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Ano 2 • Número 94

R$ 2,00 São Paulo • De 16 a 22 de dezembro de 2004

Aumento do mínimo une trabalhadores Centrais sindicais deixam diferenças de lado e vão à luta por salário digno e correção da tabela do Imposto de Renda

Fórum Social propõe mais ação popular

Jerome delay/AP/AE

Douglas Mansur

A

luta por um salário-mínimo digno, pela correção da tabela do Imposto de Renda e pela valorização dos serviços públicos unificou as centrais sindicais, que organizaram, dias 13 e 14, marcha a Brasília, com 3 mil trabalhadores. A mobilização, antes da aprovação do orçamento para 2005, desmascara uma falácia do governo: a falta de recursos para aumentar o mínimo. E confirma, novamente, a opção preferencial do governo pelos banqueiros: em 2004, serão consumidos cerca de R$ 78 bilhões para pagar os juros da dívida pública. Uma redução de meros 10% nessas despesas seria mais do que suficiente para cobrir tanto o reajuste do mínimo para R$ 300, a partir de janeiro, como a correção da tabela do IR. Nesse caso, estudo do Unafisco Sindical estima que o congelamento resultou – de 1997 até agora – em confisco de R$ 37 bilhões. Págs. 2 e 3

Em sua quinta edição, o Fórum Social Mundial volta a Porto Alegre (RS), em 2005, privilegiando a participação popular. Em entrevista ao Brasil de Fato, Francisco Whitaker, da Comissão Organizadora, conta que entre as mudanças previstas para o encontro estão a democratização da programação e dos temas, a mudança na localização das oficinas e o incentivo a atividades autogestionadas. De acordo com Whitaker, foi feito um esforço para “estimular as organizações a definir ações concretas, e não ficar apenas no debate”. Pág. 8

Estupro vira estratégia de domínio militar

Recuperação da economia não passa de ilusão Trabalhadores em marcha a Brasília em defesa do aumento do salário-mínimo e da correção da tabela do Imposto de Renda

Said Khatib/AFP/AE

A euforia dos meios de comunicação, do mercado financeiro e do governo em relação à política econômica não se sustenta. Prova disso são os últimos números divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrando que a renda média do trabalhador está em queda, assim como a produção industrial. Pior: a suposta redução da taxa do desemprego esconde que, de fato, as pessoas estão desistindo de procurar por trabalho, exatamente o oposto do que dizem os defensores do atual modelo econômico. Pág. 5

Costa do Marfim quer apurar ataques

Oferta de energia supera a demanda Com o maior leilão de energia da história do país, dia 7, o governo tentou evitar o racionamento e atrair investimentos para as hidrelétricas. As empresas privadas retraíram a oferta, se resguardando para propostas mais rentáveis. Assim, ainda há muita energia a ser negociada. Com os preços praticados no leilão, as tarifas devem cair, em média, 5%. Pág. 4

Há um ano, cerca de 400 sem-terra estão acampados na Fazenda da Barra, em Ribeirão Preto, interior paulista, cidade conhecida pela monocultura da cana-de-açúcar. A área já foi vistoriada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e, para virar assentamento, aguarda o aval do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Enquanto isso não ocorre, a elite rural da região tenta deslegitimar a luta dos sem-terra. Pág. 7

Palestina – Tanques israelenses e escavadeiras demoliram casas palestinas durante uma incursão no campo de refugiados de Khan Yunes, no sul da Faixa de Gaza, dia 14 de dezembro

UNE pede veto presidencial ao ProUni Pág. 6 Marcio Baraldi

Reforma agrária chega à capital do agronegócio

Documento da Anistia Internacional aponta que o estupro contra mulheres e meninas virou estratégia militar em países como Afeganistão, Colômbia, Iraque, Nepal, Rússia e Sudão. A nova “arma de guerra” é usada para afrontar o inimigo, desmoralizando os homens e amedrontando as pessoas para que fujam. As vítimas sofrem grande trauma e ficam expostas ao vírus da Aids, além de sofrer rejeição da própria família e da comunidade. O relatório também acusa as autoridades responsáveis de fazer muito pouco para impedir os crimes. Pág. 11

Sindicalismo se revigora na Argentina Pág. 9

Nem agronegócio ganha com a transposição Pág. 13

Resistência à imposição do imperialismo Para lutar contra a globalização, é preciso desenvolver meios de resistir ao controle social das mentes, organizado por consórcios de mídia e entretenimento que legitimam e massificam a ordem vigente. A denúncia é de David Solnit, um dos articuladores das mobilizações contra a OMC, em Seattle, em 1999, para quem os militantes precisam cultivar um novo radicalismo, como forma de resistência à imposição do “jeito imperialista” de pensar. Pág. 11

A formação de uma comissão internacional foi requerida pelo governo da Costa do Marfim, junto à Organização das Nações Unidas (ONU), para que sejam investigados os ataques feitos por soldados franceses contra manifestantes desarmados, na cidade de Abidjã, dia 9 de novembro. O embaixador marfinense na ONU, Philippe Djangone-Bi, exibiu vídeos com cenas de terror durante o conflito que resultou em 60 mortes e 2 mil feridos. Até os ataques, a França tinha mais de 4 mil soldados no país, entre 6.200 soldados da força de paz da ONU. Pág. 12

E mais: UCRÂNIA – Dois mil observadores estarão na Ucrânia nas novas eleições presidenciais, dia 26. Pág. 10 FÓRUM – Retirar alimentação e agricultura das discussões da OMC é a principal reivindicação do Fórum Mundial sobre a Reforma Agrária. Pág. 10 CULTURA – Grupo teatral conscientiza mulheres sobre violência doméstica. Pág. 16


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De 16 a 22 de dezembro de 2004

NOSSA OPINIÃO

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, 5555 Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Fábio Carli • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Dafne Melo e Fernanda Campagnucci 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

Luta por um salário-mínimo digno Mais de 50 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza e ganham menos de dois dólares diários – cerca de R$ 160 por mês – para o seu sustento. Outros 40 milhões dependem diretamente do valor do salário mínimo para viver. Na última década, o salário-mínimo – fixado atualmente em R$ 260 – não ultrapassou o valor de 100 dólares mensais, numa economia extremamente dolarizada. Continua sendo um dos menores da América Latina. A antecipação do debate sobre o valor do próximo salário-mínimo, geralmente definido apenas em maio, carrega, a preocupação das classes trabalhadoras diante da queda contínua de poder aquisitivo e da situação miserável e de extrema precariedade em que vive a grande maioria do povo trabalhador. O problema é grave, dramático e exige medida com resultado direto e imediato no sustento das pessoas. No entanto, o debate palaciano sobre a fixação do novo valor do saláriomínimo também tem o seu aspecto demagógico, já que, em determinados círculos políticos, o assunto passou a ser tratado como uma distração pré-natalina, uma brincadeira de mau gosto diante da terrível condição de vida do povo brasileiro. Especular sobre valores ridículos e o momento do “reajuste” é tripudiar sobre o sofrimento e a ilusão de quem depende desse salário.

Todos nós sabemos que o saláriomínimo sofreu uma tremenda corrosão ao longo do tempo. Se estivesse atualizado e fosse cumprir o que está estabelecido na Constituição Federal, o salário-mínimo deveria ser de mais de mil reais ou pelo menos cinco vezes os valores atuais. E sofreu essa queda porque os sucessivos governos após o golpe militar de 1964 comprimiram os salários dos trabalhadores para baratear os custos empresariais, aumentar os lucros e para transferir renda às elites capitalistas nacionais e internacionais. Para se ter uma idéia do que isso significou na estrutura do país, basta verificar que a remuneração do trabalho era próxima de 70% do Produto Interno Bruno (PIB), na década de 50 e, hoje, atinge seu nível mais baixo, uma participação em torno de 31%. No sentido inverso, o capital passou a apropriar-se da maior fatia do PIB. Mesmo após o término do regime militar, os governos civis que se sucederam (Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique Cardoso e Lula) não ousaram reverter o processo de desgaste do salário-mínimo e de rebaixamento da massa salarial. A queda de renda tem sido contínua – como se fizesse parte de uma história previamente determinada e sem a menor possibilidade de alteração.

FALA ZÉ

O governo Lula reanimou as esperanças dos trabalhadores no sentido de que, finalmente, o salário-mínimo, principalmente, e os demais salários, entrariam numa era de recuperação. Afinal, o presidente, oriundo da classe operária e filiado a um partido nascido das lutas dos trabalhadores, havia prometido na campanha eleitoral que dobraria o valor do salário-mínimo em seus quatro anos de governo. A última esperança está nos anos de 2005 e 2006, já que nos dois primeiros anos os reajustes aplicados no salário-mínimo apenas recompuseram as perdas inflacionárias, nada mais do que isso. Mesmo porque, o modelo vigente ainda é o mesmo que tratou de esmagar o salário-mínimo, sem dó nem piedade, com os milhões de brasileiros que sobrevivem com essa remuneração. Infelizmente. Portanto, aos trabalhadores e ao povo pobre desse país não resta outra alternativa senão se organizar e lutar. Pois, somente a retomada das grandes mobilizações de massa será capaz de alterar a atual correlação de forças necessária para conduzir o Brasil às mudanças estruturais e urgentes. Só assim, nós, o povo brasileiro, conquistaremos uma vida digna. Um outro Brasil ainda é possível!

OHI

CARTAS DOS LEITORES DIREITO DE IR E VIR Lamentável que a força pública do Estado do Rio de Janeiro tenha ferido a Constituição Federal brasileira, ao impedir a entrada de torcedores do Clube Atlético Paranaense na cidade maravilhosa. Cadê o direito de ir e vir do cidadão brasileiro? Os torcedores e a organização deveriam processar o Estado do Rio de Janeiro por ferir a Constituição nacional. Ou será que isso tudo teve o dedo dos dirigentes de times de futebol? Não podemos jamais permitir num Estado de direito tais aberrações, provindas do poder público, que fazem transparecer que no Rio quem manda é a corrupção. Célio Borba, Curitiba (PR) MONOCULTURA DA CANA Outro dia vi uma reportagem onde um produtor do agronegócio reclamava que as sacas de soja caíram de preço e agora seria interessante plantar cana. A matéria mostrava o nosso ministro superpoderoso Antônio Palocci ressaltando o sucesso nas importações e fechava com o mestre de cerimônias e formador de opinião Arnaldo Jabor, que declarava que o governo está seguindo o caminho certo, mas mesmo assim existem “radicais” cabeças-duras que não enxergam esse Brasil que dá certo! Apareciam alguns cortadores de cana que em nenhum momento foram citados. Talvez porque a monocultura não produza tantos empregos, devido ao alto nível de mecanização. Se todos os pro-

dutores de soja apenas do Estado do MS ficaram “tristes”, o que dizer das 32 mil pessoas que sofreram ação de despejo no campo – apenas em 2003 – no mesmo Estado? Pior, se eles pretenderem plantar cana, quantas outras famílias não terão de ser despejadas? Ao olhar para os cortadores de cana, lembrei do seu Jeremias, figura lendária lá do “condado” do Matutu (MG) que, com uma perna e meia e uma vara de bambu atravessa a pé todo o vale, atrás do rio que se perdeu para os eucaliptos. Ele também sabe que o grande vilão não é a árvore, mas quem planta e como planta. Só me resta assumir-me como cabeçadura e criticar a mídia, que há 50 anos só reproduz a idéia hegemônica da monocultura e agroindústria como sinônimo de desenvolvimento. Andressa Lacerda Rio de Janeiro (RJ) ERRATA Biodiesel A medida provisória que criou o Programa de Produção e Uso do Biodiesel não concede isenção tributária a todos, ao contrário do que foi publicado no subtítulo da reportagem “Medida Provisória favorece agronegócio”, página 13, edição 93. Conforme descrito no texto da reportagem, toda a parte tributária foi retirada do substitutivo. Santa Catarina O nome do autor da reportagem “Praças conquistam abono de R$ 250”, página 8, edição 93, é Alexandre Brandão.

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CRÔNICA

A macroeconomia e a macrosociedade Leonardo Boff

H

á um mal-estar inegável, dentro e fora do governo, referente à opção macroeconômica assumida pelo presidente Lula. Confrontam-se dois olhares conflitantes, cada qual com sua lógica e seu discurso coerente. Um olhar se fixa na economia e aduz os seguintes fatos: após severa política fiscal, está ocorrendo inegável crescimento econômico, controle sobre a inflação e o dólar, queda da relação PIB-dívida, pagamento sustentado da dívida, boa balança comercial e aumento de empregos. O outro olhar enfoca a sociedade e traz à tona os dados do Relatório dos Direitos Humanos no Brasil 2004, que são assustadores. Quase todos os itens negativos ou se mantiveram ou pioraram: degradação do ganho real dos salários, violência no campo e na cidade, trabalho escravo, demora na demarcação de áreas indígenas, morosidade na reforma agrária e desmobilização política dos movimentos. A análise crítica tem mostrado que a crise social é, em parte, o preço a ser pago pelo sucesso econômico. Mas que adianta crescimento econômico sem desenvolvimento social? Os ganhos da economia não são

repassados na forma de benefícios sociais para as grandes maiorias empobrecidas e excluídas. Quem ganhava, ganha agora muito mais. Não houve a mudança necessária e prometida. Quantos esperávamos que um filho do caos social, sobrevivente da tribulação histórica dos humilhados e ofendidos de nosso povo, instaurasse a viragem libertadora. Ele se elegeu com essa bandeira. E, ao chegar lá, trocou de agenda. As elites nacionais e mundiais conseguiram trazê-lo para a sua lógica, para o modelo econômico liberal dominante. Quem aceita entrar por aquela porta está perdido. Em seu frontal bem poderia estar a frase que Dante colocou na entrada do inferno: “Lasciate ogni speranza voi ch’intrate”(percam a esperança, vocês que aqui entram). Aí só contam os interesses do capital. E ele que representava os trabalhadores. O que sinceramente esperávamos? Que ele com o cacife que tinha por causa de sua história de vida e pela novidade do PT pudesse dar início à superação do neoliberalismo mediante uma renegociação com o FMI acerca das formas de saldarmos nossa dívida externa. Esperávamos que submetesse as elites

dominantes e argentárias à lógica de políticas sociais para que começassem a pagar a dívida social secular que elas têm para com o povo. Pouco disso ocorreu. Foi vítima da política velhista das elites que o saudoso historiador José Honório Rodrigues bem descreveu: “Elas buscam sempre a conciliação entre elas mesmas para não conceder nada ao povo”. Estamos tristes por nós mesmos: ou porque fomos ingênuos, ou porque não acumulamos força suficiente para impôr rumos novos ao pais ou porque ainda não conseguimos criar um líder que tivesse a coragem para essa mudança inovadora. Confio ainda na pessoa de Lula. Ele é bom e jamais trairia seus sonhos. Infelizmente escolheu gente e meios inadequados para realizar aqueles sonhos. Mas é carismático e pode mudar desde que entenda aquilo que sempre pregou: o capitalismo só é bom para o capitalista, nunca para o trabalhador. Este precisa de outro tipo de economia onde ele não é apenas beneficiário mas também ator. Leonardo Boff é teólogo e autor de mais de 60 livros

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De 16 a 22 de dezembro de 2004

NACIONAL MARCHA A BRASÍLIA

Luta pelo mínimo unifica centrais Ana Paula Corrion e Marcel Gomes de Valparaíso (GO)

Douglas Mansur

Aumento do salário e correção da tabela do IR mobilizam entidades sindicais, que levam suas bases ao DF de compra do salário mínimo. Queremos que, em 20 anos, ele recupere o que perdeu em 60”, afirmou.

DIANTEIRA

A

os 57 anos, dona Leonor Pereira de Morais acompanha a marcha pelo “Salário Mínimo Digno, Correção da Tabela do Imposto de Renda e Valorização dos Serviços Públicos”. Ela mora com outras 39 famílias no acampamento São Sapezal, em Goiás. Sem se preocupar com os 42 quilômetros que vai percorrer de Valparaíso (GO) a Brasília, ela estava otimista com a possibilidade de conseguir um aumento real do salário-mínimo. “O salário-mínimo, hoje, é pouco. Como vamos sobreviver com um salário desses?”, questiona, afirmando que R$ 320 também é pouco, mas é melhor do que R$ 260. O mineiro Waldemir dos Santos, 40 anos, pai de seis filhos, trabalha na lavoura e não ganha o suficiente para pagar imposto de renda (IR). Na entressafra do feijão e da cebola, no município de Cabeceira Grande (MG), ele nem consegue ganhar R$ 260 ao final de 30 dias de serviço.

DESAFIO Certo de que sem mobilização popular “as coisas não vão mudar”, ele subiu no ônibus alugado pelo sindicato local rumo a Valparaíso, de onde a marcha partiu, dia 13. “Quero um pedaço de terra e um salário que não dure só metade do ano. Agora que acabou a colheita da cebola, só dá pra fazer bicos por R$ 15 a diária. Fica difícil a vida dos meus filhos, o dono do armazém uma hora também se cansa de vender fiado”, lamentou

Presidentes das centrais sindicais participam de ato em defesa do salário-mínimo de R$ 320

Santos à reportagem da Agência Carta Maior. A marcha, que reuniu cerca de 3 mil pessoas, foi organizada por seis centrais sindicais, entre elas a Central Única dos Trabalhadores (CUT)

e a Força Sindical. Diferenças entre as entidades foram deixadas de lado na luta por salário-mínimo de R$ 320, em 2005 e correção de 17% na tabela do Imposto de Renda. Quintino Severo, presidente da

CUT-RS, acredita que a antecipação do reajuste, agora, não pode ser usada como pretexto para rebaixar seu valor. “O debate que estamos fazendo é sobre o valor e não a data, porque defendemos a recuperação do poder

A EVOLUÇÃO DO SALÁRIO-MÍNIMO Valores em reais, em maio de cada ano, com atualização até novembro de 2004 com base na variação do IPCA

Meias-verdades sobre os argumentos do governo Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO) Neste ano, o governo federal e o Banco Central (BC) devem gastar perto de R$ 78 bilhões só para pagar os juros da dívida pública federal. A sangria supera em quase seis vezes os R$ 13,3 bilhões destacados no orçamento da União para investimentos em 2004 – dos quais menos de 20% foram efetivamente realizados até o final de novembro. Uma redução de meros 10% nas despesas com os juros da dívida seria mais do que suficiente para compensar tanto o reajuste do mínimo para R$ 300, a partir de janeiro, quanto a correção da tabela progressiva do Imposto de Renda (IR). A providência evitaria que o governo tivesse que barganhar com o movimento sindical, oferecendo um aumento aparentemente mais generoso para o salário-mínimo, em troca de uma revisão modestíssima para a tabela do IR. A rigor, uma medida não precisaria excluir a outra, como mostram os números do BC. Uma redução de 10% nas despesas com juros corresponderia a uma economia, em favor do contribuinte, de quase R$ 8 bilhões num período de 12 meses. Nas contas pouco explícitas do governo federal, a elevação do mínimo para R$ 300 e um reajuste de 10% nos valores embutidos na tabela do IR causariam um impacto negativo em torno de R$ 5,5 bilhões nas contas do setor público federal.

DISTORÇÕES Basta comparar os dois valores: a economia com juros seria 41% maior do que a perda alegada, deixando sobras para reforçar investimentos em outras áreas. Obviamente, quanto mais rápido caírem os juros, maior a vantagem. Já uma redução de 20% nas taxas de juros traria um ganho de R$ 15,7 bilhões, também em 12 meses – ou

UMA QUESTÃ0 DE PRIORIDADE Governo gasta três vezes mais com juros do que para cobrir o déficit da Previdência, valores em R$ milhões Desembolsos

2002

2003

2004*

Despesas com juros (1)

41.948

100.896

78.301

Déficit da Previdência (2)

16.997

26.405

29.731

2,47

3,82

2,63

Relação (1/2) (*) Valores acumulados em 12 meses até outubro de 2004 Fonte dos dados brutos: Banco Central

seja, quase três vezes mais do que o suposto gasto gerado pelo aumento do mínimo e pela atualização da tabela do IR, somados. Improvável? A redução dos juros no começo do ano, a despeito dos novos aumentos a partir de setembro, deve provocar uma queda nas despesas com a dívida de 22%, correspondente a uma economia de R$ 22,6 bilhões apenas na área federal.

mais a política econômica. O primeiro sofisma desse tipo de argumento está na sua própria natureza. Propositadamente, transmite-se à opinião pública a informação (falsa) de que o governo não tem escolha: para aumentar o mínimo e corrigir a tabela do IR, teria que cortar mais despesas e investimentos.

