Ano 2 • Número 95
R$ 2,00 São Paulo • De 23 a 29 de dezembro de 2004
Alba, um novo modelo de integração
Território livre – Estudantes palestinos seguram bandeira durante cerimônia que marcou, dia 21, o final dos 40 dias de luto após a morte do líder Yasser Arafat
Fórum estimula Transgênicos participação de contaminam e grupos excluídos produzem menos Dia 20, o Senado aprovou a medida provisória que liberou o plantio de soja transgênica para a safra 2005-2006. Também foi liberado, pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, o plantio de algodão transgênico. Mas o deputado Edson Duarte e o Ministério do Meio Ambiente entraram na Justiça para suspender a decisão. No Rio Grande do Sul, maior produtor de soja modificada, agricultores colhem os prejuízos de redução da colheita e do rendimento. Pág. 7
União Européia quer área de livre comércio
Homologação de terra indígena depende de Lula
O projeto de Constituição Européia, que deve ser votado em 2005, prevê a construção de uma área de livre comércio continental, construída nos moldes do modelo neoliberal. Nessa perspectiva, se ratificado, vai levar à liberalização dos serviços públicos como cultura, educação e saúde, e pode ir contra conquistas históricas dos trabalhadores europeus, como a jornada de trabalho de 35 horas. Pág. 11
A homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol (RR), reivindicada por diversos povos da região, agora só depende da oficialização do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. As liminares que impediam a homologação foram suspensas, dia 15. Entidades como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) temem que a decisão intensifique o nível dos conflitos com fazendeiros da região. Pág. 4
Governo garante preservação da Amazônia A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, afirmou que o governo brasileiro vai se empenhar para conter o desmatamento na Amazônia – que atingiu o segundo maior nível da história no ano de 2003. A declaração foi feita em Buenos Aires (Argentina), durante a Conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas e Protocolo de Quioto (COP 10), que se encerrou dia 17. Marina informou que o combate à devastação está mobilizando treze ministérios. Pág. 13
Maringoni
A presença inexpressiva de grupos “excluídos”, nas últimas edições do Fórum Social Mundial, incentivou os organizadores a investir na ampliação da participação de movimentos populares em 2005. Os fóruns locais são iniciativas que também estimulam a presença popular e fazem uma “ponte” entre o local e o global, como aconteceu na terceira edição do Fórum Social Potiguar, em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Págs. 6 e 8
Mais assassinatos de sem-terra Só a impunidade e a absoluta ausência do Estado, assim como a frouxidão de políticas sociais e a lentidão na implementação da reforma agrária explicam a continuidade da violência no campo do país. Dias 15 e 16, mais três
sem-terra foram assassinados em São José da Coroa Grande e em Passira (Pernambuco). Eles tinham algo em comum: além de militantes do MST, ousaram denunciar a violência do latifúndio. Em Passira, Nilmário Miranda,
secretário Nacional dos Direitos Humanos, classificou os assassinatos de trabalhadores como uma ação “covarde e fria”, e lembrou que nos conflitos do campo há mortes apenas de um lado. Pág. 3
Alexandre Belém/JC Imagem/AE
O
s presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e de Cuba, Fidel Castro, assinaram, dia 14, um acordo de cooperação socioeconômica que materializa as propostas da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), em busca do desenvolvimento regional. O entendimento nasce em contraposição ao modelo da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), encampado pelos Estados Unidos e apoiado pelas transnacionais. Em declaração conjunta, os dois presidentes disseram que, até hoje, os processos de integração das Américas têm aumentado a dependência e a dominação externa. Segundo eles, a Alba vai romper com esse modelo e responder às necessidades dos povos, em vez de favorecer apenas grandes empresas. A Venezuela vai oferecer, por exemplo, ajuda para Cuba superar a grave crise energética. De sua parte, a ilha caribenha concederá duas mil bolsas de estudos para jovens venezuelanos. Págs. 2 e 9
Muhammed Muheisen/Associated Press/AE
Hugo Chávez e Fidel Castro colocam em prática alternativa a modelo de livre comércio imposto pelos EUA
Trabalhadores rurais sem-terra protestam contra a violência e a impunidade no campo, em São José da Coroa Grande (PE)
EUA e Peru Em Serra Leoa, participaram da estupradores Operação Condor não são punidos Pág. 10
Os sem-teto pelas lentes de um sem teto
Pág. 12
Pelo fim do falido modelo da Febem Na Fundação do Bem-Estar do Menor (Febem) do Estado de São Paulo, a tortura tem como objetivo domar, humilhar e quebrar a resistência dos internos, segundo afirma Gladys Peccequillo, ex-funcionária da instituição demitida após denunciar um espancamento numa das unidades. Em entrevista ao Brasil de Fato, Gladys conta que o caso virou o primeiro processo criminal por tortura na Febem, e defende a extinção da Fundação. Pág. 5
Pág. 16
E mais: PINOCHET – A Corte de Apelações de Santiago (Chile) confirmou, dia 20, a ordem de prisão do general, cujo governo mandou assassinar milhares de pessoas. Pág. 10 AGRONEGÓCIO – Modelo agrícola de Ribeirão Preto (SP), que favorece a monocultura da cana, é responsável por desemprego e exploração de trabalhadores da região. Pág. 13
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De 23 a 29 de dezembro de 2004
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
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NOSSA OPINIÃO
Alba: caminho real para a integração São históricas e abundantes as proclamações dos chefes de Estado em favor da integração latino-americana. Mais recentemente, após a constituição da Comunidade Européia – na qual os verdadeiros interesses das maiorias sucumbiram ante a imposição dos países capitalistas europeus mais poderosos –, o tema ganha nova força, especialmente porque surge dos Estados Unidos a proposta de criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), com sua evidente intenção de anexar as economias latino-americanas. No entanto, muitos chefes de Estado da região, apesar da retórica do integracionismo, continuam colocando em prática políticas de entreguismo de suas economias à oligarquia financeira internacional. E tangenciam a adoção de medidas, de fato, integracionistas e de valorização da independência da região ante a voracidade das transnacionais. Ou seja, deve ser questionada a validade de uma integração de economias cada vez mais internacionalizadas e controladas por mecanismos diversos, sofisticados e não questionados. Exemplo: a economia brasileira já tem 75% de seu PIB controlados por não-residentes. O crescimento econômico será o crescimento da acumulação de uma economia sob o controle de forças externas. E a integração de economias internacionalizadas, sem transformação do modelo econômico, é a confirmação do controle estratégico das transnacionais sobre esses processos de integração das economias de periferia.
Um verdadeiro caminho de integração, com soberania, solidariedade e independência, sem apetites de rapina e questionando os mecanismos coloniais em vigor, vem com a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), que recebeu novo impulso dia 15, por meio de declaração conjunta assinada pelos governos da Venezuela e de Cuba, durante visita do presidente Hugo Chávez a Havana. Mais que a reiteração de que a Alca é um projeto morto, Fidel Castro e Hugo Chávez rompem com a retórica vazia e consolidam um programa de cooperação que é um verdadeiro exemplo para os povos das Américas. Além da decisão conjunta de promover a Alba, Cuba e Venezuela decidiram ampliar uma cooperação para a área das telecomunicações, incluindo a utilização mútua de satélites. Ficou acertado também que Cuba vai isentar de impostos todos os investimentos de empresas estatais, mistas ou privadas venezuelanas, feitos na Ilha, durante todo o período de recuperação do valor investido. A partir de agora, navios venezuelanos já têm as mesmas condições que navios cubanos para uso de qualquer porto da ilha. Na área do petróleo, Cuba compromete-se a pagar o preçogarantia mínimo de 27 dólares por barril do combustível importado da Venezuela. Basta lembrar que o sistema de comércio de petróleo, controlado pelas transnacionais, já derrubou o preço do barril a 10 dólares. Qualquer importação,
por Cuba, de produtos de origem venezuelana, estará livre de taxas aduaneiras ou não aduaneiras. O acordo de integração prevê ainda a instalação de bancos estatais nos dois países e a admissão de pagamento em moeda venezuelana na compra de produtos de Cuba. Finalmente, pelo acordo de cooperação, Cuba concederá 2 mil bolsas de estudo por ano para que estudantes venezuelanos realizem o curso superior na ilha, enquanto os 15 mil médicos cubanos que hoje já atendem os programas sociais em território venezuelano estarão à disposição da Universidade Bolivariana da Venezuela para atuar como professores visando ampliar substancialmente o número de médicos integrais venezuelanos. Enquanto várias armadilhas são lançadas para dificultar os processos de consolidação seja do Mercosul, ou da Comunidade Sul-Americana das Nações, Cuba e Venezuela demonstram, sem retóricas, que uma nova integração é possível, desde que não submetida aos crivos coloniais do sistema financeiro internacional nem das transnacionais que controlam desde a matriz as economias periféricas, manipulando seus projetos, inventando crises, limitando e transfigurando drasticamente a “cooperação” em benefício de um comércio dominado por empresas estrangeiras, que transfere todos os lucros para as metrópoles, enquanto os povos seguem rapinados, empobrecidos e vilipendiados.
FALA ZÉ
OHI
Espírito de Natal Leonardo Boff Um jovem de uns 20 a 22 anos de nome José (velho apenas para os apócrifos, escritos 300 anos após os evangelhos), vivendo em Nazaré, norte da Palestina, teve que deslocar-se para o sul, para Belém, a fim alistar-se num recenseamento. Levava sua mulher Maria, já grávida de nove meses. Chegando ao local, Maria entrou em trabalho de parto. José procurou as pousadas da região e explicou a urgência. Mas todos diziam: “Não tem mais vaga”. Ele não teve outra alternativa senão procurar algum canto que fosse minimamente seguro. Encontrou uma gruta onde os animais se protegiam contra o frio daquela época do ano. Ai, numa gruta, Maria deu à luz a um menino, chamado inicialmente Emanuel e depois Jesus. E eis que aconteceu algo surpreendente, realmente mágico, fator que sempre confere encanto à hitória. Esta não se rege pelos cânones frios da racionalidade mas pelo imprevisto e o imponderável. Por isso ela tem sabor. Eis que irrompeu um clarão imenso, como uma estrela que pairou sobre aquela gruta. A vaquinha que mugia baixinho e o asno que ressoava ficaram imóveis. Lá fora as folhas, que farfalhavam ao vento, pararam. As águas do riacho que corriam, estancaram. As ovelhas que bebiam, ficaram inertes. O pastor que ergueu o cajado no ar ficou petrificado. Um profundo silêncio e uma paz sereníssima tomou conta de toda a natureza. Foi nesse exato momento que veio a este mundo a Criança divina. Imediatamente após, ouviramse vozes do céu, captadas pelos que estavam atentos: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra a todas as pessoas de boa-vontade”. O impacto desse evento foi tão
grande que nunca mais pôde ser esquecido. Dois mil anos após é ainda lembrado e celebrado, de alguma forma, em todo o mundo. É a magia do Natal. Foi secularizado pelo Papai Noel e entrou no mercado com os presentes de Santa Klaus. Mas ninguém conseguiu ainda destruir o espírito do Natal. É uma aura benfazeja que precisa ser preservada pois nos faz mais humanos. Qual será? Primeiro, que Deus é principalmente Criança e não antes de tudo Criador e Juiz severo. Uma criança não ameaça ninguém. É só vida, inocência e ternura. Mais que ajudar a outros, ela precisa ser ajudada e acolhida. Se imaginarmos Deus assim, não precisamos temer. Enchemo-nos de confiança. Segundo, o ser humano por ruim que seja, deve esconder um valor muito grande a ponto de Deus querer ser um dele. Bem me disse, um dia, um esquizóide: “Cada vez que nasce uma criança, é prova de que Deus ainda acredita na humanidade”. Deus acreditou tanto que quis nascer criança frágil, com os bracinhos enfaixados para não ameaçar ninguém. Por fim, a Criança divina nos lembra o que somos na profundidade de nosso ser: uma eterna criança. Crescemos e envelhecemos. Mas guardamos lá dentro a criança que nunca deixamos de ser. A criança representa a crença de que é possível um mundo diferente, de inocência, de olhar sem malícia e de pura alegria de viver.Viveríamos sem esse sonho? Divino Infante, realiza em nós este destino! Não deixe que em nós morra a esperança! Não esqueça que foste como nós, menino! Nasça de novo em nós como Criança.
Leonardo Boff é teólogo
CRÔNICA
De volta ao país das capivaras Luiz Ricardo Leitão
M
ais parecia um conto do “realismo maravilhoso” latino-americano. A irreverente capivara – esse simpático mamífero que habita os mangues e banhados de Pindorama – corria solta pelas pedras do Arpoador, uma das mais famosas praias do Rio de Janeiro, e depois mergulhava sinuosamente nas águas frias do mar de Ipanema, sem nem ao menos se importar com a legião de surfistas que fez daquele trecho um dos recantos preferidos das “tribos”cariocas. Como diria a canção, “a novidade veio dar na praia”, na qualidade rara de um robusto roedor da fauna brasileira. A nova garota de Ipanema escolhera, sem dúvida, o cenário clássico para as musas do nosso verão. Basta lembrar, por exemplo, que esse era o território sagrado de Leila Diniz, a inesquecível madrinha de tantos carnavais, que, em pleno regime militar, gostava de desfilar sua gravidez pelas areias da praia, afrontando com rara sensualidade e despudor o moralismo barato dos ditadores de plantão. Pois o verão ainda nem se instalou e a nova candidata a musa já apareceu em grande estilo, driblando por mais de três horas os bombeiros do Corpo Marítimo, que tentaram, inutilmente, capturá-la. Ninguém entendeu nada, mas todos adoraram as cenas, como se as-
sistissem a uma “sessão da tarde” ou recordassem algum serão no Sítio do Pica-pau Amarelo. Pena que o mundo nem sempre seja tão cor-de-rosa quanto os roteiros da sétima arte, ou tão encantado como as histórias de Monteiro Lobato. Afinal de contas, por que será que o dócil animal, que há dois anos se refugiava na Lagoa Rodrigo de Freitas (um dos cartõespostais do Rio), decidiu deixar a sua “toca”, cruzar o canal do Jardim de Alah e nadar vários quilômetros em busca de outro sítio mais prazeroso? Suspeito que a pródiga natureza carioca, que, não obstante tantas agressões sofridas por obra de nossa caótica e predatória urbanização, insiste em sobreviver, esteja mais uma vez advertindo-nos sobre os riscos que esse precário equilíbrio ecológico reserva ao bicho-homem. O mais irônico, porém, é que depois de capturada e tratada, a capivara não retornou à sofisticada zona sul carioca. Os especialistas levaram-na para os mangues da Baixada Fluminense, numa área próxima à Refinaria de Duque de Caxias, um município, por certo, bem menos valorizado pelos grileiros da especulação imobiliária. A classe média da Lagoa, saudosa do sonho tropical, já fez até um abaixo-assinado, reivindicando às ditas autoridades o regresso da fujona criatura ao seu “lar”. Julgam, talvez,
que a “paisagem” perdeu um pouco da sua poesia e exigem, ansiosos, o quinhão de exotismo com que nossas entediadas elites amenizam a sua frustração por não terem nascido nas Oropas ou nos States... Como resiste a terra brasilis! Embora castigado pelos sucessivos aterros promovidos pelos clubes e áreas de lazer da burguesia local, ou pelas mirabolantes invenções da era neoliberal (como a superárvore de Natal e certas obras artísticas de gosto bem duvidoso que as empresas e “fundações” globalizadas patrocinam), o espelho d’água da Lagoa ainda possui sua beleza. Depois de tantas privatizações do espaço público, porém, não sobrou muito espaço para os moradores de rua – e até as capivaras estão saindo de mansinho, já que em lagoa de ratazanas ricas, os mamíferos honestos não têm vez... Nossa musa, pois, está de volta ao país das capivaras, lá nos mangues da Baixada, cumprindo a sina dos excluídos tropicais. Não há de ser nada, criatura: se guardando pra quando o carnaval chegar... Luiz Ricardo Leitão é editor e escritor. Doutor em Literatura Latino-Americana pela Universidade de La Habana, é também professor adjunto da Universidade Estadual do Rio Janeiro
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De 23 a 29 de dezembro de 2004
NACIONAL VIOLÊNCIA NO CAMPO
Continuam as chacinas de sem-terra Rodrigo Valente de Recife (PE)
ameaçados pelo proprietário. Quanto a Lima e Rocha, denunciaram pistoleiros que atiraram contra os sem-terra durante a última tentativa de ocupação da Fazenda Recreio, no final de novembro. Em pouco tempo, quatro daqueles seguranças acabaram presos, mas foram soltos em seguida. Os irmãos deixaram o acampamento com medo de represálias, mas acabaram mortos na casa da família. Em Passira, os acampados dos MST vinham sendo sistematicamente ameaçados pelos pistoleiros e dois de seus dirigentes foram baleados em 2003.
N
a madrugada do dia 15, Josuel Fernandes da Silva, 33, foi levado de sua casa por homens encapuzados, no município de São José da Coroa Grande (litoral sul de Pernambuco), e assassinado com dois tiros. Fingindo-se de morto, conseguiu escapar dos pistoleiros e pedir socorro. Foi levado para o Hospital da Restauração, no Recife, mas acabou falecendo. Na madrugada do dia seguinte, os irmãos Francisco Manoel de Lima, 36, e Edilson da Rocha, 28, foram assassinados em casa, enquanto dormiam, na frente da mãe e da irmã, no município de Passira (agreste do Estado). Além de militantes do MST, os três trabalhadores tinham outra coisa em comum: ousaram denunciar a violência do latifúndio tanto em São José da Coroa Grande quanto em Passira. Os dois municípios, aliás, vinham sendo apontados pelo MST e por entidades defensoras dos direitos humanos como de iminente conflito no campo.
Rozana Maria
Três militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra são mortos em menos de 24 horas, em Pernambuco
PROTESTOS O MST de Pernambuco recebeu a notícia das mortes em pleno encontro estadual. Os 800 delegados que estavam na reunião, em Caruaru, decidiram realizar atos de protesto contra a violência e a impunidade no campo durante os enterros. Dia 17, cerca de 800 militantes do MST foram a São José da Coroa Grande, para o enterro de Silva. Caminhando em passeata pelas ruas da cidade, se dirigiram ao cemitério, onde o ato político atraiu parte da população da pequena cidade. No dia seguinte, outra manifestação mostraria a revolta com os três assassinatos. Em Passira, da casa onde os irmãos foram assassinados e onde seus corpos estavam sendo velados, cerca de 600 pessoas seguiram em marcha até a casa grande da Fazenda Recreio, que foi destruída e queimada. “Destruímos
DENÚNCIAS Silva, junto com seu pai, seu Fernandes, era uma das principais lideranças do acampamento Manguinhos, que lutava pela desapropriação do engenho falido de mesmo nome. Pouco tempo antes de ser assassinado, durante negociação com o Incra para desapropriação do engenho, avisou que ele e seu pai vinham sendo
Protesto contra a violência no campo, durante funeral dos três trabalhadores rurais assassinados, em Pernambuco
categórico: “Não há como comparar este ato com a violência dos assassinatos. Uma ação é covarde, fria, pensada. Outra, motivada pela emoção. Temos sempre que lembrar que, neste conflito, há mortes apenas de um lado”, declarou. Após o enterro, foi realizada uma reunião entre os diversos órgãos governamentais e entidades sociais presentes. Decidiu-se que o caso será acompanhado pela Polícia Federal, que o governo estadual vai indicar um delegado especial para o caso e que as famílias das vítimas terão proteção especial. Na reunião, o MST cobrou do Incra e do governo
a casa grande porque é o símbolo da violência do latifúndio que escraviza os trabalhadores brasileiros há 500 anos”, discursou Jaime Amorim, da coordenação estadual do MST em Pernambuco.
