessário. (A íntegra da entrevista pode ser lida na revista Fórum, www.revistaforum.com.br)
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De 18 a 24 de novembro de 2004
NACIONAL ARROCHO FISCAL
A conta sobra para Estados e prefeituras Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
A
política de juros altos, agora amplificada pela equipe econômica do governo federal, tem produzido estragos crescentes nas contas públicas estaduais e municipais, gera rombos em escala avassaladora e compromete o desempenho futuro daquelas administrações. Entre janeiro e setembro de 2004, as despesas com juros dos Estados e municípios registraram um salto nominal de 41,1%, passando de R$ 29,6 bilhões nos nove primeiros meses de 2003 para R$ 41,8 bilhões em valores arredondados. Considerando o mesmo período, os gastos com juros da União despencaram de R$ 82,5 bilhões para R$ 56,7 bilhões, diminuindo 31,3%. Claramente, o governo federal tem transferido a parcela maior da conta do ajuste fiscal para os governos regionais, impondolhes sacrifícios extras para atingir as metas prometidas ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Em setembro, segundo dados oficiais, divulgados pelo Banco Central, o desequilíbrio fiscal do setor público como um todo registrou sensível agravamento, num momento em que a arrecadação de impostos bate recordes consecutivos. Naquele mês, a arrecadação total de impostos e taxas, segundo a Secretaria de Receita Federal (SRF), atingiu R$ 27,1 bilhões, crescendo 27% na comparação com setembro de 2003. No acumulado dos nove primeiros meses deste ano, as receitas somaram R$ 234,9 bilhões, num avanço de 19% frente a idêntico período de 2003.
Antônio Cruz/ABr
Despesas com juros dos governos regionais disparam, abrindo novos rombos nas contas do setor público com publicidade, ao contrário, chegavam a R$ 85,6 milhões, com o governo cumprindo 70% do orçamento. O agravamento das contas fiscais (receitas de impostos menos despesas) é resultado da persistente política de juros altos, que gera um conhecido círculo vicioso: quanto mais elevada a conta dos juros, mais o governo se vê obrigado a arrochar as demais despesas, desaquecendo a economia como um todo, para fabricar sobras de recursos e honrar aquela conta; como o dinheiro “poupado” não é suficiente para pagar todo o gasto com juros, o governo emite e vende títulos públicos ao mercado, endividando-se mais ainda e criando, para o futuro, mais despesas com juros e novos rombos.
Gastos mais do que dobram em Goiás Um claro exemplo dos efeitos da política de juros altos pode ser visto nas contas de Goiás, cujos dados mais recentes mostram o tamanho do impacto da política de juros vigente. Nos primeiros oito meses de 2004, segundo o relatório de gestão fiscal relativo ao quarto bimestre deste ano, os juros consumiram nada menos do que R$ 161,3 milhões – exatamente o dobro dos R$ 80,6 bilhões desembolsados entre janeiro e agosto do ano passado. Foram gastos, ainda, mais R$ 252,9 milhões com amortizações do principal da dívida estadual, o que representou 128% mais do que no mesmo período de 2003. Somadas, as despesas com a dívida totalizaram R$ 414,3 milhões, crescendo 116,2% diante
dos R$ 191,6 milhões registrados nos oito primeiros meses do ano passado. Tomada como referência, a receita corrente líquida do Estado, em idêntico período, experimentou um avanço nominal de apenas 16,4%, evoluindo de R$ 2,762 bilhões para R$ 3,216 bilhões.
Isso significa dizer que os gastos com o serviço e o principal da dívida goiana ampliaram sua participação de 6,9% para 12,9%, quando comparados com a receita líquida realizada, respectivamente, nos primeiros oito meses de 2003 e de 2004. (LVF)
pagar gastos com juros da dívida, engordando os lucros do mercado financeiro. Até 22 de outubro, foram efetivamente desembolsados R$ 2,2
bilhões, ou 16,7% de um total de R$ 13,3 bilhões autorizados pelo orçamento deste ano para investimentos do governo federal. O setor de saneamento não recebeu
um único tostão dos R$ 92,8 milhões prometidos, e o programa de estímulo ao primeiro emprego teve liberado apenas 1,24% das verbas previstas para 2004. As despesas
SÓ PUBLICIDADE A situação não desandou por causa de aumento das despesas gerais, incluindo investimentos, gastos com o funcionalismo e outras. Ao contrário. O governo continuou sentado sobre o caixa, segurando investimentos e despesas essenciais para economizar recursos e, assim,
DÍVIDA AVANÇA
Política dos juros altos alimenta um círculo vicioso e obriga o governo a arrochar as demais despesas
CUSTO DA DÍVIDA DISPARA Valores para Goiás, em milhões de reais Jan/Ago Jan/Ago Variação (%) 2003 2004 80,648 161,354 100,0 110,949 252,928 128,0 191,597 414,282 116,2 2.762,41 3.216,42 16,4 6,9% 12,9%
Variáveis 1- Juros e encargos da dívida 2- Amortização 3- Total (1+2) 4- Receita corrente líquida 3/4 Fonte: Secretaria da Fazenda do Estado de Goiás
Por isso mesmo, a despeito do aperto inédito nas despesas (excluídos os juros), a dívida mobiliária interna pública em poder do mercado continua crescendo. Saiu de R$ 695,95 bilhões, em agosto do ano passado, para R$ 761,77 bilhões em igual mês deste ano, um aumento de 9,5%. Aquela dívida é expressa em títulos emitidos pelo Tesouro Nacional e Banco Central e vendidos a investidores, bancos, corretoras e outras instituições financeiras. Ao vender esses papéis, o governo consegue recursos para pagar a conta restante dos juros, mas cria dívidas novas, que terão de ser pagas no futuro. Entre agosto de 2003 e agosto de 2004, conforme os números do BC, a dívida mobiliária (quer dizer, em títulos) foi acrescida em mais R$ 65,82 bilhões, o que corresponde a um aumento mensal médio de R$ 5,48 bilhões. Apenas para comparação, a arrecadação total do governo cresceu, entre janeiro e setembro, o equivalente a R$ 37,44 bilhões ou perto de R$ 4,16 bilhões por mês. Isso significa que a dívida cresceu, em valores absolutos, 76% mais do que a arrecadação de impostos.
Grande parcela do ajuste fiscal alardeado pelo governo federal, na verdade, tem ocorrido às custas dos governos estaduais e municipais, como mostram os relatórios do Banco Central (BC). Em setembro de 2004, enquanto o superávit primário do setor público como um todo (incluindo os governos federal, estaduais, municipais e suas estatais) emagreceu 22,3%, caindo de R$ 7,8 bilhões em igual mês do ano passado para R$ 6 bilhões, Estados e prefeituras aumentaram seu resultado primário em 46,2% (de R$ 1,33 bilhão para R$ 1,94 bilhão). O saldo primário, como visto, corresponde aos recursos que os governos deixam de gastar em áreas essenciais como saúde, educação, programas sociais, transportes etc., para pagar juros da dívida. No acumulado entre janeiro e setembro deste ano, enquanto Estados e municípios fizeram um esforço extra para aumentar seu resultado primário em 32,4% (de R$ 11,44 bilhões para R$ 15,1 bilhões), o superávit de todo o setor público cresceu 22,2% (pulando de R$ 57,1 bilhões para R$ 69,8 bilhões). O arrocho operado nas despesas públicas, excluídos os gastos com juros, foi, no entanto, lançado literalmente ao lixo exatamente porque o serviço da dívida continua consumindo receitas fiscais como um verdadeiro buraco negro. Quando acrescidos dos juros, o resultado final das contas (despesas menos receitas) de Estados e prefeituras transforma-se em
Hermínio Oliveira/ABr
Rombo aumenta quase 66% em setembro
Representantes do governo e de municípios participam de seminário para discutir as perdas do ajuste fiscal
Variáveis
O SALTO DO “ROMBO”, EM SETEMBRO Contas fiscais do setor público, em milhões de reais Setembro/03 Setembro/04
Resultado nominal (setor público) Resultado nominal (Estados e municípios) Juros (setor público) Juros (Estados e municípios) Resultado primário (setor público) Resultado primário (Estados e municípios)
(3.674) (1.849) (11.458) (3.177) 7.784 1.327
(5.454) (3.065) (11.498) (5.005) 6.044 1.940
Variação (%) 48,4 65,8 0,3 57,5 -22,3 46,2
Fonte: Banco Central
rombo. O déficit final daqueles governos aumentou de R$ 18,2 bilhões nos nove primeiros meses do ano passado, para quase R$ 26,7 bilhões neste ano, um crescimento de 46,6%. Apenas em setembro, a situa-
ção piorou ainda mais – e antes que a nova rodada de alta dos juros começasse a fazer efeito, portanto. Naquele mês, refletindo uma queda circunstancial no superávit primário, o rombo de todo o setor público saltou 48,4%, diante do
resultado negativo observado em idêntico mês do ano passado. Em valores absolutos, o déficit nominal cresceu de R$ 3,67 bilhões para R$ 5,45 bilhões. Nos Estados e prefeituras, o salto de 57,5% nas despesas com juros (de R$ 3,18
bilhões para R$ 5 bilhões) também complicou a gestão das contas públicas, elevando o rombo final de R$ 1,85 bilhão para R$ 3,06 bilhões – um incremento de 65,8%. A decisão de aumentar a taxa de juros básica para 16,75%, tomada pelo Comitê de Política Monetária (Copom) no mês passado, tende a agravar esse quadro, já que boa parte das dívidas estaduais está sujeita a atualização com base na chamada “taxa Selic” (ou seja, a taxa base praticada no Sistema Especial de Liquidação e de Custódia). Como o nome indica, o Selic detém a custódia (guarda) de todos os títulos emitidos pelo Tesouro Nacional e pelo Banco Central (BC), respondendo ainda pelo registro de todas as operações de compra e venda daqueles papéis, e pela liquidação dos negócios. Os juros básicos, definidos, em última instância, pela diretoria do BC, determinam o processo de formação de preços daqueles títulos e a remuneração devida aos investidores/compradores. Aquelas taxas influenciam diretamente o custo da dívida renegociada entre a União, os governos estaduais e prefeituras. Absurdamente, os gastos com juros dos Estados e municípios, somados, passaram a representar 43,9% da despesa total do setor público com os encargos da dívida pública. Entre janeiro e setembro de 2003, essa participação era de 26%, levandose em conta os números acumulados entre janeiro e setembro do ano passado. (LVF)
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De 18 a 24 de novembro de 2004
NACIONAL CONSCIÊNCIA NEGRA
Repúdio à história oficial de falsos heróis Para afro-descendentes, a data mais importante não é 13 de maio, mas 20 de novembro, morte de Zumbi dos Palmares
O
mês de novembro foi marcado por diversas atividades realizadas por entidades e ativistas ligados ao movimento negro em todo o país. Mais do que uma data para simbolizar a luta pela igualdade racial, a escolha do dia 20 de novembro – que se tornou feriado em diversos municípios do país, inclusive São Paulo e Rio de Janeiro – simboliza uma vitória. De acordo com Matilde Ribeiro, ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, lideranças do movimento negro lutam desde a década de 70 para que aquele dia seja reconhecido como o Dia da Consciência Negra. Dia 20 de novembro marca a morte de Zumbi dos Palmares, assassinado por bandeirantes em 1695, por liderar o Quilombo de Zumbi de Palmares, numa resistência que durou mais de 14 anos. Frei David Santos, coordenador da Educafro, entidade que ministra cursos pré-vestibulares para jovens carentes, sobretudo afro-descendentes, acredita que é necessário se contrapor ao 13 de maio, data da abolição da escravidão no Brasil.
FALSOS HERÓIS “As elites dominantes sempre empurraram as comemorações para uma data falsa e para heróis falsos. O 13 de maio serviu mais para tranqüilizar a cabeça dos opressores do que para nos libertar. Quando foi assinada a abolição, a situação já estava fora do controle, 95% dos negros já tinham conquistado a
sa visão. Como dizia Paulo Freire, todo oprimido hospeda em si o opressor”, explica. De acordo com dados de 2003 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a situação da população afro-descendente, que representa quase metade da população brasileira (46%), pouco se alterou. Outros dados, porém, deixam claro que a eqüidade pára por aí. As taxas de analfabetismo entre pessoas com 15 anos ou mais é de 34% entre os afro-descendentes, e de 7,5% entre os brancos. No quesito renda mensal, um branco ganha, em média, o dobro de um negro.
Carlos Casaes/ Agência A Tarde/AE
Dafne Melo da Redação
POLÍTICAS
Caminhada da Liberdade, em Salvador (BA), em memória de Zumbi dos Palmares
liberdade por meio da compra de alforrias, com ajuda das irmandades, ou em fugas para quilombos”, conta frei David.
