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Ano 2 • Número 96

R$ 2,00 São Paulo • De 30 de dezembro de 2004 a 5 de janeiro de 2005

Daniel Garcia/AE/AE

Contra o egoísmo, a solidariedade Para o teólogo Leonardo Boff, os ditames do mercado isolam o homem, que precisa recuperar valores como cooperação e paz

S

Órfãos de Arafat, palestinos mantêm luta palestinos, promovida pelo líder israelense Ariel Sharon. E denuncia a intervenção estadunidense no Oriente Médio: “A guerra permanente de Sharon é um elemento da guerra permanente de Bush. Por que este a deteria?” Pág. 9

Ferréz: a voz da periferia e do hip hop

América Latina freia avanço de neoliberalismo

O escritor e rapper Ferréz prepara mais uma obra, a partir do cotidiano da periferia. Desta vez, junto com outros “escritores marginais”. O autor de Capão Pecado e Manual Prático do Ódio fala da importância dos 20 anos de movimento hip hop e espera que a produção da periferia conquiste seu espaço nas escolas. Pág. 16

Na América Latina, o espírito da revolução avança, na mesma medida que retrocede a dominação neoliberal. É o que afirma a cientista política chilena Marta Harnecker. A luta, diz, não é fácil, mas “o revolucionário é aquele que sabe que não tem força, mas se coloca de forma a criar as condições para a mudança”. Pág. 11

As vitórias das quebradeiras de coco babaçu Há uns 20 anos, ou as quebradeiras de coco brigavam contra a derrubada e a queima das palmeiras, ou morriam. Elas lutaram, se organizaram e atingiram seus objetivos. Não foi fácil, porque a maior parte dos babaçuais pertence a grandes fazendas, cujos donos cobravam para permitir a coleta, ou barravam a entrada das quebradeiras. Hoje, a lei garante acesso ao coco em várias localidades, e proíbe derrubadas, cortes de cachos e uso de herbicidas. Pág. 13

Maringoni

Com a morte de Arafat, os palestinos se sentiram órfãos, mas provaram que estão prontos para assumir a responsabilidade política para construir um Estado. É o que assegura o ativista israelense Michael Warschawski. Ele condena a política de extermínio dos

dores”, diz. Segundo Boff, Lula, na eleição, representava essa mística da solidariedade, mas, “se houve esperança no presidente, faltou-lhe ousadia para o novo”. O teólogo condena a política econômica do governo, que mantém a lógica perversa do capital. Para que ocorram as mudanças, salienta, é preciso que Lula valorize a luta do povo. “Embora dominado e humilhado, há no povo espaços de sonho, de liberdade, de práticas solidárias, que permitem vislumbrar uma forma diferente de organizar a vida”, conclui. Pág. 8

Continua o desmatamento na Amazônia

Bush espalha Vietnãs pelo mundo

Quase 24 mil quilômetros quadrados da floresta foram desmatados, de agosto de 2002 a agosto de 2003. A devastação ocorre nas áreas de maior destruição. O geógrafo Aziz Ab’Saber, da USP, alerta para as conseqüências ambientais e sociais do desmatamento. E defende um desenvolvimento baseado em projetos auto-sustentáveis dos povos da floresta. Pág. 7

O que esperar de um segundo mandato de George W. Bush? Mais quatro anos de Vietnãs pelo mundo, afirma a médica Aleida Guevara. Em análise sobre o panorama econômico e político mundial, Aleida ressalta a importância das mobilizações sociais e de governos como o cubano e o venezuelano para combater a política de guerra imposta pelo presidente estadunidense. Pág. 10

Muhammed Muheisen/AP/AE

Menino em situação de rua, deitado em frente à decoração natalina do BankBoston, na Avenida Paulista, em São Paulo

uperar a lógica dominante, que se apóia no mercado e na acumulação do capital, substituindo-a por um sistema mais participativo e solidário, no qual predominem a paz e a democracia. Utopia? Sim, pois são anseios que nunca vão se realizar plenamente, embora fundamentais, assegura o teólogo Leonardo Boff, ensinando que os sonhos libertam o homem, obrigam-no a caminhar e a buscar novas formas de democracia e de paz. “São como as estrelas. Nunca podemos alcançá-las, mas elas iluminam as noites e orientam os navega-

Para socióloga, superavit gera violência Pág. 6

Governo sem política indigenista Pág. 14

Educar para conviver com o semi-árido

Palestina participa das eleições municipais na cidade de Jericó, Cisjordânia, em 23 de dezembro de 2004

E mais: PEDAGOGIA DO OPRIMIDO – O professor Moacir Gadotti defende um resgate das idéias de Paulo Freire de modo a fornecer um caráter transformador ao ensino. Pág. 3 TRABALHO – João José Sady, advogado, denuncia a extinção dos dissídios coletivos. Com a mudança, a Justiça não pode auxiliar o trabalhador nas negociações com o patrão. Pág. 12

O problema do semi-árido é a indústria da seca, que mantém a miséria da região e um tipo de ensino incompatível com a realidade local. Há alternativas para oferecer desenvolvimento sustentável, mas a escola deve parar de fabricar pessoas para a indústria da seca. Pág. 3

Agronegócio amplia exclusão no campo Em vez de seguir as recomendações do Plano Nacional da Reforma Agrária, o governo está dando prioridade a um modelo concentrador de renda e de terra. A avaliação é do economista Guilherme Delgado, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Um estudo da Universidade Estadual Paulista comprova essa tese. Em Ribeirão Preto, a monocultura da cana empobrece o trabalhador e expulsa o pequeno agricultor do campo. Págs. 4 e 5


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De 30 de dezembro de 2004 a 5 de janeiro de 2005

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, 5555 Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Fábio Carli • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Dafne Melo e Fernanda Campagnucci 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

NOSSA OPINIÃO

A quem interessa a atual politica econômica?

E

stamos terminando o ano de 2004. Um balanço da economia brasileira neste ano que passou pode ser visto de vários ângulos. Cada um fará sua análise, de acordo com seus interesses de classe. Mas certamente 2004 serviu para deixar mais clara a natureza da política econômica e mostrar a quais setores da sociedade ela satisfaz. As análises de economistas das mais diferentes vertentes ideológicas convergem todas para o quadro de continuidade da política econômica neoliberal do governo Fernando Henrique Cardoso. Isso ja foi afirmado pelo próprio ministro da Fazenda, Antonio Palocci, que aliás mantém os mesmos três diretores dos tempos de FHC; por Delfim Neto; pela revista Primeira Leitura, porta-voz dos tucanos; pelos ex-ministros Mendonça de Barros e Cristóvam Buarque. A atual política econômica está baseada fundamentalmente em altas taxas de juros, elevado superavit primário e estímulo às exportações. Tudo justificado pela necessidade de controlar a inflação, fazer a economia crescer e honrar os contratos com a dívida interna e externa. Resultado: a inflação se manteve estável, ao redor dos 7%. A economia voltou a crescer, porém, dentro da lógica cíclica natural. O governo transferiu dos cofres públicos ao redor de R$ 90 bilhões, recolhidos em

impostos para pagamento de juros da dívida interna – abocanhada pelos bancos e por não mais de 8 mil pessoas físicas e jurídicas, especuladores do mercado financeiro. O superavit da balança comercial atingiu 30 bilhões de dólares, que voltaram ao exterior para pagar a dívida externa, uma vez que as reservas não crescem – nem as importações de máquinas. Os bancos continuam aplicando taxas de juros aos comerciantes e consumidores que são um atentado ao capitalismo. Com inflação de 7% ao ano, o crédito ao consumidor e os cartões de crédito chegam a cobrar 144% de juros ao ano. Ou seja, os bancos jamais ganharam tanto dinheiro como em 2004; assim como as grandes empresas exportadoras. Portanto, o setor financeiro, as transnacionais e as empresas que se dedicam à exportação são os que estão ganhando dinheiro, satisfeitas com essa política econômica. E por isso a chamada grande imprensa, sempre servil aos grupos econômicos anunciantes, apóia tanto tal política. Mas e os trabalhadores? E a ampla maioria da sociedade brasileira? Essas classes sociais continuam amargando elevadas taxas de desemprego. Foi criado 1, 3 milhão de vagas; em contrapartida, entra-

FALA ZÉ

ram no mercado mais dois milhões de jovens. A renda dos que vivem de salário continua caindo e a parte do salário na renda nacional nunca foi tão baixa, ao redor de 30%. O salário-mínimo, mesmo se aumentar para R$ 300 reais (só) em maio, está longe da promessa de dobrar seu poder aquisitivo. O mercado consumidor interno continua restrito. As montadoras de veículos aumentaram a produção em 15%, mas o mercado interno continua vendendo apenas 1, 5 milhão de veículos, há exatamente dez anos. O agronegócio aumenta seus lucros nas exportações, mas pouco. E a indústria de tratores, que chegou a vender 65 mil tratores nos anos entre 1975 e 1980, este ano vendeu apenas 36 mil unidades! Durante 2004 multiplicaram-se manifestos de economistas, juristas, entidades de classe, bispos. Até o vice-presidente da República pediu insistentemente para mudar essa política. Mas o Palácio está convencido de que está certo. Quem anda no meio do povo, e não apenas no Congresso Nacional, ou em altas rodas de Brasília ou de Washington, sabe que a situação de pobreza e a desigualdade social continua se agravando. E que nada mudou na vida da população. Não custa lembrar: quem semeia ventos, colhe tempestade! OHI

CARTAS AOS LEITORES

Em defesa da imprensa independente São Paulo, 29 de dezembro de 2004 Caros amigos e amigas Durante todo o ano de 2002, intelectuais, artistas, jornalistas e representantes de movimentos sociais somaram forças em nome de um projeto político e editorial. A idéia era construir um novo jornal que ajudasse a veicular informações não divulgadas ou noticiadas de forma deturpada pela mídia tradicional. A publicação também teria a missão de contribuir para a formação da militância social e da opinião pública em geral. Assim nasceu o Brasil de Fato. Seu ato de lançamento se transformou numa grande festa com a presença de mais de 7 mil militantes sociais, durante o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, em 2003. Para tocar o jornal, foi montada uma equipe de jornalistas comprometidos com o projeto. E todos fomos à luta. Nesses dois anos, o jornal tem sobrevivido graças a uma grande disposição de transpor os obstáculos que qualquer veículo da imprensa independente enfrenta, incluindo boicotes de todo tipo. Apesar de tudo, estamos resistindo! Mas, neste momento, estamos preci-

sando de apoio extra para driblar as dificuldades resultantes da concentração do poder econômico e do aumento dos custos de produção do jornal. O Brasil de Fato depende da valiosa contribuição de seus assinantes. Só assim vamos manter um veículo de imprensa independente e de esquerda. Mesmo elogiado por todos, tanto por sua linguagem quanto por sua linha editorial, o Brasil de Fato precisa aumentar o número de assinaturas para seguir adiante. Por isso, apelamos para sua consciência e seu compromisso pessoal. Se você ainda não é assinante, faça a sua assinatura. Se é assinante, conquiste mais uma assinatura com um(a) amigo(a). Se você é vinculado(a) a algum sindicato ou movimento, coloque nosso pedido na pauta da reunião da diretoria, para que a instituição faça assinaturas coletivas. Contamos com seu apoio. Ou melhor: a única alternativa que nos resta é o seu apoio. Atenciosamente Conselho Editorial do Brasil de Fato

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815

CRÔNICA

Utopias da Fé e Realidades da Política Marcelo Barros As comemorações do Natal nos recordam: Jesus nasceu pobre em uma estrebaria e, recém-nascido, precisou fugir da perseguição política de Herodes. Os pais da Igreja diziam que o presépio de Belém é da mesma madeira da cruz, na qual Jesus morreu como prisioneiro político. Por isso, o Natal não pode ser apenas uma festa romântica e sim um novo apelo a unir fé e vida, espiritualidade e preocupação com a justiça. No Brasil, o Movimento Fé e Política é não partidário e aberto a todas as pessoas que querem viver a fé na ação política e na luta parlamentar. O seu 4º Encontro Nacional, realizado nos dias 4 e 5 de dezembro de 2004, em Londrina (PR), reuniu mais de 4.500 pessoas, jovens e adultos, cristãos e crentes de outras religiões. Pela primeira vez, participou também o Movimento Evangélico Progressista (MEP), associação de evangélicos

de várias Igrejas, comprometidos com a transformação da realidade política do país. O tema do encontro foi “Utopias da fé e realidade da política”. Até tempos recentes, ninguém, consciente, queria ser considerado utópico. Utopia significava sonhos mirabolantes de quem não tem pé na terra e se refugia no irreal. O Movimento Fé e Política compreende utopia como horizonte último apontado pela fé e esperança que nos anima no caminho. Essa esperança nos ajuda a não nos conformar com as contradições da política, mas, ao mesmo tempo, não nos isolarmos, nem rompermos com companheiros que, em meio a problemas e limitações, se esforçam por transformar a realidade. Esse foi o tema da primeira mesaredonda do encontro. Os participantes também se organizaram em 14 oficinas sobre diferentes assuntos como “Patrimônio hídrico, direito

de todos”; “Os desafios da política econômica no Brasil”, “Movimentos sociais e participação no governo”; “Políticas de segurança alimentar: Fome Zero” e outros. No encontro, ficou claro que o mais importante é retomarmos as mobilizações locais e os trabalhos de base, garantindo a caminhada cotidiana que dá raiz e sentido a esses encontros nacionais. Eduardo Galeano conta que um lavrador comentou com um companheiro: – A utopia me aparece sempre no horizonte e quero alcançá-la. Mas, se eu ando dois passos, ela também se afasta dois passos. Se avanço dez, ela também se afasta dez. Para que, então, serve a utopia? O companheiro respondeu: – Para fazê-lo caminhar. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 24 livros, entre os quais o romance A Festa do Pastor, da Editora Rede

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NACIONAL EDUCAÇÃO

Aprendendo a conviver com a seca Ensino não convencional, baseado nas condições locais, mostra à população que é possível viver no semi-árido com essa condição de vítima, entidades começaram a pesquisar e a criar novas tecnologias – as cisternas são exemplo disso – para possibilitar a convivência com o semiárido, de forma auto-sustentável. No entanto, apesar de tecnologias alternativas mostrarem aos lavradores que é possível viver na região, a escola continua fabricando pessoas para a indústria da seca.

Agência Brasil

Luís Brasilino enviado especial a Teresina (PI)

N

o semi-árido brasileiro, a escola continua educando para expulsar. A constatação é da cientista social Sueli Rodrigues, mestranda em desenvolvimento e meio ambiente de Teresina (PI). Ela conta o que viu um mapa dos ecossistemas do país pregado numa sala de aula, no interior de seu Estado: “Na região do semi-árido, os únicos seres vivos que apareciam eram um mandacaru, um tatu-bola e um bode. As demais áreas eram todas verdes”, descreve. Este é apenas um dos muitos problemas que a população local enfrenta para conviver com o semi-árido e provar, inclusive a si mesma, que a região é economicamente sustentável. O pai de Fernando Gomes da Costa morreu logo que ele concluiu o ensino fundamental. Ele tem um terreno de 13 hectares em Cachoeira de Pajeú (MG), numa das regiões mais pobres do país, o Vale do Jequitinhonha, onde mora com a mãe e os oito irmãos – todos mais novos. “Não podia largar minha mãe naquela situação”, relata. Por isso, ele teve que voltar para o campo e parar os estudos. Ficou um ano sem estudar e, não fosse a Escola Família Agrícola (EFA), de Bom Tempo de Itaobim (MG), estaria assim até hoje. A instituição, a 100 quilômetros de Cachoeira de Pajeú, adota, desde 2000, a pedagogia da alternância, onde os alunos passam 15 dias internados na escola e 15 em casa. Assim, Costa pôde, em 2002, iniciar o ensino médio e, ao mesmo tempo, ajudar sua família, a qual “não pode

COMEÇO

Educação voltada para população do semi-árido brasileiro possibilita convivência com a seca

abandonar em hipótese alguma”. Na aula, ele aprende, além das matérias normais como matemática, geografia e português, alternativas para aprender a conviver com a seca. São técnicas como o plantio em curva de nível, barragem subterrânea, irrigação de gotejamento e a criação de animais e frutas adaptados ao clima do semi-árido.

APRENDIZADO Sueli Rodrigues, que também é bacharel em direito e foi a facilitadora da sala temática “Educação

para Convivência com o SemiÁrido”, no 5º Encontro Nacional da Articulação do Semi-Árido (realizado entre os dias 16 e 19 de novembro de 2004, em Teresina), explica que a proposta de educação para conviver com o semi-árido é uma espécie de metodologia para adaptar o ensino às especificidades do ambiente local. Tanto ela, quanto Costa, compartilham da opinião de que a seca não é um problema, e sim uma característica da região onde moram. Segundo Sueli, a questão do se-

mi-árido só se tornou um problema a partir da indústria da seca. “Até 1877, quando o pólo de desenvolvimento do Brasil se deslocou do Norte para o Sul, não temos registro da seca como um problema”, afirma. Ela explica que, naquele momento, o grande “achado” foi transformar a seca num sumidouro de dinheiro público. Assim, o fenômeno climático foi transformado em problema, não na ótica natural de clima, mas sócio-político-cultural – a crise econômica regional. Recentemente, inconformadas

Assim, por exemplo, o livro didático adotado nas escolas locais mostram frutas como a maçã e a uva, não o umbu, típico da região. “Uma das primeiras frases para ensinar a ler é ‘Ivo viu a uva’. Aí, você fica pensando, ‘que diabo é mesmo uma uva?”, recorda Sueli. Ela conta que o jumento, um meio de transporte usado todos os dias pelos sertanejos, também não está nos livros. Mas o metrô está. É importante conhecer o metrô, argumenta, pois a idéia não é impedir o estudante de ver o mundo, mas enxergá-lo a partir da sua realidade. O resultado do sistema adotado é uma educação pela “realidade da falta”, ou seja, embute a concepção de que é preciso sair do semi-árido para encontrar aquilo que não tem no seu dia-a-dia. Costa conta que muita coisa mudou na sua vida quando entrou na EFA. “Antes, tinha um projeto de terminar o ensino médio e procurar um emprego fora da minha cidade. Isso não existe mais na minha cabeça”, afirma. A EFA desenvolveu sua auto-estima e sua consciência crítica. “A escola pública tradicional não faria isso”, garante.

