Ano 2 • Número 91
R$ 2,00 São Paulo • De 25 de novembro a 1º de dezembro de 2004
Estado poderia ter evitado massacre P
istoleiros contratados pelo fazendeiro Adriano Chafik Luedy executaram cinco trabalhadores sem-terra e deixaram 20 feridos no acampamento Terra Prometida, dia 20 de novembro, em Felisburgo (MG). “Os trabalhadores foram mortos por omissão do poder público”, denuncia o procurador de Justiça Afonso Henrique de Miranda, que considera omisso o inquérito aberto pela Polícia Militar do Estado em 2003 para investigar as ameaças de Luedy aos acampados. Hoje, em Minas Gerais, 15 mil famílias sem-terra vivem em acampamentos. Ao mesmo tempo, um estudo recente mostrou que há 11 milhões de hectares de terras devolutas (pertencentes ao poder público), como a área do Terra Prometida. “O Estado não tem compromisso com a reforma agrária e coloca em risco a vida dos camponeses”, avalia Marcilene Ferreira, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Págs. 2 e 3
Renato Lopes/Estado de Minas
Procurador da Justiça denuncia: governo mineiro ignorou alertas sobre a atuação de milícias armadas na região
Conferência da Terra pede mais ação do governo Dez mil militantes de movimentos sociais se reuniram com integrantes do governo, em Brasília, de 22 a 25 de novembro, durante a Conferência Nacional de Terra e Água. Prometendo punição “exemplar” aos assassinos dos sem-terra de Felisburgo (MG), o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto defendeu a reforma agrária: “É necessário transformar a terra improdutiva em terra produtiva”. Porém, Rolf Hackbart, presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), avisou que a meta prevista deste ano não será cumprida e apenas 95 mil famílias serão assentadas. Representantes dos povos indígenas e dos atingidos por barragens exigiram do governo medidas eficazes para as demandas sociais. Pág. 5
Aumentam as prestações da dívida externa
Nova gestão de Bush fortalece extrema-direita
O Brasil levou anos para conseguir dos credores redução das prestações da dívida, para recuperar a capacidade de financiamento da economia. Mas a política econômica adotada a partir de 1994, ainda vigente, pode pôr tudo a perder, face a rombos gigantescos nas contas externas, e mais endividamento. Resultado: entre o segundo semestre de 2004 e o final de 2008, o país terá de torrar quase 140 bilhões de dólares para quitar as prestações. Pág. 7
O presidente estadunidense, George W. Bush, trocou seis dos quinze secretários de seu gabinete. Fortaleceu, assim, o núcleo da extrema-direita, chamado neoconservador, que defende a intensificação de intervenções militares em países estrangeiros e a violação a direitos humanos de pessoas suspeitas de ações contra os interesses do governo. Desde a reeleição, Bush intensificou os bombardeios a Faluja, centro da luta contra a ocupação do Iraque. Pág. 9
Reunidos em Teresina (PI), entre os dias 16 e 19 de novembro, cerca de 500 agricultores e integrantes de entidades não-governamentais defenderam uma revolução cultural para alterar o quadro de pobreza da população do semi-árido. Sem esquecer da reforma agrária, os participantes do 5º Enconasa acreditam que a concepção de estiagem como um problema é o pilar da indústria da seca. No encontro, foram apresentadas dezenas de tecnologias alternativas para a convivência com o clima da região. Pág. 13
Morre Furtado, defensor de um Brasil mais justo Dia 20 de novembro, mais uma grande perda para o país. Aos 84 anos, no Rio, morreu Celso Furtado, o maior economista brasileiro, que nunca separou produção intelectual e ação. Batalhou a vida inteira por um projeto de nação soberana que atendesse às necessidades da maioria da sociedade. Não morreu feliz com a situação de quase indigência do Brasil e da América Latina. Pág. 8
Protesto reúne 70 mil chilenos Na passeata de abertura do Fórum Social Chileno, dia 19 de novembro, 70 mil pessoas foram às ruas de Santiago, capital do Chile, protestar contra a presença de George W. Bush. O presidente dos Estados Unidos foi
participar do Fórum Econômico de Cooperação Ásia-Pacífico (Apec), organização da qual o Chile faz parte desde 1994 e que tem como objetivo impulsionar processos de liberalização do comércio e a circulação de capi-
tais entre os 21 países membros. Os manifestantes, recebidos com violência pela polícia ao final da marcha, repudiaram “a falta de transparência” da Apec e dos acordos econômicos em curso. Pág. 11
João Yanes
A seca não é um problema no semi-árido
Mil pessoas participaram do enterro dos cinco integrantes do MST, assassinados a tiros em Felisburgo (MG)
Espanha ajudou o golpe na Venezuela
Venezuelanos protestam contra ato terrorista da direita que matou o promotor Danilo Anderson
E mais: MANIFESTO – Como a política econômica não muda, mais uma vez economistas lançam manifesto por mudanças e apontam alternativas. Pág. 6 PLEBISCITO – A OAB encabeça abaixo-assinado pela aprovação do anteprojeto de lei que regulamenta consultas populares no Brasil. Pág. 4 DEBATE – O juiz Marcelo Semer e o professor Andrei Koerner analisam a reforma do Judiciário, aprovada, dia 18, no Senado. Pág. 14
Durante visita à Espanha, dia 23 de novembro, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, obteve a confirmação de que o ex-primeiro-ministro espanhol José María Aznar apoiou o golpe de Estado que tentou tirá-lo do poder, em abril de 2002. O ministro espanhol das Relações Exteriores, Miguel Ángel Moratinos, prometeu “que o fato não vai se repetir”. A revelação reacende o debate na Venezuela, onde, dia 19 de novembro, um atentado matou o promotor que investigava os envolvidos no golpe. Pág. 11
Lessa cai. Ganha força a política de juros altos Pág. 6
Festival de canções e lutas do campo Pág. 16
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De 25 de novembro a 1º de dezembro de 2004
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
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NOSSA OPINIÃO
Faluja, Gaza, Felisburgo
S
uprema ironia: Felisburgo, ao pé da letra, significa a cidade feliz. Fica no Vale do Jequitinhonha (MG), a 730 km de Belo Horizonte, uma das regiões mais pobres do país. Ali, no dia 20 de novembro, cinco trabalhadores rurais sem-terra foram assassinados e outros vinte feridos, inclusive uma criança de 12 anos, por quinze jagunços pagos pelo latifundiário e grileiro Adriano Shafic, agora foragido da Justiça. Eles ocupavam a Fazenda Nova Alegria, uma área devoluta, ilegalmente invadida por Shafic e pertencente ao Estado de Minas Gerais. Os assassinatos foram praticados um dia após o Tribunal de Justiça do Pará determinar, por unanimidade, a prisão do coronel Mário Pantoja e do major José Maria de Oliveira, comandantes da Polícia Militar responsáveis pela morte de 19 trabalhadores rurais sem-terra, em abril de 1996, em Eldorado dos Carajás. Mas o mesmo Tribunal assegurou, mais uma vez, a impunidade dos crimes cometidos contra os trabalhadores rurais, inocentando todos os policiais que praticaram aquele massacre. Enquanto prevalecerem os interesses do capital, certamente continuarão aumentando os assassinatos, as prisões e as ameaças aos trabalhadores. E se manterá a impunidade a esses crimes. Não é sem razão, como mostra o estudo Barbárie e modernidade, do professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira, que justamente nos últimos anos, quando o agronegócio foi alçado ao papel de “salvador da
economia nacional”, aumentaram os assassinatos de trabalhadores rurais, as ocorrências de trabalho escravo, os despejos de famílias sem-terra acampadas em locais provisórios e as prisões dos trabalhadores e trabalhadoras que lutam pela reforma agrária. O agronegócio, para garantir a riqueza e os privilégios de uma pequena minoria da população brasileira, promove o aumento da desigualdade social, deteriora o meio ambiente e amplia ainda mais a dependência do nosso país dos países ricos. Para impor essa política, o “moderno” agronegócio não hesita em recorrer às praticas criminosas dos coronéis do latifúndio, dos senhores de engenhos, dos donatários das sesmarias e dos escravocratas. Enquanto persistir a atual estrutura fundiária, altamente concentrada, não existirá burguesia moderna na agricultura brasileira. E, ontem como hoje, a oligarquia rural, moderna ou atrasada, conta sempre com o apoio de autoridades governamentais e de setores da intelectualidade brasileira que usam um linguajar rebuscado para esconder o quanto são serviçais e submissos aos que monopolizam as terras em nosso país. Mas toda ação criminosa contra os que lutam por justiça, igualdade e soberania gera a solidariedade de todos os que sofrem as mesmas injustiças e almejam os mesmo sonhos, em qualquer parte do mundo. A bela mensagem, enviada por Sergio Yahni, do Alternative
Information Center (AIC, Centro de Informação Alternativo), formado por um grupo de israelenses e palestinos que trabalham conjuntamente por uma paz justa no Oriente Médio, é uma demonstração dessa solidariedade viva e atuante: “Vivemos em uma era em que as instituições financeiras internacionais garantem a impunidade ao arbítrio. Assassinar trabalhadores rurais já não é crime, num mundo em que os únicos valores que contam são aqueles registrados pela Bolsa de Nova York. Os que dominam o mundo por meio do terror, da fome e do medo declararam terroristas aos que defendem os seus direitos de existir. Neste mundo, o único crime que se castiga é o de ser pobre. Pior ainda que ser pobre é sê-lo com dignidade – este é um crime que se castiga com a pena de morte em Faluja, em Gaza e em Felisburgo. (...) Em nome de nossos companheiros palestinos e israelenses, transmito nossas mais sinceras condolências”. Em Faluja, em Gaza e em Felisburgo nossos interesses são os mesmos, como são as mesmas as nossas esperanças. É preciso, mais do que nunca, que o luto pelas vítimas de Faluja, Gaza e Felisburgo assuma as cores vibrantes do combate por uma existência digna, construída nos valores da solidariedade, justiça social e soberania de todos os povos. Apenas assim saberemos honrar a memória dos que se foram.
FALA ZÉ – Consciência Negra
OHI
CARTAS DOS LEITORES VEJA Resposta ao artigo “A revolução no escuro, por José Eduardo Barella”: Nós, estudantes do projeto Escuela Latinoamericana de Medicina, que vivemos na grande e calorosa ilha vermelha, temos algumas considerações a respeito das informações publicadas na revista Veja, de 13 de outubro, onde se relata o colapso do sistema de energia elétrica pelo qual o país passa. O artigo não expressa a compreensão histórica que Cuba passou com o triunfo da revolução em 1959, e desmerece propositalmente os avanços sociais conquistados pelo povo, que nestes 45 anos vem sofrendo uma dura e cruel agressão do imperialismo estadunidense. Por meio de medidas fascistas, os EUA tentam derrubar o país que tem como bandeira a igualdade social e a melhoria de vida para todos. Fulgêncio Batista (que teve seu governo financiado pelos EUA) fez o país como “colônia” do mesmo. Afirmar que Batista expandiu o sistema educacional e promoveu um grande progresso de obras públicas que resultaram no crescimento econômico da “colônia” fere a inteligência deste sofrido povo. A revista que cultiva a exploração do homem pelo homem, sempre tendo como objetivo o lucro, não poderia ter feito diferente com essa reportagem, pegando duas pessoas cubanas que são contra o sistema que a maioria do povo defende. Escrevemos com o intuito de esclarecer ao povo brasileiro o que é viver neste país que sofre pela mídia capitalista falsas versões do que é a sociedade. Vivemos em um grande capital humano que é Cuba, e desejamos levar para o nosso Brasil esse tipo de capital. Clotilde Flexa (AP) e João Ricardo Massena RS
LESSA A saída do economista Carlos Lessa da presidência do BNDES é motivo de preocupação para a sociedade brasileira. Economista renomado, nacionalista, durante a sua gestão o banco não foi alvo de nenhum escândalo. Isso é raro na existência do banco. Só para se ter idéia de sua má fama, o banco é conhecido como o “Triângulo das Bermudas” – local onde sumia grande parte do dinheiro público brasileiro. Dizer que o banco este ano só liberou cerca de 60% das verbas disponíveis, ou que Lessa não cumpriu o orçamento, mostra o lado zeloso e preocupado do presidente em frear aqueles que sempre usaram o BNDES como tetas do Estado. Lessa contrariou muitos interesses, sem papas na língua: não perdia oportunidade de criticar a política do Banco Central, em especial a de juros, que chamava de “pesadelo”. Lessa integrava a ala desenvolvimentista do governo, contrária aos monetaristas, liderada por Palocci. Ora, o vice-presidente, José Alencar, faz o mesmo, critica a política de juros de Palocci. Mas Alencar não pode ser demitido. Lessa, além de competente, falava, e falava bem. Acho que só os bancos e Palocci defendem a atual política de juros. Guido Mantega, aliado de Palocci, sai de titular do Ministério do Planejamento e assume o lugar de Lessa. Mantega, em discurso de posse, elogiou a gestão de Lessa e, em tom de crítica, falou em dar maior agilidade aos empréstimos do banco. Esperamos que Mantega tenha o mesmo zelo de Lessa e que o BNDES não volte a ser o “Triângulo das Bermudas”! Emanuel Cancella Rio de Janeiro (RJ)
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CRÔNICA
Reencontro com a negritude Marcelo Barros Cada ano, crescem no Brasil as comemorações da Semana de União e Consciência Negra. A superação de qualquer tipo de racismo e discriminação liberta toda a sociedade e não só as vítimas diretamente atingidas por esses crimes. Por isso, Zumbi dos Palmares, que deu a vida pela liberdade dos escravos no 20 de novembro de 1695, não é herói apenas dos negros e sim de todo o povo brasileiro que luta para que o Brasil se reencontre com sua alma afro-descendente e assuma o fato de ser a pátria da maior população negra do mundo. A realidade social brasileira continua injusta e discriminadora. A lei proíbe o racismo, mas mantém estruturas sociais e econômicas que o alimentam. O Brasil branco é 2,5 vezes mais rico que o Brasil negro.
Cerca de 34% da população brasileira vive em condições de pobreza e 14% em situação de indigência. Entre esses indigentes, 64% são negros. Enquanto essa realidade não for transformada, a lei que proíbe o racismo continuará desrespeitada. Desde a Conferência da ONU contra o racismo em Durban (África do Sul, 1991), cresce internacionalmente a idéia de exigir “indenização para os negros pelos anos de escravidão” e de formular “uma política de reparação pelas injustiças sofridas”. Mesmo se esse debate esteja ainda incipiente, começa a interessar a toda a humanidade. Tudo o que pode favorecer a superação de preconceitos e discriminações deve ser apoiado para que construamos relações novas e justas. No Brasil, a atual política de cotas em escolas ou em trabalhos públicos tem defeitos
e não atinge a raiz dos problemas, mas, provisoriamente, pode ajudar a que as pessoas afro-descendentes e indígenas tenham mais condições de acesso à sociedade na qual sempre foram discriminadas. Evidentemente, não basta a necessária indenização econômica. Há uma dívida moral das igrejas com relação às culturas e religiões negras e indígenas. Ninguém pode, em nome do Evangelho, condenar ou discriminar as religiões afrodescendentes. Quem diz crer em Deus amor se compromete a lutar contra todas as formas de exclusão, como defender a vida e a liberdade de todas as pessoas e culturas. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 24 livros, entre os quais o romance A Festa do Pastor, da Editora Rede
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De 25 de novembro a 1º de dezembro de 2004
NACIONAL VIOLÊNCIA NO CAMPO
Massacre anunciado deixa 5 mortos Procurador diz que poder público deve ser responsabilizado por não investigar denúncias contra fazendeiro Remetente: Ministério Público do Estado de Minas Gerais
Jorge Pereira Filho da Redação
Data: 14 de outubro de 2004
O
filho da trabalhadora semterra Edilene, grávida de seis meses, ainda não nasceu, mas já está condenado a conviver com a dor da impunidade no campo brasileiro. No dia 20, ao meio-dia, 18 pistoleiros contratados pelo fazendeiro Adriano Chafik Luedy executaram a sangue frio seu pai, Iraguiar Ferreira da Silva, seu avô, Joaquim José dos Santos, e seu tio, Miguel José dos Santos. Os assassinos também tiraram a vida de mais dois amigos de seu pai: os trabalhadores Juvenal Jorge da Silva e Francisco Nascimento Rocha. No mesmo atentado, mais de vinte pessoas ficaram feridas, entre elas uma criança de 12 anos. Não satisfeito, o bando ateou fogo aos barracos e expulsou as cem famílias do acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Terra Prometida, em Felisburgo, região do Vale do Jequitinhonha, uma das mais pobres de Minas Gerais. Engana-se quem pensa que essa tragédia foi uma surpresa na delegacia do município de Jequitinhonha, responsável pela apuração dos crimes na região. A polícia local estava muito bem informada a respeito das insistentes ameaças que as famílias sem-terra sofriam há mais de dois anos. Luedy, entretanto, se sentia tão à vontade diante do poder policial que não deixou de intimidar os trabalhadores mesmo após ter sido aberto um inquérito para apurar indícios de que organizava uma milícia armada.
MASSACRE ANUNCIADO “Os trabalhadores foram mortos por omissão do poder público”, denuncia o procurador de Justiça Afonso Henrique de Miranda, coordenador do Centro de Apoio Operacional de Conflitos Agrário do Ministério Público de Minas Gerais. Miranda foi um dos pri-
Endereçado a: Sérgio da Silva, delegado regional Solicitação: “Encaminhamos a V.Sa. o expediente de teor auto-explicativo anexo, no qual trabalhadores rurais que ocupam a Fazenda Nova Alegria, no município de Felisburgo, voltam a noticiar diversos ilícitos que continuam a ser perpetrados contra os acampados, pelo que solicitamos a essa unidade da Polícia Civil que intensifique as medidas pertinentes, (...) no sentido de evitar previsíveis e graves conseqüências.” Assinatura: Afonso Henrique de Miranda Teixeira
meiros a receber um documento encaminhado pelos sem-terra e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) aos órgãos públicos, em 2002, relatando as ameaças de Luedy contra os trabalhadores. Em função desses alertas, um inquérito foi aberto na delegacia de Jequitinhonha. “Por diversas vezes, eu fiz ofícios solicitando informações sobre o inquérito e pedindo que a polícia agilizasse o processo”, relata Miranda. O procurador repassou uma cópia de um desses ofícios com exclusividade ao Brasil de Fato. Porém, a polícia não ouviu os alertas dos trabalhadores. Segundo o procurador, as investigações só prosseguiam quando havia pressão externa. Para ele, o assassinato dos cinco trabalhadores é a comprovação da negligência. “O inquérito foi falho. Se tivesse sido feito com rigorosidade, os assassinatos não teriam ocorrido. A quadrilha já estava toda identificada e cabia até um pedido de prisão provisória, mas nada disso foi feito”, explica o procurador, acres-
centando que vai recomendar às famílias das vítimas que ingressem com ação na Justiça para responsabilizar o Estado pelos assassinatos.
IMPUNIDADE “O governo de Aécio Neves tem total responsabilidade pelo massacre”, avalia Marcilene Ferreira, agente pastoral da CPT, que encaminhou a denúncia para os órgãos públicos. A chacina não foi a primeira ação armada comandada pelo fazendeiro. Em pelo menos duas outras ocasiões, os pistoleiros atiraram em barracos para os sem-terra deixarem a área. “Nós chamávamos a polícia, que vinha até o local e eles iam embora. Mas algumas horas depois os pistoleiros voltavam”, conta o acampado Paulo Paixão. Segundo ele, em uma dessas oportunidades, os sem-terra capturaram dois cavalos carregados de munição. “Entregamos tudo para a polícia. Para nossa surpresa, alguns dias depois os cavalos haviam sido devolvidos para os pistoleiros”, lembra Paixão.