COVARDIA No enterro de Lima e Rocha, o clima era de comoção, e a ele compareceram representantes do governo, parlamentares e diversas entidades e movimentos sociais. O secretário Nacional dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, assediado pela imprensa sobre a destruição da casa grande, respondeu,
federal agilidade nos processos de reforma agrária para que violências como estas sejam evitadas. Outras reuniões foram marcadas entre as entidades para que os três assassinatos não engrossem a lista de impunidades com a violência no campo, em Pernambuco. Segundo o relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), as mortes em conflitos agrários, que até novembro era de 29, agora chegam a 32. É um número menor que dos dois anos anteriores, mas que continua mostrando a violência do latifúndio com os trabalhadores que ousam se organizar para lutar por terra e dignidade.
COMEMORAÇÃO
Festa dos assentados na Fazenda Sete Mil Muita alegria, música, e comida marcaram a festa da vitória, em comemoração da conquista do assentamento 8 de Abril, na Fazenda Corumbataí, mais conhecida como Sete Mil, em Jardim Alegre, Estado do Paraná. A festa, organizada pelas 800 famílias acampadas, foi realizada no dia 18, e contou com a presença de aproximadamente três mil pessoas. Os sem-terra estavam comemorando a compra da área pelo governo federal para a realização do assentamento. O coordenador estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Roberto Baggio,
do MST não haveria conquista”, enfatizou o governador do Paraná, Roberto Requião. Ele prometeu toda a infra-estrutura e assistência técnica necessárias às famílias assentadas. “O governo do Paraná continua dando todo apoio ao MST”, salientou. Entre as autoridades presentes, o Ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto; o governador do Paraná, Roberto Requião; o vice-governador do Estado, Orlando Pessutti; o presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Rolf Hackbart; o superintendente do Incra do Paraná, Celso Lacerda de Lisboa. Segundo o ministro Miguel Rossetto, a reforma agrária é como a cidadania, dá espaço para um povo. “Assim estamos construindo e semeando uma nova nação”, disse. Mesmo com a conquista do assentamento, Baggio afirmou que ainda são necessárias muitas mudanças no Brasil. “Queremos que o Estado brasileiro esteja a serviço das mudanças e dos pobres deste país”, declarou.
Bia Cordeiro
Solange Engelmann e Bia Carneiro de Curitiba (PR)
As famílias ficaram durante sete anos em vigília para conseguir direito à terra
comparou a conquista do assentamento à luta dos escravos pela libertação. Disse, ainda, que essa é uma vitória da organização do povo. “As famílias ficaram durante
sete anos em vigília para conseguir essa conquista”, afirmou Baggio. “O que festejamos aqui é o resultado de uma luta longa. Se não fosse a cultura de resistência
ATINGIDOS POR BARRAGENS
Jornada em defesa das famílias O Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) inicia, dia 22, uma jornada de luta em toda a região sul para pressionar empresas e autoridades a indenizar as famílias que foram diretamente afetadas pelas construções de barragens, e para que as empresas cumpram seu papel social, conforme determinado em acordos. Tendo as ocupações, o bloqueio de estradas e as marchas como principais atividades, a jornada de luta vai se concentrar em vários pontos da região. Os bloqueios de estradas estão previstos para Erechim (Rio Grande do Sul), onde está a barragem de Ita; em Baracão (RS), onde se localizam as barragens de Machadinho e São Bernardo, entre outros. Também poderá haver ocupação em Anita Garibaldi (Santa
Catarina), em função da barragem da Barra Grande. Estima-se que, em toda a região Sul, mais de 300 mil famílias enfrentam diversos problemas em conseqüência da atuação das empresas. A maioria das famílias foi deslocada para locais sem infraestrutura, ficaram isoladas e não dispõem de serviços básicos como escolas, unidades médicas, centros comunitários, entre outros equipamentos sociais. De acordo com o MAB, nos acordos com as populações atingidas, há uma cláusula segundo a qual as empresas assumem a responsabilidade social da área em que for construída a barragem. Mas, na prática, isso é pouco respeitado. A indenização é outro problema. Só em Barra Grande (RS), num processo que se arrasta, das 1.600 famílias deslocadas, 280 ainda não foram indenizadas. Em todo o Bra-
sil, a construção de barragens atingiu cerca de 1 milhão de famílias. “A jornada de luta é para cobrar todas essas obrigações que as empresas têm com as famílias e com as regiões de onde elas foram tiradas”, afirmou Anelise Fortuna,da coordenação do MAB e assessora de imprensa. Segundo o MAB, grandes empresas nacionais e transnacionais construíram várias barragens no Rio Uruguai, expulsando 15 mil famílias de suas terras; e de cada dez famílias atingidas, só três recebem algum tipo de indenização.
A SETE MIL A Fazenda Sete Mil, um latifúndio improdutivo com 14.300 Bia Cordeiro
Rogéria Araújo de Fortaleza (CE)
hectares, foi ocupada no dia 8 de abril de 1997 por 800 famílias sem terra, após o Incra declarar o imóvel improdutivo. Durante todo esse tempo, as famílias foram atacadas e perseguidas por milícias de pistoleiros e fazendeiros, que declararam guerra aos sem-terra. Hoje, a área é um pólo de desenvolvimento econômico e influencia a economia da região, com uma estrutura produtiva construída pelo esforço das famílias e pelo reinvestimento dos ganhos com a produção. Na safra 2002/03, foram colhidos e comercializados 510 mil sacas de 60 quilos de milho, 250 mil sacas de 60kg de feijão, e 80 mil arrobas de algodão. As famílias têm 160 tratores equipados, 29 caminhões, e nove colheitadeiras, além de animais e equipamentos de tração animal. Toda esta infra-estrutura produtiva não recebeu nenhum centavo de real de investimento de recursos públicos até o momento. A maioria das famílias está vivendo em casas com energia elétrica e água encanada. Naturalmente, os sem-terra não descuidaram da educação: são 358 estudantes no ensino fundamental, 180 no ensino médio, e onze turmas de Educação de Jovens e Adultos com 29 educadores.
BARRA GRANDE Anelise Fortuna diz que todas as manifestações têm gerado resultados positivos para as famílias atingidas. Com essas atividades, conta, é possível abrir o diálogo com os governos ou autoridades responsáveis. (Adital, www.adital.org.br)
Autoridades e trabalhadores rurais comemoram a conquista do assentamento
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da mídia
NACIONAL RAPOSA SERRA DO SOL
Terra pode ser homologada
Dioclécio Luz Inversão midiática Três trabalhadores rurais semterra foram brutalmente assassinados em Pernambuco na semana passada, mas a grande mídia brasileira deu mais destaque para a reação dos trabalhadores, que destruíram a sede abandonada da fazenda onde ocorreram os crimes. Obviamente para criminalizar e condenar a ação dos trabalhadores, como sempre. Fórum da comunicação Durante o Fórum Social Mundial 2005 acontece também o primeiro Fórum Mundial da Informação e da Comunicação. Dia 25 de janeiro, em Porto Alegre, jornalistas, ativistas e pesquisadores debaterão a atividade de diversos meios de comunicação no mundo. Participam do evento o jornalista Ignácio Ramonet, presidente do Media Watch Global; Jeremy Hobbs, da Oxfam, e o estadunidense Steve Rendall, da organização Fair, entre outros. Ziller fora De acordo com a revista Isto é, (14 de dezembro), os ministros José Dirceu, da Casa Civil, e Eunício Oliveira, das Comunicações, acabam de acertar entre si que Pedro Jaime Ziller deve sair do comando da Anatel tão logo termine seu mandato, a 7 de janeiro. Os dois avaliam que a gestão de Ziller estaria sendo desastrosa. Ele não lidera os demais conselheiros e deixou que os superintendentes tucanos tomassem conta da agência, apontam. Se Pedro Ziller cair, as rádios comunitárias fazem festa. Os tucanos na Anatel Já se sabe que a Polícia Federal está infestada de tucanos. Agora se esclarece que também na Anatel é assim. E deve ser assim em outras instituições. Ao que consta, porém, o PSDB não é base aliada do governo. Então, como é que eles continuam mandando em tantos setores estratégicos? Agronegócio em campanha 1 Os benefícios do agronegócio para o Brasil foi capa das revistas Veja, Isto é, Época; reportagem das TVs Globo, Bandeirantes e SBT; reportagem especial dos grandes jornais. Trata-se de uma campanha do latifúndio da terra em parceria com o latifúndio do ar. O objetivo é construir uma imagem positiva dos fazendeiros, para acabar de vez com essa história de reforma agrária. Pra que fazer reforma agrária se o setor garante emprego e renda no campo? Agronegócio em campanha 2 Quem também entrou na campanha do agronegócio foi Larry Rohter – aquele sujeito, que passa por jornalista e escreveu no The York Times que Lula é alcoólatra. Em reportagem publicada dia 12 em seu jornaleco, Rohter enaltece as glórias do agronegócio no Brasil e o potencial do Centro-Oeste como celeiro do mundo. Eis um jornalista coerente com o seu salário. Mais informação em publicidade A Comissão de Defesa do Consumidor aprovou substitutivo ao Projeto de Lei 5344/01, do deputado Cabo Júlio (PST-MG), que considera enganosa, por omissão, a propaganda veiculada pela televisão que deixar de informar um dado essencial sobre o produto ou serviço. Pelo projeto, também será considerado enganoso o texto que não apresentar o valor das prestações, a taxa de juros e demais encargos financeiros nas compras a prazo, bem como o que inserir exceções ou esclarecimentos adicionais em letras de tamanho inferior a 25% das dimensões da maior letra utilizada na peça publicitária. (Agência Câmara)
Agora só resta o presidente Lula assinar a oficialização da terra em área contínua da Redação
A
s liminares que determinavam a homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol (RR) em área não contínua foram suspensas, dia 15, pelo juiz Carlos Ayres Brito, do Supremo Tribunal Federal. Embora ainda dependa de uma votação pelo conjunto de ministros, a decisão já torna possível a oficialização do processo – que caberá, então, ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Embora muito esperada, a decisão também pode intensificar o clima de tensão nas áreas que compreendem a Raposa Serra do Sol, por conta da reação dos rizicultores instalados nas terras indígenas Independentemente dessa decisão, a comunidade promoveu um mutirão para reconstruir as aldeias destruídas durante os vários conflitos envolvendo indígenas a favor da homologação, indígenas contrários e produtores de arroz. Organizado pelas dioceses locais, o mutirão já vinha sendo alvo de ameaças. Segundo denúncias encaminhadas ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), os fazendeiros estavam ameaçando de rapto os religiosos que estivessem envolvidos. Desde o final do ano passado, quando o ministro Thomaz Bastos anunciou a homologação em área contínua da Raposa Serra do Sol, começaram os conflitos. Uma comissão especial, formada para analisar o assunto, chegou a sugerir que a homologação fosse feita em área não contínua. Mas não obteve sucesso. A área que compreende a terra indígena abriga fazendas, estradas e até pequenas cidades, o que gera tantos conflitos na área.
Fotos André Vasconcelos
Espelho
Cartaz da campanha em defesa da homologação das terras indígenas de Roraima: só falta o presidente assinar
educação escolar indígena, a Comissão Nacional de Educação Indígena. A Comissão tem caráter consultivo e é formada por 15 integrantes: dez professores indígenas, quatro lideranças do movimento indígena e o representante indígena no Conselho Nacional de Educação. Essa comissão amplia a Comissão Nacional de Professores Indígenas, criada em 2001, ao permitir a participação de representantes do movimento indígena. Edilene Bezerra,
professora do povo Truká e integrante do grupo, diz que, “no Nordeste, ainda não há respeito às diferenças. É lamentável a situação política e pedagógica das escolas. Há professores, merendeiras e motoristas sem salário há sete meses”. Segundo Edilene, em Pernambuco existem 180 escolas indígenas que atendem 8 mil alunos de dez povos. “Todas precisam de reformas e ampliação. A escola do povo Truká tem quatro turmas, 90 alunos e só uma sala”, diz.
MANDE MENSAGENS PARA O GOVERNO O Cimi convoca os apoiadores da causa da Raposa Serra do Sol a enviar manifestações ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e ao ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, solicitando a urgente homologação da terra indígena. Envie sua mensagem para os endereços abaixo: Presidência da República Sr. Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República Federativa do Brasil Gabinete do presidente, Palácio do Planalto, Praça dos Três Poderes, Brasília – DF, 70150-900 Brasil fax: (61) 411-2222/411-2243 correio eletrônico: gcarvalho@planalto.gov.br (Gilberto Carvalho, secretário particular); protocolo@planalto.gov.br Ministério da Justiça Sr. Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Brasília – DF, 70064-900 Brasil fax: (61) 322-6817 correio eletrônico: gabinetemj@mj.gov.br
COMISSÃO PARA EDUCAÇÃO No mesmo dia 15, foi criada, com o objetivo de assessorar o Ministério da Educação (MEC) na definição de políticas e ações para a
Aguinaldo Pataxó Hã-Hã-Hãe também vê deficiências pedagógicas: “Não há formação continuada para os professores, não há reprodução do material específico que as escolas e as comunidades produzem”. Segundo Armênio Schimdt, do MEC, há 4 mil professores indígenas aptos a ingressar no ensino superior. A formação superior de professores indígenas é necessária para a ampliação do ensino médio nas aldeias. Aguinaldo Pataxó afirma que a inclusão de indígenas no programa de bolsas em universidades particulares para estudantes carentes, realizada pelo governo federal, no Programa Universidade para Todos (ProUni), é uma solução emergencial. “Precisamos da formação específica para indígenas, para que sejam contemplados os interesses das comunidades indígenas. Quando se forma um engenheiro, ele não vai trabalhar na aldeia. Precisamos de agrônomos, de geógrafos, de enfermeiros com formação voltada para as necessidades das comunidades”, diz ele. (Com Adital, www.adital.com.br e informações do Cimi)
DIREITOS HUMANOS
Projetos descontentam interessados Maurício Hashizume de Brasília (DF) No apagar das luzes dos trabalhos cotidianos do Congresso Nacional, duas matérias aprovadas em suas respectivas comissões, dia 15, fazem soar o sinal de alerta na área de direitos humanos. O plenário da Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) do Senado ratificou parecer favorável de Leomar Quintanilha (PMDB-TO) à proposta de emenda constitucional (PEC) 38/1999, de autoria de Mozarildo Cavalcanti (PPS-RR), que estabelece que a área somada de terras indígenas e unidades de conservação ambiental não poderá ultrapassar o limite de 50% da superfície de cada unidade da Federação. De quebra, a proposta ainda inclui a obrigatoriedade de avaliação do Senado das demarcações de terras indígenas definidas pelo Poder Executivo, prevista em várias proposições legislativas. No parecer, Quintanilha afirma que o impacto causado pelo surgimento das preocupações com o meio ambiente e pelo novo enfoque dedicado aos índios na Constituição de 1988 levou, inicialmente, a um “compreensível superdimensionamento”. Os “excessos cometidos no passado recente”, completa o senador, podem ser revistos pela PEC de Cavalcanti, que “possibilitará a destinação de área das unidades da Federação suficientemente ampla para a garantia da preservação do meio ambiente e das populações indígenas, sem comprometer a previsibilidade das políticas impres-
cindíveis para o desenvolvimento dos Estados brasileiros”.
POLICIAIS EM JULGAMENTO A Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, por sua vez, aprovou o Projeto de Lei 2014/2003, que designa a competência da Justiça militar – e tira da Justiça comum – o julgamento de crimes de homicídio e lesão corporal cometidos por policiais militares contra civis, no exercício da função de policiamento definidos em lei. “A lei que define os crimes militares, como sabemos, é o Código Penal Militar”, argumenta o relator Antonio Carlos Pannunzio (PSDB-SP) no seu parecer. “A caracterização de tais crimes como crimes militares é possível por conta do exercício da função militar no momento da consumação dos crimes. Assim, estando no exercício de função tipicamente militar, o responsável pela ocorrência de tais crimes responderá por crime militar perante a Justiça Militar, no estrito desenho da Constituição Federal (art. 124)”, complementa. Os deputados Zico Bronzeado (PT-AC), Ricardo Zarattini (PT-SP) e a deputada Maninha (PT-DF) chegaram a votar pela rejeição do PL 2014/2003, de autoria do senador Arlindo Porto (PTB-MG), mas não conseguiram evitar a sua aprovação. A matéria já passou pelo Senado. O deputado Orlando Fantazzini (PT-SP) protestou contra a proposta e solicitou a apreciação da mesma pela Comissão de Direitos Humanos da Casa. “É um retrocesso.
Seguidos relatórios da Organização das Nações Unidas (ONU) confirmam a participação recorrente de policiais militares no extermínio da parcela dos jovens pobres e negros no Brasil. Isso só contribuirá para que continuemos no posto de campeões da violência”, adicionou a deputada Iriny Lopes (PT-ES).
DEMARCAÇÕES ANULADAS Um outro projeto de lei que vem provocando alvoroço, principalmente entre organizações ligadas aos povos indígenas, é o PL 188/ 2004, resultado das discussões de uma comissão especial sobre conflitos indígenas, capitaneada pelo senador Delcídio Amaral (PT-MS), que fora instalada e concluiu os seus trabalhos este ano no Senado. A matéria entrou na pauta do Plenário da Casa e, a despeito do anúncio feito por Amaral de que seria retirada, continua oficialmente pronta para votação. O projeto anula todos os procedimentos de demarcação de terras indígenas em curso na data de sua publicação e, assim como a PEC de Cavalcanti, determina que a demarcação das terras indígenas seja submetida à aprovação do Senado Federal e ainda prevê a convocação do Conselho de Defesa Nacional caso a terra indígena esteja localizada em faixa de fronteira. Dia 14, povos indígenas do Mato Grosso do Sul se reuniram em manifestação contra a proposta em questão em frente ao escritório do senador petista Delcídio Amaral, em Campo Grande. O grupo divulgou uma carta aberta ao senador que expressa o
sentimento de indignação perante ao projeto: “Representa para nós uma punhalada pelas costas, pois em nada respeitou aquilo que o senhor nos prometeu nos debates e encontros que tivemos aqui em Campo Grande no mês de junho. Primeiro, o senhor veio até nossas aldeias falando de seu plano em defender nossos direitos, e nós acreditamos. Votamos no senhor e no presidente Lula. Depois o senhor foi relator de uma Comissão que queria claramente impedir e cassar nosso direito a nossas terras tradicionais. Nós protestamos e repudiamos o conteúdo desse relatório. O senhor nos ouviu, debateu e até chorou. Prometeu que iria rever o conteúdo do relatório e levar em conta nossas sugestões. Novamente acreditamos em sua palavra”. “Passaram-se cinco meses de silêncio e agora aparece um projeto de lei que é pior do que o relatório que nos foi apresentado. Isso nós consideramos uma traição”, complementa o documento. “Mas não queremos apenas apresentar nossa indignação e repúdio ao projeto de lei 188 que o senhor e demais senadores integrantes da comissão elaboraram. Queremos pedir que, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que o Brasil ratificou nesse ano, que seja retirado imediatamente de pauta esse projeto e que volte a ser discutido por nós povos indígenas em todo o país. Nenhum projeto que nos diz respeito pode ser aprovado sem a nossa participação”. (Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br)
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De 23 a 29 de dezembro de 2004
NACIONAL FEBEM
Reabilitação pela pedagogia do medo Ativista e ex-funcionária da instituição diz que torturas são sistemáticas e visam “domesticar o corpo” dos internos
Brasil de Fato – Como foi sua experiência dentro da Febem? Gladys Peccequillo – Em 1995, fiz um concurso público para assistente técnica, pois já tinha muita experiência nessa área. Primeiro fui para o SOS criança e, em 1999, houve uma rebelião na Febem da Imigrantes. Às pressas foram abertas algumas unidades na Raposo Tavares. Foi aí que eu tomei contato com a internação. Em tese, eu deveria supervisionar as unidades existentes e as que estavam sendo criadas. Mas como houve uma emergência, me pediram para ajudar o diretor de uma das unidades a receber os meninos. Levei um certo tempo para descobrir o que acontecia lá, porque as coisas acontecem, mas não são ditas. De vez em quando os meninos vinham me contar que apanhavam à noite. Eu não entendia, porque eu contava para o diretor e ele ouvia com toda a atenção mas não fazia nada.