João Alexandre Peschanski da Redação O que se deve recuperar do pensamento do educador Paulo Freire é sua orientação para que não se descole a utopia da ação prática no cotidiano. Para Moacir Gadotti, diretor do Instituto Paulo Freire, é isso que faz com que a educação seja transformadora e objetive a mudança do mundo. O educador diz que não se pode considerar o pensamento de Freire um dogma: é preciso reinventá-lo, adaptando-o às condições presentes. O Instituto desenvolve pesquisas e trabalhos para difundir o pensamento de Freire em diversos setores da sociedade. Com o apoio do governo federal, no quadro do programa social Fome Zero, participa de projetos de alfabetização de dezenas de milhares de pessoas. No 5º Fórum Social Mundial, de Porto Alegre (RS), de 26 a 31 de janeiro, a entidade deve realizar um balanço de suas atividades e discutir a proposta de uma Universidade Popular dos Movimentos Sociais, com o objetivo de unir intelectuais comprometidos com a mudança social e lideranças de organizações. Brasil de Fato – Paulo Freire faleceu em 12 de maio de 1997. Qual é o seu principal legado? Moacir Gadotti – Ele faleceu há 7 anos e meio, mas continua presente, por suas obras e, sobretudo, por sua crença. O importante em Paulo Freire não são tanto os livros, mas o fato de ele despertar nas pessoas a crença de que tinham a capacidade de mudar o mundo. É uma fé sem barreiras, um despertar para a possibilidade de mudar o mundo. Isso ele mostrava por seu comportamento e em seus livros. A pedagogia de Paulo Freire está presente em movimentos sociais e educadores populares, mais do que em cen-

Divulgação

Freire representa a luta pela pedagogia da transformação Quem é Professor de Pedagogia na Universidade de São Paulo (USP), Moacir Gadotti é diretor do Instituto Paulo Freire. Foi assessor técnico da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo (1983-1984) e chefe do gabinete da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de São Paulo (1989-1990), na gestão de Paulo Freire como secretário. Entre outros, é autor de A educação contra a educação (1981), Convite à leitura de Paulo Freire (1988), Pedagogia da terra (2000) e Um legado de esperança (2001).

tros de ensino acadêmicos, pois é um pensamento revolucionário, transformador e lutador. As instituições, principalmente as universitárias, procuram esconder qualquer aspecto pedagógico mais comprometido com a mudança do mundo. BF – Em seus livros, Freire fala em educação como um processo, algo que deve ser contextualizado e que tenha referências na cultura do povo que se educa. Para ele, isso é diferente de uma educação puramente depositária, em que o professor “deposita” informações em alunos. Da teoria para a prática, como se faz pedagogia de um modo freireano? Gadotti – Paulo Freire dizia que queria ser reinventado. Em cada contexto, em cada período, os princípios precisam ser estabelecidos com a leitura do mundo. Não se pode descolar princípios e utopia de leitura do mundo e do cotidiano. É preciso sonhar com outro mundo, e manter a realidade em vista. É preciso ter relação dialética entre dois campos: sonho e realidade; utopia e

Não se pode descolar princípios e utopia . É preciso sonhar com outro mundo e manter a realidade em vista cotidianidade. A teoria de Paulo Freire continua válida por isso, pois é meta-teoria, que vai além de momento histórico. Em cada contexto, pode servir de instrumento de luta. Hoje, mais do que nunca, pois vivemos uma era de fundamentalismo, e ele prega diálogo. BF – Existe então um método de ensino específico para sem-terra, indígenas, operários? No fundo, existe um método para cada grupo social? Gadotti – O método não se dissocia da teoria do conhecimento. O método surge a partir do respeito ao conhecimento de cultura da população, a partir do que as pessoas sabem. O que cada comunidade sabe, se-

ja uma comunidade quilombola ou uma sala de aula... É preciso respeitar isso. Professor aprende ao ensinar e aluno ensina ao aprender. Em cada contexto novo, há presença dessa filosofia da educação que, se bem entendida, pode levar à emancipação. BF – O que é uma educação que emancipa? Gadotti – Não é só conscientizar, não é só razão, mas é ligada a organização, mediação. Emancipação é integral ou não existe. Não pode ser setorializada. Não posso ser emancipado economicamente, e não o ser culturalmente. Não pode falar em uma dimensão e não ter a outra. A emancipação se dá em todas as dimensões: econômica, educativa, social e cultural. É acesso à vida digna, que é uma palavra forte, que representa o bem viver, a realização plena. Pela educação, está-se sempre em processo de emancipação. BF – O que é uma educação que mantém a opressão? Gadotti – Não se deve dicoto-

mizar a realidade. Mesmo em opressão, há emancipação; e emancipação pode ser opressora. Existem situações de opressão ligadas à discriminação, do pobre, do que fala diferente, da etnia. Há ambientes que oprimem, situações que oprimem, relações que oprimem. A análise de Paulo Freire mostra diferentes tipos de opressão. Mas o próprio opressor é oprimido e precisa ser libertado. Em cada momento de sociedade, na convivência, nas relações sociais, há momentos de opressão que precisam ser analisados e superados. É preciso fazer a análise do contexto e da realidade para detectar espaços de opressão e orientar para a libertação. BF – O Instituto integra o Conselho Organizador do Fórum Social Mundial. Para a edição de 2005 do evento, qual vai ser o eixo de discussão da entidade? Gadotti – Pensamos uma série de atividades importantíssimas, baseadas no lema: “Outro mundo é possível, sem tomar o poder”. Marca uma nova discussão dentro do conceito de revolução. Não é mais assaltar o Estado para fazer as mudanças. É preciso desenvolver outros meios. Além disso, vamos promover a discussão sobre a Universidade Popular dos Movimentos Sociais, que já tem sido analisada há dois anos. Quer-se formar elos mais fortes entre lideranças de movimentos sociais e os intelectuais comprometidos com a mudança. Discute-se a necessidade de teoria de movimentos sociais e as iniciativas concretas do outro mundo possível. Estamos preocupados com o Fórum, pois este depende de alternativas que propõe. É preciso demonstrar que o outro mundo é realmente possível.


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MONOCULTURA

Modelo agrícola atrasa o país

Luiz Antonio Magalhães Veja ... A revista Veja – semanário mais vendido do Brasil – está com uma nova postura em relação ao governo Lula. Desde o final de 2004, quando foram divulgados os números do crescimento da economia e pesquisas atestando a alta popularidade do presidente, a revista vem publicando reportagens elogiosas ao governo. Na tradicional edição de balanço do ano, a principal reportagem política, que levava o título “Lula no rumo e no comando”, apresentava uma boa foto do presidente no manche de um avião e visualizando o “céu de brigadeiro” que ele e a revista esperam para 2005. ... continua a mesma A mudança de comportamento de Veja em relação ao governo Lula nem de longe significa que a revista tenha modificado sua linha editorial. As duas páginas seguintes aos elogios a Lula revelam o que a revista aprecia e o que rejeita no governo. “Seguro contra crises” é o título da página dupla dedicada ao ministro da Fazenda, Antonio Palocci, que aparece sereno, em seu gabinete, tendo por fundo um telão com os indicadores do... mercado financeiro! O leitor segue e a próxima página – simples, não dupla – é dedicada a “Dirceu, o ministro que encolheu”. O chefe da Casa Civil aparece em uma foto com os olhos fechados e uma expressão ridícula, acompanhado de legenda que lembra sua ligação com o inefável Waldomiro Diniz. Receita de eficácia política A tática de Veja é dividir o governo Lula em dois “times”: o do bem e o do mal. O primeiro é capitaneado por Palocci, o segundo, por Dirceu. Pouco importa que essa configuração não seja verdadeira. A revista elogia o primeiro time e ataca o segundo, mostrando aos seus leitores de que lado está. Veja vende mais de um milhão de exemplares porque trata o seu público como ele deseja ser tratado: com muitas fotos, pouco texto, e os problemas mais complexos reduzidos a raciocínios no máximo duais. Bobagem menosprezar a eficácia política da revista: semana após semana, a classe média verbaliza o que leu no domingo. Quem fala o que quer... Nos últimos dias de 2004, o sindicalista Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força Sindical, conseguiu uma façanha: passou sabão na boca do renomado jornalista Elio Gaspari, colunista da Folha de S. Paulo e O Globo. Em carta publicada na Folha, Paulinho reclamou, com razão, de uma nota da coluna de Gaspari. O jornalista criticava o fato de Paulinho, logo após a marcha pelo salário-mínimo, ter comparecido a uma audiência com o presidente Lula de bermudas, mas ter usado fraque ao se casar. ... ouve o que não quer “Que queria ele? Que eu fosse de bermuda a meu casamento e de fraque à caminhada pelo saláriomínimo?”, escreveu Paulinho. De fato, o que uma coisa tem a ver com a outra é algo que só Gaspari conseguiu captar. Na verdade, a má vontade do jornalista tem explicação no ancestral preconceito das elites brasileiras com o comportamento da “escumalha”, como o próprio Gaspari usualmente se refere ao “andar de baixo”. Dessa vez, porém, a escumalha decidiu responder. Ficou chato para o andar de cima. Geraldo melancia Na semana do Natal, os dois jornalões paulistas publicaram as grotescas fotos do governador Geraldo Alckmin (PSDB), de óculos, jogando futebol no estádio do Pacaembu. Alckmin estuda lançar-se candidato à Presidência da República e já encara uma disputa interna em seu partido. Precisa tornar seu nome mais conhecido fora de São Paulo e, pelo visto, resolveu apelar. Curiosamente, Folha de S. Paulo e O Estado de São Paulo publicaram relatos diferentes sobre o jogo entre um time do Executivo paulista contra um do Legislativo local: a Folha cravou o placar de 6 a 2 para o Executivo; no Estado, a vitória foi por 4 a 2. Os dois jornais, porém, não esconderam o fato: nem de pênalti Alckmin conseguiu marcar.

Pesquisadores mostram prejuízos decorrentes da expansão da cana em Ribeirão Preto Sílvia Buosi Cardinale de Ribeirão Preto (SP)

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lerta vindo de uma das regiões que mais despontam no cenário agroindustrial exportador. Uma pesquisa realizada com base na cidade de Guariba, na região de Ribeirão Preto, a 340 km da capital paulista, mostra que a terra do ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, cobra muito caro para sustentar um modelo de desenvolvimento historicamente predatório. Por meio de análise do cultivo da cana-de-açúcar no município, pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Jaboticabal comprovaram a saturação do modelo de expansão econômica canavieira, por meio do impacto social das chamadas “ações monopolizadoras” do setor sucroalcooleiro do Estado de São Paulo. O levantamento inédito, resultado de um trabalho de iniciação científica do estudante Cláudio Alberto de Castro, orientado por José Gilberto de Souza, foi concluído em 2002 mas só agora foi divulgado. Em sua pesquisa, Castro mostra que o Brasil pode retomar o caminho para um desenvolvimento integrado e responsável se der uma volta na história da agropecuária. E observa: o passado e o presente agroindustrial brasileiro comprovam que o campo ainda não emite sinal algum de que as políticas públicas para o setor estão revendo os erros do passado ou acompanhando os avanços globais. Ao resgatar a história da região, a pesquisa mostra a passagem da cultura do café para a da cana-deaçúcar, que representa a transição de uma monocultura para outra. O “ouro verde” (cana-de-açúcar), assim como o café, hoje promete um amplo crescimento social, principalmente apostando na exportação. Apesar de a cultura canavieira ter encontrado esteio na industrialização, a “tecnificação” do processo produtivo está exaurindo as terras, liberou o produtor de manter em suas propriedades os trabalhadores, contratando-os apenas quando necessário para o plantio, para a limpeza e para a colheita, e agora coloca em risco a própria rentabilidade econômica dos pequenos e médios agricultores. A falta de planejamento e de vontade política foi responsável por gerar em municípios como Guariba, de 35 mil habitantes, um crescente êxodo e o empobrecimento dos trabalhadores rurais, afetando toda

Flavio Cannalonga

da mídia

NACIONAL

Renato Stockler

Espelho

A substituição do trabalho manual por máquinas causa grande impacto social, pois cada uma substitui, em média, 120 trabalhadores

a economia regional. Uma máquina substitui, em média, 120 cortadores de cana, uma redução de 20% nos custos em relação ao corte manual de cana queimada. Isso representa uma alta liberação da mão-de-obra, um grande impacto social que só não é maior que o agravamento das condições de quem trabalha na colheita, uma vez que o pagamento pelo corte da cana é por produção e afeta a saúde dos cortadores. Esse comportamento, segundo a pesquisa, reduziu o nível das outras atividades locais, apesar das estatísticas da produção agrícola apontarem alta rentabilidade na indústria sucroalcooleira. A heterogeneidade tecnológica acoplada ao plantio de cana-de-açúcar, hoje parcialmente mecanizada (cerca de 30 %, segundo os próprios plantadores), não trouxe sustentabilidade econômica aos pequenos e médios produtores rurais, empobrecendo os municípios que têm, na cana, sua maior fonte de recursos.

EMPOBRECIMENTO DO SOLO A conta é ainda mais alta quando se avalia que o solo de várias regiões em que a cana se fincou por décadas está em degradação. A pesquisa conclui que os munícipes não perceberam que suas terras são sensíveis, caracterizadas por seus recursos naturais e por

Evasão fiscal é alta Na região, a evasão fiscal varia de 26% e 60%, respectivamente nos anos de 2000 e 2001, para a condição de proprietário, e de 45% e 70%, respectivamente nos mesmos anos, para a condição de domínio e posse. A legislação de 1996 determinou que o imposto fosse cobrado sobre o valor das terras nuas (VTNs), mas a ausência de acompanhamento sobre o grau de utilização da terra prejudicou a aplicação dessa nova lei. Com a promulgação do Estatuto da Terra, em 1964, foram criados o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda), que tinham o objetivo de promover a reforma agrária e a colonização de terras. Em 1970, essas duas autarquias foram fundidas no Incra, a quem coube então o cadastramento e a tributação das terras com o ITR Mas como garantir o repasse real desse recurso? Sabe-se que a produção de um município monocultor padece de uma contradição crônica: depende das variações do mercado global, dificultando a mudança da decisão dos empresários rurais de

se dedicar a uma determinada atividade. A menos que as condições de lucratividade associadas a essa cultura tornem-se vantajosas, a visão desses proprietários é de que a diversidade agrícola é muito difícil. No município de Guariba, 68 estabelecimentos rurais que trabalhavam com outros produtos agrícolas empregavam, até o período da pesquisa, 34 trabalhadores rurais. No mínimo, trata-se de um desperdício, uma vez que, no Brasil, 60 % da produção de produtos básicos como feijão, arroz, hortaliça, mandioca e pequenos animais é feita por pequenos produtores, setor que poderia gerar inúmeros empregos e integrar as pequenas famílias rurais aos mercados locais. Por falta de um plano de desenvolvimento integral para mercados regionais como esse, os novos empregos não são gerados em escala, como poderiam. E a cultura da cana-de-açúcar, apesar de demissionária, continua sendo a atividade agrícola que gera o maior número de empregos diretos no campo, em todo o Estado de São Paulo, nos últimos 25 anos. (SBC)

conseqüência de um procedimento agrícola predatório. A falta de um planejamento integrado comprometeu o ambiente e o solo. Por isso, segundo o pesquisador, a elaboração de planos diretores agrícolas sustentáveis torna-se urgente, frente inclusive às transformações tecnológicas processadas pelo setor sucroalcooleiro. No solo, o empobrecimento se dá por que, no caso de Guariba, o mínimo exigido para o plantio comercial – análise do solo, calagem, adubação, vacinação e limpeza de pastos – não é respeitado pela grande maioria das propriedades rurais. No município, apenas 54,7% dos proprietários fazem análise do solo; 67,64% fazem calagem; e 70,58% fazem adubação, ou seja, há pessoas tratando a terra como um bem infinito e mágico. Essa realidade, ressalta a análise, fragiliza a produtividade dos pequenos e médios produtores locais, favorecendo as ações monopolizadoras dos grandes grupos, que, ao submeter os pequenos proprietários às oscilações do produto no mercado, os deixa sem saída, impondolhes preços para os pagamentos dos arrendamentos. Além disso, a sujeição às nuances do mercado internacional propicia o processo regional de concentração fundiária, impedindo negociações de terra, inviabilizando a produção em condições favoráveis aos pequenos e médios produtores locais. Como exemplo, Castro lembra que em 1999 o valor da terra nua foi reduzido por conta da queda dos preços do açúcar no mercado internacional, isso numa das regiões onde o preço da terra é dos mais caros do Estado.

CONTRATOS DE GAVETA A concentração da terra, aliada à mecanização da colheita da cana, proporciona grande poder aos usineiros que impõem as regras locais, impossibilitando o fortalecimento dos pequenos produtores e a gera-

ção de empregos. O município tem uma alta concentração fundiária – 76,21% das propriedades são compostas por áreas acima de 200 ha., portanto, áreas consideradas como latifúndios pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Essas propriedades estão nas mãos de apenas 30 proprietários, a maior parte, grupos de usineiros. Ao comparar a agregação de terras por domínio e posse com agregação por proprietários, o pesquisador verificou que propriedades pequenas, de até 50 ha, pertencem a latifúndios. Isso ocorre porque a transferência de titularidade não é oficializada – ocorre a prática de contratos de gaveta, realizada pelos usineiros em função da lei da cana (Lei 3855/41), legislação do Imposto Territorial Rural e outros controles fiscais.

DISTORÇÃO Considerando que proprietários de terras de até 30 ha pagam alíquotas diferenciadas do ITR, em função da área total e do grau de utilização da terra, a pesquisa apurou que apenas 25 proprietários concentram uma área de 20.216,2 ha, representando 86,57% do total (na classificação da Câmara, o índice de Gini atingido foi de 0,814286, igual a concentração de forte a muito forte). Essa concentração denuncia uma distorção na base fundiária e fiscal do município: ao atuar sobre o número de estabelecimentos, perde-se a real dimensão dos processos de concentração fundiária no país. Assim, enquanto a agroindústria da cana permite que as usinas tendam a processar maior quantidade de cana própria do que determina a lei, consolidando a monopolização do setor, a ausência de formalização da condição de proprietário e de um sistema de atualização cadastral contribuiu com a evasão do ITR, pois o tributo é calculado em função da área e do grau de utilização da terra. O fato é agravado pelo perfil declaratório do tributo, pois o valor declarado não corresponde ao valor de mercado da terra. As bases desses dados foram constituídas a partir do cadastro do Incra junto aos produtores e à prefeitura local.

PEQUENA GUARIBA, UM MICROCOSMO NACIONAL • Área agrícola do município: 26.525,70 ha • Número de estabelecimentos rurais cadastrados: 168 • Cultura predominante: cana (93% do valor da produção agrícola local) • Culturas secundárias: soja e amendoim (0,8% do total, cultivado em áreas de reforma do canavial) • 65% da área em produção é administrada pelas usinas sob a forma de contratos de arrendamento ou parcerias. Os 35% restantes são administrados por produtores rurais proprietários, que colocam pequena extensão para arrendamento ou parceria • É elevado o número de proprietários rurais que não são produtores rurais, pois a maioria (83,58%) dos estabelecimentos está arrendada para a indústria sucroalcooleira há anos. A população trabalha quase totalmente nas lavouras, sendo que a produção canavieira é efetuada por terceiros, não pelo proprietário, o que também limita a oferta do emprego no setor rural F

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De 30 de dezembro de 2004 a 5 de janeiro de 2005

NACIONAL REFORMA AGRÁRIA

Economia repete padrão do regime militar Ausência de reforma agrária massiva oculta os lucros do agronegócio com o latifúndio improdutivo

Brasil de Fato – A esquerda vive, hoje, uma crise de paradigma e alguns setores entendem que, no Brasil, a reforma agrária não é mais uma necessidade estrutural da realidade socioeconômica. Seria apenas uma política compensatória restrita a algumas regiões. Guilherme Delgado – Isso equivale a dizer que não existe questão agrária no Brasil e que o capitalismo resolveu todos os nossos problemas. Essa tese é tão velha quanto o debate que se estabeleceu entre Delfim Neto e Celso Furtado. Delfim defendia que não existia uma questão agrária porque tudo na agricultura se resolveria com insumos, mecanização, educação, fertilizantes. O mercado resolveria o problema da economia agrária. Antes, era a direita que dizia isso com todas as letras. A novidade agora é que algumas pessoas perderam a dimensão histórica da necessidade de mudança nas relações sociais agrárias, que é a essência da reforma agrária. A questão agrária hoje é diferente, mas não é inexistente. Temos um novo padrão de desenvolvimento da economia, uma nova relação de inserção internacional, mas você continua tento uma agricultura familiar pauperizada em que três quartos dessa população plantam apenas para subsistência. Nós continuamos tendo um dos mais altos níveis de concentração fundiária, mais elevados do que o de concentração de renda. Há um desemprego aberto muito grande, até por causa do agronegócio, que não precisa de força de trabalho. Você tem uma economia política agrária em que proprietários da terra ligados ao agronegócio são os proprietários do Brasil rural. Por conta de tudo isso, temos uma questão agrária forte. Basta ir aos municípios de maior pujança do agronegócio, como no sul de Goiás ou Uberlândia, para ver que, quanto mais vigoroso o crescimento da economia, maior a desigualdade entre grandes proprietários e a agricultura familiar, os sem-terra. Se quisermos um desenvolvimento dentro de uma perspectiva de eqüidade e igualdade, isso passa necessariamente por uma política agrária de mudanças nos padrões de assimilação da agricultura familiar, fomento produtivo, enfim, medidas para a inserção dessa massa de gente que está fora da economia real. Eu não posso pensar em um modelo de desenvolvimento que, no rural, beneficia apenas 5% dos estabelecimentos e o restante fica restrito à economia de subsistência. Esse é o padrão do agronegócio. Quem pensa assim, não pensa em uma nova estrutura de produção para gerar emprego e renda.