EXCLUSÃO Assim, a exaltação do 13 de maio, reforçada pelos currículos escolares que, na maioria dos casos, se atém a uma visão oficial da história e pouco se aprofundam
em relação à cultura afro-brasileira, acabam por mascarar os verdadeiros protagonistas da luta contra a escravidão, negando a organização que os negros tinham conquistado. “As elites brancas sempre apagaram a importância dos grandes líderes negros e a luta negra. Tentaram vender a idéia de que pessoas como a princesa Isabel é que foram os grandes heróis, na tentativa de substituir
os heróis negros, como Zumbi dos Palmares”, completa frei David. No Brasil, o mito da democracia racial e da conciliação entre as diferentes classes sociais ainda é bastante forte. Frei David diz que os estudantes, negros ou brancos, que chegam a algum dos núcleos da Educafro ainda têm “a visão ingênua de que no Brasil não há preconceito. Tentamos reverter es-
Matilde Ribeiro reconhece que as demandas do movimento negro são imensas e que, embora muitas delas não estejam sendo atendidas, há vitórias sendo conquistadas. Como exemplo, a ministra aponta a implementação de políticas afirmativas nas universidades, por meio de cotas para negros e índios e a obrigatoriedade curricular do ensino médio e fundamental de uma disciplina que contemple a história e a cultura afro-descendentes. No caso das cotas, o projeto de lei ainda está à espera de votação, embora diversas universidades, como a de Brasília (UnB) e a Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) estejam implementando a política por iniciativa própria. Quanto à disciplina, tampouco será implementada a curto prazo, pois deve passar pela qualificação e capacitação de profissionais que possam desempenhar a função da forma adequada, explica a ministra.
DIREITOS DA MULHER
Campanha para banir assédio sexual e moral O combate à violência contra a mulher, em casa e no trabalho, é tema de uma campanha nacional que será lançada no Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, 25 de novembro. Promovida pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), a mobilização pretende “alertar os dirigentes sindicais para o assédio moral e sexual, violência doméstica e sexual e suas conseqüências no mundo produtivo”, diz Ivânia Alves Moura, coordenadora da Comissão Estadual da Mulher Trabalhadora da CUT/SP. Segundo Ivânia, os assédios sexual e moral dificilmente são denunciados, porque as mulheres “têm medo da demissão”. Ela lembra um caso envolvendo cinco metalúrgicas de Campinas (SP), dispensadas após denunciar assédio. “O problema é que fica a palavra de um, contra a do outro”, diz. O que preocupa as organizações feministas é a ausência de pesquisas relacionadas ao tema. “O tabu que existe em torno da questão atrapalha muito”, afirma a socióloga Olívia Rangel, da União Brasileira de Mulheres (UBM). “Quando uma mulher diz que sofreu assédio sexual, os homens a ridicularizam como se ela quisesse se valorizar sexualmente,” observa. Muitas das denúncias chegam à organização em forma de desabafo. “Elas não querem levar a questão adiante. Chegam a pedir demissão, mas não denunciam formalmente”, explica a socióloga.
EM CASA No caso do assédio moral, apesar de atingir homens e mulheres, “tem as suas especificidades quando se trata do sexo feminino”, afirma Olívia. “É praticado pela desqualificação e desmoralização
do que a violência urbana em geral: 19% das mulheres entrevistadas sofreram algum tipo de violência (assaltos, por exemplo) e 43% foram vítimas da violência sexista. Em 2001, 31% das denúncias registradas em Delegacias de Polícia e da Mulher, foram de ameaças à integridade física com armas de fogo; 21% de espancamentos com marcas, fraturas ou cortes; e 19% de ameaças de espancamento.
Antonio Milena/ABr
Tatiana Merlino da Redação
CRIME
Movimentos feministas se manifestam contra os diversos tipos de violência contra a mulher
do trabalhador, mas, com as mulheres, ele se mistura com o assédio sexual,” acrescenta. Os dados da violência doméstica contra mulheres preocupam. Na capital paulista, de janeiro a maio deste ano, foram registrados 21.888 casos com algum tipo de violência. Em todo o Estado, foram mais de 132 mil, de acordo com a Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados de São Paulo (OAB/SP). Segundo Terezinha Gonzaga, da União de Mulheres de São Paulo, mesmo sofrendo violência doméstica, muitas mulheres têm medo de romper o casamento. “É uma questão muito complexa. Há mulheres que assumem a culpa por terem apanhado.” Para Terezinha, o problema é difícil de ser combatido porque foi “construído historicamente”. As mulheres são tratadas como propriedade há milhões de anos, e elas acreditam que o álcool e o ciúme
são os maiores determinantes dos atos de agressão. De acordo com a pesquisa “A mulher brasileira nos espaços público e privado”, realizada em 2001 pela Fundação Perseu Abramo (FPA), o marido é o maior agressor, apontado como responsável por
56% dos espancamentos e 53% das ameaças com armas à integridade física. Em segundo lugar, como autor das agressões, aparecem o ex-marido, ex-companheiro, exnamorado. A pesquisa mostra, ainda, que a violência doméstica é ainda maior
Um crime previsto em lei No final de junho de 2004, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 10.886/04 que tipifica a violência doméstica no Código Penal Brasileiro. O projeto, de autoria da deputada federal Iara Bernardi (PT-SP), prevê a pena para o agressor, e dá a definição jurídica de crime de violência doméstica. De acordo com a deputada, “esta é uma grande vitória para todas as brasileiras e brasileiros que sofrem com as agressões físicas, morais e psíquicas dentro
do convívio familiar. Espero que, agora, os agressores pensem duas vezes antes de levantar a mão para uma mulher, e procurem alternativas para um convívio doméstico harmônico”. Para a União de Mulheres, apesar da vitória, ainda há um longo caminho a ser trilhado. “Agora, as mulheres têm que se encher de coragem e denunciar os maridos, namorados, companheiros que cometem atos violentos contra elas”, diz Terezinha Gonzaga. (TM)
No Brasil, a Lei 9.099/95 do Código Penal determina que a violência contra a mulher é crime doloso, e estabelece penas alternativas para condenações de até um ano. Estas penas são aplicadas aos agressores de mulheres e têm sido pagas monetariamente – R$ 30, R$ 60 – ou uma cesta básica. O número de mulheres que procuram ajuda ou denunciam a ocorrência da violência ainda é muito pequeno. Segundo a pesquisa da Fundação Perseu Abramo, a mãe, os familiares e os conhecidos são os primeiros a serem avisados e, na maioria dos casos, somente quando a violência atinge níveis extremos. Uma mulher que sofre algum tipo de violência doméstica deve ir pessoalmente à Delegacia de Polícia ou da Mulher para registrar o fato. Teoricamente, ela é orientada para abrir um processo judicial, ou é encaminhada aos serviços especiais de ajuda nas áreas jurídica, social e psicológica. Nos casos onde há risco de vida para a vítima, há abrigos que acolhem tanto mulheres como familiares ameaçados, por um tempo determinado. No Brasil, existem cerca de 12 abrigos, o que é pouco para acolher todas as vítimas. Uma das preocupações das organizações feministas é treinar profissionais da saúde (médicos, enfermeiros e psicólogos) para dar, além do atendimento médico, o acompanhamento das denúncias.
Ano 2 • número 90 • De 18 a 24 de novembro de 2004 – 9
ORIENTE MÉDIO
Em homenagem a Arafat, palestinos exigem paz
Nasser Shiyoukhi/AP/AE
SEGUNDO CADERNO
Mobilizações após a morte do presidente da Palestina aconteceram em todas as grandes cidades do país João Alexandre Peschanski da Redação
O
povo palestino está de luto. No dia 11, perdeu seu principal líder, Yasser Arafat, com 75 anos, mais de meio século dedicado à luta pela criação do Estado da Palestina. O governo provisório, instaurado desde o dia 29 de outubro, quando Arafat foi internado em um hospital em Paris, França, decretou 40 dias de luto oficial. Em Ramallah, capital do país, 50 mil pessoas participaram de um ato em homenagem ao presidente. Neste, representantes de 60 países compareceram, e presenciaram a demonstração de carinho e reconhecimento da população para com Arafat. “Foi um líder mundial, um marco na luta de povos de diversos países. Foi, ao mesmo tempo, guia, revolucionário, exemplo. Sua
vida se mistura com a do povo palestino.” Pelas palavras de Farid Suwwan, presidente da Confederação das Entidades Árabe-Palestina no Brasil, entende-se a comoção que tomou conta dos palestinos que acompanharam o enterro de Arafat. Durante as mobilizações, o povo protestou contra a ocupação de seu território pelo exército israelense e exigiu a criação do Estado. Segundo Suwwan, em um momento marcado pelo silêncio, “manteve-se viva a voz de Arafat, que nunca deixou de lutar pelo bem da população”. Apoiado pela grande maioria dos grupos de resistência à ocupação, como o Hamas, o governo provisório, liderado por Abu Mazen, marcou para o dia 9 de janeiro a realização de eleições que vão definir o próximo presidente palestino. Para Suwwan, a escolha democrática
Milhares de palestinos visitam túmulo do líder palestino Yasser Arafat, em Ramallah, na Cisjordânia
do sucessor de Arafat é sinal de que o povo palestino está unido contra a ocupação. “Os palestinos não vão desistir da luta por um Estado, e a comunidade internacional reconheceu isto”, comentou.
INTRANSIGÊNCIA ISRAELENSE Apesar das manifestações de palestinos contra a ocupação, o gover-
no israelense não parece disposto a negociar ou recuar em sua estratégia belicista. A análise é de Leena Dallasheh, ativista palestina, ligada ao Centro de Informações Alternativas, com sede em Jerusalém. “O governo israelense usava Arafat como uma desculpa para negar os direitos dos palestinos e dizer que não tinha parceiro para negociar a
O último apelo do chefe de Estado Durante a mobilização, lembraram o apelo recorrente do presidente: a comunidade internacional precisa apoiar a criação do Estado palestino. Com exclusividade para o Brasil de Fato, em maio, Arafat fez um pedido de socorro ao mundo, afirmando que o povo da Palestina está sendo massacrado. “O governo israelense não respeita a humanidade e é toda a humanidade que precisa detê-lo”, comentou, na entrevista, uma das últimas que concedeu. Na voz dos que participaram das homenagens, o apelo do líder ecoou.
ISOLAMENTO FORÇADO Em maio, no momento da entrevista, Arafat estava havia 3 anos impedido de sair, por ordem do governo israelense, da sede da Presidência da Palestina, a Muqata, em Ramallah. Composto por dez pré-
dios, nove dos quais destruídos ou em ruínas, o local estava rodeado por tanques israelenses. No pátio central, para impedir o pouso de helicópteros inimigos, os soldados palestinos haviam espalhado grandes barris de concreto, com pedaços de pau no meio. Em volta do único prédio intacto, dezenas de pessoas se davam as mãos, realizando um cinturão humano. Eram parlamentares, militantes e pacifistas de todo o mundo. Chapas de aço nas janelas não escondiam o impacto de diversos projéteis que haviam atingido a construção. No segundo andar, fica a sala onde Arafat passou a maior parte de seus últimos meses. Nesta, não há janelas. Durante a entrevista, a luz da sala chacoalhava a cada explosão que ressoava na região. Tranqüilo, Arafat explicou a importância de o go-
verno brasileiro condenar a política ocupacionista do primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon. Sobre seu isolamento forçado, comentou: “Estou há três anos isolado, vivendo no meio de uma destruição indescritível e sob ataque constante, e sou o presidente eleito. A situação do povo é muito pior”. Para ler a íntegra da entrevista, acesse a página do Brasil de Fato na internet: www.brasildefato.com.br/ internacional/arafat%20internacion al.htm. (JAP)
SERVIÇO No Brasil, mensagens de solidariedade para com o povo palestino podem ser encaminhadas a entidades que integram a Confederação das Entidades Árabe-Palestina ou, até o dia 19, destinadas à Delegação Especial Palestina no Brasil, em Brasília (DF), cujo endereço é SHIS-QI 9, conj. 6, casa 2, Lago Sul, e o CEP é 71625-060. Para contato telefônico, ligue (61) 248-4760.
Tal Cohen/AFP
No dia 11, após uma semana de informações confusas e contraditórias, veio a notícia que estarreceu o mundo. Chorando, o secretáriogeral da Presidência da Palestina, Tayeb Abdelrahim, declarou: “O governo palestino anuncia, com tristeza, ao povo palestino, à nação árabe, à toda a humanidade, o falecimento do guia, líder, filho da Palestina, de seu símbolo, o presidente Yasser Arafat”. A partir daí, dezenas de milhares de pessoas tomaram as ruas das principais cidades palestinas para homenagear o chefe de Estado. No dia 12, durante o funeral, na capital Ramallah, 50 mil palestinos tomaram a frente das autoridades de 60 países que compareceram ao ato e realizaram, com suas próprias mãos, o enterro de Arafat. Em coro, gritavam seu nome e pediam o fim da ocupação da Palestina pelo exército israelense.
paz. Dizia que Arafat era a causa da violência na região. O problema nunca foi o presidente da Palestina, mas a ocupação, que gerou violência e destruição”, explicou. Em nota oficial, o primeiroministro israelense, Ariel Sharon, disse que espera que o sucessor de Arafat esteja disposto a negociar. Leena ironizou a nota: “O atual governo de Israel não está interessado em desenvolver a paz, e só quer negociar se os palestinos aceitarem todos termos elencados por este”.