Os meninos contaram que foram acordados durante a noite e apanharam muito BF – Como é a prática dos maustratos e da tortura na Febem? Gladys – A tortura é diferente da que acontece nas delegacias porque não tem o objetivo de extrair confissão. É uma tortura sistemática e o objetivo é domesticar o corpo, disciplinar. É mais um castigo. Essa disciplina foi criada para domar, humilhar e quebrar a resistência do menino. Vi várias coisas antes do grande espancamento que denunciei. Uma noite eu estava indo embora para casa e vi uns monitores enfiando paus e barras dentro das jaquetas antes de entrar no pátio. Em outra ocasião, os meninos disseram que os monitores guardavam na gaveta uma corrente usada para ameaçá-los. Outra vez, os meninos fugiram e foram trazidos de volta com as costas todas machucadas. BF – Como foi esse espancamento que a senhora denunciou? Gladys – Foi dia 14 de novembro de 2000. Houve fuga de alguns
BF – Como está o andamento do processo? Gladys – Muito devagar. A denúncia foi feita em 2001, mas hoje, três anos depois, o processo ainda está em fase de instrução, que é a primeira fase, quando se ouve as testemunhas de defesa. Mesmo depois da criação do ECA
, a situação dos internos não melhorou
Quem é Formada em Direito, Gladys Peccequillo lecionou em escolas públicas e privadas, e trabalhou com crianças e adolescentes em situação de rua. Atua no comitê deliberativo do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo (GTNM-SP) e foi assistente técnica da Fundação do Bem Estar do Menor do Estado de São Paulo (Febem) de 1997 a 2001. internos da Unidade 27. Estava um clima muito pesado, a administração agitada, e eu percebi que o diretor não queria minha presença ali. O pessoal da presidência chegou, e vi que alguma coisa estava se preparando. Começaram a chegar carros com homens desconhecidos; depois vim a saber que eram monitores de Franco da Rocha chamados para fazer uma revista decidida a portas fechadas – para recolher objetos que poderiam estar sendo armazenados pelos jovens para facilitar sua fuga. Apesar de, em tese, eu ser da cúpula, me colocaram para fora e não participei da resolução. Quando fui embora, os meninos estavam em seus quartos fechados, e aqueles homens desconhecidos do lado de fora. Quando voltei dois dias depois, porque dia 15 foi feriado, os meninos estavam trancados. Questionei, e me disseram que a tranca era por mau comportamento. Essa tranca durou cerca de duas semanas. Aos poucos as informações foram chegando, e me disseram que os meninos tinham sido brutalmente espancados. Denunciei o caso para os promotores e o Ministério Público (MP) apareceu numa visita surpresa. BF – O que eles descobriram? Gladys – Encontraram os adolescentes em péssimas condições de saúde e higiene, com marcas de espancamento. Os meninos contaram que foram acordados durante a noite e apanharam muito. Como eles estavam trancados, sem comunicação entre si, as refeições eram feitas
dentro dos dormitórios, e não podiam ir ao banheiro. Eles usavam como vaso sanitário garrafas vazias de refrigerante ou baldes, deixados dentro do quartro, um cheiro horrível. Depois de um ano de investigações, os promotores apresentaram à Justiça criminal o resultado da investigação sobre o caso, e em 2001 o juiz aceitou a denúncia contra vinte funcionários da Febem-SP por crime de tortura. BF – A cúpula tomou alguma atitude? Gladys – Eles são comprometidos com o corporativismo, atuam na defesa dos próprios funcionários. Os 20 funcionários indiciados por crime de tortura foram mantidos
BF – Como romper com esse modelo? Gladys – Só com a extinção da Febem, porque esse modelo é falido. A instituição foi criada em 1976 num determinado momento histórico, durante a ditadura militar, atendendo certos princípios da época. E já tinha os mesmos problemas de hoje: instituição fechada, tratamento militarizado, similar ao do sistema prisional. Alguns estudiosos afirmam que a Febem foi uma instituição planejada nos moldes da ditadura para criminalizar populações pobres. Há uma concepção ideológica que define um padrão de qualidade voltado para as populações pobres, incluindo a institucionalização da tortura.
Os 20 funcionários indiciados por crime de tortura foram mantidos nos mesmos cargos BF – Depois da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a Febem mudou? Gladys – Não, nada. Ao contrário, vai na contramão do estatuto. A Febem segue a lógica do
sistema prisional. A internação é uma medida socio-educativa cujo princípio é a excepcionalidade. Só pode ser aplicada quando nenhuma das outras medidas se mostra satisfatória. Na prática, isso não acontece. Na porta de entrada, quando podemos selecionar quem realmente precisa de internação, não se faz isso. Não tem cabimento a Febem ter 7 mil meninos no Estado de São Paulo. Assim que o adolescente for preso, deve ser recebido por um advogado que dê alternativas para que ele não fique internado. É na entrada que se deve fazer a proteção desse adolescente.
Afirmam que a Febem foi uma instituição planejada nos moldes da ditadura para criminalizar populações pobres BF – Como determinar o tempo ideal de internação? Gladys – De acordo com o estatuto, a internação deve ser breve, não pode se estender além do necessário. Tem gente que defende a determinação do prazo de internação na hora da sentença. Mas não é assim, porque o estatuto fala em brevidade. Não pode ser pré-determinado. É preciso observar a resposta desse menino, o que requer um trabalho muito mais especializado da equipe. Trabalho mais sutil, sofisticado. A Febem tem um tipo de acompanhamento burocrático, e o ECA propõe atendimento individualizado. Isso acontece porque essa é a forma de tratar a pobreza neste país. BF – A senhora acha que a Febem é um depósito de crianças pobres? Gladys – Eu não tenho dúvida. Quando eles são presos vão para a Unidade de Atendimento Inicial (UAI), onde já são recebidos da forma errada. Se for condenado, já está lá há um tempão, e aí vai para uma unidade com mais cem meninos, quando o ECA prevê pequenas unidades. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) fez uma recomendação para as unidades serem feitas para 40 adolescentes. Além disso, nós do Tortura Nunca Mais e outras entidades queremos a municipalização do atendimento dos jovens – inclusive prevista em lei. Também queremos a descentralização político administrativa, ou seja, ao municipalizar o atendimento, o município terá poder de decidir como vai tomar conta das suas crianças.
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a Fundação do Bem Estar do Menor (Febem), a tortura é sistemática e tem como objetivo “domesticar o corpo, disciplinar”. A afirmação é da ex-funcionária da instituição, Gladys Peccequillo, demitida após denunciar um espancamento numa das unidades da fundação, em 2000. O caso virou o primeiro processo criminal por tortura na Febem. Até hoje, os 20 funcionários indiciados por crime de tortura foram mantidos nos mesmos cargos, exercendo as mesmas funções. Gladys defende a extinção da fundação, que segundo ela tem um modelo “falido”, importado do sistema prisional. Mesmo depois da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a situação não melhorou para os internos. “A Febem vai na contramão do estatuto”. A internação é uma medida socioeducativa que tem como princípio a excepcionalidade, e só pode ser aplicada quando nenhuma das outras medidas se mostra satisfatória, explica a ativista. No entanto, na prática, não se faz isso, porque não se seleciona quem precisa de internação na porta de entrada. “Não tem cabimento a Febem ter 7 mil meninos no Estado de São Paulo”.
nos mesmos cargos, exercendo as mesmas funções. Desses 20, treze ocupam cargos de confiança – cinco deles são diretores e oito, coordenadores de turno. Em 2001, houve outra denúncia de espancamento na mesma unidade 27 da Raposo Tavares e, após a visita, o MP constatou que a violência empregada contra os meninos tinha sido igual ou maior do que a de 2000 – prova de que esses funcionários têm certeza da impunidade e do apoio. Mais ou menos 15 dias depois, fui demitida sem nenhuma justificativa. A minha demissão foi por não ter aceitado o “pacto de silêncio” que impera na instituição. Foi um “cala a boca” para os outros funcionários, uma espécie de aviso: “Olha, não mexam com isso”. Só posso entender assim, porque eu nunca fui chamada pela corregedoria, nem por uma comissão que existe dentro da instituição para apurar casos desse tipo, mesmo eu sendo a principal testemunha do processo judicial. Em vez de ser ouvida, fui classificada em relatórios da instituição como intransigente, intolerante e como uma pessoa que não valoriza contatos afetivos.
Edson Silva/Folha Imagem
Tatiana Merlino da Redação
Trabalhadores da Febem participam de paralisação por melhorias nas condições de trabalho
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De 23 a 29 de dezembro de 2004
NACIONAL NORDESTE
Pizza petista O relator da CPI do Banestado, deputado federal José Mentor (PT-SP), conseguiu, ao final de seu trabalho, deixar a convicção de que houve mesmo um grande acordo entre partidos, personalidades, empresários, banqueiros e o mundo do crime organizado, uma vez que muita gente estava na lista da remessa ilegal de dólares para o exterior. O circo continua. Ressaca inflacionária Os setores econômicos do governo e a mídia festiva estão comemorando alguns índices inflacionários do ano, na média de 7%, mas fingem desconhecimento sobre reajustes previstos para janeiro de 2005, em alguns setores industriais, como 15% na linha branca (geladeiras, fogões etc) e 10% nas cervejas. Desdobramento Também devem pesar para os consumidores, logo no início de 2005, os crediários do comércio, tendo em vista os aumentos das taxas de juros nos últimos três meses de 2004, mas não repassados aos preços nas vendas de Natal. Agora é ano novo, vida nova e preços novos nas prestações. Otimismo oficial A chegada da corte petista a Brasília prova que a lenda da “Ilha da Fantasia” não encanta, como se pensava até 2002, apenas as elites conservadoras, as hordas de burocratas e puxa-sacos, os 300 picaretas e os jornalistas deslumbrados. Ela deixa inebriadas também novas lideranças populares, sindicalistas e ex-revolucionários. A babação é a mesma. Briga com Argentina Apesar da acirrada negociação comercial entre Brasil e Argentina, já que ambos se preocupam em defender seus parques industriais, os presidentes Lula e Kirchner têm sido alvos de muita intriga de interesses contrários ao Mercosul, inclusive de parte da mídia neoliberal que é favorável à Alca e ao capital multinacional dos Estados Unidos. Onda incendiária O comandante da Aeronáutica determinou recolhimento de todos os documentos relativos à ditadura militar, de 1964 a 1985, guardados em instalações da força armada. Mas já adiantou que boa parte do acervo desapareceu em incêndio ocorrido na base aérea do Aeroporto Santos Dummont, em 1998, muito antes, portanto, da última onda incendiária. Conivência total Parece brincadeira mas não é: a CPI da “Pistolagem”, que investigou a atuação dos grupos de extermínio existentes no Brasil, ativos principalmente no Nordeste, concluiu seus trabalhos em agosto, mas, até o presente momento, os parlamentares não aprovaram o relatório final com medo de eventual retaliação nas suas bases eleitorais. Esse é o Brasil moderno. Mais veneno Outra rede de sanduíches hamburger dos Estados Unidos está entrando com força no país, e promete inaugurar 50 lojas nos próximos meses. Vale lembrar que, a exemplo das demais empresas do gênero que operam no Brasil, além de carrear divisas para o exterior (royalties e de lucros), a empresa fornece alimentos não recomendados nem mesmo no seu país de origem. Risco soberania Frase do jornalista Clóvis Rossi na Folha de S. Paulo (21/12), sobre a torcida do presidente Lula no índice de risco-Brasil, produzido por um banco dos Estados Unidos: “Dar alto valor a medições desse tipo parece coisa de escravo que fica esperando a palavra do dono para saber se vai ou não para o tronco”.
Em Mossoró, movimentos pedem participação mais democrática nas questões sociais Lucas Milhomens de Mossoró (RN)
“O
sertanejo é antes de tudo um forte”. As palavras de Euclides da Cunha caracterizaram bem o clima da terceira edição do Fórum Social Potiguar (FSP), que aconteceu na cidade de Mossoró, no interior do Rio Grande do Norte e se encerrou dia 19. Reflexões sobre o Nordeste, a história de suas mobilizações sociais e a busca de alternativas sustentáveis para problemas seculares na região orientaram as discussões e principalmente as proposições apresentadas pelos diversos movimentos sociais presentes. Em consenso, a necessidade do Nordeste de um olhar mais profundo sobre seus problemas e de uma participação mais democrática no enfrentamento dessas questões. “Precisamos entender e sensibilizar as autoridades que, sem a participação democrática nas decisões e questões fundamentais para a região, estamos fadados a viver à margem do processo de desenvolvimento que há séculos se espera acontecer”, acredita a professora de economia política da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Eleonora Tinoco. A observação da acadêmica não vem sem exemplos concretos do grau de afastamento das autoridades regionais e nacionais. O projeto de transposição do Rio São Francisco é um caso atual e de extrema relevância para o Nordeste cujo debate ainda não inseriu a população excluída do sertão. Na visão dos participantes do 3º FSP, a proposta de acabar com a seca no semi-árido precisa passar por instâncias democráticas antes que qualquer medida possa destruir os recursos naturais em nome de interes-
forma de organização que parte da concepção de economia solidária e vai de encontro à tendência mundial de “padronização” das sementes pelas grandes corporações do agronegócio.
PATENTE DE SEMENTES
Fórum Social Potiguar discute busca de alternativas sociais no Nordeste
ses que não os da sociedade brasileira e, principalmente, da nordestina. Na linha da construção de um “projeto popular para o Nordeste”, algumas iniciativas já vêm sendo desenvolvidas. Uma bela experiên-
cia oriunda da Paraíba – e compartilhada em Mossoró – diz respeito à agroecologia e sua importância para a agricultura familiar. Trata-se de um banco de sementes comunitárias entre trabalhadores rurais, uma
“É um absurdo quererem patentear até um dos símbolos da liberdade no campo, a utilização de sementes. Isso, desde o começo da humanidade, reflete uma das características mais belas do trabalhador camponês: ter o direito de plantar o que quiser. É fundamental combater esse modelo neoliberal de agricultura que padroniza as formas de produção beneficiando sempre os empresários do agronegócio. Urge construirmos novas e democráticas formas de produção”, afirma o pesquisador José Camelo, da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa, para quem a compreensão da realidade local é essencial para o aperfeiçoamento de novas formas de produção que respeitam o meio ambiente e conseqüentemente, a população que usufrui de seus benefícios. “Este modelo traz o mito de que o Nordeste é pobre, que não tem conhecimento e seus moradores são ignorantes. É justamente o contrário! O sertanejo é resistente por natureza, inventa várias formas para continuar vivendo. Tem um conhecimento inacreditável de uma série de coisas, sabe o valor medicinal de cada planta, onde fica cada lugar e suas potencialidades, constrói formas para combater a seca, fabrica cisternas, adutoras. É de uma sabedoria singular, principalmente na região do semi-árido”, aponta Camelo. (Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br)
ENTREVISTA
Sociedade participa do governo em Recife Déborah Oliveira de São Paulo (SP) O atual prefeito do Recife, João Paulo Lima e Silva, já é o nome mais cotado para concorrer ao governo do Estado de Pernambuco, e vem exercendo grande influência nas costuras do Palácio do Planalto desde que foi reeleito, este ano, com 56% dos votos, no primeiro turno. Por duas vezes consecutivas o deputado estadual mais votado de Pernambuco, João Paulo, vem construindo uma trajetória política que tem sido comparada à do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Está à frente da capital pernambucana após derrotar, em 2000, uma das alianças políticas mais conservadoras do país, formada em torno do peefelista Roberto Magalhães, candidato à reeleição. Além disso, também enfrentou aliados tradicionais do PT, como PDT, PPS e PSB. A disputa foi acirrada, com uma diferença de apenas 5 mil e 835 votos, o que equivale a 0,76% dos votos válidos, no segundo turno. Brasil de Fato – O senhor se considera um prefeito de esquerda? João Paulo – Sim. Somos um governo de esquerda com compreensão dos problemas da cidade, principalmente da questão da pobreza e, sobre isso, estamos realizando muitas obras. BF – O primeiro Fórum Social do Nordeste reuniu cerca de oito mil pessoas. Como a cidade do Recife se organizou para receber esse evento? João Paulo – Foi um grande Fórum, sem dúvida. Oficialmente não houve nenhuma participação da prefeitura do Recife. Mas nossa militância está atuante desde o processo de cons-
Quem é
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Hamilton Octavio de Souza
Fórum reivindica projeto popular Fotos: Lucas Milhomens
Fatos em foco
Sem diploma de nível superior – quando foi eleito a prefeito cursava o terceiro ano do curso de Economia e desde então a matrícula está trancada –, o pernambucano João Paulo começou sua carreira pública no Sindicato dos Metalúrgicos do Recife, ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores e da Central Única dos Trabalhadores de Pernambuco. trução do Fórum. Os projetos da prefeitura de alguma forma foram reconhecidos nas atividades. O Orçamento Participativo (OP), por exemplo, foi levado por alguns cidadãos que integram as comissões. Mas sempre do ponto de vista do munícipe, da associação de bairro, enfim, da sociedade civil.
aprovada uma lei que incentiva a utilização do software livre. Em setembro do ano que vem, haverá um seminário internacional sobre software livre, a segunda edição da Conferência Latinoamericana e do Caribe sobre Desenvolvimento e Uso do Software Livre.
BF – O Fórum clamou por “Outro Nordeste possível”. O que a prefeitura tem feito nesse sentido e o que pretende fazer, como parceira pública? João Paulo – A parceria se dá pelo OP ou pelos Fóruns das Zeis, Zonas Especiais de Interesse Social. As zonas especiais são as favelas, muitas vezes localizadas em regiões nobres e, portanto, que precisam de políticas públicas especiais.
BF – Como se dá a participação popular no seu governo? João Paulo – Um dos instrumentos é o orçamento participativo. Mas também realizamos Conferências Municipais Deliberativas, em que o cidadão é incentivado a participar das decisões públicas. Até hoje, foram treze conferências. Além disso, temos estimulado o funcionamento dos conselhos municipais, criando novos postos onde não existiam e reequipando os que já existiam, mas funcionavam mal.