FALSO DILEMA ARROCHO Ano após ano, o debate em torno do aumento do salário-mínimo e as discussões sobre a atualização da tabela do IR são intencionalmente distorcidas, favorecendo a imposição de políticas escorchantes e concentradoras da renda. O principal argumento da tecnocracia da Fazenda e do BC para desautorizar as pressões legítimas em favor de um salário-mínimo digno, e de um alívio relativo no bolso do contribuinte, pode ser facilmente derrubado com base em dados do próprio governo. Segundo a tecnocracia, qualquer reajuste mais alentado do salário-mínimo desestabilizaria a República, causando rombos insanáveis nas contas do governo e da Previdência Social.

SOFISMAS A correção da tabela do IR, da mesma forma, faria o Tesouro Nacional perder receitas, levando a novos cortes nas despesas e investimentos públicos, arrochando ainda

Qualquer política econômica pressupõe opções, decisões sobre as medidas que melhor atendam aos interesses do país. Assim, o governo não é forçado a gastar bilhões de reais com juros, mas está executando uma política econômica que se baseia na prática de taxas de juros extorsivas e concentradoras da renda, na medida

em que resultam no desvio de recursos de programas sociais para remunerar investidores/especuladores que participam da ciranda financeira.

JUROS Em resumo, o governo torra bilhões de reais dos contribuintes para honrar a conta que a especulação financeira debita no caixa do Tesouro todos os meses. E, como decorrência dessa decisão, escolheu, ainda, achatar o salário-mínimo e arrochar o contribuinte, para aumentar suas receitas e produzir sobras de recursos para financiar a política de juros altos. Detalhe: no acumulado dos 12 meses terminados em outubro deste ano, os gastos com juros da dívida foram 2,63 vezes maiores do que o déficit (despesas maiores do que receitas) da Previdência, o que deixa evidente, mais uma vez, a principal fonte de desequilíbrio nas contas do setor público. No ano passado, as despesas com juros foram 282% maiores do que o tal rombo da Previdência. Nos primeiros 10 meses de 2004, a diferença chegou a 193,8% (R$ 65,4 bilhões gastos com juros, diante de R$ 22,2 bilhões com a Previdência).

Um confisco de R$ 36,9 bilhões O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco Sindical) colocou em sua página na internet um estudo que mostra o tamanho da mordida do leão do Imposto de Renda no bolso do contribuinte, em função do congelamento virtual da tabela progressiva. Quando a tabela não é corrigida, o contribuinte passa a recolher à Receita Federal mais do que deveria. O Unafisco estima o valor do confisco, entre 1997, quando a tabela foi corrigida pela

última vez, e este ano, em R$ 36,9 bilhões. Apenas ao longo de 2004 serão desviados do contribuinte para a União, de forma compulsória e irregular, perto de R$ 8,5 bilhões – 23,2% mais do que em 2003 e 325% acima dos R$ 2 bilhões confiscados em 1997. O valor confiscado corresponde praticamente a todo o superávit primário (receitas maiores do que despesas, excluídos os gastos com juros) acumulado pelo governo federal em 2003, na faixa dos R$ 38,7 bilhões. (LVF)

Em entrevista à Agência Nacional da CUT, o presidente da Central, Luiz Marinho, declarou: “O fato de trazer o debate sobre o salário-mínimo para dezembro mostra que conseguimos pautar o governo. Desta vez, saímos na frente. Essa discussão tem de ser feita agora, e não em março ou maio, quando o orçamento de 2005 já está fechado”. “Decidimos não ficar assistindo, mais uma vez, a questão do salário mínimo ser posta em segundo plano. Ano passado, cometemos o erro de não conseguir pautar esse debate”, declarou Marinho à Agência Carta Maior. Ele considera que, em 2003, o governo venceu ao culpar o orçamento pelo reajuste do mínimo, que mal conseguiu repor a inflação. “Diziam que não tinha dinheiro no orçamento para dar aumento maior. Pois bem: neste ano nos antecipamos e decidimos discutir com vários ministros e parlamentares a peça orçamentária, para provar que há, sim, espaço para aumentar o mínimo até R$ 320”, defende o presidente da CUT.

FALÁCIA “Nossa luta é contra a equipe econômica, que está sempre muito preocupada com a inflação e o superávit, em detrimento dos trabalhadores. Isso ficou claro na reunião que fizemos com Palocci na quinta-feira (9) passada”, critica Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, presidente da Força Sindical. “Se houver aumento de gastos com o salário-mínimo, isso acaba retornando aos cofres públicos com aumento do consumo interno e do recolhimento de impostos”, afirma ele, que comemorou a superação de “divergências históricas” com a CUT para a realização da marcha conjunta. Ao vincular o debate do salário-mínimo ao orçamento, o movimento sindical pode desmentir uma enorme falácia, segundo a qual é o déficit da Previdência Social que impede a elevação do mínimo. Na discussão do orçamento de 2004, a equipe econômica alegou que o déficit era de R$ 31 bilhões – a diferença entre o montante da contribuição de empresas e trabalhadores (R$ 91 bilhões) e o total pago a aposentados e pensionistas (R$ 122 bilhões). A falácia está no argumento de que as aposentadorias e pensões do Regime Geral deveriam ser sustentadas exclusivamente com as contribuições de empresas e trabalhadores ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Mas a Constituição estabelece também que o caixa da seguridade social deveria ser reforçado com a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Em 2004, a previsão de receitas é de R$ 75 bilhões na Cofins e de R$ 17 bilhões na CSLL. Portanto, a receita da seguridade social dobraria para R$ 183 bilhões, sobrando dinheiro para elevar o salário-mínimo bem acima da inflação. Além de “excluir” a Cofins e a CSLL do caixa da seguridade, o governo Lula não mexeu na Desvinculação de Receitas da União (DRU), mecanismo que permite separar um quinto dos impostos e contribuições arrecadados pelo governo federal antes de distribuir os recursos. Assim, o suposto déficit da Previdência fica maior ainda. O anúncio do governo era esperado para dia 15, com a chegada da marcha à Esplanada dos Ministérios. (Agências CUT www.agenciacut.org.br e Carta Maior, www.agenciacarta.com.br)


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De 16 a 22 de dezembro de 2004

da mídia

NACIONAL BARRAGENS

País tem energia de sobra

Dioclécio Luz Cinema nacional, bem longe O projeto original de uma agência para o cinema e o audiovisual (Ancinav), proposto pelo Ministério da Cultura, vem sofrendo cortes radicais. As emissoras comerciais de TV, por exemplo, derrubaram o artigo que as obrigava a veicular três minutos de propaganda do cinema nacional. Também transformaram em pó o artigo que estabelecia espaço para as produções independentes. Cadê a Anatel? Foi feita uma perícia judicial em centrais da Telefônica em Santo André, Diadema, Mauá e São Bernardo do Campo. Verificou-se que os consumidores foram lesados: por doze anos, a empresa cobrou bem mais do que devia – 200% a mais. A Anatel é quem devia impedir isso. O agronegócio e a fome 1 Dia 8, alguns jornais noticiaram que o agronegócio vendeu quase 30% a mais este ano, em relação ao ano passado. Festejam o aumento na exportação de leite e o fato de o Brasil ser campeão mundial na exportação de carne bovina. Enquanto isso, os mesmos jornais informam que aumentou o número de famintos no mundo. No Nordeste brasileiro, 70% das crianças passam fome. O pessoal do Planalto não fica envergonhado com essas coisas? O agronegócio e a fome 2 Propaganda do governo em Brasília, em painéis luminosos, informa que o agronegócio gera emprego e renda. O mesmo governo informa, em painéis, que a reforma agrária também gera emprego e renda. Coisa de governo transgênico. Prêmio Tim Lopes 1 Uma série de cinco reportagens especiais sobre abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, produzida por uma equipe de jornalistas da Rádio Nacional de Brasília, levou o prêmio de reportagem no 2º Prêmio Tim Lopes de Investigação Jornalística. A equipe trabalhou dois meses no projeto. A matéria foi sobre exploração sexual de menores. Prêmio Tim Lopes 2 “Em Fortaleza, vi o turismo sexual; e no Crato eu vi a exploração sexual provocada pela miséria. Quando pergunto (em Fortaleza) o que elas acham que é turismo sexual, elas acham que é um caso isolado aqui ou ali. A sensação é que vai ficando normal e depois de uma década de denúncias, nada foi feito e continua crescendo”, explica Márcia Detoni, uma das coordenadoras da reportagem premiada. Ela pode ser ouvida na página da internet www.radiobras.gov.br O que é a SIP Os jornais têm divulgado a opinião de uma tal de Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), que condena a lei de responsabilidade social no rádio e televisão, sancionada por Hugo Chávez. Imagina-se uma entidade independente, com embasamento moral para questionar a legislação. E não é nada disso. Essa SIP é apenas uma entidade formada pelos empresários do setor, com a finalidade de defender seus interesses. Por exemplo: a SIP não disse nada sobre democracia quando as emissoras da Venezuela participaram do golpe para derrubar Hugo Chávez. Programa especial A TV Nacional de Brasília está colocando no ar, aos sábados, um programa sobre e com os deficientes. Trata-se do “Programa especial”, com matérias inteligentes, criativas, sem apelações emocionais, e que fazem o telespectador pensar. Os deficientes são apresentados como pessoas que, em vez de piedade, querem respeito.

Governo faz leilão de energia para evitar racionamento, mas a oferta é maior do que a demanda Alexania Rossato de Brasília (DF)

U

m dos maiores eventos organizado pelo Ministério de Minas e Energia, o leilão realizado em São Paulo, dia 7, somou 17.008 megawatts (MW) negociados, com a circulação de cerca de R$ 74,9 bilhões. Foi leiloada a chamada energia “velha”, que corresponde à produção de geradoras que já amortizaram seus investimentos, ou seja, que já tiveram todos os custos pagos. O governo argumenta que a venda dessa energia foi fundamental para evitar racionamentos e determinante para o setor atrair, nos próximos anos, investimentos nacionais ou estrangeiros em usinas hidrelétricas. Considerando o modelo do setor elétrico anterior inadequado, a ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, disse que o leilão marcou “o fim de um momento traumático, que foi a crise de energia”. Segundo Dilma, houve racionamento por falta de investimentos. O leilão também foi marcado pelo espírito competitivo, principalmente das empresas privadas que deixaram de negociar sua energia para vendê-la por preços mais rentáveis. A Tractebel e a Duke Energy, as duas principais geradoras de energia privadas do país, colocaram à disposição no leilão uma quantidade ínfima de energia. No entanto, a demanda para o momento foi suprida, mas ainda existe muita energia sem ser negociada, principalmente de geradoras privadas, o que evidencia uma oferta maior que a demanda.

Douglas Mansur

Espelho

Hidrelétrica de Itaipú: de acordo com o governo, tarifa de energia para consumidores deve cair 5% em 2005

não justifica a construção do grande número de barragens previstas até 2015 – quase 500 grandes barragens. A ministra diz que essa oferta é temporária, e se o país continuar crescendo entre 4% e 5%, ocorrerá uma nova crise de abastecimento.

REPOTENCIAÇÃO DAS USINAS No entanto, especialistas não consideram a construção de novas barragens a melhor solução para o problema. Segundo o professor

Célio Bermann, da Universidade de São Paulo, um programa de repotenciação leve das antigas usinas hidrelétricas poderia acrescer em 10% a capacidade instalada, com custo bem inferior à construção de novas obras. “O custo do megawatt produzido por uma usina repotencializada é de três a cinco vezes menor que o custo em uma usina nova”, afirma Bermann. Os dados do livro A repotenciação de usinas hidrelétricas como alternativa para o aumento da oferta

de energia no Brasil com proteção ambiental, elaborado pela WWF, afirmam que inúmeras usinas antigas, geradoras maiores que 30 MW e com mais de 20 anos em operação, têm condições de ser repotencializadas com altos índices de ganhos de capacidade, chegando a 34.374,7 MW só das grandes barragens. Além disso, a repotenciação das barragens tem grandes vantagens, entre elas o curto prazo de instalação, o pequeno impacto ambiental e social. Ana Nascimento/ABr

5ª TARIFA MAIS CARA Segundo estimativas do governo, devido aos preços do leilão pela venda de energia velha, a tarifa da energia para os consumidores deverá cair em média 5% no ano que vem. Isso porque, até agora, as distribuidoras de energia estavam pagando caro pela eletricidade, entre R$ 81 e R$ 82 o megawatt (MW) médio gerado por Furnas, por exemplo. O preço médio do leilão foi de R$ 57 e, como o custo de compra de energia é repassado ao consumidor, a perspectiva é de que os consumidores paguem menos. O deputado estadual Frei Sergio Gorgën (PT-RS) contesta essa possibilidade: “Nada indica que os distribuidores repassarão a diminuição do custo para o consumidor. A tendência é de que incorporem para aumentar seus lucros. Quem sai perdendo sempre é a população mais pobre”, afirma Görgen. Apesar do indicativo de diminuição do custo, dados do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (Ilumina) dizem que o Brasil tem a 5ª tarifa mais cara do mundo, sem levar em conta os impostos – nesse caso, poderia chegar ao primeiro lugar. “Pagar 16,60 dólares de luz nos Estados Unidos não tem o mesmo peso que teria no Brasil. No orçamento do povo brasileiro, comprometer esse valor só com energia ‘desloca’ a compra de outros produtos”, conclui o estudo do Instituto. Além disso, com a estrutura tarifária brasileira, as famílias pagam mais que as indústrias pelo consumo, pois de acordo com o levantamento, de 1995 a 2004, a tarifa residencial teve aumento de cerca de 50%, enquanto a industrial foi de 23%. Frente a isso, ficam dois questionamentos: é possível diminuir o preço da energia em um modelo essecialmente mercantil? Se o Brasil tem um modelo energético baseado na matriz hídrica – barragens –, tida como a energia mais barata, por que a tarifa brasileira está entre as mais caras do mundo? Com o leilão ficou evidente que há energia sobrando, o que

Trabalho infantil – Phablina Uchôa de Araújo e Cosme de Oliveira Júnior, integrantes da Caravana, entregam o termo de compromisso assinado por governadores e prefeitos para a eliminação da mão-de-obra infantil no país

DITADURA

Queima de arquivos preocupa Tatiana Merlino da Redação Documentos que provam que brasileiros foram vigiados pelos militares durante e após o fim da ditadura no país foram queimados na Base Aérea de Salvador (BA) recentemente, de acordo com reportagem exibida dia 12 pela TV Globo. Segundo especialistas, esse fato está estreitamente ligado à definição dos prazos para a abertura dos arquivos da ditadura. Maria Aparecida Aquino, historiadora da Universidade de São Paulo (USP), acredita que os documentos foram queimados por temor de que se descubram as operações de extermínio. “Além das prisões e mortes, grupos inteiros foram eliminados. Essas informações virão a público”, diz a historiadora, para quem, além do medo de perder cargos, as pessoas que seqüestraram, torturaram e assassinaram “não querem ter suas memórias destroçadas”. A reportagem mostra o que seriam 78 documentos que teriam sido parcialmente incinerados dentro da base. São documentos produzidos entre 1964, ano do início da ditadura, e 1994, quando o país já havia retomado a democracia. Em nota oficial, o Comando da Aeronáutica descartou a queima

de arquivos, prática considerada crime pelo Código Penal Militar. A Aeronáutica informou que os papéis teriam sido queimados durante incêndio no Aeroporto Santos Dumont (RJ), em 1998. O assunto vem sendo investigado em um Inquérito Policial Militar (IPM). Segundo Criméia de Almeida, uma das combatentes da guerrilha do Araguaia, os arquivos foram queimados “para atrapalhar a decisão da abertura”. Ela considera essa mais uma prova de que os documentos existem, contrariando declarações de que não haveria arquivos para abrir.

BR ECHA A ausência de uma política sistematizada de transferência de acervos para o Arquivo Nacional e arquivos estaduais abre brecha para as queimas de documentos, diz Maria Aparecida. “Infelizmente, outros documentos podem estar sendo queimados no país”. Dia 10, o Diário Oficial publicou um decreto e uma medida provisória (MP) sobre o acesso aos arquivos oficiais referentes ao período do regime militar. A MP reduz o prazo de sigilo desses documentos, alterando o decreto do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Hierarquicamente superior ao decreto, a medida permite

que, na prática, seja mantido o sigilo eterno em alguns casos. A MP regulamenta o inciso 33 do artigo 5º da Constituição, que já prevê ressalvas ao direito de obter informações de órgãos públicos, quando essas são “imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado”. A expectativa do governo é de que, com a nova MP, seja mais fácil flexibilizar prazos. O decreto fixa prazos entre 5 e 30 anos para a manutenção do sigilo dos documentos, que podem ser renovados por igual período. Pela MP, vencido o prazo ou sua prorrogação, “os documentos classificados no mais alto grau de sigilo tornar-se-ão de acesso público”. No entanto, uma comissão formada por ministros poderá ser convocada pela autoridade responsável pelo documento – as Forças Armadas, por exemplo – “para que avalie, antes de ser autorizado qualquer acesso ao documento, se ele, uma vez acessado, não afrontará a segurança da sociedade e do Estado”. A comissão desagradou familiares e entidades de direitos humanos. Criméia acha que a comissão tinha que ser técnica, e deveria contemplar os familiares das vítimas: “Essa comissão deveria ser composta por pessoas dos três poderes, não apenas do executivo”.


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NACIONAL CRESCIMENTO

Em outubro, a economia desacelera Produção recua, renda cai e desemprego fica na mesma: a recuperação simplesmente não é realidade

P

elos últimos dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), não eram catastrofistas aqueles que questionavam a sustentabilidade e o fôlego da tímida recuperação recente da economia, cujo ritmo já dava sinais de desaceleração desde setembro. Em outubro, na comparação com o mês anterior, a produção industrial caiu, assim como diminuiu a renda média do trabalhador, enquanto o desemprego recuou apenas 3,7%. A taxa de desocupação medida pela Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE em seis regiões metropolitanas foi de 10,5%, ou seja, 2,3 milhões de brasileiros não tinham trabalho em outubro – 12% do contingente de pessoas de 10 anos ou mais de idade, ocupadas nas regiões pesquisadas. Dos 19,4 milhões de ocupados, 56,5% eram homens, 43,5% mulheres. A renda média do trabalhador caiu 1,2% de setembro para outubro, e subiu 2,6% em relação a outubro de 2003. Já a massa salarial (total de rendimentos pagos aos trabalhadores), aumentou 6,75% entre outubro de 2003 e outubro de 2004, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), vinculado ao Ministério do Planejamento. A queda no rendimento, segundo alguns, é explicada, em parte, pelo aumento de contratações no setor de construção civil (o que mais cresceu, com uma taxa de 6,6%), no qual tradicionalmente os salários são mais baixos.

sado, o contingente de pessoas procurando emprego diminuiu 17,9% (o equivalente a menos 495 mil desempregados). Por outro lado, o número de postos de trabalho aumentou 4,2%, o que correspondeu à criação de 774 mil empregos. Ou seja, a economia criou vagas para o contingente de pessoas que procurava emprego. O mesmo, entretanto, não ocorreu entre setembro e outubro, quando 98 mil pessoas deixaram de procurar emprego e apenas 38 mil vagas foram criadas.

Anderson Barbosa

da Redação

RENDIMENTO

Além de ganharem menos, as mulheres também são as mais atingidas pelo desemprego

trabalho. Em outubro, o contingente de trabalhadores sem carteira no setor privado era de 3,1 milhões de brasileiros, ou 16% da população ocupada nas regiões metropolitanas pesquisadas. O número não se alterou em relação a setembro, mas aumentou 7,1% em comparação com outubro de 2003, sobretudo em Porto Alegre (18,4%). Da mesma forma, comparando outubro de 2004 com igual mês de 2003, também cresceu (3,7%) o número de trabalhadores por conta

própria (20,2% da população ocupada, 3,9 milhões de pessoas).