Remetente: Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais Data: 24 de setembro de 2002 Ementa: Ameaça de pistoleiros a sem-terra do acampamento Terra Prometida, em Felisburgo (MG) Endereçado a: Instituto de Terras de Minas Gerais (Iter) e Secretaria de Segurança Pública de Minas Gerais (hoje, Secretaria de Defesa Social) Denúncia: “Os pistoleiros armados se encontram no acampamento desde ontem, 23 de setembro de 2002. Hoje, pela manhã, os sem-terra que iam trabalhar foram ameaçados pelos pistoleiros que disseram: “Aqui vocês não passam, não dê um passo para a frente, não estamos de brincadeira. Somos 30, aqui estão 8...” Observação: “Queremos que seja investigada a participação do fazendeiro Adriano Muedy, suspeito pela contratação dos pistoleiros.” Assinatura: Marcilene Aparecida Ferreira
Marcilene garante que essa situação era de conhecimento geral na região de Felisburgo, um dos locais onde há mais atuação de jagunços. A CPT já fez diversas denúncias sobre a ação de milícias armadas em Minas Gerais, organizadas por articulações como a União de Defesa da Propriedade (UDP). “O massacre poderia ter sido evitado. Por isso, estamos mais revoltados ainda. O Estado não tem compromisso com a reforma agrária e não age de forma efetiva quando recebe uma denúncia, colocando em risco a vida dos camponeses”, diz Marcilene (veja reportagem abaixo). Luedy só comandou o massacre de semterra porque se sentiu protegido. “Já havia inquérito em andamento e nenhuma providência foi tomada. Essas pessoas não acreditam que o poder público vai agir contra os poderosos”, avalia o procurador Afonso Miranda.
ESPERANÇA Os trabalhadores sem-terra e as organizações progressistas do cam-
po prometem não deixar o caso virar mais um exemplo de impunidade. Em solidariedade, outros acampados do MST bloquearam três rodovias, em Minas Gerais. “Exigimos punição imediata dos responsáveis e caso isso não ocorra vamos fazer mais mobilizações”, promete Ademar Ludwig, da direção estadual do MST. Os trabalhadores tentam marcar uma reunião com o governador Aécio Neves (PSDB). Enquanto isso, as famílias expulsas pelos pistoleiros estão retornando ao acampamento. “Nós vamos levantar nossas barracas de novo. Há um sentimento muito grande de revolta e indignação com o que ocorreu”, conta Paixão. Até o fechamento desta edição, dia 23, quatro pistoleiros tinham sido presos e a polícia mineira procurava o fazendeiro e seu primo, acusados de serem mandantes do crime. A Secretaria do Estado de Defesa Social e Segurança Pública não quis comentar as críticas à condução do inquérito policial. (Colaborou João Peschanski).
Descaso com a reforma agrária O massacre dos trabalhadores do acampamento de Terra Prometida não foi uma exceção, mas o ápice de uma situação de impunidade e descaso com a reforma agrária. Estima-se que o Estado de Minas Gerais tenha 500 mil famílias sem terras. Dessas, cerca de 15 mil vivem, hoje, em acampamentos, a metade organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Um estudo da Universidade Federal de Ouro Preto apontou que existem, no Estado, 11 milhões de hectares de terras devolutas. Mas se há áreas públicas e agricultores sem-terra, por que a reforma agrária não sai? “Minas Gerais tem grande potencial de assentamentos, mas o governo do Estado não age com rapidez para arrecadar as áreas devolutas e a Justiça é lenta para julgar os processos”, analisa Ademar Ludwig, da direção estadual do MST. A morosidade do poder judiciário aumenta o drama das famílias
sem-terra. Na Fazenda Ponte Nova, em Betim, por exemplo, 60 famílias estão acampadas desde 1999 a espera de uma decisão judicial. Nessa área, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) fez a vistoria e considerou o terreno apropriado para se viabilizar um assentamento. Depois, o então presidente Fernando Henrique Cardoso deu um decreto autorizando a desapropriação e o caso seguiu para o poder judiciário. Há cinco anos, o juiz pegou o processo e até o momento não deu continuidade. “Há uma conivência da Justiça para não liberar esses processos”, diz Ludwig. Marcos Helênio Pena, superintendente do Incra em Minas Gerais, concorda com as avaliações. “O processo de reforma agrária é lento porque há entraves no campo administrativo. O poder judiciário é conservador, por isso é preciso criar varas agrárias. No legislativo, tudo favorece os fazendeiros”, afirma Pena. (JPF e JP)
REPERCUSSÃO
Entidades denunciam omissão à ONU Em carta para Asma Jahangir, do Centro de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), com data de 22 de novembro, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Terra de Direitos e o Centro de Justiça Global condenaram a omissão do governo estadual na investigação das denúncias contra a ação de milícias em Felisburgo (MG), onde foram assassinados cinco trabalhadores rurais, dia 20. Leia abaixo principais trechos da carta. “Em 20 de novembro, as cerca de 200 famílias de trabalhadores sem-terra, do acampamento Terra
Prometida, em Felisburgo (MG), no local desde 1º de maio de 2002, foram atacadas por um grupo de cerca de 18 pistoleiros, coordenados por Adriano Chafik Luedy e seu primo. A CPT e o MST vêm denunciando as ameaças sofridas pelos trabalhadores há mais de dois anos. Em 24 de setembro de 2002, a CPT encaminhou ofício a diversos órgãos públicos, como o Instituto de Terras de Minas Gerais (Iter) e à Secretaria Estadual de Segurança Pública, denunciando que pistoleiros estavam ameaçando as famílias acampadas na fazenda. Porém, apesar de todos os pedidos, a omissão dos poderes
públicos e a morosidade das investigações acabaram permitindo o massacre. Esse crime, absolutamente inaceitável, revela que a lentidão do projeto de reforma agrária no Brasil tem causado um clima de terror no campo. O MST, a CPT, a Terra de Direitos e o Centro de Justiça Global estão extremamente preocupados com o clima de violência e terror no campo, bem como com a impotência ou relutância das autoridades em contê-las, e temendo que mais uma vez prevaleça a falta de apuração dos fatos, vêm comunicar V. Exa. das execuções sumárias ocorridas no Estado de Minas Gerais, Brasil”.
A longa história de impunidade para os que cometem violações a direitos humanos e outros atos de violência contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e outras organizações rurais é uma das causas dos assassinatos do dia 20 de novembro. Condenamos o ataque e exigimos que as autoridades investiguem imediatamente, levando os responsáveis para julgamento. Anistia Internacional, em nota oficial O novo sangue derramado dos nossos irmãos da Terra Prometida clama ao Céu e clama às autoridades estaduais e federais. Cada vez mais a demora na reforma agrária está se tornando
cúmplice. Não podemos permitir que mais este sangue fique infecundo. Dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia (MT) Em hipótese alguma haverá impunidade. Um crime bárbaro, uma violência inaceitável. Estamos falando de cidadãos brasileiros que estavam acampados, com autorização judicial e que foram brutalmente agredidos. Todo o acompanhamento será feito de tal forma que nós possamos, em um prazo muito rápido, identificar e responsabilizar os criminosos. Miguel Rossetto, ministro do Desenvolvimento Agrário
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De 25 de novembro a 1º de dezembro de 2004
Mais cinema para os ricos Agência Nacional do Cinema (Ancine) está disponibilizando dinheiro público para a construção de novas salas de cinema em São Paulo, Belo Horizonte e Distrito Federal. O recurso entra como “incentivo fiscal”. O valor total ultrapassa R$ 20 milhões. Em Brasília, nos finais de semana, uma sessão de cinema custa R$ 14. As novas salas custeadas com dinheiro público não oferecerão cinema mais barato. Isto é, nada mudou. Aleida Guevara na TV Comunitária Dia 23 de novembro, a médica pediatra cubana Aleida Guevara, filha de Che Guevara, deu entrevista para a TV Comunitária do Distrito Federal. Cópias dessa entrevista podem ser solicitadas pelo telefone (61) 343-2251 ou (61) 344-5626. Bomba atômica no Irã Os Estados Unidos precisam justificar suas invasões a Estados soberanos. Para tanto, contam com uma imprensa cúmplice de sua política nazista, que difunde a existência de perigosos grupos terroristas instalados em todo o planeta, e em especial em nações como Afeganistão, Iraque, Irã, Brasil, Cuba, Argentina... Por isso a manchete do Correio Braziliense (18/11): “Irã teria instalações secretas” (para produzir bombas atômicas). É apenas uma amostra de como a imprensa prepara a população para um futuro ataque dos EUA ao Irã. Segundos que valem milhões A TV Globo quer vender o último anúncio de 2004 e o primeiro de 2005. São só 30 segundos cada um, mais os dois juntos estão sendo oferecidos por R$ 2,2 milhões. Quem se habilita a botar mais dinheiro no bolso dos Marinho? Projetos hibernam Na Câmara e Senado tramitam 43 projetos de lei modificando a legislação das rádios comunitárias. Desse total, 18 fazem a lei pior ainda do que já é; 17 melhoram a legislação; 8 deles misturam propostas boas com ruins. Todos esses projetos, porém, estão hibernando na Comissão de Comunicação da Câmara, no colo dos deputados donos de emissoras comerciais ou representante delas. Tempo do consumo O mercado está de olho no 13º salário do trabalhador. Daí essa campanha para que todos entrem no ritmo frenético de compra de presentes. Apela-se para o sentimento, para o coração, para o cristianismo, mas o único objetivo do mercado e seus aliados é somente pegar o dinheiro do trabalhador. Calúnia no Zero Hora I Em artigo publicado no jornal Zero Hora (16/11), do Rio Grande do Sul, a colunista Ana Amélia Lemos diz que o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) matou “a tiro um pobre operário que ia para o canteiro de obras de uma hidroelétrica, na divisa entre o RS e SC”. A criminosa é ela, porque faz uma calúnia, um péssimo exemplo de jornalismo. Calúnia no Zero Hora II Não existe nada provando que o tiro que matou o operário foi dado por alguém do MAB. Quem insinuou (e somente insinuou para não ser acusado de caluniador) isso foi o Consórcio Baesa. O Consórcio é o construtor da hidrelétrica que está inundando 400 hectares de Mata Atlântica na região. Ele forjou um estudo de impacto ambiental que omite a presença da Mata. Ana Amélia Lemos saiu em defesa do consórcio com calúnias. Se o MAB entrar na Justiça, ganha com certeza.
Plebiscito convocado pelo povo Anteprojeto de lei permite maior participação popular na convocação de plebiscitos Dafne Melo da Redação
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om o objetivo de intensificar a participação popular nas decisões políticas do país, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) lançou, dia 15 de novembro, uma campanha nacional pela mudança na lei que regulamenta as consultas populares brasileiras, como o referendo e o plebiscito. Roberto Busato, presidente nacional da entidade, encabeçou um abaixo-assinado pela aprovação do anteprojeto de lei escrito pelo jurista Fábio Konder Comparato, que prevê mais poder à iniciativa popular para a realização de plebiscitos e referendos. A campanha tem o apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entre outras entidades. Previstos pelo artigo 14 da Constituição Federal, esses instrumentos estão regulamentados pela Lei 9.709/1998, que, segundo Comparato, dificulta a iniciativa popular e centraliza as decisões no Congresso Nacional, uma vez que
Plebiscitos como o sobre a adesão à Alca, em 2002, podem ser oficiais
somente o Congresso tem o poder de convocar essas consultas. “Comecei a escrever o anteprojeto há seis meses, quando me convenci de que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva continuaria nos dando mais do mesmo, sem perspectiva de mudança. É necessário colocar a sociedade civil no centro das decisões”, acredita o jurista.
No lançamento da campanha, no Rio de Janeiro, Busato reforçou a necessidade da participação popular: “A idéia é propiciar meios para uma cidadania ativa, fazendo com que o cidadão brasileiro venha a participar cada vez mais da vida política e institucional”. De acordo com anteprojeto, para se convocar um plebiscito ou
referendo, será necessário obter o apoio de um terço dos membros de cada Casa do Congresso Nacional. No caso da iniciativa popular, deverão ser recolhidas assinaturas de, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, em pelo menos cinco Estados. Uma vez dirigida ao presidente do Congresso Nacional, sua subscrição deverá ser aceita. O texto também define a obrigatoriedade de convocação de plebiscito em questões relacionadas à soberania nacional, como alienação de recursos da nação, controle de empresas estatais e mudanças na legislação eleitoral. Por meio do referendo, o povo poderá rejeitar ou aceitar emendas constitucionais, leis, acordos, pactos, convenções, tratados ou protocolos internacionais de qualquer natureza, o que incluiria tratados de livre comércio, como a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Para Comparato, outras questões fundamentais para o desenvolvimento do país, como a reforma agrária, poderão ser votadas pelo povo por esse processo.
SOBERANIA ALIMENTAR
Movimentos enfrentam ruralistas Tatiana Merlino da Redação A batalha contra os transgênicos continua. Desde que a comissão especial da Câmara encarregada de analisar as questões relativas ao projeto que cria a Lei de Biossegurança decidiu adotar o texto aprovado no Senado, em detrimento do aprovado anteriormente pela própria Câmara, os movimentos sociais e as entidades da sociedade civil que atuam em defesa do meio ambiente tentam reconquistar o apoio do Planalto e vencer a briga contra as bancadas ruralistas e do agronegócio. Maioria na comissão especial da Câmara, os deputados ruralistas decidiram, dia 10 de novembro, destituir o deputado Renildo Calheiros (PCdo B-PE) da relatoria do projeto e substituí-lo pelo deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS), conhecido por ser defensor do plantio da soja transgênica. Considerada por muitos um golpe da bancada ruralista, a destituição de Calheiros preocupa as entidades. De acordo com José Sarney Filho, deputado federal (PV-MA), um dos participantes do seminário “Transgênicos: aprofundar o debate para votação em plenário”, que aconteceu dia 23 de novembro em Brasília, os movimentos sociais têm condições de sensibizar o governo. Segundo ele, o apoio do governo vai ser fundamental, já que o segmento ambientalista é minoritário na Câmara. “Se não tivermos o apoio da sociedade e do governo certamente mais uma vez nós seremos derrotados”, disse Sarney Filho.
DIFERENÇA BRUTAL A principal diferença entre os dois projetos é que o texto aprovado no Senado, e agora adotado na Câmara, dá amplos poderes à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) – que sofre forte influencia da indústria da biotecnologia – para decidir sobre pesquisa, produção e comercialização dos transgênicos. O texto de Calheiros, quase idêntico ao do projeto elaborado pelo próprio Ministério do Meio Ambiente e enviado ao Planalto, defende o princípio de precaução e dá a palavra final sobre a liberação comercial dos transgênicos para o recém-criado Conselho Nacional de Biossegurança. Para Marijane Lisboa, secretária de Qualidade Ambiental do Minis-
Produtor mostra sacas de sementes de soja modificadas, no Rio Grande do Sul
tério do Meio Ambiente (MMA), o projeto de Perondi “dá mais poderes à CTNBio do que ao presidente da República”. Ela ressalta que a Comissão é composta por especialistas em biotecnologia, e não em biossegurança. “Há uma grande diferença. Como um grupinho de cientistas pode decidir no lugar de dois ministérios, que têm mais de
duas mil pessoas concursadas?”, questiona.
DESTITUIÇÃO O deputado Renildo Calheiros foi destituído da relatoria porque contrariou o regime de urgência que a comissão especial queria dar à discussão e pediu mais duas semanas para debater o projeto.
Seu pedido não foi acatado, e em seguida o presidente da comissão indicou um substituto. Segundo o deputado José Sarney Filho, ainda havia tempo para se discutir e ouvir a sociedade. “O que ficou claro foi mais uma vez a precipitação de segmentos preocupados com o fato consumado”, avaliou. Aos defensores do meio ambiente, resta tentar reverter a situação durante a votação em plenário. Segundo o economista Jean Marc Von der Weid, da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (ASPTA), ainda há uma briga a ser travada. Para ele, tudo depende de uma postura mais firme do governo, que, até agora, na média, tem posições “muito ruins”. Mesmo assim, Von der Weid afirma que os movimentos não podem desistir: “Nós vamos continuar brigando por muito, muito tempo”. Segundo o deputado João Alfredo (PT-CE), integrante das Comissões de Meio Ambiente e de Biossegurança da Câmara, a bancada petista decidiu lutar pela retomada do projeto de Calheiros: “Só vamos conseguir mudar alguma coisa com pressão social, cobrando do governo, e resistindo em plenário”. (Colaboraram Dioclécio Luz e Laura Muradi, de Brasília)
AFRO-DESCENDENTES
Campanha por inclusão social e étnica da Redação Uma mobilização para sensibilizar dirigentes de instituições públicas e privadas e a opinião pública em geral, para a adoção de políticas de inclusão social e de diversidade. Esse é o objetivo da Campanha da Diversidade, lançada no Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de novembro. A iniciativa é do Movimento pela Diversidade em parceria com o governo federal, representado pela Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (Seppir). Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil a taxa de desemprego entre negros é maior que entre os brancos. Entre os trabalhadores empregados, os brancos recebem em média o dobro do salário dos negros. A renda salarial média de uma pessoa de pele branca é de R$ 1.176, enquanto a do negro chega a R$ 560.
Alex Silva/AE
Dioclécio Luz
PARTICIPAÇÃO
Divulgação
da mídia
NACIONAL
Jefferson Bernardes/Folha Imagem
Espelho
Entidades realizam protesto na Avenida Paulista, em São Paulo
Na região metropolitana de São Paulo, por exemplo, a taxa de desemprego entre negros é de 18,4%, enquanto entre os brancos o índice chega a 13,1%. A região concentra o maior número absoluto de negros entre a população ativa, sendo cerca de 2,9 milhões de pessoas. O foco da campanha será direcionado ao combate à exclusão
étnica, racial e social, melhorando as condições e oportunidades de ingresso de grupos socialmente discriminados, em especial negros e índios. A Secretaria pretende conseguir adesão voluntária de artistas, intelectuais, empresários e formadores de opinião à campanha. (Rede Solidária, www.risolidaria.org)
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De 25 de novembro a 1º de dezembro de 2004
NACIONAL TERRA
Conferência cobra avanços do governo “C
erca de 70% de nosso planeta é composto por água. A outra parte é composta por terra. Uma Conferência que reúna esses dois assuntos e que mostre a força do povo tem uma importância muito grande”. Com essas palavras, o teólogo Leonardo Boff iniciou seu pronunciamento na Conferência Nacional Terra e Água, da qual participaram 10 mil pessoas, integrantes de movimentos sociais e do governo. A Conferência, realizada de 22 a 25 de novembro, em Brasília (DF), é uma proposta do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo, que congrega 44 organizações. Na abertura, um minuto de silêncio homenageou a memória dos cinco trabalhadores rurais semterra assassinados em Felizburgo, Minas Gerais, dia 20 de novembro. O ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, considerou a chacina “um crime bárbaro, uma violência inaceitável” e prometeu punição exemplar aos culpados. “É necessário transformar a terra improdutiva em terra produtiva. A terra sem gente, em terra com gente. Não há desenvolvimento sustentável sem acesso à terra e sem água de qualidade”, ressaltou o ministro.
REFORMA AGRÁRIA Aleida Guevara, médica cubana filha de Ernesto Che Guevara, lembrou a importância da união entre os países latino-americanos para combater a exclusão social: “Vou falar aqui em espanhol, mas na verdade deveria estar falando alguma língua indígena, língua materna de nossos povos”. Boff reforçou: “Temos que nos unir para lutar por uma outra globalização. Nos chamaram de Jeca Tatu e de João Ninguém, mas este povo que está aqui é que resiste há 500 anos. E o presidente Lula é como nós, passou fome também. Não acredito que ele tenha esquecido seus ideais.