BF – A prefeitura do Recife é adepta do software livre? Existem telecentros na cidade? João Paulo – Existem dois grandes telecentros. Também temos o Portal de Software Livre do Recife (http//sl.recife.pe.gov.br) foi
BF – Qual a porcentagem destinada ao orçamento participativo? Já há um plano para 2005? João Paulo – Ainda não temos um plano para 2005, mas pretendemos chergar a 100% do orçamento público destinado às
obras públicas, que é decidido pelo orçamento participativo. BF – Quanto é destinado? João Paulo – Cinco por cento do orçamento é destinado aos investimentos em infra-estrutura. A maior parte dos gastos é em educação, conforme exige a própria legislação, que este ano somou 25%. Também foram 17% em folha de pagamento, outros 17% em encargos gerais do município, 15% com saúde e por aí vai. Mas já somos, proporcionalmente falando, a cidade em que há o maior número de participantes e o maior valor destinado ao OP do Brasil. Ao longo dos quatro anos, 240 mil pessoas participaram. Numa cidade que tem um milhão e meio de habitantes, é um ótimo número. A porcentagem vem crescendo desde 2001 e a meta é chegar a 100% nos próximos anos. Queremos que todos os investimentos sejam decididos com máxima participação da população. BF – Por ser um importante instrumento de participação popular, o OP é referência para o mundo. Em Recife, quais os pontos mais altos do programa? E quais as falhas? João Paulo – O ponto mais relevante do OP é proporcionar mais informação à população, promover o envolvimento popular nas deliberações, o que eleva o nível de consciência político e de organização. A pessoa deixa de pensar localmente, só no seu bairro, para enxergar toda a cidade. O ponto negativo é a própria estrutura de órgão público, que não consegue acompanhar o ritmo das decisões.
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De 23 a 29 de dezembro de 2004
NACIONAL TRANSGÊNICOS
O bioterrorismo ataca o algodão Claudia Jardim da Redação
Embrapa
Transnacionais alegam que não têm sementes convencionais suficientes e colocam no mercado sementes modificadas
Governo libera a soja modificada
O
deputado Edson Duarte, líder do Partido Verde na Câmara, encaminhou uma representação ao Ministério Público Federal, solicitando a suspensão da decisão da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) que autorizou o uso de sementes de algodão contaminadas com transgênicos. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) também recorreu da decisão. A CTNBio aprovou, dia 18 de novembro, o pedido da Associação Brasileira de Sementes e Mudas (Abrasem), em nome da Bayer, Syngenta e Monsanto, para comercializar sementes convencionais de algodão com até 1% de transgenia, ou seja, contaminadas, naquela proporção, por organismos geneticamente modificados. Ao autorizar a comercialização de sementes transgênicas, a Comissão aceitou o argumento das empresas de que não possuem sementes convencionais com 100% de pureza para atender às necessidades da safra atual de algodão. De acordo com o Ministério de Agricultura, apenas 0,5% das sementes examinadas apresentavam sinais de contaminação. Além de suspender a autorização, o deputado Edson Duarte pretende que os membros da CTNBio sejam citados em uma ação civil pública por improbidade administrativa. Na sua avaliação, os membros da CTNBio têm que responder pela Lei de crimes ambientais (9.605/ 98), cujo artigo 67 estabelece que é crime “ conceder o funcionário público licença ou autorização ou permissão em desacordo com as normas ambientais”.
ILEGALIDADE Para o parlamentar do PV, os membros da CTNBio têm que responder a um processo criminal porque, assim como fizeram com a liberação da soja transgênica, novamente aprovaram o pedido da Abrasem sem realizar o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) exigido por lei. O Ministério do Meio Ambiente foi além, e classificou de “flagrante ilegalidade” o fato de a decisão ter sido aprovada por apenas sete dos 13 membros presentes à reunião, quando o quórum necessário seria de nove. O mesmo ocorreu em 1995, quando a CTNBio autorizou
João Alexandre Peschanski da Redação O Senado votou e aprovou, no dia 21, a Medida Provisória 223, que autoriza o cultivo da soja transgênica para a safra 2004/2005. Para ser oficializada, a MP deve passar pela sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se disse favorável à liberação. Na votação, a senadora Heloísa Helena (PSOL-AL) foi a única que se posicionou contra a medida. O texto que foi aprovado estabelece que os produtores que usarem produtos geneticamente modificados apresentem notas fiscais às empresas produtoras das sementes para que estas possam cobrar royalties (compensação paga ao detentor de uma patente). A
Contaminação ocorreu por reprodução do material genético realizada fora do país
a comercialização da soja transgênica. Na ocasião, o Instituto de Defesa do Consumidor e o Greenpeace entraram com uma ação judicial e o cultivo da soja geneticamente modificada foi proibido.
RURALISTAS A decisão da CTNBio acontece no momento em que os ruralistas articulam para aprovar na Câmara o projeto da Lei de Biossegurança, que dá mais poderes à Comissão para decidir sobre a necessidade de estudos de impacto ambiental para a produção de organismos geneticamente modificados. Para Edson Duarte, a decisão irregular da Comissão é uma das provas que seus poderes devem ser limitados pelo projeto de lei, como sugeria o texto original da lei em tramitação.“Tudo isso mostra, mais uma vez, que a CTNBio não tem competência nem credibilidade para decidir sobre biossegurança no país”, afirma. A seu ver, a decisão da CTNBio foi “irresponsável e ilegal, e colocou em risco a biodiversidade brasileira”, diz.
A contaminação das sementes do algodão não foi realizada por meio do contrabando de sementes como ocorreu no Rio Grande do Sul com a soja transgênica. A estratégia utilizada pelas transnacionais, dessa vez, foi o “contrabando” genético. O geneticista Paulo Barroso explica que a contaminação do algodão ocorreu a partir da reprodução do material genético que é realizado fora do Brasil. De acordo com Barroso, as variedades “avós” das sementes a serem cultivadas “provavelmente” são transgênicas, o que deu origem às sementes contaminadas. “A falta de fiscalização pode ter contribuído para essa contaminação”, admite o geneticista, que integra a equipe da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa-Algodão.
OMISSÃO Mais uma vez, o governo federal se eximiu da responsabilidade de fiscalizar as sementes e os cultivares. Enquanto produtores e a imprensa denunciavam o plantio
irregular do algodão modificado, apenas há alguns meses a fiscalização do Ministério da Agricultura constatou “oficialmente” a contaminação de sementes convencionais por transgênicas. A falta de controle preocupa os especialistas. De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, o algodão é uma espécie de polinização cruzada, ou seja, uma espécie polinizada por insetos e pássaros. O risco de cruzamento com outras variedades é de 70%, o que colocaria em risco o patrimônio genético de espécies silvestres de origem brasileira.
VÍTIMAS Em uma audiência pública na Câmara, dia 9, os produtores denunciaram que já houve contaminação de uma lavoura para outra e se consideram vítimas das transnacionais, que detêm cerca de 50% do mercado de sementes de algodão no país. O representante da Associação Brasileira de Produtores de Algodão (Abrapa), João Carlos Rodrigues, afirmou que, se produtores plantaram sementes contaminadas, foi sem conhecimento. “Somos muito mais vítimas do que vilões. Os casos de contaminação que aconteceram até agora não são culpa dos produtores”, assegurou. Segundo Rodrigues, os produto-
O Rio Grande do Sul colhe prejuízos Anamárcia Vainsencher da Redação No Brasil, parece ter vingado a idéia de que produtos geneticamente modificados (OGMs), ou transgênicos, serão a salvação da lavoura. Tal idéia, porém, carece de comprovação. Mesmo numa safra (2003/04) com quebra de 10 milhões de toneladas na produção total de soja, em decorrência da ferrugem asiática e da estiagem, o maior consumidor de sementes trangênicas, o Rio Grande do Sul é, visivelmente, o produtor em pior situação. Na última safra, enquanto a produtividade da soja caiu 16%
em todo o país, o recuo foi de 19% no Centro-Sul, a maior região produtora. Nessa região, houve recuo do rendimento da cultura da oleaginosa no cinco principais Estados produtores, mas no Rio Grande do Sul transgênico, a queda foi a maior de todas – 48% em relação à safra 2002/03, de acordo com dados da Companhia Nacional do Abastecimento (Conab), órgão do Ministério da Agricultura. No Rio Grande do Sul transgênico, o rendimento da última safra de soja – 1.400 quilos por hectare (kg/ha) – foi o mais baixo desde 1990/91 (veja gráfico). Desse período em diante, sempre de acordo
com informações da Conab, a área plantada no Estado vem crescendo regularmente. Em 2003/04, era a segunda maior área cultivada com o grão entre os cinco grandes Estados produtores do Centro Sul (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Paraná e Rio Grande do Sul). Também nesta última safra, a maior quebra na produção foi a dos sojicultores gaúchos: 42%. No Mato Grosso do Sul, a redução foi de 19%; em Goiás e no Paraná, a produção praticamente não se alterou em relação a 2002/03; no maior Estado produtor, Mato Grosso, a produção aumentou 16%. Coincidência que o Rio Grande
Rendimentos da soja nos principais Estados (1991 a 2004)
do Sul transgênico seja a região produtora com os piores indicadores? No Paraná, que vem lutando para se manter uma área livre de transgênicos, tanto a produção como o rendimento vêm evoluindo regularmente. O mesmo se pode dizer dos outros Estados da região. Em 2003/04, a área plantada com soja no Paraná foi de 3,9 milhões de hectares, nas quais foram colhidas 10 milhões de toneladas do grão, resultando numa produtividade de 2.550 kg/ha, só menor que a obtida pelos agricultores do Mato Grosso – em 5,1 milhões de hectares, foram colhidas 15 milhões de toneladas de soja, com produtividade de 2.915 kg/ha. Antes de se tornar o maior produtor de soja geneticamente modificada do Brasil, em várias safras, o rendimento da produção gaúcha não ficava muito distante do desempenho dos demais Estados produtores do Centro-Sul. No último ano agrícola, como mostram as séries históricas da Conab, além de sofrer os efeitos de desastres climáticos, os agricultores do Rio Grande do Sul passam, também, a arcar com despesas extras, os royalties devidos ao seu fornecedor de sementes geneticamente modificadas, a Monsanto, e cujos preços aumentaram.
principal beneficiária desta cláusula é a corporação estadunidense Monsanto, que detém a maior parte das patentes de produtos transgênicos. A empresa cobra entre R$ 0,60 e R$ 1,20 por saca produzida com suas sementes. Em 2003, o governo também liberou, por medida provisória, a comercialização da soja cultivada com sementes transgênicas. Na época, reconhecendo um certo desgaste com a decisão, pois movimentos sociais se manifestaram contra o que consideravam ser uma arbitrariedade de Lula, o governo iniciou articulações para aprovar uma Lei de Biossegurança, que liberasse definitivamente o cultivo de produtos geneticamente modificados. Até o final do ano, o projeto de lei não havia sido votado pelo Senado.
res estão preocupados com a possibilidade de redução de área plantada de algodão, além da perda de competitividade do produto brasileiro em relação aos de outros países. Além dos riscos de contaminação das variedades e dos impactos desconhecidos ao meio ambiente, a ambientalista Marijane Vieira Lisboa, da organização não-governamental Por um Brasil Livre de Transgênicos, em audiência pública alertou que, em breve, o governo será pressionado pelas transnacionais, aos moldes do que ocorreu com a soja, a editar uma medida provisória para regularizar também a comercialização do algodão transgênico. “De MP em MP, a Monsanto enche o papo”, ironizou Marijane.
CONJUNTURA
Declina o emprego na indústria da Redação Mais um indicador recuou em outubro, em relação ao mês anterior: o emprego na indústria caiu 0,2%, provavelmente acompanhando o declínio da produção industrial no mesmo mês, de 0,4%. Entretanto, em relação a outubro de 2003 o emprego na indústria cresceu 4,2%; o acumulado no ano ficou em 1,4% e o dos últimos doze meses, em 0,9%. Em todo o país, 12 das 18 atividades pesquisadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) expandiram o número de pessoas ocupadas. As indústrias que mais aumentaram as contratações foram a de máquinas e equipamentos (14,2%), veículos automotores (13,7%), alimentos e bebidas (5,5%). As que mais demitiram foram as de produtos de metal (4,2%) e vestuário (1,7%). Também em função do encolhimento da produção, em outubro, o número de horas pagas aos trabalhadores da indústria recuou 1,3% em relação a setembro. Quanto à jornada média de trabalho caiu 1,3% em relação a setembro, enquanto aumentou ligeiramente (0,2%) no acumulado no ano e 0,1% nos últimos 12 meses. Em outubro, a folha de pagamento dos trabalhadores da indústria recuou 0,9% em relação a setembro, depois de ter evoluído timidamente (0,2%) entre agosto e setembro (0,2%). Mas apresentou expansão de 9,8% em relação a outubro do ano passado; 9,3% de janeiro a outubro de 2004; 7,6% no acumulado nos últimos 12 meses.
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NACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Aumenta a participação dos excluídos Tatiana Merlino da Redação
A
tímida presença de movimentos e grupos geograficamente distantes e economicamente desfavorecidos, nas últimas edições do Fórum Social Mundial, somada à presença massiva dos excluídos no Fórum de 2004, na Índia, motivou os organizadores do Fórum de 2005 a pensar estratégias para ampliar a participação de movimentos populares no encontro. Entre as alternativas idealizadas com esse fim, foram criados um Fundo de Solidariedade Nacional, para subsidiar as viagens de representantes de organizações brasileiras, e um Fundo Internacional, coordenado pelo Comitê Internacional, para facilitar a vinda de asiáticos e africanos. Os recursos serão distribuídos segundo critérios como distância, região, baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Os organizadores do FSM também querem garantir a presença de estudantes, ativistas de movimentos sociais e mulheres. O Fundo de Solidariedade Nacional recebrá cerca de 2,5% do orçamento total do encontro, o que significa de R$ 300 mil a R$ 500 mil, para custear a ida a Porto Alegre de um ônibus por Estado. Nos Estados onde há Comitês Estaduais (veja quadro abaixo), estes ficarão responsáveis pela formação do grupo que irá ao FSM. De acordo com Plínio Marcos de Oliveira, da União Nacional dos Estudantes (UNE), uma das entidades que integram o Comitê organizador do evento, a proposta é aumentar também o número de excluídos: “Não conseguimos mudar a cara do Fórum apenas com boas intenções, mas acreditamos que um ou dois ônibus por Estado podem aumentar a representatividade desses segmentos”.
FÓRUNS LOCAIS De acordo com pesquisa desenvolvida pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) durante o FSM 2003, difundida no início de 2004, a maioria dos participantes do processo Fórum Social Mundial no Brasil, até então, não pertencia às bases. “Muitas das questões debatidas no Fórum dizem respeito a uma parcela da população que, por questões financeiras, muitas vezes, acaba ficando fora do processo. Queremos reverter isso”, explica a coordenadora do Ibase, Erica Rodrigues. Outra forma de fortalecer a par-
Fotos: Paulo Pereira Lima
Organizadores criam alternativas de conscientização e financiamento para garantir a popularização do processo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Para o militante, os fóruns locais são importantes porque funcionam como um “aprendizado” para que se chegue ao FSM com um trabalho que possa ser aprofundado. Além disso, é importante que, ao voltar, esses representantes de movimentos tenham elementos para tratar com as suas comunidades.
FINANCIAMENTOS LOCAIS
Fundo vai subsidiar passagens de outros Estados e até de outros países
ticipação dos excluídos no FSM é a realização dos fóruns regionais. De acordo com Oliveira, não adianta viabilizar o transporte desses setores se eles não sabem o que é o Fórum: “O incentivo ao envolvimento dos movimentos populares vai além do fundo, iniciativa positiva, que só vem somar”. O Fórum Social Potiguar, o Fórum Social Pan-Amazônico e o Fórum Social Nordestino, por exemplo, reúnem e integram os movimentos locais, fazendo uma “ponte entre o local e o global, entre o desenvolvimento local e o modelo ou a tendência neoliberal”, afirma Mônica Oliveira, da organização do Fórum Social Nordestino, e uma das coordenadora da Associação Brasileira de ONGs (Abong) no Nordeste. “Queremos traduzir os debates mundiais sobre neoliberalismo para a realidade local e articular de forma mais
concreta os movimentos locais, de indígenas e quilombolas a moradores das periferias”, explica. Para Aluisio Matias, coordenador do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular de Natal, e integrante do Grupo de Trabalho de Mobilização do FSM 2005, o importante agora é envolver o máximo de organizações na construção dos vários eventos do Fórum. Ele con-
ta que, durante o 3º Fórum Social Potiguar, realizado em Mossoró, de 17 a 19, já houve uma mudança do perfil. “Tivemos uma grande contribuição dos movimentos rurais, comunitários, de economia solidária. Foi um Fórum das bases”, diz. Pasra Matias, o Fórum Potiguar e o FSM agregam novos atores, não apenas os tradicionais, que estão na luta há mais de 15 anos, como o
Além do Fundo Nacional de Solidariedade, os movimentos locais e secretarias estaduais das entidades nacionais estão fazendo rateios locais para ajudar os que não poderiam ir por conta própria, diz Adilson Vieira, do Grupo de Trabalho Amazônico. Segundo ele, haverá um investimento na participação de grupos indígenas, quilombolas, povos das florestas, sertanejos, mulheres quebradeiras de coco, seringueiros. Vieira explica que, para o 4º Fórum Social Pan-Amazônico, marcado para 18 a 22 de janeiro de 2005, não se apostará em grande nomes: “Todos os recursos serão investidos para trazer os índios do Alto Solimões e camponeses da Bolívia. Queremos sair do espaço intelectualizado e ouvir o que os pobres estão sentindo e dizendo”. Segundo ele, o número de participantes dobrou desde o último Fórum Panamazônico e, para o FSM, irão cerca de mil pessoas da Amazônia brasileira. A idéia de popularizar o perfil dos participantes surgiu após a experiência do 4º Fórum Social Mundial, em Mumbai, na Índia. “Eles nos influenciaram e aumentaram nossa consciência sobre a necessidade de incentivar os excluídos” afirma Mônica Oliveira
Economia solidária no discurso e na prática Dafne Melo e Tatiana Merlino de São Paulo (SP)
O conceito de EPS procura englobar diversas práticas associadas a ações de consumo, comercialização, produção e serviços em que se defende a participação coletiva, por meio de cooperativas, associações, empresas autogestionárias, redes de cooperação e complexos cooperativos, levando em conta a responsabilidade social e a preservação do ambiente. Nesta edição do FSM, cerca de 15% do orçamento total do evento, o equivalente a R$ 2,5 milhões, será aplicado nos seguintes setores: segurança, limpeza, reciclagem,
Para a edição de 2005, a organização do Fórum Social Mundial quer que a economia popular solidária (EPS) não se faça presente apenas como tema de debates, mas também nas práticas econômicas e sociais inseridas no funcionamento do próprio Fórum. “Queremos colocar em prática o que antes ficava só na teoria”, explica Aldair Barcelos, coordenador do Grupo de Trabalho de Economia Solidária do Fórum.
equipes de tradutores e intérpretes. Os empreendimentos solidários também farão a gestão econômica dos estandes e trabalharão no abastecimento, com diversas praças de alimentação e feiras de artesanato, entre outros. Além da atuação objetiva na operacionalidade dos eventos, a EPS será um dos temas presentes nos debates, especialmente no espaço temático que irá debater sob o tema “Economias soberanas pelos e para os povos – contra o capitalismo neoliberal”.