Divulgação

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governo brasileiro está reproduzindo no campo um modelo econômico reciclado do período militar. A avaliação é do economista Guilherme Delgado, um dos principais intelectuais que elaboraram, em 2003, o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), coordenado pelo advogado Plínio de Arruda Sampaio. As propostas do plano foram levadas como sugestões para as políticas do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Para Delgado, o modelo atual de crescimento não traz desenvolvimento, pois concentra renda, terra e gera exclusão. O economista avalia que a ausência de políticas públicas massivas pela reforma agrária esconde a face perversa do agronegócio brasileiro, um modelo que se aproveita da acumulação financeira a partir do latifúndio improdutivo.

nas, é também pata de boi em áreas improdutivas, grilagem, escravidão. Essa parte atrasada está sendo escondida pela parte tecnicamente moderna e os dois estão se apropriando dos lucros. Isso não é desenvolvimento, é atraso.

João Roberto Ripper

Jorge Pereira Filho da Redação

Quem é Guilherme Delgado é economista e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Foi um dos integrantes da comissão que elaborou uma proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), sob a coordenação de Plínio de Arruda Sampaio. Delgado também compõe a Comissão Brasileira de Justiça e Paz BF – A reforma agrária seria uma aposta na expansão de nosso mercado interno, enquanto o agronegócio visa apenas o externo? Delgado – O agronegócio brasileiro tem duas grandes contradições. Primeiro, há um elemento estrutural. No caso do Brasil, trata-se de um sistema de produção em que a especulação fundiária o torna diferente. O agronegócio brasileiro não é similar ao europeu ou estadunidense porque realiza uma parte da sua acumulação por meio da renda da terra, um processo de valorização das terras improdutivas que é utilizado como um ciclo econômico. Isso só é possível porque você tem uma política fundiária frouxa. Se fosse efetiva, de acordo com os mandamentos da função social da propriedade, essa prática não seria viável.

É ilusão pensar que agronegócio é hi-tech apenas; é também pata de boi em áreas improdutivas BF – Como funciona essa acumulação por meio da renda da terra? Delgado – Se você pegar as grandes empresas do agronegócio, verá que todas têm patrimônios fundiários produtivos e improdutivos. Os improdutivos se localizam, em geral, em Estados de transição com a fronteira agrícola; e os produtivos, em regiões mais consolidadas. Essa massa de terras improdutivas controladas fora do eixo diretamente operado pelo agronegócio tem o papel de acumular riqueza fundiária que ocorre pela quantidade de terra dominada e pela valorização da terra em função do ciclo agrícola, quando aumentam os preços das commodities e as exportações. Nesse caso, o agronegócio ganha dos dois lados, com a terra produtiva e improdutiva. Só que dessa forma você inviabiliza o acesso dos não-detentores de terra, pois a propriedade se transforma em um instrumento de acumulação financeira. É o dilema do agronegócio brasileiro que, ao alavancar a especulação fun-

diária, vira um obstáculo à reforma agrária e ao desenvolvimento da agricultura familiar. Além disso, hoje o agronegócio tem o perfil de exportação clássica e foi escalado para gerar um saldo expressivo na balança comercial. Isso torna o problema mais difícil, pois a macroeconomia elegeu o agronegócio para resolver o problema da conta corrente e está fornecendo os instrumentos da manutenção do status quo. BF – Qual o reflexo disso na vida do camponês? Delgado – A estratégia do agronegócio é a da concentração fundiária. Ora, há cada vez mais gente sem trabalho e cada vez mais terras concentradas. Tampouco há uma política de reforma agrária que viabilize uma massiva integração dessas pessoas na economia real. Nós precisamos transformar o setor de subsistência em produção de excedentes sob o controle de política agrária. Se não incorporarmos essa massa de gente na economia real e deixarmos que apenas os grandes produtores se apropriem dos ganhos do crescimento, estamos repetindo o padrão de acumulação da economia militar, se é que a economia vai continuar a crescer. BF – A grande imprensa diz que a renda do agronegócio está levando prosperidade ao campo brasileiro. Delgado – Isso é outra meia verdade. Em geral, esses áulicos do regime não dizem completas inverdades. No campo, melhorou um pouco a situação da renda por conta do surgimento da previdência rural. Mas para a massa de população em idade ativa, que não tem essa válvula de escape, a solução é o mercado de trabalho, extremamente escasso. Há estudos mostrando que o agronegócio é um dos setores da economia que menos geram empregos em relação ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). As grandes fazendas de soja, milho, trigo, por exemplo, têm uma enormidade de formas de mecanização cada vez mais operantes e funcionam com densidade de trabalho muito baixa. Essa mesma operação, se tivesse outra organização, poderia ter outro resultado. Mas

Agronegócio faz aumentar a desigualdade social no campo

se seu modo de produção está baseado na presença de um proprietário, um tratorista apenas, isso tem um efeito de distribuição de renda muito perverso. É falso também que sobra emprego na zona rural. BF – O senhor participou ativamente do grupo coordenado por Plinio de Arruda Sampaio para elaborar uma proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Qual o balanço que faz das políticas implementadas pelo o governo para a questão? Delgado – Eu vou pegar três pontos fundamentais recomendados ao governo, mas que foram absolutamente abandonados. O primeiro diz respeito à revisão dos índices de produtividade, que permite ao poder público realizar a desapropriação. Os atuais índices estão baseados em parâmetros do Censo de 1970; atualizá-los é uma obrigação, mas nada foi feito. Isso depende de portaria interministerial, mas conflita com interesses de latifundiários. Segunda recomendação: a legislação que permite, hoje, que o latifundiário realize lucros extraordinários com a terra, ao indexar a terra à Taxa Referencial (TR) na desapropriação. Tudo isso gera um ônus incalculável para fazer a reforma agrária e um prêmio ao latifúndio. Para mudar, é preciso também um decreto. A terceira recomendação trata das medidas de caráter inovador, na área de comercialização, o chamado Plano de Safra, que precisa ter recursos para suportar as vendas. Reforma agrária não é apenas o processo físico de desapropriação, mas a formulação de políticas de acesso técnico e crédito para ter capacidade de inserção dos assentados e pequenos agricultores no mercado. Sem mecanismos de apoio à comercialização, os assentados e pequenos agricultores ficam na mão do agronegócio e acabam sendo espoliados de outra forma. São questões cruciais que poderiam ser resolvidas por portarias, mas estão paralisadas há um ano. BF – A equipe que fez o PNRA teve retorno do Ministério do Desenvolvimento Agrário? Delgado – Eles garantiram que já encaminharam as proposições, mas há resistências, pois é necessário ferir interesses. Certamente, você terá contra si a bancada ruralista e o agronegócio, que vive da especulação imobiliária, grupos que não querem que se mexa nessas questões porque vivem da improdutividade e da renda da terra. É ilusão pensar que agronegócio é hi-tech ape-

BF – O programa Fome Zero não iria impulsionar a produção dos pequenos agricultores? Delgado – Na realidade, você tem experimentos, alguns positivos, como o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar. A verba da merenda escolar em alguns municípios está destinada apenas para a agricultura familiar. Há experimentos em relação a políticas de preços mínimos. Não podemos dizer que não há nada positivo, seria fazer algo ao estilo da Folha de S. Paulo. Mas precisamos de uma ação de maior envergadura. O Brasil é um continente. Você não pode fazer experimentos pontuais, municipais. Reclamo da falta de for-

Quando as pessoas enxergam os problemas da violência urbana, mas não apontam para o problema no modelo agrário, eu fico surpreso mulação de uma política nacional massiva de fomento da agricultura familiar e reforma agrária. Um projeto local pode ser positivo, mas afeta um público pequeno e está sujeito às mudanças. BF – Até que ponto é possível fazer isso sem mexer na política econômica? Delgado – A política de exportar stricto sensu não é incompatível com a política de desenvolvimento, é preciso acabar com essa dicotomia. Agora, é incompatível exportar excluindo uma fatia enorme da agricultura, viabilizando apenas o agronegócio. Quando você tem uma política de exportar que mantém restrita a demanda interna, aí, sim, ela se torna inimiga não apenas do desenvolvimento agrário, mas do desenvolvimento geral. Se você exporta R$ 100, e essa renda for distribuída por milhares de produtores, vamos fomentar demanda interna. Agora, se exportamos R$ 100, e eles ficam na mão de dois ou três latifundiários, que vão comprar carros, terra, o efeito renda é de concentração. A exportação não é inimiga da agricultura familiar, mas sim esse modelo de exclusão. BF – O êxodo rural tem aumentado? Delgado – Para as regiões metropolitanas, é menor, mas mudou de direção, mudou para as cidades de médio porte, que estão todas inchadas. Há um maciço êxodo das cidades de pequeno porte, que reflete uma migração da zona rural para as cidades. Esse processo não se faz de uma vez por todas, vai se esvaziando, aos poucos, a massa de municípios micro, de 25 mil e 30 mil habitantes. Isso ocorre pela perda de capacidade da agricultura de absorver gente. Com um progresso técnico intensivo, sem mexer na estrutura fundiária, o êxodo continua a crescer. As pesquisas mostram que cidades na faixa de 200 mil a 500 mil estão se favelizando. Quando as pessoas enxergam os problemas da violência urbana, mas não apontam para o problema no modelo agrário, eu fico surpreso.


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De 30 de dezembro de 2004 a 5 de janeiro de 2005

NACIONAL MOBILIZAÇÃO

Pura manipulação A indústria farmacêutica, quase toda estrangeira, vem praticando com mais freqüência o conhecido esquema de fazer maquiagem em velhos produtos, realizar relançamentos com muita publicidade e inventar histórias para alongar os prazos das patentes. Tudo, é claro, para assegurar bons lucros. Não tem nada a ver com a saúde e o bolso do cidadão. Novos partidos Articulações de vários grupos da esquerda, movimentos sociais e correntes petistas descontentes com o rumo do partido indicam que, em 2005, deve surgir pelo menos um novo partido comprometido com as lutas do povo brasileiro. A maior preocupação é não repetir os mesmos erros cometidos pelo PT em sua trajetória de institucionalização. Ingenuidade O governo Lula continua jogando milhões de reais, inutilmente, em publicidade institucional nos grandes jornais e revistas comerciais. Essa propaganda, além de não formar opinião pública para nada, tampouco muda em coisa alguma a linha política liberal-conservadora desses veículos, que continua firme na defesa do atual modelo concentrador e excludente. Nova esperança O presidente eleito do Uruguai, Tabaré Vázquez, do Partido Socialista, está montando um governo com integrantes de esquerda da Frente Ampla, até agora sem maiores concessões aos setores de centro e de direita – como aconteceu com o governo Lula. Quem sabe agora possa surgir uma aliança mais sólida com Argentina, Venezuela, Cuba e Uruguai. Adeus reformas Agendadas inicialmente para 2004, as reformas sindical e trabalhista estão com novo cronograma oficial. A sindical está com projeto concluído e, se tudo correr bem, deve ser encaminhada ao Congresso Nacional no primeiro semestre de 2005. A trabalhista, com maior interferência social, ainda não está acabada e não tem data marcada. Pode ser congelada por um bom tempo. Em debate Embora tenha uma agenda internacional de lutas contra os malefícios do neoliberalismo, defesa do meio ambiente, articulação de movimentos sociais e de direitos civis, o Fórum Social Mundial, de 26 a 31 de janeiro, em Porto Alegre, deve esquentar o debate em cima de três temas de interesse nacional: as reformas agrária e do ensino superior e a democratização da comunicação social. Múltiplas versões O que está acontecendo com a cotação do dólar é um bom exemplo da instabilidade das interpretações econômicas, já que para todas as oscilações – acima, abaixo ou igual ao real – existiram ao longo dos anos argumentos a favor, contra e muito pelo contrário. Mas acaba prevalecendo sempre o interesse do especulador estrangeiro. Fato recorrente Nem bem o governo federal começa a comemorar os chamados “bons resultados” da economia, reforçar discursos de crescimento sustentado e duradouro, acaba acontecendo algo para esfriar o entusiasmo e alertar para o imponderável. O último fato foi o fechamento negativo das contas externas de novembro, com déficit de 242 milhões de dólares. Expectativa geral O candidato Lula prometeu na campanha eleitoral criar 10 milhões de empregos e assentar 400 mil famílias. Na metade do mandato, segundo dados oficiais que precisam ser devidamente verificados, o governo Lula criou 2 milhões de empregos e assentou 92 mil famílias. Falta muito mais da metade do que foi prometido para fazer nos dois anos que restam. Será que dá?

A falta de projetos educacionais e de reforma agrária são os responsáveis pela criminalidade Nestor Cozetti e Zilda Ferreira do Rio de Janeiro (RJ)

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rimes com violência e mortes na cidade do Rio de Janeiro, em torno de tráfico de drogas e assaltos, têm sido noticiados com freqüência na imprensa internacional. A professora de Criminologia da Universidade Cândido Mendes e fundadora – junto com seu marido, o advogado Nilo Batista – do Instituto Carioca de Criminologia conhece o assunto na prática. Vera trabalhou na administração da Segurança Pública do governo Brizola e atualmente é secretária geral do Instituto Carioca de Criminologia e coordenadora do mestrado em Direito Penal na Universidade Cândido Mendes – com ênfase em criminologia, que Vera chama de criminologia crítica, ou seja, crítica do sistema penal. Para Vera, o problema não é só de polícia contra bandido. Existe outro “gerador de violência”: o superavit primário. Brasil de Fato – Em seu livro, a senhora se refere à “interpretação dos medos cariocas”. O que isso significa? Vera Malaguti – Nessa minha interpretação, procurei entender melhor uma coisa que a gente tinha vivido na administração de Segurança Pública do governo Brizola, onde administramos uma conjuntura de pânico da violência urbana que eu sabia que tinha uma utilização política muito grande. Foi o momento da destruição do Brizola no imaginário, pela mídia. Em 1994, o Rio de Janeiro era uma espécie de território do caos, da baderna. Aliás, estas palavras me lembram o que eu ouvia muito durante o regime militar, pelos militares: a baderna, o caos. A partir de 1994, quando começa o governo neoliberal, o Rio de Janeiro, pela divulgação dos fatos violentos, dá uma “encaretada”, isto é, começa a ficar politicamente conservador. Elege o Fernando Henrique Cardoso, o César Maia. De lá para cá, ficou essa coisa estranha politicamente, bizarra, agora com Rosinha e Garotinho. Então, a cidade de uma forma geral, ficou conservadora, e daí, o medo.

Vamos ter um Estado como o dos EUA, com a maior população carcerária do mundo BF – De que forma a senhora vê o problema das mortes nos confrontos entre policiais e bandidos – como, por exemplo, a morte do chefe do tráfico Gan-Gan (Irapuan Davi Lopes)? Vera – Lembro-me da época do Fernandinho Beira-Mar, que também virou uma figura demoníaca. Eles demonizam e, no caminho, esses meninos também vão se brutalizando. Na criminologia existe uma categoria que se chama profecia auto-realizável; quer dizer, quando se começa a tratar com estereótipos a população sobre quem recai o estereótipo acaba por incorporá-lo. No caso do Gan-Gan há até uma coisa exemplar. Eu faço ginástica em uma academia da zona sul e tem uma pessoa da academia que mora perto da área do GanGan (morro do Catumbi) que me disse: ‘Nossa, está um tiroteio...’ Eu falei pois é, quando matam alguém assim começa a haver uma reacomodação, e isso todo mundo da polícia sabe. O GanGan ainda foi morto de madrugada, sozinho, talvez uma morte desnecessária, talvez, eu não

me lembro no primeiro governo Brizola, uma coisa emblemática, quando ele ligou por ônibus a zona norte à zona sul. Facilitou o acesso às praias. Lembro de um artigo no Jornal do Brasil cujo título era “Sombras Suburbanas nas areias do Rio”. Isso é um escândalo quando olhado agora. Depois o arrastão em 1993, que tirou a Benedita daquela eleição, porque aquilo era o emblema do caos. Eles (Brizola e Benedita) vão deixar isso acontecer, os bandidos irão à praia. É claro, a praia é o lazer de todo o mundo, vamos organizar o lazer para todos? Se você for discutir isso num país como a França, como é que você faz para as pessoas não irem à praia numa cidade de praia? Impossível!

Para socióloga, classes populares são as mais vulneráveis

acompanhei a operação policial. Mas tudo indicava que foi uma execução, não uma tentativa de prisão. Quando o mataram, aquela mesma pessoa disse: ‘Ele tinha que morrer mesmo’. Então eu perguntei: Você acha que melhorou, não é? Ela estava então vivendo os efeitos da morte do Gan-Gan – mais tiroteio. BF – O que é a reacomodação? Vera – Começa a ser disputado o lugar de Gan-Gan, aquilo cria uma nova luta, já que o crime é desorganizado. É uma coisa brutal, para substituir. O comando dessa atividade varejista é a barbárie do capitalismo no último degrau, na periferia da periferia. É o que está acontecendo no Vidigal e na Rocinha. De repente matam alguém. Imediatamente começa um processo de reacomodação, o morro do lado resolve invadir. Mas o curioso era a compreensão dessa pessoa querida da zona sul, que dizia que estava um tiroteio horrível, um horror, que ela mora perto... A lógica é que tinham que matar. Então eu disse: Você está melhor, não é, se mataram ele, está tudo certo, não? Aí ela falou que não, que estava um tiroteio danado. Todo dia tem isso nos jornais – matam os traficantes e parece que está tudo resolvido. O Brasil não tem pena de morte, mas é como se fosse uma pena de morte. O negócio é matar. E por isso também a bronca grande com o Brizola, que de certa forma tentava conter essa lógica. O Brizola saiu do governo em 1994. E mesmo o Garotinho foi muito aliviado pela imprensa nesse aspecto, agora é que está começando a ser questionado. Divulgação

Hamilton Octavio de Souza

A violência é fruto do superavit Ana Carolina/Folha Imagem

Fatos em foco

Mas não chega aos pés do que o Brizola foi. BF – Só porque ele se negava a deixar a polícia sair matando? Vera – É, ele se negava a isso. Então eu descobri que o que as pessoas gostam é de matar negros e pobres. Enquanto estiverem fazendo isso, que vem da colonização e da escravidão, tudo bem. Existe uma mistificação de que o Brizola proibia que se entrasse nos morros. Não, ele proibia de matar. Mas isso acabou com ele, que não quis usar a violência como poder. No meu livro, há um editorial de um jornal de 1935, logo depois da revolta dos Malês (denominação atribuída aos negros islamizados trazidos do Noroeste da África), que diz: “O que precisamos é de uma política que nos imponha respeito e infunda terror aos escravos”. Então, essa é a matriz discursiva da atuação policial. BF – Quer dizer que a classe dominante fabrica o medo? Vera – Sim, e tem estatísticas que comprovam isso, que quem é mais vulnerável à violência são as classes populares. Imagina o que as pessoas nas favelas do Rio estão vivendo. Tem uma geração de crianças vivendo a barbárie todo dia, vendo cabeças cortadas, sem mães nem pais, sendo criadas pelos avós. No entanto, todo o discurso do medo que passa pelos jornais é o discurso da classe média, que com toda a barbárie que a gente está vivendo é muito mais protegida. O governo Brizola me propiciou pensar essas questões, o medo que eu vivi administrando junto com o Nilo Batista, meu marido. Eu

Quem é A carioca Vera Malaguti Batista, 49 anos, estudou sociologia na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro e em São José da Costa Rica, onde morou no final dos anos 70. Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutora em Ciências Humanas e Saúde pelo Instituto de Medicina Social, é autora dos livros O Medo na cidade do Rio de Janeiro e Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. É casada com Nilo Batista, dirigente do Instituto Carioca de Criminologia e ex-vice-governador de Leonel Brizola.