ANÁLISE
Solidários com a Palestina Dom Demétrio Valentini Pela maneira como aconteceu, a morte de Yasser Arafat tornou-se uma notícia agendada. Tanto mais ela nos convida a pensar. Qualquer morte impõe silêncio e respeito. Seja quem for, o que tenha sido, o que tenha feito. Na morte, e na vida, de Arafat podemos reconhecer muitos aspectos do drama que a humanidade continua vivendo. Nesse sentido, sua morte passa a fazer parte dos eventos que pontilham a história do nosso tempo. Arafat se identificou profundamente com a história do povo palestino. Um povo que está vivendo um drama muito pesado, no qual estamos todos implicados, de diversas maneiras. Pois o povo palestino ainda está pagando o preço do acerto de contas resultante da Segunda Guerra mundial. Uma conta que deveria ser de toda a humanidade, acaba sendo paga mais pesadamente por alguns. É o caso evidente do povo palestino. Por isso, bem que mereceria
mais compreensão e mais empenho por parte de todas as nações. Na verdade, em conseqüência das inomináveis atrocidades praticadas contra o povo israelense pelo regime de Hitler, terminada a guerra, em 1948, a Organização das Nações Unidas decidiu criar o Estado de Israel, com território desmembrado da antiga Palestina. Sem entrar nos detalhes das motivações e razões para tal decisão, o fato evidente é que a partir dela se criou uma situação de impasse, cuja solução ainda não foi encontrada. De um lado, milhares de palestinos foram forçados a deixar suas terras, que ocupavam há séculos. E precisaram se transferir para acampamentos provisórios, que duram até hoje. De outro lado, os que puderam ficar no território em que viviam, se viram impossibilitados de constituir um Estado soberano, cerceados em sua autonomia, e obrigados a uma minoridade política que ofende sua dignidade e sua tradição de membros de uma civilização com raízes milenares.
Há situações que são produzidas pelo conjunto da humanidade, e depois deixadas às custas de alguns povos, que lhes pagam as conseqüências. Exemplo típico é o confronto entre israelenses e palestinos. Não podemos olhar para eles, como se fossem os únicos responsáveis pela situação que vivem. Estamos todos implicados no drama dos seus confrontos. A falta de solidariedade, e o desconhecimento dos problemas, estimulam o apelo a ações extremadas, que assumem feições de terrorismo. É um caminho equivocado, sem dúvida. Mas seria muita hipocrisia a condenação sumária das pessoas que se vêem envolvidas nestas tragédias. Bom seria que a morte de Arafat nos ajudasse a identificar-nos melhor com as justas demandas, tanto do povo palestino como do povo israelense. Para assim fortalecer as esperanças de entendimento e de paz. Dom Demétrio Valentini é bispo da diocese de Jales, em São Paulo
O técnico nuclear Mordechai Vanunu ao ser libertado em abril
Governo israelense prende Vanunu, de novo O ativista israelense Mordechai Vanunu, técnico nuclear, libertado em abril, após 18 anos em uma prisão, foi novamente preso pela polícia de Israel, no dia 11, que alega que ele não cumpriu com os termos da liberdade condicional. O ativista e manifestantes que o acompanham repudiaram a ação policial, denunciando que foi violenta e autoritária. Os policiais invadiram a Igreja Anglicana de Jerusalém, onde Vanunu vivia desde sua libertação. Vanunu vivia submetido a um esquema muito rígido: foi proibido de sair do país, aproximar-se de embaixadas, consulados, portos e
aeroportos, além de não poder entrar em contato com estrangeiros. As limitações à sua liberdade não têm prazo para acabar. O ativista foi preso, em 1986, após divulgar informações sobre a produção de arma nuclear pelo governo israelense. Durante 18 anos, ficou em completo isolamento, e não lhe foi garantido o direito a um julgamento justo. Mesmo na prisão, tornou-se um dos principais pacifistas mundiais. Entidades em todo o mundo preparam manifestações contra a prisão de Vanunu. Para mais informações, acesse na internet: www.v anunu.freeserve.co.uk. (JAP)
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AMÉRICA LATINA ENTREVISTA
Venezuela corre o risco do autoritarismo Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)
O
novo capítulo da história política venezuelana será escrito a partir de uma oposição derrotada, fragilizada ao longo dos últimos três anos e do fortalecimento da aliança do governo liderada pelo presidente Hugo Chávez. A extensão do poder político chavista se configurou nas últimas eleições regionais: o governo controlará 20 dos 22 Estados onde houve disputa para o cargo de governador, e 270 das 337 prefeituras. A maré chavista que, para muitos, significará o aprofundamento da revolução bolivariana, é vista com preocupação pela historiadora Margarita Lopez Maya, professora da Universidade Central da Venezuela. “Sempre que vemos tanto poder nas mãos de um único partido dá muito medo. O autoritarismo pode se acentuar,” analisa Margarita. Em entrevista ao Brasil de Fato, a historiadora diz que é preciso fortalecer as instituições e as organizações de base para que as mudanças propostas pelo governo avancem de maneira significativa, “sem arbitrariedades”. Apesar de se tratar de um processo lento, na avaliação de Margarita, a partir do momento em que as “águas da polarização baixarem,” novos caminhos de debate político serão abertos e poderão contribuir para desenhar esse novo cenário. “A polarização é reflexo da incapacidade dos líderes em fazer política”, afirma. A seu ver, enquanto a oposição tenta se reerguer, grupos mais à esquerda do governo podem surgir como oposição, o que contribuiria para o pluralismo e o crescimento do debate político no país. Brasil de Fato – As eleições regionais ampliaram o poder político do governo. O que levou a esse resultado? Margarita Lopez Maya – Não houve muita surpresa. Há uma combinação de fatores que tem a ver com a situação política atual. A quantidade de erros políticos da oposição, nos últimos três anos, foram desiludindo suas bases acerca da idoneidade de seus líderes e das suas propostas. Outro elemento importante foi a vitória de Chávez em 15 de agosto. Sabemos que a oposição conquistou 4 milhões de votos no referendo. Se tivessem reconhecido os resultados, e trabalhado com seus eleitores, talvez o resultado das eleições regionais pudesse ser diferente. Porém, ficaram quase dois meses gritando que houve fraude e depois chamaram as pessoas a votar. O governo saiu vitorioso, inclusive, nos Estados emblemáticos da oposição: Miranda e Carabobo. Esse foi o preço que a oposição pagou pelos erros políticos que cometeu. BF – O que muda no governo? Margarita – Estamos abrindo espaço para ter um governo normal. Chegou o momento de governar, ao ritmo que se necessita para fazer um governo. Ao mesmo tempo, vamos sentir os efeitos da polarização política. As eleições estiveram totalmente condicionadas ao referendo. Foram eleitos inúmeros governadores e prefeitos inadequados para os cargos. Alguns aprenderão no meio do caminho, como têm sido muitas coisas neste governo, outros não. Uma mensagem muito simbólica circulou por correio eletrônico: a despedida de Robert Afonso (Bloco Democrático, de ultradireita), o homem que propunha a saída violenta como única alternativa para derrotar Chávez. Mas essa política tão radicalizada já não serve mais. Isso são sinais de mudanças. A oposição
Fotos: Jonah Gindin
Sem oposição, governo Chávez pode se tornar antidemocrático, diz a historiadora venezuelana Margarita Lopez Maya
Partidários do presidente Hugo Chávez (no detalhe) comemoram vitória no referendo que colocava em questão o seu mandato
Abril, que quer o aprofundamento da revolução. Podem aparecer grupos de esquerda que nunca apoiaram o chavismo, como Douglas Bravo (ex-guerrilheiro). Se a confrontação diminuir, e isso for acompanhado de uma maior consciência da necessidade de fazer política e de fortalecer as instituições, será possível caminhar para uma sociedade plural e mais democrática.
Quem é Margarita Lopez Maya é historiadora e cientista social, professora e pesquisadora da Universidade Central da Venezuela (UCV), e diretora da Revista Venezuelana de Economia e Ciências Sociais. está muito debilitada. Não tem outra alternativa senão entrar no jogo político. BF – Após mais essa derrota, como ficará a oposição? Ela tem como sobreviver? Margarita – Ela terá que tentar se reerguer com as prefeituras que conquistou e com o governo dos dois Estados que restaram, Zulia e Nova Esparta. Vão ter de recomeçar, inclusive para não correr o risco de perder postos na Assembléia Nacional. Muitos partidos estão arriscados a desaparecer, como a Causa R. A AD tem possibilidade de sobreviver. Sem o governo de Carabobo, o Projeto Venezuelano deve morrer. O Primeiro Justiça é bastante conservador e deve resistir, com suas bases na classe média conservadora. Copei, pode sobreviver, mas sai muito fragilizado. BF – Ao contrário do referendo, que teve a maior participação nas urnas da história do país, no pleito regional, a abstenção foi de 55%. Por que isso ocorreu? Margarita – As eleições regionais nunca atraem a mesma quantidade de eleitores que participam das eleições nacionais. Não é anormal uma abstenção tão alta. Há algumas explicações para isso. A reiterada mensagem (da oposição) de que o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) não é legítimo, não estimula ninguém a entrar na fila para votar se pensa que o voto será alterado. Outra hipótese é que muitos chavistas acreditavam que já tinham a maioria e não foram votar. O único fato diferente, e que sinaliza algumas mudanças para o futuro, foi o que aconteceu em Zulia. No referendo, o “não” ganhou, mas, nas eleições regionais, o governador da oposição, Manuel Rosales, venceu. Esse é um dos reflexos do que aconteceu em todo o país. Muitos chavistas não aceitaram a imposição das candidaturas pelo partido do governo, o Movimento Quinta República (MVR), uma agremiação débil, sem coerência
ideológica. As candidaturas são praticamente a vida deste partido. Isso também pode ter influenciado para aumentar a abstenção. Muitos candidatos chavistas não têm qualquer experiência em administração pública. Os eleitores teriam que ter muita disciplina partidária para sair e votar em candidatos assim, escolhidos a dedo por Chávez. BF – Por que o partido é deixado de lado? Margarita – Uma das razões é que os bons quadros estão no governo, sem tempo para discutir o partido em si. É um desafio que eles têm. O presidente também não gosta e não acredita em partidos. Todos os novos políticos são filhos da antipolítica. BF – Como surge essa antipolítica? Margarita – Na década de 90, todos os políticos adotaram o discurso da antipolítica, fenômeno que ocorre devido ao desgaste dos partidos tradicionais Ação Democrática (AD) e Copei (Partido Democrata Social-Cristão). Então,
crescimento da organização popular, mas ainda não me parece suficiente para conter o perigo do autoritarismo. BF – Qual a saída para não haver retrocesso nesse processo político? Margarita – O fortalecimento dos partidos e das organizações de base é fundamental. Sabemos que alguns setores da aliança governista têm consciência de que é preciso desenvolver uma plataforma política de baixo para cima, para o bem do avanço político, mas sabemos que isso leva tempo. BF – Há possibilidade de surgir uma oposição à esquerda de Chávez? Margarita – Se baixar a pressão política, dentro do chavismo vão surgir dissidências nos setores mais críticos. Haverá espaço para o debate. No chavismo há muitas correntes. Alguns grupos ainda esperam que Chávez faça uma revolução socialista, outros grupos não. O projeto de Chávez se mostra como um projeto
Temos um Estado que precisa ser reconstruído. Há políticas sociais que ainda não se sabe se vão ter continuidade nascem os partidos como Causa R, o Movimento Bolivariano, Primeiro Justiça, com discurso contra a política. Estamos pagando o preço de sermos uma sociedade que passou a desvalorizar a política. A polarização é reflexo da incapacidade dos líderes de fazer política. Mas, pouco a pouco, temos mudado e as pessoas estão mais conscientes da necessidade da política. BF – Qual o cenário possível diante do avanço da hegemonia política do governo? Margarita – Preocupante. Sempre que vemos tanto poder nas mãos de um único partido, e de uma única aliança, dá muito temor. Tivemos uma situação parecida durante a presidência de Jaime Lusinchi (1984-89), que se tornou um dos governos mais corruptos e arrogantes da história do país porque não havia oposição. Em um país com uma debilidade institucional tão acentuada e com uma visível tendência autoritária em todos os atores políticos, pode haver uma acentuação do autoritarismo, da falta de negociação e debate. Está em processo o
nacionalista. Tem se construído assim e cada vez mais avança claramente nesse sentido. Tem políticas sociais bastante coerentes, o que não acontece com a política econômica. No entanto, o mundo ainda não tem muito claro qual seria essa política econômica alternativa. Nesse sentido, o governo segue experimentando. BF – Quais setores do chavismo são mais resistentes ao atual modelo? Margarita – No governo, há grupos que não são favoráveis à política petroleira de Chávez, criticam Ali Rodriguez (presidente da Petroleos de Venezuela - PDVSA) dizendo que a condução da empresa não é suficientemente revolucionária, mas capitalista. A lógica do governo é manter os recursos da empresa para o Estado, mas está disposto a negociar com as transnacionais, não está rivalizando com o capitalismo. Há setores do governo que não concordam com isso. São grupos de chavistas mais críticos, que podem formar uma oposição à esquerda, como o Movimento 13 de
BF – Até quando o governo vai escolher o caminho a seguir enquanto conduz o barco? Margarita – Chávez está no controle do timão para impedir que o barco desvie o caminho. O problema é que o barco foi muito malfeito, tem buracos por todos os lados. Muitos que subiram nesse barco não sabem fazer nada. Temos um Estado que precisa ser reconstruído. Há coisas muito importantes nas políticas sociais, como as Missões (programas sociais de educação, saúde, moradia) que ainda não estão institucionalizadas, e não se sabe se vão ter continuidade. Entendo que até agora essa maneira de governar era necessária porque havia uma luta insana pelo poder no país. Agora temos claro, um ganhou e outro perdeu. Essa é a oportunidade para mudar. Os setores mais fortes que poderiam impedir este processo já não podem mais, estão debilitados. BF – E os Estados Unidos? O que muda com a continuação do governo Bush? Margarita – A política dos Estados Unidos para a América Latina não deve mudar. Seria assim, com Bush (George W.) ou com Kerry (John). Bush representa os interesses petroleiros, o que vem desde a história de Bush pai e seus negócios petroleiros. Isso seria diferente com Kerry, não tão ligado aos interesses da indústria de petróleo. No entanto, a conjuntura do continente está mudando e os EUA terão de olhar de maneira diferente para a América Latina. A vitória de Tabaré Vasquez no Uruguai fortalece a aliança do Sul. Chávez não está mais sozinho. Ele é o extremo desse grupo, mas não está só. Essa esquerda, ainda que moderada, mostra que os EUA terão de mudar a relação com a parte sul do hemisfério. Kirchner não é um revolucionário, mas lidera um projeto que caminha para ser nacionalista, o que é um primeiro passo. Temos que reconstruir o Estado nacional, como disse Boaventura de Souza Santos. Esse é o momento. Dos quatro líderes à esquerda, Lula é quem tem desencantado muito, está muito comprometido com os interesses dos EUA. A situação política no México nos próximos anos também pode sinalizar mudanças. Estão tentando parar López Obrador (governador da cidade do México) porque, se chegar às eleições presidenciais, será uma mudança importante na correlação de forças. O México também passará a olhar para o sul do continente.