Marcello Júnior/ABr
COMITÊS DE MOBILIZAÇÃO BRASILEIROS • Comitê Amapá Macapá - AP Correio eletrônico: comiteamapafsm@hotmail.com Telefone: (96) 9976-8430 Contato: Newton Marcelo (newton_marcelo@hotmail.com) • Comitê Belém Belém - PA Correio eletrônico: abong@interconect.com.br, maura@nautilus.com.br, apacc@nautilus.com.br Telefone: (91) 222-3857 / 259-6868 Contato:MauraMoraes-AbongAmazônia • Comitê Capixaba Vitória - ES Página eletrônica: http://forumsocialcapixaba.cjb.net Correio eletrônico: coletivocapixaba@uol.com.br Telefones: (27) 3322 6579/33326637/ 99463289 e 99461042 (Sindiupes) Contato: Helder Gomes (helgomes@uol.com.br ) • Comitê Gaúcho Porto Alegre - RS Correio eletrônico: cgfsm2005@portoweb.com.br Telefone: (51) 3228-8780 ou (51)91171825 (Lucia Simões)
Organizadores querem garantir presença de estudantes
artesanato, alimentação, confecção de bolsas e camisetas, prestação de serviços, reciclagem e agricultura para atender às necessidades tanto de infra-estrutura, como de abastecimento. Segundo Barcelos, calcula-se em mais de 1400 o número de trabalhadores ligados a empresas que praticam a economia solidária. Entre os produtos e serviços prestados por esses setores estão a fabricação de mais de 60 mil bolsas de algodão para os participantes, camisetas para as equipes de trabalho, produtos eletroeletrônicos para as
• Comitê Mato Grosso do Sul Campo Grande - MS Correio eletrônico: mstms@terra.com.br, cptms@zaz.com.br , cddhms@terra.com.br Telefones: (67) 384-3840, 324-7729 Contatos: Marcio Bizoli, Dionísio Feltrin, Nancineide Campos • Comitê Mineiro Belo Horizonte - MG Correio eletrônico: corecon-mg@cofecon.org.br, fsmmg@ongnet.org.br, cptms@zaz.com.br, Contato: Maria Dirlene Trindade Marques (dirlene@face.ufmg.br ) Telefone: (31) 3261-5806 • Comitê Organizador do Acampamento da Juventude - FSM Porto Alegre - RS Página eletrônica: www.acampamentofsm.org Correio eletrônico: acampamento@acampamentofsm.org Contatos: Ana Paula de Carli – anapaulafsm@yahoo.com.br, André Mombach andremombach@yahoo.com.br, Fernando Campos Costa ferccosta@yahoo.com.br Telefone: (51) 3312-4405
• Comitê Paranaense Curitiba Correio eletrônico: fecpr@pop.com.br Contato: Maurício Cheli Telefone: 41 9634-7510 • Comitê Paulista São Paulo - SP Página eletrônica: www.fsmcomitepaulista.org Correio eletrônico: fsm@fsmcomitepaulista.org Contato: André Rodrigues Nagy (arnagy@seade.gov.br ), Salete Valesan Comba (salete@paulofreire.org ) Telefone: 3021-5536 (Salete) – 32241767 (André) • Comitê Rio Grande do Norte Natal - RN Correio eletrônico: fsm.rn@bol.com.br ou forumsocialpotiguar@hotmail.com Contatos: Aluízio Matias dos Santos (aluiziomatias.santos@bol.com.br ) Telefones: (84) 201-0242 / 221-5932 / 9964-7102 • Comitê Rio de Janeiro Rio de Janeiro - RJ Correio eletrônico: forumsocialcarioca@hotmail.com Contato: Maria Eloisa Mendonça Attac-RJ Telefones: (21) 2558-3363 e (21) 9165-6141
Ano 2 • número 95 • De 23 a 29 de dezembro de 2004 – 9
SEGUNDO CADERNO LIVRE COMÉRCIO
Chávez e Fidel colocam Alba em prática Jorge Pereira Filho da Redação
A
Alternativa Bolivariana das Américas (Alba) está deixando de ser apenas um discurso para virar proposta de integração, de fato, aos povos do continente. Dia 14, os presidentes Hugo Chávez e Fidel Castro assinaram um acordo de cooperação socioeconômica entre Venezuela e Cuba. As propostas refletem alguns dos princípios defendidos pelos movimentos sociais que se opõem aos tradicionais Tratados de Livre Comércio (TLCs). “Esta é a alternativa ao projeto perverso e colonial da Área de Livre Comércio das Américas (Alca)”, resumiu Chávez, durante a solenidade da assinatura do acordo bilateral realizada no Teatro Karl Marx, em Havana. Para o presidente venezuelano, o projeto da Alba segue os princípios de Simon Bolívar, líder latino-americano. O entendimento não se limita aos acordos comerciais e propõe uma integração que dialogue com as necessidades sociais dos povos, como melhorias nos sistemas de saúde e educação. Boa parte dessas iniciativas acertadas entre Cuba e Venezuela já estavam sendo realizadas de forma isolada. A diferença, agora, é que Chávez e Fidel dão um arcabouço normativo para essas propostas e avançam na disputa frente à Alca para a construção de um projeto hegemônico de integração no continente. Não é à toa que o acordo foi solenemente ignorado pelos meios de comunicação empresariais.
Ricardo Stuckert/PR
Venezuela e Cuba assinam acordo prevendo integração solidária entre as nações, como alternativa à Alca
Presidente Lula conversa com o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, idealizador da Alternativa Bolivariana das Américas (Alba)
e Caracas (veja quadro abaixo). Cuba vive hoje uma grave crise energética e está sendo obrigada a fazer racionamento do uso de eletricidade. Além do preço preferencial, a Venezuela propõe repassar tecnologias desenvolvidas no país e dá, ainda, financiamento para a ilha caribenha adquirir petróleo e abastecer suas usinas termoelétricas. Dessa forma, os venezuelanos auxiliam Cuba a comprar o combustível com dólares, já que a ilha não tem acesso a linhas de crédito internacionais por conta do bloqueio imposto pelos Estados Unidos. Em contrapartida, a ilha oferece duas mil bolsas para estudantes venezuelanos ingressarem nas universidades cubanas e prevê, também, a colaboração de seus docentes com a Universidade Bolivariana, um projeto de Chávez. Castro assinalou que o acordo bilateral “vai fazer história” e chamou a atenção também para o fato de que as mudanças políticas na Venezuela, sem o uso das armas, são “toda uma lição para os revolucionários de que não há dogmas nem caminhos únicos”.
ENERGIA Em vez de privilegiar as transnacionais como fazem os TLCs, a idéia da Alba é buscar o desenvolvimento regional a partir da complementaridade entre os países. Prova disso são as diversas referências que o texto faz à cooperação energética. Os acordos políticos e econômicos entre os dois países permitem que Cuba receba um terço de seu consumo de peSimon Bolivar – Lutador venezuelano tróleo a preços que liderou procespreferenciais e sos de independênpromovem mais cia em cinco países de cem projetos da América do Sul: Bolívia, Colômbia, setoriais, com a Equador, Peru e ida e vinda de Venezuela. O sonho dezenas de mide Bolívar era a integração da América lhares de pessoLatina. as entre Havana
NOVOS PARADIGMAS Os presidentes divulgaram na mesma oportunidade uma declaração conjunta explicando as diferen-
ças da Alba em relação às propostas de acordos comerciais encampadas pelos Estados Unidos e pela União Européia. “Constatamos que o processo de integração das Américas e Caribe, longe de responder aos objetivos de desenvolvimento independente e complementaridade econômica regional, tem servido como um mecanismo para aprofundar a dependência e a dominação externa”, dizem os presidentes.
Um dos destaques do documento é que ambos líderes latino-americanos enfatizam que a “integração é, para os países da América Latina e Caribe, uma condição imprescindível para aspirar ao desenvolvimento em meio à crescente formação de grandes blocos regionais”. Chávez e Castro ressalvam, no entanto, que essa integração deve ter como base a cooperação, a solidariedade e a vontade comum para os países
avançarem a níveis mais altos de desenvolvimento e, ao mesmo tempo, “preservar sua independência, soberania e identidade”. Para os líderes, a base da subordinação e do atraso da região está nos benefícios obtidos durante as últimas cinco décadas pelas transnacionais, o esgotamento do modelo de substituição de importações, a crise da dívida externa e a difusão das políticas neoliberais. (Com agências internacionais).
ALTERNATIVA BOLIVARIANA DAS AMÉRICAS (Alba) Trechos da declaração conjunta • O comércio e o investimento não devem ter fim em si mesmos, mas sim como instrumentos para alcançar o desenvolvimento justo e sustentável • Trato especial e diferenciado que leve em conta o nível de desenvolvimento de diversos países e garanta que todas as nações tenham acesso aos benefícios da integração • Criação do Fundo Emergência Social • Medidas para que as normas de propriedade intelectual não se convertam em um freio à necessária cooperação entre nossos países
• Defesa da cultura latino-americana e da identidade dos povos da região. Criação da Televisão do Sul (TeleSul) como instrumento alternativo ao serviço de difusão de nossas realidades • Acerto de posições na esfera multilateral e em negociações com outros países, incluída a luta pela democratização e pela transparência dos organismos internacionais, particularmente a ONU e seus órgãos Trechos do acordo assinado entre Cuba e Venezuela Artigo 2: a cooperação entre Cuba e Venezuela se baseará, a partir desta data, não só em princípios de soli-
dariedade, mas também, no maior grau possível, no intercâmbio de bens e serviços que gerem mais benefícios para as necessidades econômicas e sociais dos dois países Artigo 3: ambas as partes vão trabalhar em conjunto, em coordenação com outros países latino-americanos, para eliminar o analfabetismo em terceiros países, utilizando métodos de aplicação massiva de provada e rápida eficácia, postos em prática com sucesso na Venezuela. Igualmente vão colaborar com programas de saúde para terceiros países. Mais informações: www.alcaabajo.cu
MERCOSUL
Integração supra-econômica se fortalece Ao completar 10 anos de vida, o Mercosul voltou a sua cidade natal, Ouro Preto, para a sua 27ª Cúpula Presidencial, encerrada dia 17, e se viu diante do desafio de se reestruturar para superar o desgaste que quase o enterrou nos últimos anos. Por um lado, o estranhamento entre Brasil e Argentina, causado principalmente pela intenção do país vizinho em proteger a produção doméstica da indústria brasileira, foi diplomaticamente amainado, empurrando-se a discussão dos problemas entre os dois maiores sócios do bloco econômico para mais tarde . Mas a transformação do Mercosul, que nasceu como uma união aduaneira (formada por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), em um bloco ampliado, com a entrada agora de Venezuela, Equador e Colômbia como membros associados – Bolívia, Chile e Peru já têm esse status –, na opinião de grande parte dos chefes de Estado não pode mais
ricanos) ou ainda uma União de Nações Sul-Americanas (Unasul).
Ricardo Stuckert/PR
Verena Glass de São Paulo (SP)
SOCIEDADE CIVIL
Líderes do Mercosul defendem integração regional e prioridades sociais
trabalhar em uma lógica meramente mercadológica ou economicista, tendo que ampliar seus horizontes rumo a uma integração regional que considere as desigualdades e dessimetrias dos vários Estados e priorize questões políticas e sociais. Nesta direção, a intervenção mais contundente foi a do presiden-
te venezuelano Hugo Chávez. Já na sessão de abertura, Chávez propôs que a Comunidade Andina de Nações (CAN) e o Mercosul sejam extintos para dar lugar a um novo projeto, a Comunidade Sul-Americana de Nações (instituída dia 7 de dezembro em Cuzco, Peru, durante a Cúpula de Presidentes Sul-Ame-
Apesar da inexistência de um espaço de participação oficial das organizações da sociedade civil Mercosul, entidades como a Rede Brasileira de Integração dos Povos (Rebrip) e a Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul (CCSCS) foram convidadas para participar da 24ª plenária da Comissão Parlamentar do Mercosul, que antecedeu a reunião presidencial nos dias 15 e 16 em Belo Horizonte. Para os parlamentares e para as organizações civis, a maior demanda é uma ampliação da democracia participativa e da politização da construção do Mercosul, explica o presidente da Comissão Parlamentar, o deputado federal Dr. Rosinha (PT-PR). Ambos os grupos apostam na criação do Parlamento do Mercosul para, no máximo, fins de 2006. “Em 2005, a Comissão Parlamentar deverá se dedicar à construção do processo de criação desta instituição, e prevemos algo parecido
com o Parlamento Europeu, eleito por voto direto”, diz o deputado. Já para a CCSCS, o maior problema do Mercosul é que continua preponderando o projeto exportador subordinado à política de estabilidade financeira e monetária imposta pelos organismos multilaterais. Em documento entregue aos presidentes da Cúpula do Mercosul, a CCSCS afirma que “os problemas comerciais não só não foram resolvidos como pioraram. As assimetrias vêm sendo tratadas com medidas de exceção e não resolução para as dificuldades do fluxo aduaneiro. O resultado é o aprofundamento dos desequilíbrios existentes, o que fragiliza o discurso político e a consolidação de uma política externa comum”. A organização sindical apresentou uma série de reivindicações, como a prioridade para o emprego nas decisões do Mercosul, por meio da adoção de medidas de emergência para assistir aos desempregados e de políticas públicas (produtivas, fiscais etc.). (Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com .br, e agências internacionais)
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AMÉRICA LATINA CHILE
Ratificada ordem de prisão de Pinochet A
Corte de Apelações de Santiago ratificou, dia 20 de dezembro, a ordem de prisão e o processo contra o ex-ditador chileno Augusto Pinochet, pelos assassinatos e desaparecimentos forçados da Operação Condor – ação conjunta das ditaduras militares do Cone Sul, na década de 1970. Durante o período em que Pinochet, 89, dirigiu o Chile, mais de 3.000 pessoas morreram devido à violência política de seu governo e cerca de 27 mil foram torturadas. A resolução, decidida por unanimidade pela Quarta Vara, foi votada enquanto o general Pinochet cumpria seu terceiro dia de internação no Hospital Militar de Santiago, em conseqüência de um acidente cerebral vascular sofrido dia 18. A prisão foi pedida pelo juiz Juan Guzmán Tapia. “Posso afirmar apenas que, por unanimidade dos integrantes, o pedido de habeas corpus foi recusado”, declarou à imprensa o presidente da Quarta Vara, Juan Escobar. Guzmán Tapia decidiu processar Pinochet apesar de relatórios médicos do ex-ditador atestarem que ele sofre de uma “suave demência”, que teria se agravado nos últimos tempos. Dois anos atrás, a Suprema Corte do Chile decidiu que Pinochet não poderia enfrentar outro processo
O ex-ditador chileno Augusto Pinochet (centro): mais de 3.000 pessoas morreram devido à violência política de seu governo e cerca de 27 mil foram torturadas
de violação de direitos humanos devido à sua “fragilidade mental”.
RECURSO Dia 13 de dezembro, Guzmán Tapia decidiu pela prisão domiciliar de Pinochet e abriu processo contra ele pela participação na operação secreta desenvolvida pelas ditaduras militares sul-americanas. No dia seguinte, advogados de defesa de Pinochet entraram com recurso junto à Corte de Apelação de San-
tiago, e conseguiram a suspensão da ordem de prisão domiciliar contra o ex-ditador. Em setembro, um interrogatório de Pinochet foi adiado depois que Guzmán foi afastado momentanea-
Papel dos EUA e do Peru nos crimes da Operação Condor da Redação A Operação Condor, sistema de repressão ilegal coordenado pelas ditaduras do Cone Sul nos anos 70 e 80, teve carta branca dos Estados Unidos e contou com a participação do Peru desde 1978, afirmou dia 19, à agência de notícias EFE, o jornalista estadunidense John Dinges. Ele lançou, em Lima, o livro Operação Condor: uma década de terrorismo internacional no Cone Sul, reportagem investigativa que descreve e documenta as origens e atividades da aliança secreta mantida, principalmente, pelos governos militares do Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai. O trabalho foi publicado pela primeira vez em fevereiro e inclui mais de 200 entrevistas e a revisão de 20 mil documentos liberados pelo governo dos Estados Unidos. O texto, de 432 páginas, é baseado em testemunhos e documentos reunidos durante as últimas três décadas na Itália, na França, nos Estados Unidos, no Paraguai, na Argentina e no Chile. Dinges declarou que a apuração permitiu comprovar que os Estados Unidos “apoiaram os ditadores” e deram “carta branca para que eles violassem os direitos humanos”. Ele afirmou, ainda, que, no Chile, houve treinamento de três meses por membros da agência central de inteligência estadunidense, a CIA.
PROVAS “Existem documentos da CIA que mostram que embaixadores estadunidenses estimularam os governos militares a coordenar ações de contra-subversão”, afirmou, comentando a relação dos Estados Unidos com a Operação Condor, criada pela Dina, a polícia secreta da ditadura militar chilena. O jornalista disse que os Estados Unidos mostraram “ambivalência” em sua política, porque os diplomatas estadunidenses apóiam os direitos humanos apenas quando a proposta geopolítica de Washington é aplicada. “O resultado de uma
política ambivalente é sempre, sem exceção, apoiar violações a direitos humanos”, enfatizou. O livro de Dinges também joga novas luzes sobre a pouco documentada participação do governo militar peruano na Operação Condor, estabelecendo que esta começou em 1978. “Um documento secreto da Central Nacional de Informações chilena (CNI) informa que o diretor peruano de inteligência ligou para o diretor da CNI para informar que o Peru permitia a presença de um representante chileno da Operação no Peru”, explicou.