Representantes dos principais movimentos sociais do país mostram que há outra saída à política neoliberal implementada pelo governo Lula. Ao lado, cerimônia de abertura
Por isso é importante cercá-lo, para que ele seja fiel a suas raízes.” Lula foi objeto de muitas discussões nos dois primeiros dias da Conferência, mas cancelou sua participação no evento. “Quem faz a reforma agrária não é apenas o Incra, é a sociedade brasileira. Para que se cumpra a reforma agrária precisamos de maior parceria entre os trabalhadores rurais organizados”, disse Rolf Hackbart, presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), pedindo a união de todos os movimentos sociais do campo para estabelecer pautas comuns. Hackbart apontou avanços
RAPOSA SERRA DO SOL
Latifundiários tentam assassinar indígena André Vasconcelos e Cristiano Navarro de Brasília (DF) O indígena macuxi Jocivaldo Constantino foi baleado na manhã do dia 23 de novembro, na aldeia Jawari, terra indígena Raposa Serra do Sol. A comunidade foi invadida por rizicultores, fazendeiros e índios por eles cooptados, que derrubaram e tocaram fogo nas casas, destruíram as plantações, mataram criações e fecharam as estradas de acesso à região. A ação criminosa foi um recado ao ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos – naquele dia em visita a Roraima – de que a classe latifundiária do Estado não aceita a homologação de Raposa Serra do Sol e para isso está disposta a usar inclusive a violência. O tuxaua da comunidade Jawari, Júnio Constantino, irmão da vítima, informou ao Conselho Indígena de Roraima que, às seis horas da manhã do dia 23, cerca de 40 pessoas invadiram a comunidade atirando para todos os lados. Jocivaldo foi atingido por dois tiros, um na cabeça e outro o braço. Segundo o tuxaua, depois de baleado, seu irmão ainda foi espancado pelos jagunços. Os disparos, de acordo com o líder indígena, foram feitos de dentro de um carro reconhecido como de propriedade do rizicultor Paulo César Quartiero, maior latifundiário da
região e prefeito eleito do município de Pacaraima. Entre os que participaram do ataque, Constantino reconheceu, além de César, Ivo Barelli e Ivalcir Centenário, e o posseiro conhecido por Curica. O grupo derrubou, com tratores, 10 casas de alvenaria e ateou fogo a 13 casas com cobertura de palha. As pessoas, 35 adultos e crianças, foram proibidas de retirar das casas objetos pessoais ou alimentos. Em seguida, foram destruídas as roças da comunidade e as criações de pequeno porte. Ao constatar que o indígena estava sagrando muito, o rizicultor Quartiero ordenou aos jagunços que parassem de espancá-lo. Os agressores levaram Jocivaldo ao Posto da Fundação Nacional do Índio em São Marcos. Depois Constantino foi atendido no hospital de Pacaraima e conduzido a Boa Vista, onde está internado na Unidade de Trauma do Pronto Socorro da capital. Esse e outros atos violentos são conseqüências da demora na homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Desde junho, as autoridades brasileiras foram alertadas para a iminência de conflito na terra indígena, mas nada foi feito para evitar a tensão. Em outubro, o Supremo Tribunal Federal suspendeu liminares que davam reintegração de posse aos rizicultores.
depois recebemos uma suplementação de mais R$ 625 milhões. Mas já gastamos tudo para obtenção de terras”, afirmou Hackbart. O presidente do Incra acredita que a meta de 115 mil famílias assentadas, este ano, não será cumprida: “Até o final do ano, podemos chegar em 95 mil famílias. Mas estou muito mais preocupado com a meta dos quatro anos de governo, que é de 400 mil”.
nas relações estabelecidas com os diversos movimentos, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB): “Conseguimos uma portaria que possibilita os assentamentos dos atingidos por grandes barragens”. Porém, para este ano, os recursos já estão esgotados. “Iniciamos com R$ 400 milhões e
POVOS INDÍGENAS Saulo Ferreira Feitosa, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), disse que 237 povos indíge-
nas lutam hoje por seus territórios. Feitosa criticou o governo Lula e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso por não terem homologado a reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima: “Há 30 anos buscamos a homologação dessa terra. Embora tenha sido demarcada pelo governo passado, o presidente hesitou em homologá-la por pressão de políticos e plantadores de arroz de Roraima”. A ministra de Minas e Energia Dilma Roussef também participou da Conferência e defendeu o governo. Segundo ela, “no governo anterior, a área de energia elétrica privilegiava o mercado, não tinha a visão de energia como serviço público”. Para a ministra, “antes não tínhamos olhos e ouvidos para exercer a função de governo. Foi necessário um planejamento energético”. Esse planejamento, para Dilma, também passa pela discussão entre a escolha de fontes energéticas que geram menos impacto ambiental. Porém, a ministra não convenceu Marco Antonio Trierveiler, da direção nacional do MAB: “Esse modelo de energia não está a serviço de um projeto de país soberano, mas a serviço da economia”. Durante a Conferência, a política econômica foi identificada como um dos grandes problemas do país. Segundo João Paulo Rodrigues, do Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, os movimentos sociais estão insatisfeitos com o ministro da Economia, Antônio Palocci: “Queremos a demissão dele”. Dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra, disse que tem confiança na marcha por um Brasil que é digno de seus filhos e filhas: “Espero sair daqui com a certeza que a reforma agrária virá”.
Mantidas condenações de Carajás Jorge Pereira Filho da Redação
Divulgação
Maíra Kubik Mano de Brasília (DF)
Fotos: Douglas Mansur
Dez mil pessoas participam de encontro que discute políticas públicas e reúne reivindicações de movimentos sociais
O Tribunal de Justiça do Estado (TJE) do Pará manteve a decisão do julgamento realizado em 2002, que absolveu 145 oficiais, mas condenou o coronel Mario Pantoja e o capitão Raimundo Lameira pelo massacre de Eldorado dos Carajás, quando 19 trabalhadores sem-terra foram assassinados pela polícia. O resultado já era esperado pelas organizações sociais. “Estamos satisfeitos com a manutenção da sentença para os comandantes. Com relação aos absolvidos, vamos entrar com um recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF) para a formação de outro juri”, explica Ney Juvelino Strozake, advogado do setor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
FEDERALIZAÇÃO Os desembargadores paraenses rejeitaram dois recursos: o da defesa dos comandantes, que queria a absolvição dos acusados, e o do Ministério Público do Pará, que pedia a anulação do júri que inocentou os 145 acusados. O TJE determinou a expedição de mandado de prisão contra Pantoja e Lameira, que estão condenados a 228 anos e 158 anos de cárcere. Até o fechamento desta edição, dia 23 de novembro, apenas Lameira havia sido preso, enquanto Pantoja estava internado no Hospital Sírio Libanês, da Polícia Militar, em Belém. O Tribunal de Justiça do Pará não se mostrou sensível ao pedido de parlamentares europeus, que enviaram documento para expressar aos desembargadores que gostariam de ver o fim da impunidade em relação aos responsáveis pelo assassinato de 19 trabalhadores rurais sem-terra.
Monumento em homenagem aos assassinados em Eldorado dos Carajás (PA)
No dia do julgamento, o MST realizou uma marcha com mais de 800 pessoas em Belém para exigir a condenação dos outros cabos, soldados e sargentos que participaram da operação. A passeata saiu da sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e terminou em frente ao tribunal. O movimento pensa, agora, em levar a decisão para a esfera federal, reduzindo assim possíveis interferências do poder local sobre o processo. A proposta conta com apoio do ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda. “A vantagem de ir à Justiça federal é que está mais distante do poder econômico local, em tese. Mas é um processo que poderá levar anos e anos cujo resultado é imprevisível”, comenta Strozake.
Tal iniciativa, no entanto, só será possível depois de o Congresso publicar no Diário Oficial a emenda parlamentar da reforma do Judiciário. O projeto foi aprovado na última semana pelos senadores, que ratificaram a federalização dos crimes de direitos humanos quando houver indícios de impunidade – uma das mais tradicionais bandeiras dos movimentos de direitos humanos. “Vamos fazer um pedido formal ao STJ para que federalize o caso de Eldorado. No entanto, por ser uma decisão recente, não há regras sobre como essa questão será definida”, explica o advogado do MST. Segundo ele, o governo federal teria demonstrando intenção de evitar a impunidade nesse caso.
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De 25 de novembro a 1º de dezembro de 2004
NACIONAL TROCA DE CADEIRAS
Frei Betto, Lessa, quem mais?
Fatos em foco
Debandada geral O segundo ano do governo Lula, metade do mandato, está sendo um marco para muitos petistas que aproveitaram a deixa para cair fora da empreitada. Com uma ou outra exceção, a debandada tem sido desorganizada e silenciosa, dominada pela frustração e pelo desânimo, sem muita contribuição ao processo de lutas do povo brasileiro, uma verdadeira tragédia. Novos empregos Em compensação, alguns setores do governo federal – inclusive a Radiobrás – decidiram abrigar em Brasília dezenas de petistas que perderam seus empregos nas prefeituras de São Paulo e Porto Alegre. Solidariedade é assim mesmo. Jogo aliado O Ministério Público estima que a família Maluf enviou para contas na Suíça – entre 1993 e 1996, quando Paulo Maluf foi prefeito de São Paulo – cerca de 440 milhões de dólares. Perguntas básicas: como e por onde esse dinheiro saiu do Brasil sem o conhecimento do Banco Central? Por que a Justiça até hoje não julgou a família por eventuais crimes de sonegação fiscal e evasão de divisas, entre outros? Reta final Aprovada finalmente pelo Senado, na última semana, após 13 anos de tramitação, a reforma do Judiciário cria varas especializadas em conflitos fundiários. Depois de passar pela aprovação do Executivo, espera-se que a instalação da Justiça especializada acelere o processo de reforma agrária e reduza a injustiça no campo. Irmandade financeira O Banco Central está sem moral para punir o Banco Santos, que deu desfalque de quase R$ 1 bilhão, já que o presidente do BC, Henrique Meirelles, e o presidente do Banco Santos, Edemar Cid Ferreira, utilizaram o mesmo golpe de abrir empresas fictícias para sonegar impostos e esconder patrimônio pessoal obtido de forma suspeita. Novos rumos Demitido da presidência do BNDES depois de criticar a política econômica do governo Lula e do Banco Central, o professor Carlos Lessa deixou clara a sua posição na despedida aos funcionários: “Só devem ser financiados os projetos que são de interesse nacional e estratégico para o país”. Foi aplaudido de pé. Sono profundo As elites tiram proveito e as autoridades brasileiras fecham os olhos para a investida do capital estrangeiro nas universidades privadas, nos meios de comunicação e nos times de futebol. A maior parte dos negócios nessas áreas não é legal e esconde esquemas de lavagem de dinheiro e sonegação fiscal. A investigação não exige grande esforço, basta ler as entrelinhas da imprensa especializada. Movimento Mulheres de várias entidades feministas lançam, dia 8 de dezembro, às 10 horas, na Assembléia Legislativa de São Paulo, um movimento nacional contra a corrupção, a falta de ética, a violência e a impunidade. O movimento promete lutar, também, contra todo tipo de discriminação.
da Redação
F
az tempo, a atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) se afastou de sua finalidade original, passando a financiar shopping centers e transnacionais que compraram estatais de telecomunicações e energia elétrica. Porém, é dos poucos instrumentos que o país ainda dispõe para fomentar a atividade econômica produtiva. Como investimento não rima com juros nas alturas, o economista Carlos Lessa não duraria muito à frente da instituição. Sua demissão, dia 18 de novembro, é vista por muitos como a radicalização do projeto neoliberal no Brasil. O novo presidente do banco, o ex-ministro Guido Mantega, do Planejamento, não é de comprar brigas. Seu grande objetivo é tocar a questionável Parceria PúblicoPrivada (PPP). Agora, sem Lessa, é possível que, finalmente, os polpudos recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), administrados pelo BNDES e cobiçados pelos bancos, finalmente passem às mãos do sistema financeiro, sem maiores problemas.
Carlos Lessa: “Lula está sendo enganado pela elite”
do meu bairro. Eu sabia que não tinham muito dinheiro, mas não percebia a distância social que nos separava”. O “choque brutal” veio quando, ainda jovem, foi trabalhar para Arraes, no plano diretor de Recife e conheceu favelas locais. “Como era possível que a elite brasileira concordasse com as condições trágicas
de vida daquelas pessoas?” O professor se pergunta também como os brasileiros conseguiram sobreviver com tão pouco e com elites tão descomprometidas com o sonho civilizatório. Como historiador econômico, em seu manifesto, assim define a elite brasileira, que: • Fez a independência, mas manteve a escravidão. • Aboliu a escravi-
dão da maneira mais canalha possível, sem reforma agrária, sem escola pública, sem direitos trabalhistas. • Criou uma República que, na prática, manteve as oligarquias no comando e o povo sob controle. • Criou o clientelismo, transformando o que deveria ser direito em favor. • Adotou, entusiastica e operacionalmente, o rótulo comunista para ser aplicado a quem quisesse contrariar. • Deu suporte ao regime autoritário enquanto este lhe serviu. • Passou a ser democrática por conveniência. • Sob o rótulo autoritário ou democrata, usa o Estado de forma desbragada e despudorada a favor de seus interesses. Mais: estas elites querem desfrutar do padrão de vida de Nova York ou de Miami e ter mão-deobra doméstica ultrabarata; colocar no exterior uma boa parte da riqueza que aqui construíram; continuar a ganhar o máximo possível aqui (...), sem nenhuma responsabilidade pelo que acontece no Brasil.
MANIFESTO DOS ECONOMISTAS
Por um projeto nacional de desenvolvimento da Redação
SOBERANIA Dia 19, em manifestação na sede do banco, no Rio, Lessa fez comovido elogio ao povo brasileiro e críticas contundentes às elites. Ele disse que deixou a reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro para dirigir o BNDES porque foi convocado por Lula para uma função estratégica: “Dirigir o Banco dos sonhos dos brasileiros”. Assim, se sentiu convidado “para ser parceiro de um projeto de desenvolvimento nacional com inclusão social”. Em seu documento, o professor disse que é sua convicção que a soberania e a robustez da nação são pré-condições fundamentais para a solução do problema social. “Sou de uma antiga família da elite brasileira carioca. Convivi na minha juventude com amigos das favelas
Dia 22 de novembro, um grupo de economistas lançou manifesto intitulado “E Nada Mudou”, referência a documento divulgado em junho de 2003, assinado por mais de 300 economistas. À época, advertia-se para o agravamento da crise social, face do aprofundamento, pelo governo Lula, da política macroeconômica herdada da gestão Fernando Henrique. No ano passado, os economistas apontavam como alternativa à política econômica vigente um programa com objetivo de promover o pleno emprego, num contexto de retomada do desenvolvimento e de realização da democracia social. Mais de um ano depois, avaliada a conjuntura econômica atual em relação às propostas feitas,
economistas concluíram que a situação social se agravou, e que o ligeiro suspiro de crescimento que se tem verificado este ano não muda o caráter excludente e pauperizador da política econômica. “Ou seja, continuamos no rumo errado, mas há alternativa”, ponderam os signatários do novo manifesto. Para os economistas, a adoção, pelo governo Lula, da mesma política econômica adotada no segundo mandato do governo FHC – e com o objetivo de manter o modelo de economia inaugurado por Collor – demonstra que o desejo de mudança, expresso claramente pelo povo nas eleições de 2002, foi usurpado pelo mesmo poder econômico, que quer manter a todo custo seus privilégios. “É nossa convicção que, a despeito do aprofundamento da crise social, não há sinais de reversão da
atual política econômica. Ao contrário, o governo tem reafirmado que não quer mudar”, assinala o documento. Destaca, ainda que o surto do modesto crescimento econômico de 2004 não deve iludir a ninguém. Do ponto de vista político, diz o manifesto, é importantíssimo que o povo brasileiro tenha assegurado os direitos garantidos pela Constituição, de decidir por plebiscito e/ou consulta popular todos os temas que afetam o conjunto da sociedade, como os acordos internacionais da Alca, OMC, Mercosul-UEE, transgênicos, entre outros. “Por isso, nos somamos à iniciativa da OAB, CNBB e MST de iniciar uma campanha pela regulamentação do direito ao exercício do plebiscito pelo povo, de onde todo poder emana”.
ANÁLISE
Um negócio da China, feito para os chineses J. Carlos de Assis O acordo Furlan-República Popular da China significa que venderemos um pouco mais de frango para a China, enquanto compraremos dela bilhões de dólares em quinquilharias eletrônicas e bens de consumo semiduráveis e duráveis, destruindo nossa indústria de brinquedos, de têxteis e de confecções, entre 17 setores afetados por dumping, e liquidando com centenas de milhares de empregos. É o acordo mais idiota que o Brasil poderia fazer. Dá nisso entregar as relações estratégicas brasileiras a um criador de frangos. Ele acaba confundindo estratégia com frango, de forma que, para vender mais frango, sacrifica a estratégia. Dar à China o status de economia de mercado não é um ato diplomático inconseqüente. Significa que uma empresa brasileira atingida por concorrência desleal chinesa só poderá provar dumping a partir dos preços do próprio mercado interno chinês. Como a moeda chinesa é hipervalorizada, e os preços internos administrados pelo governo, jamais haverá essa comprovação, e teremos que engolir a concorrência desleal sem chiar. Para que fizemos esse acordo? Agradamos a duas pessoas: Furlan e o presidente da China. Por que então não fizeram um acordo civil entre eles, tirando o Brasil do meio? Se Furlan quer vender mais frango para a China, tudo bem. É um direito dele e de seus sócios, favorável na margem a seus fornecedores e
Antônio Cruz/ABr
Ausência presidencial Logo que ganhou as eleições, em 2002, Lula homenageou o economista Celso Furtado com uma visita pessoal. Agora, dois anos depois, o presidente Lula não se dignou a comparecer ao velório e ao enterro de Celso Furtado. Circularam duas justificativas na imprensa: ele ficou descansando na Granja do Torto e ele não queria ser vaiado. Pegou mal.
Roberto Barroso/ABr
Entre o presidente do BNDES e os juros altos de Meirelles, do BC, Lula ficou com os juros
Hamilton Octavio de Souza
Lula e o presidente da China, Hu Jintao: acordo com desvantagens para o Brasil
empregados. Mas a moeda de troca não pode ser o mercado brasileiro de eletrônicos e semiduráveis. Esse mercado está virtualmente estagnado desde 2002. No recente surto de crescimento industrial em 2004, compensando a queda de 2003, a expansão não atingiu a produção de bens semiduráveis e não-duráveis. Ainda hoje, ela está nos níveis de 2002, ou abaixo deles. Temos aí um mercado que, se submetido a uma forte concorrência chinesa, vai desaparecer. O presidente Lula está sendo enganado pelas aparências. Por razões completamente independentes do Ministério do Desenvolvimento, as exportações brasileiras têm tido um desempenho excelente. Isso se deveu à combinação de dois fatores: a desvalorização do câmbio a partir de 99, atingindo um nível mais realista,
e a retração do mercado interno por causa da forte recessão, com aumento do desemprego e queda da renda do trabalho. Nesse sentido, nosso saldo comercial é pouco nobre. Está sendo feito com sangue e suor de nosso povo, não com aumento de produção ou de produtividade, exceto em alguns poucos setores. Não obstante, o senhor ministro Furlan se apropriou do saldo comercial, visto isoladamente como muito positivo, como se fosse coisa dele. Mas o que ele fez, exatamente para isso? No plano da política econômica, o controle é da Fazenda. No plano comercial externo, o controle é do Itamaraty. No plano do agronegócio, é da Agricultura. E mesmo no plano operacional o controle é do BNDES, que Furlan tenta por todos os meios garrotear, por razões pessoais. Assim, ele se apro-
pria de um desempenho que não é dele para enganar o presidente da República sobre sua competência. Com isso, fez um verdadeiro negócio da China para os chineses. Espera-se que o Congresso Nacional, em nome dos superiores interesses da Nação, rejeite o acordo Furlan-China. Naturalmente, fora do lado comercial e no âmbito de certas relações estratégicas, como na área científica e tecnológica, há aspectos positivos nas relações bilaterais a serem preservados. Entretanto, que não sejam subordinados ao imenso sacrifício de mercado que nos está sendo imposto. Que ninguém tenha dúvida da capacidade chinesa no campo comercial: eles são hoje, disparados, com um empucho muito acima do japonês, a maior força comercial do planeta. Nos anos de Reagan, os Estados Unidos aceitaram a liquidação de sua indústria interna de eletro-eletrônicos diante da concorrência asiática e européia, mas acabaram compensando a perda de mercado e de emprego com um tremendo avanço em outros setores. Quanto a nós, como compensaremos a perda de renda e emprego destruídos pela concorrência chinesa? Ah, sim, teremos uns poucos dólares de venda de frango e algum investimento em infra-estrutura. Mas este, se tivéssemos vergonha na cara, faríamos exclusivamente com nossos próprios recursos, apenas reduzindo o superávit primário! J. Carlos de Assis é jornalista e economista.
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De 25 de novembro a 1º de dezembro de 2004
NACIONAL ENDIVIDAMENTO
O país vai torrar 140 bilhões de dólares Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
Maurício Lima
Nos próximos quatro anos e meio, prestações da dívida externa vão consumir cerca de 67% da dívida externa total de 1999, mas 54,4% maior do que em 1996. Houve melhora nos indicadores de endividamento, desde a quebradeira de 1999, mas persiste um gargalo que se reflete no agravamento das condições de pagamento.
O
Brasil consumiu quase uma década e meia em conversações desgastantes com banqueiros internacionais, fez esforços que significaram o sacrifício, naquele período, de gastos e investimentos de empresas e do setor público. Tudo para acertar um esquema de pagamento da dívida que resultasse na redução das prestações devidas aos credores internacionais, permitindo ao país retomar a capacidade de financiar o crescimento da economia. Menos de dez anos depois de encerrada aquela etapa, a política econômica adotada a partir de 1994, que continua vigente no governo do PT, pode colocar todo aquele esforço a perder. O alívio então obtido simplesmente se esvaiu depois de anos de rombos gigantescos nas contas externas, e endividamento crescente. Como resultado, o país será obrigado a torrar, literalmente, quase 140 bilhões de dólares entre o segundo semestre de 2004 e o final de 2008, apenas para quitar as prestações de sua dívida externa.