BF – A senhora e Nilo Batista são contra o que chamam de políticas punitivas, que consideram inócuas. O que pode resolver o problema da violência, inclusive no campo? Vera – A reforma agrária. E nas cidades, titulação de posses dos terrenos e programas em que a juventude popular seja protagonista. A gente olha o menino que hoje é gerente do tráfico e quer que ele seja piloto de caça. Alguma coisa está muita errada na nossa sociedade onde a grande possibilidade de vida para os meninos mais audazes, mais capazes, seja o tráfico. Não há nenhum projeto educacional – o último foi o dos Centros Integrados de Ensino Profissionalizante (Cieps), para colocar uma geração inteira o dia todo na escola. E também não há o menor indício de que vá ocorrer uma reforma agrária neste país. Isso é gerador de violência: o superavit primário. Cada vez que você faz um acordo desses com o Fundo Monetário Internacional, no ano seguinte o efeito será a violência. Sabe quantas prisões estão sendo feitas em média, por semana, no Rio e em São Paulo? Em torno de 1000 prisões. O sistema penal vai dar conta. Ninguém pára para pensar nisso. As pessoas acham que tem que prender mais, que os bandidos estão muito folgados. Então, nós vamos ter um Estado como o dos Estados Unidos – o nosso é um modelo estadunidense –, com dois milhões de presos, a maior população carcerária do mundo e da história de humanidade. Com um sistema penal incidindo sobre a população afroamericana, os latinos, e certamente, agora, os árabes, os indesejáveis no momento. BF – Como a mídia trata essa questão? Vera – A mídia cria realidades e cria os efeitos da realidade. Quando aprofunda o estigma da favela como o lugar do mal, a mídia vai produzir um tipo de operação. Quando se põe a televisão com câmeras ocultas filmando meninos pobres vendendo drogas para meninos ricos, aquilo vai produzir um efeito. No dia seguinte, uma operação vai matar três ou quatro. É o que eu chamo, no meu livro, de discursos que matam. A mídia deveria ouvir o outro lado da história, não o lado da demonização, mas a imprensa comercial o tempo todo trabalha com um lado só. Por exemplo, se fossem entrevistados a família dos presos, os filhos dos presos, as mães dos meninos, talvez surgisse uma história demonstrando que o que a gente está vivendo é um processo social. O recrutamento dos meninos pelo tráfico não é uma coisa engenhosa do mal, mas é resultado do modelo econômico da periferia do capitalismo.


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De 30 de dezembro de 2004 a 5 de janeiro de 2005

NACIONAL AMAZÔNIA

A floresta continua sendo destruída Aziz Ab’Saber defende um desenvolvimento baseado em projetos auto-sustentáveis dos povos da floresta

R

ecentemente, uma estimativa divulgada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) informou que 23.750 quilômetros quadrados da Floresta Amazônica foram desmatados de agosto de 2002 a agosto de 2003, nas áreas em que o processo de destruição da mata acontece com mais intensidade. Especialista na região, o geógrafo Aziz Nacib Ab’Saber, professor honorário do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, alerta para as conseqüências ambientais e sociais das rotas de desmatamento. Intelectual com profunda visão humanista e democrática, ele defende o desenvolvimento por meio de projetos sociais de auto-sustentabilidade dos povos da floresta, no lugar da ganância capitalista Ab’Saber, que acaba de ter reeditado seu livro Amazônia, do Discurso à Praxis, de 1996, pela Editora da Universidade de São Paulo, destaca a estrada BelémBrasília como elemento importante da invasão capitalista na Amazônia. “Essa estrada demorou para ser construída e não houve nenhuma previsão de impactos. À medida em que foi sendo rasgada no coração da selva, as pessoas já começaram a ocupar terras devolutas laterais. E, mais perto de Belém, a comprar por preços aviltados terras de proprietários que não tinham nenhuma possibilidade para produzir nada,” afirma o geógrafo.

PROBLEMA GRAVE Para Reinaldo Corrêa Costa, geógrafo do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), “esse espaço herdado da natureza com imensa biodiversidade e

Flonas para organizações não-governamentais (ONGs) estrangeiras, ou então alugar Flonas para obter dinheiro, o que não é tarefa do Ministério do Meio Ambiente”.

Fotos: Alberto César/ Greenpeace

Ana Maria Fiori de São Paulo (SP)

SOBERANIA

Desmatamento na Terra do Meio, no Pará, bate recorde no governo Lula

habitado por diferentes grupos sociais e culturais – que detêm os chamados etnoconhecimentos, transmitidos de geração em geração – é encarado por alguns como mato sem gente, a ser queimado

para a formação de pastagens, que nada mais são do que terra como reserva de valor”. Ele afirma que isso é um problema grave no governo, pois o Ministério da Agricultura apóia a

formação de fazendas de gado e o avanço da soja, que desmatam, geram pouco emprego e são concentradores de renda. Enquanto isso, o Ministério do Meio Ambiente procura preservar e fazer uso social da terra, sem desmatar. “No final, gado e soja, que geram muito dinheiro, levam a melhor. Com isso o país, que quer assento no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), perde. Se não consegue criar segurança alimentar para sua própria sociedade, como quer ter respaldo político no exterior?”, questiona Costa.

ALTERNATIVAS

Reinaldo Corrêa Costa, do INPA, ressalta que a biodiversidade bem manejada é muito mais rentável e socialmente justa do que a pecuária. “Quem desmata, geralmente tem uma visão de futuro curta, ou seja, espera que a queima da floresta lhe renda dividendos para o ano seguinte, no caso, a formação da pastagem”, analisa. A seu ver, como a pecuária gera baixos rendimentos, a atividade persiste devido à especulação de terras e graças aos créditos e subsídios do governo. Os ganhos com a especulação, aponta, são auferidos apenas por poucos e fortes grupos, mas os prejuízos são socializados. “A sociedade brasileira é quem paga os subsídios que os bancos e programas oficiais oferecem, e tais subsídios contribuem para a destruição de grupos indígenas e a expulsão de camponeses, além de destruição da biodiversidade”, acrescenta Costa. O pesquisador afirma que os lucros com o desmatamento para a pecuária são tidos como certos, pois desde a década de 70 eles são ininterruptos, e tendem a continuar com a pressão do setor ruralista no Congresso Nacional. O geógrafo do INPA comenta que, infelizmente, ainda se assiste o processo conhecido como “amansa terra”.

COERÇÃO Ocorre o seguinte: um posseiro faz sua roça, com pequeno desmatamento e dano ambiental praticamente nulo; posteriormente, um fazendeiro, com documentos duvidosos chega ao local com um ‘titulo’ de terra e expulsa, ou ‘compra’, a terra do posseiro. Não raro, isso é feito sob coerção, e essa compra ‘esquenta’ a terra do fazendeiro. Nesse pro-

Fotos: Alberto César/ Greenpeace

Quem desmata não tem visão de futuro

Desde 1970, fazendeiros lucram com o desmatamento para a pecuária

cesso, aumenta a quantidade de terra nas mãos de um só proprietário, e o posseiro é empurrado para nova área, ou para alguma favela. Portanto, conclui Costa, quem desmata é o grande e o médio dono de terras. Vale lembrar que, para os padrões amazônicos, quem tem até 100 hectares é o pequeno proprietário, é o camponês que vive do trabalho familiar, que produz alimentos e gera renda. O posseiro que inicia o desmatamento para fazer sua roça, constrói estrada para escoar a produção e vira alvo da ganância por terras, o que também é um indício da ausência do Estado. “Melhor dizendo, da presença do Estado com uma intenção não social, ou de apoio aos grandes grupos agropecuários”, conta o especialista do INPA.

HIDRELÉTRICAS O geógrafo aponta também o discurso fantasioso e desenvolvimentista das hidrelétricas como mais um fator que endivida o país, gera desigualdades sociais e só acumula riqueza em pequenos grupos. Doutorado recentemente, Costa estudou o modo de vida de índios e camponeses. Uti-

lizando a metodologia da previsão de impactos, analisou a construção da barragem de Belo Monte, na volta grande do Rio Xingu. “A produção de energia é imposta à sociedade e sua distribuição para aqueles que serão desalojados pela hidrelétrica não é debatida. Belo Monte causará danos sociais e um complexo problema ambiental”, afirma Costa. Atualmente, a barragem está embargada pela Justiça, pois a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental, EIA/RIMA, não foi legal. “Acrescente-se a isso”, destaca, “a resistência dos povos da região, capitaneados pelo Movimento de Defesa da Transamazônica e Xingu, MDTX, sediado em Altamira, no Pará.” Aziz Ab’Saber responsabiliza pelos conflitos “planejadores imbecilizados, que não conhecem valores, não sabem o que é cultura pré-histórica presente”. Essa soma de problemas leva o professor a apontar um cenário negativo para a Amazônia, a não ser que o governo tome algumas providências na área de planejamento e fomente projetos como o RECA. (AMF)

Crítica mais forte vem de Ab’Saber, que não esconde sua longa amizade com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o apreço que tem pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. O professor sempre colaborou com o Partido dos Trabalhadores e, muito antes de o PT ser governo, já fazia detalhadas análises, de profundo conteúdo técnico, mas apresentadas em linguagem simples, para subsidiar o planejamento de ações nos espaços herdados da natureza, tão caros a ele como a cultura indígena e sertaneja. Inconformado com ações do Ministério do Meio Ambiente, afirma que é necessário encontrar alguns tipos de atividade que sejam social e economicamente auto-sustentáveis. Diz mais: “Eu não uso a palavra sustentável nunca, a não ser para economias ecologicamente autosustentáveis. E é o que eu defendo agora, para o entorno das Florestas Nacionais, as Flonas. Ataco os asseclas do Ministério do Meio Ambiente que querem conceder

Costa lembra que, no caso de haver qualquer divergência entre o governo brasileiro e os grupos que poderão explorar as Flonas, um tribunal internacional poderá ser escolhido para discutir a questão. “Isso implica em ameaça à soberania nacional”, adverte o pesquisador. Ab’Saber sugere que se faça o uso do bordo dessas florestas, que estão mais ou menos bem preservadas, para atividades agrárias auto-sustentáveis. Como exemplo dessas atividades, cita o projeto RECA – Reflorestamento Econômico Consorciado e Adensado, que surgiu em 1987. Aziz conta que, em Rondônia, na fronteira com o Acre, um ex-padre francês associou-se a pessoas da zona rural da cidadezinha de Nova Califórnia, a única com um certo mosaico de plantações economicamente válidas, mais muito pequenas. Por meio do contato com os parceiros amazônidas do Acre, o ex-padre desenvolveu uma forma de ocupação de bordo de floresta. Utilizou o bordo para iniciar as plantações e seguiu em frente, na terra já devastada.

ALIMENTOS Dentro da floresta, continuaria o extrativismo da seringueira e a coleta da castanha. Fora dela, o plantio de abacaxi, hortaliças, mandioca e feijão, para servir de alimento às pessoas cooperadas, nos primeiro dois anos de atividade. Depois, com outros processos agronômicos, culturas de açaí, pupunha e cupuaçu, para atividades rentáveis posteriores a quatro ou cinco anos. Os cooperados, pessoas de meia-idade, também plantaram mudas de uma castanheira que foi desenvolvida por enxertia pela Embrapa de Belém e que pode começar a dar frutos em 17 ou 18 anos. Quando o professor perguntou sobre o que fariam com essas castanheiras, responderam que elas ficariam para os filhos. “Coisa de louco essa frase, não é?”, encanta-se Ab’Saber, que afirma ter sugerido que se fizesse o mesmo para as Florestas Nacionais. “Essa é a única proposta que eu tenho para ocupar os bordos de qualquer floresta, seja ela de terras devolutas, mal trabalhadas, ou de proprietários mais esclarecidos”, argumenta. Ele acrescenta que para o conjunto das terras baixas da Amazônia, que estão em processo de devastação e têm sempre um paredão de borda de floresta, não conhece outra solução. “Quanto às planícies, é evitar que aconteça nelas a chegada das grandes agropecuárias. Porque o pessoal que está lá sabe como produzir”, finaliza.

Importância estratégica e militarização Separar a Amazônia do resto do Brasil, de maneira insidiosa. É esse “olhar maldoso” contra a soberania brasileira que preocupa Aziz Ab’Saber e Reinaldo Corrêa Costa. “A militarização não é algo novo, remonta a períodos coloniais. A questão é, militarizar com que sentido?”, pergunta Costa. O pesquisador comenta que se sabe que existem incursões de narcotraficantes nas faixas de fronteira, que aliciam e ameaçam os moradores brasileiros em favor do tráfico. Ele afirma que esse é “outro

exemplo da ausência do Estado, e fazer-se presente somente com forças armadas talvez não seja o caminho adequado”. Ele diz que é preciso levar outros aparatos do Estado para as faixas de fronteira, como saúde, educação, transporte. Tudo isso com sérios estudos de previsão de impactos, pois só a boa intenção sem conhecimentos adequados resultará em projetos equivocados. “Além disso, as sociedades locais devem ser escutadas, seus anseios e sugestões devem ser ouvidos”. (AMF)


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NACIONAL MÍSTICA

Superar a lógica do egoísmo e da violência N

o mundo, há dois paradigmas em disputa. O dominante, ligado ao mercado, prega o egoísmo e a acumulação de capital, e se baseia no uso constante da violência. Em contraposição, e surgindo do seio do povo, desenvolve-se uma visão alternativa do mundo, solidária, participativa e justa. A avaliação é do teólogo Leonardo Boff, para quem, espaços de resistência, como o Fórum Social Mundial, podem levar à derrocada do sistema dominante. Brasil de Fato – No Oriente Médio, alegando proteger a população de seu país, o Exército de Israel assassina e oprime todo um povo, o palestino. Em Felisburgo (MG), em 19 de novembro, milícias assassinam seis sem-terra, para impedir a reforma agrária em uma propriedade. As duas situações, diferentes em dimensão, parecem apontar para o mesmo fenômeno: cada vez mais, a política se resolve com violência, e só com violência. Como chegamos a este ponto? Leonardo Boff – Os fenômenos remetem a um dado cultural. Todas as sociedades históricas, hoje, procedem da era patriarcal – uns dez mil anos atrás – na qual o homem acumulou em suas mãos todo o poder, tornando invisível a mulher. As instituições típicas do patriarcado são o Estado, a racionalidade analítica, as leis, o exército, a guerra e o uso da violência como forma de resolver problemas humanos e sociais. O capitalismo exacerbou estas características. Ele sempre recorreu no passado e recorre ainda hoje à violência para fazer valer sua vontade e enquadrar os problemas. Assim fazem o presidente George W. Bush, dos Estados Unidos, e o primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, entre outros. Assim fazem os latifundiários entre nós e no mundo inteiro. Geralmente eles usam o aparelho controlador e repressivo do Estado como a polícia, porque sempre procuram se articular com a política em seu benefício. Mas se esta não lhes é favorável, eles mesmos praticam a violência direta.

Houve uma “violação de mandato”. Lula se elegeu pregando uma agenda e, ao ganhar, aplicou outra BF – A paz e a democracia são sonhos impossíveis? Boff – A paz e a democracia, por sua natureza, possuem forte densidade utópica. Quer dizer, são anseios que nunca vão se realizar plenamente na história. Nem por isso são destituídos de sentido. Os anseios, as utopias e os sonhos nos desinstalam, nos obrigam a caminhar e a buscar sempre novas formas de democracia e de paz. São como as estrelas. Nunca podemos alcançá-las. Mas são elas que nos iluminam as noites e orientam os navegadores. Portanto, paz e democracia são sistemas abertos, perfectíveis e sempre aptos a novas incorporações e formas de realização. BF – O mercado nos ensina e estimula a sermos competitivos, a não olhar para trás ou para os outros. “Vença, a qualquer custo”, diz o outdoor na rua. No mundo contemporâneo, o homem está fadado ao egoísmo e à solidão? Boff – No ser humano, e mesmo

BF – Para militantes e pessoas preocupadas em mudar a situação do mundo, que valores devem ser trabalhados e recuperados? Boff – Creio que todos os valores ligados à integração, à solidariedade, à participação, à construção coletiva, ao feminino e à dimensão espiritual da vida ajudam a elaborar um novo sonho de convivência humana. Em termos de virtudes, penso que se fazem imprescindíveis a hospitalidade de todos com todos, a convivência, o respeito, a tolerância, a comensalidade (comer juntos) e a paz (como meio e como meta).

O presidente Lula recebe carta de popular, durante visita a Aracaju (SE)

em todos os seres vivos, há duas forças sempre coexistentes e em tensão: a força da auto-afirmação e a força da integração. Cada um precisa se auto-afirmar, dizer o seu “eu”, caso contrário é eliminado ou engolido por outros. Mas, ao mesmo tempo, intui que não sobrevive sozinho. Tem que buscar uma integração em um todo maior que é o seu gênero, que lhe garante a reprodução e a sobrevivência. Ocorre que estas forças podem estar dissociadas. Ou alguém se reafirma de forma tão exclusiva que não vê ninguém a não ser ele mesmo, ou se funde no todo maior que desaparece em sua identidade. A auto-afirmação excludente gerou historicamente o capitalismo, a propriedade privada sem sentido social, a cultura ocidental que se julga a melhor do mundo ou o cristianismo que pretende ser o único detentor da revelação divina. A fusão gerou o coletivismo no qual os indivíduos perdem sua identidade e se transformam em meros números. Houve um tipo de socialismo que se igualou ao coletivismo. Ambos os sistemas fracassaram em termos humanos porque geraram violência, exclusões e permanentes tensões. Hoje, a expressão maior do capitalismo é o mercado. Ele só é competitivo e nada cooperativo. Por isso é violento e faz tantas vítimas. Se não buscarmos o equilíbrio dinâmico e sempre tenso entre auto-afirmação e integração, jamais teremos sociedades pacíficas e justas. A democracia como valor universal, especialmente a democracia participativa e social, se revelou como a forma mais adequada de respeitar o indivíduo e valorizar o social. BF – Espaços como o Fórum Social Mundial, ou a própria luta dos movimentos sociais, oferecem alternativas a isto. Podem ser postos em prática, em nível mundial? Boff – Só podem ser postas em prática aquelas iniciativas que acumularam força tanto na sua elaboração teórica, como na sua

viabilização prática. Creio que todos os movimentos ligados à idéia de cooperação, solidariedade, parcerias, respeito das diferenças, convivência e democracia a partir de baixo conseguiram organizar práticas alternativas que se opõem à mera concorrência e ao darwinismo social. O fato de organismos multilaterais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e outros terem que incorporar linguagens novas, como desenvolvimento social, índice de desenvolvimento humano, cláusulas ambiental, de direitos humanos e de democracia, sustentabilidade e outros, mostra a pressão dos movimentos sociais mundiais, pois todos estes valores são contraditórios àquelas instituições. Penso que, no mundo, progressivamente, se vai criando uma onda de pensamento, de práticas e de pressão de tal monta que o sistema vai cedendo espaços para o novo e, no termo, será totalmente superado. Então começa outro paradigma civilizacional, com outras chances para a vida, para a liberdade e para a história dos seres humanos, agora na fase nova, a fase planetária.

BF – Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente da República envolto em uma aura de mística de esperança. Em sua avaliação, a aura desapareceu? Por quê? Boff – Talvez seja cedo para dizer uma palavra mais essencial sobre o governo Lula. Estimo que devemos trabalhar com a categoria transição. Ele poderia representar a transição de um modelo neoliberal e privatista de Estado para um modelo social e federalista. Como em toda transição, existe um elemento de continuidade e de novidade. A continuidade reside no aspecto macroeconômico. E a novidade nas políticas públicas que têm como ícone o Fome Zero.