PERU Segundo o jornalista, no início de 1980, quatro supostos montoneros (guerrilheiros argentinos) foram capturados em Lima, durante o governo do general Francisco Morales Bermúdez, e deportados para a Bolívia, onde desapareceram. Este fato foi amplamente detalhado no livro Muerte en el Pentagonito, los cementerios secretos del Ejército Peruano, lançado na semana passada pelo jornalista peruano Ricardo Uceda. “Os militares argentinos torturaram em Lima os montoneros capturados e esse tipo de operações era parte da Operação Condor”, escreve Uceda. O autor explicou que a Operação Condor foi criada para “eliminar ou neutralizar os grupos opositores”, e fez milhares de vítimas. Por isso, precisava ter representantes em todos os países-membros. Dinges, especialista em direitos humanos, terrorismo de Estado e narcotráfico na América Latina, disse que outra característica era que, se necessário, os agentes de inteligência de um país podiam realizar interrogatórios em compatriotas residentes em outro país integrante do plano de terrorismo de Estado. Para o jornalista, é importante falar da Operação Condor depois de 25 anos para divulgar “a internacionalização das políticas militares” e a existência da “multinacional do terror”. (Portal Vermelho, www.vermelho.org.br)
perdeu a imunidade que lhe permitia, até agora, escapar de processos em três casos distintos, inclusive sobre crimes ocorridos durante a Operação Condor. (Com agências internacionais)
CUBA
CIA tem prisão secreta em Guantánamo da Redação
CONE SUL
mente do caso pela Corte de Apelações por sua reconhecida posição anti-Pinochet. Pinochet nunca foi julgado por crimes de violação de direitos humanos. De qualquer forma, ele
A CIA, agência estadunidense de inteligência, mantém membros da Al Qaeda em uma prisão secreta dentro da base naval de Guantánamo, encravada em Cuba, informou o jornal The Washington Post, na edição do dia 18 de dezembro. Citando fontes militares e de inteligência, o jornal noticiou que a prisão da CIA foi construída em 2004. O Departamento de Defesa mantém, oficialmente, mais de 500 supostos militantes islâmicos em Guantánamo, a maioria capturada na guerra de 2001, no Afeganistão. Segundo The Washington Post, as celas da CIA são isoladas por muros altos e iluminadas por holofotes camuflados com plásticos verdes. A reportagem informa não saber se a unidade ainda está em operação, mas citou fontes que afirmam que presos do Paquistão, da África Ocidental, do Iêmen e de outros países passaram por lá sob sigilo. A CIA e o Pentágono não comentaram a reportagem. A CIA mantém mais de 30 líderes da Al Qaeda em locais secretos, segundo informação transmitida ao Post por funcionários estadunidenses do setor de segurança. Entre eles estariam os alvos mais valiosos do grupo de Osama bin Laden, e também agentes de médio escalão. Por outro lado, um cidadão britânico detido em Guantánamo ampliou as denúncias de torturas por autoridades militares estadunidenses. Martin Mubanga, cujo testemunho foi publicado num documento do Ministério do Exterior britânico, divulgado também no dia 18 pelo jornal The Guardian, afirmou que ficou acorrentado durante “períodos tão prolongados” que era obrigado a urinar no chão e, depois, a limpar a área. Denunciou, também, que, durante os interrogatórios a que foi submetido, um homem sentou sobre sua cabeça, e que foi exposto a temperaturas extremas. Mubanga, de 31 anos, é um dos quatro britânicos ainda detidos na base estadunidense.
EXERCÍCIO MILITAR Em Cuba, de 13 a 19 de dezembro, cerca de 4 milhões de civis e militares, unidos sob a bandeira da “Guerra de Todo o Povo”, participaram em diversas dinâmicas de-
Tomas van Houtryve/AP
da Redação
La Tercera/Associated Press/AE
Corte de Apelações confirma sentença e abertura de processo contra o ex-ditador, por crimes da Operação Condor
Presos denunciam maus-tratos e torturas por autoridades estadunidenses
fensivas e de proteção civil perante uma eventual agressão estadunidense. Dia 18, diversas localidades efetuaram treinos de evacuação da população até lugares com menos risco de serem alvos de bombardeios, caso, um dia, Washington dê ordens de atacar a ilha. Crianças, grávidas, deficientes físicos e mentais, doentes crônicos e pessoas maiores de 65 anos, menores de 18 anos ou que por qualquer razão sejam mais vulneráveis que outros durante a guerra, participaram das simulações, dirigidas
pelos respectivos Conselhos de Defesa da Revolução. Na capital, Havana, pôde-se constatar o alto nível de organização e disciplina da operação em um bairro vizinho a um aeroporto militar, presumível alvo de um ataque inimigo comandado por Washington. De fato, essa situação ocorreu em 1961, quando, como um prelúdio à invasão da Praia Girón (Baía dos Porcos), aviões procedentes dos EUA bombardearam um aeródromo em San Antonio de los Baños e imediações. (Com agências internacionais)
HAITI
Ex-sargento convoca à luta armada contra o governo da Redação “Convocamos os ex-militares de todo o país a organizarem a guerrilha e a dar uma resposta a este governo”. Assim, o ex-sargento do Exército, Ravix Rémissainthe, conclamou à luta armada contra o governo interino de Porto Príncipe, dia 20, depois de uma semana de tensões e novas desordens. Autoproclamando-se chefe de um grupo de ex-soldados, protagonistas, no dia 16, da ocupação da antiga residência do ex-presidente JeanBertrand Aristide, Rémissainthe acusou as forças policiais, encarregadas de manter a ordem no Haiti, de ter fracassado na sua missão. “O chefe da Polícia, Leon Charles, e o governo, são responsáveis pelo que está acontecendo no país”, disse o militar “rebelde”, referindose à onda de violência desencadeada pelos partidários de Aristide que,
desde o fim de setembro, causou dezenas de mortes (200, segundo algumas fontes). As declarações de Rémissainthe foram feitas dois dias depois da entrada dos “capacetes azuis” das Nações Unidas na antiga residência de Aristide, em Tabarre, na periferia da capital, concluída com a rendição dos seus homens. Os ex-soldados, protagonistas da insurreição armada que, em fevereiro, levou à queda do então presidente, pedem que o Exército, desmantelado por Aristide em 1994, seja reconstituído e lhes sejam pagos os soldos atrasados. O primeiro-ministro Gérard Latortue negou a possibilidade do pagamento retroativo, mas prometeu uma indenização aos ex-militares. Segundo Latortue, a decisão de restabelecer o Exército caberá ao governo que sairá das urnas nas próximas eleições, ainda sem data marcada. (Misna, www.misna.it)
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INTERNACIONAL EUROPA
Constituição prioriza livre comércio João Alexandre Peschanski da Redação
A
União Européia pode tornarse a primeira experiência continental de liberalização dos serviços públicos. Isso se o projeto de Constituição Européia, elaborado este mês, for aprovado pelos países que integram a comunidade. A proposta deve ser votada – por referendo ou dentro do Parlamento, dependendo do país – em 2005. A Constituição prevê que serviços como cultura, educação, saúde, telecomunicações e transportes, de caráter público na maioria dos países que compõem a União Européia, fiquem sob o controle de empresas. A justificativa é tornar a gestão dos serviços mais eficaz e transparente. A liberalização, proposta pela Constituição, é conhecida como Programa Bolkestein – referência ao nome do ex-comissário europeu para o mercado interno – e se fundamenta no Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços, negociado na Organização Mundial do Comércio (OMC), desde 1995. Apoiado pelos Estados Unidos, o Acordo defende a liberalização planetária dos serviços, quebrando a possibilidade de haver um controle público sobre setores como educação e saúde. Por hora, as negociações, dentro da OMC, estão paralisadas.
Joel Saget/AFP
Proposta de tratado liberaliza serviços públicos e ataca conquistas históricas de trabalhadores
Movimentos sociais e pacifistas protestam contra Europa militarizada e doutrina da “guerra ao terror”
União Européia, de um modelo de serviços e empresas públicas que se inspirem em diversas experiências nacionais. O novo modelo deve responder a vários imperativos: o
direito de cada cidadão ter igual acesso a serviços públicos modernos e de qualidade e o reconhecimento de um setor público não mercadológico”, conclui.
MODELO NEOLIBERAL Para o economista francês Michel Dauba, autor de Services publics: pour changer la société avec de nouvelles entreprises publiques (Serviços públicos: para transformar a sociedade a partir de novas empresas públicas), livro publicado em 2004 em que analisa o Programa Bolkestein, o projeto de Constituição aponta “a vontade da União Européia de transformar o continente em uma zona de livre comércio, como seria a Área de Livre Comércio das Américas (Alca)”. Para ele, trata-se da aceitação do modelo neoliberal, característico de países como os Estados Unidos, onde o setor público quase não participa da economia, e põe em risco uma série de conquistas históricas dos trabalhadores europeus. No livro, Dauba apresenta uma série de conseqüências de políticas de liberalização em curso na União Européia. Na Suécia, desde 1998, 50% dos postos de correio desapareceram, acabando com um terço dos empregos da categoria. A Constituição prevê a uniformização dos serviços postais públicos, levando a uma progressiva privatização. Se o projeto for aprovado, em janeiro de 2009 todos os postos de correio estarão abertos para a livre concorrência, ou seja, poderão ser vendidos.
MOBILIZAÇÃO POPULAR Em defesa dos direitos trabalhistas, sindicatos e movimentos sociais de diversos países europeus pretendem organizar manifestações para informar a população sobre os riscos da Constituição. Em nota oficial, a Confédération Paysanne, organização camponesa da França, afirma que “o déficit atual da Europa não se caracteriza por falta de liberdades ao comércio ou finanças, mas em sua legislação social, serviços públicos e direitos humanos”. Em 2005, devem ocorrer greves e mobilizações simultâneas em toda a União Européia. “É preciso garantir que as pessoas votem ‘não’ à proposta de Consituição, que fere as conquistas dos trabalhadores, como jornada de trabalho de 35 horas semanais e auxílios sociais”, avalia, em nota oficial, o principal movimento social do continente, Attac. Dauba considera que a resistência à Constituição é indispensável, mas aponta a necessidade de se formular uma alternativa. “O desafio é estimular o surgimento, em toda a
UNIÃO EUROPÉIA Países membros: 25 (Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Dinamarca, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Polónia, Portugal, Reino Unido, República Checa e Suécia
PAÍSES EM NEGOCIAÇÃO Turquia Bulgária Croácia Romênia
Da preocupação social ao interesse econômico No projeto de Constituição Européia, o termo “serviço público” dá lugar a “serviços de interesse econômico geral” (Sieg). A noção de público quase não aparece no texto da proposta. A de Sieg, em compensação, surge na Carta dos Direitos Fundamentais, no artigo II-36: “A União (Européia) reconhece e respeita o acesso a serviços de interesse econômico geral tal como previsto nas legislações e práticas nacionais, de acordo com a Constituição, a fim de promover a coesão social e territorial da União”. No artigo, a referência à Constituição não é anódina. Remete a outro artigo que trata dos Sieg, o III-186. Neste, aponta-se uma série de parâmetros que o Sieg deve respeitar: o artigo I-5, que limita o papel do Estado a funções estritamente burocráticas; o artigo III-166, que impõe às empresas públicas regras da concorrência; e o artigo III-167, que estabelece limites a subsídios públicos, in-
cluindo pequenos comerciantes e produtores rurais. O economista francês Michel Dauba, que pesquisa a liberalização dos serviços públicos na União Européia, afirma que a formulação dos Sieg representa um processo de submissão do interesse da sociedade às orientações de mercado, como concorrência e rentabilidade. “O vocabulário da Constituição rejeita o termo serviço público, pois implica priorizar as necessidades da população e a idéia que os serviços sejam de interesse público e garantidos por mecanismos públicos”, explica. Para Dauba, os dispositivos que criam os Sieg existiam em tratados anteriores, mas na proposta de Constituição adquirem um peso institucional sem precedentes: a possibilidade de a União Européia legislar sobre o assunto. “Pelos próprios termos do projeto, percebe-se o motor da construção da Europa nesse período. O que vale é o interesse econômico”, analisa. (JAP)
Alinhamento com a política militarista Uma Europa fortemente militarizada, vinculada à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), seguindo a doutrina da “guerra contra o terror”, idealizada pelo presidente estadunidense, George W. Bush, e disposta a “intervir” em qualquer lugar do mundo. A imagem certamente não é a que mais agrada aos cidadãos europeus, principalmente os milhões que saíram às ruas em 2003 para protestar contra a invasão do Iraque, mas é essa a orientação que transparece no projeto de Constituição Européia. De acordo com o texto da proposta, os governos signatários do tratado se comproOrganização do Trametem a metado do Atlântico lhorar sua capaNorte (Otan) – Criada em 1949, é uma cidade militar, aliança militar entre sugerindo um países da Europa e da América do Norte, aumento proidealizada como um gressivo das braço armado da despesas no seOrganização das Nator. No artigo Ições Unidas (ONU). Na prática, serviu 40, sobre Dispara legitimar ações posições Espemilitares dos Estados cíficas de ExeUnidos, como a invacução da Polítisão do Afeganistão, em 2001. ca de Seguran-
ça e Defesa Comum, estabelece-se a orientação dos gastos em armas e defesa: “A política da União (Européia) respeita as obrigações decorrentes do Tratado do Atlântico Norte para certos Estados-membros que vêem sua defesa comum realizada no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte e é compatível com a política comum de segurança e defesa adotada nesse quadro”.
DOUTRINA BUSH A Otan se mantém como o fundamento militar de 20 dos 25 países que compõem a União Européia. Além disso, Bulgária e Romênia, que ingressam na comunidade em 2007, integram a organização militar. Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor de ciência política da Universidade de Nice (França) Robert Charvin, especialista em assuntos militares, considera que o projeto de Constituição Européia marca a condição subordinada da política de defesa do continente às opções estratégicas dos Estados Unidos. Para ele, a Otan é coordenada pelo governo estadunidense, como ficou claro
com os ataques ao Afeganistão, em 2001, quando Bush ordenou às tropas da organização militar bombardear e invadir o país. O projeto de constituição estabelece que a União Européia pode mobilizar suas “forças armadas”, agrupadas em um exército continental, para “a administração de crises” em países estrangeiros e para “combater o terrorismo”. Charvin aponta que as semelhanças com a doutrina da “guerra contra o terror” de Bush não são coincidências: “Como no caso dos Estados Unidos, abre-se um leque imenso para justificar intervenções militares”.
DEPENDÊNCIA TECNOLÓGICA De acordo com a Estratégia de Segurança da União Européia, prevista pelo Conselho Europeu, foram criados pequenos exércitos permanentes, chamados “grupos táticos de reação rápida”, que podem ser enviados a qualquer lugar do mundo em menos de 15 dias e devem ser integrados à Otan. Estes têm a função de preservar os interesses da União Européia onde quer que seja. A Constituição Européia, se rati-
ficada, vai estimular a dependência industrial e tecnológica dos países europeus em relação aos Estados Unidos. Isso porque muito dos equipamentos de defesa de países europeus vão ser projetados e construídos por empresas estadunidenses. Exemplos são o governos de Bélgica, Dinamarca, Holanda, Inglaterra, Itália, Noruega e Portugal, que investiram 5 bilhões de euros em pesquisas para desenvolver um avião de combate, o Joint Strike Fighter (JSF), construído pela empresa estadunidense Lockheed Martin. A quantia representa 50% do orçamento anual de desenvolvimento militar da União Européia. Para cada unidade do JSF, os governos desses países vão ainda ter que desembolsar 100 milhões de dólares e comprar equipamentos de comando e controle de empresas estadunidenses. “A dependência, no caso desse avião, é de 100%; e a União Européia pretende ter essa arma como sua principal no século 21. Isso atenta contra a soberania do continente e mostra que os governos europeus estão optando pelo alinhamento com Bush. O que é uma ameaça para todo o mundo”, analisa Charvin. (JAP)
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INTERNACIONAL SERRA LEOA
Continua violação a mulheres e crianças Lansana Fofana de Freetown (Serra Leoa)
A
violação de mulheres e crianças era uma prática sistemática durante a brutal guerra civil em Serra Leoa, tanto pelos rebeldes, como pelas forças do governo. Um acordo de paz pôs fim ao conflito, em janeiro de 2002, mas, não a esse crime. “As violações aumentaram de maneira assustadora desde o final da guerra civil há dois anos”, disse Amie Tejan-Kellah, do Centro Arco-Íris, que dá assistência a mulheres vítimas de crimes sexuais. “Nosso centro atende centenas de casos nas províncias do leste do país, bem como no ocidente”, explicou. A organização, com sede na capital, Freetown, oferece às mulheres tratamento médico, ajuda psicológica e assistência legal. “É desanimador. Acabamos de ajudar 198 vítimas no distrito de Kenema, no leste, e aqui em Freetown. Nossa paciente mais jovem tem três meses e meio”, ressaltou. A polícia de Serra Leoa parece compartilhar da preocupação do Centro Arco-Íris, pois estabeleceu 24 Unidades de Apoio à Família em todo o país para investigar e prevenir as violações. “Essas unidades são uma espécie de equipes especiais que seguem os passos dos agressores. Estou seguro de que reduziremos a violência sexual”, disse o oficial de polícia encarregado dessas unidades, Simeon Kamanda. “A polícia resolveu recentemente 58 casos de violação e os apresentou à Justiça. Em particular, colaboramos em julgamentos que culminaram com 19 condenações com penas entre seis e 22 anos de prisão.” O Centro Arco-Íris uniu forças com Kamanda e com o Ministério do Bem-Estar Social, Gênero e Infância para ajudar mulheres violentadas ou vítimas de outras formas de violência. Capacitou 150 funcionários em escolas de todo o país, que tem 4,8 milhões de habitantes. Por outro lado, o Fórum de Educadoras Africanas (Fawe, sigla em inglês) também está preocupa-
Fotos:Giulio Albanese/ Misna
Até bebê de três meses sofre abuso sexual, enquanto responsáveis pela situação de violência permanecem impunes
Mesmo com o fim da guerra civil, os casos de crime sexual aumentaram
Escolas especiais foram criadas para meninos e meninas vítimas de violações
do com o alto índice de violações no país, e por isso criou escolas especiais para meninas e meninos vítimas desses crimes. “Essa causa vale a pena. Muitas dessas meninas têm traumas, e nosso trabalho é reabilitá-las”, disse a diretora da Fawe
e ex-ministra, Christina Thorpe. O Fórum é uma organização não-governamental que trabalha em 30 países africanos para reformar políticas públicas e garantir o acesso à educação em todo o continente. Alguns dos alunos das
SERRA LEOA Localização: África do Oeste Principais cidades: Freetown (capital), Koidu-Sefadu, Bo, Kenema Línguas: inglês (oficial), crioulo, mende, limba e temne Nacionalidade: leonesa Divisão política: 4 províncias
escolas criadas pela entidade em Serra Leoa foram escravos sexuais dos rebeldes ou das milícias do governo. Nas ruas, a indignação é cada vez maior. Os criminosos “deveriam ser castrados. É um crime abo-
Guerra pelo diamante matou 75 mil A guerra civil nesse país da África subsaariana começou em 1991, quando a Frente Unida Revolucionária (RUF), apoiada pela Libéria do então presidente Charles Taylor, lançou uma ofensiva para derrubar o governo e reter o controle das zonas produtoras de diamantes. O conflito deixou 75 mil mortos. “Na maioria dos casos de violação denunciados nesse país as vítimas são meninas e meninos
com idades entre seis e 16 anos, e 40% deles já haviam sido atacados antes”, disse o sociólogo Michael Tommy. “A maioria dos responsáveis é de adultos que enganam as crianças oferecendo balas, dinheiro ou, simplesmente, as intimidam. Creio que devem ser tomadas medidas mais severas contra esses desalmados”, acrescentou. O Ministério do Bem-Estar Social trabalha com a Comissão de Reforma de Leis para fortalecer as normas referentes à
proteção dos direitos das meninas e dos meninos. O promotor-geral de Serra Leoa, Abdulai Timbó, destacou a necessidade de aumentar as penas para os agressores. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento anunciou que dará ajuda financeira ao sistema judicial do país para garantir que os processos contra os violadores tenham maior rapidez. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
Regime político: república presidencialista População: 5,8 milhões Moeda: leone Religiões: islamismo (45%), crenças tradicionais (40%), cristianismo (11%)
minável, que não deve ser afiançável”, disse Musu Mansaray, mãe de uma menina de 12 anos violentada em Freetown. A professora Bassie Sesay afirmou que “o único lugar para os agressores é uma prisão de segurança máxima. Convivemos com essa ameaça por muito tempo. Durante a guerra civil nossas crianças eram seqüestradas. Agora há paz, e as autoridades devem agir com toda firmeza”, disse. Em junho foi criado em Freetown um tribunal especial, com apoio da Organização das Nações Unidas, para julgar as violações dos direitos humanos cometidos durante a guerra civil. Mas os principais responsáveis nunca passaram pelo tribunal – o líder da Frente Unida Revolucionária, Foday Sankoh, morreu de causas naturais antes de ser julgado; e o presidente da Libéria, Charles Taylor, está exilado na Nigéria. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
MARROCOS
Benjamin Bibas e Emmanuel Chicon de Rabat (Marrocos) Pouco tempo antes de sua morte, o rei Hassan 2º (1961-1999) tinha criado, no Marrocos, uma entidade de arbitragem independente (de sigla em francês IAI), para indenizar as vítimas de desaparecimentos forçados e de detenções arbitrárias de responsabilidade dos serviços de segurança do Estado. Em continuidade, o rei Mohammed 6º fundou, em abril de 2004, a Eqüidade e Reconciliação (de sigla, também em francês, IER), órgão cuja missão é trabalhar com a herança dos dossiês da IAI, para estabelecer a verdade sobre as “violações flagrantes” dos direitos humanos cometidas entre 1956 e 1999 pelos “órgãos estatais”, e indicar as reformas necessárias para impedir sua repetição. A IER é formada por oito membros vindos do Conselho Consultivo de Direitos Humanos criado por Hassan 2º, em 1990, e por oito personalidades vindas da sociedade civil (mais particularmente dos movimentos de oposição da esquerda), algumas das quais sofreram na pele a repressão dos “anos de chumbo”.