APERTO MAIOR
A escalada das importações gerou rombos nas contas externas e agravou a dependência brasileira em relação ao dólar
O VAI-E-VEM DA DÍVIDA EXTERNA Valores em bilhões de dólares
MAIS PRAZO Com a renegociação da dívida externa, concluída na primeira metade dos anos 90, houve um alongamento no prazo de vencimento daquele débito, com proporcional redução das parcelas a serem pagas anualmente, para amortizar o principal da dívida. Dito de outra maneira, as prestações ficaram menores com o aumento dos prazos de pagamento (que saltaram para 30 anos, ou mais), deixando mais recursos disponíveis para que empresas e governo investissem, alimentando o crescimento da economia. Por exemplo, no primeiro semestre de 1996, a dívida externa registrada (a dívida com vencimento a médio e longo prazos) somava 135,2 milhões de dólares, em valores arredondados. Até 2000, o valor das prestações a vencer atingia 54,7 bilhões de dólares, representando 6,1 bilhões de dólares por semestre (as prestações vencem semestralmente, na maioria dos contratos).
ESCALADA É bom lembrar que, naquele período, e até o começo de 1999,
Entre junho de 2004 e dezembro de 2008, vencerão prestações no valor total de 139,1 bilhões de dólares – 15,5 bilhões de dólares por semestre (duas vezes e meia mais do que em 1996, também para um período de quatro anos e meio). A dívida a vencer até 2008 representa nada menos do que 67% de todo o débito externo de médio e longo prazos, diante de 40,5% nos quatro anos e meio contados a partir de junho de 1996. Aqueles 139,1 bilhões de dólares correspondem a quase cinco vezes mais do que todo o superávit comercial (exportações menos importações) previsto para este ano. Isto significa que o Brasil teria que manter um saldo comercial de pelo menos 30 bilhões de dólares ao ano, apenas para pagar as prestações da dívida até 2008, sem contar outros compromissos.
Setores Público Privado Empréstimos entre companhias Dívida total
1992 93,437 42,512 ND 135,949
1996 84,299 95,636 ND 179,935
TUDO IGUAL
1999 112,354 113,255 15,859 241,468
2003 135,689 79,241 20,484 235,414
2004 (jul) 130,703 73,967 18,758 221,722
Fonte: Banco Central
o governo Fernando Henrique havia escolhido uma política de escancaramento total do país a importações, liberando e estimulando, via juros altos, a entrada de investidores/especuladores internacionais, que traziam dólares para lucrar na ciranda financeira. A escalada das importações gerou rombos nas contas externas, cobertos pelo capital especulativo, agravando a dependência brasileira em relação ao dólar.
A dança dos especuladores internacionais causou crises freqüentes na economia a partir de 1995, levando o país a se endividar mais uma vez. No final de 1999, a dívida externa total escalava para 241,5 bilhões de dólares, cerca de 78% mais do que em 1992, e 34% a mais do que em 1996.
PRAZO MENOR Em crise, o país e suas empresas passaram a contratar empréstimos
SETOR PÚBLICO ASSUME DÍVIDA Participação na dívida externa total, incluindo empréstimos entre companhias – em % Setores
1999
2003
2004
Público Privado
46,53 53,47
57,64 42,36
58,18 41,82
Fonte dos dados brutos: Banco Central
a prazos menores, para cumprir compromissos internacionais, assumindo encargos (juros) cada vez mais elevados. Esse processo de endividamento de curto prazo foi revertido parcialmente depois de 1999, mas o estrago está feito e vai exigir novos esforços, e mais dólares, para honrar as prestações da dívida criada. Em junho deste ano, a dívida registrada atingiu 208,7 bilhões de dólares, 7,5% abaixo do recorde
Agora, ao persistir no aumento dos juros e na atração de dólares de curto prazo, meramente especulativos, a política econômica corre o risco de reeditar os erros cometidos nos anos FHC. A entrada de capital especulativo, aliado aos recordes das exportações, tem sido responsável pela queda da cotação da moeda estadunidense frente ao real. O grande risco, neste caso, é que estes dólares podem evaporar de uma hora para outra, diante de qualquer mudança de humor do mercado financeiro internacional. Isso levaria o Brasil a uma nova escalada de endividamento, porque o país não exerce qualquer forma de controle sobre capitais especulativos, que entram e saem livremente do país.
OS RALOS NAS CONTAS EXTERNAS Valores em milhões de dólares Itens Royalties e licenças Lucros e dividendos Juros entre companhias TOTAL
1991 63 616 122 801
2003 1.128 6.403 1.148 8.679
Variação (%) 1690 939 841 983
Fonte dos dados brutos: Banco Central
Receita infalível para perder divisas A remessa (disfarçada) As exportações batem recordes e devem se aproximar dos 90 bilhões de dólares em 2004, trazendo o saldo comercial (vendas externas menos importações) para algo como 30 bilhões de dólares – outro recorde. Como reflexo do ótimo desempenho da balança comercial, o país chegou a setembro com uma sobra de mais de meio bilhão de dólares em sua conta externa, depois de deduzidos todos os pagamentos feitos no exterior. Entretanto, o Brasil continua vertendo dólares pelo ladrão, porque a equipe econômica abriu mão de exercer qualquer tipo de controle sobre a entrada e a saída de dólares. Nem se trata do controle de capitais, mas de administrar a conta de capitais, de forma a proteger o país de turbulências e oscilações no mercado internacional. Em resumo, por acreditar que o mercado resolve tudo, o Banco Central não tem política alguma para a área externa.
PELO LADRÃO Essa omissão somada à privatização selvagem executada no governo Fernando Henrique fabricaram um gigantesco ralo de divisas. Até o começo dos anos 90, o Brasil gastava, todos os anos, entre 500 milhões de dólares a 600 milhões de dólares
para cobrir as remessas de lucros e de dividendos enviadas por filiais locais de transnacionais a suas matrizes no exterior. A partir de 1995/1996, houve uma escalada sem precedentes nas despesas com lucros e dividendos: as remessas subiram para quase 5 bilhões de dólares nos anos seguintes, com recorde de 6,4 bilhões de dólares em 2003. Entre 1991 e 2003, segundo o BC, os lucros e dividendos transferidos ao exterior cresceram mais de 10 vezes. Entre outros motivos, porque as transnacionais passaram a ter uma participação maior na economia brasileira, especialmente com a compra de precioso patrimônio público que eram as enormes estatais dos setores de telecomunicações e energia elétrica.
EVASÃO O resultado disso tudo é que os dólares seguem livremente para fora do país. Portanto, deixam de ser reinvestidos aqui, para gerar riquezas na Espanha, nos Estados Unidos e até no México. Tudo porque, repita-se, o Ministério da Fazenda e o BC abdicaram de seu poder de gerenciar a economia. Processo semelhante ocorreu com as remessas de dólares para
pagar os royalties e taxas de licenciamento cobrados por transnacionais pelo uso das tecnologias que produzem lá fora. Quando uma empresa brasileira importa uma máquina qualquer, está comprando, junto, todo um pacote tecnológico, que inclui de normas de operação, até assistência técnica e licença de uso. Tudo isso gera despesas em dólares, muito maiores do que os gastos realizados na compra da própria máquina.
A CONTA Sem política industrial, sem gerência de qualquer tipo, houve uma enxurrada de importações de 1995 em diante. Agora, embora a balança comercial tenha voltado a registrar saldos positivos, o país e suas empresas continuam pagando a conta do destempero dos anos anteriores. Até 1991/1992, os gastos com royalties e licenças não passavam de 60 milhões de dólares por ano. Em 2003, a conta chegou a 1,2 bilhão de dólares – valor que tem se mantido praticamente constante desde 2001. Nos primeiros nove meses de 2004, os royalties consumiram 911 milhões de dólares – 3,4% a mais do que em igual período do ano passado. (LVF)
de lucros para o exterior O Brasil vem perdendo dólares também por meio de um terceiro caminho. Ou melhor, por um estratagema arquitetado pelos executivos de empresas transnacionais para driblar o Tesouro Nacional e remeter lucros disfarçadamente para suas matrizes. Detalhe: tudo é feito dentro da lei, sem ilegalidade aparente. Em anos recentes, cresceu expressivamente o volume de empréstimos realizados entre matrizes de transnacionais e suas filiais brasileiras. Em geral, como pagamentos de juros e prestações de dívidas não pagam impostos, as transnacionais simulam empréstimos a suas filiais. Isso permite que as matrizes, no exterior, recebam os lucros obtidos por suas controladas no país como se fossem juros, livrando-se de impostos.
UM SALTO Em alguns casos, as filiais chegam mesmo a antecipar o vencimento de empréstimos, pagando adiantado às matrizes, como vem ocorrendo agora. A dívida externa do setor privado, que representava 53,5% da dívida externa brasileira em 1999, teve sua participação reduzida para menos de 42% neste
ano, por conta do pagamento antecipado de compromissos externos. O saldo dessas operações totalizou, em julho, 18,7 bilhões de dólares, depois de atingir um pico de 20,5 bilhões de dólares em dezembro de 2003. O BC não tem informações para os anos anteriores a 1998, quando aquele saldo chegava a 17,8 bilhões de dólares. Mas as séries estatísticas da instituição permitem concluir que houve um crescimento explosivo daquele tipo de empréstimo nos últimos anos. Assim, em 1991, as filiais enviaram a suas matrizes 177 milhões de dólares a título de amortização dos empréstimos recebidos (ou seja, pagaram uma prestação anual naquele valor). No ano passado, a prestação foi salgada: chegou a 5,3 bilhões de dólares – 30 vezes mais. Na média, entre 1991 e 1994, esse tipo de gasto exigiu uma remessa anual inferior a 380 milhões de dólares, valor que saltou dez vezes, para 3,8 bilhões de dólares ao ano, entre 1995 e 2003. Os juros desses empréstimos pularam de 122 milhões de dólares, em 1991 para 1,15 bilhão de dólares, no ano passado. (LVF)
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De 25 de novembro a 1º de dezembro de 2004
NACIONAL MEMÓRIA
O Brasil chora a perda de Celso Furtado O intelectual que nunca abriu mão da ação na defesa de um projeto nacional de desenvolvimento sustentado
Coragem, foi seu conselho a Lula da Redação Ainda antes da posse do presidente eleito, o economista depositava enorme confiança na capacidade de superação de desafios do metalúrgico que ocuparia o Planalto. Assim, por exemplo, considerava a escolha de Henrique Meirelles para o Banco Central um acidente de percurso que seria superado em breve. “É preciso coragem para assumir certos riscos. Prefiro acreditar que se trata de um ato de coragem, de correr riscos para depois corrigir a rota”, acreditava Furtado. Dois anos depois, não houve correção de rota. Abaixo, principais trechos de entrevista de Celso Furtado ao Brasil de Fato número zero, em janeiro de 2003. PROBLEMAS DO BRASIL
Os problemas sociais são os que mais afligem a população: pobreza, fome, miséria, desemprego. ALCA
A Área de Livre Comércio das Américas (Alca) é a renúncia da soberania do país. Se o Brasil perdê-la, não terá mais política própria, não terá mais destino próprio. Quando se tem soberania – mesmo o pouco que resta ao Brasil – podese adotar uma política econômica que responda aos problemas do país. Com a Alca, as grandes transnacionais é que vão traçar a política econômica. Não há Alca boa pois, por sua própria natureza, ela conduz os países a abrirem mão de sua soberania. O resto é detalhe. TRANSNACIONAIS
As transnacionais já estão instaladas aqui em setores muito importantes, como nos de equipamentos, automóveis e outros. Essas indústrias são comandadas por sua própria racionalidade, orientada pelo lucro. A Ford, por exemplo, pode fechar uma de suas fábricas em um país ou região, sem qualquer consideração por seus impactos. Um país tem de saber se é um sistema econômico ou não. Se é, deve ter uma lógica própria, que não combina com a das transnacionais, cujas exigências excluem a idéia de país. Se um país não tem autonomia de decisão, terá de se subordinar à vontade das transnacionais. PROJETO NACIONAL
Não basta falar em projeto nacional, é preciso saber para onde queremos ir. Veja-se, por exemplo, o drama que foi o Banco Central no governo anterior. O BC foi entregue ao grande capital, quando todo o mundo sabe que isso pode levar a vários impasses. O Brasil é um país de construção imperfeita e, hoje, está se desintegrando. A capacidade de comando que temos sobre a economia é muito menor do que em épocas passadas. DÍVIDA EXTERNA
Com a dívida externa que tem, a capacidade do Brasil de ser livre é muito limitada. Esta dívida não é grande pelo tamanho, se comparada à de outros países, mas face à capacidade de pagamento do país. A possibilidade de se autogovernar é reduzida. Mas só se pode mudar isso mudando o
que a política econômica adotada nos últimos dez anos resultou em quase paralisação das atividades econômicas e desemprego. “Em nenhum momento de nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser”, constatava Furtado em
seus últimos escritos. No último deles, publicado em 2004, perguntava: “Como explicar que uma economia com a vitalidade da brasileira, (...) tenha se conformado com uma taxa de decrescimento no decorrer deste último decênio?” Para Celso Furtado não interes-
sava ao país qualquer crescimento, mas o desenvolvimento sustentado, apenas possível a partir de um projeto nacional, voltado para os interesses da população. Um projeto que não é viável pela adoção de modelos e padrões de consumo de países desenvolvidos.
Fábio Motta/AE
D
ia 20 de novembro, o país perdeu seu maior economista, o nordestino Celso Furtado, 84 anos, cuja vida e obra dedicou a formular opções para um desenvolvimento nacional sobera-
no. Quem o conheceu diz que ele não morreu feliz com a situação do Brasil e da América Latina. Não faltava, aliás, quem o classificasse de ultrapassado, ligado às idéias do desenvolvimentismo nacional da década de 60. Mas seus livros continuam atualíssimos, já
projeto social. A eleição de Lula foi um alerta: muita gente já está convencida de que o Brasil tem de se reconstruir: levar adiante uma estratégia política diferente da que teve no passado. GOLPE DE 64 E DESMOBILIZAÇÃO
Nos anos 50, quando escrevi a Formação Econômica do Brasil, havia um grande debate nacional. Tínhamos a idéia de que, se o Brasil conseguisse atingir certo grau de desenvolvimento industrial e econômico, ganharia autonomia, daria um salto. Naquela época, havia ebulição política. O país se industrializava, incorporava massas de população à sociedade moderna. E isso tudo veio abaixo, não porque o país deixou de crescer, mas por terem se calado as forças sociais que estavam presentes antes. A enorme confrontação de idéias amedrontou a grande burguesia e os Estados Unidos, e tudo terminou, em 1964, com a paz dos cemitérios. Depois disso, mesmo com a redemocratização, não foi mais possível abrir o debate sobre nenhum tema crucial. Toda a imprensa já estava controlada e a juventude estava desmobilizada. Era outro país.
Eleitor de Lula em 2002, Celso Furtado teceu duras críticas à política econômica do governo
econômico. Não temos ninguém pensando coisas extraordinárias em matéria de economia. Os problemas sociais estão aflorando, e a gente sente a ação do MST no campo, por exemplo. É preciso que os problemas sociais levem a população a perceber que política não é jogo de elites, mas uma disputa pelo poder real.
prego de baixíssima produtividade. Não se trata de criar emprego sem nenhum sentido econômico. Mas como viabilizar a agricultura no quadro de uma sociedade diferente? Transformando um movimento como o dos sem-terra numa força criativa, de inovação das técnicas produtivas no mundo rural. AUTONOMIA DO BANCO CENTRAL
REFORMA AGRÁRIA
No Brasil, nos últimos três anos, 5 milhões de pessoas foram expulsas do campo. O capitalismo dominou completamente a agricultura. Temos que enfrentar esse problema, propondo alternativas para criar emprego. O mundo urbano também não cria emprego, ou cria muito pouco. A grande pergunta é: que possibilidade existe de criar emprego? A sociedade brasileira cria em-
INTELECTUALIDADE
Há bastante reflexão no Brasil Mas os debates universitários não repercutem, não se transformam em ação. Nos anos 50, havia consciência de que o trabalho intelectual era importante. Hoje, existe uma espécie de esterilização do debate
O que significa falar na privatização do BC? É o BC que determina política financeira de um país. Privatizá-lo é entregar essa política ao mercado. Há quem diga que não se trata de privatizar, mas de garantir independência – como se fosse possível ser independente e, ao mesmo tempo, fazer parte do sistema financeiro internacional. Nesse caso, quem mandaria seria, obviamente, o sistema internacio-
nal, isto é, as forças do mercado, a quem teríamos de nos subordinar. Isso implica renunciar a uma política própria. Não creio que o Brasil agüente um esquema semelhante, e muito menos que Lula vá aceitá-lo. EXPORTAR É A SOLUÇÃO
Isso é outra piada. A solução para o Brasil é criar emprego. Exportar é uma forma de criar emprego. Mas privilegiar a exportação é uma forma também de servir aos capitais estrangeiros. CONSELHO A LULA
Acredito que o grupo que está no comando está disposto a uma briga forte contra uma situação ingrata. Para isso, Lula vai precisar de muita coragem. Coragem é a palavra-chave.
ANÁLISE
Uma ausência que será muito sentida Plínio de Arruda Sampaio Na semana passada, o Brasil perdeu um de seus grandes homens, e os trabalhadores rurais, um de seus maiores amigos: Celso Furtado. Furtado passou a vida estudando o Brasil e, em todos os seus estudos, os problemas da população rural estiveram sempre presentes. Para ele, a pobreza do homem do campo constitui um obstáculo estrutural ao desenvolvimento do país. A proposta de remoção desse obstáculo não ficou apenas nos livros e nas aulas. Foi uma de suas principais preocupações nos cargos públicos que ocupou ao longo de sua longa vida. Na Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), da qual foi fundador e primeiro diretor, Furtado formulou o primeiro plano de desenvolvimento da agricultura da região, a partir de suas potencialidades e da modificação da sua estrutura fundiária. Uma das medidas propostas consistia na utilização de parte das terras dos engenhos da Zona da Mata nordestina para a formação de pequenas unidades de produção de alimentos, a serem distribuídas a lavradores sem-terra. É desse tempo também, uma entrevista-bomba que ele deu a uma rede de televisão norte-americana, mostrando que a fonte da inquietação social no nordeste brasileiro, e em todo o continente latino-americano, era a estrutura agrária atrasada
Fábio Motta/AE
da Redação
Comprometido com o desenvolvimento nacional, Furtado não era bem-visto pela elite
e injusta da região. Suas palavras tiveram enorme repercussão e constituiu um dos elementos que levaram a administração Kennedy a financiar programas de reforma agrária. Em 1963, o presidente João Goulart trouxe Furtado para Brasília, como ministro da Economia, encarregado da formulação do Plano Trienal. Nesse Plano, foram incluídas medidas verdadeiramente revolucionárias para acabar com a exploração dos meeiros e arrendatários de terras.