A globalização destrói o bem comum e impossibilita uma democracia mais social Ocorre que a transição está ainda em curso. O objetivo é bom e correto. Mas suspeito que tenha escolhido meios que, por sua natureza, não levam a este objetivo, como o tipo de macroeconomia vigente com seu superávit primário, altas taxas de juros e pagamento sustentado da dívida. A forma de mudar essa equação, que não fecha, é pressionar fortemente o governo e o presidente para que mude os meios. Caso contrário, o povo conserva a esperança de

Divulgação

João Alexandre Peschanski da Redação

Wilson Dias/ABr

Para o teólogo Leonardo Boff, falta ao Brasil o mesmo que para todo o mundo: mais democracia e paz mudanças, mas perde a confiança que este tipo de governo vá fazêlas. Lentamente, a esperança está deixando o plano alto e volta à planície, onde sempre esteve. BF – Em sua avaliação, após dois anos, quais os erros e acertos do governo? Boff – A bem da verdade, houve uma “violação de mandato”, quer dizer, o presidente se elegeu pregando uma agenda e, ao ganhar, aplicou outra. E não explicou suficientemente ao povo o por quê da mudança, quando prometeu que qualquer mudança importante iria ser explicada a todos. Creio que, a médio e longo termo, o prolongamento da política macroeconômica neoliberal é deletério para um projeto de nação autônoma e articulada soberanamente com o processo de globalização. Esse tipo de economia destrói o bem comum e impossibilita uma democracia participativa e mais social. No máximo, garante a governabilidade do sistema imperante, mas não é bom para as mudanças necessárias. Se houve esperança no presidente, faltou-lhe ousadia para o novo. O acerto foi dar importância ao social com as várias políticas públicas, mas devemos reconhecer que elas não têm centralidade, o que faz com que sejam apenas compensatórias, e não substantivas. Centralidade, mesmo, ocupa ainda a economia de tipo capitalista e neoliberal. BF – Na situação atual, no mundo e no Brasil, de onde tirar esperança? Boff – Creio que nenhum poder imperante político, cultural e religioso é gerador de esperança, no sentido de abrir a possibilidade real de um outro tipo de humanidade, outro tipo de relação entre os povos e para com a natureza. Está tudo viciado. Mas há imensas reservas de esperança e do novo nas massas humanas, no povo. Embora dominado e humilhado, há nele espaços de sonho, de liberdade, de práticas solidárias, de criatividade em todos os sentidos, que permitem vislumbrar uma forma diferente de organizar a vida e plasmar o futuro da humanidade e da Terra. Ocorre que ninguém dos políticos e dos líderes de qualquer poder está disposto a escutar o povo e valorizar o que ele inventou para sobreviver e dar sentido à vida. Eu acredito na força das redes nacionais e mundiais dos movimentos populares. Elas poderão acumular tanta energia de resistência, de crítica e de proposição de alternativas que, no momento de uma crise mundial que seguramente virá, e com vítimas incontáveis, poderão assumir a hegemonia e organizar o destino humano de forma mais segura e integradora. Talvez então surja a governabilidade global.

Quem é Autor de mais de 60 livros, Leonardo Boff é um dos principais teólogos do mundo. Foi professor em diversos centros de estudo e universidades no Brasil e exterior, como o Instituto Teológico Franciscano, em Petrópolis (RJ), as universidades de Lisboa (Portugal) e Harvard (Estados Unidos). É um dos intelectuais que participaram da elaboração da Teologia da Libertação, que une indignação em relação à miséria e o discurso da fé cristã. Em 1984, por causa de sua luta em defesa do povo, foi submetido a um processo pela Sagrada Congregação para a Defesa da Fé, no Vaticano, e foi punido. Em 1992, novamente alvo de investigação, renunciou às atividades de padre. Em 2001, recebeu o Prêmio Nobel alternativo, em Estocolmo (Suécia).


Ano 2 • número 96 • De 30 de dezembro de 2004 a 5 de janeiro de 2005

SEGUNDO CADERNO ORIENTE MÉDIO

Para o ativista israelense Michael Warschawski, os palestinos provaram que podem manter o equilíbrio político do país

A

morte do presidente Yasser Arafat, em novembro de 2004, chocou a população da Palestina, pois ele era como um “símbolo” e uma “bandeira” do país. Mas o povo mostrou que está mais do que pronto para assumir as responsabilidades políticas para construir um Estado. A avaliação é de Michael Warschawski, reconhecido como um dos principais ativistas israelenses, para quem fica cada vez mais claro que a interrupção das negociações para a paz no Oriente Médio é conseqüência de uma política de extermínio dos palestinos pelo governo do primeiroministro israelense, Ariel Sharon. Brasil de Fato – A morte de Arafat alterou a situação política no Oriente Médio? Michael Warschawski – Creio que é exagerado dizer que a morte do presidente Arafat alterou a situação política no Oriente Médio, pela simples razão que, há muitos anos, não são mais os palestinos e as massas árabes que têm a iniciativa sobre a questão, mas Israel e os Estados Unidos. A morte de Arafat vai ter, em contrapartida, efeitos profundos sobre o movimento nacional palestino, em relação ao qual ele terá sido mais do que um líder político, mas, em certa medida, a expressão da vontade política do movimento e o arquiteto de sua estratégia. BF – O que Arafat representava para o povo da Palestina? Warschawski – Um pouco como Nelson Mandela (ex-presidente da África do Sul), Arafat terá sido o “pai da nação” palestina, aquele que a ajudou a se estruturar. Terá sido seu símbolo e sua bandeira. Sua morte é sentida com muita tristeza pelo povo palestino, e também como um desamparo em relação ao futuro, como se o povo tivesse ficado órfão cedo demais. Mas, por outro lado, a transição parece estar sendo feita com muita maturidade e serenidade, provando, assim, que os palestinos são um povo que atingiu a maioridade e que sabe viver sem a presença de seu pai.

Um pouco como Nelson Mandela, Arafat terá sido o “pai da nação” palestina, aquele que a estruturou BF – A estratégia do governo de Israel mudou em relação à ocupação militar da Palestina? Warschawski – A estratégia israelense não mudou com a morte de Arafat. Coloca-se, no entanto, um problema para Sharon: Arafat era apresentado como o obstáculo número um para a paz na região. Com essa mentira, Sharon havia até conseguido convencer a opinião pública internacional. A morte de Arafat faz Sharon perder o principal álibi para sua política unilateral e para sua rejeição permanente a qualquer opção de negociação com os palestinos. Nesse sentido, pode-se esperar que haja pressões internacionais para uma mudança de política. O único modo de Sharon continuar seu unilateralismo será provocar uma nova onda de atentados.

BF – O governo israelense vai intervir nas eleições presidenciais palestinas? Warschawski – Não. Mas a presença militar permanente, a construção do muro, a ameaça permanente de assassínios – tudo isso já é uma intervenção violenta na política e na liberdade dos palestinos. BF – O resultado das eleições pode mudar alguma coisa? Warschawski – Não no plano da política geral, em que a correlação de forças não permite aos palestinos tomar iniciativas. Dito isso, como Israel perdeu seu álibi essencial, se o novo presidente palestino conseguir impor um cessar-fogo unilateral, pode ser que a comunidade internacional, não podendo mais se esconder por trás da mentira dos dirigentes sionistas, imponha a Israel uma mudança de política, o que possibilitaria a retomada das negociações. Em todo caso, é nessa direção que deve trabalhar o movimento de solidariedade internacional. BF – Sharon promoveu a retirada das tropas de Gaza. Isso indicaria que a política do governo mudou em relação à ocupação? Warschawski – De modo nenhum! O plano de retirada unilateral – como explicou claramente Dov Weisglass, principal conselheiro político de Sharon – visa “colocar o processo de paz no congelador” e “adiar para sempre a eventualidade de um Estado palestino”. Trata-se, para Sharon, de largar Gaza e lá estabelecer o primeiro dos “cantões palestinos”, para ter mãos livres para continuar a colonização na Cisjordânia e rejeitar toda tentativa de impor uma fórmula multilateral, incluindo o “Road Map” (proposta de criação progressiva do Estado palestino). BF – Qual é a situação da população em Gaza? E na Palestina, de modo geral? Warschawski – É uma catástrofe: uma economia destruída, um desemprego que atinge 50% da população, infra-estruturas arrasadas – é um verdadeiro milagre que os palestinos consigam sobreviver e evitar que sua vida se torne uma selva e um caos generalizado. BF – O senhor participa da resistência contra a ocupação militar da Palestina desde os anos 70. Estamos em um processo que leva ao fim da ocupação? Warschawski – Não. E essa é a razão pela qual me recuso a falar em “Segunda Intifada”. O que vivemos atualmente é uma guerra de recolonização, de reconquista dos avanços dos últimos quinze anos. A luta palestina é hoje uma luta defensiva. Precisará haver uma nova correlação de forças – local e, sobretudo, internacional – para relançar uma ofensiva suscetível, a longo prazo, de pôr fim à ocupação. BF – Quais são as principais conseqüências da ocupação? Por que há setores da população israelense que não querem negociar a retirada total das tropas e a criação do Estado palestino? Warschawski – A imensa maioria da sociedade israelense continua a acreditar que Israel foi atacado pelos palestinos em 2000, e que eles nunca tiveram a intenção de realmente negociar um acordo político, mas teriam utilizado as negociações para enfraquecer Israel

Chorando a morte do presidente Yasser Arafat, povo palestino mantém sua luta

Arquivo pessoal

João Alexandre Peschanski da Redação

France Presse

O futuro da Palestina sem Arafat

com o fim de destruí-lo. O país estaria, assim, em uma guerra de sobrevivência contra uma ameaça terrorista. Nesta lógica, uma ameaça não pode ser um interlocutor: ela deve ser erradicada. BF – A sociedade israelense é muito militarizada. Dos 18 aos 21 anos, os jovens – homens e mulheres – ficam no serviço militar; depois, um mês por ano, até os 45 anos. Qual o impacto da militarização na sociedade e na democracia do país? Warschawski – Israel é um exército que possui um Estado e, em larga medida, é o exército que – com base em suas “informações” – determina amplamente a política do país, ajudado nisso por um lobby militar na classe política. Mais ainda, uma sociedade em que o exército desempenha um papel tão central, inclusive na vida privada, não pode deixar de ser extremamente militarizada, machista e pouco adaptada a uma verdadeira concepção da democracia. Os conceitos de direito são facilmente substituídos pelos conceitos de segurança, estes últimos predominando sempre sobre todos os outros. BF – Os movimentos pacifistas israelenses são muito mal vistos pelo governo, pela imprensa e mesmo pela população. Como está a situação dos movimentos que defendem a paz? Há, por

Quem é Coordenador do Centro de Informações Alternativas, entidade israelo-palestina que divulga informações sobre a situação política do Oriente Médio, Michael Warschawski é considerado um dos principais militantes israelenses contra a ocupação militar da Palestina por tropas de Israel. Para mais informações sobre o Centro, acesse www.alternativenews.org

exemplo, manifestações contra a prisão do pacifista Mordechai Vanunu? Warschawski – A resistência israelense contra a política de ocupação e de colonização continua minoritária. Muito ativa, mas muito minoritária. Grande parte das pessoas do movimento pela paz continua presa ao mito da guerra de defesa contra o terrorismo e da ausência de parceiro palestino. Fora algumas dezenas de personalidades, Vanunu não foi defendido, nem em seu combate, nem em seus direitos democráticos mais elementares.

Israel é um exército que possui um Estado e é o exército que determina a política do país BF – Depois de vários anos de governo Sharon, qual é o balanço de sua administração? Warschawski – Objetivamente, é um balanço catastrófico: nenhuma segurança, uma situação econômica e social calamitosa. O único êxito é o apoio da comunidade internacional, que age como se acreditasse nas boas intenções de Sharon (retirada de Gaza), e isso inclui Estados árabes (o Egito, em particular). Se o

governo Sharon é estável, é porque não tem contra ele nenhuma oposição de esquerda, já que os trabalhistas aceitaram apoiar incondicionalmente a sua política.

A guerra permanente de Sharon é um elemento da guerra permanente de Bush BF – Em entrevista ao Brasil de Fato, em junho de 2004, Arafat conclamou a comunidade internacional a intervir na Palestina e Israel para impedir o massacre do povo palestino. O presidente estadunidense, George W. Bush, pretende participar mais ativamente das negociações: isto é bom ou ruim? Warschawski – Nada que venha de Bush pode ser bom! Mas duvido que ele decida intervir para impor a Israel ainda que seja apenas o congelamento da colonização, ou a interrupção das repressões mais sangrentas. A guerra permanente e preventiva de Sharon é um elemento da guerra permanente e preventiva de Bush – por que este a deteria? Cabe aos outros países assumir suas responsabilidades e exigir, pelo menos, a colocação em prática do Road Map, uma iniciativa sua e cuja primeira etapa é o congelamento da colonização. BF – E os povos dos outros países, que papel podem desempenhar? Warschawski – Os povos devem continuar e reforçar a mobilização contra a guerra global, em que se inclui a Palestina, e exercer pressão sobre seus governos para que apliquem sanções contra Israel, até que o país se submeta ao Direito Internacional e às resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU).


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AMÉRICA LATINA IMPERIALISMO

Bush cumpre previsão de Che Guevara Com sua economia de guerra, presidente estadunidense pretende criar vários Vietnãs pelo mundo tam de tudo: assassinam amigos do presidente, seqüestram-no, tentam matá-lo, destituí-lo, impondo-lhe plebiscitos atrás de plebiscitos sob argumentos golpistas. Perderam, até agora, todos os embates. A resistência do povo venezuelano, que apóia Hugo Chávez, e a solidez da consciência do povo cubano incomodam Bush e os capitalistas estadunidenses. Como a política deles não resolve os problemas do povo e como 80% da humanidade, sob o capitalismo, não tem esperança de dias melhores, a vitória da dignidade humana será alcançada, mais cedo ou mais tarde.

Divulgação

César Fonseca de Brasília (DF)

A

leida Guevara, filha de Che Guevara, médica pediatra, como o pai, esteve recentemente em Brasília (DF) para encontros políticos com a cúpula do governo e com integrantes de movimentos sociais. Foi ignorada pela mídia, salvo pela TV Comunitária, para a qual deu uma entrevista em que reafirmou o discurso socialista e relatou sua experiência como profissional da saúde dedicada à prevenção das doenças como fator fundamental da medicina social, em lugar da medicina curativa. Aleida também analisou o panorama econômico e político cubano, latino-americano e mundial diante do novo mandato do presidente estadunidense George W. Bush, que, segundo ela, seguirá adiante com a economia de guerra, como alternativa fundamental de sobrevivência do capitalismo estadunidense, enquanto cumpre a previsão feita por Che: espalhar vários Vietnãs pelo mundo, contribuindo para marcar o aprofundamento e a derrocada do imperialismo dos Estados Unidos. Veja, a seguir, algumas das reflexões de Aleida Guevara.

MEDICINA PREVENTIVA

SER FILHA DE CHE

A palavra de ordem do capitalismo dos EUA é a guerra. A lógica guerreira criará um, dois, três, dez Vietnãs pelo mundo afora ECONOMIA DE GUERRA O capitalismo estadunidense, acumulador de capital em escala global, marcha em franca decadência. Atualmente, 44 milhões de estadunidenses vivem na pobreza no país mais rico do mundo, onde se encontra a maior fonte da dinâmica capitalista, que é o capital acumulado. A acumulação de capital apenas beneficia os estratos superiores da sociedade, enquanto vai criando bases sociais econômicas cada vez mais precárias. Substancialmente, a palavra de ordem do capitalismo dos EUA é a guerra. Nesse sentido, Bush segue os seus antecessores e, de certa forma, confirma a pregação de Che Guevara, em 1966, de que a lógica guerreira, o seu oxigênio, criará, em contrapartida ao avanço da economia de guerra, um, dois, três, dez Vietnãs pelo mundo afora. No momento, temos o Iraque sob intervenção, mas estão também seriamente ameaçados Irã, Síria, Coréia, todo o Oriente Médio, mediante apoio a Israel contra a Palestina. Na América Latina, além das agressões a Cuba, há mais de 40 anos ininterruptos, as ameaças sinalizam instalações de cerca de 20 bases militares estadunidenses no continente, para servir de âncora ao domínio eco-

Cubanos comemoram aniversário da revolução: “Morreremos de armas em punho”

nômico dos EUA ao longo dos próximos 50 anos. Essa é a estratégia fundamental do Pentágono. A cada passo dos Estados Unidos no rumo da economia de guerra, novos Vietnãs são criados. Trata-se de curso inevitável do imperialismo, afetado cada vez mais fortemente pelos déficits, indispensáveis à manutenção da guerra, cujas conseqüências são a desvalorização do dólar e a instabilidade em escala mundial.

INVASÃO DE CUBA Bush brande o argumento de que deseja levar a democracia capitalista a Cuba, como tenta fazer no Iraque, em processo de desestruturação aguda de todo o Oriente Médio. Os cubanos não têm medo dessa ameaça. Defenderemos pedaço a pedaço o nosso território. Fui criada, como médica pediatra, para servir à humanidade de forma solidária, mas também aprendi a atirar, e atiro muito bem. Não pensarei um minuto em pegar em armas para defender Cuba, se o território cubano for invadido pelas tropas estadunidenses. Como diz Fidel, os americanos podem, sim, entrar a qualquer momento em Cuba. Dispõem de força suficiente para fazêlo. O problema é se conseguirão sair. Morreremos de armas em punho. Poderão nos exterminar fisicamente. No entanto, enquanto existir um cubano, existirá a consciência cubana, que se desenvolveu durante o processo de implementação do socialismo. Esse processo segue sendo construído dia a dia, pois somos conscientes que não se trata de obra acabada, mas de algo em permanente elaboração, cheio de obstáculos, que exige perseverança e fé em uma nova humanidade.

SOCIALISMO X CAPITALISMO Desde os primeiros passos do homem na terra – da vida primitiva à escravidão, da idade média ao capitalismo, até chegar às primeiras experiências socialistas, como fruto das contradições do sistema capitalista, que se revelou incapaz de instaurar o verdadeiro humanismo –, temos o trabalho humano, a medida de todas as coisas, como o impulsor fundamental das transformações. O capitalismo, em sua lógica individualista, escravizou o trabalho humano. O socialismo, em sua lógica humanista, busca libertá-lo. Não é

fácil, sabemos disso. A caminhada rumo ao socialismo é árdua. O capitalismo está sempre empenhado em desacreditá-lo, com sua força máxima: a moeda sem lastro e as armas atômicas que a sustentam. O inimigo é poderoso. Fustiga constantemente os que o ameaçam, como nós cubanos, conscientes de uma nova alvorada, de uma vida solidária entre os homens. Não dispomos de capital, que é a mola mestra do desenvolvimento capitalista, nem de recursos naturais e tecnológicos, que nos possibilitariam, com a educação disponível, saltos qualitativos no campo da ciência e da tecnologia. Temos, por outro lado, consciência social aguda. Desenvolvemos o espírito de solidariedade humana que se traduz em oferta ampla e gratuita de educação, saúde e bem-estar a toda a população, em quantidade e qualidade comparável ou superior à oferta de tais bens nos países capitalistas desenvolvidos. Somos um povo culto, educado, ciente de suas responsabilidades e voltado à expansão da solidariedade, expressa na oferta de ajuda internacional. Nosso exemplo incomoda. Material e financeiramente somos deficientes, dado o bloqueio econômico implacável que sofremos, mas mentalmente muito fortes. A nós não vencerão. Buscam de toda forma, porém, enfraquecer os que tentam praticar políticas sociais avançadas, como acontece na Venezuela, a partir da força financeira do petróleo. Os capitalistas estadunidenses, interessados em dominar o petróleo, e a burguesia venezuelana, a serviço deles, ten-

Fui criada, como médica pediatra, para servir à humanidade, mas não pensarei um minuto em pegar em armas para defender Cuba tra a meningite meningocócica B e disponibilizamos, junto à Organização das Nações Unidas nossos serviços, gratuitamente. Nesse momento, por exemplo, contribuímos para afastar a epidemia de meningite meningocócica no Uruguai. Já distribuímos um milhão de vacinas aos uruguaios mais necessitados. Nossos médicos estão lá por uma causa humanitária. Enfrentamos, com o bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos, problemas de acesso à tecnologia. Trabalhamos, há 40 anos, com aparelhos de raio X tecnologicamente defasados. Precisaríamos de investimentos de 10 milhões de dólares para comprar novos aparelhos. Tentativas nesse sentido, no entanto, são bloqueadas. Os países que poderiam nos ajudar, principalmente, na América Latina, se o fizessem, seriam retaliados economicamente pelos Estados Unidos. Ainda assim, dispomos de 1,5 mil alunos de medicina americanos em Cuba que estudam gratuitamente. Poderíamos ajudar muito mais se pudéssemos abrir com recursos suficientes escolas latino-americanas de saúde, formando os africanos, mexicanos

Mauricio Scerni

Meu pai e minha mãe me ensinaram que o relevante na vida é servir ao próximo. Carinho, respeito e amor ao povo cubano, que, historicamente, nos últimos 45 anos, construiu sua personalidade que incomoda o capitalismo por constituir-se em força da consciência, que jamais se corrompe. Por isso, conscientes da importância da nossa força e do exemplo que nosso comportamento desperta em outros povos – especialmente em nossos irmãos latino-americanos –, nós, cubanos, seguiremos o lema de que o fundamental é construir os valores da solidariedade humana. Quando esses valores se solidificam, tornam-se invencíveis frente aos piores adversários. Sejam quais for as armas que venham a utilizar contra nós, seremos obstáculos às suas pretensões absolutistas.