RESULTA DOS Em seis meses, a entidade já pôde apresentar alguns êxitos: a criação de um banco de dados “efe-
Eleven Shadows
Afinal, a verdade sobre os anos de chumbo
Marroquinos prestam homenagem ao rei Hassan 2º, que reinou por 38
tivo”, segundo o relator Driss El Yazami, que reuniu 20 mil dossiês em nove semanas; recolhimento de testemunhos sobre a repressão contra o movimento bérbere na região do Rif, em 1958; organização de audiências públicas descentralizadas em dez cidades do reino. Para respeitar a regra que a proíbe de designar responsabilidades individuais, a IER só divulgará em sua página na internet os testemunhos que respeitem o anonimato das pessoas citadas. Nos meios universitário e militante, entretanto, o processo suscita algumas dúvidas. Youssef El Bouhairi, professor de Direito Internacional Público na Universidade de Marrakech e membro da Organização Marroquina dos Direitos Humanos, receia que a IER
venha a “virar a página dos anos de chumbo sem a ter lido”. Ele aponta, sobretudo, a duração do mandato da entidade, muito curta (um ano) para tratar de dezenas de milhares de queixas que se referem a um longo período de 43. A IER “deve estar à altura de precisar as responsabilidades institucionais e de mencionar os órgãos administrativos envolvidos”, afirma, no entanto, Khadija Rouissi, secretária-geral do FVJ.
RECONCILIAÇÃO Mesmo poupando as pessoas implicadas nesses crimes e ainda com cargos num Estado marroquino que reivindica sua continuidade em relação ao reino precedente, a entidade agiria no sentido de um “bom acordo a ser feito para cons-
truir a democracia”. No balanço que faz sobre as atividades da IER na metade de seu mandato, Driss El Yazami, secretário-geral da Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH), e coordenador do relatório final da IER, que será publicado em abril de 2005, afirma que a entidade tem toda a liberdade de ação em relação ao poder monárquico marroquino. Segundo Yazami, a IER é uma instância de mediação não-judicial entre o Estado e a sociedade. “Até agora”, diz, “ninguém nos veio dizer o que devemos fazer, se devemos ou não organizar audiências públicas, se devemos encontrar esta ou aquela família de vítimas. Lembro que a família Ben Barka foi uma das primeiras que recebemos. Essa é uma sinalização forte dirigida à sociedade marroquina.”
AUDIÊNCIAS Em dezembro, está previsto o início das audiências públicas que, de acordo com Yazami, serão realizadas durante dois meses. Numa de suas modalidades, informa, testemunhos de vítimas vão contar seus sofrimentos no idioma de sua escolha (árabe dialeta, francês ou bérbere), na presença do público e da imprensa. Nas audiências “temáticas”, serão tomados um acontecimento, uma região, um período histórico, para cruzar com os depoimentos
das vítimas, de testemunhas e de pesquisadores. Essas audiências, informa Yazami, serão transmitidas por rádio e televisão “para que nossos trabalhos possam chegar aos analfabetos”, observa. Com relação à reconciliação nacional, o secretário-geral da FIDH considera que a sociedade e o Estado marroquinos devem se pôr de acordo a respeito da exclusão definitiva, da esfera pública, de um certo número de práticas (o desaparecimento forçado, a tortura, os processos arbitrários) e de leis. Ele reconhece que, no Marrocos, ainda falta muito para que o Direito esteja em conformidade com os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos. “Esta luta contra a impunidade implica, também, ratificação do tratado que cria o Tribunal Penal Internacional”, afirma o especialista. A segunda etapa da reconciliação, acrescenta Yazami, consiste em elaborar dispositivos legais que permitam regulamentar pacificamente o pluralismo político, aí compreendidos os militantes islâmicos. “A reconciliação não é o consenso, essa idéia tão espalhada que o condão de uma varinha mágica possa fazer as vítimas abraçar seus carrascos arrependidos para virar a página. É, isso sim, a gestão pacífica da divergência política e cultural”, conclui. (L’Humanité. www.humanite.fr)
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AMBIENTE AMAZÔNIA
Ministra garante redução de desmatamento Juliana Radler de Buenos Aires (Argentina)
A
pós o desmatamento na Amazônia ter atingido o segundo maior nível da história em 2003, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, afirmou em Buenos Aires, durante conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas e Protocolo de Quioto (COP 10), que em 2005 haverá redução desse processo. A ministra disse que não há uma meta previamente estabelecida, mas existe um esforço concentrado de 13 ministérios para frear a devastação da maior floresta do mundo. No penúltimo dia da conferência, que se encerrou dia 17, Marina participou do segmento de alto nível das discussões sobre a implementação do Protocolo de Quioto, que passa a vigorar em fevereiro de 2005. Durante as duas semanas do evento, a questão da Amazônia foi amplamente debatida, uma vez que as queimadas na mata são responsáveis por cerca de 70% das emissões de CO2 no Brasil. Se as emissões por florestas fossem consideradas, o Brasil deixaria de ser o 17º maior poluidor do planeta e passaria à quinta posição, logo atrás de países como Estados Unidos e Rússia. Diante de toda a pressão da comunidade internacional e do próprio compromisso interno do governo brasileiro em reduzir a destruição da Amazônia, a ministra informou que uma série de medidas estão sendo implementadas para frear o desmatamento. “O esforço conjunto entre os 13 ministérios é coordenado pelo próprio presidente Lula por meio
Rose Brasil/ABr
Durante conferência da ONU, Marina Silva afirmou que existe esforço de 13 ministérios para conter devastação
Ministra Marina Silva discursa durante lançamento de medidas para combater o desmatamento na Amazônia
da Casa Civil”, ressaltou. As linhas principais desses projetos incluem ampliar a fiscalização, aumentar a área de conservação ambiental e também incentivar a produção de madeira certificada. “Estamos criando 19 bases na Amazônia na área de abrangência da BR 163 e Terra do Meio (região de florestas no Pará). Seis dessas bases já estão em pleno funcionamento. Mais quatro ficarão prontas até fevereiro e as demais até julho de 2005. Essas bases trabalharão integradamente com o Ministério do Meio Ambiente, a Polícia Federal, o Ministério da Defesa (por meio do Exército) e o Ministério do Trabalho”, enumerou.
O desmatamento na Terra do Meio aumentou em 35% em 2004, em relação a 2003, alcançando 70 mil hectares, segundo o grupo de defesa ambiental Greenpeace. Nos últimos três anos, o total destruído na região (176 mil ha) é maior do que todo o desmatamento acumulado até 2001. De acordo com o Greenpeace, grandes devastacões ocorrem em áreas de floresta pública destinadas a se tornar unidades de conservação dentro do Plano de Combate ao Desmatamento, lançado em 2003. Para o coordenador de campanhas do Greenpeace Internacional, Marcelo Furtado, o plano do go-
verno brasileiro ainda não saiu do papel e não há ainda um efetivo esforço integrado dos 13 ministérios para diminuir o desmatamento. “O ministro da Agricultura não parece convencido de que o agronegócio está prejudicando o meio ambiente em algunas regiões como no Mato Grosso”, sublinhou Furtado. Um estudo recente do Banco Mundial mostra que a pecuária é o principal fator de desmatamento na Amazônia – 75% das áreas desmatadas são ocupadas por gado.
FISCALIZAÇÃO No âmbito da fiscalização, a ministra informou que 27 dele-
gacias especializadas em combate a crimes ambientais foram criadas pelo Ministério da Justiça. Além disso, cerca de 4 mil novos agentes da Policia Federal serão selecionados por concurso público e parte desses agentes ficará alocada nessas delegacias especiais. “Acabamos de adquirir uma frota de 83 veículos que serão distribuídos por seis Estados da Amazônia e temos um convênio com o Ministério da Defesa para a utilização de 18 helicópteros. Antes, tínhamos apenas cinco”, informou a ministra, acrescentando que o sistema de monitoramento por satélite com a participação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e os sistemas Sivan e Sipam (de vigilância da Amazônia) passou a ser feito em tempo real. Em relação às unidades de conservação, a ministra lembrou que há uma meta ousada: a de encerrar o ano com 9 milhões de hectares protegidos no Brasil. Nos dois primeiros anos de governo, 3 novos milhões de hectares foram destinados a essas unidades, dos quais 2,3 milhões na Amazônia. A ministra falou ainda que a área dedicada à produção de madeira certificada também deve aumentar de 1,3 milhão de hectares atualmente para 2,3 milhões em 2005. “Mostramos aos contraventores que eles são punidos. E, para os que atuam corretamente, mostramos que eles não irão concorrer com quem não assina carteira, usa trabalho escravo e rouba madeira de unidade de conservação em terra pública”, concluiu. (Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br)
CANA-DE-AÇÚCAR
Dafne Melo da Redação “Aqui, tivemos um processo de reforma agrária ao contrário”, avalia Manoel Tavares, engenheiro agrônomo e presidente da Associação Cultural e Ecológica Pau-Brasil, referindo-se à cidade de Ribeirão Preto, interior do Estado de São Paulo. Com a implementação do Proálcool, em 1975, a produção agrícola da cidade voltou-se para a principal matéria-prima desse combustível, a cana-de-açúcar. Segundo Tavares, antes do projeto a cidade era responsável por 20% da produção de hortifrutigranjeiros do Estado. Hoje, o plantio da cana domina as terras do município. A lista de danos causados pela monocultura da cana é extensa: desemprego; exploração de mãode-obra no campo; encarecimento do custo de vida local, uma vez que a cidade é obrigada a comprar alimentos de outras regiões; prejuízo ambiental, como empobrecimento do solo, alterações climáticas, diminuição de mata nativa e do volume de água dos rios e nascentes, contaminação de águas subterrâneas – fatores que afetam a saúde da população. Muitos dos problemas estão relacionados às queimadas das plantações, método que facilita a colheita. Tavares explica: “Colher a cana crua é mais difícil e demorado, apesar de a matéria-prima final ser de melhor qualidade”. Embora hoje grande parte das usinas de cana já use o corte mecanizado, o que facilitaria a colheita da cana crua, a maioria dos produtores prefere unir as duas facilidades e queima as plantações para fazer uma colheita ainda mais veloz e utilizando menos mão-de-obra. “O processo tecnológico de produção de cana no
Renato Stockler
Fazendeiros acima da população e do meio ambiente
Queimadas e uso de agrotóxicos colocam em risco o Aqüífero Guarani
Brasil está historicamente apoiado em condutas e costumes errados”, acredita Tavares.
PREJUÍZOS DAS QUEIMADAS “Os empresários da cana não têm relação ética com a comunida-
de onde estão. Só visam o lucro. Já está comprovado que as queimadas prejudicam o ecossistema e a população, mas se faz mesmo assim”, diz o médico e professor aposentado da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, José Carlos Manço.
O período de queimadas se inicia entre março e abril e atinge o pico durante o inverno. Em uma estação onde a umidade relativa do ar já é mais baixa, as queimadas agravam ainda mais a situação. “Este ano chegamos a 5%. Para se ter idéia, em regiões desérticas a umidade é, na média, 8%” , exemplifica Tavares. Embora não haja dados sistematizados, Manço conta que observou um aumento de doenças respiratórias. “Não se pode dizer que a culpa é exclusiva das queimadas, pois no inverno sempre aumentam os problemas respiratórios. Mas o índice extremamente baixo de umidade que temos aqui não pode ser devido apenas à estação”, pondera. Quem mais sofre com o ar seco são as crianças e idosos: “Nesse período, há um aumento de 70% no atendimento de doenças respiratórias”, diz Manço. Os índices de poluição atmosférica, que agravam ainda mais o problema, também são procupantes. Tanto o nível de ozônio como o de monóxido de carbono, gases tóxicos que causam irritações, aumentam nas épocas de queimadas. “Ribeirão não é uma cidade altamente industrializada e mesmo assim tem o nível de ozônio maior do que em cidades industrializadas. A única explicação são as queimadas. A cidade não tem outro setor capaz de poluir com essa gravidade”, diz Manço. A fuligem gerada pelas queimadas é outro elemento nocivo. De acordo com o médico, as partículas maiores entram em mucosas da garganta, do nariz e dos olhos, causando irritação. As menores entram nas membranas dos pulmões e causam graves problemas respiratórios. Embora não haja uma pesquisa acadêmica sobre
a maior incidência de câncer em trabalhadores rurais do setor, já foi comprovada a existência de um tipo de fuligem com potencial cancerígeno. “Pesquisas apontaram a presença desse tipo de fuligem na urina desses trabalhadores. Entretanto, acho que não precisamos de um estudo maravilhoso para começar a fazer prevenção”, diz o professor. Tantos prejuízos não passam despercebidos pela população. Em um plebiscito informal, realizado pela Associação Cultural e Ecológica Pau-Brasil, 80% dos moradores de Ribeirão Preto se posicionaram contra as queimadas. A legislação estadual, entretanto, permite o uso de queimadas na agricultura, de forma controlada, até o ano de 2031.
AQUÍFERO GUARANI A Fazenda da Barra, produtora de cana-de-açúcar, abriga parte do Aquífero Guarani, que abastece a cidade de Ribeirão Preto. Como as queimadas acabam por gerar o empobrecimento e o ressecamento do solo, o uso de agrotóxicos e adubos químicos é alto, o que coloca em risco a pureza das águas. “Documentos oficiais reconhecem que já há contaminação do aquífero. Ali não poderia haver plantação, mas sim um projeto de reflorestamento”, diz o médico. Com o empobrecimento do solo, diminui o volume das águas. Conforme o solo vai secando e ficando compactado, diminui o volume das águas das chuvas filtradas que caem direto na reserva subterrânea. O que é filtrado, porém, corre o risco de estar contaminado. A falta de vegetação também influi nesse processo. Manoel Tavares revela que, antes do Proálcool, a cidade tinha 22% de mata nativa. Hoje, tem apenas 4%.
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DEBATE IMPERIALISMO
A fome nos Estados Unidos Anuradha Mittal
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dia 10 de dezembro marcou o 56° aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estabeleceu padrões e aspirações universais para a dignidade humana. Inspirada pela crença de que a dignidade humana requer a liberdade de expressão e que as pessoas sejam livres da fome e da pobreza, a Declaração proclamou a interdependência e a indivisibilidade dos direitos humanos civis e políticos e dos direitos humanos econômicos e sociais. Lamentavelmente, 56 anos depois, o compromisso com a interdependência entre os direitos humanos permanece apenas no nível da retórica. Os Estados Unidos não são diferentes, nisto, dos outros países. Hoje, ao mesmo tempo em que os Estados Unidos integram a linguagem dos “direitos humanos” na diplomacia e política internacionais, o país continua a desprezar os direitos sociais e econômicos garantidos pela Declaração. Os Estados Unidos enfrentam uma epidemia oculta. Ela atinge estadunidenses de todas as idades e etnias, seja nas cidades, seja nas áreas rurais. E, apesar da diversidade dos alvos, os que sofrem nessa epidemia silenciosa têm duas coisas em comum: são pobres ou de baixa renda, e crescentemente vivem sem comida suficiente. Embora os políticos falem sobre “a pobreza nos Estados Unidos”, os tomadores de decisões evitam especificamente mencionar o problema crescente e muitas vezes mortal da fome. George McGoverno disse, em 1972: “Admitir a existência da fome nos Estados Unidos é confessar que falhamos em preencher a mais sensível e dolorosa das necessidades humanas. Admitir a existência da fome generalizada é lançar dúvidas sobre a eficácia de todo o nosso sistema.” Três décadas depois, as evidências indicam que o sistema ora existente está fracassando em relação a um vasto número de norte-americanos.
Uma olhada pelos Estados Unidos revela um fundo abismo entre a meta de acesso universal a nutrição adequada e a realidade da fome que ameaça milhões só naquele país. O número de pessoas famintas nos Estados Unidos é maior agora do que foi quando os líderes internacionais estabeleceram metas de redução da fome na Reunião de Cúpula Mundial sobre Alimentação, em 1996. Os compromissos dos líderes governamentais dos Estados Unidos de diminuir de 30,4 milhões para 15,2 milhões, em 2010, o número de estadunidenses vivendo com fome, não estão cumpridos. Estima-se que 35 milhões de estadunidenses sofram de insegurança alimentar, com pelo menos quatro de cada dez norte-americanos entre 20 e 65 anos de idade, ou seja, metade de toda a população, precisando de selos de comida distribuídos pelo governo. Enquanto isso, o já sobrecarregado programa de segurança alimentar que foi projetado para aliviar a fome e a insegurança alimentar está sofrendo a ameaça da redução do financiamento e do aumento das exigências para inscrição pelos responsáveis por essa política. Com os gastos em alimentos sendo a parte mais elástica de um orçamento familiar, na medida em que os fundos limitados ficam costumeiramente alocados, primeiro, a pagamentos fixos, como o aluguel e os serviços públicos, a compra de comida se tornou a parte mais comprometida do orçamento familiar médio. Até agora, em 2004, 35% dos estadunidenses tiveram de escolher entre a comida e o aluguel, e 28% tiveram de escolher entre a assistência médica e a comida. Enquanto outros, forçados a esticar mais e mais os seus orçamentos, estão comprando comida menos dispendiosa, mas muitas vezes menos nutritiva. O problema é ainda pior em bairros de baixa renda e áreas dos centros das cidades. A maioria dos bairros de baixa renda e/ou de minorias étnicas não têm supermercados suficientes para servir toda a comu-
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nidade com eficiência. Assim, essas comunidades geralmente preenchem suas necessidades de comida em estabelecimentos menores, mais caros, especialmente em lojas de conveniência e de bebidas que tendem a oferecer alimentos menos nutritivos e poucos produtos frescos, se é que há algum. Por exemplo, enquanto três companhias controlam 57% do enorme mercado de comida a varejo na Califórnia, a região de West Oakland, com 32 mil habitantes e 60% de desemprego, tem apenas um supermercado, em comparação com quarenta lojas de conveniência e bebidas. E o preço dos alimentos nessas lojas é de 30% a 100% mais alto do que no supermercado!