Com um currículo desses, obviamente Furtado não era uma figura querida entre a reacionária elite brasileira, de modo que, quando os militares deram o golpe de 1º de abril de 1964, ele foi um dos primeiros a serem cassados e perseguidos. Mas, se a elite pretendia calar a voz desse brasileiro destemido, o tiro saiu pela culatra: impedido de lecionar no Brasil, Furtado foi para o exterior, onde as portas das principais universidades do mundo lhe foram abertas. Ele lecionou na Sorbonne,
em Cambridge, na American University e deu conferências e cursos em dezenas de outras universidades. Tornou-se uma referência mundial no campo da economia. Em todas essas atividades, sempre o mesmo tema, sempre a mesma paixão: como superar o subdesenvolvimento? E sempre a mesma proposta: reforma agrária. Já no ocaso da sua existência, Celso Furtado tomou contato mais direto com o MST. Seus comentários a respeito do Movimento surpreenderam a todos que se haviam acostumado com seu estilo reservado e de poucas palavras. Entusiasmado com os sem-terra, Furtado como que soltou-se, usando, em várias oportunidades, adjetivos que normalmente não faziam parte do seu palavreado. Ele disse em várias ocasiões que o MST é o “mais importante movimento popular ocorrido em nosso país no século 20 – uma campanha cívica comparável unicamente, em grandeza e importância, à campanha abolicionista do século 19”. Quem conhece o peso da autoridade intelectual e moral de Celso Furtado pode avaliar bem a repercussão dessa palavra no meio da intelectualidade e da política brasileira. Cumpre aos que ficaram honrar esse legado. Plínio de Arruda Sampaio é promotor público
Ano 2 • número 91 • De 25 de novembro a 1º de dezembro de 2004 – 9
SEGUNDO CADERNO ESTADOS UNIDOS
Bush prepara mandato ainda mais à direita
Quem é quem no governo dos EUA Os novos
João Alexandre Peschanski da Redação
R
eeleito dia 3 de novembro, o presidente estadunidense, George W. Bush, realizou importantes mudanças em seu gabinete. Seis dos 15 integrantes do governo atual não vão permanecer em seus cargos no segundo mandato, com início em 20 de janeiro. Saíram os secretários Ann Veneman (Agricultura), Colin Powell (Estado), Don Evans (Comércio), John Ashcroft (Justiça), Rod Paige (Educação) e Spencer Abraham (Energia). A saída de Powell e Ashcroft modifica a orientação da política interna e externa do governo. A avaliação é das organizações sociais estadunidenses Jobs with Justice e Global Exchange (do inglês, Empregos com Justiça e Troca Global). Substituem-os Condoleezza Rice e Alberto Gonzales (veja quadro com perfil de novos secretários). De acordo com as organizações, as mudanças sinalizam o fortalecimento do núcleo mais reacionário do governo, chamado neoconservador, composto pelo vice-presidente Dick Cheney e pelos secretário e subsecretário de Defesa, Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz. Em texto recente, veiculado pela Jobs with Justice, o neoconservadorismo estadunidense é definido como “um grupo atuante dentro dos altos escalões do governo, cuja missão é concentrar forças no Executivo para disseminar o modelo de sociedade dos Estados Unidos, por todos os meios possíveis, incluindo a força”.
Fotos: Divulgação
Mudanças no governo reforçam influência de grupo neoconservador na orientação da política interna e externa
George W. Bush: linha dura
no campo internacional, o cenário aponta para o aumento de tensões com países como Irã e Coréia do Norte, que Bush define como ini-
migos dos EUA. Em segundo, no campo nacional, estará em risco o respeito aos direitos humanos de pessoas que forem consideradas suspeitas de ações contra os interesses do governo, pois ganham poder pessoas como Gonzales, que defendem restrições à possibilidade de julgamentos justos e o uso de tortura nesses casos. Além disso, segundo as organizações, as indicações de Bush para as secretarias levarão a um eventual recrudescimento dos ataques aos focos de resistência no Iraque. Desde a reeleição, o governo estadunidense intensificou os bombardeios a Faluja, centro da luta contra a ocupação do país. Entidades humanitárias computam mais de 600 mortos na região, em duas semanas.
países que o governo estadunidense acusa de produzir armas de destruição em massa.
tarefa estabelecer as diretrizes da política de segurança do país.
O núcleo duro
PERIGO INTERNACIONAL As organizações avaliam que o impacto na política do governo deve se dar em dois níveis. Primeiro,
Manifestantes estadunidenses protestam contra política reacionária de Bush
Mais quatro anos de transformação nos EUA Norman Solomon As trombetas da direita estadunidense estão fazendo um terrível estrondo, em meio a uma paisagem política devastada. Por enquanto, a esperança mal se escuta. Os progressistas parecem filhotes implumes de pássaros, batendo fracamente por dentro nas cascas de ovo. Quatro anos a mais de Bush parecem o inferno. Luto, medo, desespero, raiva – só as pessoas anestesiadas emocionalmente não estão sentindo nada disso. A vitória de Bush é uma grande derrota para a humanidade. As conseqüências serão extremamente tenebrosas. Fanáticos ideológicos intensificaram o seu controle sobre o Poder Executivo, ao mesmo tempo em que aumentaram seu domínio sobre o Congresso. Os “líderes” que levaram o país à guerra por meio de mentiras estão arriscando uma jogada perigosa, com a escalada da carnificina no Iraque. Logo entrarão em ação para tornar a Suprema Corte mais autoritária – ameaçando os direitos ao aborto, à liberdade de expressão, a proteção legal básica para réus de processos e outras liberdades civis. Há um cheiro de teocracia no ar. Ao mesmo tempo que há muitas incertezas à nossa frente, não há dúvidas sobre os nossos imperativos. Não vamos desistir. Vamos lutar contra tudo isso. Os progressistas vão desafiar a agenda do regime de Bush num largo âmbito de questões. Durante
os próximos meses e anos, a tarefa mais urgente é desenvolver coalizões políticas que possam efetivamente fazer voltar atrás a loucura direitista dominante. É claro que os progressistas precisarão continuar se comunicando uns com os outros, organizando contra-instituições, reforçando os meios de comunicação independentes, mas isso está longe do que é necessário. Precisamos melhorar grandemente nossa comunicação atual com o grande público. Podemos descobrir métodos melhores para defender claramente (sem retórica e sem fugir dos problemas) a justiça e a paz. E podemos exercer muito mais pressão sobre os dirigentes e parlamentares eleitos. Estas são metas cruciais numa época em que o governo Bush e seus aliados estão promovendo políticas com aspectos fascistizantes. Creio que os movimentos progressistas devem ser independentes do Partido Democrata, ao mesmo tempo que devem reconhecer que esse partido não é nosso principal inimigo. O inimigo principal é o poder direitista do Partido Republicano. Neste período, a fúria anacrônica contra o Partido Democrata não vai nos levar muito longe. Quando a Nova Esquerda surgiu, nos anos 60, os democratas progressistas controlavam a política externa dos EUA. Logicamente, os ativistas encararam o governo belicista de Johnson como seu principal inimigo. A Nova Esquerda se definiu a si mesma, em larga medida,
em oposição aos progressistas tradicionais e ao Partido Democrata. Quarenta anos depois, devemos “ficar aqui e agora”. Na época atual, os progressistas tradicionais não controlam as políticas do governo dos EUA. Por falar nisso, os democratas centristas ou conservadores também não controlam o governo. Na verdade, o governo tem sido comandado por republicanos direitistas. Sua agenda interna está
cheia de medidas repressivas e seu militarismo extremo não dá sinais de se amenizar. O novo ataque assassino do Pentágono contra Faluja é um subproduto do controle pelos neoconservadores sobre as alavancas do poder em Washington. Vamos precisar criar um movimento antiguerra muito mais forte, que insista na retirada rápida e completa das tropas estadunidenses do Iraque. Enquanto os políticos
e os formadores de opinião mais influentes continuam proporcionando ao público suas palavras ambíguas, nós temos uma mensagem clara. Essa guerra, baseada em mentiras, é totalmente inaceitável. Nós apoiamos as tropas, queremos que parem de matar e de ser mortas. Queremos que voltem para casa. Norman Solomon é jornalista
Dirigente líbio denuncia imperialismo global Áurea Lopes da Redação “Hoje, o Pentágono dirige o mundo. O Exército dos Estados Unidos é a polícia do mundo. A CIA espiona o mundo inteiro”. O alerta foi feito por Mustafa Zaidi, coordenador de Relações Exteriores do Movimento dos Comitês Revolucionários Internacionais da Líbia, um porta-voz dos movimentos populares organizados depois da revolução chamada Al Fateh, liderada por Muammar Kadafi, em 1969. Em visita ao Brasil, em meados de novembro, Zaidi analisou a ocupação no Iraque e caracterizou o imperialismo estadunidense como “um problema global”, que exige uma “resistência global”, por meio da conscientização dos povos. Essa
resistência, segundo informou, já começa a se delinear no Oriente Médio: “A situação real do Iraque não é retratada pelos meios de comunicação, que estão empenhados acima de tudo em semear o medo, tirar a esperança. Os 60 mil soldados estadunidenses dominam apenas algumas cidades. O local onde está sediada a liderança é bombardeado diariamente por foguetes fabricados pelos palestinos”. O líder líbio, terceiro na hierarquia do governo Kadafi, contou que foram muito produtivos os contatos feitos com movimentos sociais brasileiros, pois “as causas de sofrimento, em todo o mundo, são as mesmas: o desemprego, o desrespeito aos direitos humanos, as ditaduras, a poluição ambiental, a corrida armamentista”. Zaidi explicou que, na Líbia,
as questões sociais são tratadas a partir de organizações formadas pela população: “Todas as pessoas participam das decisões, que são discutidas em esferas regionais”. Existem núcleos denominados “congressos populares regionais”, que têm prerrogativas semelhantes às do Congresso brasileiro, ou seja, propor e formular toda a legislação do país, inclusive as regulamentações orçamentárias. Os congressos populares também elegem os integrantes dos “comitês populares”, encarregados de cuidar de assuntos sociais, como saúde e educação. Além disso, há os “comitês revolucionários”, responsáveis pela formação e articulação política popular. “Nós acreditamos no poder do povo. Por isso, ensinamos o povo a se autogovernar”, afirmou o dirigente líbio.
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AMÉRICA LATINA LIVRE COMÉRCIO
Cuba tenta se aproximar do Mercosul Marcio Resende Buenos Aires (Argentina)
France Presse
Ilha caribenha solicita, formalmente, acordo comercial com países sul-americanos, que estudam proposta
C
ASSOCIAÇÃO “Cuba fez o pedido formal de associação comercial. Chegar a um acordo é um fato político mundialmente importante para Cuba, porque rompe a situação de isolamento. O pedido foi feito durante a presidência argentina porque a anterior tinha sido do Uruguai, país com o qual Cuba está com as relações comerciais e diplomáticas rompidas”, confirma o subsecretário de Integração Econômica, Eduardo Sigal. “Brasil, Argentina e Paraguai não têm objeções à entrada de Cuba, mas o Uruguai atualmente objeta o tratamento do assunto. Como no Mercosul tudo funciona por consenso, vamos precisar de uma mudança de atitude ou política para discutir o assunto”, explica Sigal. Em abril, durante uma reunião do Grupo Mercado Comum do Mercosul em Buenos Aires, os atuais nego-
Brasil compra mais da Ilha Segundo dados do portal www.abeceb.com, as exportações totais do Mercosul a Cuba chegaram a 154,2 milhões de dólares, entre janeiro e agosto de 2004, crescendo 168% em relação ao mesmo período de 2003. Do total exportado, o Brasil concentra 55,1% enquanto a Argentina participa com 41%. Pelo lado das importações, o Mercosul comprou de Cuba um total de 32,5 milhões de dólares nos primeiros oito meses de 2004. São 273% a mais do que o mesmo período do ano passado. As importações concentram-se quase na sua totalidade no Brasil (98% do total). Sendo assim, o saldo comercial foi favorável para o Mercosul em 121,7 milhões de dólares. Quanto ao comércio do Paraguai e do Uruguai com Cuba, o intercâmbio é praticamente nulo. No caso das exportações, apenas representa 3,9% do total vendido pelo bloco (6 milhões de dólares entre janeiro e agosto de 2004), enquanto que a participação nas importações só chega a 0,2% das compras totais (0,1 milhões de dólares nos primeiros oito meses do ano). (MR)
Em nova conjuntura política na América do Sul, acordo comercial entre Cuba e os países do Mercosul rompe isolamento
ciadores uruguaios deixaram claro que, se o assunto fosse posto sobre a mesa, seria rejeitado. “Cada um dos países ficou de fazer consultas internas. Para um bom entendedor, meia palavra. Essa é a saída elegante para adiar o assunto”, interpreta Sigal. O pedido de Cuba pode ser tratado novamente assim que assumir o novo governo uruguaio.
UNIÃO LATINA Representantes do governo brasileiro já se expressaram favoravelmente a essa negociação de acordo entre Cuba e o Mercosul. “A possibilidade de virmos a fazer um acordo do tipo 4+1 com Cuba é perfeitamente viável. Isso foi discutido de modo geral em tese, mas teria
que se afinar”, confirmou à Agência Brasil o assessor especial da Presidência para política externa, Marco Aurélio Garcia. O acordo com Cuba vai ao encontro da estratégia do Mercosul de formar uma Comunidade de Nações Sul-Americanas ou Latino-Americanas. No último 18 de outubro, durante a assinatura do protocolo para um acordo de livre comércio entre o Mercosul e os países da Comunidade Andina, em Montevidéu, um representante cubano estava presente. “Não há nenhuma contradição – pelo contrário, há uma complementaridade – entre esse passo que damos na integração sul-americana e o objetivo maior da integração
latino-americana e caribenha. A presença do México e de Cuba entre nós, e a perspectiva de termos com eles também acordos de livre comércio semelhantes, nos anima a pensar numa América Latina verdadeiramente forte, verdadeiramente desenvolvida, com muito mais capacidade para negociar nos foros internacionais”, avaliou na ocasião o chanceler brasileiro, Celso Amorim.
ARGENTINA A aproximação entre Cuba e o Mercosul ganhou corpo no ano passado, durante a visita a Havana do presidente Lula, em setembro, e do chanceler argentino, Rafael Bielsa, em outubro. O ministro das Rela-
ções Exteriores cubano, Felipe Pérez Roque, anunciou publicamente que, “com grande satisfação, o ministro Rafael Bielsa confirmou o apoio da Argentina à negociação de um acordo entre Cuba e o Mercosul”. Dias depois, em 4 de novembro, Raúl Taleb, o primeiro embaixador argentino em Cuba após dois anos e meio de relações suspensas entre os dois países, foi mais enfático: “A idéia é persuadir o Uruguai a aceitar a proposta (de acordo comercial 4+1), dissuadi-lo da sua posição intransigente. Cuba deve chegar a um acordo com o Mercosul para sentarmos à mesa de negociações com os Estados Unidos em posição de força”. (Agência Brasil, www.radiobras.gov.br)
Vitória de Vázquez no Uruguai facilita acordo A posse do novo presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, no início de 2005, pode viabilizar futuros acordos do Mercosul com Cuba. Vásquez venceu as eleições presidenciais em primeiro turno, no dia 31 de outubro, e quebrou uma hegemonia conservadora que persistia há mais de um século. A coalizão de esquerda que apoiou o novo presidente, o Encontro ProgressistaFrente Ampla, já se declarou favorável à imediata recuperação das relações do país com Cuba, incluindo-se eventuais acordos com o Mercosul. Brasil, Paraguai e Argentina já declararam apoio à aproximação com Cuba, além do Uruguai, cujo atual governo é contrário à idéia. Uruguai e Cuba romperam relações diplomáticas desde 2002, e o atual governo do país vizinho alega que a falta de “democracia” em Cuba impede sua associação ao Mercosul.
“Entendemos as relações internacionais como uma política de Estado, de ponderação, que deve seguir as tradições nacionais na matéria. Nesse sentido, o Uruguai reestabelecerá relações com Cuba, caso cheguemos à Presidência. Cuba é membro da Aladi (Associação Latino-Americana de Integração), e o Mercosul tem vocação de associar-se e de ampliarse. É nesse sentido que está orientada a nossa poltica externa”, indicou Vázquez à Agência Brasil.
REAPROXIMAÇÃO A Agência Brasil também conversou com dois apoiadores de Vásquez, os senadores Danilo Astori e José Mujica. “Tentaremos recuperar as relações com Cuba, porque essa ruptura não é boa para nenhuma das partes. Somos um país pequeno que precisa de relações fluidas com todos os países americanos. Já temos a defini-
Duhalde garante que bloco não cederá aos EUA da Redação O ex-presidente argentino Eduardo Duhalde, atual presidente da Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul, afirmou que o Mercosul manterá sua posição em relação à Área de Livre Comércio das Américas (Alca), apesar das críticas dos Estados Unidos. As declarações de Duhalde foram dadas em resposta aos comentários feitos pelo secretário do Comércio dos Estados Unidos, Robert Zoellick, em visita ao Chile. O estadunidense disse que, em refe-
ção política de buscar essa recuperação com Cuba”, afirma Astori. “Se quisermos encarar as negociações pela Alca com um resultado positivo, temos que acumular força entre nós. Por isso, o Uruguai dará ênfase e prioridade ao Mercosul. Nós estudaremos o pedido de associação de Cuba”, garante. Para Astori, existe um ponto inédito de consenso dentro do bloco. “Pela primeira vez em 13 anos de Mercosul, vejo que existirá uma sintonia importante com os governos de Brasil, Argentina e Paraguai. Precisamos aproveitar isso, Essa confluência de visões e de atitudes vai ajudar muito”, analisa.
rência aos membros do Mercosul, que na negociação da Alca alguns países não tiveram muita ambição e acabaram se conformando com um acordo base que não foi prolífero. Zoellick afirmou, ainda, que os Estados Unidos tomaram nota das dificuldades enfrentadas pelo Mercosul na negociação de um tratado de livre comércio com a União Européia. Duhalde, por sua vez, afirmou que o Mercosul não vai variar sua posição frente às vozes que sustentam interesses contrapostos às prioridades da região. (Prensa Latina, www.prensa-latina.com)
SOMAR FORÇAS O senador Mujica lidera, na Frente Ampla, a corrente dos tupamaros, organização política que agrupa ex-guerrilheiros. “A ampliação do Mercosul é uma prioridade para nós. As relações com Cuba
serão normalizadas imediatamente”, defende. “Vejo muito possível Cuba dentro do Mercosul. Temos que procurar ter uma amplidão tal que nos permita somar a maior quantidade de espaços possível”. “Se Cuba voltar a colocar o assunto sobre a mesa, o Uruguai, com um novo governo, quer tratar do assunto. Quanto mais se isolar Cuba, pior. Há uma quantidade de aspectos que podem ser interessantes. Cuba precisa de certas oportunidades econômicas e tem muito conhecimento a ensinar para esta parte da América. Pode ser totalmente complementário”, acrescenta Mujica. Como exemplo dessa complementaridade, Mujica aponta as áreas farmacêutica e médica, em que Cuba se destaca. Além disso, aponta que poderia haver acordos nas áreas de educação e de tecnologia. (MR)
Agência Brasil
uba pode se tornar membro associado ao Mercosul já em 2005, afirma o subsecretário de Integração Econômica da Argentina, Eduardo Sigal. Autoridades brasileiras confirmam a possibilidade de o país caribenho e o México firmarem acordos de livre comércio com o atual bloco formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, com Chile, Bolívia e Peru como membros associados. O Mercosul recebeu oficialmente a solicitação de Cuba para unir-se pela primeira vez a um bloco comercial em 12 de março. Nessa data, a embaixada cubana em Buenos Aires fez o pedido formal de um acordo do tipo 4+1 (Mercosul-Cuba) à chancelaria argentina que exercia a presidência do bloco. Esse tipo de acordo comercial é o primeiro passo para que, na seqüência, Cuba pleiteie a condição de membro associado. “A Embaixada considera que esse acordo contribuiria de maneira significativa para o desenvolvimento e para o fortalecimento da integração latino-americana, assim como ao desenvolvimento das relações comerciais do Cone Sul com a região caribenha e, em particular, com a República de Cuba”, sintetiza o documento cubano, em referência à importância estratégica do acordo.
Lula, Kirchner e Duhalde: oposição aos Estados Unidos
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INTERNACIONAL CHILE
Setenta mil protestam contra George Bush da Redação
CMI
Polícia reprime passeata com gás lacrimogêneo e jatos d´água, agride jornalistas e prende manifestantes
N
a passeata que comemorou a abertura do Fórum Social Chileno, dia 19 de novembro, mais de setenta mil pessoas marcharam pelas ruas de Santiago, em protesto contra a presença do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, no Fórum Econômico de Cooperação Ásia-Pacífico (de sigla em inglês Apec). A multidão foi aplaudida por pessoas que estavam nas janelas dos arranhacéus do centro da capital, as quais jogaram água sobre os manifestantes, para aliviá-los do forte calor ao meio-dia. Não houve incidentes, nem repressão durante a marcha. Mas, no ato que encerrou a passeata, no Parque Bustamante, policiais lançaram bombas de lacrimogêneo e jatos d’água para dispersar o público. Cem manifestantes foram detidos pelas Forças Especiais dos Carabineiros, equivalentes à tropa de choque das Polícias Militares brasileiras. Jornalistas foram agredidos pelos policiais e impedidos de realizar seu trabalho. Um integrante da Associação de Meios de Comunicação Independente, o repórter Cristian Aguilar, do portal Juventudes Comunistas de Chile, foi golpeado na cabeça, apesar de estar exibindo sua credencial. Os carabineiros também atacaram, sem nenhuma justificativa, a sede do Partido Comunista do
Bush e governantes da Ásia e do Pacífico foram criticados no Fórum Social Chileno
Chile, com jatos d’água e bombas de gás lacrimogênio. Alguns computadores do escritório foram completamente destruídos.