Fundamentalmente, a medicina cubana, com os conhecimentos científicos alcançados, cuida, em primeiro lugar, da prevenção e, ao mesmo tempo, intensifica pesquisas em todos os campos possíveis, dentro das nossas possibilidades financeiras e tecnológicas. Em Cuba, há um médico para cada 200 famílias, com a tarefa de relacionar-se com elas de forma total, pois vive em seu meio, participando de todos os seus problemas, buscando com elas as soluções, numa interação pautada pelo espírito solidário, pelo amor ao próximo, o desejo de servir, de forma gratuita, em busca de soluções. Apesar das limitações que enfrentamos, estamos na vanguarda. Pesquisamos vacinas contra Aids, alcançamos a vacina con-

“Enquanto existir um cubano, existirá a consciência cubana”, diz Aleida Guevara

e latino-americanos em geral que moram nos Estados Unidos em situação social e econômica cada vez mais precárias. Falta dinheiro, não podem estudar.

DEPOIS DE FIDEL Ninguém, em Cuba, está preparado para receber a notícia da morte de Fidel, apesar de sabermos que isso ocorrerá algum dia. Será uma grande dor. Sem dúvida, sentiremos muita saudade dele. Há uma interação total entre o povo e ele, traduzida em sentimento de solidariedade e amor. Fidel, com sua imensa capacidade de trabalho e de análise dos problemas sociais e econômicos, empenhou-se de corpo e alma na preparação do espírito crítico cubano para lutar politicamente, conscientemente, por si mesmo, em favor dos seus interesses fundamentalmente humanistas. Esse trabalho, de tornar os cubanos respeitados em todo o mundo, continuará frutificando depois que Fidel partir. A sua luta em forjar o pensamento crítico ao capitalismo e à análise frente aos contextos que o desenvolvimento social produz, exigindo soluções, criou bases sólidas. Não sabemos mais viver sem essa racionalidade, de pensar por nós mesmos, em consonância com o espírito solidário humanista. A luta do povo cubano, sob o comando de Fidel, ensinouo que é o sujeito, e não, apenas, o objeto, da história cubana e latinoamericana. O povo cubano, sem Fidel, saberá conduzir o país ao seu destino. Desde 1976, Fidel é eleito democraticamente pelos cubanos, de cinco em cinco anos: deputado votado diretamente para compor a Assembléia Nacional, que escolhe o Conselho de Estado, que, por sua vez, indica o presidente, o segundo presidente e o terceiro presidente. Raul Castro, depois de Fidel, é o segundo presidente, na linha natural da sucessão, mas há outros companheiros, eleitos deputados à Assembléia, que poderão também exercer o mandato presidencial. Os cubanos e as cubanas saberão, sem dúvida, fazer sua escolha no momento adequado, democraticamente. Vamos mostrar isso ao mundo.

MOVIMENTOS SOCIAIS A democracia participativa avança sistematicamente na América Latina. Os movimentos indígenas, dos quais todos originamos, têm ganhado expressão em todos os países, devendo, nos próximos anos, assumir o poder, em obediência à lógica da mobilização popular politicamente consciente. Venezuela, Equador, Bolívia apresentam movimentos fortes. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil, representa uma novidade extraordinária. Não se pode cogitar de uma estrutura de poder que não leve em conta a movimentação deles, como força transformadora das estruturas capitalistas caducas existentes no continente latino-americano, cuja marca principal é a concentração da renda e a injustiça social. Raul Roa disse que Che Guevara é a lavra de um vulcão que caminha no subsolo latino-americano. Com efeito, essa lavra já se expõe claramente à luz do dia em diversos lugares, ganhando consistência e emergindo como força da consciência. O capitalismo, como demonstram as estatísticas disponíveis, é incompetente para criar uma nova humanidade. Dos 6 bilhões de habitantes no planeta terra, a metade ganha até 2 dólares por dia, vivendo na miséria. No Brasil, 27 milhões de crianças padecem de fome e subnutrição. O ser humano, é bom que se saiba, não vai ficar parado, esperando a morte pela fome. Vai reagir, está reagindo e se organizando, com velocidade, como ocorre com os integrantes do MST. É a marcha da história. Há que lutar, sempre.


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INTERNACIONAL MOBILIZAÇÃO SOCIAL

Uma América Latina em transformação P

ara muita gente, sobretudo para os que acompanham as transformações na América Latina, o nome da cientista política Marta Harnecker é conhecido. Há anos, as suas análises têm sido indispensáveis para entender o que se passa no continente. Chilena que viveu anos em Cuba, depois de fugir da repressão do general Augusto Pinochet, esta pensadora sintonizada com o movimento operário tem percorrido inúmeros países, inclusive o Brasil, para conhecer de perto a realidade do movimento social e popular. Atualmente, ela está debruçada sobre a revolução bolivariana liderada pelo presidente Hugo Chávez Frias. Marta Harnecker esteve recentemente no Rio de Janeiro, acompanhando a comitiva do governo da Venezuela que veio participar da Cúpula do Rio de Janeiro. Brasil de Fato – Como a senhora está vendo a conjuntura da América Latina depois da reeleição de George W. Bush? Marta Harnecker – Todos sabíamos que não havia grande diferença entre John Kerry e George W. Bush em matéria de política internacional. Com Kerry, a política externa não mudaria muito, mas haveria alguma diferença. Por isso, eu estava do lado daqueles que, nos Estados Unidos, apoiavam o candidato democrata. Para as nossa lutas, a situação não muda muito. Temos que enfrentar o império com toda a sua força. BF – Nada, então, muda para nós? Marta – Eu acho, repito, que as nossas tarefas não mudam muito, porque em nosso continente a resistência contra o modelo neoliberal avança, seja com Kerry ou Bush. Ainda falta muito por construir, mas estamos avançando. Os resultados das eleições dos últimos anos refletem isso. Os nossos povos estão escolhendo candidatos que, ao menos simbolicamente, representam uma alternativa ao neoliberalismo. Digo simbolicamente, pois, entre a execução do programa e a prática, em alguns casos há ainda grandes distâncias. Distâncias que, se não são encurtadas, recebem a punição dos povos, como no caso do presidente Lucio Gutiérrez, do Equador.

rica Latina que colocou como fundamental que, para transitar pela via pacífica, era necessário mudar as regras do jogo institucional anterior. Conseguiu mudar a Constituição, mas não basta isso. É necessário criar leis, ter uma correlação de forças no Parlamento que permita fazê-las. O aparato institucional e burocrático, tanto nos ministérios, como nos governos estaduais e prefeituras, foi herdado. Um tal aparato impede a materialização de um projeto de país diferente e transformador. BF – Como o governo Chávez mudou o quadro? Marta – O aparato institucional pode triturar os quadros. Para avançar nas medidas sociais, resolver os problemas mais agudos do povo como a pobreza, o analfabetismo, educação, saúde, o governo bolivariano criou missões, ou seja, espaços de atuação fora dos ministérios. Esta foi a maneira de atender gente que nunca foi atendida, pois os ministérios eram estruturalmente incapazes de fazê-lo.

Os nossos povos estão escolhendo candidatos que, ao menos simbolicamente, representam uma alternativa ao neoliberalismo

Quem é Diretora do Centro de Investigaciones Memoria Popular Latinoamericana (Mepla), em Cuba, Marta Harnecker é cientista política e jornalista. Nasceu no Chile, de onde saiu em 1973, ano do golpe do general Augusto Pinochet, que instaurou um regime militar no país. Desde então, viveu em Cuba e recentemente se mudou para a Venezuela. É autora de diversos livros, como Tornar Possível o Impossível (2000) e Fidel: a Estratégia Política da Vitória (2000).

complicado para a esquerda, a do que fazer quando não há candidatos que a representam. Foi o que aconteceu nas últimas eleições na Venezuela, onde havia candidatos sem muito apoio, mas foram impostos pela cúpula. Os eleitores reclamaram por esses candidatos terem sido eleitos. Temos que analisar a questão da abstenção na Venezuela, que foi grande.

Marta – Não há como as forças progressistas competirem com a mídia burguesa. Então, qual a saída? A nossa prática diferente. Por que em Porto Alegre, durante muito tempo, com toda a mídia contra, a esquerda no governo cresceu? Porque houve uma prática política diferente e as pessoas viam, e quando isso acontece, cria-se um distanciamento crítico diante das mensagens da oposição.

negro que, num primeiro tempo, estava bloqueado pela exigência da oposição. Hoje, com as divisas com o petróleo, a Venezuela tem a possibilidade de não depender das políticas do Fundo Monetário Internacional. Não é a situação da maior parte dos países latinoamericanos. Outros países não têm a liberdade econômica que tem a Venezuela.

BF – Grande quanto? Marta – Cerca de 60%. No processo venezuelano, eu sustento que toda a pedagogia do presidente Chávez leva ao crescimento político do povo. Esse povo que saiu às ruas e conseguiu a volta de Chávez, sem que tenha havido uma orientação política, sentindose protagonista. Apesar de toda a campanha midiática contra o governo. Um povo que, além disso, decidiu bloquear a informação, simplesmente deixando de ver as televisões opositoras e comprar os jornais desses grupos.

BF – No Uruguai, além da vitória de Tabaré Vasquez, foi importante a esquerda ter conseguido também maioria parlamentar? Marta – Claro. E isso vale para Lula, pois não se pode julgar os governos sem uma análise sobre a correlação de forças. Quando a esquerda analisa um governo muitas vezes esquece da correlação de forças. Não se pode comparar o governo de Chávez com o de Lula. O primeiro, como diz o próprio Chávez, é uma via pacífica, mas não desarmada. O que significa isso? Que o povo está armado? Não. Significa que é uma via pacífica que conta com o apoio da força armada institucional, quer dizer, a grande maioria do Exército apóia Chávez.

Ser radical não significa pronunciar-se a favor de soluções mais radicais, mas criar as condições para fazer as coisas

BF – Isso acontece no Brasil e em toda a América Latina. Marta – Claro. Com um esquema viciado era impossível cumprir todas as tarefas sociais. O presidente Chávez partiu para novas formas de organização dos ministérios, ou até criou novos. Nesses, o povo organizado teria de ter ativa participação, tanto na fixação das metas locais como no controle das tarefas. Nada disso é possível sem que se organize e pressione. O povo tem que ajudar, e o governante aceitar a pressão popular.

BF – Então, o papel da mídia é relevante? Marta – Sabemos que a guerra atual é midiática. Lembro sempre o que Noam Chomsky diz: a repressão está para a ditadura, como a propaganda para a democracia. Ou seja, a democracia burguesa pode se manter porque a mídia convence as pessoas que esse é o melhor dos mundos, cria ilusões com as novelas, que hoje são o ópio do povo. No Brasil me assombra que pode haver muitas favelas, mas em todas as casas se vê uma antena de TV.

BF – E quando isso não acontece? Marta – Há um tema muito

BF – E como fazer frente ao poder midiático?

Venpres

Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro (RJ)

BF – E quando as promessas não são cumpridas? Marta – No caso equatoriano, é evidente que os movimentos indígenas que apoiaram Gutierrez já concluiram que erraram e têm de buscar alternativas. Não seria surpresa se o presidente fosse derrubado. Nossos povos chegaram ao estágio em que, pelo menos, estão dispostos a resistir. Conseguiram mudar governos, como o de Fernando de la Rua, na Argentina, e, na Bolívia, a troca de Gonzalo de Lozada por Carlos Mesa. Mas não basta resistir, ou derrubar governos. Não estamos mais na época de uma esquerda destrutiva, mas na de uma esquerda que possa criar alternativas. Para isso, é fundamental a organização popular. Hoje, sem ela, nenhuma alternativa é possível. É o que mostra a Venezuela, onde o presidente Chávez ganhou oito processos eleitorais, foi confirmado democraticamente. Ele conseguiu vencer e crescer porque o povo foi se organizando. BF – Por favor, explique melhor. Marta – O venezuelano é um governo que está se movendo no quadro institucional herdado, mas faz um grande esforço para mudá-lo. Foi o governo da Amé-

Mauricio Scerni

No continente, o povo aprendeu a resistir contra a globalização, como a Venezuela, analisa Marta Harnecker

Presidente Chávez comemora vitória no referendo que colocava em jogo seu mandato

A democracia burguesa pode se manter porque a mídia convence as pessoas que esse é o melhor dos mundos BF – E no Brasil? Marta – Chávez é o primeiro governo que se coloca como bandeira de sua eleição a mudança da regra do jogo institucional, porque sabia que precisava de uma nova Constituição, e fez a propaganda eleitoral pregando uma Assembléia Constituinte. E conseguiu mudar a Constituição e, logo, a correlação de forças do aparato institucional. Isso o Lula não conseguiu. Mesmo que Lula ganhasse com maior apoio eleitoral do que o de Chávez, em 1998, não se pode esquecer que estes resultados foram produto de uma ampla política de alianças, necessária para ganhar nas urnas, e mais necessária para governar o país. O Partido dos Trabalhadores é minoria em ambas as câmaras do Poder Legislativo. A isso, acrescente-se que o Brasil depende muito mais do capital financeiro internacional que a Venezuela com o seu petróleo. BF – Como vê as diferenças entre o governo da Venezuela e o de outros da América Latina como o Brasil e Argentina, por exemplo? Marta – Além da correlação de forças, da mudança da Constituição, de uma nova correlação de forças nas instituições, e de apostar na organização popular, está a questão do petróleo. Ou seja, a Venezuela, é um país imensamente rico que tem uma grande entrada de divisas com o óleo

BF – A senhora critica as críticas da esquerda a Lula? Marta – Acho que é necessário ter em conta muitos elementos e, que, às vezes, a crítica é um pouco superficial. É preciso criar alternativas. Aplaudo aqueles que dizem não estar de acordo com o que está ocorrendo no Brasil, mas reconhecem que há um governo em disputa e se não existem forças capazes de inclinar a balança, isso fica assim mesmo. Há uma responsabilidade muito grande do pessoal que critica. Ser radical não significa pronunciar-se a favor de soluções mais radicais, mas criar as condições para fazer as coisas. Lembro que os salvadorenhos discutiam fazer uma passeata pela paz e discutiam se sairiam com a bandeira do socialismo ou da paz. Os mais radicais queriam a primeira. Os outros diziam que com a da paz reuniriam cristãos e pessoas que não eram socialistas. Decidiram finalmente fazer uma marcha pela paz e reuniram uma enorme quantidade de gente. Todos os que assistiram saíram fortalecidos para continuar a luta. Isso é muito mais radical. BF – Então, qual é o caminho? Marta – Eu acredito muito em construir forças. Eu diria que esse é o meu tema. A arte da política é essa: criar forças para fazer no futuro o que não se pode fazer hoje. Há uma reflexão sobre quem é o oportunista. É aquele que diz que não tem a força e se adapta. O revolucionário é aquele que sabe que não tem força, mas se coloca de forma a criar condições para isso. Inventa, busca, como mudar a correlação de forças. São duas posições distintas: uma conformista, oportunista, a outra, para mim, revolucionária, a que trabalha por construir as forças que permitam alcançar os objetivos. Equivocam-se os que acreditam ser mais de esquerda porque lançam discursos muito de esquerda. E digo mais: aquele que queira ser radical, que trabalhe para construir as forças sociais e políticas que permitam sê-lo. Luta-se criando. Por isso, gosto da idéia de distinguir entre uma esquerda destrutiva e uma construtiva. (Participou Beatriz Bissio)


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NACIONAL TRABALHO

A extinção dos dissídios coletivos João José Sady

O

fantasma que tirava o sono dos trabalhadores, durante muitos anos, era a inflação que corria desenfreada. Essa presença inquietante fez com que, durante anos, as entidades sindicais dedicassem o melhor de seu tempo a correr atrás dos grandes prejuízos gerados por esse problema. Num belo dia, entretanto, veio a festa neoliberal de Fernando Henrique Cardoso. As pessoas pareciam ter despertado de um pesadelo e a inflação havia sumido. O sindicalismo ficou até um tanto perdido, sem fantasmas a perseguir e buscando reinventar a si mesmo. O que ficou oculto sob as cores daquela suposta manhã radiosa é que o confisco da renda real dos trabalhadores havia mudado de lugar. Ao invés da transferência de renda ocorrer à luz do dia, sob o olhar de todos, pela perda inflacionária, passou a acontecer de um modo muito menos visível. Como “o que os olhos não vêem, o coração não sente”, muita gente boa veio a pensar que havia chegado a um admirável mundo novo. A sensação de segurança e solidez garantiu a FHC oito anos de mandato, até que a sociedade percebesse que havia algo de errado. Não se percebia que haviam criado um novo dragão. Substituindo a inflação, ele agia nas sombras de modo tão eficaz que a participação do capital na renda nacional subiu de 50% para 64%, no período de 1993 a 2003, transferindo-se renda de uma forma bem mais poderosa. A derrota do inimigo visível fez por ocultar o surgimento do inimigo novo e mais discreto: a reorganização do mundo do trabalho.

Sérgio Lima/Folha Imagem

A abolição do Poder Normativo da Justiça do Trabalho enfraquece os trabalhadores na luta contra a perda salarial

Bancários fazem passeata na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, durante greve que paralisou 200 mil trabalhadores

PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO Os salários foram sendo corroídos pelo novo modelo neoliberal, cuja primeira praga era a precarização do trabalho, levando as pessoas ao desemprego, à informalidade, à terceirização, à flexibilização etc. A segunda praga era a reorganização do trabalho, com a polivalência, a automação e outros ganhos de produtividade que fazem com que hoje, por exemplo, um trabalhador têxtil produza a mesma tonelagem de tecidos antes gerada por cinco operários. As classes dominantes cantam aos quatro ventos com muito orgulho que o Brasil teve enormes ganhos de produtividade. Na verdade, não tinha sido o Brasil, mas os empregadores, porque, dos cinco operários que faziam aquela tonelada, quatro foram para o desemprego e a favela.

sociólogos”, a Justiça do Trabalho reagiu a partir da gestão do ministro Francisco Fausto na Presidência do Tribunal Superior do Trabalho. O Judiciário entrou no campo de batalha em favor dos trabalhadores, garantindo a renovação das conquistas históricas e iniciando a recuperação das perdas salariais.