PROCURA MENOR Em outubro, havia 2,3 milhões de desocupados nas seis regiões metropolitanas investigadas (Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo). Em comparação com o mês anterior, em outubro diminuiu em 4,1% o número de pessoas procurando emprego (aproximadamente, menos 98 mil pessoas buscando ocupação).

Sem motivos para euforia

DESEMPREGO Em outubro, a taxa de desocupação estimada pela Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE foi de 10,5% (10,9% em setembro). A taxa de desocupação masculina foi de 8,1%, e, entre as mulheres, foi de 13,4%. A pesquisa de outubro estimou em 19,4 milhões o total de pessoas de 10 anos ou mais de idade, ocupadas, nas seis regiões pesquisadas. De setembro para outubro, o número de trabalhadores com carteira assinada no setor privado (39,3% da população ocupada, ou 7,6 milhões de pessoas) não se alterou. Em outubro de 2004, em relação ao mesmo mês do ano passado, aumentou 3,6% o número de trabalhadores com carteira assinada.

da Redação

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DESOCUPADOS Observadas as demais categorias de empregados, vê-se como anda a precarização do mercado de

A indústria perde o fôlego da Redação Em outubro, segundo o IBGE, a produção industrial recuou 0,4% frente ao mês anterior, cresceu 2,7% ante outubro de 2003, 8,3% de janeiro a outubro de 2004 e 7,4% nos últimos doze meses. No mês, entre 23 setores de atividades, 14 caíram. As principais pressões negativas vieram de alimentos (-3%), borracha e plástico (-6,4%), veículos automotores (-1,7%) e perfumaria (-6,3%). O movimento mensal negativo da produção foi generalizado. A queda mais acentuada foi no segmento de bens de consumo duráveis (-2,3%) que, em setembro, já havia caído 2%. Este setor vinha de seis meses consecutivos de expansão (agosto 03/fevereiro 04), quando acumulou taxa de 16,2%. A indústria de bens de capital (-1,3%), também mostra a segunda queda consecutiva (-4,5% em setembro), após expansão de 11,9% no período agosto 04/fevereiro 04. A produção de bens intermediá-

Foi justamente isso – a redução da procura por trabalho – o principal motivo para a taxa de desemprego de 10,5%, e não, assinala o IBGE, um aumento significativo na criação de postos de trabalho no período. De acordo com alguns economistas, o aumento da massa salarial foi a principal causa da menor procura por emprego. Entretanto, o total de empregados registrou alta de apenas 0,2%. Quando se compara outubro de 2004 com o mesmo mês do ano pas-

Em outubro, o rendimento médio real habitualmente recebido pelo trabalhador (R$ 900,20) caiu 1,2% em relação a setembro, e subiu 2,6% em relação a outubro de 2003. De setembro para outubro, houve queda em todas as regiões. Em relação a outubro de 2003, houve alta em quase todas as regiões, exceto Porto Alegre. No setor privado, o rendimento médio real habitualmente recebido pelos empregados com carteira de trabalho assinada (R$ 915,30), caiu 1,6% em relação a setembro e aumentou 1,6% frente a outubro de 2003. O dos empregados sem carteira de trabalho assinada no setor privado (R$ 566,60) caiu tanto na comparação mensal (1,9%) como na anual (1,5%). Já o rendimento dos trabalhadores por conta própria (R$ 730,60) cresceu na comparação mensal (2,2%) e anual (6,4%).

rios (-0,1%), segmento de maior peso na estrutura industrial, ficou virtualmente estável. Bens de consumo semiduráveis e não duráveis, após registrar em setembro sua maior taxa de crescimento do ano (1,5%), voltou a cair (1,1%).

BASE ELEVADA Na comparação com outubro do ano passado, a produção global da indústria cresceu 2,7%, com 16 atividades sustentando taxas positivas. Em setembro, a alta chegou a 7,4%, mostrando crescimento em 23 atividades. Nos resultados de outubro, o IBGE destaca a influência da elevada base de comparação, uma vez que, nos meses finais de 2003, a produção começava a aumentar. A desaceleração foi particularmente relevante nas áreas de bens de capital (0,4%, a menor taxa desde setembro de 2003), e de bens de consumo duráveis (9%, seu menor ritmo desde março de 2004). Esses dois setores, exatamente os líderes da recuperação iniciada no segundo semestre de 2003, foram os mais

impactados pela base de comparação elevada. Em relação a outubro de 2003, o desempenho de bens de consumo duráveis (9%) esteve mais apoiado na produção de automóveis (14,9%) do que na de eletrodomésticos (8,7%). Os principais impactos negativos vieram de alimentos e bebidas elaborados para indústria (-4,5%). O setor de bens de consumo semiduráveis e não duráveis (-0,3%) foi o único a cair frente a outubro de 2003. O movimento de desaceleração no indicador mensal também fica evidente nos índices por subsetores: dos 76 pesquisados, 47 cresceram em outubro , em relação a 61 em setembro. No período janeiro-outubro, a taxa global de 8,3% teve, novamente, como principal contribuição positiva o segmento de veículos automotores (30,2%), seguido por máquinas e equipamentos (17,8%) e material eletrônico e equipamentos de comunicações (18,7%). Em termos de produtos, os destaques nessas indústrias foram automóveis e caminhões; refrigeradores e motoniveladores; e televisores e telefones celulares.

Seria antinacional uma organização como o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), que tem entre seus associados empresas produtivas que respondem pela geração de parte substancial do Produto Interno Bruto (PIB) do país? É pouco provável. Em entrevista concedida ao jornal Gazeta Mercantil, cujos trechos foram reproduzidos na edição de 11 de dezembro da Carta Iedi, o diretor executivo da entidade, economista Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diz por que não foi contagiado pela euforia do ministro Antonio Palocci, da Fazenda, e do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, com o desempenho da economia no terceiro trimestre de 2004.Note-se a este respeito, aliás, que as últimas informações do IBGE corroboram as preocupações de Almeida. Diferentemente do ministro Palocci, e do presidente do BC, Henrique Meirelles, que sustentam que o crescimento do PIB no terceiro trimestre demonstra que o Brasil entrou no longo ciclo de crescimento, Almeida afirma que “o desenvolvimento sustentável da economia ainda está no nosso imaginário, não está colocado na prática porque nossa taxa de investimento é muito pequena e a nossa política industrial e tecnológica está nascendo agora”. Para o economista, o crescimento sustentável do país ainda está para ser construído, o que não se faz com taxa de investimento de apenas 19% do PIB. Almeida diz que nos países asiáticos a taxa pode chegar a 40% do PIB mas, no caso brasileiro, um investimento de 25% do Produto, muito maior do que os atuais 19%, já permitiria um crescimento de 7% ao ano. Ele observa, ainda, que os países asiáticos estão crescendo mais do que o Brasil porque, nos seus modelos, a produção é o máximo e é o coração do sistema. Já no modelo de gestão da economia brasileira o pressuposto é que o mercado fi-

nanceiro é o máximo. “Isso é mau para o Brasil e é o que define o seu afastamento do desenvolvimento econômico”, argumenta. Para o diretor do Iedi, todos que estão comemorando o resultado do PIB do terceiro trimestre “deviam, também, fazer um minuto de silêncio, porque o nosso crescimento ainda assim é baixo, face às aspirações do país”.

PROJETO O diretor do Iedi observa que a previsão de crescimento de 5% em 2004 “é belíssimo para quem praticamente não cresceu no ano passado”, mas abaixo da média dos países em desenvolvimento, que devem crescer de 6,5% a 7%. A Rússia vai chegar aos 7%; os países da ex-União Soviética, 8%; a Índia crescerá 6,5% e a China, 9%. Almeida insiste: a taxa de investimento é crucial para ter crescimento sustentável e, a partir daí, pensar na qualidade do desenvolvimento. “Falamos muito em política industrial porque nosso instituto cuida disso, mas o que nós precisamos, mais do que isso, é de um projeto nacional, de um conjunto de estratégias definidas para o país”, ressalta. A seu ver, tal projeto inclui “uma relação internacional soberana”. “Não temos que aceitar nenhum acordo internacional bilateral que nos retire a capacidade de fazer políticas pensando no Brasil de amanhã”, enfatiza. Ele acrescenta que outro ponto relevante é ter soberania nacional em tecnologia. Sobre uma eventual subordinação excessiva do Brasil aos Estados Unidos, Júlio Sérgio Gomes de Almeida assinala que, “na sua estratégia macroeconômica, no seu pensamento econômico e nas ideologias predominantes no Brasil temos uma influência americana muito forte, talvez até demais. Eu gostaria que tivéssemos uma influência menor do mercado financeiro – que é muito pró-americano – dentro do governo brasileiro, do Estado brasileiro e do que se discute no Brasil”.


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De 16 a 22 de dezembro de 2004

NACIONAL EDUCAÇÃO

UNE pede veto ao ProUni

Fatos em foco

Messianismo perigoso Todo líder político messiânico acha que é o escolhido de Deus, tem intimidade com Ele ou fala em nome Dele. O sintoma indica também quem perde o contato com a realidade e não se dá conta mais da luta comum e vital de homens, mulheres e crianças por comida, trabalho, moradia, saúde e educação. Contraponto latino Fustigado pelos oligopólios da mídia latino-americana, agora por ter aprovado uma lei de responsabilidade da comunicação social, o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, fez, em Caracas, o que o presidente Lula deveria ter feito em Brasília há mais tempo: reuniu personalidades do mundo todo para organizar uma rede internacional contra o neoliberalismo. Lula nem compareceu. Silêncio conivente Os massacres praticados pelas tropas dos Estados Unidos que ocuparam o Iraque acontecem sem que ocorra uma manifestação mais forte dos governos e da ONU. Nem mesmo o depoimento do fuzileiro Jimmy Massey, na semana passada, sobre a matança indiscriminada de civis, sensibilizou as lideranças do mundo. O genocídio continua. Fogo amigo O ex-ministro Cristovam Buarque, senador do PT-DF, não tem poupado críticas ao seu partido e ao governo federal nas entrevistas e debates. Segundo ele, o PT está indo para a direita e, por isso mesmo, é preciso unir todas as esquerdas para continuar a luta do povo contra o modelo neoliberal. Debandada eleitoral De olho nas eleições de 2006, o PPS e o PMDB decidiram abandonar a base de sustentação política do governo Lula e a possibilidade de futura coligação. O campo de manobra no centro e na direita está cada vez mais reduzido para o governo, que abandonou de vez qualquer tentativa de articular o apoio das esquerdas – inclusive de algumas correntes do próprio PT. Crescimento urgente Não é piada não: a poderosa Fiesp divulgou, sexta-feira passada, que, de acordo com o seu levantamento de emprego no Estado de São Paulo, foram criados, de janeiro a outubro deste ano, 61.248 postos de trabalho. A projeção é terminar o ano com 65 mil empregos criados. A pesquisa do Dieese estima em quase 2 milhões o número de desempregados somente na Grande São Paulo. Dinheiro privatizado De acordo com o deputado federal Ivan Valente, do PT-SP, no ano passado os benefícios fiscais dados às universidades privadas somaram R$ 2,4 bilhões e, no mesmo período, o governo investiu apenas R$ 695 milhões nas 54 universidades federais. Esse é mais um exemplo de como funciona a transferência de renda do povo para os tubarões do ensino privado. Até quando? Trabalho escravo Na última relação de proprietários rurais autuados por manter trabalho escravo, divulgada pelo Ministério do Trabalho, constam os nomes de José Braz da Silva, atual prefeito de Unaí (MG), e Evandro Liege Mutran, o maior produtor de castanha-do-pará no Brasil. O que falta agora, para esses e outros escravagistas, é cumprir pena na cadeia e ter as terras confiscadas para a reforma agrária.

Luís Brasilino da redação

A

União Nacional dos Estudantes (UNE) decidiu, dia 13, pedir veto presidencial ao Programa Universidade para Todos (ProUni), caso o Senado sancione o projeto com o mesmo teor aprovado pela Câmara Federal. Com isso, a maior entidade estudantil se junta, pela primeira vez, a setores da sociedade insatisfeitos com a política federal para o ensino. A UNE sempre se posicionou de forma crítica à idéia de oferecer isenção fiscal às escolas particulares que cedessem suas vagas ociosas para alunos carentes. No entanto, a entidade adotou uma postura mais contundente depois que a Câmara alterou e aprovou o projeto do governo. Na proposta original, a oferta de bolsas seria de 20% do total das vagas, mas o texto enviado ao Senado sugere apenas 5% de bolsas, mantendo a mesma isenção fiscal. Para Rodrigo Pereira, diretor de políticas educacionais da UNE, o ProUni representa um retrocesso. Cedendo ao lobby dos proprietários de instituições de ensino superior (IES), o programa intensifica o caráter mercantil da educação e enfraquece o ensino público e gratuito. Julia Eberhardt, diretora de universidades públicas da UNE e integrante da Coordenação Nacional de Lutas Estudantis (Conlutas), acrescenta que o ProUni é apenas uma das políticas do governo que transfere ao setor privado a responsabilidade pelo ensino no Brasil. Julia acha que o ProUni, ao lado de outras ações, como a Lei de Inovação Tecnológica e o Sistema Nacional de Avaliação da

Antonio Cruz/ABr

Realidade perdida Os discursos do presidente Lula nas reuniões de Cuzco e do ministério, na última semana, revelam uma pessoa que se diz realizada pessoalmente, e completamente distanciada dos anseios e da realidade do povo brasileiro. Foi preciso um menino de onze anos dizer ao ex-metalúrgico para “voltar às ruas” e ver que a “situação é precária”.

Câmara reduz de 20% para 5% a oferta de bolsas e desperta críticas da organização estudantil

Governo avança reforma universitária que privilegia o ensino particular, medida criticada por entidades

Educação Superior (Sinaes), compõe o total da reforma universitária. O governo anuncia como reforma universitária um anteprojeto de lei, apresentado dia 6, que “trata da missão, atribuições e deveres das instituições públicas e privadas, fortalece o papel do Conselho Nacional de Educação (CNE) e cria o Fórum Nacional de Educação Superior, órgão consultivo da Câmara de Educação Superior do CNE”, segundo texto do Ministério da Educação (MEC). Para os críticos da reforma, esse projeto limita-se a regulamentar a existência das universidades. Uma inovação é o primeiro emprego acadêmico. A proposta é subvencionar as IES públicas para oferecerem trabalho a alunos com renda familiar per capita inferior

a um salário mínimo e meio (R$ 390). Pereira acredita que, além de não ser a maneira correta de oferecer assistência estudantil, a proposta cria concorrência entre os alunos e os funcionários, pois os beneficiados com o primeiro emprego acadêmico tomariam as vagas dos trabalhadores. Marina Barbosa Pinto, presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), também faz críticas ao anteprojeto: “Ao definir que as IES públicas e privadas têm o mesmo papel social, a proposta retira do Estado a responsabilidade de financiar a educação”. Julia concorda e acrescenta que o projeto do governo abre as portas para a privatização das instituições públicas: “Tornando as instituições livres para captar recur-

sos, o projeto as libera para buscar dinheiro por meio das fundações”. Não mexer no total de verba destinada para a educação é outro aspecto negativo do anteprojeto. “Queremos que o presidente casse o veto que Fernando Henrique fez ao ponto do Plano Nacional de Educação, que garante uma vinculação de 10% do Produto Interno Bruto com a educação. Mas não vejo nenhuma movimentação nesse sentido”, afirma Pereira. O estudante também chama atenção para a questão da democracia interna nas universidades. Apesar de sugerir eleição direta para reitor, a proposta não altera a lei que define a maioria docente nos órgãos colegiados, cuja composição é de 70% para professores, 15% para alunos e 15% para funcionários.

Faculdades particulares não querem Educafro Sindia Martins de Santos (SP) Raramente uma proposta é tão bem recebida pela comunidade como foram os pré-vestibulares para afro-descendentes e carentes. A idéia surgiu no Rio de Janeiro em 1993 e rapidamente se alastrou para São Paulo em 1997, com o nome de Educafro (Educação e Cidadania para Afrodescendentes e Carentes). Atualmente, há mais de 2.200 núcleos funcionando com o trabalho de 33 mil voluntários e atendendo a 110 mil alunos em quase todos os Estados brasileiros. Apesar de o projeto ir ao encontro das necessidades das comunidades brasileiras, somente 25 instituições privadas, entre as 1.652 existentes no Brasil, participam do projeto. O problema é que os cursinhos comunitários, como também são chamados, defendem a política de cotas e bolsas para afro-descendentes e carentes como forma de amenizar a desigualdade perpetuada pelo sistema brasileiro de ensino. As universidades públicas se recusam a participar dizendo que a inserção por meio de cotas declinaria o nível de ensino. As particulares não podem alegar o mesmo. O Censo do Ensino Superior 2003 aponta para uma média de 1,5 candidatos por vaga no total de processos seletivos no país. O que indica que a maior parte dos candidatos entra, basta pagar. Essa linha filosófica levou o setor a movimentar R$ 15 bilhões em 2002. A maioria dos estabelecimentos possui uma isenção tributária de 13% por declarar não possuir fins lucrativos. Somente 500 instituições declaram ter fins lucrativos no Brasil. Mesmo indo de vento em popa, as particulares se colocam no vácuo das públicas recusando-se a participar do sistema de bolsas do Educafro. Para Sandra Maria Lopes Teixeira, uma das coordenadoras do Educafro na Baixada Santista, isso acontece porque as universidades

Victor Soares/ABr

Hamilton Octavio de Souza

Estudantes na Câmara dos Deputados em defesa das cotas nas universidades

particulares são as que mais lucram com a baixa qualidade do ensino médio e fundamental: “Nós saímos da escola pública e não conseguimos entrar na universidade pública. Daí nós vamos para onde? Para universidade privada. É o que chamamos de indústria da desigualdade”. E os números mostram que o raciocínio de Sandra é coerente. De acordo com dados do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior do Estado de São Paulo (Semesp) de 1998 até 2003 foram criadas 888 novas instituições particulares de ensino superior no país. Mais de 177 por ano. Entre 1995 e 2002, o número de estudantes mais que dobrou. Saltou de 1.059.193 para 2.750.652 matriculados.

BAIXADA SANTISTA Na Baixada Santista o cenário não é diferente. O projeto chegou aqui em 2000, por meio do Núcleo Santa Cruz dos Navegantes, no Guarujá. A partir de então, mais sete centros foram criados: um em Morrinhos, no Guarujá, dois em Santos, três em São Vicente e um na Praia Grande. Cada núcleo na baixada possui de 20 a 30

alunos e se alicerçam no trabalho de 15 voluntários entre professores e coordenadores. Em quatro anos de trabalho, o projeto encaminhou 125 alunos para universidades privadas por meio de bolsas e 15 para universidades públicas no Brasil (Unesp, Fatec, USP) e Cuba. Das 12 instituições de ensino superior existente na região, somente a UniSantos renova anualmente as bolsas. Ao todo, a Católica mantém 111 bolsas, com descontos que variam de 60% a 80%. A reitora da UniSantos, professora Maria Helena de Almeida, afirma que acredita no trabalho de inclusão social da Educafro: “Temos tido casos de alunos excelentes, que não teriam condições de fazer o curso se não tivessem obtido a bolsa do Educafro. Por isso, continuamos apoiando o programa”. A Universidade Santa Cecília (Unisanta) não aceitou renovar as concessões nos últimos dois anos, preferindo apenas manter as 13 bolsas que foram concedidas entre os anos de 2000 e 2001. São quatro bolsas de 100% e nas demais o desconto varia entre 20% e 60%. A Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp) participou

pela primeira vez o ano passado, com duas bolsas de 50%. Patrícia Ribeiro Cruz lamenta imensamente quando uma universidade deixa de dar sua contribuição. Cursando o 3º ano de arquitetura na Unisanta, ela afirma que se não fosse o acordo da Educafro com a universidade, o diploma estaria muito aquém de suas expectativas: “Eu não teria entrado na particular. Provavelmente, estaria tentando a pública”. A baixa participação, principalmente do setor privado, que abrange a maioria dos estabelecimentos de ensino superior (1.652 do total de 1.859), constrói uma realidade dura num país onde 45,3% da população ou é negra ou parda. “O Brasil é a segunda maior nação negra depois da Nigéria, contabilizando quase 80 milhões de afro-descendentes contra os cerca de 130 milhões do país africano. Entretanto, nem 5% dos que ingressam anualmente no ensino superior do país são negros”, afirma Valdenir Barreto Alves, fundadora do Educafro na Baixada Santista com o núcleo Santa Cruz. Se transferirmos essas porcentagens para a Baixada Santista, teremos uma população negra de mais de 680 mil habitantes e menos de 1.250 estudantes universitários dentre os cerca de 25 mil estimados. Cibele Maria da Silva, aluna no núcleo Santa Cruz, não entende o porquê de tanta segregação. A adolescente de 17 anos conta que os afro-descendentes e pobres sofrem um preconceito tão grande que mesmo que tenham um grau de capacidade acima da média, não são ouvidos. Valdenir Barreto complementa com o caso das cotas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ): “Foi a primeira instituição pública a trabalhar com o sistema de cotas no Brasil. Os alunos-cota apresentaram um desempenho tão bom que os alunos-vestibular tiveram de fazer reforço. Mesmo assim, as cotas foram suspensas”.