ECONOMIA LIVRE O Chile faz parte da Apec desde 1994, ao lado de mais vinte países, entre eles dois outros da América Latina, o Peru e o México. A organização é uma das iniciativas cria-
das para dar impulso aos processos de liberalização do comércio e da circulação de capitais. Pelo acordo, as nações desenvolvidas da região, entre as quais se incluiu o Chile, vão liberalizar suas economias até o ano 2010, enquanto as subdesenvolvidas o farão até 2020. Os Estados Unidos representam 52% dos Produtos Internos Brutos somados dos 21 países da Apec, que
inclui Japão, China e Rússia. Nos EUA, se discutem as vantagens, para as empresas, e as desvantagens, para os trabalhadores (no primeiro governo Bush, desapareceram um milhão de empregos estadunidenses) dos acordos de livre comércio. No caso da Apec, há problemas para sua concretização. Tanto o México quanto a China disputam o mercado dos EUA, e entre o Japão e a Coréia
do Sul também ocorrem divergências. Além disso, a Coréia do Sul ainda não se abriu totalmente aos investimentos estrangeiros diretos. Os países integrantes da Apec representam mais da metade da produção mundial, quase metade do comércio internacional total e quase metade da população do planeta. Mas, depois do fracasso da reunião da Organização Mundial do Comércio em Cancún, no México, a Casa Branca passou a dar menos atenção aos grandes acordos multilaterais, dedicando-se mais aos acordos bilaterais. Em documento do Fórum Social Chileno, líderes indígenas repudiaram “a falta de transparência” da Apec e dos acordos econômicos em curso. “Essa situação torna os tratados entre governo ilegítimos. Preocupa também a ausência do tema indígena, apesar dos acordos de globalização da economia da Ásia-Pacífico afetarem diretamente os direitos fundamentais dos povos indígenas.” (Alai,www.alainet.org)
VENEZUELA
Claudia Jardim de Caracas (Venezuela) Em visita à Espanha para reestabelecer relações diplomáticas abaladas durante o governo anterior, o presidente Hugo Chávez obteve, pela primeira vez, a confirmação de Madri sobre a participação de José María Aznar no fracassado golpe de Estado que tentou derruba-lo em 2002. Miguel Ángel Moratinos, ministro espanhol de Relações Exteriores, acusou o governo Aznar de apoiar o golpe de 11 de abril. “No governo anterior, coisa inédita na diplomacia de nosso país, o embaixador espanhol recebeu instruções de apoiar o golpe, fato que não vai se repetir no futuro”, declarou em entrevista à TV Espanhola (TVE). O ministro afirmou que o governo do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), no poder desde abril, está empenhado em melhorar as relações com governos latinoamericanos, em especial, com os que têm “forte apoio democrático”, como é o caso da Venezuela. É a primeira vez que o governo de Luís Rodríguez Zapatero se pronuncia sobre o caso. Aznar e George W. Bush são acusados pelo governo venezuelano de apoiar e financiar os grupos de oposição que promoveram o golpe. “Não tenho dúvidas de que foi assim. Lamentavelmente, o embaixador espanhol em Caracas, junto com o embaixador estadunidense, foram os únicos que, naquele momento, reconheceram (...) a ruptura da institucionalidade”, disse Chávez em entrevista a TV espanhola. As declarações de Moratinos também reacendem o debate na Venezuela, onde, na última semana, um atentado terrorista matou o promotor responsável por investigar os envolvidos nos assassinatos e golpe de abril de 2002. As relações entre Caracas e Madri têm se estreitado desde que Zapatero assumiu. “Viramos a página. Isso é coisa do passado. Estamos
O ex-primeiro-ministro José M. Aznar
em um novo momento de amizade e cooperação. Vamos para um futuro de integração muito promissor”, disse Chávez.
PETRÓLEO Um dos acordos que devem ser firmados entre os dois governos é o investimento espanhol de 590 milhões de dólares, entre 2004 e 2008, no país que é o quarto maior exportador de petróleo do mundo. Em coletiva de imprensa em Madri, dia 23 de novembro, Chávez anunciou a criação de uma binacional entre a Petróleos de Venezuela (PDVSA) e a espanhola Repsol. As declarações de Moratinos provocaram uma crise entre o governo e o Partido Popular (PP), cujo porta-voz, Eduardo Zaplana, negou as acusações do ministro, dizendo que ele “mentiu” e “caluniou Aznar”. Na coletiva do dia 23, Zapatero preferiu não comentar as declarações. O líder do PP, Mariano Rajoy, desafiou Zapatero a rever a participação de Chávez na visita ao país. “Em sua visita oficial à Espanha, o chefe de Estado venezuelano vem fazendo uma série de declarações que excedem em muito o que é aceitável em um país democrático e ocidental”, disse Rajoy. Em conferência sobre o neoliberalismo em uma universidade, Chávez, atacou as políticas do Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial. Classificou as instituições multilaterais de “instrumentos de expansão do neoliberalismo”e “alguns dos meios de dominação mais perversos já produzidos”.
Atentado mata promotor e gera clima de instabilidade O atentado a bomba que matou o promotor venezuelano responsável pelas investigações do golpe de 11 de abril contra o presidente Hugo Chávez provoca uma nova onda de instabilidade no país. A explosão do carro de Danilo Anderson, dia 19 de novembro, foi qualificada pelo governo como um ato terrorista. “Claramente, foi um assassinato político”, disse o ministro da Informação, Andres Izarra. Dias antes, o presidente Chávez afirmou que ainda era “muito cedo” para conceder anistia aos responsáveis do fracassado golpe que o retirou do poder por 48 horas. Na avaliação do procurador geral, Isaías Rodríguez, “foi uma tentativa desesperada para pressionar o Ministério Público a interromper as investigações que podem apontar responsáveis”. O promotor assassinado tinha se tornado um dos desafetos da oposição por investigar os envolvidos no massacre de 11 de abril de 2002, os assinantes do decreto de Pedro Carmona e o envolvimento do prefeito Capriles Radonski no atentado à embaixada cubana em 12 de abril do mesmo ano.
CLIMA TENSO Para Chávez, o atentado “foi parte de uma tentativa para assassinar o sonho e a esperança da maioria dos venezuelanos”. Durante o velório de Anderson, o presidente disse que “a agenda da violência” não será imposta à Venezuela: “Já derrotamos aqueles que pretendem nos levar por esse caminho. Haverá paz”. Antes de partir para a Espanha, dia 21 de novembro, Chávez assinou um decreto ordenando a elaboração de um plano antiterrorista. “Quero na prisão os assassinos, custe o que custar (...) sempre no marco da constituição e das leis”, afirmou. Os venezuelanos temem que o atentado provoque uma onda de assassinatos, gerando um clima de terror e ingovernabilidade, como ocorre na Colombia. Com isso, estaria aberto o caminho para os EUA
Daniel Gondim
Ministro espanhol acusa Aznar de ajudar em golpe
Responsável por investigar o golpe de 11 de abril, promotor é vítima da direita
apelarem a uma intervenção por meio da Organização dos Estados Americanos (OEA), como já foi pleiteado inúmeras vezes. Ou haveria justificativa para a ampliação do Plan Colombia para Venezuela. O deputado Julio Borges, do partido opositor Primeiro Justiça, se referiu ao atentado como a divisão de dois caminhos: “Um cheio de bombas, de seqüestros, de paramilitares e guerrilhas; e, outro, que quer a maioria dos venezuelanos, o caminho da justiça, da liberdade e do futuro”.
NOVA OFENSIVA Os presidentes dos EUA, George W. Bush, e da Colômbia, Alvaro Uribe, se reuniram em Cartagena para discutir o novo plano antiterrorismo na região. As operações se iniciam em 1º de dezembro, no norte do país, fronteira com a Venezuela. Para o antropólogo Mário Sanoja, a estratégia de Bush foi a de dar um ultimato a Uribe para avançar o cerco à Venezuela, com quem o governo colombiano tem estreitado relações comerciais. “Bush pressiona por meio do financiamento do Plan Colombia e do tratado de livre comércio. Uribe terá que decidir”, afirma. A recém-nomeada secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice,
que assume o lugar de Colin Powell, pode significar uma nova ameaça à América Latina. O editorial do dia 21 de novembro do jornal estadunidense Washington Post pedia a Condoleezza para deixar a “passividade em relação a América Latina e especificamente em relação à Venezuela”. O diário advertia que Bush deve evitar que o governo venezuelano utilize o atentado contra Danilo Anderson como desculpa para “seguir encarcerando os opositores”. Antes de substituir o secretário Powell, Condoleezza afirmou que Chávez era um problema a ser combatido na América Latina. O editorial acusa o governo venezuelano de utilizar recursos do petróleo para financiar “movimentos populistas e antidemocráticos na Bolívia”. Um dos casos investigados pelo Ministério Público é o financiamento da Fundação Nacional para a Democracia (NED, pela sigla em inglês), que recebe fundos do Congresso estadunidense, pela organização civil Súmate, acusada pelo Estado de “conspirar para destruir o sistema republicano da nação” na tentativa de criar um órgão eleitoral paralelo, com a possibilidade de manejar os resultados do referendo para tentar derrocar o presidente. (CJ)
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INTERNACIONAL ÁFRICA
Paz é crucial para Sudão, diz ONU Joyce Mulama de Nairóbi (Quênia)
Nigrizia
Governo sudanês é acusado de tolerar “limpeza étnica” realizada por milícias árabes contra maioria negra em Darfur
A
Campo de refugiados na fronteira Sudão-Chade; população é vítima de saques e massacre da milícia árabe Janjaweed
norte-sul não só ajudaria a frear a disseminação do conflito em outras partes do país como também serviria como base e catalisador para a resolução de outros conflitos no Sudão”, ressaltou. A expectativa era de que o governo sudanês e o SPLM assinassem, no dia 19 de novembro, um memorando de entendimento se comprometendo a alcançar um acordo final em 31 de dezembro. De todo modo, o vice-presidente do Sudão, Ali Osman Taha, limitou-se a dizer, no dia 18 último, que “uma negociação pacífica é o único caminho par a um acordo integral de paz no país, e logo se terá esse entendimento”, sem falar em datas. O líder dos rebeldes no sul, John Garang, se mostrou mais disposto a estabelecer um prazo para o fim das negociações, e disse aos integrantes do Conselho de Segurança que “as duas partes devem chegar a entendimentos sobre as questões mais importantes e assinar um acordo integral de paz no final de 2004. A paz tem um preço,
e estamos preparados para pagálo”, garantiu. O representante do SPLM e seu braço armado na África do Sul, Barnaba Benjamin Marial, expressou a mesma posição em entrevista à IPS. “Esperamos um acordo de paz ainda este ano. Todos (no sul do Sudão) desejam a paz. As pessoas querem os dividendos da paz, e ninguém tem vontade de voltar a combater”, afirmou. O avanço rumo à paz no sul foi ofuscado pela crise em Darfur, que foi um reino independente até ser anexado
pelo Sudão em 1917. Os conflitos nessa região começaram nos anos 70, como uma disputa por terras de pastoreio entre nômades árabes e agricultores nativos negros. “A terrível situação em Darfur se deve em sua maior parte a atos deliberados de violência contra civis, incluindo matanças e violações. Devido à magnitude e intensidade do sofrimento humano nessa região, o conflito se mantém como uma preocupação constante”, disse Annan. Desde julho, a ONU aprovou duas recomendações sobre esse conflito, no sentido de pressionar Cartum a desarmar as milícias árabes e restabelecer a segurança em Darfur, mas o secretário-geral
das Nações Unidas disse no dia 18 de novembro ao Conselho de Segurança que tanto o governo sudanês quanto as janjaweed e os rebeldes violam um cessar-fogo que assinaram em abril. Havia a expectativa de que o Conselho de Segurança aprovasse no dia 19 uma nova resolução sobre Darfur, e a organização humanitária Human Rights Watch, com sede em Nova York, esperava que a oportunidade fosse aproveitada para impor um embargo contra a venda de armas para o governo sudanês, bem como sanções econômicas e a proibição a seus principais integrantes de realizar viagens internacionais. Até agora, a idéia de punir Cartum encontrava resistência na Rússia e China, dois dos cinco membros permanentes do Conselho com direito a veto, e também por parte da Argélia e do Paquistão, que estão entre os 10 membros rotativos. A Anistia Internacional, com sede em Londres, divulgou no dia 19 de novembro um relatório acusando China e Rússia de facilitarem o conflito em Darfur fornecendo ao governo do Sudão aviões de combate, veículos militares terrestres e munições. (Com a colaboração de Moyiga Nduru, de Johannesburgo, IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
Situação vence eleições na Namíbia Rafael Contreras de Windhoek (Namíbia)
Desse modo, o ministro da Terra, Hifikepunye Pohama, substituirá o atual chefe de Estado, Sam Nujoma, na Presidência da República no dia 21 de março de 2005, data que coincide com o 15º aniversário da independência da Namíbia. Para Katuutire Kaura, candidato do oposicionista DTA, fica relegada a segundo plano sua aspiração ao assento presidencial, cabendo-lhe o terceiro lugar em cadeiras na Assembléia Nacional. O DTA, que tem atuação totalmente anti-swapo e é apoiado por setores brancos e sul-africanos, questionou o resultado do pleito. Um porta-voz da Comissão Eleitoral explicou aos jornalistas que
No dia 19 de novembro, a Comissão Eleitoral da Namíbia declarou oficialmente como ganhadora das eleições a Organização Popular da África do Sudoeste (Swapo, na sigla em inglês), notícia que era esperada pela maioria dos namíbios. Ao concluir a contagem de votos em 12 das 13 províncias do país, o órgão eleitoral informou que a Swapo tinha obtido até aquele momento 74,7% dos votos, enquanto que seu principal concorrente, o Movimento Democrático Turnhalle (DTA, na sigla em inglês), conseguiu 7,3%.
ainda era prematuro definir as posições dos diferentes partidos no Congresso, dado que faltava terminar a contagem em uma das províncias. No entanto, afirmou o portavoz, a Swapo tinha obtido até aquele momento 83,1% dos votos para cadeiras no Parlamento, o que representa a maior quantidade desde sua independência, há 14 anos. Esse resultado permitirá ao partido do governo reeleito nas urnas ter uma importante representação no Parlamento de 72 deputados, lugar considerado vital para a gestão da nova administração governamental. Paula Kapia, secretária da Swapo, ressaltou que a vitória alcan-
çada pela organização nas terceiras eleições da Namíbia é considerada hoje no país um triunfo do povo e das forças progressistas no mundo. Nas eleições da Namíbia, realizadas nos dias 16 e 17 de novembro, tiveram direito a voto 977,74 mil pessoas. O pleito foi acompanhado por 119 observadores internacionais e africanos. Duas semanas antes, já estavam em Windhoek, capital do país e cidade de 720 mil habitantes, delegados da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), da União Africana (AU) e da União Européia para fiscalizar o processo eleitoral. (Prensa Latina www.prensa-latina.org)
Sem-terra brasileiros encontram sul-africanos da Redação Representantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil fizeram recente viagem de intercâmbio à África do Sul. O convite ao MST veio da organização sulafricana Development Action Group (DAG – Grupo de Ação pelo Desenvolvimento), resultado de contatos realizados no último Fórum Social Mundial e da articulação internacional da Via Campesina, de que ambas as entidades participam. A DAG trabalha com projetos de assentamentos urbanos para famílias negras e pobres da Cidade do Cabo (extremo sul do país). A organização não só articula a luta pela conquista de um lote de terra
Dida Sampaio/AE
celerar a negociação de paz entre o governo sudanês e o Movimento Popular de Libertação do Sudão (SPLM), insurgente no sul, é crucial para o conflito em Darfur, no oeste sudanês, afirmou no dia 18 de novembro Koffi Annan, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Annan expressou essa opinião no início de uma reunião de dois dias do Conselho de Segurança da ONU em Nairóbi, a quarta a acontecer fora de Nova York desde a criação do fórum mundial em 1945. O embaixador norte-americano nas Nações Unidas, John Danforth, ex-representante no Sudão do presidente de seu país, George W. Bush, impulsionou a sessão no Quênia para apoiar expressamente e acelerar as negociações que aconteceriam ali, desde 2002, entre Cartum (capital sudanesa) e o SPLM. O Exército Popular de Libertação do Sudão, braço armado do SPLM, luta pela autonomia do sul do Sudão, onde a população é majoritariamente negra e cristã ou animista; a população do norte, na maioria branca e muçulmana, controla o governo central e é partidária de aplicar a lei islâmica. Desde 1983 esse conflito causou a morte de mais de 2 milhões de pessoas. Na reunião de Nairóbi também foi dada especial atenção para a crise política e humanitária em Darfur, onde o governo sudanês é acusado de incentivar ou tolerar uma campanha de “limpeza étnica” com matanças, seqüestros, violações e destruição de bens, realizada pelas milícias árabes janjaweed (homens a cavalo) contra a maioria negra da região. Segundo a ONU, cerca de 70 mil integrantes das comunidades negras fur, masalit e zaghawa, de Darfur, em sua maioria muçulmanos, foram assassinados e outros 1,5 milhão obrigados a abandonar suas casas por essas milícias, dos quais 200 mil se refugiaram no vizinho Chade. Em fevereiro do ano passado, o Exército para a Libertação do Sudão e o Movimento Justiça e Equidade pegaram em armas em Darfur contra Cartum, em nome da relegada população negra, e a resposta do governo foi armar as janjaweed. As negociações para acabar com os combates no sul do Sudão acontecem com patrocínio da Autoridade Intergovernamental sobre Desenvolvimento, integrada por Eritréia, Djibuti, Etiópia, Quênia, Somália, Sudão e Uganda. O resultado inclui seis protocolos que tratam da criação de um governo de transição e da divisão da riqueza proporcionada pelo petróleo, bem como a convocação, seis anos depois da eventual assinatura de um acordo de paz, de um referendo para determinar se os habitantes do sul do Sudão querem a independência. Mas esse acordo final não foi conseguido, basicamente por profundas discrepâncias sobre a idéia de criar, antes da realização do referendo, Forças Armadas que reúnam as atuais partes em conflito, e sobre o futuro dos atuais rebeldes que não participarem dessa eventual fusão. Por outro lado, o SPLM defende o envio ao Sudão de uma força da ONU cujo mandado permita usar a força para evitar o reinício das hostilidades, enquanto Cartum quer uma que somente seja observadora. “Os efeitos da demora (em conseguir um acordo final) não se sente apenas no sul, mas também em todo o resto do país, à medida que o conflito se estende. O devastador conflito em Darfur é uma óbvia evidência disto”, afirmou Annan, em Nairóbi. “Por essa razão, o momento de decidir é agora (...). A rápida conclusão das conversações
popular de crédito e setores do governo. A DAG é composta por profissionais liberais, como arquitetos, administradores e advogados. Outro importante contato dos semterra brasileiros foi com o Landless People Movement Trabalhadores rurais sem-terra sul-africanos em (LPM - Movimento passeata organizada pelo LPM dos Sem Terra da nos grandes centros urbanos para África do Sul) em Johannesburgo, trabalhadores negros que perderam capital econômica do país. O LPM suas terras para os brancos duran- congrega trabalhadores rurais que te os quase 50 anos do regime do foram expulsos do campo durante apartheid (de segregação racial), o apartheid e lutam pela devolucomo também planeja junto com ção de suas terras e por reforma as famílias a construção das resi- agrária. O movimento é novo na dências, em parceria com um banco África do Sul, tendo apenas 3
anos de existência. Estima-se que há 2,8 milhões de sem-terra sul-africanos, a maioria negros, e que 80% das terras férteis do país estejam nas mãos dos agricultores brancos. Desde o fim do apartheid, em 1994, apenas 3% dos agricultores negros conseguiram retornar ao campo. Às organizações sul-africanas interessa muito conhecer a experiência do MST. Segundo os representantes do movimento brasileiro que estiveram na África do Sul, a viagem foi um momento de intercâmbio, de troca de experiências na perspectiva de construir e reforçar alianças internacionais em diversos cantos do mundo. Está prevista para 2005 a visita ao Brasil de lideranças do LPM e da DAG.