PARTICIPAÇÃO NOS LUCROS

Paradoxalmente, o uso desse poder do Judiciário em favor dos trabalhadores fez com que fossem diminuindo os processos desse tipo. A quantidade de dissídios coletivos, ou seja, os processos para acionar a intervenção do Judiciário nas relações coletivas foi diminuindo. Sabendo que, ao ir para aquela arena, seriam obrigados a garantir esse patamar mínimo, os patrões preferiam negociar, e a contratação coletiva voltou a florescer, e as perdas começaram a ser recuperadas gradualmente. Tudo parecia ir melhorando, mas, no final de 2004, o assim chamado governo popular conseguiu aprovar, na Emenda Constitucional da Reforma do Judiciário, a extinção dos dissídios coletivos, ou, em linguagem técnica, a abolição do Poder Normativo da Justiça do

De uma certa forma, “tiraram a escada” e os sindicatos foram se conformando durante anos a fazer com que os trabalhadores aceitassem “caixinhas” denominadas de participação nos lucros e resultados, em vez de aumentos salariais. Como resultado, entrava e saía ano e o salário ficava o mesmo. Como a inflação era baixa, o sapo foi sendo digerido com o salário sendo reduzido paulatinamente em seu valor real, as cláusulas normativas sendo suprimidas, os postos de trabalho sendo destruídos. Num belo dia, contudo, o dragão da inflação voltou a se tornar visível e nem os melhores colaboradores de FHC nessa parceria puderam continuar a ajudar a manter esse arrocho. Assim é que, no apagar das luzes do reinado do tal “príncipe dos

É inacreditável que a legislação trabalhista neste país não leve em conta o fato de que no capitalismo o trabalho é tratado como mercadoria

Maurício Lima/AFP

No final de 2004, o assim chamado governo popular conseguiu aprovar a extinção dos dissídios coletivos E onde estavam os sindicatos enquanto tudo isso acontecia? Como é que eles não conseguiram resistir a esse processo de expropriação e sofreram uma derrota tão portentosa? O problema é que os sindicatos exprimem os trabalhadores e estes estavam esmagados diante dessa maré de flexibilização, encurralados na parede, sentindo na garganta a pressão da espada do desemprego. E pior que tudo: foram sendo convencidos de que não há outro mundo possível além deste reinventado pelo FMI, no qual produzir mais com menos gente é a grande meta para ser feliz. A idéia de que a prioridade do país deva ser a de que cada um deva ter um trabalho e ter direito a conservá-lo passou a ser apelidada de jurássica, esquerdista, fordista, ou outro apelido qualquer

que se antepunha à esquerda rebatizada como “burra”, que insistia em resmungar que o controle da inflação ia bem mas o trabalhador estava cada vez pior. Como é que FHC pavimentou a estrada nessa direção, em termos de legislação trabalhista? Muito simples. Anunciando que ia debelar a suposta erva daninha da “herança varguista”, implantou o maravilhoso mundo da “livre negociação”, no qual a única regra válida era o “quem pode mais chora menos”. Foram revogadas ou tornadas inoperantes as leis que ativavam o Estado para intervir nas relações de trabalho para ajudar os trabalhadores a obter dos patrões, anualmente, ao menos a reposição da perda inflacionária e a manutenção das antigas conquistas de cada categoria.

Produção de carros, em São Caetano do Sul (SP)

Trabalho. Em linguagem popular, houve a abolição do suporte que o Judiciário concedia aos trabalhadores nas batalhas para resistir contra a perda de renda. A tal Constituição-Cidadã, depois de dezesseis anos de resistência, foi despojada das normas que possibilitavam tal intervenção. Isso porque esse poder do Judiciário vinha sendo tolerado, apenas, porque os próprios ministros embarcaram por longo tempo no canto de sereia de FHC, no sentido de que não deveriam intervir, deixando os trabalhadores na linha da “livre negociação”.

COMPETITIVIDADE É a vitória do pensamento de que há um único mundo possível onde a única razão perversa que preside as relações de trabalho é fazer com que as empresas sejam “mais competitivas”, ou seja, produzam mais com menos gente e, com isso, ganhem muito mais. A tal “liberdade de negociação” consiste em fazer com que o chamado direito a um trabalho decente não seja um patamar da cidadania do trabalhador assegurado pela lei, mas uma luta diária pela sobrevivência, na permanente defesa de uma cada vez menor fatia do trabalho no bolo da produção do país. Agora, depois de sessenta anos, vamos viver um novo mundo jurídico, em que não existe mais intervenção do Estado em favor dos empregados. Primeiro, suprimiram a lei que garantia esse patamar e, como ninguém berrou, agora tiraram dos juízes o poder de fazer aquilo que era feito pela lei falecida. Daqui para a frente, as regras do jogo são as seguintes: não há direito à reposição da perda inflacionária e à renovação das cláusulas dos dissídios coletivos. Quem quiser alguma coisa vai ter que obrigar o patrão, na queda de braço da greve. As recentes greves derrotadas dos bancários e empregados do Judiciário, que ficaram meses parados e foram vencidos, bem mostram como andam as chances dos trabalhadores nessa queda de braço no maravilhoso mundo do desemprego, em torno de 20%. É inacreditável que a legislação trabalhista neste país não leve em conta o fato de que no capitalismo o trabalho é tratado como mercadoria e segue a lei da oferta e da procura. Trabalhadores demais e empregos de menos, resultam em miséria nos salários e opressão dentro das empresas. O chamado governo popular suprime a intervenção do Estado para defender o valor do salário,

enquanto gasta bilhões de dólares para tentar impedir que o dólar não perca seu valor diante do real. No novo território do “salve-se quem puder”, a regra será a de que, ou se faz uma greve vitoriosa ou, fica-se com nada. A conseqüência é que muita gente boa no sindicalismo vai ter que ranger os dentes e assinar contratos coletivos com sabor de capitulação e muita gente ruim vai assinar correndo os contratos mais humilhantes, apenas para manter a ilusão de que atuam como sindicatos. Honestos e bandidos vão cair no mesmo desastre e a diferença será somente, que os honestos vão fazer a mesma coisa (assinar acordos ruins) com muita tristeza e frustração.

Muita gente boa no sindicalismo vai ter que ranger os dentes e assinar contratos coletivos com sabor de capitulação É preciso urgentemente construir uma ponte entre juristas, legisladores e trabalhadores, no sentido de proclamar o projeto de um outro mundo possível em termos de legislação trabalhista. Construir uma legislação que parta do pressuposto de que é fundamental garantir ao pessoal do andar debaixo, um alento, uma esperança na vida, dentro dos limites da legalidade. Caso contrário, toda essa conversa fiada de democracia, Estado de Direito etc. irá por água abaixo. Construir uma legislação que tenha como norma fundamental uma tese que o atual presidente da República proclamava no início de sua carreira política sindical: democracia para o trabalhador, no fim das contas, é arroz com feijão na mesa. Se não houver como chegar ao arroz com feijão dentro dos limites da ordem jurídica, esta deixa de ser democrática e se mostra perversa e vai ter que sobreviver como fortaleza sitiada pelos excluídos que vão ficar rasgando todas as leis em busca do ilegal arroz com feijão que seus ilegais estômagos exigem com ansiedade. João José Sady é advogado, doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor na Universidade de São Francisco, em São Paulo


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AMBIENTE TRABALHADORAS RURAIS

Quebradeiras de Coco reescrevem a história H

á cerca de 20 anos, no Médio Mearim, Estado do Maranhão, mulheres quebradeiras de coco babaçu decidiram escrever um novo roteiro para a história das palmeiras de babaçu. “Ou a gente brigava contra a derrubada e a queima das palmeiras, ou a gente ia morrer”, conta a vereadora e quebradeira de coco, Maria Alaíde, do município de Lago do Junco. A vereadora diz que as mulheres começaram avisando aos fazendeiros, que não as deixavam entrar no babaçual, que eles não podiam juntar o coco para vendê-lo em grandes quantidades, nem podiam cortá-lo porque só uma pessoa seria beneficiada. “A gente ganhou mais força quando os homens sentiram na pele a necessidade de lutar pela terra. Eles disseram aos fazendeiros que não iam mais passar por baixo de arame”, acrescenta Maria Alaíde. Foi o começo dos conflitos e perseguições às quebradeiras de coco babaçu e aos trabalhadores rurais. Em 1987, elas criaram a Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais (AMTR). Em 1989, surgia a Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão (Assema), para prestar as-

sistência técnica aos trabalhadores rurais nas áreas de assentamento. Em 1991, foi a vez do Movimento Interinstitucional de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB, hoje AMIQCB).

CONQUISTAS A luta valeu a pena. “A gente não está mais sonhando. Nosso sonhos deixaram de ser utopia para ser realidade”, diz, alegre, a coordenadora da Associação e Movimento Interinstitucional de Quebradeiras de Coco Babaçu (AMIQCB), Maria Adelina de Souza Chagas, a Dada. A região do Médio Mearim é a de maior concentração de babaçu do Brasil: dez milhões de hectares. A imensa maioria das palmeiras está em grandes fazendas, que cobravam para deixar as quebradeiras tirar o coco, ou simplesmente barravam a sua entrada. São mais de 300 mil extrativistas que têm no babaçu a principal fonte de renda no Maranhão, Pará, Piauí e Tocantins. Sua vida não era fácil, permeada de obstáculos para ter acesso aos babaçuais. Hoje, o acesso ao coco é livre, garantido por lei em vários municípios e por lei estadual. Além de garantir o livre acesso, a legislação proíbe derrubadas, cortes de cachos e uso de herbicidas nos babaçuais.

Babaçu é a principal fonte de renda para mais de 300 mil extrativistas; o acesso ao coco hoje é livre e garantido por lei

Mulheres organizadas A Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão (Assema) é a entidade que articula as várias associações nas quais as mulheres quebradeiras de coco babaçu se organizam. Por meio do Programa de Organização das Mulheres, as quebradeiras de coco participam de discussões sobre políticas ambientais, direito e valorização da mulher, entre outras. “A meta é fortalecer as organizações de mulheres vinculadas à Assema e ao Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB)”, diz a coordenadora da Associação e Movimento Interinstitucional de Quebradeiras de Coco Babaçu (AMIQCB), Maria Adelina, Dada. Ela avalia que o Programa vem contribuindo para a redução das desigualdades nas relações de gênero, para garantir o livre acesso aos babaçuais e para a participação das mulheres nas discussões sobre projetos produtivos. Nesse aspecto, o Programa trabalha com associações e grupos de mulheres quebradeiras de coco

A trajetória dessas trabalhadoras rurais as torna vítimas de doenças graves

Atravessadores não mandam mais assinado há mais de cinco anos. “Se não fosse a compra da Body Shop, a gente não teria recursos para repassar às quebradeiras de coco todo final de ano. Antes disso, a cooperativa não saía do vermelho”, conta a vereadora Alaíde. A empresa inglesa paga à cooperativa o dobro do preço do mercado pelo litro de óleo. Agora quem dita as regras é a Coppalj, não o atravessador, como antes. “Estamos conseguindo que o atravessador acompanhe o nosso preço ou então vai ficar sem o produto”, informa o presidente da cooperativa, Raimundo Vidal. É dura a vida da quebradeira do coco. Para conseguir cerca de 10 quilos de amêndoas, são necessários mais de 120 quilos do coco. Elas trabalham, em média, oito horas por dia, segundo levantamento feito por estudantes de uma faculdade do Maranhão. Do babaçu, aproveita-se tudo. Com o mesocarpo, é fabricado um complemento alimentar que substitui o chocolate. O óleo é matériaprima para a produção de sabonetes, e as cascas para a de carvão. A palmeira é utilizada tanto na cobertura de casas, como na produção de papel e de embalagens. (FL)

Além do coco livre, as quebradeiras criaram o “kit babaçu livre”

LEGISLAÇÃO Primeiro, elas atingiram seus objetivos na luta diária, depois partiram para as esferas políticas convencionais – Câmaras e Assembléia Legislativa – para brigar pela criação de leis que protegessem a palmeira do babaçu. Em 1997, no município de Lago do Junco, as quebradeiras de coco conseguiram a aprovação do projeto de Lei Babaçu Livre. A luta foi iniciada pela Associação de Mulhe-

res Trabalhadoras Rurais de Lago do Junco e de Lago dos Rodrigues. Dois anos depois, foi a vez do município de Lago dos Rodrigues, onde a associação local de mulheres trabalhadoras rurais conseguiu a aprovação da Lei Babaçu Livre (nº 32/99). Em dezembro de 1999, em Esperantinópolis, foi aprovada a Lei nº 255/99. Em setembro de 2001, a secretaria da mulher do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais lutou e conseguiu a aprovação da Lei nº 319/2001 no município de São Luiz Gonzaga do Maranhão. Nesse município, as quebradeiras conquistaram, ainda, a aplicação de advertência e penalidades, medidas que até então não estavam contempladas em lei. Segundo a vereadora e quebradeira de coco Maria Alaíde, a luta das quebradeiras incluiu a proteção das palmeiras de babaçu, desde junho de 1986 amparadas pela Lei Estadual nº 4.734, que proíbe a sua derrubada. Recentemente, a lei sofreu uma emenda que prevê a aplicação de multas aos infratores. (FL)

Nas eleições, uma revolução

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A história da palmeira do coco babaçu confunde-se com a história das quebradeiras de coco. Geralmente, elas começam na atividade aos sete anos e vão até a velhice. Uma trajetória que as torna vítimas de doenças graves e seqüelas físicas muitas vezes irreversíveis. Apesar de serem responsáveis por cerca de 70% das 115 mil toneladas de amêndoas produzidas no país, a maioria das quebradeiras de coco vive sem assistência médica, dentária e social. Entretanto, esse desamparo não desanima essas guerreiras. No Maranhão, além do “coco livre”, as quebradeiras conseguiram criar o “kit babaçu livre”: sabonete, carvão, farinha do mesocarpo, papel reciclado, óleo etc. Elas também montaram uma fábrica de sabonetes e, pela Cooperativa Agro-extrativista de Lago do Junco (Coppalj) uma planta de produção de óleo. Para montar a unidade de óleo, elas receberam R$ 80 mil do Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência (Unicef). O óleo extraído já tem destino certo: 30% vão para fora do país, para a indústria inglesa Body Shop; 5% para a fabricação do sabonete, e o restante é vendido a empresas da região. O contrato com os ingleses foi

babaçu, incentivando a criação de alternativas produtivas e de geração de renda, como a fábrica de sabonete, extração de óleos especiais, fabricação de papel reciclado, farmácia viva, compotas de frutas. Na área de articulação política, o Programa de Organização das Mulheres acompanha a discussão e a criação de leis municipais que liberam o acesso aos babaçuais, e desenvolve um trabalho de fortalecimento regional do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu.

As quebradeiras de coco no Médio Mearim estão fazendo uma revolução silenciosa. Nas eleições de 2004, mesmo competindo com velhos coronéis, mas, confiando nos seus exércitos de quebradeiras, pescadores e pequenos produtores elas conseguiram a façanha de mudar quase todos os prefeitos da região. Além de eleger quebradeiras de coco e trabalhadores rurais para as câmaras municipais. Em Lago do Junco, a 317 quilômetros de São Luís, a coligação da qual elas participaram fez três vereadores. Um deles é a quebradeira de coco Maria Alaíde (PT). No município de Penalva, a 249 quilômetros da capital, elas elegeram Maria Nice Machado Aires, dona Nice (PT). E em Esperantinopólis, a 346 quilômetros da capital maranhense, o eleito foi o trabalhador rural Manoel de França. Maria Alaíde foi reeleita com 353 votos e está em seu segundo mandato. Sua campanha foi realizada com muitas dificuldades, visitando as comunidades de moto, junto com o marido Hildo Lopes, e sofrendo pressões e ameaças dos adversários. No primeiro mandato, ela lutou pela ampliação da Lei Babaçu Livre, acrescentando artigos que proíbem o plantio de vegetação que prejudica o babaçu; o corte da concha; e o uso de agrotóxicos. Também apresentou emendas relativas à capacitação para os jovens; e proposta de resgate de leis para

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Fátima Lessa de São Luis (MA)

Fotos: Divulgação

No Maranhão, mulheres lutam contra derrubada das palmeiras de babaçu e conquistam acesso livre ao coco

As quebradeiras de coco também colheram resultados positivos nas eleições

implantar o colégio do 1º grau no município. Para Maria Alaíde, a dificuldade é grande porque “o político ainda é muito malvisto”. Ela tem esperança de mudar essa imagem com a continuidade do seu trabalho, e acredita que saiu mais fortalecida na zona rural.

DIFICULDADES Dona Nice, moradora do povoado Jacaré, em Penalva, é uma negra de 44 anos, semi-analfabeta, mãe de cinco filhos. Vive da quebra do babaçu e coordena o Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB). Apesar da lida cotidiana, ela ainda encontra tempo de organizar

as mulheres em torno de questões como a preservação ambiental ou a geração de renda pelo aproveitamento do coco babaçu. Na sua campanha, não contou com ajuda de nenhum partido. Não tinha bicicleta velha, nem canoa furada para se locomover. Só contou com apoio das companheiras quebradeiras. É o seu primeiro mandato. Manoel de França (PSB) diz que sua presença na câmara municipal se deve ao trabalho realizado com os “companheiros trabalhadores rurais, e ao importante trabalho da Assema. O vereador afirma que está vigilante na aplicação da Lei do Babaçu Livre. “Ela existe, mas precisamos ver se está sendo cumprida de fato”, declara. (FL)


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DEBATE RUMOS DO GOVERNO

Retrocesso do Estado de Direito Vincenzo Lauriola

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m seu artigo “O governo Lula e as Terras Indígenas”, o antropólogo Marco Paulo Schettino desenha um quadro lúcido e verídico da situação de extrema decepção em que o governo Lula foi capaz de se colocar em menos de dois anos, com relação à (falta de) política indigenista, e mais especificamente com relação às questões fundiárias. Mesmo no caso da Raposa Serra do Sol, em Roraima – que o autor cita como exceção à adoção de critérios conservadores para a aplicação da lei pela Funai –, alguns sinais não deixam de ser preocupantes, na medida em que, mais uma vez apontam para “saídas negociadas”, o que de fato significa abrir a porta para o desmembramento puro e simples da terra indígena. Existem casos em que, ao negociar com certos atores e/ou sobre certos objetos, o Estado mina as bases de sua própria legitimidade. É o exemplo, atualíssimo, do terrorismo: mesmo com posições políticas diferentes uns dos outros, os Estados não negociam com os terroristas, por não reconhecerem a legitimidade de seus métodos de ação. Em janeiro de 2004 o governo Lula viu a reação dos setores antiindígenas de Roraima às declarações do ministro da Justiça sobre a iminente homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Os rizicultores da Raposa Serra do Sol, sete empresários que, a despeito da área já demarcada, há cerca de uma década ocupam áreas crescentes da terra indígena com suas lavouras, com o apoio de políticos, governantes e elites locais, decretaram na cidade um verdadeiro estado de sítio. Durante uma semana, houve invasão de prédios públicos, seqüestro de pessoas, ameaça de invasão da sede de organizações indígenas como o Conselho Indigenista de Raraima (CIR) ou de seus aliados, como a Igreja Católica (a própria Catedral de Boa Vista sofreu ameaças de invasão), os caminhões dos arrozeiros bloquearam todas as rodovias de acesso a de Boa Vista, e pichadores enfeitaram os carros dos boa-vistenses com as frases “Fora Funai”, “Fora ONGs”, “Fora Diocese”, “Xô estrangeiros”. Poucas semanas depois um funcionário da Funai foi trucidado por garimpeiros na área yanomami. enquanto o enredo do Carnaval de Boa Vista cantava “Fora Funai”, a poucos metros da praça central, onde se ergue a estátua dourada de homenagem ao garimpeiro, símbolo da história da capital e do Estado. Tudo isso para pressionar o governo federal contra a homologação da Raposa Serra do Sol em área continua, num Estado cujo orçamento depende em mais de 90% de recursos federais; onde durante anos, mais de 10% da folha de pagamento dos servidores estaduais foi sistematicamente desviada para os bolsos de deputados e outros políticos (escândalo dos “gafanhotos”); onde apenas um ano antes, após encontrar o corpo do indígena Aldo Macuxi enterrado numa cova rasa na fazenda de um vereador de Uiramutã, o laudo pericial do Instituto Médico Legal (IML) local atestou “morte natural” (posteriormente o IML de Brasília reconheceu ter havido uma execução pelas costas com os braços levantados).