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INTERNACIONAL CHILE
Presidente omite relatório sobre tortura Gustavo González de Santiago (Chile)
A
busos sexuais com o uso de animais, queimaduras com cigarros, fios elétricos ou ácidos, extração de unhas com alicates, imersão em água, azeite ou petróleo, obrigação de assistir a torturas de outros detidos (muitas vezes familiares), espancamentos e simulações de fuzilamento. Esta lista parcial de torturas aplicadas no Chile sob a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) inclui detenções prolongadas com os olhos vendados ou com capuzes sem abertura para os olhos, aplicações de choques elétricos nos órgãos genitais e outras partes sensíveis do corpo, rompimento de tímpanos mediante tapas nos dois ouvidos ao mesmo tempo. As descrições estão contidas num relatório entregue, dia 10, ao presidente chileno Ricardo Lagos, por uma comissão, presidida pelo bispo católico Sergio Valech, que coletou os testemunhos de 35 mil vítimas. Mas a sociedade chilena ainda não pôde ler o documento.
Victor Rojas/AFP
Comissão entrega a Ricardo Lagos documento com base em testemunhos de 35 mil vítimas da ditadura
Familiares de vítimas da ditadura militar chilena cobram transparência do governo
Assim que Lagos o recebeu, começou o debate sobre se serão divulgados os nomes dos torturadores e se estes devem ser processados. O relatório vai permanecer secreto até que Lagos resolva publicá-lo, em parte ou no todo, disse o secretário-geral de Governo, Francisco Vidal. No entanto, a agência
de notícias IPS foi informada de que, no documento, consta que a Direção de Inteligência Nacional (Dina), polícia secreta diretamente subordinada a Pinochet, e a sua sucessora em 1978, a Central Nacional de Informações (CNI), foram os órgãos que mais praticaram a política de tortura, além dos serviços de
inteligência das Forças Armadas. Houve torturas em pelo menos dezoito regimentos do Exército e em sete instalações da Marinha, entre elas o navio-escola Esmeralda. Na semana anterior, o comandante do Exército, general Juan Emilio Cheyre, havia reconhecido em público a responsabilidade de sua Arma nas violações dos direitos humanos, mas no próprio dia 10 de novembro, o comandante da Marinha, almirante Miguel Ángel Vergara, negou que qualquer um de seus subordinados ou seus antecessores tenham estado envolvidos nas torturas. Vergara afirmou que poderá rever sua posição se houver provas das torturas. A Comissão Ética Contra a Tortura assinalou que, na era Pinochet, havia no Chile pelo menos 1.200 centros de tortura, com um total de 3.600 agentes, que “devem ser postos à disposição dos tribunais”. O Agrupamento de Familiares de Detidos Desaparecidos (AFDD) lamentou não ter sido convidado para a solenidade de entrega do relatório da comissão presidida pelo bispo Valech.
MILITARIZAÇÃO
ARGENTINA
No aniversário de 15 anos do assassinato de seis sacerdotes católicos e de suas duas empregadas na Universidade Centro-Americana de El Salvador, ativistas de direitos humanos farão mais uma vez manifestações de protestos contra a Escola das Américas (SOA, a sigla em inglês). A SOA é conhecida em todo o mundo como uma espécie de centro de treinamento de militares, principalmente para as ditaduras latino-americanas. Os padres Ignacio Ellacuría, Ignacio Marín Baró, Segundo Montes, Amando López, Joaquín López y López, Ramón Moreno e as empregadas domésticas Julia Elba Ramos e sua filha Celina Ramos, de apenas 14 anos, teriam sido mortos, no dia 16 de novembro de 1989, pelas Forças Armadas salvadorenhas, treinadas na Escola das Américas. Estão previstas vigílias e ação direta não-violenta pelo fechamento da SOA, em Fort Benning, Georgia (Estados Unidos). Entre os dias 19 e 21 de novembro, mais de 10 mil manifestantes estão sendo esperados para um protesto diante das portas da Escola, exigindo o fim tanto do treinamento lá realizado, como da política externa opressiva que a organização simboliza. Segundo a organização de direitos humanos SOA Watch (Observatório da Escola das Américas), o governo venezuelano tomou, há pouco tempo, a decisão de desistir de mandar seus soldados para a Escola. “E pessoas de muitas outras nações da América Latina estarão organizando mobilizações e protestos para exigir que seus governos sigam os passos da nação venezuelana”, afirma a entidade. Organizações e movimentos sociais também estarão promovendo atos em frente às embaixadas estadunidenses e em outros lugares no dia 19 de novembro para repudiar a chamada “Escola de assassinos”. Em anos anteriores, foram realizadas manifestações no Chile, Colômbia, Honduras, México, Nicarágua, El Salvador, Áustria, Alemanha e nos EUA. Estabelecida inicialmente no Panamá, em 1946, a Escola mudou-se para a Geórgia em 1984. Dentre os cerca de 60.000 alunos treinados pela SOA, a lista dos mais graduados registra ditadores como o general Manuel Noriega do Panamá; general Hugo Banzer da
Jesus Carlos/Imagenlatina
Ativistas repudiam Escola das Américas da Redação
Nos círculos ligados a Pinochet, o general reformado Guillermo Garín, ex-vice-comandante do Exército, assinalou que tem uma visão “bastante negativa” do informe. “Estão mexendo em antigas feridas que se deveria deixar cicatrizarem”, acrescentou. O general reformado Manuel Contreras, ex-chefe da Dina, disse que o órgão “nunca teve uma política de tortura”. O brigadeiro reformado Miguel Krassnoff, identificado por organizações humanitárias como um dos maiores torturadores da Dina, afirmou: “Jamais recebi ordem de torturar.” Mas, no próprio dia 10 de novembro, tanto Contreras como Krassnoff, com dois outros ex-chefes da Dina, foram condenados à prisão pelo juiz Alejandro Solis, pelo seqüestro do jovem Luis San Martín, do Movimento da Esquerda Revolucionária (de sigla, em castelhano, MIR), ainda hoje desaparecido. Contreras foi condenado a quinze anos; o brigadeiro reformado Raúl Iturriaga a dez anos e Krassnoff e o brigadeiro Geraldo Urrich a três anos de cadeia. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
Denúncia de centro clandestino de detenção da Redação
Ativistas dos direitos humanos reivindicam fechamento da Escola das Américas, conhecida como “Escola de assasinos”
Bolívia; o ditador guatemalteco general Romeo Lucas García (19781982); dez membros do governo do general Pinochet, que ajudaram a derrubar o presidente eleito Salvador Allende, em 1973, além de soldados da Guarda Nacional de Somoza, na Nicarágua. Os massacres de “El Mozote”, “El Junquillo”, “La Hojas” e “San Sebastián” foram obra de esqua-
drões da morte salvadorenhos adestrados na Escola das Américas. A violação seguida de morte de quatro irmãs estadunidenses e o assassinato de dom Oscar Romero, bispo de El Salvador, também trazem as marcas didáticas da SOA. Há mais de dez anos a SOA Watch, fundada pelo padre jesuíta e veterano da guerra do Vietnã, frei Roy Bourgeois, vem pedindo o fe-
chamento definitivo do complexo. As manifestações anuais diante da Escola sempre terminam com um ato de desobediência civil – a transposição da cerca que delimita o perímetro proibido – reprimido violentamente pela polícia. Só que desde 1995, as multas aplicadas aos manifestantes vem sendo acompanhadas por condenações à prisão. (Adital, www.adital.org.br)
A ditadura argentina (1976 – 1983) ainda continua repercutindo na vida da população. A maioria dos militares e civis que torturaram cerca de 30 mil argentinos e estrangeiros que viviam no país se mantêm em liberdade. Mas, aos poucos, as vítimas da ditadura estão denunciando seus torturadores e os centros clandestinos de detenção. Estima-se que na Argentina chegou a haver ao redor de 368 campos de concentração situados ao longo do país. A Comissão Nacional Argentina sobre o Desaparecimento de Pessoas contabiliza 9 mil mortes. Dia 12, os argentinos Daniel García, Alba Sánchez e outra mulher conhecida como “La Tana” denunciaram na Justiça Federal um centro clandestino de detenção da ditadura na zona de San José del Rincón, departamento de Santa Fé. Segundo o informativo Tercer Mundo Online, eles também puderam identificar vários dos seqüestradores que os torturaram e os despojaram de todos os seus bens, entre eles uma casa e uma caminhonete. (Adital, www.adital.org.br)
URUGUAI
Governo consultará Mercosul sobre acordo com EUA da Redação O governo eleito do Uruguai, que será presidido pelo socialista Tabaré Vázquez, consultará Brasil, Argentina e Paraguai, seus sócios no Mercosul, antes de debater no Parlamento a ratificação do acordo bilateral de investimentos com os Estado Unidos, garantiu o senador Alberto Couriel. Membro da Comissão de Assuntos Internacionais do Senado, Couriel disse que “o acordo será discutido na próxima legislatura”, a partir de 15 de fevereiro. “Temos que ser muito cuidadosos na relação com os Estados Unidos, devido aos possíveis efeitos no Mercosul”, alertou o político, reeleito para o cargo pela coalizão de esquerda Frente Ampla (FA), que elegeu Vázquez.