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AMBIENTE SEMI-ÁRIDO
Proposta para matar a sede e a fome
Dieter Bühne
N
os últimos anos, a seca do semi-árido brasileiro parece estar deixando de ser um problema. A boa notícia foi dada pelos participantes do 5º Encontro Nacional da Articulação do SemiÁrido Brasileiro (Enconasa), que aconteceu entre os dias 16 e 19 de novembro, em Teresina (PI). Reunidos, representantes de movimentos sociais, igrejas, sindicatos, organizações não-governamentais e agricultores definiram a seca como uma característica natural da região onde vivem, não um problema. E propõem uma revolução cultural para transformar as condições de vida da população sertaneja por meio de políticas de convivência com o meio ambiente, não de sua alteração. Durante os quatro dias do encontro, foram apresentadas tecnologias alternativas para melhorar a disponibilidade de recursos hídricos e a terra da região e estimular a convivência da população com o clima local. Por exemplo, a cacimba, um poço raso, capaz de fornecer água para uso humano, animal e agrícola; o barramento de água de estradas, uma forma de captar a água da chuva que escorre na lateral das vias da região, armazená-la e usá-la para irrigação. O ministro Miguel Rossetto, do Desenvolvimento Agrário, estava na programação do 5º Enconasa. Cancelou sua presença com cerca de 12 horas de antecedência. Também houve debates sobre reforma agrária, agricultura familiar, educação contextualizada (adequada à realidade local), desertificação, transposição do Rio São Francisco, economia solidária, entre outros temas.
Viviane Brochardt
Fernanda Cruz
Luís Brasilino enviado especial a Teresina (PI)
Rosa Sampaio
Encontro aponta reforma agrária e revolução cultural como saída para enfrentar seca do semi-árido
Seminário realizado em Teresina sobre o semi-árido discutiu os rumos da reforma agrária, agricultura familiar, desertificação e transposição do Rio São Francisco
Mas, em alguns lugares, políticos menos hábeis chegaram a investir contra as novidades. Proibiram comunidades de receber cisterna, apelaram para o imaginário religioso da população, sustentando que as políticas alternativas representavam o pecado da usura, entre outros.
ORGANIZAÇÃO com a população do semi-árido, como as cisternas e as barragens subterrâneas, vamos refletindo sobre o que está acontecendo atualmente”, diz Roberto Malvezzi (Gogó), coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
REAÇÕES CHUVA “Seguimos uma metodologia de educação popular, com prática e teoria. Ao mesmo tempo em que fazemos experiências inovadoras Cisterna – Pequeno reservatório que capta e armazena água das chuvas para uso doméstico e irrigação de pequenas áreas. Barragem subterrânea – Com profundidade média de 2,22 metros e 60 metros de comprimento, esta barragem aproveita água de enxurradas e de pequenos riachos para irrigação e melhorias do solo. Semi-árido – Característica climática dos nove Estados do Nordeste, norte de Minas Gerais e Espírito Santo.
As pessoas, acrescenta, precisam entender que chove no semiárido, que o problema é a evaporação, que pode ser resolvida com o armazenamento adequado da água. Pode-se recolher a água quando chove e usá-la em períodos de estiagem. “Precisamos dar esse novo passo, entrar em harmonia com esse bioma”, enfatiza Gogó. Segundo os participantes do Enconasa, não se pode mudar a natureza, mas o jeito do ser humano se relacionar com ela. A idéia é transformar esta nova mentalidade em arte e transmiti-la não só para o semi-árido, mas para
todo o país, que também tem uma imagem negativa da região. Estas mudanças, no entanto, causam muito desconforto à classe política nordestina, que construiu seu poder em cima da visão de que o semi-árido é uma região inviável. Assim, a cada período de estiagem, a região exige recursos extras do governo federal, realimentando o vicioso círculo da indústria da seca. “Eles precisam manter o conceito de região inviável. Quando é feita uma outra proposta de fortalecimento da população local com pequenas obras, autônomas, quebra-se a dependência e os políticos reagem”, constata Gogó. Ele conta que há dois tipos de reação das elites. A primeira é um certo silêncio. A maioria toma essa posição, principalmente governadores e prefeitos. Eles esperam ver a cultura de convivência fracassar.
Promovendo os Enconasa desde 2000, a Articulação do Semi-Árido (ASA), composta por cerca de mil entidades não-governamentais, se mobiliza para enfrentar esta reação das elites e manter o avanço dessa revolução cultural. Enio da Silva Nobre Rabêlo, da Cáritas de Quixadá (CE), afirma que a articulação está também assustando as oligarquias. “A ASA leva informação, organização e mobilização. Quando uma pessoa toma consciência de sua condição de oprimida, deixa de aceitar tudo que é imposto”, analisa. A partir daí, continua Rabêlo, a pessoa passa a saber que tem direito à paz e à dignidade, se sente fortalecida e sabe a quem procurar. A seu ver, o sertanejo pode não só mudar sua vida, como ajudar outra pessoa mudar. “A elite vai continuar oprimindo, mas a população consciente vai impedi-la de
continuar manipulando”, esclarece Rabêlo.
ALTERNATIVAS A história de luta do semi-árido é muito antiga, e anterior ao surgimento da ASA(1992). No entanto, foi a entidade que passou a fundamentar um trabalho mais organizado de entidades que começaram a atuar de forma descentralizada, apesar de terem objetivos e metas comuns. Em cada comunidade são discutidas as necessidades da região. As idéias debatidas são levadas ao fórum estadual, onde vão sendo formuladas alternativas. Assim, por exemplo, nem sempre uma solução para o sertão central do Ceará serve à Paraíba. Mas todas as contribuições são válidas para o processo de reeducação da população. “A discussão levada para a comunidade não é a construção da cisterna. Esse é o fato real. Na verdade, as pessoas da comunidade começam a se articular, conversar e mobilizar”, conta Rabêlo. Isso trouxe uma grande mudança. As pessoas começaram a perceber que aquele vizinho que era um inimigo, pode virar um parceiro.
Sem abrir mão da reforma agrária Apontar a seca do semi-árido como problema, é a principal base de sustentação da indústria da seca e, conseqüentemente, da opressão e pauperização da população sertaneja. A conclusão é dos participantes do 5º Encontro Nacional da Articulação do Semi-Árido Brasileiro (Enconasa). Para vencer este obstáculo, a melhor forma de agir é estimular uma revolução cultural, apresentando soluções de convivência com a seca, acabando com a idéia de vítima impregnada no imaginário da população local. Contudo, essa estratégia tem pouca força se estiver separada de um programa de reforma agrária. Pior, para Ruben Siqueira, coordenador da CPT da Bahia, se as tecnologias alternativas não forem acompanhadas de distribuição de terras, elas também passam a ser um argumento de contra-reforma. A mandala, por Mandala – Racioexemplo, posnaliza e otimiza o uso da água em sibilita que as um pequeno reserpessoas vivam vatório cônico para num terreno irrigação por gotejamento, e criatório muito pequeno, de peixes e aves, coexistindo com como patos. o agronegócio.
Uma terra e duas águas Existem cerca de 2 milhões de estabelecimentos rurais familiares no semi-árido, número que corresponde a 42% do total de unidades agrícolas do Brasil, mas só a 4,2% da área rural do país. Por conta dessa alta concentração fundiária, a maioria daquelas propriedades tem menos de 10 hectares. Esta situação coloca parte das famílias num círculo vicioso de degradação do meio ambiente,
fome e miséria. O próximo passo da Articulação do Semi-Árido para reverter este quadro é o Programa uma terra e duas águas (P1+2), que pretende promover, além de melhores condições de vida, desenvolvimento econômico para a população. Com uma terra para plantar, resultante da reforma agrária; uma água potável e uma segunda água para a produção.
Por isso, quando a ASA foi articulando o processo de convivência com o semi-árido, a direção da CPT pensou: “Temos que colocar a questão da terra nisso, senão daremos um tiro no pé”. O Programa uma terra e duas águas (P1+2, veja quadro) é a incorporação da terra nessa dinâmica. “Tenho a clareza de que o ‘1’ é a parte difícil do projeto. Todo mundo se engana com a segunda água porque pensa que a solução pode ser tecnológica. Mas ninguém é contra levar água. Até a Federação Brasileira de Bancos – Febraban está no
Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC). E o que é a Febraban senão o principal setor que desgraça esse país hoje”, observa Siqueira.
PESSIMISMO O dirigente da CPT, no entanto, tem uma visão pessimista dos próximos anos. Para ele, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva já deixou clara sua opção pelo agronegócio e a reforma agrária parece ficar cada vez mais distante. Na avaliação de Siqueira, o Plano Nacional de Reforma Agrária não é um ‘plano de reforma agrária’
porque, quando se assenta mais do que o dobro de famílias por um instrumento que não é a desapropriação, mas a regularização fundiária (um processo de aceitação da grilagem), ou o crédito fundiário (a reforma agrária de mercado), a estrutura fundiária não está sendo democratizada, nem alterada. Na sua opinião, o governo vai empurrando o programa com a barriga. “Nesse ano, não cumpriu metade das metas previstas, assim como fez no ano passado e como deve repetir no próximo. O governo vai engabelando o movimento social”, diz o coordenador da CPT-BA.
PROPOSTA A ASA não é apenas uma instituição que trabalha com cisternas ou em busca de acesso a água, concluíram os cerca de 500 participantes do 5º Enconasa. “Ela quer formular uma proposta de desenvolvimento para o país a partir dos trabalhadores. E a reforma agrária é um elemento do qual não podemos abrir mão. Sem ela, jamais vamos construir o nosso projeto”, informa Carlos Humberto Campos, representante do Piauí na coordenação executiva da ASA.
No semi-árido, como em todo o Brasil, há um clamor pela reforma agrária, disse ele. “ Elaboramos um documento que retrata a luta e a vontade do povo de construir uma coisa diferente. Queremos uma reforma agrária onde os pequenos agricultores possam ter terra para trabalhar, água de qualidade, crédito, orientação técnica”, sustentou Campos ao final do encontro.
REIVINDICAÇÕES A “Carta do Piauí – Carta da Terra”, documento final do 5º Enconasa, defende o limite do tamanho da propriedade da terra (35 módulos fiscais); a revogação da medida provisória que impede por dois anos as vistorias em terras ocupadas por sem-terra; destinação para reforma agrária de terras públicas hoje arrendadas para plantio de eucalipto e outras monoculturas; regularização da posse da terra para agricultores familiares que ainda não possuem propriedade formal; imediato reconhecimento das terras das comunidades quilombolas; demarcação e proteção de terras indígenas; aprovação do projeto de lei que propõe a expropriação das áreas com trabalho escravo. (LB)
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DEBATE REFORMA DO JUDICIÁRIO
Marcelo Semer e a reforma do Judiciário pretende combater a morosidade processual ou a impenetrabilidade na administração da Justiça, pode-se supor que seus resultados estarão bem aquém das expectativas. A esperança de que uma perspectiva democrática e popular arejasse a hierarquizada estrutura do Judiciário e permitisse um maior controle social sobre o exercício do poder frustrou-se. A proposta aprovada muda pouco e os congressistas desperdiçaram a oportunidade para uma reforma radical na Justiça. Entre mortos e feridos, sobraram mais ações retóricas do que efetivas para garantir a celeridade dos julgamentos, além de um significativo aumento da verticalização do poder. A idéia, louvável, de abrir o Judiciário a um controle social, foi mal aproveitada. Ao final, foi criado um órgão integrado à estrutura do próprio Judiciário, com nítido viés disciplinar. O Conselho Nacional de Justiça será composto em sua maioria de indicados dos Tribunais Superiores e coadjuvantes históricos da Justiça. Se fosse moral o problema do Judiciário, até se entenderia a preocupação do legislador em pensar em um novo órgão correcional – para responder ao invocado reclamo da opinião pública, ou a opinião que se faz pública, de que o principal objetivo é sempre “combater a impunidade”. O maior problema do Judiciário, contudo, não é ético, é sistêmico, de estrutura – e por isso um órgão a mais com caráter disciplinar dificilmente irá solucioná-lo. Recentemente a secretaria de reforma do Judiciário concluiu que os recursos injetados nos Judiciários do país são mal empregados.
S
Há nitidamente uma crise de gestão. Mas, sendo esse o problema, não basta um órgão disciplinar – a má administração nem sempre se traduz em atos ilegais. Em passado não remoto, um Tribunal do Estado mais desenvolvido do país empregou verba de modernização do serviço na aquisição de veículos oficiais, numa equivocada escolha das prioridades públicas. Para resolver problemas como esse, melhor seria se o novo conselho tivesse um perfil de planejamento, servindo de instrumento para que a sociedade, por intermédio de seus representantes, pudesse participar destas escolhas da política judiciária. No começo dos trabalhos da Reforma, ainda na Câmara dos Deputados, a Associação Juízes para a Democracia apresentou um projeto neste sentido: a criação de Conselhos de Planejamento e Ouvidoria, em níveis estaduais e federal, junto a todos os tribunais. Isto faria com que esses órgãos, compostos por membros do Judiciário e pessoas da sociedade civil, pudessem participar, por exemplo, da elaboração orçamentária; ou ainda que o próprio órgão tivesse por si só iniciativa legislativa. Isto quebraria o monopólio dos tribunais na proposição de leis e tornaria pública a discussão política acerca dos gastos judiciários, se dirigidos a prédios suntuosos ou para a já atrasada informatização. Antes, e não depois que as decisões fossem tomadas. Da proposta original, infelizmente, restou acolhida apenas a idéia de Ouvidorias nos Estados. MODIFICAÇÕES TÍMIDAS
Nas mudanças processuais propriamente ditas, a reforma foi tímida. Não avançou para a reivindicação histórica de
Kipper
As crises que não se reformam
uma Corte Constitucional, que pudesse resolver o problema da enormidade de recursos no Supremo Tribunal, liberando-o para o julgamento rápido de ações diretas e feitos de intensa repercussão. Nem estabeleceu regras mais nítidas para ampliar as ações coletivas. Optou-se por um caminho perigoso e incerto: diminuir o número de processos com as súmulas de efeito vinculante, que violam diretamente a independência do juiz. A idéia da decisão vinculante, de seguimento obrigatório, e de orientação que só poderá ser alterada pela própria Corte Suprema, engessa firmemente a criação jurisprudencial. Esta é, em regra, proveniente das decisões das instâncias inferiores, quando enfrentam e não apenas reproduzem paradigmas tradicionais. Assim se deu, por exemplo, com o reconhecimento dos direitos da concubina, até a sua proteção legal, e tem-se dado atualmente com o incremento de tutela em prol de consumidores e cidadãos, para com planos de saúde, ou na exigência judicial de prestações públicas não adimplidas pelo Estado.
Com o Conselho Nacional de Justiça, composto por indicações dos tribunais superiores, e as súmulas vinculantes, aumenta-se a verticalização do Judiciário, com maior concentração de poder administrativo e jurisdicional nas cúpulas. O fato de as decisões judiciais ficarem mais previsíveis com as súmulas, como sempre pretendeu o sistema financeiro internacional, de modo a padronizar caminhos para investidores estrangeiros, não significa que ficarão mais democráticas ou mais populares. Ao revés, tendem a ficar ainda mais elitistas. Nem tudo é equívoco na reforma, dentro de um conjunto tão sortido de disposições legais. Assim, embora quase acaciano, é importante a explicitação de que as sessões dos tribunais devam ser abertas (para evitar que sejam secretas), que as decisões devem ser sempre fundamentadas, mesmo as administrativas, e que todos os processos nos tribunais sejam imediatamente distribuídos a seus juízes. É pertinente a extinção dos últimos tribunais de alçadas do país, otimizando recursos ao unificar cortes, e sem
dúvida positiva a incorporação de tratados internacionais sobre direitos humanos como matéria constitucional, mesmo que a eles se tenha imposto a aprovação por um quórum qualificado. É também elogiável a autonomia das defensorias públicas, predicado necessário, conquanto não suficiente, para compelir o Estado cercado por gerentes neoliberais, a despender recursos para as atividades sociais. A frustração com o conjunto final, porém, não é menos intensa por causa destes acertos. De uma reforma produzida na gestão de um governo composto por pessoas historicamente comprometidas com a causa popular, esperavase, no mínimo, que a redemocratização que atingiu o país desde a década de 80 finalmente alcançasse o Judiciário. Continuamos, no entanto, sob estruturas arcaicas, trombando quase sempre com a síndrome dos desiguais, reafirmando mais as nossas diferenças do que a igualdade na cidadania. Mantém-se a distinção entre juízes de instância inferior e os membros dos tribunais: só os últimos participam da escolha dos dirigentes do poder, como se fosse uma eleição censitária, estimulando o corporativismo de cúpula. A Justiça Militar subsiste, como uma Justiça criminal entre pares, contribuindo para a perpetuação de altos índices de violência policial nas cidades. O foro privilegiado não só sobrevive como ainda será incrementado para nele incluir os ex-ocupantes de cargos públicos (afinal todos que estão agora no poder um dia serão ex) e abranger ações cíveis de improbidade. Isto resulta em concentrar na cabeça do poder o julgamento dos ilícitos das autoridades, o que nunca produziu resultados satisfatórios no país, principalmente pela extensa vinculação entre crime organizado e poder político. E as cúpulas do Judiciário, fortemente revigoradas na reforma, continuam sendo escolha exclusiva do chefe do Executivo. Em suma, nem resolvemos a crise de legitimidade, nem atacamos a de eficiência. Marcelo Semer é juiz de direito em São Paulo, membro da Associação Juízes para a Democracia e professor de Direito Penal e Processo Penal
Uma reforma limitada Andrei Koerner Emenda Constitucional de Reforma Judiciária traz inovações positivas, mas seu impacto institucional deve ser limitado, pois o resultado final está bastante aquém dos objetivos e propostas iniciais de reforma. É provável que haverá maior rapidez e previsibilidade nas decisões dos tribunais superiores, pois será limitado o número de processos admitidos e julgados por esses tribunais, reduzindo-se os incentivos à utilização de recursos. O Supremo Tribunal Federal (STF) poderá julgar apenas causas de repercussão geral e as súmulas, de efeito vinculante (SEV) e impeditiva de recursos, poderão estabelecer regras interpretativas que limitam os processos a serem examinados pelos tribunais. Porém, a Emenda traz riscos desnecessários para os direitos e garantias constitucionais, como é o caso da SEV. Esta se baseia numa concepção equivocada da decisão judicial, pois prevê que o STF formulará regras obrigatórias para os juízes inferiores, o que supõe uma relação de subordinação entre as instâncias de decisão judicial. Porém, mais do que uma estrutura de autoridade para a decisão de litígios individuais, o sistema judicial é um espaço regrado de argumentação, em que as decisões legítimas são as que mobilizam as interpretações mais
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consistentes das instituições jurídicas. As decisões que se impõem são as justificadas pelos melhores argumentos e não as que atualizam a instância superior. Pode-se prever que o STF formalizará, nas SEV, orientações que já se fundam nos melhores argumentos e, pois, que essa inovação se torne inócua. A inutilidade se manifesta se considerarmos que o STF já tem o poder de emitir Súmulas e que a reforma prevê que o tribunal possa selecionar os casos a julgar em função de sua repercussão e ainda as Súmulas Impeditivas de Recurso, que poderão ser adotadas pelos tribunais superiores (STJ e TST). A SEV acentua a concentração do poder decisório no STF, cujas características o distinguem das Cortes Constitucionais européias. Essas têm ministros com mandatos de duração determinada, nomeados pelos representantes políticos, segundo as orientações políticas dos partidos relevantes. Os ministros do STF são nomeados pelo presidente da República, com aprovação do Senado, com mandato vitalício. Isto pode produzir uma coalizão de ministros contrária à orientação política dos representantes eleitos, criando decisões politicamente controvertidas, o que trará atritos entre os poderes sem forma legítima de resolução nem prazo razoável para a modificação da situação. Ou, inversamente, se a maioria
do STF apoiar as decisões majoritárias e usar suas atribuições para impor decisões juridicamente controversas, levará a atritos internos com os juízes. Como contrapartida, esses produzirão interpretações alternativas, que desafiam a orientação do tribunal supremo e reabrem os debates jurídicos que se supunha fechados com a enunciação da SEV. Vê-se, pois, que, ao contrário do que afirmam alguns analistas, a SEV não é necessária nem suficiente para produzir previsibilidade das orientações jurisprudenciais. Quanto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), fica aquém das necessidades de inovação do modelo institucional do judiciário brasileiro. Tal como criado na Emenda, o CNJ é formado majoritariamente por juizes e tem atribuições de controle externo da execução orçamentária e a conduta de juizes. A proposta de criação do CNJ inspirou-se nos Conselhos de países europeus, nos quais é mais limitada a participação de juizes em proveito de membros externos às profissões judiciais, indicados pelos representantes eleitos. Esses Conselhos têm atribuições mais diversificadas, dado que o seu objetivo primordial não é apenas o de controle disciplinar e fiscalização da execução orçamentária, mas a definição da política judiciária (a definição de prioridades, estratégias organizacionais, recursos orçamentários, meios materiais e
perfis profissionais). No Brasil, o CNJ deveria ter como propósito central o de eliminar a problemática combinação entre o insulamento político e as atribuições judiciais e administrativa dos órgãos de cúpula do Judiciário. Os membros desses órgãos dispõem de grande autonomia, não só por causa de suas irrecusáveis garantias funcionais, mas porque acumulam, com pouca transparência, poderes de três ordens: 1. de política judiciária, ou seja, a definição de diagnósticos, prioridades, o planejamento e a gestão orçamentária e do pessoal do judiciário; 2. de governo dos juizes, as decisões sobre os processos de seleção, atribuição de posições e de promoção dos seus pares; 3. de revisão judicial, que lhes permite definir a natureza e o escopo de suas próprias atribuições, dado que quaisquer atos dos poderes do Estado são sujeitos ao exame judicial e à revisão da sua constitucionalidade. Assim, se o CNJ for bem-sucedido, pode-se esperar que, mais do que órgão de controle externo, ele se torne um espaço de agregação de informações sobre experiências bem-sucedidas, de reflexão e de proposição de inovações, que se tornarão referências para mudanças na legislação assim como das práticas e rotinas do Judiciário. A Emenda tem mudanças posi-
tivas, pontuais, que lhe foram adicionadas ao longo da tramitação. Pode-se citar a quarentena para os juizes que se aposentarem, a autonomia administrativa das defensorias e a criação de varas especializadas em conflitos fundiários. Outro ponto é o da federalização do julgamento de acusados de graves violações de direitos humanos. Enfim, ao determinar a publicidade dos julgamentos e sessões administrativas dos tribunais, permite maior transparência das decisões internas do Judiciário. Essa regra, que supõe a fundamentação das decisões, permitirá maior escrutínio público da dinâmica interna do Judiciário. A reforma traz, pois, inovações positivas, mas limitadas. O processo de adequação do sistema judicial à efetividade democrática em nosso país está, ainda, em seus momentos iniciais. É necessário superar um modelo que projeta o princípio constitucional da separação dos poderes à sua organização e práticas, em prejuízo da maior integração dos serviços de justiça. É preciso que esses serviços sejam não só mais rápidos e efetivos, mas também que sejam mais abertos à participação e que as suas decisões sejam mais adequadas às necessidades e concepções de justiça da população. Andrei Koerner é professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA LIVRO
sa das Áfricas em viagens e trabalhos de campo pelo continente. Local: Biblioteca Mário de Andrade, R. da Consolação, 94, São Paulo Mais informações: (11) 3256-5270
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CEARÁ SEMANA DE COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER Até 27 de novembro A atividade, promovida pelo Centro Socorro Abreu de Desenvolvimento Popular e Apoio à Mulher, terá oficinas, palestras, celebrações, reuniões, exibição de filmes temáticos. Os eventos acontecem em vários bairros de Fortaleza: Ellery, Pirambu, Barra do Ceará, Maraponga, Goiabeiras, Jardim Iracema, Carlito Pamplona, Álvaro Weyne e Genibaú. O Fórum de Mulheres e a Associação dos Parentes e Amigos de Vítimas da Violência (Apavv) também participam da organização, além de associações, igrejas, pastorais sociais e movimentos das comunidades. Mais informações: (85) 3283-6363, socorroabreu@fortalnet.com.br CIRANDAS DO SABER MOVIMENTOS, SABERES E CULTURA POPULAR 27 de novembro, 17h Seminário realizado pela Escola de Planejamento Urbano e Pesquisa Popular. Durante o evento haverá o “Aulão da Saudade” sob o tema “Cultura e educação popular estratégias e instrumentos de radicalização da democracia”. Acontecerá também um encontro cultural com a participação de artistas populares locais e espetáculo com Lia de Itamaracá. O evento marca o encerramento do Projeto Multiplicadoras e Multiplicadores do Saber para a Cidadania, que realizou ações junto a lideranças comunitárias.