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NACIONAL REFORMA AGRÁRIA

Elite rural tenta impedir acesso à terra A

Fazenda da Barra poderá receber o primeiro assentamento da reforma agrária em Ribeirão Preto, oeste de São Paulo, cidade conhecida como a capital paulista do agronegócio. A elite local, no entanto, não aceita a presença dos sem-terra na região e tenta impedir a desapropriação da fazenda. Há um ano e meio, 400 famílias aguardam acampadas a conclusão do processo que, agora, só depende do aval do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Os sem-terra já fazem planos para a área e pretendem romper com o modelo monocultor da cana na região. A idéia é construir um assentamento sob o princípio agroflorestal, sem agrotóxicos, como explicam os líderes locais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o casal Kelly Mafort e Edvar Lavratti.

TERRA NOBRE A área é privilegiada. Os 1,8 mil hectares da fazenda estão situados dentro do perímetro urbano, a apenas vinte minutos do centro da cidade. O movimento quer criar ali um cinturão verde, permitindo que os 600 mil habitantes de Ribeirão Preto passem a consumir mais legumes e verduras produzidos na própria região. Atualmente, os 91 municípios do entorno da cidade, juntos, não conseguem produzir 25% dos alimentos hortifrutigranjeiros consumidos. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) estima que poderão ser assentadas, no mínimo, 67 famílias. O MST calcula que é possível assentar na Fazenda da Barra mais de 500 famílias, gerando cerca de 1,5 mil empregos diretos.

O processo para a implantação do assentamento já está adiantado. O Incra já enviou ao presidente Lula o pedido de desapropriação e, agora, só falta a assinatura. Em novembro, o juiz da 5ª Vara Cível local negou a posse aos advogados da Barra, já que o latifúndio não cumpria sua função social, além de ser propriedade nociva à coletividade. Os acampados aguardam o desfecho do processo dentro da fazenda.

REAÇÃO DA ELITE Enquanto o presidente não aprova o pedido do Incra, a elite local representada por empresários rurais, economistas e sindicatos patronais tenta brecar a desapropriação da Fazenda da Barra. Até agora, esses grupos não têm tido sucesso. A Justiça chegou a determinar a reintegração da área por duas vezes, deslocando mais de 300 policiais militares contra as 400 famílias. Essas liminares, no entanto, caíram em instâncias superiores. Recentemente, o ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal (STF), recebeu uma petição impetrada pelos advogados da Fazenda da Barra, requerendo uma notificação judicial para que Lula se abstivesse de assinar a desapropriação. O pedido foi arquivado. A tarefa da elite local está cada vez mais complicada. O proprietário da área, Roberto Guidoni Sobrinho, foi incluído no início do mês em uma lista deplorável: a dos acusados pelo Ministério do Trabalho por trabalho escravo no Mato Grosso. Polêmicas envolvem também a negociação da terra. O preço da fazenda estaria sendo cotado informalmente pelo mesmo valor que o de mercado: uma fortuna de R$ 50 milhões, embora

No coração paulista do agronegócio, MST quer criar um cinturão verde para beneficiar os 600 mil habitantes de Ribeirão Preto

dos. Além disso, as pessoas citadas na reportagem não atendem aos critérios de seleção do Incra e, por isso, não poderiam ser beneficiadas em um futuro assentamento. As publicações ignoram, por exemplo, a situação dos acampados Yara de Oliveira, de 33 anos, casada com Paulo César da Silva, de 46 anos, pais de cinco filhos. Ambos são catadores de recicláveis e chegaram a

a própria empresa de Roberto Guidoni tenha avaliado, em 2000, que o imóvel valia R$ 6,5 milhões. O Incra, no entanto, ainda não fez a sua avaliação.

ATAQUES DA MÍDIA A grande imprensa já tomou partido na polêmica. Na semana passada, os jornais O Globo e Folha de S. Paulo destacaram em manchetes que acampados da Fazenda da Barra seriam “donos de pizzarias ou de carros novos”. É fato que há uma diversidade social entre as famílias que têm procurado os movimentos sociais. Mas a generalização feita pelos diários distorce a realidade dos acampa-

Ribeirão Preto vindos de Franca, onde foram despejados pela prefeitura local por morar em área de preservação ambiental. Na antigo município, o marido trabalhava em plantações de café quando descobriu que ganharia mais coletando sucatas pelas ruas. Yara era sapateira, mas nunca teve trabalho em fábrica. Fazia o serviço em casa, em um sistema exploratório da produção do calçado.

Fotos: Silvia Buosi Cardinale

Silvia Buosi Cardinale, de Ribeirão Preto (SP)

Henry Milleo/Gazeta do Povo/Folha Imagem

Acampados aguardam que presidente Lula assine decreto para viabilizar sonho de assentamento em Ribeirão Preto

A outra face do agronegócio O processo de desapropriação da Fazenda da Barra, em Ribeirão Preto, traz consigo uma alternativa a um modelo agrícola em expansão na região: a monocultura da cana-de-açúcar. O setor canavieiro estima que os plantios de cana devem crescer em até 40% nos próximos cinco anos. Segundo as pesquisas, dos 2 milhões de hectares que podem ser invadidos pela cana no país, 1 milhão está no Estado de São Paulo. Todo esse movimento favorece a espe-

culação imobiliária, provocando um aumento nos preços da terra na região e garantindo lucro aos latifundiários. O avesso do agronegócio são as milhares de pessoas na região que vivem abaixo da linha de pobreza, que não melhoram suas vidas com a mo cortador de cana recebe apenas R$ 300 por mês, apesar de os usineiros serem beneficiados com menos impostos, inclusive com redução do ICMS. Segundo o Sindicato dos Trabalhadores Ru-

rais de Ribeirão Preto, a redução de impostos gerou melhorias para o trabalhador, as usinas só deram o reajuste da inflação. As contratações não aumentaram, por conta da mecanização, também crescente na região. Para agravar a situação, a localidade possui um dos custos de vida mais altos do país, uma inflação maior que a da cidade de São Paulo, segundo a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), e ganha-se, em média, menos que R$ 780. (SBC)

Graziano apóia elite local A elite local ganhou o apoio recentemente do ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Francisco Graziano. Em artigo publicado no reacionário O Estado de S. Paulo, o agrônomo se opõe à desapropriação da Fazenda da Barra, em Ribeirão Preto, oeste de São Paulo. A manifestação do ex-militante das causas sociais, no entanto, não foi gratuita. Dados da vitoriosa campanha de Graziano para deputado federal pelo PSDB em 1998 e em 2002 mostram que o agronegócio lidera, com folga, a lista dos financiadores do agrônomo. Constam da relação contribuições de R$ 100 mil da Cooperativa de Produtores de Cana, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo. Também constam doações de R$ 5 mil como a de Fábio de Oliveira Luchesi, advogado dos grileiros do pontal e de Ribeirão Preto, mais R$ 30 mil da Bunge Fertilizantes, R$ 50 mil da Klabin, entre outros representantes e apoiadores do agronegócio. No artigo, Graziano argumenta que a Fazenda da Barra é uma “raridade ecológica” que mantém

28,4% de mata nativa. Certamente, desconhece a existência de laudos do Departamento de Água e Energia Elétrica do Estado (Daee), do Departamento Estadual de Proteção dos Recursos Naturais (DPRN), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Ministério Público Estadual. Todos apontam vários danos ambientais na área, constatando a degradação da terra, a não preservação do meio ambiente e a inadequação do uso da terra. A Fazenda da Barra responde na Justiça há dez anos por um passivo ambiental cujas multas podem chegar a R$ 9 milhões. No artigo, o agrônomo Francisco Graziano também não cita um laudo da Secretaria Estadual da Justiça e do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) que aponta a Fazenda da Barra como uma grande propriedade improdutiva. Os técnicos constataram que “o imóvel apresenta GUT (Grau de utilização da terra) de 98%, e GEE (Grau de eficiência na exploração) de 62%, abaixo, portanto, do limite estabelecido em lei para o imóvel produtivo”. Isso foi constatado antes da ocupação do MST.

Franscisco Graziano procura sustentar uma tese, no mínimo, controversa: os técnicos responsáveis (na época, sob gestão do governo FHC) percorreram a área em época de entressafra para propositadamente concluir que era improdutiva. “Ele finge ignorar as mais simples regras da desapropriação”, diz Tânia Andrade, agrônoma e advogada. Pelas normas legais, a vistoria é realizada para aferir o uso e ocupação real do solo, mas abre para o proprietário um período posterior à vistoria e anterior à elaboração do laudo, em que ele pode apresentar comprovantes referentes às produções obtidas em todo o ano agrícola anterior, mas segundo os proprietários, as pessoas que arrendaram a fazenda não teriam as notas da produção. Essa produção pode ser comprovada por recibos ou notas fiscais de insumos, comprovantes de venda, nota do produtor, demonstrativos de movimentação de gado e até mesmo comprovantes de vacina. “Dificilmente quem produz de forma séria ‘não dispõe’ de nenhum, comprovante de sua produção”, explica Tânia. (SBC)

Desapropriação da Fazenda da Barra, em Ribeirão Preto (SP), representa alternativa à monocultura da cana-de-açúcar


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De 16 a 22 de dezembro de 2004

NACIONAL ENTREVISTA

Fórum vai priorizar participação popular A exemplo da edição da Índia, a organização buscou incentivar atividades autogestionadas pelos participantes

A

quinta edição do Fórum Social Mundial volta para Porto Alegre, de 26 a 31 de janeiro de 2005, com novidades. A democratização da programação e dos temas a serem debatidos, a localização das atividades, e a presença de grupos populares são algumas das mudanças, explica Francisco Whitaker, do Comitê Internacional do FSM, em entrevista ao Brasil de Fato. A definição dos temas, que até então ficava a cargo do Conselho Internacional, foi feita por meio de consulta às entidades participantes, e resultou em onze “estações temáticas” que vão nortear os debates do evento. Uma das outras modificações da edição 2005 do FSM é o local das atividades. O Fórum vai ser realizado na região central de Porto Alegre, em espaços integrados com a população da cidade. A área, denominada Território Social Mundial, engloba os armazéns do Cais do Porto, Usina do Gasômetro, os Parques Harmonia e Marinha do Brasil, além de outros locais na orla do Rio Guaíba, onde serão construídos espaços temporários para as atividades. Brasil de Fato – Quais são as novidades da quinta edição do Fórum Social Mundial? Francisco Whitaker – A primeira grande novidade é que nessa edição nenhuma das atividades será organizada pela comissão organizadora, mas pelos participantes. O mais importante do Fórum não é o que nós, organizadores, decidimos, baseados nos nossos valores, mas o que os participantes consideram mais relevante. Assim, surgem novas propostas e perspectivas. A nossa organização também aprendeu com o resultado das oficinas. No primeiro Fórum, esperávamos umas 80, e acabaram indo 400. Isso se multiplicou, e esse ano nós teremos de 1.500 a 2.000 atividades organizadas pelos participantes. BF – E o que mais? Whitaker – O espaço físico também será diferente. Ao invés de um único local, esse Fórum será na orla do Rio Guaíba, em Porto Alegre, com características específicas, que não agridam o meio ambiente, utilizando materiais ecológicos e também estimulando a economia solidária e popular. Ao longo dessa orla haverá 11 espaços diferentes, além do acampamento da juventude, e cada espaço vai ter uma temática. Outra novidade é que nós finalmente conseguimos, depois de quatro Fóruns, antecipar a publicação do programa, que vai ficar pronto no final de dezembro. Também conseguimos antecipar as inscrições. Assim, as entidades e organizações poderão se articular para combinar as atividades, superando um problema que houve anteriormente, quando o mesmo tema era tratado por duas entidades diferentes, no mesmo local e data. BF – Uma das críticas mais comuns ao FSM é a dificuldade de implementar ações práticas definidas no Fórum. Whitaker – Isso foi outra preocupação que tivemos, estimular as organizações a definir ações concretas, para não ficar só no debate, da denúncia, da exposição de problemas, mas também na proposição de soluções. Pretendemos, ao final do Fórum, que esse processo de articulação seja contínuo. Isso muda qualitativamente a força e a ação da sociedade civil. Ela deixa de aparecer de tempos em tempos, ou no

Fórum, ou em manifestações por aí afora. Ela vai se estruturando e se adensando ao longo do tempo. Para preparar esse Fórum, houve uma porção de iniciativas tomadas em torno de certas temáticas específicas. Essas são mudanças muito importantes. BF – Quais foram os critérios para a escolha dos temas? Whitaker – Fizemos uma consulta prévia. Perguntamos a todas as entidades que participaram dos Fóruns anteriores quais os temas, desafios e questões deveriam ser tratados nesse Fórum e que atividades elas pretendiam desenvolver. Com esse material, fizemos um balanço geral, levamos em conta os Fóruns anteriores e identificamos onze grandes espaços e temas. BF – Das novidades, quais são decorrentes da experiência do FSM na Índia? Whitaker – A abertura para outras formas de expressão além do discurso, do seminário intelectual. Abrimos espaço para expressões artísticas e culturais de todos os tipos, e teremos um grande número de apresentações de dança, teatro, e de todos os tipos de performances que possam exprimir de outra forma a vontade e aspirações das pessoas. Na Índia, foi muito forte a presença de grupos populares. As ruas onde o Fórum se realizava estavam permanentemente tomadas por grupos e movimentos populares que faziam marchas, manifestações, e expuseram mundialmente suas lutas. Estamos tentando repetir isso no Brasil, que nossos grupos populares tenham condições de ir até Porto Alegre para se expressar. Na Índia, foi interessante porque os dalits, que estão embaixo de todas das castas, organizaram quatro grande marchas e cruzaram o país de vários pontos até Mumbai. Na sua caminhada, fizeram intenso trabalho de conscientização popular. Vamos aproveitar o máximo possível dessa experiência. BF – Então haverá uma mudança no perfil dos participantes, aumentando a participação dos excluídos? Whitaker – É provável, o Fórum é sempre uma surpresa. Não esperamos uma mudança, mas aumento da participação de grupos mais populares. A maior dificuldade para a participação desses grupos é o custo da viagem e da estadia em Porto Alegre. Esperamos que as organizações de maior porte, que têm recursos, financiem a ida desses grupos. Esperamos que o recado da Índia tenha sido ouvido pelas organizações, e as estimule a fazer esse financiamento. BF – Qual é o objetivo da mudança na proposta metodológica? Whitaker – Radicalizar a participação, a auto-organização, e a autogestão. Estamos querendo que o Fórum seja uma prática de autogestão, de autonomia, de independência e de co-responsabilidade. BF – Quais são os desafios e expectativas para a realização dessa edição do Fórum? Whitaker – Há pressão para que o Fórum se transforme num enorme processo, que tenha uma direção e estratégias próprias, que defina objetivos únicos para todos, mas tenho a impressão que a pressão está diminuindo. Acho que está se percebendo que não é o Fórum que vai mudar o mundo. Quem vai mudar o mundo é a sociedade, e o Fórum

Quem é

autogestionando, vai facilitar a articulação das lutas dos movimentos sociais? Whitaker – Em primeiro lugar, não é uma nova metodologia, é um aprofundamento da metodologia que vem sendo usada desde o início. Estamos optando por dar cada vez mais peso às articulações entre as entidades e organizações durante e depois do Fórum. Antes do FSM já estão acontecendo muitas articulações que não existiam antes. Teremos uma novidade todos os dias, no final da tarde. Será um espaço livre para o encontro de organizações, das 17h às 19h. No mesmo horário não haverá nenhuma outra atividade que possa competir com ela, e as pessoas podem fazer reuniões nessas horas, e avançar mais a partir daquilo que já viram no Fórum, avaliar o que viram e propor novas articulações.

Membro do Comitê de Organização do Fórum Social Mundial e do Comitê Nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, Francisco Whitaker coordena a elaboração do relatório do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic) sobre a Dignidade Humana e Paz. Autor de diversos livros, Whitaker viveu 15 anos exilado na França e no Chile e foi secretário executivo da Comissão Brasileira de Justiça e Paz. Fotos: Paulo Pereira Lima

Tatiana Merlino da Redação

BF – Com a saída do PT da prefeitura de Porto Alegre haverá alguma mudança no Fórum? Whitaker – Não, o Fórum foi acolhido pela prefeitura do PT, mas não se vincula a ele. O PT perdeu o governo do Estado na eleição anterior e o Fórum continuou. Agora, perdeu a prefeitura e o Fórum continua. Se o governo atual disser que não haverá mais Fórum em Porto Alegre, faremos em outro lugar, mas ele não será tão insensato de dizer isso.

Nova edição do Fórum prevê outras formas de expressão, além do discurso

vai contribuir para que ele seja mudado por meio de uma sociedade fortalecida. O papel do Fórum é fortalecer a sociedade civil, é adensar o tecido social e não propriamente tomar o poder e mudar o mundo de cima para baixo. BF – Qual é o principal mérito do Fórum nesse processo? Whitaker – Reacender a utopia e a esperança. Estamos com uma carga de um século de frustrações, decepções e métodos. Agora, estamos buscando uma nova maneira de mudar o mundo. Não vai ser pela tomada do poder político, nem da imposição de novas regras. Será por meio de um processo de baixo para cima, de dentro para fora na sociedade, de descoberta de outras práticas políticas e de vida que têm que ser experimentadas. BF – Por que o Fórum não tem um documento final? Whitaker – O documento final seria o fim do Fórum, porque tentaria, mas não conseguiria, resumir a riqueza de propostas. Esse ano, teremos um mural de propostas para a construção de um mundo novo, com centenas de idéias. Reduzir tudo isso a um único documento que todos aceitem é impossível. Além do mais, é extremamente empobrecedor. Nós não vamos lá para sair de braços dados, numa coisa só. Vamos lá para reforçar a ação que estamos empreendendo e nos articularmos mais. O documento transformaria o Fórum numa coisa para a qual as pessoas não seriam mais atraídas. Elas ficariam preocupadas em estarem sendo instrumentalizadas por partidos, grupos, pessoas,

movimentos com os quais não concordam. BF – Como vai ser o estímulo à economia solidária e ao software livre? Whitaker – Tanto um quanto outro são de responsabilidade dos que atuam nas respectivas áreas. As empresas de economia solidária do Rio Grande do Sul e do Brasil estão sendo mobilizadas para ir ao Fórum oferecer serviços e demonstrar como funcionam. Dali para a frente vão criar novos encontros, momentos e formas de intercâmbio para desenvolver. Com o software livre será a mesma coisa. Não dá para mudar da noite para o dia de um sistema para o outro. Você tem que introduzir esse sistema paralelamente, e deixar que a coisa vá ganhando espaço no Fórum. BF – Essa nova metodologia do Fórum, com as organizações se

BF – Quando o PT perdeu a prefeitura houve boatos sobre a mudança do Fórum para outra cidade. Whitaker – Isso foi uma manobra malsucedida e infeliz de pessoas que acreditavam que poderiam interferir na eleição de Porto Alegre se passassem a idéia de que, se o candidato do PT não ganhasse, o Fórum sairia de lá. Como isso foi feito inclusive por pessoas que participam do comitê de organização ampliado do Fórum, criou muitos mal entendidos. Houve prefeituras de outros lugares que se propuseram a nos acolher, coisa que não tem o mínimo sentido fazer. Foi uma manobra infeliz que pretendia ser eleitoral e acabou tendo um resultado negativo. BF – Qual é a mística do Fórum Social Mundial? Whitaker – É a esperança permanente de que é possível realmente mudar o mundo, e que nós estamos todos numa unidade que respeita a diversidade, construindo já, no próprio processo desde já. O mundo não vai ser construído amanhã, a partir de determinado momento. O mundo já está sendo construído no nosso próprio relacionamento, até interpessoal. Essa é a mística do Fórum, de construir desde já, de dentro para fora, de baixo para cima.