O próprio presidente eleito evitou falar publicamente sobre o acordo, assinado dia 25 de outubro, em Montevidéu, sob o pretexto de não conhecer o texto (que, segundo a chancelaria, foi entregue ao Legislativo), mas Couriel antecipou que vai haver “todo o diálogo possível no Mercosul”. “Assim que o governo esquerdista tiver assumido em Montevidéu, com a maior gentileza iremos conversar com os membros do bloco antes de discutir o acordo no Parlamento, para conhecer o ponto de vista do nossos sócios”, destacou o senador. Couriel sugeriu que o Mercosul deve dispensar ao Uruguai um tratamento preferencial para a recepção de Investimentos Estrangeiros Diretos (IED), caso contrário os investidores que se instalarem na
região irão preferir se concentrar no Brasil e Argentina. O embaixador dos Estados Unidos no Uruguai, Martín Silverstein, disse, dia 10, após se reunir com Vázquez, que Washington deseja manter as melhores relações com o futuro governo uruguaio e admite que o texto assinado seja revisado. O texto do acordo preocupou os países vizinhos, porque introduz no bloco “regras que não existem na Organização Mundial do Comércio (OMC) nem no Mercosul”, revelou à agência France Presse uma fonte diplomática brasileira, que pediu para não ser identificada. “Sequer nas negociações para a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) foram introduzidas estas normas”, acrescentou. O artigo 4 determina que cada
parte concederá aos investidores e aos investimentos da outra parte “um tratamento não menos favorável do que o concedido, em circunstâncias semelhantes, aos investidores e investimentos de qualquer outro país, no que se refere ao estabelecimento, aquisição, expansão, administração, condução, operação e venda ou outra forma de disposição de investimentos em seu território”. Juristas ligados à Associação Latino-Americana de Integração (Aladi) explicaram que, pelo Tratado de Montevidéu, o Uruguai é obrigado a estender aos outros 10 países membros (Brasil, Argentina, Bolívia, Colômbia, Chile, Equador, México, Paraguai, Peru e Venezuela) os mesmos benefícios que oferecer aos Estados Unidos. (Agências internacionais)
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INTERNACIONAL ÁFRICA
Estudar África pode combater racismo Africanista brasileiro, Paulo Farias propõe também plano de recuperação econômica para o continente
P
aulo de Moraes Farias, considerado o maior africanista brasileiro vivo, é historiador formado pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), onde também estudou medicina. Vive desde os anos 60 fora do Brasil, tendo sido pressionado a sair durante o período de repressão da ditadura militar. Atualmente, é professor da Universidade de Birmingham, Inglaterra. Em visita recente ao Brasil, Farias falou ao Brasil de Fato sobre sua visão da África e sua trajetória como pesquisador da história e das tradições dos povos daquele continente. Farias conta que começou a se interessar pelos estudos da África como forma de combater o racismo. “A única maneira de ultrapassar o racismo no Brasil”, diz ele, era pelo estudo da África. Era importante estudar a África para ter argumentos para lutar contra o racismo dentro do nosso próprio país. E foi também parte do interesse que a minha geração desenvolveu pelo estudo do que se chamava na época ‘terceiro mundo’.” O historiador diz que a experiência de ter cursado medicina contribui para seus estudos sobre África. “O que eu estudei na faculdade de medicina me ajuda. É muito importante, hoje em dia, o estudo do DNA dentro da pesquisa histórica: no caso da África, podese, por exemplo, traçar quais são as afinidades biológicas da população do Egito Antigo com as populações africanas atuais. Isso é essencialmente uma discussão biológica. A formação de médico muitas vezes me ajuda a entender essas coisas mais rapidamente”, afirma. Paulo Farias, que defende a aplicação de uma espécie de plano Marshall (criado para recuperar a Europa pós Segunda Guerra) na África, estuda, entre outros temas, a história oral e escrita no Sahel moderno e contemporâneo e a coexistência do Islã com religiões africanas. Há 40 anos fora do Brasil, Paulo Farias escreveu pouco em português. Suas publicações na área da pesquisa histórica são a maioria em inglês. Brasil de Fato – Era mais difícil estudar a África no Brasil dos anos 60 do que hoje? Paulo Farias – Uma coisa que pude comprovar nessa minha visita, tanto em Salvador, onde dei um minicurso, quanto em São Paulo, onde também dei minicursos e fiz palestras, é que há evidentemente um interesse público, uma seção da opinião pública, não só de estudantes, que se interessam pela história da África propriamente dita. Não apenas pela história da diáspora africana no continente americano, que é um assunto muito importante também, mas que, às vezes, pode atrair tanta atenção que atenção menos do que é devida é voltada para o estudo da própria África. Mas me parece que há condições de grande interesse no estudo do continente africano. Nos anos 60, havia um
Quem é
Fotos: Gianni Puzzo
Marilene Felinto da Redação
Paulo de Moraes Farias é historiador baiano, soteropolitano, como gosta de frisar. É pesquisador da África desde os anos 60. Passou por diversas universidades africanas, como pesquisador ou professor, entre elas a Universidade de Gana, a Universidade de Dacar (Senegal, como pesquisador do Institut Fondamental d’Afrique Noire - Ifan) e a Universidade Ahmadu Bello, na cidade de Zaria (Nigéria). Atualmente leciona na Inglaterra. Esteve recentemente no Brasil, ministrando minicursos na Bahia e em São Paulo, a convite da Casa das Áfricas, com apoio da USP e da PUC-SP.
entusiasmo bastante grande de um setor não pequeno da intelectualidade. Em parte, isso vinha da esquerda, do “terceiro-mundismo”, do interesse pelos povos que estavam se libertando do colonialismo, os povos que lutavam contra o imperialismo na América Latina, na Ásia e na África. Mas vinha também do lado do poder do Estado. Foi uma época que o Estado brasileiro se interessou por relações com a África esperando ter uma espécie de direito natural na liderança política de um bloco ao qual quase que inescapavelmente as nações africanas iriam pertencer. Então, houve um certo suporte, um certo apoio vindo do lado do Estado brasileiro. BF – Sua percepção de que a coisa melhorou tem a ver com a política externa do governo Lula para a África? Farias – Eu acho muito importante que a política externa brasileira esteja visivelmente devotando atenção à África. É também muito importante que o Brasil tenha programas de cooperação com países africanos como, por exemplo, o programa de combate à Aids em Angola e assim por diante. Isso é muito positivo. Mas me parece também que não é só a partir da política do Estado, mas sim dentro da opinião pública como tal que há um interesse maior pela África. É uma coisa complicada e contraditória, porque, de um lado, a África continua sendo apresentada pelos órgãos
É muito importante que a política externa brasileira esteja visivelmente devotando atenção à África ficamente do Saara Ocidental. O que pensa da luta por emancipação e dignidade de grupos como os tuaregue do Mali e do Níger ou os ijaw e ogoni da Nigéria? Farias – Um dado essencial aí é que essas lutas serão mais eficazes na medida em que elas ultrapassem limites étnicos. O caso dos tuaregue, por exemplo, é muito fácil de compreender. No Mali, desde 1963, eles tinham uma situação complicada. Houve uma primeira rebelião nos anos 60. O Estado maliano não soube lidar com aquilo, lidou como se simplesmente fosse uma rebelião, quando, na verdade, era uma coisa muito mais complicada. O Estado maliano olhava para os tuaregue como um sedentário olha para um nômade, sem compreender bem as necessidades do nômade, os interesses, a maneira como o nômade vive, seu estilo de vida. Havia uma espécie de barreira cultural, embora o Estado maliano fosse um Estado africano, uma espécie de barreira cultural entre o Estado maliano e os tuaregue, que também são malianos, uma boa parte. Então, para resolver um tipo de conflito dessa ordem é preciso uma mudança de atitude. É preciso que outros grupos dentro do país aprendam a entender a maneira tuaregue de
A África é viável e seria bom fazer uma revisão completa das fronteiras coloniais herdadas pelos países independentes de divulgação muito pelo que ela tem de catastrófico, de desastre. Ao mesmo tempo, parece que, por uma espécie de sabedoria popular ou outra coisa qualquer, que é preciso procurar entender, há muita gente que percebe que é preciso passar além disso, passar além dessa primeira imagem e tentar ir mais longe do que isso. Aí é que está o mais positivo desse interesse. Porque quem lê sobre desastres e horrores, pára aí. A África fica apenas como um ícone dessas coisas negativas. BF – O senhor pesquisa as tradições de povos africanos, especi-
viver. Por outro lado, é importante também que os tuaregue não tenham nenhuma atitude de exclusivismo étnico, que estejam preparados para colaborar com outros grupos. Eu acho que isso existe, que apesar da seriedade do conflito que houve nos anos 90, como você diz, há no momento grandes reservas de boa vontade dos dois lados da guerra civil, uma boa vontade que se dirige a reatar os laços sociais que sempre houve naquela região entre populações que falam línguas diferentes e têm estilo de vida diferente. No caso dos habitantes do Delta do Rio Níger, é realmente uma luta muito séria e muito importante para que os direitos humanos daquela população sejam respeitados frente aos interesses das companhias petrolíferas. Mas, uma outra vez, o que se pode dizer é, para que uma luta dessa ordem tenha eficácia, será melhor que ela se faça em aliança com outros grupos, com outras populações do país, que não fique isso apenas como uma questão nacional dessas po-
pulações, elas sozinhas diante de uma companhia petrolífera. É preciso que uma mobilização maior da opinião pública se faça para defesa do interesse dessa gente. BF – Dividida em nações da forma como está, a África é viável? Farias – Eu acho que a África é perfeitamente viável, e idealmente seria talvez uma boa coisa fazer uma revisão completa das fronteiras coloniais que foram herdadas pelos países independentes. Mas eu tenho a impressão de que, na prática, os problemas políticos seriam enormes se tentássemos fazer isso. Então, o caminho a seguir é o caminho de uma maior cooperação econômica e política entre diversos países do continente. Mas um problema ainda mais importante do que esse é o acesso das camadas populares das populações africanas às alavancas do poder, que ainda é muito pequeno na maioria dos países. Mesmo países onde há eleições, onde os parlamentos funcionam. É necessária uma mudança de cultura política, que permita que sistemas mais democráticos venham à tona. Há lugares, como a África do Sul, que estão extremamente avançados nesse caminho, há muitos outros em que há um retardo, mais do que um avanço. BF – O islamismo na África é um de seus temas de estudo. Que papel desempenha o Islã no continente hoje? Farias – Eu acho que o Islã está há tanto tempo instalado na África que ele pode ser considerado como uma das religiões africanas. Da mesma maneira como o cristianismo é estrangeiro na Europa, mas não faria sentido dizer que o cristianismo é uma religião invasora no continente europeu. Ele está lá tão bem estabelecido, tão bem europeizado que é uma religião européia. O mesmo se poderia dizer do Islã na África. Não quero com isso dizer que a situação da Europa e da África é exatamente a mesma no que diz respeito às religiões vindas de fora. Mas acho que seria um equívoco tratar o Islã como coisa alheia, como religião alienígena, ela pode ter sido uma religião alienígena no princípio, mas já não é mais. Então, há uma dinâmica em que diferentes grupos, que seguem diferentes religiões, convivem na África. Muitas vezes essa dinâmica tem levado a conflitos e muitas outras vezes tem levado a relações de cooperação. O resultado do que eu estou dizendo
Uma espécie de Plano Marshall seria uma maneira de mostrar que outros continentes querem trabalhar com a África
seria afirmar que não se pode dizer “o Islã é isso ou aquilo” na África. É preciso estudar cada situação concreta, e ver se, por exemplo, estamos lidando com uma situação em que, por alguma razão, este ou aquele grupo muçulmano assume uma atitude negativa em relação a culturas ou aspectos culturais não muçulmanos. Então, isso seria uma coisa a criticar. Mas estou certo de que vamos encontrar também muitas outras situações em que há coexistência, que é uma grande virtude africana, a capacidade de reunir, num sistema de relacionamentos, pessoas que são muito diferentes por origem, por cor da pele, pela língua que falam, pela religião que praticam, e que, apesar das diferenças, cooperam entre si. A diferença deixa de ser uma barreira e passa a ser, na verdade, um laço. É porque eu sou diferente de você que eu coopero com você. Isso se aplica também nas relações entre muçulmanos e não muçulmanos em uma grande maioria dos contextos históricos que a gente pode examinar. BF – Nelson Mandela disse, numa entrevista à revista Newsweek, que os Estados Unidos e a Inglaterra passaram a desprezar a ONU depois da entrada de dois negros no cargo de secretário geral, Boutros-Boutros Gali e Koffi Annan. O que acha dessa opinião? Farias – Minha opinião sobre Mandela é que ele é, de todos os líderes políticos que estão vivos nesse momento, o único no mundo que pode ser celebrado sem nenhum problema, sem nenhum equívoco, como uma figura positiva, uma figura inspiradora. Não há ninguém igual a ele. Então, dou à opinião de Mandela um peso enorme, e trato tudo o que ele diz com grande respeito e interesse. Agora, eu tenho a impressão de que ele estava fazendo, até certo ponto, uma boutade política, ele estava fazendo uma frase de humor, que tinha seu conteúdo político. A minha impressão pessoal é de que não foi somente a cor desses dois líderes que levou os Estados Unidos a tomarem a posição que tomaram em relação à ONU. Mas o Mandela, ao dizer isso, como expressão sobre a política americana, como que mostrou a possibilidade de que a atitude dos Estados Unidos fosse interpretada a essa luz. É quase como uma advertência aos Estados Unidos: vocês estão arriscados a serem interpretados da maneira que se segue. Mas é uma opinião pessoal, essa. BF – A postura da Europa e dos Estados Unidos em relação à África, chamada hoje neocolonialista, deveria ser de reparação aos africanos? Farias – Há esse grande debate sobre a reparação. Eu acho que caberia estabelecer alguma coisa semelhante ao plano Marshall, depois da Segunda Guerra mundial. Um plano que foi aplicado logo, uma espécie de plano Marshall para a África seria uma boa maneira de mostrar que os outros continentes estão dispostos a trabalhar junto com a África, vendo as populações africanas como irmãos dentro da humanidade, e trabalhar com eles para alguma coisa que será a renascença da África, digamos, a renascença econômica da África. Será de benefício para a humanidade inteira. Portanto, é um trabalho que cabe à humanidade inteira. Assim sendo, é justo, não só justo como faz perfeitamente sentido, investir na África, a partir de outros continentes para que a situação africana melhore rapidamente.