SÃO PAULO 1ª FESTA CULTURAL DAS COMUNAS DA TERRA 28 de novembro, a partir das 10h Durante a festa haverá música, teatro, política, fotografia, culinária, artes plásticas e performances. Entre as atividades, estão apresentações da bateria da Gaviões da Fiel, do grupo de hip hop Oafro, do reggae de
Local: Concha Acústica da Universidade Federal do Ceará (UFC), entre as avenidas 13 de Maio e da Universidade, Fortaleza. Mais informações: (85) 3261-2607, epupp@cearahperiferia.org.br
MATO GROSSO VALORIZAÇÃO DA FLORESTA De 6 a 9 de dezembro Esse seminário integra o Plano Regional de Capacitação Ambiental do Subprograma de Política de Recursos Naturais (SPRN), coordenado pela Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável (SDS) do Ministério do Meio Ambiente, em parceria com o Instituto Banco Mundial (WBI), e visa capacitar e incentivar a utilização de forma sustentável dos recursos naturais da floresta (fauna silvestre, flora, recursos pesqueiros). A programação constará de palestras, mesa-redonda e mini-cursos técnicos. Local: Centro de Eventos do Pantanal, Av. Bernardo Antônio de Divulgação
João Terra, do som MPB de K-RAM-K, Kleber Albuquerque, Tata Fernandes, Ju Vieira, entre outras atrações musicais. O encontro visa unir campo e cidade numa nova articulação. Valores como cooperação e solidariedade, referências no campo e princípios esquecidos na cidade, por exemplo, serão temas resgatados nas participações do evento. A festa irá contar ainda, com apresenta-
ções teatrais, exposições fotográficas, uma mostra de curtas e uma oficina permanente de artes plásticas. Entrada franca Local: Acampamento Irmã Alberta, no KM 27 da Rodovia Anhangüera, São Paulo Mais informações: (11) 3661-7869 Gissela Mate Assessoria de Imprensa MST-SP www.mst.org.br
Oliveira Neto, s/n, Cuiabá. Mais informações: (61) 325-5488/3863, mario.cardoso@mma.gov.br
Este ano a marcha se realizará também nos Estados do Paraná e Santa Catarina. Em Porto Alegre, a concentração será no Planetário e a marcha deve se deslocar até a Praça da Matriz, onde acontecerá um ato político. Local: Concentração na Av. Ipiranga, 2.000, Porto Alegre
PARANÁ SEGURANÇA ALIMENTAR E DIREITOS DO CONSUMIDOR 4 de dezembro, das 9h às 12h Oficina programada para provocar um diálogo sobre qualidade da alimentação, saúde, medicamentos, condições precárias de vida e consumo responsável. Também farão parte da discussão aspectos relacionados aos direitos do consumidor, a fim de minimizar problemas vividos pelas comunidades, desde como fazer reclamações quando são encontradas irregularidades, como a data de validade vencida de produtos , até o famoso “troco de balas”, oferecido geralmente em troca de pequenos valores. O encontro é realizado pela Associação Difusora de Treinamentos e Projetos Pedagógicos (Aditepp). Local: R. Desembargador Westphalen, 1373, Curitiba Mais informações: (41) 223-3260, aditepp@aditepp.org.br, www.aditepp.org.br
RIO GRANDE DO SUL MARCHA DOS SEM 2004 26 de novembro, 13h30 Organizada pela Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), a Marcha vai cobrar do governo federal mudanças na política econômica e nas políticas sociais. A CMS defende a imediata redução da taxa de juros e investimentos em infra-estrutura como forma de gerar emprego e distribuir renda.
SÃO PAULO A REFORMA SINDICAL E SEUS REFLEXOS NAS ORGANIZAÇÕES E NOS TRABALHADORES 27 de novembro, das 14h às 18h Seminário promovido pelo Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo. Debatedores: senador Paulo Paim (PT/RS); deputado federal Sérgio Miranda (PT/MG); deputado federal Arnaldo Faria de Sá (PTB/SP); Antônio Augusto de Queiroz (Toninho), da Diap; João Guilherme Vargas Neto, consultor sindical; João Antônio Felício, da CUT/SP; Paulo Pereira da Silva, presidente da Força Sindical; Antônio Carlos dos Reis (Salim), presidente da CGT; Osvaldo Bargas, secretário de Relações do Trabalho (MTE); Murilo Celso Campos Pinheiro, presidente da Federação Nacional dos Engenheiros; Jorge Gomes, presidente da Central Brasileira de Profissionais Liberais. Local: R. Genebra, 25, São Paulo. Mais informações: (11) 3113-2603 www.seesp.org.br A ARTE DE TECER A VIDA Até 30 de novembro Exposição de tecidos artesanais, industriais, roupas e fotos de diversos países da África Subsaariana, reunidos por pesquisadores da Ca-
RELATÓRIO DIREITOS HUMANOS NO BRASIL 2004 2 de dezembro, 11h, São Paulo 8 de dezembro, 17h, Rio de Janeiro Lançamentos regionais do relatório, publicado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos em colaboração com outras 30 entidades. Um dos únicos documentos sobre os direitos humanos no país, aborda temas como trabalho escravo, violências contra os povos indígenas, violência no campo, transgênicos, Área de Livre Comércio das Américas (Alca), exclusão social, direito à saúde, à moradia e ao trabalho, presença de crianças e adolescentes no tráfico de drogas, criminalidade nos Estados do Espírito Santo e do Maranhão, violação dos direitos humanos a partir do agronegócio e Educação no Brasil. Local: Ação Educativa, R. General Jardim, 660, Vila Buarque, São Paulo; Universidade Federal do Rio de Janeiro, Casa do Estudante Universitário, Av. Rui Barbosa, 792, Rio de Janeiro. Mais informações: (11) 3271-1237, 3275-4789
1º FÓRUM PAULISTA DE JORNALISMO AMBIENTAL 11 de dezembro A atividade discutirá as relações entre mídia, sociedade e meio ambiente. A idéia central do encontro é aproximar jornalistas, empresários e estudantes. O evento também irá apresentar o Núcleo Paulista de Jornalismo Ambiental, que organiza o Fórum. Durante o encontro será lançado o Prêmio Aloysio Biondi de Jornalismo Ambiental Urbano, que premiará reportagens e artigos publicados na mídia paulista. Em sua versão acadêmica, o prêmio será oferecido ao melhor Trabalho de Conclusão de Curso sobre ambiente urbano realizado em faculdades de comunicação. Haverá mesas-redondas e oficinas sobre os seguintes temas: empresas e comunicação ambiental, formação em jornalismo ambiental, mídia e meio ambiente Local: Sesc Itaquera, Av. Fernando do Espírito Santo Alves de Mattos, 1.000, São Paulo. Mais informações: http://geocities.yahoo.com.br/ forumambiental2004/SP.html AS BACANTES Até 19 de dezembro, sábados às 21 h e domingos às 20 h O espetáculo teatral volta, em curta temporada. A tragédia grega conta a história do Deus Dionísio (Baco) e suas seguidoras, que chegam à cidade de Tebas em busca de vingança contra seus governantes. Ambição, poder, loucura e rituais misteriosos são alguns dos temas dessa história. Local: Teatro Studio das Artes, R. Dr. Augusto de Miranda, 786, São Paulo. Mais informações: (11) 3803-9396, teatrostudiodasartes@uol.com.br VIVER E MORRER NA CIDADE DE SÃO PAULO: O MASSACRE NO CENTRO 26 de novembro, das 10h às 13h Evento que reúne debate e mostra de vídeos sobre o massacre dos moradores na cidade de São Paulo. Na mesa estarão presentes: Paulo Endo (Cebrap); Edson Luiz André de Sousa (Psicologia Social e Institucional – UFRGS); Hélio Bicudo (Comissão Municipal de Direitos Humanos); Janaína Bechler (Agência Livre para Infância, Cidadania e Educação/ jornal Boca de Rua); José Arbex Jr. (Revista Caros Amigos); Lucila Pizani Gonçalves (Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Câmara Municipal de São Paulo); Maria Auxiliadora Arantes (Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae); Maria Helena de Souza Patto (IPUSP); Mariah Leick (Comunas Urbanas); Miriam Debieux Rosa (Laboratório Psicanálise e Sociedade USP/PUC); Jorge Broide (Núcleo Psicanálise e Sociedade do PPG Psicologia Social da PUC/SP). Local: Câmara Municipal, sala B, Viaduto Jacareí, 100, São Paulo. MÍDIA NA LUTA CONTRA A AIDS 1º de dezembro Seminário que acontece no dia Mundial de Luta Contra a Aids, com o objetivo de promover a reflexão da temática nos meios de comunicação. Durante o seminário, promovido pelo Grupo de Apoio à Prevenção à Aids de Ribeirão Preto (GAPA – RP), haverá discussões que vão abordar prioritariamente a imagem do portador na mídia, os conceitos de prevenção para o HIV/Aids e a responsabilidade social da mídia em relação à epidemia. Local: Hotel Taiwan, R. Lafaiete, 1370, Ribeirão Preto. Mais informações: eventos@gaparp.org.br
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CULTURA
De 25 de novembro a 1º de dezembro de 2004
MÚSICA CAMPONESA
Festival faz da arte um ato de resistência Beatriz Pasqualino de Curitiba (PR)
M
uita viola, discussão política e integração entre os povos latino-americanos. Esses foram os elementos que marcaram o 1º Festival Latino-Americano de Música Camponesa, que aconteceu de 17 a 21 de novembro, em Curitiba, no Paraná. Mais de 2 mil sem-terra, vindos de todos os Estados brasileiros, participaram da atividade promovida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em parceria com o governo do Estado do Paraná, com o objetivo de resgatar a cultura camponesa. O evento foi transmitido ao vivo pela TV Educativa do Paraná para todo o Brasil e para a América Latina. A programação se dividiu em um ciclo de debates no Parque Newton Freire Maia (antigo Parque Castelo Branco), no município de Pinhais, e um concurso de composições no Canal da Música, em Curitiba. “Esse festival está colocando toda a produção artística do nosso povo do campo em evidência na cidade, mostrando o seu valor e qualidade. Mas o principal é que estamos fazendo com que os compositores da cidade venham também beber nesta fonte da cultura camponesa”, disse o músico Pedro Munhoz, que integrou a comissão organizadora do festival. Para ele, enquanto o capitalismo trabalha para uma cultura consumista, a manutenção da identidade do campo exerce um papel importante para barrar essa ofensiva: “Estamos tentando fazer da arte camponesa uma resistência”. O governador Roberto Requião participou da abertura oficial do evento. “Dedico este evento aos Mesquita, do Estadão”, disse ele,
Fotos: Carlos Ruggi
Uma intensa programação cultural e debates sobre temas sociais integraram trabalhadores rurais e urbanos
Marlom Soares, de Curitiba (PR), canta A Seca
Pereira da Viola com o grupo Viola Quebrada: arte e compromisso com o movimento camponês
Experiências em comunicação Durante os cinco dias do festival, foram organizadas atividades paralelas, como exposição de fotos históricas dos 20 anos do MST, registradas por diversos fotógrafos em todo o país. Comunicadores e comunicadoras sem-terra também montaram uma rádio-poste, que levou música de raiz e informações sobre o festival no parque. Outro meio de divulgação do festival
foram os depoimentos dos participantes, registrados em vídeo pela chamada TV Tribuna. (Colaborou o Coletivo de Rádio do MST no festival: Ademilson Pereira, Adonis de Souza, Donizete Veloso, José Carlos Padilha, Rodrigo de Oliveira, Odair Trizote, Jocelaine Leite, Aldo Machado, Fabiano Casagrande, Agnado de Oliveira e Almir Rodrigo Oliveiro)
referindo-se à criminalização que o MST sofre da mídia, em especial do jornal O Estado de São Paulo, de propriedade da família Mesquita. Ainda na cerimônia de abertura, o coral Filhos da Terra cantou o hino do MST. O grupo é formado por 30 crianças filhas de assentados do município paranaense de Rio
Bonito do Iguaçu. Em seguida, o músico Pereira da Viola emocionou a plenária tocando o hino nacional. “É importantíssimo que os assentamentos e acampamentos retomem as folias de reis, as cantorias e rodas de viola para a construção dessa nova sociedade”, disse Viola. Durante duas noites, 24 concorrentes do concurso – sendo 11 do MST – se apresentaram no Canal da Música, dos quais 14 foram selecionados para a gravação de um CD com suas composições. Eles foram avaliados por um júri que escolheu as melhores músicas e letras com o tema “campo”. Os premiados foram: Daniel Vicente, Fernando Melo, Geraldo Sassamoto, Ângelo Passos, Márcia Araújo, Marcos Monteiro, Margareth Alves Makiolke, Zé Pinto, Gláucia (Bebé), Vitor Batista, Tales Ribeiro, Antônio Gringo & José Paulo, Raimundo Rolim e Acecir Carrigo. Os músicos selecionados participaram do espetáculo de encerramento do festival, quando se apresentaram também o uruguaio Daniel Viglieti, a sambista Beth Carvalho e o poeta Chico Pedrosa. Durante todo o festival grupos como Viola Quebrada, Os Pereiras e músicos sem-terra animaram a plenária.
Os participantes prestigiaram ativamente os cinco dias de arte camponesa
FORMAÇÃO POLÍTICA Mas não foi só de música que se fez o festival. Durante o dia, foram realizados debates no Parque Newton Freire Maia e exibidos filmes como Olga, Diários de Motocicleta e A
revolução não será transmitida. Além de representantes do Brasil, intelectuais da Venezuela, Cuba, Uruguai, Bolívia, México e Líbia compuseram as mesas que discutiram temas como projeto político latino-americano, soberania nacional, transgênicos e reforma agrária. As palestras mais esperadas, e que contaram com maior participação do público paranaense, foram do escritor uruguaio Eduardo Galeano, que fez a leitura de um trecho de seu novo livro, Bocas Del Tiempo, e da cubana Aleida Guevara, filha de Che, que falou sobre o legado do líder revolucionário. “O MST e a Via Campesina aprenderam com o movimento camponês da Índia que nós não herdamos a terra dos nossos pais, mas a tomamos emprestada dos nossos filhos”, disse João Pedro Stedile, da direção nacional do MST. Ele fez críticas ao governo federal com relação ao privilégio que o setor do agronegócio tem recebido em termos de políticas públicas. O economista e militante histórico pela reforma agrária, Plínio de Arruda Sampaio, destacou que a soberania brasileira está ameaçada pelo capital estrangeiro: “Se um povo não valoriza sua cultura, não tem como defender sua soberania”. Em sua exposição, o acadêmico venezuelano Edgardo Lander destacou o processo de militarização impulsionado pelos Estados Unidos com o caráter de uma guerra cultural em que a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) desempenha um papel importante. “Uma mudança depende da estrutura política e, para isso, é preciso integração e também garantir a autonomia dos povos”, defendeu. O jornalista José Arbex Jr. ressaltou que a ocupação do Iraque é uma estratégia do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, para a política petrolífera. “Há uma tática de invadir também a Amazônia, alegando a militarização do narcotráfico, mas isso é uma mentira articulada com a CIA (serviço de inteligência estadunidense). Os Es-
Gilvan dos Santos, de Teresina (PI), canta Cantiga da Terra
O cearense Ailton Soares canta Foi a Seca do Patrão
tados Unidos jamais combateram o narcotráfico em seu próprio país”, criticou Arbex. O escritor e diretor do Conselho Nacional da Casa de Cultura de Cuba, Fernando Rojas, compartilhou com os participantes do festival a experiência da revolução cubana. “Ser culto é a única maneira de não ser manipulado”, disse Rojas, que falou ainda sobre a importância da educação na preservação e valorização da cultura. Outras palestras do evento foram as da mexicana ambientalista Silvia Ribeiro; do engenheiro agrônomo boliviano Pablo Sólon; do coordenador do Movimento dos Comitês Revolucionários da Líbia, Mustafa Zaidi; da historiadora cubana Xenia Roque; do padre brasileiro Inácio Neutzling; de dom Ladislau Biernarsk, da Comissão Pastoral da Terra (CPT); de Roberto Baggio e de Ademar Bogo, do MST.
O baiano Bob Mô, radicado no Rio de Janeiro, canta O Homem da Roça
Fernandes de Santo Ângelo (RS) canta Um Lavrador que Canta
Durante o dia foram realizados debates, além da exibição de filmes como Olga e Diários de Motocicleta