Estações temáticas • Afirmar e defender os bens co-

• Lutas sociais e alternativas de-

muns da terra e dos povos como alternativa à mercantilização e ao controle das transnacionais.

mocráticas: contra a dominação neoliberal.

• Economias soberanas por e pa-

dade: resistências e desafios para um novo mundo.

ra os povos, contra o capitalismo neoliberal.

• Ética, cosmovisão e espirituali• Comunicação: práticas contra-he-

• Paz e desmilitarização: luta con-

gemônicas, direitos e alternativas.

tra a guerra, o livre comércio e a dívida.

• Artes e criação: construindo as culturas de resistência dos povos.

• Pensamento próprio, reapropriação e socialização dos saberes, conhecimentos e tecnologias.

• Direitos humanos e dignidade para um mundo justo e igualitário.

• Defender as diversidades, a pluralidade e as identidades.

• Rumo à construção de uma ordem democrática internacional e à integração dos povos.


Ano 2 • número 94 • De 16 a 22 de dezembro de 2004 – 9

SEGUNDO CADERNO ARGENTINA

Crise social deve se agravar em 2005 Economista calcula que aumentará a desigualdade na distribuição de renda e diminuirá a participação no PIB

REVOLUÇÃO

Na Argentina de Kirchner, o desemprego diminuiu, mas ainda preocupa, e os novos empregos são de salários mais baixos

Alfonsín (1983-1989), a CGT realizou treze greves gerais, mas essa militância não ocorreu nos dez anos do governo Carlos Menem, responsável pela hecatombe econômica, com o fechamento de indústrias e empresas comerciais, a virtual entrega de empresas estatais a capitais estrangeiros e as demissões em massa. A CGT governista se dividiu e surgiu o Movimento dos Trabalhadores Argentinos (MTA). Em meados dos anos 90, foi realizado o Congresso dos Trabalhadores Argentinos, que logo se transfor-

LUTA PELA PAZ

Com o objetivo de promover campanhas pela paz, pela soberania dos povos e pelos direitos humanos, foi lançado o Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e de Luta pela Paz (Cebrapaz). Segundo a exdeputada federal e presidente da entidade, Socorro Gomes, o atual momento mundial pede com urgência iniciativas como essa. “A reeleição do presidente estadunidense George W. Bush nos deixa um futuro incerto, reitera um momento de instabilidade e abre espaço para novas guerras de ocupação com o pretexto do combate ao terrorismo”, diz. A primeira iniciativa promovida pela nova organização será uma ação judicial acompanhada de um abaixo-assinado pedindo o julgamento de Bush junto à Organização das Nações Unidas (ONU) e ao Tribunal Penal Internacional (TPI) pelos crimes de guerra cometidos no Iraque, além de outras transgressões aos direitos humaTribunal Penal Internos cometidos nacional (TPI) – Julno Afeganisga crimes de guerra contra a humanidade. tão e na base Embora os Estados de GuantánaUnidos tenham asmo, em Cuba, sinado, em 1998, o tratado que criou o entre outros. tribunal, em 2002, o As assinapresidente George W. turas começaBush decidiu cancelar a adesão de seu país. rão a ser recoInstituído em julho de lhidas na pró1998, para processar xima edição do e julgar indivíduos Fórum Social que cometem crimes internacionais, como Mundial, que genocídio e crimes de acontece em guerra. janeiro, em

AMEAÇA Segundo analistas, com a chegada de Kirchner ao poder e a condenação oficial do processo neoliberalizante, era inevitável o ressurgimento do movimento sindical, enquanto o empresariado continua no esquema dos anos 90. O economista Lozano lembra que as cem principais empresas do

país viram sua rentabilidade crescer em 47 %, e as dez primeiras em 300 %, em 2004. No entanto, o setor empresarial chantageia com ameaça de inflação se forem outorgados os aumentos salariais decretados pelo governo. Em 2004, o número de greves duplicou em relação ao ano passado, numa indicação de que “está se perdendo o medo” que paralisou as massas de trabalhadores diante do desemprego brutal da última década. Também a CGT e o MTA se unificaram, e agora o ativista Hugo Moyano é o

Além do mais, existem os excluídos do sistema. Embora o número de excluídos tenha diminuído, o dirigente da CTA, Víctor de Genaro, destaca que “o nível de pobreza é tão escandaloso que a diminuição de seu índice ainda não se nota. A CTA enviou ao governo várias propostas alternativas. Uma delas: se voltassem a ser respeitadas as horas de trabalho, milhões de desempregados seriam rapidamente incorporados à rede de produção”. Mas isso significaria uma verdadeira revolução. Se os grupos empresariais, com os enormes lucros que estão tendo, se negam a dar o aumento de 30 dólares mensais decretado pelo governo, o que farão se as antigas leis trabalhistas voltarem a vigorar? De todo modo, os trabalhadores telefônicos abriram um precedente – lutaram contra empresas privatizadas em processos assombrados pela corrupção e que agora estão em mãos estrangeiras e conseguiram alguns de seus objetivos. Em particular, suas decisões foram tomadas em assembléias, e não pela burocracia sindical. (La Jornada, jornada.unam.mx)

CUBA

Entidade vai propor julgamento de Bush da Redação

mou na CTA. Apesar da paralisia da CGT, os professores e os trabalhadores estatais, além de outras categorias, participaram de greves com o apoio do MTA.

Porto Alegre (RS). “Estamos planejando um seminário onde pretendemos reunir mais de 30 entidades de todo o mundo para que a campanha seja levada para seus respectivos países. Nossa expectativa é, até setembro de 2005, arrecardar, no mínimo, 1 milhão de assinaturas”, conta Socorro. A campanha terá o apoio do World Peace Council (WPC), entidade que atua em nivel mundial e integra o Conselho Consultivo da ONU. A entidade não irá somente dirigir seus esforços para conflitos internacionais, mas também para questões nacionais como a violência urbana e a violação de direitos humanos. “Vamos buscar alianças com entidades que já realizam muitos desses trabalhos para unir forças”, explica Socorro. Lançado simbolicamente no dia 10, data da publicação da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, o Centro está se articulando desde março para firmar seus objetivos e montar sua diretoria e o Conselho Consultivo. Na diretoria, estão o deputado federal Jamil Murad (PCdoB-SP) e o jornalista Umberto Martins, entre outros. O Conselho Consultivo, que será responsável por deliberar sobre os rumos que a entidade deverá seguir, é composto por personalidades como o arquiteto Oscar Niemeyer, o músico Carlos Lyra, o escritor amazonense e ex-presidente da Funarte Márcio de Souza, além de acadêmicos como o professor e reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Aloísio Teixeira.

Milhões de pessoas participam de manobras militares da Redação

HO/AFP/AE

C

ontra a previsão de calmaria durante o período de festas de final de ano, a Argentina vê entrar em greve geral os trabalhadores telefônicos, enquanto outros setores apresentam reivindicações e o presidente Néstor Kirchner decreta aumentos salariais para funcionários públicos. O economista da Central de Trabalhadores Argentinos (CTA), Claudio Lozano, calcula que no primeiro trimestre do próximo ano o país voltará “ao mesmo nível de atividade econômica de 1998, mas em condições sociais muito piores” – o que levará a uma intensificação das reivindicações. Lozano avalia que “os números da distribuição de renda indicam maior desigualdade e menor participação dos empregados no total do PIB”. O desemprego diminuiu, mas ainda está em níveis preocupantes, e os novos empregos são de salários mais baixos. Assim como ocorreu entre os trabalhadores telefônicos, no movimento operário houve mudança de dirigentes em favor de lideranças mais atuantes. A movimentação reivindicatória se estendeu a trabalhadores da Justiça, empregados estatais, bancários, ferroviários, petroleiros e metroviários. A pesquisadora Ana Gerschenson, em artigo na revista Debate, destacou a perda do controle do movimento sindical pelos peronistas: “Em 1975, a Confederação Geral do Trabalho (CGT), peronista, tinha 4 milhões de filiados. Hoje não chega a um milhão e meio, apesar de a população ter aumentado em 10 milhões de habitantes nestes 29 anos.” Durante o governo de Raúl

principal dirigente da central peronista, onde tem de enfrentar os chamados “gordos” e “dinossauros”, os burocratas sindicalistas que continuam manobrando nos bastidores. Para o advogado trabalhista Héctor Recalde, assessor da CGT, todos os sindicatos estão em conflito porque se trata de recuperar pelo menos parte do poder aquisitivo perdido e “os empresários funcionam sob a inércia lucrativa do menemismo, onde só acumulavam e acumulavam; não querem mudar isso”.

France Presse

Stella Calloni de Buenos Aires (Argentina)

Mobilizando milhões de pessoas para demonstrar aos Estados Unidos sua capacidade de resistência a uma eventual invasão, Cuba iniciou, dia 13, uma semana de manobras militares, as maiores dos últimos dezoito anos. A Defesa Antiaérea e a Força Aérea, a Marinha de Guerra e as tropas terrestres puderam usar equipamentos e armamentos produzidos ou modernizados pela indústria nacional. Até o dia 17, cerca de 100 mil militares e 400 mil reservistas serão mobilizados. Estão previstos dois dias nacionais de defesa, com participação de milhões de civis e simulação de alerta de ataque aéreo. No conjunto de manobras, chamado “Reduto 2004”, o país caribenho aprofundará a concepção estratégica de Tropas do Exército cubano e civis realizam manobras durante exercício militar “Guerra de Todo o Povo”, doutrina militar segundo a qual, erros que cometeram no Vietnã e tamanho nível de complexidade no caso de uma eventual agressão agora estão cometendo no Iraque”, e tamanho grau de mobilização externa, “cada revolucionário, cada disse Castro. Os exercícios são co- que um nível maior só poderia ser patriota cubano terá um meio, um mandados pelo próprio presidente alcançado em condições de guerra local e uma forma de combater o Fidel Castro. Participam o Conse- verdadeira. E insistem em que, o inimigo”. lho de Defesa Nacional, órgão de que se quer, é chamar a atenção dos Na semana anterior, Raúl Cas- exceção que terá plenos poderes ci- EUA para os riscos altíssimos que tro, ministro da Defesa e irmão do vis e militares em caso de guerra, e correriam caso cumprissem os plagovernante cubano, advertiu que os Conselhos de Defesa Provinciais nos, que existem nos bastidores do as manobras são realizadas para e Municipais, estes com plenos po- governo Bush e, mais abertamente, “evitar a guerra”. “Que os Estados deres civis. nos meios de exilados cubanos, de Unidos observem bem e não subesAs autoridades militares indi- invadir Cuba. (Com agências intertimem nosso povo, não cometam os cam que as manobras em Cuba têm nacionais)


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AMÉRICA LATINA FÓRUM DA REFORMA AGRÁRIA

Alimentação e agricultura fora da OMC R

eafirmar o acesso à terra como direito de toda a humanidade e retirar as questões relativas à alimentação e à agricultura das discussões travadas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) e dos acordos comerciais bi e multilaterais. Essa foi a principal resolução política definida na declaração final do 1º Fórum Mundial sobre a Reforma Agrária (FMRA), que terminou dia 8, em Valência. Após quatro dias de intensa discussão, com a participação de representantes de organizações de mais de 70 países, a mais importante contribuição desse Fórum foi apontar para a unificação de uma agenda de mobilizações que coloque a luta pela reforma agrária como parte integrante da luta estrutural contra as políticas neoliberais que contribuem para aumentar a miséria dos trabalhadores, seja no campo ou na cidade, em todo o mundo. O fortalecimento do modelo de produção agrícola que prioriza a monocultura e é voltado para a exportação foi identificado no Fórum como principal via de expressão das políticas neoliberais que hoje são impostas aos países mais pobres e impedem o desenvolvimento dos trabalhadores rurais. Segundo a declaração final do encontro, esse modelo é “baseado na privatização e na transformação da terra, da água, das florestas, da pesca, das sementes, do conhecimento e da vida”, e tem como principal objetivo proporcionar “benefícios corporativos e a intensificação da produção para exportação”. O documento afirma ainda que o modelo neoliberal “é responsável pela crescente concentração de terras, recursos e cadeias de produção e distribuição de alimentos e outros produtos agrícolas nas mãos de um grupo reduzido de corporações”. Em oposição ao modelo agroexportador, o FMRA defende o fortalecimento da agricultura camponesa e familiar voltada para os mercados locais como ferramenta para garantir a soberania alimentar das nações. Esse modo de produção agrícola, segundo a declaração final do encontro, “é potencialmente mais produtivo por unidade e superfície, mais compatível com o meio ambiente e muito mais capaz de proporcionar uma vida digna às famílias rurais ao mesmo tempo em que proporciona aos consumidores rurais e urbanos alimentos sãos, baratos e produzidos localmente”. De acordo com os participantes do fórum, o modelo neoliberal dominante está empurrando a agricultura familiar e camponesa para a extinção. Os programas de ajustamento estrutural aos quais os países menos desenvolvidos foram obrigados a se adaptar devido à pressão do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) foram apontados no fórum como o pilar onde está ancorado o modelo agroexportador. O regime de livre comércio imposto pela OMC é identificado na declaração final do fórum como responsável pelo fato de os governos desses países “terem retrocedido na redistribuição de terras e abdicado de sua obrigação de oferecer serviços básicos como saúde, educação, segurança social, proteção para os trabalhadores, sistemas de alimentação pública e apoio comercial para os pequenos produtores”.

ESFORÇO PELO CONSENSO Aconteceram algumas divergências, ocorridas principalmente entre as organizações que fazem parte da Via Campesina e queriam um texto mais duro contra a OMC e outras que ainda vêem os organismos multilaterais de financiamento como possíveis parceiros no futuro. Apesar disso, a elaboração e aprovação da declaração final do FMRA

Representantes da Via Campesina da América Latina e da América do Norte se confraternizam durante ato comemorativo aos 20 anos do MST

ocorreu em clima de unidade e tranqüilidade: “O esforço realizado para se chegar a um consenso na elaboração da declaração final do fórum é uma demonstração clara de que os camponeses do mundo inteiro não aceitam mais a exclusão da reforma agrária da agenda política dos governos e dos organismos internacionais”, afirmou o brasileiro Plínio de Arruda Sampaio. Para o economista egípcio Samir Amin, um dos pontos fortes do FMRA foi ter comprovado de uma vez por todas que a luta pela reforma agrária não é uma coisa do passado: “O fórum demonstrou que os processos ocorridos no passado são uma etapa superada e que a luta pela reforma agrária se dá atualmente sob um novo patamar de transformação da sociedade”. A grande presença de jovens no

evento, segundo Amin, prova que a reforma agrária é uma bandeira do presente: “Vimos muitos jovens, alguns de origem urbana, que querem viver no campo e querem uma nova forma de viver no campo, com maior justiça social. Não são jovens arcaicos. Pelo contrário, são jovens bastante modernos”, disse.

ALGUNS ACRÉSCIMOS Coordenador da organização do FMRA, o espanhol Vicent Garcés saudou o fórum como “um grito de esperança” para todos os trabalhadores: “Nos dias de hoje, temos três bilhões de camponeses espalhados pelo mundo que não sabem o que vai ser deles amanhã. Neste fórum, construímos uma grande unidade frente aos desafios gigantescos que tem pela frente a humanidade, sobretudo os trabalhadores do campo”.

Apesar do clima consensual em que foi elaborada a declaração final do Fórum, algumas lacunas no documento foram apontadas pelos participantes. Foi reivindicada uma presença menos tímida de temas como o direito das mulheres, dos jovens, dos indígenas e das populações excluídas. Representante dos camponeses da Catalunha, Xávi Caetán, pediu que a declaração mencionasse o papel contrário à reforma agrária desempenhado pelos governos desenvolvidos: “Os governantes e a elite européia devem mudar sua postura. Não adianta ficar aqui discutindo a soberania alimentar nos países menos desenvolvidos enquanto nossas grandes empresas continuam adquirindo gigantescos pedaços de terra no Sul apenas para transformá-los em pastos”, disse. Representante dos camponeses

da Palestina, Judeh Jamal pediu que a declaração final do FMRA mencionasse a política de força utilizada por Estados Unidos e Israel como fator determinante para a miséria de camponeses: “Hoje, camponeses da Palestina, do Afeganistão e do Iraque estão morrendo de fome por conta da política da força exercida por Estados Unidos e Israel”, disse. Jamal ressaltou que o problema desses camponeses é também um problema de todo o mundo, e citou um exemplo: “Por falta de alternativas de produção dignas, os camponeses do Afeganistão são responsáveis pela produção de 80% da heroína que é vendida na Europa. Não podemos ter medo de, ao lutar pela reforma agrária, denunciar nossos verdadeiros inimigos”, disse. (Agência Carta Maior, www.cartamaior.com.br)

UCRÂNIA

Entre Moscou e o Oriente Alexander Nemenov/AP/AE

Maurício Thuswohl de Valência (Espanha)

Ana Nascimento/ABr

Declaração final do encontro reitera o direito ao acesso à terra e condena os acordos comercias bi e multilaterias

Simpatizantes do candidato presidencial, Viktor Yushchenko, manifestam-se em frente ao Parlamento, em Kiev

da Redação A Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE) enviará até 2.000 observadores para controlar a repetição do segundo turno das eleições presidenciais na Ucrânia, prevista para dia 26. O anúncio foi feito dia 6 em Sófia por Boris Tarasiuk, chefe da comissão de integração européia do Parlamento da Ucrânia e número dois da oposição liderada por Viktor Yushchenko. A recente crise política na Ucrânia, ainda reflexo direto da ruína soviética, repete em pequena escala cenas típicas da Guerra Fria. Entre acusações de fraude eleitoral e protestos po-

pulares, o futuro político do país encontra-se entre dois caminhos: a aproximação com Moscou ou com o Ocidente. Viktor Yushchenko e Viktor Yanukovich, os candidatos que se enfrentaram nas urnas e agora travam uma queda-de-braço pós-eleitoral, guardam as únicas semelhanças apenas no primeiro nome e no desejo de ocupar a presidência. Oriundo de uma família pobre, Yanukovich teve uma infância problemática e chegou a ser preso duas vezes quando jovem. De carreira política “meteórica”, recebeu bênção política do atual presidente ucraniano Leonid Kuchma. Yanukovich teria ligações com oli-

garquias regionais na Ucrânia. Seus críticos dizem que tem um estilo centralizador soviético e populista. Sua base eleitoral fica no leste da Ucrânia, região mais industrializada do país. Tem ainda apoio de funcionários públicos, para quem deu um aumento salarial pouco antes do pleito, criticado como demagogia pelos opositores. Yushchenko começou sua carreira no setor financeiro. Em 1993 tornou-se o número um do banco nacional da recém-independente Ucrânia. De orientação econômica liberal, conseguiu acabar com a hiperinflação e soube manejar a crise da moratória russa do final da década passada. Isso tudo chamou

a atenção do presidente Kuchma, que, no final de 1999, o indicou como primeiro-ministro. A popularidade de Yushchenko no cargo elevou-se a ponto de ofuscar a imagem do presidente, que, sentindo-se ameaçado, acabou por retirá-lo do cargo, apostando no fortalecimento de suas bases na região mais conservadora. Embora tenha nascido na região nordeste, que faz divisa com a Rússia, sua base de apoio fica do lado oposto do país, onde os sentimentos pró-Europa e antiRússia são mais fortes. Yushchenko acusa seus adversários de envenená-lo, o que explicaria a estranha doença que deformou o seu rosto poucos meses antes do pleito. As duas visitas do presidente russo Vladimir Putin à Ucrânia durante o período eleitoral dão a medida da importância dos rumos do poder político em Kiev. Putin não deu ouvidos às acusações dos opositores para parabenizar seu candidato, o atual primeiro-ministro Viktor Yanukovich. Em Washington, não se hesitou em posicionar-se contra o resultado eleitoral, que derrotava Viktor Yushchenko, cujas características liberais, pró-Ocidente e as idéias de alinhamento com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), agradam muito aos Estados Unidos. Segundo o jornal estadunidense The New York Times, nos últimos dias representantes do governo dos EUA teriam participado de encontros com o governo ucraniano e russo para resolver o impasse. (Com textos de Wilson Sobrinho, do Portal Planeta Porto Alegre, www.planetaportoalegre.net)


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INTERNACIONAL DIREITOS HUMANOS

Anistia alerta: estupro virou arma de guerra da Redação

A

Anistia Internacional divulgou um relatório segundo o qual mulheres e meninas estão sendo estupradas nos conflitos do mundo todo e as autoridades fazem pouca coisa para impedir esses crimes. De acordo com a organização, a violência contra as mulheres não é somente um subproduto da guerra, mas uma deliberada estratégia militar contra os inimigos. No documento “Vidas Destroçadas”, a Anistia diz que esses crimes persistem porque os que os cometem “sabem que ficarão impunes”. Apesar de promessas, tratados e mecanismos legais, os governos fracassam na proteção das mulheres, segundo o relatório. Mais de 30 áreas de conflito são citadas, incluindo países como Colômbia, Iraque, Sudão, Rússia (Chechênia), Nepal e Afeganistão. A secretáriageral da Anistia, Irene Khan, afirma que as mulheres são atacadas para afrontar o inimigo, desmoralizando os homens e amedrontando as pessoas para que fujam. O relatório mostra que as que sobrevivem aos atos de violência sofrem de trauma psicológico e emocional, podem contrair o vírus

Cris Bouroncle/AFP

Relatório mostra que abusos sexuais contra mulheres e meninas são uma estratégia militar para atingir inimigos

Mulheres e meninas são violentadas, mutiladas e humilhadas em guerras como a do Iraque e do Afeganistão

da Aids e ser rejeitadas pela própria família ou pela comunidade em que vivem se forem identificadas publicamente como vítimas de estupro. Para Khan, é essencial que algumas das primeiras ações a se-

rem julgadas pelo Tribunal Penal Internacional no ano 2005 sejam sobre crimes de violência contra as mulheres. No entanto, diz, somente o julgamento no tribunal não é suficiente se não houver apoio político.