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AMBIENTE CONFERÊNCIA TERRA E ÁGUA
Em defesa dos bens públicos e essenciais Alexania Rossato e Suzane Durães de Brasília (DF)
Divulgação
Mobilização em favor da agricultura familiar, pela água e pelos direitos dos atingidos por barragens
E
m 2004, por sua importância inquestionável, a água foi assunto freqüente em discussões nas universidades, igrejas, comunidade, ONGs e movimentos sociais.Ter o domínio sobre regiões com abundância de água é cada vez mais estratégico para os países capitalistas. Domínio esse exercido principalmente nos países pobres, nos quais as potências imperialistas chegam, e se apropriam das riquezas naturais conforme seus interesses, desrespeitando povos e nações. A privatização e a mercantilização da água são uma constante. É o que Roberto Malvezzi, da Comissão Pastoral da Terra, denomina de hidronegócio. A cobiça internacional, seja se apropriando do leito dos rios para a construção de barragens, ou dos lençóis subterrâneos, se torna cada vez mais forte, e os hidroempresários cada vez mais poderosos. Tudo isso está incomodando, e será uma das principais questões discutidas por representantes dos movimentos sociais, de organizações do campo e do governo, durante a Conferência Nacional Terra e Água, que se realiza de 22 a 25, em Brasília. Por considerar que a água é um
Cartaz da conferência, que acontece entre os dias 22 e 25, em Brasília (DF)
bem público, patrimônio da humanidade, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) elegeu a água como tema central da Campanha da Fraternidade de 2004. Para manter o assunto na ordem do dia, foi criada a Defensoria da Água que, em setembro, lançou o Relatório do Estado Real das Águas no Brasil. O relatório traz denúncias gra-
ves. Entre elas, o fato de que cerca de 89% das pessoas que estão nos hospitais brasileiros foram vítimas da falta de acesso à água de boa qualidade. Ou que, no Brasil, existem mais de 20 mil áreas contaminadas e suas populações estão expostas a riscos de saúde. “Quem polui as águas dessa forma é criminoso, e deve pagar por
isso”, declarou Alexandre Camanho de Assis, Procurador Regional da República em Brasília, por ocasião do lançamento do relatório. Neste sentido, a Defensoria é instrumento de defesa da sociedade, subsidiando os encaminhamentos de demandas relativas aos casos de uso, acesso e contaminação das águas. Com o lema “Água para a vida, não para a morte”, há 25 anos o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) vem lutando na defesa das vítimas da ganância das grandes construtoras de barragens que, além de destruírem as famílias e suas comunidades, se apropriam das áreas, inclusive colocando cercas ao redor dos lagos. Em 2004, o MAB organizou sua primeira marcha nacional, quando centenas de atingidos por barragens caminharam de Goiânia até Brasília para denunciar à sociedade brasileira que são vítimas do capital internacional e, muitas vezes, são ignorados pelos governos. “Hoje, mais do que nunca, se faz necessária a discussão sobre a água, principalmente porque quando nasce uma barragem, morre um rio e todas as populações de ribeirinhos são expulsas de suas terras, as comunidades são destruídas, as raízes históricas do povo são cortadas”, diz Cristiane Nadalleti, dirigente do MAB. Na Conferência Nacional Terra
e Água, militantes de entidades membros do Fórum Nacional pela Reforma Agrária vão falar sobre os problemas e necessidades dos camponeses e da agricultura familiar. No país, existem cerca de 8 milhões de famílias cujas atividades estão fora da esfera de produção capitalista. É o universo dos posseiros, arrendatários, parceiros, varzeiros, ribeirinhos, pescadores artesanais, lavradores, agroextrativistas, quebradeiras de coco, povos indígenas, quilombolas e assentados. No campo, a agricultura familiar é responsável por mais da metade da produção agrícola do Brasil. De acordo com Horácio Martins, um dos palestrantes da Conferência, o que diferencia camponeses e pequenos produtores rurais é a relação social de produção. No capitalismo, essa relação é de assalariamento, entre camponeses e agricultores familiares, dá-se a reprodução social da família com capacidade de gerar renda. O potencial de produção do segundo grupo está na diversidade, no uso múltiplo dos recursos naturais. “É mito sua suposta inviabilidade econômica. O que falta é uma política para a pequena agricultura, seja para produção, industrialização, ou comercialização”, afirma Romário Rossetto, da direção do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
DESMATAMENTO
Ambientalistas protestam contra barragem Marco Aurélio Weissheimer de Porto Alegre (RS) Dia 11, o segundo dia do Fórum Internacional das Águas, na capital gaúcha, foi marcado por protesto de ambientalistas e estudantes de biologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Com faixas e cartazes, eles denunciavam a fraude do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) que permitiu a construção da Usina Hidrelétrica de Barra Grande, no norte do Rio Grande do Sul. Segundo ambientalistas e agricultores que vivem na área, cerca de 6 mil hectares de Mata Atlântica podem ser destruídos, caso as tentativas de desmatamento tenham sucesso. Há cerca de um mês, o consórcio Baesa, responsável pela construção da usina, tenta iniciar o desmatamento, mas vem sendo impedido pela mobilização dos agricultores atingidos pela obra.
Também foram denunciados os biólogos Carlos Bizerril e Marcos André Raposo, funcionários da empresa Engevix, que teriam assinado o (EIA) fraudulento. Os estudantes estão preparando uma caravana que irá para a região de Barra Grande, com o objetivo de estudar a mata que está sendo destruída, especialmente araucárias ameaçadas de extinção. Eles também pretendem visitar os acampamentos dos agricultores que estão impedindo o desmatamento.
DADOS FALSOS A polêmica em torno da construção da usina de Barra Grande vem desde 1998, quando o governo federal licitou estudo socioambiental da região de Pinhal da Serra, para a construção de nova hidrelétrica. O relatório da empresa vencedora registrou que a área a ser alagada tinha apenas “vegetação rasteira”. A partir desse relatório, o governo federal autorizou o início da
construção da obra, cuja parte civil está quase concluída. Em setembro, a Baesa entrou com processo no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), pedindo autorização para iniciar o desmatamento da área. No entanto, ao checar os dados do estudo ambiental, o Ibama descobriu que a área a ser inundada não tinha apenas vegetação rasteira, mas mata de araucária e nativa. Apesar disso, o Ministério Público Federal negociou com o Ibama e a empresa a autorização do desmatamento, desde que a Baesa compensasse a perda com projetos de preservação ambiental. A partir daí, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) iniciou uma grande mobilização para evitar o corte das árvores. Recentemente, agricultores que terão suas terras cobertas pela água montaram acampamentos com o objetivo de impedir o desmatamento e
de negociar a ampliação do número de famílias a serem indenizadas pela perda de suas propriedades.
ALERTA Motivo do protesto dos ambientalistas, a polêmica de Barra Grande ficou de fora da abertura do 2º Fórum Internacional das Águas, cujo tema central foi a escassez de água potável que ameaça bilhões de seres humanos. Atualmente, cerca de 1,4 bilhão de pessoas não têm acesso à água potável, esse número não pára de crescer. Se nada for feito, em menos de três décadas pode começar a faltar água para o consumo humano. O alerta foi feito, dia 9, pelo expresidente de Portugal, Mário Soares, na abertura do evento. Soares, presidente do Comitê Internacional para o Contrato Mundial da Água, disse que mesmo países como o Brasil, que tem 12% das reservas de água potável do mundo, não estão livres do problema.
A poluição e o desperdício são duas das causas centrais da escassez de água no mundo. O espanhol Pedro Arrojo, presidente da Fundação para a Nova Cultura de Água, lembrou que, hoje, a agricultura responde por 80% do consumo de água. Arrojo defende uma taxação mais rígida para grandes produtores e indústria como forma de diminuir o desperdício. No mundo, existem ricas experiências de combate ao desperdício de água. Há mais de mil anos, agricultores da cidade de Valência, no sul da Espanha, reúnem-se semanalmente para julgar poluidores e esbanjadores. Os acusados podem se defender e são julgados pela população. Se condenados, devem pagar pelo dano. Instituído ainda no período medieval, o tribunal de Valência serve de inspiração para todos os que estão preocupados com o futuro das fontes de água potável no planeta. (Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br)
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DEBATE RUMOS DO GOVERNO
Sobre a proposta de concessão de fl oresta na Amazônia O
DINÂMICA DESTRUTIVA
Durante o regime militar as políticas tecnocráticas e desenvolvimentistas para a Amazônia aprofundaram e aceleraram uma dinâmica destrutiva cujas conseqüências são bem conhecidas. Foi uma política que buscou o “progresso” por meio de grandes obras como a rodovia Transamazônica, a ampliação de fronteiras agrícolas e medidas que estimulavam o crescimento econômico e a exploração das riquezas naturais – sem consideração dos aspectos ambientais, sociais e culturais da Amazônia e seus habitantes. Se “progresso” significava então exploração desenfreada e degradação ambiental, mesmo tendo havido mudanças, ainda é forte a presença de visões semelhantes às que prevaleceram nos anos de chumbo. O grande dilema que se coloca é a necessidade de um projeto global para a Amazônia, por meio de políticas que rompam com a concepção positivista de progresso que estabelece uma antinomia entre desenvolvimento econômico, de um lado, e justiça
social e sustentabilidade ambiental, de outro. Um projeto de desenvolvimento sustentável para a Amazônia exige que se aborde os seus problemas sob uma perspectiva holística e integrada da realidade regional. É nesse sentido que entendemos que uma proposta para a Amazônia precisa ser necessariamente uma proposta do governo federal que articule e entrelace as ações e políticas não de um ministério, mas de todos. Esse projeto deveria ser o Plano Amazônia Sustentável (PAS). A ausência de um marco legal que regulamente a gestão das florestas engendrou um processo crescente de privatização das terras públicas, pela emissão de títulos e documentos de posse. Essa é uma situação inaceitável num bioma que dispõe de 5 milhões de quilômetros quadrados, dos quais 47% são terras devolutas de alcance público. O ritmo de desmatamento da Amazônia vem rompendo recordes a cada ano. Entre agosto de 2002 e agosto de 2003 estima-se que a área devastada corresponda a cerca de 25 mil e quinhentos quilômetros quadrados em doze meses. Ao que tudo indica a tendência é de que tenha havido um aumento no ritmo de desmatamento desde então. São dados assombrosos, principalmente se levarmos em conta que nos anos 70 e 80, conhecidos como “décadas de devastação”, a média anual de desmatamento foi de 21 mil quilômetros quadrados! Uma das causas desse aumento é a ampliação crescente das atividades agrícolas e pecuárias, que se aproxima perigosamente do coração da Amazônia. O crescimento explosivo das plantações de arroz, soja e da pecuária que se verifica nos anos recentes soma-se a causas “tradicionais”, como queimadas e exploração ilegal de madeira. Uma conseqüência é a mudança no padrão e na escala de desmatamento, introduzindo novos problemas na já complexa realidade da Amazônia – como monoculturas de exportação ou concentração de investimentos. Apesar de esforços governamentais a situação é alarmante e as perspectivas futuras desalentadoras. FISCALIZAÇÃO DEFICIENTE
A luta para impedir a savanização da Amazônia exige políticas públicas eficazes. Mas, principalmente, mecanismos e instrumentos de aplicação das leis ambientais e um monitoramento permanente das florestas. Eis o nó górdio da questão. O Estado brasileiro, até agora, mostrou-se incapaz de monitorar, fiscalizar e coibir a devastação causada pelas práticas ilegais. Vale ressaltar que a tarefa primeira, condição sine qua non
Kipper
anteprojeto de lei do Ministério do Meio Ambiente sobre concessão de terras públicas tem suscitado muitas dúvidas e polêmica sobre o seu significado para o futuro da Amazônia. As opiniões estão divididas entre os que consideram essa a melhor proposta para estabelecer o controle público sobre a Amazônia, evitando a escalada de devastação a que vem sendo submetida, e os que condenam de forma peremptória, considerando-a como um projeto lesa-pátria com conseqüências catastróficas para o bioma amazônico. O tom acalorado do debate é proporcional ao que está em jogo. Afinal, o desmatamento da Amazônia tem aumentado num ritmo célere. Queimadas, exploração ilegal das suas riquezas, grilagem, trabalho escravo, expansão das fronteiras agrícolas, conflitos violentos são problemas que têm se acentuado nos últimos anos. E na mesma proporção aumenta a urgência de medidas que possam reverter esse quadro. A elaboração do anteprojeto envolveu um amplo processo de debate democrático com a participação de importantes setores da sociedade civil da região. Contudo, o fato do anteprojeto ser de apenas um ministério (no caso, o Ministério do Meio Ambiente) deve ser motivo de uma reflexão crítica. Entendemos que um projeto desse porte deveria ser do governo federal como um todo. Em primeiro lugar, justificamos essa afirmação pelo simples fato de que os problemas que afetam a Amazônia não incidem apenas sobre os habitantes da região. O destino da Amazônia tem impacto sobre o país todo e, em última instância, afeta todo o planeta e diz respeito a toda humanidade. Em segundo lugar, está em questão a própria eficácia das políticas públicas para a Amazônia. É notória a complexidade dos problemas que se observam nessa região, que ocupa quase a metade do país. Não são problemas circunscritos ao âmbito ambiental. A dinâmica de devastação e destruição expressam uma dinâmica econômico-social que engendra e reproduz miséria, injustiça social e destruição ambiental. Esses problemas estão entrelaçados entre si, condicionando-se mutuamente e atingindo principalmente os trabalhadores – as camadas mais empobrecidas das cidades, as comunidades e os povos da floresta.