INFÂNCIA VULNERÁVEL Os mais vulneráveis – as crianças, imigrantes, famílias rurais – são mais afetados por essa epidemia. Apesar das evidências de que a fome causa o desenvolvimento de doenças crônicas e afeta o funcionamento psicológico e cognitivo das crianças, estima-se que 13 milhões de crianças morem em lares que são forçados a reduzir o número de refeições ou a comer menos, devido a restrições econômicas. Os mais afetados são os filhos de 6 milhões dos imigrantes sem documentos
nos Estados Unidos: diariamente ficam sem alimentos tais como leite e carne. O Condado de Tulare, na Califórmia, o segundo da nação em produção agrícola, é uma das áreas mais famintas e mais pobres da Califórnia. Muitas das cidades do condado abrigam principalmente famílias de trabalhadores agrícolas hispânicos que vieram para os Estados Unidos em busca de uma vida melhor, mas descobriram que o seu emprego para pôr alimentos barato nas mesas dos Estados Unidos e no mundo os deixou passando fome em meio às pessoas prósperas. Essas pessoas sofrem as piores injustiças econômicas e sociais, na medida em que moram em barracos de plástico ou papelão, trailers deteriorados, barracos de madeira, cavernas, ou mesmo em estacionamentos, e no entanto estão cercadas de campos de videiras, laranjais e pomares de pessegueiros. Embora esse tipo de fome raramente seja apresentado nos telejornais da noite, ele é mortal. O desafio diante de nós é questionar qual é a motivação empresarial para Bush ter assinado em agosto de 2004 a lei orçamentária de 400 bilhões de
dólares que irão largamente para os esforços militares no Iraque e no Afeganistão, e para o reforço do programa de mísseis de defesa, enquanto milhões passam fome. O governo Bush já gastou 150 bilhões de dólares na guerra do Iraque - três vezes a estimativa inicial. Os Estados Unidos já são responsáveis por quase metade das despesas militares do mundo. Isto significa que os EUA gastam em defesa quase tanto quanto todo o resto do mundo somado. Os gastos militares cresceram de 196 bilhões de dólares em 1997 para 397 bilhões de dólares em 2003. Compare-se isso com o que é gasto por criança-ano em programas antifome ou antipobreza. Vai ocorrer um triste período de festas para milhões neste fim de ano. A Declaração dos Direitos Humanos obriga o governo a proporcionar um padrão de vida adequado para a saúde e bem-estar de cada um. Isso incluiu obrigações a respeitar, proteger, facilitar e cumprir o direito à alimentação, roupas, habitação, assistência médica e aos necessários serviços sociais em caso de desemprego, doença, incapacidade ou velhice. A Declaração foi amplamente apoiada a seu tempo, mas suas promessas parecem ultrajantes a muita gente na era da “responsabilidade pessoal”. No momento do aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pode ser útil perguntar: o que é mais ultrajante? Uma ampla e bem estruturada rede de segurança e empregos com salários suficientes para a sobrevivência para todos os membros de nossa sociedade? Ou uma de cada quatro crianças passando fome e pobres no país mais rico da Terra? Anuradha Mittal é diretora do Instituto Oakland, um grupo de pesquisas apartidário que utiliza a análise e o direito para promover e assegurar a participação pública e o debate equilibrado sobre questões críticas de política econômica e social que afetam a vida das pessoas. (www.oaklandinstitute.org)
NEOLIBERALISMO
Direitos humanos e globalização Mauri Antonio da Silva
Kipper
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crescimento lento da economia a partir da década de 70 foi deteriorando progressivamente as condições de vida da população no mundo inteiro e agravando a situação dos direitos humanos no contexto da implantação de modelos econômicos neoliberais em vários países do mundo. Segundo o economista Eric Toussaint, no livro A bolsa ou a vida: “(...) o desemprego em massa instalou-se de modo duradouro, a desigualdade da repartição de riquezas acentuouse fortemente e os rendimentos das classes populares baixaram visivelmente. Seria preciso acrescentar os efeitos humanos do fechamento das fronteiras dos países mais industrializados aos fluxos imigratórios, da degradação do meio ambiente e da desregulamentação da produção alimentar.” Neste livro, ele fornece de modo detalhado informações sobre o aumento do desemprego que é o resultado da desregulamentação dos direitos do trabalho. Na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 1996, havia oficialmente 37 milhões de desempregados, três vezes mais que em 1970, para uma população total com crescimento quase nulo. A taxa de desemprego praticamente dobrou, passando de 3,2% em 1960-73 para 7,3% em 1980-94. No bloco dos países do leste europeu o desemprego progrediu fortemente desde o início dos anos 90. Funcionários do Banco Mundial afirmaram, em
1992, que seria preciso atingir uma taxa de 20% de desemprego para que se julgasse como um sucesso o ajuste das economias ao capitalismo neoliberal. Na Federação Russa, em 1995, o desemprego havia afetado 15,4% da população. Outra conseqüência da globalização foi o aumento da desigualdade acentuada na distribuição de renda, com um recuo acentuado no rendimento do trabalho e um crescimento dos que tiram o seu rendimento da
posse do capital. Estudos demonstram que havia um movimento de redução de desigualdades sociais progredindo em várias partes do mundo até a década de 1970, processo este que foi abruptamente detido na entrada da década de 90, fazendo com que 447 indivíduos bilionários do planeta concentrassem em suas mãos renda equivalente a metade dos habitantes da Terra (3 bilhões de pessoas) e que as 200 maiores empresas multinacionais dominassem
28% de tudo o que era produzido no mundo, embora empregando apenas 1% dos trabalhadores. A melhora verificada até a década de 70 estava ligada à construção do Estado de Bem Estar Social nos países capitalistas desenvolvidos após a Segunda Guerra Mundial e às positivas conquistas sociais asseguradas pelas sociedades socialistas. Segundo Toussaint: “A relação de desigualdade na repartição dos rendimentos dobrou em 30 anos em escala mundial (entre 1960-1990). Os 20% mais ricos do planeta ganham pelo menos 150 vezes mais que os 20% mais pobres”. O Panorama Social da América Latina divulgado pela CEPAL em 25 de agosto de 2003 dava conta de que o número dos latino-americanos que vivem na pobreza alcança os 220 milhões de pessoas, das quais 95 milhões são indigentes, o que representa 43,4% e 18,8% da população, respectivamente. Para a CEPAL, a taxa de pobreza se estancou nos últimos cinco anos. Quanto à fome, destaca que 55 milhões de latino-americanos estão padecendo de subnutrição. Isto corresponde a 11% da população. Quase 9% das crianças estão desnutridas, o que corresponde a 19,4% do total de crianças. No Terceiro Mundo, 1 bilhão e 200 milhões de indivíduos vivem com menos de 1 dólar por dia, caracterizando-se como o contingente humano abaixo do nível de pobreza absoluta. Na Federação Russa, em 2000, aproximadamente 39% da população vivia abaixo da linha da pobreza. Nos países capitalistas
mais industrializados também houve recuo dos rendimentos da maioria da população. Nos Estados Unidos, a produtividade do trabalho, entre 1997 e 2002, aumentou 30%, enquanto o salário real caiu 13%. Na União Européia, a participação dos salários no PIB diminuiu algo em torno de 10% entre 1981 e 1994. Na América do Sul, 30% da população sobrevive com menos de 2 dólares por dia. Em toda a América Latina verifica-se aumento do desemprego e de grave inquietação econômica, social e política. O problema a ser enfrentado na atualidade seria o da distribuição das riquezas, uma vez que a humanidade nunca contou com tantos recursos tecnológicos para satisfazer as suas necessidades. Existem poucas alternativas políticas efetivas do ponto de vista coletivo. As probabilidades de êxito para as elites continuarem no poder com apoio popular dependeriam de um forte nacionalismo revolucionário, o que não é de se esperar de uma burguesia profundamente associada ao capital estrangeiro, que é o padrão da maior parte dos países latino-americanos, caracterizados por formações capitalistas dependentes e que historicamente não se liberaram da dominação externa. A outra resposta só pode surgir de uma rebelião popular e radical, com orientação socialista, para que se possa ter uma América livre e independente. Mauri Antonio da Silva é professor de Sociologia da Unisul
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA NACIONAL LIVROS GUERRA CIVIL - ESTADO E TRAUMA A obra, de autoria de Luís Mir, integra as áreas de Medicina e História, ajudando a compreender os mecanismos sociais e políticos que resultaram em cinco séculos de segregação e criaram imensas populações marginalizadas. O objetivo foi apresentar ao país a “conta médica da violência”. Na primeira parte do volume, Luís Mir retrocede cinco séculos para vasculhar as origens históricas da violência brasileira. Ele constata, antes de tudo, que o estado de guerra civil é permanente, e não uma novidade das décadas recentes. Nessa travessia, o Estado tem um papel fundamental – e por isso é o ator central do ensaio. O livro defende que as elites dominantes que controlam o Estado sempre elegeram a repressão, o uso sistemático da violência como primeira solução para lidar com as desigualdades sociais. A redistribuição de renda – que poderia diminuir o fosso entre ricos e pobres, entre a elite e os segregados – nunca foi considerada uma alternativa viável pelos donos do poder. O livro, editado pela Geração Editorial, tem 962 páginas e custa R$ 79. Mais informações: www.geracaobooks.com.br CAMPANHA NACIONAL CONTRA O RACISMO Quarenta organizações nãogovernamentais (ONGs), sob a coordenação do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), lançaram a campanha nacional “Onde você guarda o seu racismo?”, dia 14, no Rio de Janeiro. O objetivo é estimular as pessoas a identificar seu próprio preconceito para livrar-se dele. Em uma pesquisa nacional, 87% dos brasileiros disseram que há racismo no país, mas apenas 4% admitem que têm esse sentimento. A campanha vem sendo elaborada
há três anos por esde grupo de entidades reunidas na iniciativa chamada Diálogos contra o Racismo. Mais informações: www.dialogoscontraoracismo.org.br PORTAL LITERAFRO O portal é dedicado ao estudo da presença dos descendentes dos escravos africanos no Brasil e suas contribuições para a formação da Literatura Afro-brasileira. A página eletrônica é o resultado do trabalho de Eduardo de Assis Duarte e Eliane Amarante de Mendonça Mendes, professores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mais informações: www.letras.ufmg.br/literafro
AMAZONAS 4º FÓRUM SOCIAL PAN-AMAZÔNICO 18 a 22 de janeiro de 2005 O Fórum Social Pan-Amazônico é uma manifestação, em escala regional, do Fórum Social Mundial, envolvendo movimentos populares, organizações indígenas, sindicatos de trabalhadores urbanos e rurais, organismos eclesiais e entidades ambientalistas, entre muitos outros, com finalidade de fortalecer alianças e a solidariedade entre os povos da Pan Amazônia tendo em vista estabelecer “Uma outra Amazônia possível”. Serão realizadas conferências, oficinas, seminários e feiras solidárias, congregando povos da Pan Amazônia de diferentes movimentos e segmentos, em busca de alternativas aos desafios impostos pelo grande capital e pela ordem econômica mundial e seus reflexos sobre a região. As entidades organizadoras do Fórum estimam contar com cerca de 10 mil participantes. Local: Av. General Rodrigo Octávio Jordão Ramos, 3000, Coroado 1º, Manaus Mais informações: (92) 231-1772 www.ivforumpan.com.br
FÓRUM SOCIAL DAS MIGRAÇÕES 23 a 25 de janeiro de 2005 Promovido por pastorais sociais, universidades, movimentos sociais, entidades e centros de estudo e pesquisa, em parceira com o Serviço Pastoral dos Migrantes, O Fórum terá como tema “Travessias na de$ordem Global” e pretende debater o significado dos intensos e crescentes fluxos migratórios no mundo, principalmente dos países pobres para os países ricos. Durante o encontro serão debatidos temas como: Que ordem mundial é esta, onde o capital tem livre trânsito em todo o planeta enquanto para os trabalhadores/as erguem-se muros, e legislações restritivas?; Por que essa onda crescente de xenofobia e discriminação com relação aos migrantes no mundo?; Por que se impede a livre circulação das pessoas quando não interessa e “fecha-se os olhos” quando a mão-de-obra dos migrantes é necessária e custa menos?; Por que são tão discriminados os migrantes no mundo hoje, e ao mesmo tempo são tão necessários? Local: Rua Doutor Barros Cassal, 220, Centro, Porto Alegre Mais informações: (11) 6163-7064, www.migracoes.com.br/eventos,
RIO GRANDE DO SUL ENCONTRO LATINO-AMERICANO DE JUVENTUDES JAM LATINA 16 a 24 de janeiro de 2005 A Jam é um encontro organizado com e para jovens ativistas de todo o mundo, os quais convivem por uma semana para trocar experiências, valores, metodologias de organização, projetos e ações sociais, num local afastado de seu cotidiano e em contato com a natureza. O nome Jam foi inspirado no encontro de diversos músicos que se reuniam para fazer uma música sem ensaio, em que no final tudo se acertava, pois outras formas de linguagem e comunicação se revelavam, transformando o encontro num momento sublime de inspiração, resultado e potência. Na Jam ocorre algo semelhante – são permitidas formas plurais de diálogo, aprendizado, compreensão das diferenças e das similaridades para valorizar e celebrar a diversidade humana. A participa-
ção é gratuita. A seleção dos participantes será realizada de acordo com o histórico de atuação de cada candidato. A inscrição deve ser feita pela internet. Local: Rincão Gaia, km 210 da BR-290 (à 123 km de Porto Alegre), Pântano Grande Mais informações: www.tiglobal.org/jamlatina
SÃO PAULO MIL E UMA HISTÓRIAS Até 9 de janeiro de 2005, de terça a domingo, das 10h às 18h A exposição mostra 150 trabalhos de Gerda Bretani, uma das maiores desenhistas brasileiras. O destaque é um conjunto de 36 desenhos a bico-de-pena de bichos do Museu de Zoologia, feitos em 1961, e o grupo de “Máquinas”, do final da década de 60, que enfoca a supremacia da tecnologia sobre o homem. Haverá um espaço reservado para leitura de livros de histórias, escritos e ilustrados pela artista, vitrines com fotografias, documentos e informações
biográficas e um conjunto de desenhos coloridos de lagartos Local: Pinacoteca do Estado de São Paulo, Praça da Luz, 2, São Paulo Mais informações: (11) 3229- 9844 SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE A FORMAÇÃO DE QUADROS 20 a 22 de janeiro de 2005 Atividade organizada pela Campanha contra a Área de Livre Comércio das Américas, a dívida externa e a militarização com o objetivo de criar um trabalho permanente de formação. A campanha é integrada por diversas organizações sociais brasileiras, entre elas a União Nacional dos Estudantes (UNE), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Local: Escola Nacional Florestan Fernandes, Rua Poá, 1140, Guararema Mais informações: www.jubileubrasil.org.br
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CULTURA
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ENSAIO
Na batalha, armado de uma câmera Fernanda Campagnucci, da Redação
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ensaio fotográfico Vidas SemTeto é mais do que um olhar através das lentes de um fotógrafo. É, sobretudo, o ponto de vista de quem vive, de quem está diretamente envolvido na luta por moradia. Anderson Barbosa, que atua no Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), também registra, em seu ensaio, a luta diária do Movimento dos Moradores da Região Central (MMRC) e do Comunas Urbanas. Barbosa nasceu em Cruzeiro, interior de São Paulo, mas está na capital há 5 anos. Antes de retratar os sem-teto, com quem vive, tinha participado do movimento anarcopunk e cobria manifestações anticapitalismo e antiglobalização, o que despertou seu interesse pelo fotojornalismo. A paixão pela fotografia surgiu com o trabalho do padrasto, com quem registrava casamentos e aniversários. Foi ele quem lhe deu a primeira câmera e, depois de 6 anos aprendendo na prática diária, ele faz, agora, um curso de fotografia. “Não é só aprender a técnica, é também educar seu olhar para a foto que você quer, criar uma autonomia para esse olhar sobre as coisas”, explica. Morando com os sem-teto desde 2002, e participando dos movimentos por moradia desde então, Barbosa pôde engajar-se cada vez mais na fotografia social. A primeira vez que enfrentou a polícia com o MSTC, naquele ano, fotografava a reocupação de um prédio na Rua Ana Cintra, na região central da cidade de São Paulo, com o Centro de Mídia Independente. Para Anderson Barbosa, a polícia não o vê como sem-teto, e ele se incomoda com o tratamento diferenciado: “É triste ver meus companheiros apanhando da polícia”, lamenta. O fotógrafo diz, ainda, que apesar do seu profissionalismo, não está à parte da situação.
Fotos: Anderson Barbosa
O dia-a-dia dos sem-teto visto através das lentes de um fotógrafo envolvido na luta por moradia
Crianças brincando dentro de barraco na ocupação da Av. Prestes Maia – MSTC/2004 Criança observa chegada da polícia no dia da reintegração de posse, na zona norte – Comunas Urbanas/2004
Reintegração de posse na zona norte – Comunas Urbanas/2004 Construção de barracos após reintegração do Comunas Urbanas – Comunas Urbanas/2004
MEMÓRIA “Posso não apanhar, mas se tiver reintegração de posse, eu também vou para a rua”, afirma. Foi na Rua Ana Cintra que tirou a foto que considera a mais marcante em seu trabalho – uma menina com a irmã no colo (veja foto em preto e branco). Mesmo sem ter o referencial de qualquer fotógrafo que retratasse a vida dos sem-teto, Barbosa se sensibilizou com as situações que presenciava no movimento. “Eu me espelhava no que via acontecer no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os movimentos por moradia nunca se preocuparam em contar a própria história”, diz. Decidiu, então, abraçar a causa dos sem-teto. Anderson Barbosa colabora com o Brasil de Fato desde maio de 2003, e foi no jornal onde publicou sua primeira foto. Colaborou, ainda, com as revistas Sem Fronteiras e Viração, além de publicações dos movimentos e da venda de fotos avulsas para jornais diários como A Folha de S. Paulo e o Diário de S. Paulo. Vidas Sem-Teto é seu primeiro ensaio. O fotógrafo pretende montar uma exposição sobre os movimentos dos sem-teto, o que depende da captação de recursos. Por enquanto, segue retratando a trajetória do MSTC e de outros movimentos de São Paulo. “A idéia é mostrar a luta de todos os sem-teto, independentemente do movimento a que pertençam. Quero continuar fazendo contato com outros, não vou me restringir ao MSTC. Cada dia surge algo diferente, a história não pára”, conta Anderson Barbosa, cujos planos incluem um livro fotográfico sobre o tema.
Menina carrega irmã no colo em reintegração de posse, em 2004, foto marcante no trabalho do fotógrafo
Retirada dos móveis durante reintegração de posse na zona norte – Comunas Urbanas/2004
Reintegração de posse no Centro – MSTC/2004
Almoço comunitário no acampamento – MSTC/2004
Protesto contra a falta de políticas habitacionais – MSTC/2003
Acampamento após reintegração de posse no Centro, num dia de chuva – MSTC/2004
Cozinha comunitária durante os primeiros dias de ocupação – Rua Rego Freitas – MSTC/2004
Reintegração de posse de ocupação no Centro – MSTC/2004