O documento da Anistia afirma: “Mulheres e meninas não são apenas mortas. São violentadas, submetidas sexualmente, mutiladas, humilhadas. Costumes, culturas e religiões construíram, a respeito das

mulheres, a imagem de depositárias da ‘honra’ das próprias comunidade; vilipendiar a sexualidade de uma mulher, atentar contra sua integridade física, se tornaram os meios para aterrorizar, humilhar e desencorajar comunidades inteiras, e para punir, humilhar e intimidar as próprias mulheres”. Os casos de estupro “com fins militares” só chegam à mídia internacional em casos “exemplares”: muito se falou dos estupros em Ruanda, há uma década, ou nos Bálcãs, onde foram complemento da política de “limpeza étnica”. Mas pouco se falou da violência contra as mulheres no Iraque durante o último ano e meio de conflito. Às vezes há alguma notícia sobre Darfur, no Sudão (a Anistia cita o caso de meninas de 12 anos capturadas por milicianos e “usadas como mulheres”, ou como escravas, ou ambas as coisas). Mas pouco sabemos sobre o Congo, Colômbia e o Afeganistão. Tudo isso se acresce aos danos “normais” da guerra: mulheres obrigadas a fugir de suas aldeias e cidades, refugiadas cuidando sozinhas de crianças e doentes, buscando alimento e água para a sobrevivência e expondo-se a outros riscos de agressão. (Com agências internacionais)

João Alexandre Peschanski da Redação

Brasil de Fato – Quais os principais objetivos dos movimentos sociais estadunidenses para resistir ao novo governo de Bush? David Solnit – Organizar movimentos sociais nos EUA – o coração do Império – é difícil e complicado. Isso pode parecer estranho, vindo de um país próspero com menos violência contra movimentos sociais do que em muitas partes do mundo. Não temos de enfrentar bombardeios e massacres de civis como as pessoas em Faluja ou em todo o Iraque. Nem temos de enfrentar as dívidas e os ajustes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, como o Sul em todo o globo (embora as mesmas forças controlem a nossa economia). De nosso lado, além de lutar para educar, organizar e mobilizar, também lutamos contra a colonização das mentes da sociedade estadunidense. O Império, dominado por Bush, por meio do controle da mídia de massa e da cultura, e por meio da cumplicidade do Partido Democrata, colonizou as mentes de todo o povo nos EUA. As corporações e o governo do país desenvolveram métodos muito sofisticados e eficazes de controle social das pessoas. As corporações e o governo têm à sua disposição a maior concentração de poder e de riqueza da história. Há um quase monopólio da mídia de massa. O entretenimento e a cultura nos EUA são controlados por poucas corporações gigantescas, que trabalham

Um dos principais ativistas estadunidenses, David Solnit é considerado o articulador das manifestações que, em 1999, interromperam as negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Seattle, nos Estados Unidos. Ele acaba de publicar o livro Globalize Liberation (Globalizem a libertação), com vários colaboradores, propondo formas de resistência à globalização. Para mais detalhes sobre o livro, consulte a página da internet www.globalizeliberation.o rg (em inLês). Paulo Maldos

A globalização, além de um fenômeno econômico e militar, também se caracteriza pelo desenvolvimento de métodos sofisticados de controle social das pessoas. Na opinião de David Solnit, articulador das manifestações contra a Organização Mundial do Comércio (OMC), em Seattle (EUA), em 1999, é preciso acabar com esse “controle das mentes”. Para isso, deve-se estimular uma concepção de mundo alternativa, o novo radicalismo, que se fundamenta em elementos como a valorização da democracia direta e o aspecto antisistêmico.

Quem é

CMI

O novo radicalismo, contra a globalização

Manifestação contra a Área de Livre Comércio das Américas, em Miami:

em conjunto com o governo. É daí que a maior parte das pessoas obtém informações, cultura e idéias sobre o mundo – isso forma a nossa realidade. BF – O povo estadunidense já saiu às ruas por seus direitos, por mudança da política econômica ou militar. Por que isso não acontece mais? Solnit – Os EUA têm uma história rica em movimentos sociais que usaram a ação direta de massas para conquistar mudanças, mas a mídia das corporações tenta apagar essa história. O autor e colaborador do livro Globalize Liberation, Patrick Reinsborough, explica que o sistema contra o

qual combatemos não é meramente estrutural. Existe também dentro de nós normas culturais opressivas que definem nossa visão do mundo. Nossas mentes foram colonizadas para tornar normais premissas profundamente patológicas (doentes). Reinsborough avalia que a colonização não é apenas o processo de estabelecer o controle físico do território, é o processo de estabelecer ideologias e identidade – colônias da mente – que perpetuam o controle. O principal assessor do governo, Karl Rove, é o responsável pela criação da imagem pública de Bush e pela vitória nas eleições para governador e presidente com ataques

manipulados contra seus adversários e com a “guerra de informações” para controlar as idéias das pessoas. Expandiram seu poder ao conquistar a fidelidade do movimento fundamentalista da direita cristã, bem organizado, bem financiado e crescente. Por trás dessa realidade criada pelo Império, também está a ameaça de violência do Estado. Nossos movimentos enfrentam a crescente militarização da polícia, a espionagem e a sabotagem contra a liberdade de organização, a violência e a repressão contra os protestos. Os trabalhadores e as pessoas pobres de cor (negros, latinos, indígenas) e os brancos pobres dos EUA têm diante de si o maior complexo de prisões do mundo – temos a maior porcentagem dos habitantes na prisão entre todos os países do mundo. BF – Quais são os desafios para os movimentos sociais? Solnit – Ao mesmo tempo que praticamente todos os movimentos trabalharam para se livrar de Bush, uma parte radical crescente dos nossos movimentos percebe que nosso poder vem dos movimentos sociais, da ação direta de massas, e de alternativas de organização. Sabemos que nossos movimentos têm de se tornar maiores, mais bem organizados, mais estratégicos e mais poderosos, para enfrentar o governo Bush, o poder das corporações e o crescente movimento fundamentalista da direita cristã que está por trás de Bush. Dia 3 de novembro, o dia seguinte às eleições, houve marchas e manifestações em mais de sessenta cidades contra as eleições e as políticas de guerra e de Império tanto de Bush como de Kerry. Neste exato momento alguns grupos estão desafiando a legitimidade das eleições, em que houve corrupção amplamente espalhada e supressão de eleitores. Entre os dias 19 e 21 de novembro, logo após a eleições, tivemos uma promissora mobilização de mais de 16 mil pessoas contra o campo de treinamento militar em torturas e em repressão chamado Escola das Américas, em Columbus, no Estado da Geórgia. Muitos dirigiram seus

carros durante um ou dois dias inteiros para chegar a essa remota base militar e vinte pessoas foram detidas ao se engajar na desobediência civil. Dia 20 de janeiro do próximo ano, dia da posse de Bush, haverá marchas e ações em escala nacional e uma mobilização de massa em Washington. BF – Como derrotar a globalização? Solnit – É preciso estimular o “novo radicalismo”, termo usado para descrever a diversificada articulação de movimentos que na última década tem inspirado milhões a sair às ruas para resistir e para agir em suas próprias comunidades. O novo radicalismo é novo tanto por ter se tornado tão popular, como por seus métodos originais de se organizar para a mudança. Nos EUA, o novo radicalismo surgiu em Seattle, quando interrompemos a reunião da OMC com ação direta em 1999, mas também em lutas locais como a luta da Coalização de Trabalhadores de Immokalle para organizar os trabalhadores migrantes na Flórida contra a Taco Bell, de propriedade da maior corporação de fast-food do planeta. Muitos de nós fomos inspirados pelo levante zapatista de 1º de janeiro de 1994, que estabeleceu um modo diferente de lutar. Alguns dos princípios em comum dos novos movimentos radicais incluem: o aspecto antisistêmico, com o compromisso de destruir pela raiz o sistema que causa nossos problemas; a ação direta, baseada na idéia de fazermos nós mesmos as mudanças pelo poder popular; a democracia direta, em que as pessoas estão envolvidas na tomada de decisões nos nossos movimentos de resistência e no mundo que criamos; fazer a mudança sem tomar o poder, saindo da idéia de que tomar o poder de Estado por eleições, golpes ou insurreições não vai mudar as relações de poder que estão na raiz dos nossos problemas; e laboratório de resistência, saindo do pressuposto de que a organização e a resistência são experimentos dos quais devemos aprender e que devemos constantemente avaliar.


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De 16 a 22 de dezembro de 2004

INTERNACIONAL COSTA DO MARFIM

Governo quer investigar ação francesa Autoridades exigem apuração dos ataques, feitos por soldados franceses, que causaram sessenta mortes em Abidjã da Redação

norte rebelde é de maioria muçulmana, sendo o sul controlado pelo governo e de maioria cristã. Duas outras facções rebeldes surgiram no oeste em novembro de 2002 , auxiliadas por guerrilheiros da Libéria.

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Costa do Marfim exigiu, junto à Organização das Nações Unidas (ONU), dia 8, a formação de uma comissão internacional para investigar os disparos feitos por soldados franceses contra uma multidão de manifestantes desarmados na cidade de Abidjã, dia 9 de novembro. Sessenta pessoas morreram e 2 mil ficaram feridas. O embaixador marfinense na ONU, Philippe Djangone-Bi, exibiu vídeos horripilantes em que civis, inclusive mulheres, aparecem caídos no chão e gritando apavorados. Segundo ele, isso é prova de que a França cometeu flagrantes violações aos direitos humanos e mentiu a respeito. “É urgente, portanto, conduzir investigações internacionais confiáveis, para restaurar a verdade sobre o que realmente aconteceu, e por iniciativa de quem”, disse ele, em entrevista coletiva. “Os direitos humanos não são só para um lado, mas para todos os países”. As manifestações contra os franceses começaram em 6 de novembro, depois que os militares da França destruíram a pequena Força Aérea marfinense em retaliação por um bombardeio que matou nove soldados franceses de uma força de paz.

MEDIAÇÃO DO CONFLITO Dia 6, o governo e os rebeldes concordaram, sob mediação do presidente sul-africano, Thabo Mbeki, com medidas destinadas à retomada do processo de paz. Segundo Mbeki, ambas as partes

COSTA DO MARFIM Localização: Oeste da África Capital: Yamoussoukro Nacionalidade: Marfinense População: 15,8 milhões de habitantes Território: 322.462 Km2 Línguas: francês (oficial), diula, baulê Moeda: franco CFA Dia da Independência: 7 de dezembro

Inicialmente a França negou, mas depois admitiu que seus soldados dispararam contra os manifestantes, alegando que alguns estavam armados. Paris defendeu veementemente o comportamento dos soldados na sua antiga colônia, afirmando que eles agiram com moderação e apenas para proteger franceses e outros estrangeiros dos ataques. Até os ataques, a França tinha

se comprometeram a iniciar um desarmamento, retomar o governo de coalizão e permitir a normalização da vida após os incidentes na maior cidade do país, Abidjã, e em outras áreas. Ainda não se sabe se haverá uma emenda constitucional para permitir que o político nortista de oposição Alassane Ouattara se candidate à presidência. O atual presidente, Laurent Gbagbo, enviou um projeto nesse sentido durante a visita de Mbeki. (Com agências internacionais)

Maior produtor de cacau mais de 4 mil soldados na Costa do Marfim, que é o maior produtor de cacau do mundo, trabalhando com cerca de 6.200 soldados das forças de paz da ONU. DjangoneBi disse que a força francesa precisa ser integrada à operação da ONU, em vez de agir como uma entidade à parte. A Costa do Marfim foi dividida ao meio desde que rebeldes tomaram o norte do país em 2002. O

A Costa do Marfim produz 40% do cacau vendido no mundo, seguida por Gana e Indonésia. O Brasil, por exemplo, tem fatia de 6% no mercado externo. O país desenvolveu o setor agrícola entre os anos 60 e 70, sendo importante produtora também de café, algodão, abacaxi e banana. Do tamanho do Estado do Maranhão, o país fica na costa do Oceano Atlântico e tem fronteiras com Libéria, Guiné, Burkina Faso e Gana. Sua capital, Yamoussoukro, tem arquitetura moderna, diferenciando-se das demais, e é considerada

uma pequena réplica de Brasília. Convivem em seu território mais de 60 grupos étnicos e grande contingente de exilados de países vizinhos. A atual Constituição do país está em vigor desde 2000, e o sistema é pluripartidário desde 1990. Existem 78 partidos políticos em atuação. O país é atualmente o primeiro exportador africano de óleo de palma, o terceiro produtor de algodão e faz parte da Cedeao, uma organização de integração econômica regional da África do Oeste, nos mesmos moldes que o Mercosul.

ÁFRICA AUSTRAL

Depois da seca, o perigo da malária Wilson Johwa de Bulawayo (Zimbábue)

aumento da malária, quando começarem as chuvas de verão, após um ano de prolongadas secas. O vírus da malária é transmitido pelo mosquito Anófeles, que cresce em água parada e é portador de parasitas chamados plasmódios. Na África Austral são registrados entre 18 e 20 milhões de casos de malária ao ano, com cerca de 200 mil mortes, segundo a OMS. É a doença que mais mata crianças com menos de 5 anos no mundo. E também é causa de pobreza. Seu controle e tratamento custam à África aproximadamente 12 bilhões de dólares por ano, que se perdem em investimentos produtivos. Calcula-se que isso reduz o crescimento do Produto Interno Bruto em 1,3% ao ano. A OMS assegura que a doença foi erradicada em amplas regiões de

No arrasador calor do verão, as nuvens, embora sejam poucas, são recebidas com alegria pelos agricultores do Zimbábue e de outros países africanos afetados pela seca. Porém, as chuvas tão esperadas às vezes trazem males piores. “Prevemos uma nova onda de malária na África Austral, com alto risco de focos no Zimbábue, sul de Angola e norte da Namíbia, e com baixo risco de focos na África do Sul e em Botswana”, informou Shiva Murugasampillay, do Programa para o Controle da Malária na África Austral da Organização Mundial da Saúde (OMS), cujo escritório central fica em Harare, capital do Zimbábue. Os especialistas prevêem um

Botswana, África do Sul, Suazilândia e Zimbábue. “Conseguimos isso uma vez e podemos conseguir novamente”, disse Murugasampillay, que comparou a luta contra a malária com uma campanha militar. Acabar com a doença requer “longos e consistentes esforços durante 30 ou 50 anos”, afirmou. A África Austral começou a receber mais apoio financeiro desde o lançamento, em 2002, do Fundo Mundial de Luta contra a Aids, a tuberculose e a malária.