Kipper
Temístocles Marcelos Neto e Adilson Vieira
para qualquer plano na Amazônia, é o processo de Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE), com a participação democrática de comunidades locais, organizações ambientalistas e dos povos da floresta para indicar áreas a serem preservadas integralmente, delimitar outras passíveis de serem licitadas e mapear os direitos fundiários das comunidades existentes. Não seria exagero afirmar que sem a realização do ZEE com essas características, qualquer projeto ou plano que vise a preservação da Amazônia é inviável. Além disso, consideramos que a implementação dos princípios e diretrizes da Agenda 21 Brasileira é fundamental para qualquer plano ou programa que tenha como objetivo não só a defesa da Amazônia mas também a viabilização de um desenvolvimento sustentável na região. O anteprojeto de concessão florestal estabelece normas de sustentabilidade para a atividade de concessionários – sejam empresas ou comunidades. E prevê a realização de auditorias florestais, periódicas, para verificar o cumprimento (ou não) dos compromissos assumidos de acordo com o novo plano de manejo. A questão é o tamanho da tarefa. O projeto do Ministério do Meio Ambiente prevê a destinação de área equivalente a 10 milhões de hectares nos primeiros dez anos para serem exploradas comercialmente – podendo chegar, a longo prazo, a 50 milhões de hectares. Mas mesmo 10 milhões de hectares são uma área imensa, cujo monitoramento e fiscalização exigiria departamentos capacitados, dotados
de estrutura, recursos técnicos e humanos suficientes para o seu cumprimento ágil e eficiente. Sem essas condições, os riscos são muito grandes. Basta lembrarmos o caso de países como Indonésia e Malásia, onde programas semelhantes foram adotados pelos governos locais, mas com resultados desastrosos. Além disso a Amazônia guarda um verdadeiro tesouro genético, tão ou mais valioso quanto as suas riquezas naturais. A luta contra a biopirataria é complexa e seu monitoramento mais difícil. O fato de empresas, inclusive estrangeiras que podem associar-se a empresas nacionais, terem acesso a esse patrimônio é muito preocupante e exige medidas específicas. Todo esse quadro sugere que, sem contar primeiro com as condições para a fiscalização e monitoramento, as boas intenções do projeto poderão ficar apenas no papel. SOBRE AS LICITAÇÕES
Outro elemento passível de discussão é: para quem serão direcionadas as licitações. Segundo o anteprojeto, o processo de licitação estará aberto a entidades não-governamentais, empresas e comunidades locais. O artigo 27 afirma que: “No julgamento da licitação será considerada a melhor proposta em razão da combinação dos seguintes critérios: 1 - o maior preço ofertado como pagamento ao poder concedente pela outorga da concessão; 2 - a melhor técnica, considerando: a) o menor impacto ambiental; b) os maiores benefícios sociais diretos; c) a maior eficiência.” É notório o fato de que a exploração dos recursos florestais, segundo normas de manejo sustentável, exige um grande volume de recursos financeiros. Além disso, o próprio retorno comercial da atividade de exploração não é imediato. Logo, diante dos critérios expostos no artigo acima, não é difícil imaginar que nos processos licitatórios a tendência será a vitória de grandes empresas ou consórcios que dispõem
dos recursos necessários para implementar os planos. Isso traz o risco de que a exploração das florestas públicas fique concentrada nas mãos de grandes empresas e consórcios. Uma maior concentração de investimentos e de riquezas não é desejável, principalmente por suas conseqüências sociais. Além disso, grande parte das empresas médias e pequenas não terão condições de disputar em igualdade com as grandes – e muitas delas continuarão clandestinamente, ao arrepio da lei, a extração ilegal de madeira e outras riquezas amazônicas. Também estão ausentes do anteprojeto os critérios trabalhistas claros para que empresas concessionárias não transgridam direitos. Esse é um ponto de grande importância que, em nossa opinião, deve ser explicitado como uma cláusula pétrea para qualquer empresa ou organização ser considerada apta para exercer a exploração florestal sustentável. Acreditamos ser fundamental a exigência de critérios objetivos, claros e inequívocos de responsabilidade social por parte das empresas. Sem isso, não há garantia de que a exploração comercial reverta em benefícios para a maioria das trabalhadoras, trabalhadores e habitantes de cidades e florestas da Amazônia. Se o manejo sustentável não tiver como pressuposto a promoção da cidadania, gerando emprego, renda e melhorias sociais, estará fadado a reproduzir a mesma lógica secular que vem reproduzindo e ampliando as desigualdades sociais e degradação ambiental. Nesse caso, o manejo não poderia ser classificado como sustentável. Há muitos outros aspectos que devem ser discutidos, sem juízos preconcebidos, mas a divulgação do anteprojeto do Ministério do Meio Ambiente requer mais que juízos de valor. É a hora de propostas e medidas concretas que freiem a escalada de destruição da Amazônia. Que as intenções expressas no anteprojeto são boas é algo inquestionável. Mas o que é necessário é averiguar – e avaliar – se o mecanismo de concessão de florestas públicas para o manejo sustentável é compatível com os objetivos e boas intenções. Quando o governo Fernando Henrique Cardoso apresentou em 1997 o seu Plano Nacional de Florestas (PNF), o grupo de trabalho de florestas do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais elaborou um documento onde afirma: “Da forma como foi colocado, o que está sendo proposto é o loteamento oficializado da Floresta Amazônica para grandes madeireiras. Não há espaço para esse plano sem (1) uma total e profunda reformulação do sistema de monitoramento dos órgãos ambientais, (2) uma radical modificação do “modelo” aplicado na Flona Tapajós, (3) um sério programa de treinamento de técnicos, reciclagem de engenheiros e apoio à pesquisa. (...) Para provar que sua proposição pode dar certo, o governo deve implantar projetos pilotos, demonstrando a viabilidade do sistema”. Embora o anteprojeto atual tenha muitas diferenças com o projeto de FHC, cremos que esses alertas permanecem válidos e devem ser levados em conta. Temístocles Marcelos Neto é coordenador da Comissão Nacional de Meio Ambiente da CUT e secretário executivo do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (FBOMS) e Adilson Vieira é secretário geral do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA)
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA LIVROS FREUD E OS NÃO-EUROPEUS Último livro do falecido intelectual palestino Eduard W. Said. Parte de uma suposição do pai da psicanálise, Sigmund Freud, de origem judaica e ateu, de que Moisés não era judeu, mas egípcio. Partindo dessa afirmação de Freud, feita no texto “Moisés e o Monoteísmo”, Said discute a construção da identidade judaica, a concepção de que grupos são ou não são “europeus”, e a dinâmica da identidade étnica e religiosa em momentos diferentes da história. Said, munido de literatura, arqueologia e teoria social, relaciona a implicação dessa obra de Freud com a atual política do Oriente Médio. Um livro polêmico, que questiona as raízes dos fundamentalismos. Da Editora Boitempo, tem 112 páginas e custa R$ 27. Mais informações: www.boitempo.com A VERDADEIRA ODESSA Em A Verdadeira Odessa – O contrabando de nazistas para a Argentina de Perón, o jornalista argentino Uki Goñi investiga o já conhecido fato de seu país ter abrigado nazistas. O livro, em que Goñi apresenta seis anos de pesquisas e entrevistas, tem 448 páginas e custa R$ 59,90. Mais informações: www.editorarecord.com.br TRABALHO INFANTIL E GÊNERO: UMA LEITURA DA MÍDIA DO MERCOSUL O livro analisa a atuação da mídia na cobertura de questões relacionadas ao trabalho infantil à luz dos direitos de meninos e meninas nos países do Mercosul e no Chile. O livro também aborda o impacto do trabalho infantil na economia da região. A produção do livro envolveu a realização de 41 entrevistas feitas nos quatro países que compõem o Mercosul (Argentina,
RIO GRANDE DO SUL 9ª MARCHA DOS SEM 26, às 13h30 Com o tema “Por um Brasil soberano, justo e solidário”, a marcha reunirá trabalhadores, empregados e desempregados, estudantes, semteto, sem-terra. Promovida pela Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), a Marcha dos Sem de 2004 pretende expor à sociedade os problemas enfrentados pelos trabalhadores, urbanos e rurais, empregados e desempregados. O encontro deste ano pretende reforçar a necessidade de se lutar contra as ameaças que a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) representam à soberania nacional, tentando obrigar o Brasil e os demais países da América Latina a se manterem submissos às suas políticas. Local: Planetário, Av. Ipiranga, 2000, Porto Alegre Mais informações: (51) 3224-2484
Brasil, Paraguai e Uruguai) e no Chile para obter informações sobre as referências históricas, dados de censos, e pesquisas existentes sobre o assunto na região, questões trabalhistas e a visão de especialistas e jornalistas. Juntamente com o livro está sendo lançada uma página na internet que pode ser acessada por meio da página eletrônica da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi). Além do conteúdo da publicação, a página tem notícias sobre o tema produzidas no Brasil, nos países do Mercosul e no Chile, e contatos de representantes de organizações da sociedade civil e de órgãos governamentais que atuam na área. O livro é uma realização da Andi e do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil com apoio do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil em parceria com o Departamento para o Desenvolvimento Internacional do Reino Unido (United Kingdom Department for International Development). Mais informações: (61) 323-2451, 323-8820, www. andi.org.br
DISTRITO FEDERAL ENCONTRO COM O CINEMA BRASILEIRO Até 23 de novembro
Durante a mostra serão exibidos filmes de Sergio Rezende, Helena Solberg e Sílvio Tendler. Uma das atrações é Glauber, o Filme – Labirinto do Brasil, filme premiado no Festival de Brasília do ano passado e que levou 22 anos para ficar pronto. Exibe cenas do velório do cineasta baiano, morto em 1981. A mãe do diretor só liberou o uso das imagens, feitas por Tendler, em 1999. Nessa longa jornada, o som se perdeu e somente a entrevista com o antropólogo Darcy Ribeiro foi recuperada. Ainda na programação, serão exibidos filmes de Aurélio Michiles e Zelito Vianna, Local: Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), SCES, Trecho 2, Lote 22, Brasília Mais informações: (61) 310-3087 www.ccbb.com.br,
RIO GRANDE DO SUL MONDO SONORO Até dia 28 A exposição “Mondo Sonoro – lapsos visuais + special bônus”, do jornalista Daniel Bacchieri, reúne fotos produzidas em 2004, destacando a cobertura do Festival das Artes Psicodélicas. Exibe também experimentações digitais,
como o registro fotográfico de cenas de DVDs, direto da tela do computador. Local: Travessa Comendador Batista, 79, Porto Alegre Mais informações: (51) 3226- 6518
SÃO PAULO SEMINÁRIO: FAZER OS MERCADOS FINANCEIROS TRABALHAREM PARA O DESENVOLVIMENTO ALTERNATIVAS PARA REORIENTAR A ATUAÇÃO DOS MOVIMENTOS DE CAPITAIS 24 e 25 O objetivo do encontro é debater o papel que a ampla liberdade de movimentação financeira internacional tem na definição das políticas econômicas de países como o Brasil. O seminário conta com a colaboração do Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política da PUC-SP e terá como palestrantes os economistas brasileiros Carlos Eduardo Carvalho (PUC-SP) e Daniela Prates (Unicamp), além dos alemães Peter Wahl (Attac) e Timo Wollmershäuser (IFO, Munique). Entre os temas que serão debatidos estão: O que está em jogo? efeito da liberalização dos mercados financeiros no desenvolvimento, balanço da
necessidade da reforma do sistema financeiro internacional, taxação internacional, um imperativo da agenda global, terceira via para regimes cambiais? o conceito de flutuação controlada, controle de capitais no Brasil: retrospectiva, perspectivas de ação da sociedade civil no Brasil no contexto internacional Local: Auditório da COGEAE, da PUC-SP, R. João Ramalho, 182, São Paulo Mais informações: www.boell-latinoamerica.org ou www.liberdadebrasil.net POVOS DE SÃO PAULO Até 5 de dezembro A exposição “Uma centena de olhares sobre a cidade antropofágica” é resultado de oficinas ministradas por fotógrafos conceituados, como João Wainer, Eduardo Mulayert, Egberto Nogueira, Marlene Bergamo, Mônica Zarattini, Gal Opido, Penna Preaco, entre outros. A programação trará, além de apresentações de videocrônicas, mostradas no decorrer do evento, vídeos dirigidos por Dainara e Tatiana Tofolli, Jurandir Muller, Kiko Gofman e Rachel Monteiro. Grátis Local: Galeria Olido, Av. São João, 473, São Paulo Mais informações: (11) 3224-6000