FALTA DE RECURSOS O diretor da organização nãogovernamental África Contra a Malária, Richard Tren, expressou preocupação pelo fato de muitas boas iniciativas fracassarem diante da carência de recursos. A Campanha para Erradicar a Malária, por exemplo,

foi lançada em 1998 pela OMS com o objetivo de reduzir pela metade as mortes causadas pela doença até 2010, mas Tren disse que o número de vítimas fatais aumentou 12% nos últimos seis anos. No entanto, Murugasampillay atribui esse aparente aumento a um melhor diagnóstico dos casos de malária e não considera necessário maior apoio financeiro para a luta contra a doença. “Os objetivos até 2015 são controlar a malária e reduzir as infecções e as mortes para níveis manejáveis. Somente então poderemos fixar as metas da eliminação e erradicação”, ressaltou. Para Young, controlar a malária na África custará cerca de 2 bilhões de dólares ao ano. O Fundo Mundial recebeu este ano doações no valor de 2,4 bilhões de dólares. Por outro lado, o pesticida DDT (diclo-

reto difenil tricloroetano), proibido nos Estados Unidos desde 1973, e em outros países, por causa de seu efeito contaminante da água, volta a ser usado em algumas nações africanas como medida de emergência para combater o mosquito transmissor de plasmódios. Em 2000, uma epidemia de malária colocou à prova os recursos da comunidade médica regional. Esforços de numerosas instituições conseguiram conter o avanço da enfermidade por meio de programas de educação preventiva e fumigação de áreas de risco. Essa experiência foi uma boa notícia para a comunidade internacional, porque 40% dos habitantes do planeta correm o risco de contrair malária, segundo especialistas. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)

S.TOMÉ E PRÍNCIPE

NOBEL

da Redação Primeira militante ecologista e primeira mulher africana a receber o Prêmio Nobel da Paz, a queniana Wangari Maathai, 64 anos, foi premiada este ano por seu trabalho em defesa dos bosques africanos e por sua liderança na “luta para promover um desenvolvimento ecologicamente viável em matéria social, econômica e cultural no Quênia e África”. A cerimônia de entrega do prêmio foi realizada no aniversário de morte do filantropo sueco Alfred Nobel, dia 10, em Oslo, capital da Noruega. Wangari recebeu uma medalha de ouro, um diploma e 1,5 milhão de dólares. Seu nome vai se juntar aos das 11 mulheres ganhadoras do Nobel da Paz, até hoje, desde a criação do prêmio, em 1901. No no passado, o Nobel da paz foi dado à iraniana Shirin Ebadi, advogada que trabalha pelos direitos humanos. O presidente do Comitê do Nobel Norueguês, Ole Danbolt Mjoes, entregou o prêmio à “semeadora de árvores” queniana durante uma cerimônia solene na presença da família real norueguesa. Ao se dirigir à “querida mama Wangari Maathai”,

John Mcconnico/AP/AE

Queniana recebe Prêmio da Paz

Wangari Maathai acena para 3 mil crianças em Oslo, na Noruega

Mjoes justificou em seu discurso a atribuição do Prêmio da Paz a uma ecologista, gesto criticado por alguns, que o consideraram

um “desvio” do Nobel. Depois de ampliar seu campo de referência à defesa dos direitos humanos nas últimas décadas, “o Comitê do No-

bel Norueguês estendeu ainda mais sua definição da paz este ano”, declarou Mjoes. “Há conexões entre a paz, por um lado, e o ambiente, por outro, quando a escassez de recursos como o petróleo, a água, os minerais ou a madeira estão no centro dos conflitos”, explicou. Vice-ministra para o Ambiente do Quênia, Maathai é fundadora do Movimento Cinturão Verde, uma campanha para salvar os bosques africanos que começou com nove árvores em seu jardim, há quase 30 anos, e se transformou no maior projeto para plantar árvores na África, com mais de 30 milhões de árvores no continente. Sua visão global do desenvolvimento sustentável abrange a democracia e o desenvolvimento do Quênia, o combate à pobreza, a luta pelos direitos humanos e pelos direitos da mulher. “Não pode haver paz sem um desenvolvimento equilibrado e não pode haver desenvolvimento sem o gerenciamento sustentável do ambiente em uma espaço democrático e pacífico”, disse a ambientalista, que bateu o recorde de 194 indicações, incluindo a do inspetor de armas da ONU, Hans Blix. (Com agências internacionais)

FMI exige maior rigor fiscal da Redação O Fundo Monetário Internacional (FMI) exigiu do governo de São Tomé maior rigor na política macroeconomica, condição indispensável para S. Tomé e Príncipe chegar à segunda fase da iniciativa de perdão da dívida externa, avaliada em mais de 300 milhões de dólares. Adelino Castelo David, ministro santomense das Finanças, esteve em Washington para tentar convencer o Fundo da necessidade de uma renegociação. David, que considerou bastante complicadas as negociações com a missão do Fundo, acredita que a não entrada, até ao momento, de receitas do petróleo, obrigou o governo a contrair novos empréstimos para o financiamento de alguns projetos que vieram aumentar o fardo da dívida externa do país. O ministro acredita numa inversão do atual quadro, desde que sejam imediatamente tomadas medidas de correção macroeconômica. Uma vez mais, a população das ilhas deverá sofrer novo aperto do cinto. A contenção das despesas públicas é uma das medidas em vista para conter a inflação, conseqüência da falta de dinheiro das receitas internas. (Com agências internacionais)


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AMBIENTE RIO SÃO FRANCISCO

Transposição vai encarecer custo da água A

transposição do Rio São Francisco não é boa opção nem para o agronegócio, na opinião de João Abner Guimarães Júnior, hidrólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande Norte. Contrapondo-se ao principal argumento do governo federal para realizar a obra de desvio do rio, Abner sustenta que a obra é economicamente inviável e tem como únicos favorecidos grandes empresários e empreiteiras ligados à indústria da seca. O pior, para ele, é que a obra vai prejudicar toda a população nordestina, desviando recursos de obras prioritárias, encarecendo a água, e aumentando o consumo e os custos da geração de energia elétrica. Ultimamente, Abner vem se destacando como um dos principais críticos da transposição e seus estudos estão sendo usados para basear decisões judiciais. Dia 6, João Batista Castro Júnior, juiz da 7ª Vara de Justiça Federal da Bahia, utilizou dados apurados pelo professor para justificar a suspensão das tramitações que levam à aprovação da transposição. Abner argumenta, inclusive, que o governo federal apresenta teses mentirosas para justificar o projeto. A entrevista foi concedida ao Brasil de Fato durante o 5º Encontro Nacional da Articulação do Semi-Árido (Enconasa), realizado entre os dias 16 e 19 de novembro, em Teresina (PI).

Dieter Bühne

Luís Brasilino enviado especial a Teresina (PI)

Evelson de Freitas/Folha Imagem

Para especialista, obra deve quintuplicar custo da água, desviar recursos e favorecer indústria da seca

manobras como dumping. Nesse caso, nossos produtos seriam supertaxados no exterior. Por isso digo que, até para o agronegócio, é um presente de grego.

Brasil de Fato – Por que o senhor é contra a transposição? João Abner – Esse projeto é politicamente inconseqüente, economicamente inviável e socialmente injusto. E bastaria apenas uma dessas três condições para justificar o abandono do projeto. A transposição é politicamente inconseqüente porque gera um conflito na federação brasileira e nos Estados do Nordeste que será permanente, com tendência a se agravar – uma briga pelo uso da água. No momento em que se tira água da Bacia do São Francisco para levar para Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte (Estados receptores), uma injustiça é cometida com o povo doador (alagoanos, baianos, mineiros, pernambucanos e sergipanos) que tem disponibilidade hídrica de 360 metros cúbicos por segundo para abastecer uma população de 13 milhões de pessoas. No Ceará, por exemplo, a disponibilidade per capita é melhor: 215 m³/s para 7,5 milhões, sendo que fenômeno semelhante acontece também com o RN. Outro aspecto fundamental é que, na Bacia do São Francisco, 335m³/s dos 360m³/s de água disponíveis já estão comprometidos. Portanto, os 25m³/s que o governo diz que vai tirar, não é pouco, mas sim o que resta de água ainda não outorgada no rio. Esse número de 1% (o governo alega que vai retirar apenas essa quantidade) é relativo à vazão média na bar-

Nascido no município de Cerro Corá (RN), em 1953, João Abner Guimarães Júnior formou-se, aos 26 anos, em engenharia civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), disciplina na qual tornou-se mestre, em 1993, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPA). Cinco anos depois, terminou seu doutorado em Engenharia Hidráulica e Saneamento pela Universidade de São Paulo (USP). Desde então, é professor do curso de engenharia civil da UFRN. Entre 2003 e 2004,

Desviar o rio pode prejudicar a população, encarecendo a água e aumentando os custos de geração de energia elétrica

ragem de Sobradinho, mas essa não é uma boa referência. Devese trabalhar com a vazão firme (aquilo que é garantido que o rio vai ter, mesmo em períodos de seca), que são 1.860m³/s. Desses, apenas 360m³/s estão disponíveis. O restante, 1.500m³/s, já é utilizado para a produção de energia elétrica. E essa água tem uma função importantíssima: 95% da energia do Nordeste é de fonte hidráulica – uma fonte barata. É um erro dizer que o São Francisco está jogando água no mar. Essa água tem uma função importante como geradora de energia. É daí que vem o segundo conflito gerado pela transposição. Um conflito nacional. Como o sistema da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) já está funcionando no seu limite, a transposição vai implicar uma mudança muito grande na matriz energética no Nordeste, uma vez que será necessário trazer energia de fora ou gerá-la por meio de termoelétricas. Além disso, terá que se produzir energia Divulgação

Quem é

Rio São Francisco, em Sobradinho (BA): segundo o especialista João Abner, projeto de transposição é socialmente injusto e economicamente inviável

Abner exerceu a função de diretor geral do Instituto de Gestão das Águas do Estado do Rio Grande do Norte.

para a transposição e para os usos da nova água nos Estados receptores; para não falar da água que vai ser retirada com a transposição. A implicação disso tudo é um aumento de custo da energia elétrica em todo o sistema nacional. BF – O senhor acredita que o governo tem manipulado dados? Abner – A principal fraude é a tese central do governo para defender a transposição, de que “existe um défict hídrico (demanda maior que a oferta) nos Estados receptores da água da transposição e esse quadro tende a se agravar, levando a região para a insustentabilidade”. Isso é totalmente falso porque não existe défict hídrico, a não ser em algumas microregiões localizadas. Mas não se trata de um défict global. A disponibilidade per capita, já mencionada, explica isso. A questão toda é fazer transposições internas para resolver esse tipo de problema. Outro argumento falacioso do governo é a demanda reprimida da região (água que poderia ser usada para atividades econômicas). Os dados oficiais baseiam-se na agricultura irrigada para chegar a esse número e, portanto, são falsos. O consumo humano e industrial urbano não justifica a transposição. Segundo os números do Estudo de Impacto Ambiental / Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), o consumo de toda a região beneficiada é de 22m³/s e a natureza tem, hoje em dia, recursos para atender dez vezes essa demanda. O problema, portanto, passa pela agricultura irrigada. Só que os projetos para justificar a transposição por essa vertente,

aumentar áreas irrigadas, são fictícios. É totalmente insustentável. O governo está promovendo um desenvolvimento não sustentável em vez de trabalhar com a melhoria da eficiência, induzindo o reuso de água, entre outras alternativas. Isso, aliás, só seria necessário se a disponibilidade estivesse no limite, coisa que não está. O RN e o CE teriam condição de duplicar sua área irrigada, sem a transposição. BF – Pode-se concluir que a transposição atende ao agronegócio? Abner – O projeto é um verdadeiro presente de grego para todos os setores da economia do semi-árido porque a água que vai chegar terá um custo elevadíssimo. Toda a economia de produtos irrigados do Nordeste é destinada ao mercado externo. Dessa forma, exportamos água para a Europa, via produtos. E os europeus, com uma disponibilidade muito menor de água, a compram muito mais barata. Dentro dessa lógica, a transposição constitui um projeto muito atrasado. Na economia globalizada, não se imagina um projeto desse tipo: elevar o custo do insumo (a água) em vez de barateá-la. A transposição vai aumentar em cinco vezes o custo da água e o governo, para responder a esse obstáculo, aponta com uma solução por meio de um subsídio cruzado (o custo que não for absorvido pelas atividades hidroagrícolas seria bancado por outros setores como, por exemplo, o urbano). Isso é politicamente insustentável. E se as populações das grandes metrópoles não aceitarem isso? Outro aspecto negativo é a possibilidade de considerar essas

BF – Quer dizer que a transposição só beneficia a indústria da seca? Abner – É a reprodução da indústria da seca. Os beneficiados são as empresas da construção civil e os grandes empresários locais. O grande sonho de dom Pedro II, creio que bem-intencionado, era vender todas as jóias da coroa para resolver os problemas da seca no Nordeste. Mas esse sonho não se concretizou, apesar de muitas jóias da coroa terem sido vendidas – a região Nordeste tem o maior índice de açudagem do mundo e uma grande capacidade de armazenar água. Essas são as jóias da coroa. O fato do sonho não ter sido concretizado se deve à apropriação que a indústria da seca fez, desde o primeiro momento, do sonho de dom Pedro II. Os projetos realizados nunca tiveram cunho social. A política hidráulica do Nordeste não está atrelada a uma reforma hídrica e nem agrária para oferecer acesso a essa água. Só que a transposição é ainda mais prejudicial do que as típicas obras da indústria da seca. Ela não demanda apenas investimentos na construção, a população vai pagar um preço constante. Todos, principalmente os que não têm acesso à água da transposição, vão pagar pela água. BF – Dessa forma, além de a transposição não alterar a situação no semi-árido, ainda prejudica a população? Abner – Sem contar que a obra vai desviar muitos recursos, bilhões de reais durante muitos anos, deixando de lado o desenvolvimento de muitos projetos prioritários para a região. É um sumidouro de recursos do país inteiro. Outro ponto extremamente negativo é a paralisação do Estado na região. Já dá para observar que os recursos para a revitalização do Rio São Francisco estão sendo enxugados. Além disso, a transposição inverte o sentido dos eixos de integração nacional. Hoje, o principal princípio da equalização é a distribuição de renda. E o que está acontecendo? Leva-se água do Vale do São Francisco, uma região de baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e com a economia estagnada, para uma área com IDH maior, o litoral.


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DEBATE RUMOS DO GOVERNO

A maior façanha de Lula Renato Nucci Junior

L

ula e o grande consenso – Talvez não tenhamos conhecido, em toda a história republicana brasileira, um presidente eleito que gozou de tanto apoio e confiança popular como Luiz Inácio Lula da Silva. Um apoio cujo leque abarcava membros de todas as classes sociais e partidos políticos que, por uma razão ou outra, o apoiaram em sua quarta tentativa de chegar à Presidência. Apesar da profunda institucionalização do Partido dos Trabalhadores (PT), que o tornou estreitamente vinculado às disputas eleitorais... Apesar do abrandamento programático-discursivo de Lula ao longo da campanha... Apesar das garantias dadas ao mercado financeiro de que não romperia os contratos que garantem o pagamento em dia das dívidas interna e externa, e que não faria qualquer mudança na política econômica... Apesar do apoio de frações da classe dominante brasileira ligadas às velhas oligarquias latifundiárias, como o ex-presidente José Sarney... Apesar de formar uma aliança que teve como candidato a vice-presidente um dos maiores empresários têxteis do país, José Alencar, do Partido Liberal... Apesar de tudo isso, nada pareceu abalar a generalizada confiança popular, incluindo a de frações da esquerda brasileira, de que Lula faria um governo que começaria a responder aos anseios mais profundos dos trabalhadores do país. Ou que, pelo menos, ele assumiria o compromisso de comandar a retomada do crescimento econômico com distribuição de renda, em um país cuja economia patina há duas décadas.

na política econômica. O principal objetivo que se coloca é o de trabalhar para se construir um amplo movimento de massa, cujos eixos podem centrar-se na mudança imediata da política econômica neoliberal, na demissão de Palocci e Meirelles, na realização efetiva da reforma agrária, na não entrada do Brasil em qualquer acordo de livre comércio e na retirada de todas as (contra) reformas que atentem contra os interesses dos trabalhadores, da juventude e que coloquem em risco a soberania nacional. Para isso, é necessário que se unifiquem as lutas atualmente em curso. Essa articulação entre a política econômica e o projeto de (contra) reformas, nos oferece condições para a construção de um movimento que supere as preocupações corporativas e parciais, em favor de um debate de natureza estrutural.

O QUE RESTA DO CONSENSO Aproximando-se do final de seu segundo ano de mandato, notamos uma grande frustração, principalmente entre a classe trabalhadora e os diversos setores do movimento popular e das forças políticas de esquerda que historicamente o apoiaram. O governo Lula conseguiu uma proeza sem igual ao corroer, com a continuidade e o aprofundamento das políticas neoliberais, todo o grande apoio popular que o consagrou nas urnas com expressivos 52 milhões de votos. O que poderia ser aproveitado em favor de uma fantástica mobilização nacional, em torno de um programa popular que pelo menos nos livrasse do pântano neoliberal, foi simplesmente jogado no lixo. Ao invés de optar pelo caminho de enfrentar os interesses da classe dominante, a burocracia petista preferiu a cômoda continuidade econômica – que além de favorecê-la também interessa ao grande capital financeiro e especulativo, bem como as frações burguesas ligadas aos interesses exportadores, como os fabricantes de aço, as empresas de mineração e o agronegócio. O resultado dessa mesmice não poderia ser outro; no último pleito municipal o PT foi derrotado em importantes cidades do país, como São Paulo e Porto Alegre. Porém, a derrota eleitoral e a atual crise têm outros motivos mais profundos. Estão no “espetáculo do crescimento” que nunca chega, por causa de uma política macroeconômica que privilegia os juros altos, o aperto fiscal e monetário e o elevado superávit primário, em detrimento do investimento público e das atividades produtivas. Estão em uma reforma agrária que nunca sai do papel, pois o governo privilegia o agronegócio e sua vocação exportadora, em vez de dar apoio à agricultura familiar que gera mais empregos e atende o mercado interno. Está na perda do poder aquisitivo dos salários dos trabalhadores, enquanto o consumo de artigos de luxo para a elite cresce 35% ao ano. E está nos novos ataques que o governo programa para

Kipper

CONCLUSÃO

2005, com as (contra) reformas sindical, trabalhista e universitária.

GIRO À DIREITA DO GOVERNO Diante dessa situação, poderíamos imaginar que a cúpula petista evocaria mudanças na condução da economia, até por um instinto de sobrevivência política. Sua opção, no entanto, foi outra, pois ocorreu um giro ainda mais conservador e à direita, com Lula declarando enfaticamente, para alegria dos parasitas do sistema financeiro, que a política econômica não muda de jeito algum. Como apenas promessas não servem de garantia ao “mercado”, que teme uma virada populista e à esquerda de Lula por pressão dos movimentos sociais, o governo resolveu agir para provar o quanto está decidido em fazer o que frações da burguesia nacional e internacional desejam. Em 18 de novembro Lula demitiu Carlos Lessa, presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), vinculado aos interesses do capital nacional de matriz desenvolvimentista. Tão eloqüentes sinais de subserviência não passaram, obviamente, despercebidos pela grande imprensa. O jornal O Estado de S. Paulo (21/11) estampava, em sua primeira página, com orgulhosa arrogância, o seguinte título: “BNDES abandona a ideologia”. E a revista Veja, outro órgão conservador da burguesia brasileira, em sua edição de 1º de dezembro, também capta esse giro à direita do governo, trazendo na capa a seguinte chamada: “Lula e a ‘despetização’ do governo”. Porém, o abandono da ideologia e a despetização do governo, como indicam os referidos órgão de comunicação, não apareceram agora. Esse é um processo que se iniciou durante a campanha que elegeu Lu-

la (por seus compromissos com as elites ligadas ao capital financeiro especulativo), e que se aprofundou ao longo do governo, por uma composição ministerial cujas pastas mais importantes e estratégicas foram entregues a representantes da burguesia brasileira e estrangeira.