CONFEDERAÇÃO DAS COOPERATIVAS DE REFORMAAGRÁRIADO BRASIL - CONCRAB CGC 68.342.435/0001-58 - Fone/Fax: (11) 222-9174/223-9135 Alameda Barão de Limeira, 1232 - Sta. Cecília 01202-002 - São Paulo - SP
EDITAL DE CONVOCAÇÃO O presidente da Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil CONCRAB, no uso das atribuições que lhe confere o Estatuto Social da mesma, vem por meio deste CONVOCAR todas as suas afiliadas para a Assembléia Geral Extraordinária que se realizará no dia 27 de novembro de 2004, no SRPN Centro Poliesportivo Ayrton Senna, Ginásio Nilson Nelson, em Brasília, no Distrito Federal, às 10h30, em primeira convocação, com a presença mínima de 2/3 (dois terços) dos associados, e em segunda e última convocação às 11h, com 50% mais um, dos sócios, com a seguinte ordem do dia: a)Endereço da nova sede da Concrab em Brasília. Sendo só para o momento, saudações cooperativistas, Francisco Dal Chiavon Presidente São Paulo (SP), 17 de novembro de 2004
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CULTURA
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ENTREVISTA
Derrubar as muralhas da linguagem A
escravidão no Brasil ainda não acabou para milhões de homens e mulheres, afirma Vito Giannotti. Para ele, a causa de todos os males do país é a continuação de uma realidade que garante a Casa Grande para apenas um punhado de gente e mantém a imensa maioria na Senzala. Nessa entrevista ao Brasil de Fato, Giannotti fala sobre o seu mais recente trabalho, Muralhas da Linguagem (Ed. Mauad). Entre outras coisas, explica que na Senzala não há boas escolas e que a baixa escolaridade e exclusão social são as principais muralhas da linguagem. Giannotti quer convencer jornalistas, sindicalistas, advogados, professores, e quaisquer outros profissionais que se relacionem com o povo, de que a mesma divisão econômica injusta que se perpetua no Brasil se repete na linguagem. Brasil de Fato – O senhor é autor de cinco livros sobre a comunicação dos trabalhadores. Em todos eles, a linguagem é um dos temas centrais, sendo que os dois últimos tratam especificamente deste assunto. De onde vem essa preocupação? Vito Giannotti – Vem principalmente da experiência de 22 anos de vida em várias fábricas metalúrgicas. Muitos colegas tinham muita dificuldade de compreender um texto de um jornal do sindicato ou de qualquer outro jornal. A contradição era simples. Esses trabalhadores construíam suas casas, produziam tudo o que a indústria soltava no mercado. Sabiam ser solidários, sabiam amar, sabiam fazer greve... mas não entendiam o que significava a expressão “atual conjuntura”. BF – Em A Muralha da Linguagem, o senhor se dispõe a comprovar que o Brasil ainda hoje é dividido entre a Casa Grande e a Senzala e que esta divisão se reflete na linguagem. Como chegou a essa ligação quase automática? Giannotti – O problema não é a forma de falar da classe dominante, mas a exploração que a burguesia impõe aos trabalhadores. Nosso país continua dividido entre a Casa Grande e a Senzala. Ou seja, a escravidão ainda não acabou para milhões e milhões de homens e mulheres. A causa de todos os males do Brasil é a continuação desta triste realidade: um punhado de gente vive na Casa Grande e a imensa maioria, na Senzala. O Brasil, pelos dados da ONU, está em 125º lugar no mundo, em atendimento de saúde. Ao mesmo tempo, no Hospital Albert Einstein, em 1992, a mãe do então presidente Collor pagava 4.500 dólares de diária. Na zona sul do Rio, onde ficam os bairros da Casa Grande carioca, há dezenas de livrarias chiquérrimas a cada duzentos metros. Enquanto isso, na Baixada Fluminense, no município de São João de Meriti, não há livraria. E a população de lá é de mais de 700 mil pessoas. Esta divisão se repete na linguagem. Derrubar as muralhas da linguagem é combater a exclusão social. BF - Que muralhas da linguagem são essas? Giannotti – A maior muralha, aquela que impede a imensa maioria de entender um texto, ou uma frase, é a baixa escolaridade do nosso povo. A média de anos de estudos, no Brasil, é das mais baixas da América Latina. São cinco anos. E que tipo de escola? Sabemos que da época da ditadura militar para cá
Quem é Vito Giannotti é autor de cerca de 20 livros. Já escreveu sobre a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o movimento sindical brasileiro e a comunicação dos trabalhadores. Foi diretor da CUT-SP. No início dos anos 90, fundou, no Rio de Janeiro, o Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) e se especializou em comunicação dos trabalhadores, história das lutas sociais e linguagem para disputar a hegemonia na sociedade. Giannotti nasceu na Itália, em 1943, e vive no Brasil há 40 anos.
a qualidade do ensino caiu tremendamente. Hoje nossas escolas públicas foram destruídas. É todo um plano do grande capital, do imperialismo. O objetivo é duplo: fazer piorar ao extremo para, depois, privatizar e ao mesmo tempo manipular o povo para dominá-lo mais facilmente. Um povo sem educação é mais facilmente manipulável. A televisão, capitaneada pela Rede Globo, completa o serviço. Os programas da baixaria da Globo e suas irmãs são ótimos para alienar o povo, para desinformá-lo, para afastá-lo da política e jogá- lo na mão de charlatães e vigaristas de todo tipo. Esta é a primeira grande muralha: a pouca escolaridade e a péssima qualidade do nosso ensino. BF – O senhor diz que nossas universidades e escolas são de péssima qualidade? Giannotti – Digo e repito. A prova é que, e isto está bem explicado no livro, num levantamento feito pela ONU, com 265 mil estudantes de 32 países do mundo sobre a compreensão de um texto, o Brasil chegou em 32º lugar. E foram feitos testes em estudantes de escolas públicas e particulares. É claro que há ilhas de excelência. Faculdades e escolas melhores do que a imensa maioria. Há estudantes que são gênios. Não é um problema de DNA do brasileiro. Ao contrário, há centenas de técnicos, cientistas e pesquisadores trabalhando em pesquisas até na Nasa (Agência Espacial dos Estados Unidos). Mas a média das nossas escolas é um desastre. Por isso, a primeira grande barreira da linguagem é a escolaridade. Quem não estudou numa boa escola tem dificuldade de entender palavras como: irreversível, autogestão ou processo histórico. Mas esta é apenas a primeira barragem que impede o leitor de entender um texto escrito ou falado. BF – E quais são as outras? Giannotti – Eu diria que a segunda é o que podemos chamar de intelectualês. É o correspondente da primeira barragem. Por intelectualês, no livro, entendo a prática de falar de uma forma complicada, usando palavras e expressões compreendidas apenas por quem é do ramo. Isto é, quem tem uma escolaridade de vários e vários anos e uma prática intelectual intensa. O intelectualês é legítimo se falado entre intelectuais. Mas, falado com a maioria do nosso povo, com a escolaridade de que já falei, é uma barreira que impede a compreensão da maioria. Mas, justamente, a nossa comunicação quer falar para a imensa maioria. BF – Qual seu objetivo ao dar exemplos fortes sobre a compreensão das palavras pelas classes populares, como no caso da
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Cláudia Santiago do Rio de Janeiro (RJ)
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A mesma divisão econômica injusta que se perpetua no Brasil se repete na linguagem, excluindo a maioria do povo
Capa do livro: Educação em debate
dona Edileuza, que confunde o significado das palavras otimista e pessimista? Giannotti – É simples e declarado. Se queremos convencer milhões do nosso projeto, precisamos falar e escrever de forma que estes milhões entendam. Eu sempre brinco dizendo que temos que pensar nos normais. Não se iludir que se está falando para um mundo de doutores. É possível traduzir tudo. Tudo pode ser dito de várias maneiras. Tudo pode ser falado em português, ou em inglês, ou em árabe. É possível traduzir qualquer idéia. Não é fácil. É uma arte. Mas ou fazemos isso, ou nossa linguagem só será compreendida por um punhado de iluminados. BF – No capítulo três o senhor diz que o Brasil é um país de tradição oral e visual e trata da forte influência do rádio e da televisão sobre a fala e o pensamento do povo. O senhor não tem medo de ser acusado de estar menosprezando a capacidade do povo de fazer uma mediação entre o
que recebe por estes meios e a sua vida? Giannotti – Primeiro, vamos ver o que é esta tradição oral e visual. Nosso povo tem raízes nos índios, nos negros, nos portugueses e outros povos do sul da Europa. Todos estes componentes tinham pouquíssima ou nenhuma familiaridade com a escrita. Nossos índios não liam, diferentemente dos incas e astecas da América Central e do México. Da África, o único povo que conhecia a leitura foram os malês, estabelecidos na Bahia. Dos portugueses que para cá vieram, pouquíssimos sabiam ler e escrever. E os outros povos que vieram colonizar o Brasil, espanhóis, italianos e alemães do sul, eram dos que menos liam na Europa daquela época. Mais do que isso, a política da nossa burguesia predatória sempre foi de não precisar de mão-de-obra com alto grau de escolarização. A burguesia brasileira nunca quis uma população escolarizada. Os resultados estão aí até hoje. Por tudo isso, no livro, falo que a nossa tradição cultural é oral e visual. Oral dos nossos inúmeros ritmos musicais; e visual dos corpos pintados e enfeitados de mil formas dos nossos índios. Nesta tradição o rádio e a televisão se encaixaram como uma luva. E a leitura ficou a ver navios. É por isso que o Brasil, entre 194 países da ONU está em 102º em leitura de jornais. É por isso que, de acordo com o IBGE, dos 5.506 municípios, em 2001, só há algum tipo de livraria em 1.927. Ou seja, em 3.579 não há onde comprar um livro. É essa nossa tradição cultural oral e visual. BF – O senhor diz e comprova com dados que o Brasil é um país que não lê. Como se explica, então, que os jornais e boletins sejam os principais instrumentos de comunicação entre os movimentos sociais e o povo trabalhador? Não seria o caso de se utilizar outros instrumentos? Giannotti – O Brasil é um país que não lê, sim. Mesmo assim se publicam aqui quase 7 milhões de exemplares de jornais diários. Parece muito, mas é quase nada. Estas cifras significam que apenas 4,5% da população lê jornal. Mesmo assim, nossos sindicatos e movimentos publicam milhões de jornais para seus trabalhadores. Eu acho que devemos publicar muito mais. Mais e melhores, mais bonitos, com assuntos melhor pensados e outras exigências a mais. Mas isto não pode nos fazer esquecer de que o povo não lê. As estatísticas estão aí. O
resto são sonhos. E então? Então vamos usar outros instrumentos de comunicação. Inclusive instrumentos mais próprios da nossa cultura, das nossas origens. E dentre os vários instrumentos, dois são principais: o rádio e a televisão. Precisamos forçar o governo a rever as concessões da rádio e televisão. Elas deveriam ser públicas, mas não o são. São privadas. Privadíssimas. São fábricas de fazer dinheiro. A sociedade não manda em nada. O movimento social deve exigir sua parte neste bolo. Para isso tem que tirar da boca de quem hoje abocanha tudo: Globo, Record, Bandeirantes, Grupo Sirotsky etc. Se querem disputar a hegemonia, é preciso usar estes meios que chegam mais perto do nosso povo. Um povo que não lê, mas que ouve. BF – Que dicas o senhor propõe para aqueles que querem se comunicar com as classes populares? Giannotti – Vou simplesmente repetir as idéias básicas do nosso coletivo de comunicação, o Núcleo Piratininga. Primeiro, não ter ilusões com a grande mídia. Ela tem dono. Tem lado. Tem classe. E defende os interesses de sua classe contra as classes populares. Não existe este papo de neutralidade, objetividade. É tudo ilusão. A mídia obedece aos seus donos e serve aos seus interesses. A conclusão disso é que os trabalhadores precisam ter sua própria mídia: do jornal ao rádio, da TV à internet. Ter e usar, se aperfeiçoando cada dia mais. Se especializar e fazer coisas melhores que nossos inimigos de classe. Melhores para disputar com eles a hegemonia na sociedade. BF – Em quem o senhor se referencia nos tantos livros e artigos que produz desde a década de 80 sobre o tema da linguagem? Giannotti – Os autores preferidos pela equipe do NPC no campo da linguagem são: Maria Otília Bocchini, Ângela Kleiman, Magda Soares, Maurízio Gnerre e Oton Garcia. Há uma série de estudos feitos na França, dentre os quais destacamos François Richaudeau, e outros na Espanha, Peru, Colômbia, muito importantes para moldar nossas idéias que estão no livro Muralhas da Linguagem. Além disso, há a contribuição para a pesquisa de milhares de alunos dos nossos cursos de comunicação pelo Brasil afora. Mas, principalmente, nossas reflexões são frutos de nossos muitos anos de militância política junto à classe trabalhadora.