MANIFESTAÇÕES POPULARES A demissão de Lessa, no entanto, parece ter despertado setores da esquerda brasileira. E o que vemos se insinuar é o surgimento de um novo consenso: o de que o governo Lula já era, não existindo mais espaço para a disputa interna sobre os seus rumos, se é que existiu algum dia. Tal fato confirma o que já era evidente desde o início do mandato de Lula, mas que não se admitia, por oportunismo de uns e excessiva cautela de outros: o de que o medo há muito venceu a esperança. Lula, enfim, conseguiu uma grande façanha: colocar contra ele as forças políticas alicerçadas nos movimentos populares e nas organizações políticas de esquerda, que poderiam lhe servir de sustentação se ele resolvesse implementar medidas de caráter democrático e popular. Tal situação ficou patente com as manifestações de 25 de novembro, em Brasília. Como se sabe, nesse dia, a capital federal assistiu a duas manifestações de protesto que contaram com cerca de 30 mil pessoas. A primeira delas, ocorrida pela manhã e organizada pela esquerda cutista e petista, além de contar com grande presença da militância do P-SOL, do PSTU e de estudantes universitários de todo o país, reivindicou a retirada, pelo governo, dos projetos de (contra) reforma sindical, trabalhista e universitária, pois todos atendem aos interesses do capital privado nacional e internacional, além de

serem exigidas pelo FMI e pelo Banco Mundial. A outra manifestação, realizada por diversas organizações de trabalhadores rurais, que participavam da Conferência Nacional da Terra e da Água, dirigiu-se à sede do Banco Central. Seu principal eixo reivindicativo é a mudança imediata na política econômica do governo, bem como as demissões do ministro da Fazenda, Antônio Palocci, e a do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Pudemos medir, em ambas, o grande descrédito que o governo conseguiu angariar junto a diversos setores dos movimentos sociais, comprovando a tese que estamos defendendo neste texto: o de que a grande façanha do governo Lula foi jogar no lixo sua fantástica base de sustentação popular. Vimos esse descrédito nas palavras de ordem dos manifestantes, tais como: “Fora já, fora já daqui, Palocci, Meirelles e o FMI”; “Ô Lula, que papelão, essa reforma é de pelego e de patrão”; “Não pago, educação não é supermercado”. Entre os participantes da Conferência Nacional da Terra e da Água, incluía-se um sentimento de indignação por Lula não ter atendido ao convite dos organizadores para participar do evento, nem que fosse por alguns minutos. Mas, mesmo com toda a bronca manifestada, não se viu qualquer palavra de ordem exigindo o “Fora Lula”, excetuando um ou outro agrupamento inexpressivo. Os trabalhadores percebem que não há, na conjuntura atual, qualquer outra força política ou personalidade de esquerda que seja uma alternativa viável com a mesma capacidade de aglutinação que teve Lula e o PT. Isso indica que a retomada do movimento de massa deve ter como ponto central a luta por mudanças

Se o governo Lula e o PT conseguiram a façanha de reduzir em farrapos o grande consenso que havia em torno de si – “a política econômica vai ser essa e não muda”, como afirmou Lula de maneira arrogante –, isso favorece as condições já presentes na conjuntura, para que as organizações populares e as forças políticas de esquerda desenvolvam um novo consenso. Esse potencial existe. Há disposição da militância para essa empreitada. Sua perspectiva deve ser a de constituir um amplo movimento que lute – nas ruas e nas praças – por meio de mobilizações de massa que ganhem a mesma dimensão da campanha das Diretas Já! e do Fora Collor, pela realização de uma agenda com os seguintes pontos: conquistar a imediata mudança na política econômica e a demissão de Palocci e de Meirelles, adoção de uma política econômica que aposte no crescimento econômico com distribuição de renda, que contemple a reivindicação pela reforma agrária, que lute pela não participação do Brasil em qualquer acordo de livre comércio e na retirada dos projetos das (contra) reformas neoliberais do governo – a trabalhista, a sindical e a universitária. São reivindicações mínimas e de caráter democrático que, colocadas em seu devido contexto, servem como impulso à mobilização de massas. Tais reivindicações, por mexer em instituições políticas e econômicas nas quais se assenta atualmente o poder político da burguesia – e que são as fontes geradoras e reprodutoras da nossa profunda desigualdade social – podem trazer para a nossa luta de classes uma dinâmica que desvele, para os trabalhadores, os mecanismos mais subterrâneos da exploração do capital sobre o trabalho. Renato Nucci Junior é militante da Campanha Contra a Alca e Contra a Guerra Imperialista e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em Campinas, São Paulo


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agenda@brasildefato.com.br

AGENDA LIVROS PLANEJAMENTO URBANO E ATIVISMOS SOCIAIS De autoria de Glauco Bruce Rodrigues e Marcelo Lopes de Souza, a obra analisa as formas com que os problemas urbanos, especialmente os das grandes cidades, têm sido enfrentados e como podem ser superados. Para os autores, planejamento e gestão urbanos não devem ser vistos como atividades redutíveis à ação do Estado, mas, ao contrário, devem ser também de responsabilidade direta da sociedade civil. Apontam ainda que os ativismos sociais, como protagonistas da produção do espaço urbano, precisam ser autores de estratégias e planejamentos alternativos, e não apenas críticos. O estudo inicia pela distinção entre planejamento e gestão urbanos. O primeiro é uma atividade que remete sempre para o futuro, é uma forma de tentar prever a evolução de um fenômeno, e, a partir daí, procurar se precaver contra problemas. Já a gestão é a administração de determinadas situações dentro de uma conjuntura, com os recursos disponíveis no presente, tendo em vista as necessidades imediatas. O livro, editado pela Fundação Editora Unesp, tem 133 páginas e custa R$ 15. Mais informações: (11) 3872-2861 www.editoraunesp.com.br, A ARTE DA ENTREVISTA O livro reúne 48 entrevistas clássicas da história do jornalismo, de 1823 a 2000, em uma antologia organizada pelo jornalista Fábio Altman, com desenhos de Cássio Loredano. A edição tem Freud, Marx, Oscar Wilde, Hitler, Drummond, Lula, Hitchcock, Hemingway, Fidel Castro, Tolstói, entre outros, expondo (ou escondendo) suas idéias no calor dos acontecimentos. O volume traz uma entrevista de Marx apenas dois meses depois da Comuna de Paris e uma de Freud discutindo o pessimismo em 1930. São 32 entrevistas estrangeiras e 16 depoimentos de personagens brasileiros. A seleção foi feita a partir de quatro critérios: impacto imediato na realidade (como a entrevista de Getúlio Vargas para Samuel Wainer, em 1949,

Teles e do francês Pierre Devin. Os fotógrafos retrataram os hábitos, a gente, a cultura, a natureza e os aspectos peculiares da comunidade de Conceição das Crioulas, município de Salgueiro. A mostra está sendo organizada pela Associação Quilombola de Conceição das Crioulas (AQCC), em parceria com o Centro de Cultura Luiz Freire, o Observatório Arte Fotográfica Local: Observatório Arte Fotográfica, R. do Apolo, 107, 2º andar, Recife Mais informações: (81) 3224-7322

PULGUEIRO 18 e 19, das 13h às 22h Idealizado pelo estilista Heitor Werneck em parceria com a Coordenadoria da Juventuda da Prefeitura de São Paulo, o Pulgueiro é uma grande feira de expressões artísticas das mais diferentes áreas. O maior objetivo do projeto é promover uma troca de experiências entre o público e os expositores e artistas presentes, oferecendo um espaço de interação com entretenimento, lazer e vanguarda de moda. Numa referência aos “mercados de pulgas” europeus, o evento se diferencia dos demais pela presença ativa das mais diversas manifestações culturais. São exposições de estilistas, shows de rock e música eletrônica, mostra de filmes, per-

que marca o retorno do ex-ditador para a vida política; ou a de Pedro Collor, que detonou o processo de impeachment do irmão); entrevistas que retrataram uma época (como a de John Kennedy em 1960 ou João Figueiredo em 1978); as entrevistas corajosas, que rompiam silêncios (como a de dom Hélder Câmara, em 1969, no momento mais duro da ditadura militar); e entrevistas que fazem referência à própria natureza desta que é a ferramenta fundamental do jornalismo (como a de José Bonifácio, de 1923, e a de Rudyard Kypling insultando o entrevistador e considerando o ato de pedir entrevista uma coisa “imoral”; ou a de Tim Berners-Lee, o pai da internet, numa entrevista on line. Editado pela Boitempo Editorial, o livro tem 480 páginas e custa R$ 57 Mais informações: www.boitempo.com.br

CEARÁ FEIRA DE SOCIOECONOMIA SOLIDÁRIA, REFORMA AGRÁRIA E AGRICULTURA FAMILIAR 16 a 18 O encontro pretende reunir 300

SÃO PAULO

formance de DJs, body art, grafiteiros e afins. Esta edição do encontro terá três palcos e muitas atrações consolidando o Pulgueiro como um evento, e não apenas uma feira

de moda.

produtores de todo o Ceará, entre os quais 50% do meio rural e 50% do meio urbano. Durante o encontro haverá o debate “Desafios e perspectivas da economia solidária no Ceará”, oficinas de agroecologia e marco jurídico da economia solidária, painéis e seminários. Dia 17 haverá o ato de lançamento do convênio para criação do Centro Público de Comercialização e Desenvolvimento da Economia Solidária, que funcionará em Fortaleza, sob uma gestão que terá 60% de participação da sociedade civil e 40% de órgãos do governo federal (Incra, Dnocs, BNB e UFC). Local: Centro de Arte e Cultura Dragão do Mar, R. Dragão do Mar, 81, Fortaleza Mais informações: (85) 9969-7073

avaliação das atividades de 2004 e planejamento para 2005. Local: Igreja do Cristo Rei, R. Nogueira Acioli, Fortaleza Mais informações: (85) 3279-8680 lino.allegri@uol.com.br

ASSEMBLÉIA DAS PASTORAIS SOCIAIS DO REGIONAL NORDESTE I 17 e 18 Durante o encontro, cada diocese vai fazer sua análise de conjuntura a partir das eleições municipais. Em seguida, a prefeita eleita de Fortaleza, Luizianne Lins (PT), vai falar sobre as perspectivas para os próximos anos. Haverá ainda uma análise de conjunta eclesial,

Local: R. Maria Domitila, 79, São Paulo Mais informações: (11) 3284-6965 www.funprime.com.br/pulgueiro

PARAÍBA MEMÓRIA DA LOUCURA 16, 19h Abertura da mostra, que tem por objetivo fomentar a discussão sobre o tema, visando a humanização dos tratamentos psiquiátricos, bem como contribuir com a desmistificação da doença mental. Local: Museu de Artes Assis Chateaubriand, Pque. Evaldo Cruz, s/n, Campina Grande Mais informações: memoriadaloucura@papesq.rpp.br

PERNAMBUCO CONCEIÇÃO DAS CRIOLAS - IMAGENS DA RESISTÊNCIA Até 23 Exposição fotográfica coletiva que traz 40 trabalhos de Beto Figueirôa, Luca Barreto, Matheus Sá (Canal 03), Maria Chaves, Xirumba, Gleide Selma, Ricardo

MOSTRA DO SALÃO DE PIRACICABA 18, 11h Abertura da exposição dos vencedores do 31º Salão Internacional do Humor de Piracicaba. A mostra reúne 286 trabalhos nas categorias cartum, charge, caricatura e tiras, escolhidos entre 1500 obras, vindas de 32 países. O Salão, que foi criado para incentivar a descoberta de novos talentos do humor gráfico e das histórias em quadrinhos, é considerado um dos mais importantes no mundo das artes gráficas, da indústria editorial e das histórias em quadrinhos. Os temas predominantes na primeira década de existência do Salão eram as críticas à ditadura militar vigente no país. O acervo é constituído de 290 trabalhos com grande valor histórico-analítico, retratando cada época e o sentimento que norteou a produção cultural, além da visão individual de cada cartunista. Local: Estação Pinacoteca, Largo Osório, 66, São Paulo Mais informações: www.salao dehumordepiracicaba.com.br SONHOS, EMOÇÕES E INTIMIDADES Até 22 A exposição reúne trabalhos fotográficos de Eduardo Villares, uma intervenção de Carla Venusa e do projeto artista na vitrine de Feco Hamburger. A curadoria das fotos é de Marcelo Greco. Local: R. Barão do Bananal, 947, São Paulo Mais informações: (11) 3871-0450


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CULTURA

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TEATRO

Maus-tratos e violência, só no palco “A primeira vez que vi minha mãe apanhando eu tinha três anos de idade. Meu pai conseguiu quebrar um dente da frente dela. Ele ficava com raiva de mim porque eu sempre entrava no meio da discussão. O pior é que não era só minha mãe quem sofria. Até minha avó apanhava; meu pai chegava a arrancar os cabelos dela. Depois de passar a briga, ele dizia com a maior carade-pau que estava possuído. Cresci amargurada, achando que nunca iria ter um marido”, conta Elaine, que está casada há 11 anos. Ela conta que a mãe apanhou várias vezes, até que um dia foi denunciar o marido. O policial de plantão disse ao pai de Elaine que ele podia bater na esposa, desde que não chegasse a sangrar tanto, senão seria obrigado a levá-lo preso. “Minha mãe gritava de tanta revolta”, lembra Elaine. Elaine participou do grupo Os Filhos da Cegonha, um grupo formado por Marta quando fazia oficina entre os educadores da Escola Municipal Manuel Fiel Filho, e que mais tarde se juntou com as Mal Amadas. Para Elaine, o teatro significa alegria. É também a oportunidade de falar o que não consegue dizer em palavras.

Performance do grupo Mal Amadas em Diadema (SP)

No cenário de violência doméstica, outra violência diz respeito às ameaças à saúde. Muitos maridos não aceitam o uso de preservativos nas relações sexuais, expondo suas mulheres a doenças sexualmente transmissíveis (DST). No Boletim Epidemiológico da Aids, publicado pelo Programa Nacional de DST/Aids,

divulgado dia 30 de novembro, foram registradas 12.599 notificações em 2003, contra 10.566, em 1998. Nos primeiros seis meses deste ano, foram registrados 5.538 casos de Aids entre os pacientes femininos, número que representa o crescimento da doença entre as mulheres. (Portal Setor3, www.setor3.com.br)

Marta Baião

M

Marta Baião

Marta Baião, dirigente do Mal Amadas

Elaine Militão, uma das integrantes do grupo, usa o teatro para combater a violência doméstica

Uma mulher que rompeu o ciclo Neuza Brito, atriz do grupo desde 1992, é uma boa ouvinte e conselheira de suas espectadoras. Pudera, ela tem uma respeitável experiência no assunto. Por duas vezes, foi agredida por seu marido. Em ambas, o denunciou. Mas sua história de violência começou bem antes do casamento: quando era criança, via sua mãe ser agredida por seu pai. A mãe de Neuza, que era ope-

rária, acordava perto das quatro da manhã para entregar peças de automóveis em uma indústria da região do ABC paulista. Quando caminhava com os filhos e um cabo de vassoura nas costas, onde todas as peças estavam acomodadas, era pega pelo marido, que estava escondido numa moita e tinha o prazer de jogar todas as peças no chão. Neuza vivia entre a violência

Susana Sarmiento

al Amadas, só no nome. Elas já sofreram agressão física e psicológica de seus companheiros. Mas hoje são uma referência e um apoio para outras mulheres. Há 12 anos, o Teatro Experimental Feminista Urbano Mal Amadas foi idealizado para discutir a situação da mulher vítima da violência doméstica e a relação desigual entre os gêneros. Utilizando a arte para interromper o ciclo de violação dos direitos das mulheres, o grupo Mal Amadas está vinculado ao Centro Informação Mulher (CIM), criado em 1979 por uma organização feminista. Referência como centro de documentação e memória sobre a mulher no Brasil, o CIM atua como parceiro do movimento de mulheres e presta serviços para organizações populares, entidades sindicais, pesquisadores sociais e acadêmicos. Tem 30 mil títulos entre livros, periódicos, teses, brochuras, folhetos, cartazes, dossiês de imprensa, fitas cassetes, fotos, entre outros itens. Há sete anos, quando o CIM começou a perder financiadores e entrou em um período de dificuldades, as Mal Amadas saíram de sua sede de origem, a cidade de Diadema, na Grande São Paulo, e assumiram a direção do Centro. Hoje, quatro pessoas compõem o elenco. Muitas integrantes do núcleo original desistiram, para seguir outros caminhos. Mas o trabalho continua, sempre com a preocupação de retratar a realidade da mulher e as relações de gênero. Após as apresentações, o grupo costuma fazer um debate com a platéia. Muitas vezes, as mulheres dão seus depoimentos e pedem conselhos sobre como proceder em relação a seus companheiros violentos. “Fazemos apresentações nas escolas, nas ruas, nas favelas. Os espetáculos funcionam como uma orientação para as mulheres”, conta a psicodramatista Marta Baião, presidente do CIM e diretora do grupo. Caracterizado como serviço de encaminhamento, e não de atendimento, o CIM orienta as vítimas de maus-tratos a procurar uma Delegacia da Mulher e registrar um boletim de ocorrência. Ou, se a mulher não quiser fazer a denúncia, é aconselhada a conversar com outra companheira que sofreu violência. De acordo com Marta, as mulheres hoje começam a reagir à violência. As relações desiguais entre homem e mulher e a falta de informações resultam em baixa auto-estima da mulher, que acaba por não questionar seu relacionamento. Outro tipo de violência é a simbólica, promovida pela mídia, que cada vez mais retrata a mulher como produto, reforçando a relação patriarcal da sociedade. “A mídia massacra a mulher. Nós nos tornamos produtos, mercadorias, como uma cerveja”, afirma Marta. Integrante do elenco, Elaine Militão nunca sofreu nenhuma violência física, mas presenciou maus tratos em sua mãe e em sua avó.

Susana Sarmiento

Susana Sarmiento de São Paulo (SP)

Marta Baião

Grupo formado por vítimas de violência doméstica faz do teatro instrumento para conscientização de mulheres

A atriz Neuza Brito chegou a esconder armas de vizinhos para evitar tragédias

e o alcoolismo de seu pai. Mas conseguiu mudar o trajeto de sua história. Na primeira vez que foi agredida pelo marido, ele a socou e a prendeu no sofá, deixando hematomas em seus braços. “Eu já tinha visto minha mãe apanhar várias vezes. Então, decici denunciá-lo. Fui até o fórum e fiz o exame de corpo de delito. O juiz me disse: ‘Se você apanhou é porque alguma coisa fez de errado. Volta pra casa e vai cuidar de seu marido e de seus filhos’”, conta Neuza. Depois de um tempo, o marido de Neuza quebrou uma vassoura em cima dela. “Denunciei de novo, mas dessa vez fui para a Delegacia da Mulher. Quando foram entregar a intimação na minha casa, meu marido estava dormindo e não queria se levantar para assinar. A oficial de justiça falou que se ele não levantasse ela iria ao nosso quarto e se ele não comparecesse no dia, a oficial iria buscá-lo na firma”, diz Neuza. A intimidação valeu a pena. O

marido de Neuza fala até hoje que sofreu a maior humilhação da sua vida e nunca mais bateu em sua esposa. Porém, continuou tendo comportamentos de violência psicológica, xingando e humilhando a esposa. Apesar de tudo, Neuza trabalha no teatro há dois anos, faz reciclagem de papel e produz blocos, agendas e álbuns de fotografia. Não desistiu de seu sonho: cursar Artes Cênicas. E para isso está completando o ensino fundamental no supletivo. “Meu marido começou a reclamar que eu trabalhava, estudava e ele não via a cor do dinheiro. Quando eu falei que estava juntando para fazer faculdade ele ficou com raiva e não queria mais ajudar em casa. Mesmo assim não desisti de estudar”, declara Neuza, que se tornou referência em sua comunidade, em Diadema. A vizinhança a procura para esclarecer dúvidas e desabafar. Ela chegou até a esconder armas de vizinhos para evitar tragédias. (SS)

Machado de Assis e William Shakespeare vão à periferia Vânia Alves de São Paulo (SP) Jardim Independência, Jardim Thomas, Vila Diva e outros tantos bairros da periferia paulistana que nunca ocuparam as páginas dos cadernos de turismo é o destino de final de semana da trupe do projeto Ler é uma Viagem. Na bagagem, a atriz Élida Marques e os músicos Nina Blauth e Pedro Ribeiro levam um tapete, meia dúzia de almofadas, violão, timba, apitos, chocalhos e muitos livros. Com toda essa tralha eles desembarcam nas esco-

las de periferia. Vão em busca de uma biblioteca, uma sala de aula ou mesmo um refeitório, enfim, qualquer espaço onde possam esticar o grande tapete, jogar as almofadas e improvisar um lugar aconchegante para cantar, tocar e ler. Ou, como o grupo define, para fazer uma apresentação “lítero-musical”. Élida lê clássicos da literatura, principalmente brasileira, para um público de faixa etária variada, às vezes composto por crianças, adolescentes e seus pais; outras, só por alunos. A platéia é sempre hipnotizada pelas palavras de Darcy Ribei-

ro, Lima Barreto, Clarice Lispector e outros autores. Aluna de Cacá Rosset e Ná Ozzetti, Élida teve sua primeira experiência em cinema com o filme Bicho de Sete Cabeças. Para prender a atenção da platéia, muda o tom da voz de acordo com a passagem do livro, movimenta-se pela sala, mostra gravuras do livro e, entre um parágrafo e outro, ou entre uma história e outra, canta. O trecho da Mayra, de Darcy Ribeiro, por exemplo, é precedido de uma canção em tupi. “A idéia é que ao escutarem um capítulo ou um texto,

as pessoas sintam vontade de abrir o livro e ler toda a história”, diz Élida. Nina e Pedro Ribeiro são os responsáveis pela trilha sonora que enriquece cada leitura. Mas o papel dos músicos não é apenas acompanhar o texto. Eles produzem os sons que criam o clima nas apresentações. “Tudo é um improviso que varia de acordo com a história e com o retorno da platéia”, conta Pedro Ribeiro, que também toca com o grupo Babado de Chita e atua no grupo teatral a Trupe do Griot. O trabalho do grupo foi comple-

tamente aprovado por Bruno Jonny, 13 anos, da Escola Professora Ana Teixeira, na Vila Diva. “Achei legal ler o livro com música”, disse o garoto. Depois das apresentações, as crianças correm para ver de perto os apetrechos dos músicos. “Eles são muito curiosos e querem saber o que é cada instrumento. Querem tocar.”, conta Nina, que no currículo tem participação no grupo feminino Orquídeas do Brasil – que acompanhou Itamar Assumpção – e nas bandas de Chico César, Jards Macalé e Ceumar. (Agência Carta Maior, www.cartamaior.com.br)


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