nipular os mecanismos do direito, as informações na mídia e, direta ou indiretamente, a orientação dos magistrados. Em poucos meses, as pressões políticas por meio de atos criminais, gozando da impunidade habitual neste pedaço de Brasil, fizeram o governo recuar de seus propósitos legais declarados. Um arrozeiro chegou a declarar: “O Lula está fora desse processo. A nota do ministro é ridícula. O Lula vai sair do poder e nós vamos ficar aqui. E o PT vai junto com ele” (Folha de Boa Vista, 31/08/2004). O governo Lula abriu espaço para que comissões políticas incompetentes e inconseqüentes contestassem os laudos e relatórios de demarcação da Funai. Assim, o vácuo político abriu espaço para que as próprias instâncias judiciais iniciassem uma série de pronunciamentos e decisões sem precedentes, dando andamento e continuidade a um processo cujo objetivo claro é anular a portaria de demarcação da terra indígena, e fornecendo ao presidente Lula o álibi de que estava precisando para protelar ulteriormente sua decisão “já tomada”. O círculo estava fechado. Uma ação popular na Justiça argumenta que a demarcação da Raposa Serra do Sol em área única traria conseqüências negativas para o desenvolvimento do Estado, alegando a escassez de terras agricultáveis como o maior prejuízo. Isso com base em laudos supostamente interdisciplinares onde o parecer do antropólogo, sempre considerado o principal em questões indígenas, é desde o início e estruturalmente minoritário no meio de outros técnicos, cujas posições são perfeitamente alinhadas com o discurso político local. Mesmo sem considerar que, num dos Estados menos densamente povoados do Brasil (325.000 habitantes em 225.000 quilômetros quadrados) alegar falta de terra pode ser considerado já por si ficção cientifica, ou fingindo não ver os resultados de levantamentos técnico-fundiários da Embrapa de Roraima, que atestam a disponibilidade no Estado de 28.000 quilômetros quadrados (2.800.000 ha, mais de 1,5 vezes a área total da Raposa Serra do Sol!) de terras institucionalmente livres e aptas para a agricultura, o que isso tem a ver com os direitos originários dos povos indígenas da Raposa Serra do Sol? Se as terras são indígenas, isso não quer dizer que compete aos índios decidir sobre seu desenvolvimento? Ou eles não

seriam, ao mesmo título que os nãoíndios, cidadãos brasileiros e parte integrante da população do Estado? E mesmo se for comprovado que o uso exclusivo indígena daquelas terras comportaria uma taxa menor de atividade econômica no Estado, os conceitos e os indicadores do que chamamos de desenvolvimento são tão relativos, etnocêntricos, criticados e criticáveis (o próprio Banco Mundial reconhece cada vez mais os limites de concepções e indicadores tradicionais como o PIB, buscando definir novos indicadores, como o IDH, para dar conta de tantas imperfeições), que qualquer conclusão supostamente “científica” sobre o assunto não passa em realidade de um ponto de vista de um técnico ou de um grupo de técnicos, sendo que outro técnico ou outro grupo de técnicos poderiam perfeitamente chegar a conclusões opostas.. Ou, pior ainda: manipulando grosseiramente atores e mídia, se busca (e com sucesso!) vender, para os governantes em Brasília, para a opinião pública nacional e para os magistrados, a imagem de um iminente risco de conflito interétnico. Neste hipotético conflito, as elites locais, após décadas de inculcar o preconceito nos bancos das escolas, transformando opressores e escravizadores de índios em “desbravadores”, vestem hoje a máscara do Estado e, escondendo seu papel de fomentadores, se apresentam como árbitros, mediadores, pacificadores.

DESCONHECIMENTO DA TERRA Os políticos que vão a Roraima para conhecer este pedaço de Hemisfério Norte do Brasil, que representa a última fronteira, sempre viajam de avião, no único vôo noturno que o liga ao Hemisfério Sul. Seria tão mais instrutivo viajar por terra e de dia, de Manaus a Boa Vista! Daria para perceber claramente quanta terra, já desmatada e cercada, às margens da BR 174, está realmente disponível para usos mais produtivos que as raras cabeças de gado que, de vez em quando e com um certo esforço, o viajante apenas consegue enxergar. Assim como, atravessando a Terra Indígena Waimiri-Atroari, poderiam tocar com mão a história daquela área, percebendo o imenso custo humano e ambiental da miragem desenvolvimentista que a BR 174 representa: após ser quase exterminado pela “pacificação”, aquele povo indígena acaba de festejar por sua população ter atingido 1.000

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pessoas, um terço do contingente originário. O discurso antiindígena e os frutos mais manipulados e mediatizados da cooptação, grosseiramente praticada por décadas, requalificados como “fatos novos” e “riscos iminentes de danos irreversíveis” na incompreensível linguagem dos magistrados, forneceram os pretextos para suspender liminarmente a portaria demarcatória da terra indígena, mais de cinco anos após sua edição, jogando para o espaço qualquer principio de certeza do direito, de eficácia de portarias ministeriais, qualquer sentido de direito constitucional originário. Alegando “fatos novos” ou “riscos iminentes” será que, daqui para a frente, qualquer juiz poderá suspender liminarmente, ou até anular os atos demarcatórios de qualquer terra indígena? Assim, frente às comunidades indígenas que se mobilizam para tentar frear com novas moradias o avanço descontrolado das lavouras em suas terras, que em alguns casos mais que decuplicaram sua área nos últimos dois anos, o mesmo juiz dá reintegração de posse aos arrozeiros invasores, e manda os índios saírem de suas casas construídas nas fronteiras dos arrozais. Hoje, na Raposa Serra do Sol talvez mais que em outros casos e momentos de nossa historia recente, parecem tomar corpo as letras do Djavan: “Nessa terra tudo dá, terra de índio / nessa terra tudo dá, não para o índio / quando alguém puder plantar, quem sabe índio / quando alguém puder plantar, não é índio”. No vazio político sobre o sentido do direito, o arbítrio puro se vem apossando legalmente dos mecanismos do Judiciário para reverter profundamente o sentido prático dos direitos territoriais indígenas. Pior que nos regimes militares: lá não havia a Constituição de 1988, não se precisava torcer o sentido da Carta Magna. Assim, o governo Lula corre o risco de ser lembrado como o governo que contribuiu

DISCURSO E PRÁTICA E, frente a tudo isso, o governo vacilou: ao mesmo tempo em que, durante meses, continuava declarando a homologação como decisão já tomada, de fato cedeu à chantagem da bancada federal de Roraima, que se elege com poucos milhares de votos... No vácuo político da obstinada protelação da homologação, abriu-se espaço para o arbítrio de poucos, capazes de ma-

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de forma decisiva para remover os últimos empecilhos legais à privatização das terras indígenas e à penetração livre e descontrolada do mercado e do capitalismo global nos recantos mais remotos da Amazônia. Ao mesmo tempo em que busca no discurso o fortalecimento do Estado como ator central da definição das decisões coletivas e das políticas publicas, o governo Lula não percebe que ao fazer isso, em contextos locais histórica, política e estruturalmente frágeis e/ou corrompidos, esvazia definitivamente de qualquer poder de auto-organização as sociedades indígenas, promovendo um novo integracionismo, fundado na cooptação econômica e política, na troca entre direitos originários e assistencialismo (hoje, cotas!), negando de fato qualquer possibilidade plena e duradoura para o Brasil ser real e plenamente um país pluriétnico. Nas incertezas profundas que hoje assombram o cenário futuro dos direitos indígenas no Brasil, podemos afirmar que, se retrocessos dramáticos vão ser evitados, isto será graças à mobilização dos próprios indígenas. Na Raposa Serra do Sol, frente ao avanço das lavouras brancas em suas terras, destruindo lagos, biodiversidade e espalhando agrotóxicos, enquanto Ibama e Funai se preocupam com penas em artesanato e pesca com timbó, eles arriscam suas próprias vidas para defender a terra de seus pais. Mais uma vez não há muito que acrescentar às letras do Djavan: “Sua ação é válida, meu caro índio /sua ação é válida, valida o índio / isso pode demorar, te cuida índio / isso pode demorar, coisa de índio”... Vincenzo Lauriola é socioeconomista ambiental, doutor em Desenvolvimento Sustentável e Ciências Sociais, pesquisador em Etnoecologia, integrante do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Coordenação de Ecologia (CPEC), Manaus, AM


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agenda@brasildefato.com.br

DISTRITO FEDERAL SEMINÁRIO NACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS CULTURAS POPULARES 23 a 26 de fevereiro de 2005 O evento, iniciativa da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, é fruto de discussões realizadas com vários segmentos da sociedade civil e pretende ampliar o debate sobre iniciativas e políticas que fortaleçam a pluralidade cultural por todo o país. O seminário será organizado em cinco painéis, com a presença de mestres populares, produtores de cultura, pesquisadores e intelectuais de renome. Na oportunidade, serão culturas, os diferentes circuitos de difusão e consumo de suas múltiplas expressões, a incorporação da diversidade cultural aos processos educacionais da sociedade brasileira e a atuação do Estado brasileiro no campo das culturas populares. Local: Funarte, Eixo Monumental, Setor de Divulgação Cultural, Lote 2, Brasília Mais informações: (61) 226-9228 diversidadecultural@minc.gov

RIO GRANDE DO SUL 1º FÓRUM MUNDIAL DA COMUNICAÇÃO E DA INFORMAÇÃO 25 de janeiro de 2005 O evento, que vai acontecer durante o Fórum Social Mundial 2005, reunirá jornalistas, ativistas e pesquisadores em um debate sobre as atividades de diversos meios de comunicação em todo o mundo. Participam do evento o jornalista Ignácio Ramonet, presidente do Media Watch Global; Jeremy Hobbs, da Oxfam; o estadunidense Steve Rendall, da organização Fair, entre outros. Local: a definir, Porto Alegre Mais informações: www.crisinfo.org/content/view/ full/591 EXPOSIÇÃO MADALENA SCHWARTZ Até 27 de fevereiro de 2005, de

terça a domingo, das 14h às 22h A mostra reúne mais de 60 imagens da fotógrafa húngara Madalena Schwartz (1921-1993), considerada uma das maiores retratistas do Brasil. Os trabalhos serão apresentados em três núcleos temáticos: Povo brasileiro, Personalidades e Travestis e transformistas. Local: Instituto Moreira Salles, Av. Túlio de Rose, 80, 2º piso, Porto Alegre Mais informações: (51) 3341-9685

RIO DE JANEIRO OBSERVANCES Até 9 de janeiro de 2005 A exposição do fotógrafo filipino Emmanuel Santos retrata diversas comunidades judaicas ao redor do mundo. Dividida em quatro núcleos temáticos, o conjunto de 70 fotografias em preto e branco inclui imagens como a de um casamento judaico na Itália, do interior de uma sinagoga na Ucrânia e da comemoração do dia de Yom Kipur na Índia, quando é costume alimentar os elefantes com amendoins. Local: Centro Cultural Justiça Federal, Av. Rio Branco, 241, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 3212-2550 PLANEJAMENTO PARTICIPATIVO PARA PROJETOS SOCIAIS 10 a 13 de janeiro de 2005 Curso promovido pela ONG Aiubá Projetos e Cidadania, com o objetivo de possibilitar a reflexão sobre gestão participativa, elaboração de projeto social. Local: Associação Beneficente São Martinho, R. Morais e Vale, 111, 5º andar, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2210-2128 cursorj@aiuba.org.br 1º SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE ECONOMIA SOLIDÁRIA 17 a 21 de janeiro de 2005 O evento pretende discutir a economia solidária no país e na América Latina e também receber exemplos do desenvolvimento

ATLAS RACIAL BRASILEIRO Desde o início de dezembro, está disponível na internet uma série de dados sobre raça e cor. Resultado de uma parceria entre o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e o Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Atlas Racial Brasileiro conta com mais de cem indicadores sociais sobre o país – as cinco regiões, Estados e Distrito Federal. A obra reúne resultados de uma série de pesquisas e estudos feitos por instituições no Brasil. Compila informações sobre demografia; condições de saúde e acesso a serviços de saúde; família e domicílio; saúde reprodutiva; educação; trabalho e renda; e cobertura trabalhista e previdenciária: www.pnud.org.br/publicacoes/ atlas_racial/index.php

desse tipo de empreendimento na Europa. Local: Centro Marista São José das Paineiras, Rodovia RJ 127, km 32, Mendes Mais informações: (21) 2509-0263 seminariointernacional@cedacnet. org.br

SÃO PAULO OFICINA SOBRE PROJETOS SOCIAIS E CAPTAÇÃO DE RECURSOS 27 de janeiro de 2005, das 8h às 17h Durante a oficina serão abordados os seguintes temas de trabalho: principais variáveis que impactam e condicionam o comportamento das organizações na elaboração de projetos, indicadores de avaliação, acompanhamento e gerenciamento, fatores de risco, elaboração de cronograma, orçamento e fluxo de caixa e usos de fontes e agentes financeiros. Local: Liceu de Artes e Ofícios, R. da Cantareira, 1.351, São Paulo Mais informações: (11) 3313-1877

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AGENDA

INAUGURAÇÃO DA ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES 23 de janeiro de 2005, a partir das 9h O encontro vai comemorar a inauguração da primeira fase da construção da escola, iniciada em março do ano 2000, e concluída graças ao trabalho voluntário de trabalhadores sem-terra, acampados e assentados. A festa será durante todo o dia, com atividades políticas e culturais de confraternização. Local: Escola Nacional Florestan Fernandes, R. Poá, 1.140, Guararema Mais informações: (11) 3361-3866 inauguracaoenff@mst.org.br SAMBA DE RAIZ de quinta a domingo, a partir das 19h Com decoração verde e rosa, em alusão à escola de samba carioca, o Bar Mangueira tem espaço para 500 pessoas. O palco para os shows é suspenso. Local: R. Cláudio Soares, 124, São Paulo

Mais informações: (11) 3034-1085 1O CONCURSO “CAUSOS DO ECA” Até 25 de março de 2005 Estão abertas as inscrições para o concurso, que tem como objetivo estimular a sociedade a contar histórias de cidadania vividas por meio da aplicação das diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A iniciativa é da Fundação Telefônica e da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI). Os finalistas terão suas histórias publicadas em livro, e o vencedor ganhará um computador. Trata-se de um concurso para premiar e disseminar histórias verídicas de pessoas que tenham transformado vidas – ou tenham tido suas próprias vidas transformadas – a partir da aplicação das diretrizes do ECA. Mais informações: www.risolidaria.org.br/vivalei/ causoseca/index.jsp


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CULTURA

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MÚSICA

A gente precisa da arte para viver Paulo Pereira Lima da Redação

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Ferréz defende as cotas para negros e espera que a produção da periferia conquiste seu espaço nas escolas

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ma das principais vozes do hip hop de São Paulo, movimento que comemora 20 anos, o escritor Ferréz está envolvido em um projeto que pretende fazer ecoar ainda mais pelos quatro cantos do país o desabafo da periferia. O livro Literatura Marginal, a ser lançado no começo de 2005, reúne autores que têm como fonte de inspiração o cotidiano de suas comunidades. Morador de Capão Redondo, zona sul de São Paulo, descrita pela mídia como uma das regiões mais violentas do país, Reginaldo Ferreira da Silva, o Ferréz, tem outro ponto de vista sobre o assunto: “Violência é não ter um posto de saúde que funcione, não ter atendimento médico digno”. Os romances de Ferréz, Capão Pecado, publicado em 2000, e Manual Prático do Ódio, de 2003, retratam o cotidiano da periferia. Em entrevista ao Brasil de Fato, o escritor ressalta que não aborda o morador de periferia como carente nem excluído da sociedade. Um dos principais colunistas da revista Caros Amigos, além de escritor e rapper, criou o Movimento 1 da Sul, para ajudar os jovens e adolescentes a lutar pela “dignidade da periferia”, diz ele. Brasil de Fato – No RG o nome que consta é Reginaldo Ferreira da Silva. De onde vem o Ferréz? Ferréz – O nome veio de dois heróis brasileiros. O “Z” de Zumbi e o “Ferre” de Virgulino Ferreira, o Lampião. Como todas as nossas referências são estrangeiras, tentei montar meu nome com uma referencia nacional, para dar mais valor. Meus pais me chamam de Ferréz e é assim que sou conhecido na comunidade desde que eu tinha uns 17 anos, em 1994, época em que eu fazia fanzine. BF – Como surgiu esse gosto pela leitura e pela comunicação? Ferréz – Isso veio meio automático, porque eu sempre mexi com gibi, sempre lia muito desde pequeno e queria fazer um fanzine para dar o meu ponto de vista das coisas. É meio essa vontade de fazer você mesmo, de expor sua opinião. Eu sempre mandava muitos textos para os jornais e revistas independentes. BF – Eram publicados? Ferréz – Publicavam, sim. Mas era tudo jornal que tratava só de histórias em quadrinhos mesmo, revistas independentes. Transitei muito nesse universo. Costumava ler muitos gibis de super-heróis, como o Capitão América, o Homem Aranha. Foi o começo, depois passei para os livros. BF – Você acha que os gibis podem ajudar a garotada a gostar e aprofundar o sentido da leitura? Ferréz – Com certeza, porque os quadrinhos têm uma linguagem bem popular e estimulam a leitura. Em minhas palestras, sempre falo para os pais da importância de dar gibis e livros para as crianças. BF – A escola o encorajou a seguir como escritor? Ferréz – A escola é meio omissa. Os professores não são preparados muitas vezes para poder te dar um amor pela literatura, pela leitura. Passei por uma escola que não me ensinou gosto nenhum pela leitura. Aliás, os professores não sabiam nem o que eu estava dizendo quando eu falava dos livros. Aos 9 anos, eu tinha curiosidade sobre os druídas, aquele povo que tinha

Quem é Ferréz, 27 anos, escreve desde os 7. Mora em Capão Redondo, zona sul da cidade de São Paulo. Desde o começo da carreira, escreveu três livros: Fortaleza da Desilusão, Capão Pecado e Manual Prático do Ódio, os dois últimos lançados também em Portugal. religião própria. E eu li isso num livro e ia perguntar para os professores e sempre ouvia um “não sei!”. Mas eu nunca acreditei nesse “não sei”. Como eu queria saber, então fui pesquisar. Tanto que o selo do meu fanzine era o símbolo dos druídas. BF – O hip hop em São Paulo está comemorando 20 anos. Em que a periferia mudou? Ferréz – Eu vi muitas vidas mudando. Porque o hip hop é assim, as pessoas sempre pensam errado, achando que o cara não se deu bem só porque é dançarino de break e continua sendo faxineiro. Mas ele tem uma cultura para falar, uma auto-estima. E o papel do hip hop é bem esse. Ele pega quatro ou cinco moleques que estão brincando com disco, fazendo som, e esses manos não estão na rua moscando (à toa). BF – Como o livro, a dança e a música podem combater a violência? Ferréz – Tudo isso ocupa o seu tempo, leva o sujeito a ficar interessado em outras coisas. Assim como colecionar. Eu sempre falo para as mães estimularem as crianças a colecionar qualquer coisa. Colecionar é legal porque ajuda a catalogar as coisas, organizar, cuidar. Eu coleciono tudo o que você possa imaginar: CDs, discos de vinil, livros, bonecos de ação, brinquedos. Eu nunca tive muito brinquedo quando eu era criança, então agora eu coleciono.

Não ter um posto de saúde que funcione é uma violência. Não ter atendimento médico digno é outra violência BF – Além de escrever, você também compõe e canta rap. Música e literatura se complementam? Ferréz – Inclusive vou lançar um CD agora no final do ano. Às vezes, eu tenho uma história curta demais para ser um conto, estranha demais para ser uma crônica. Então eu faço uma música. É a vontade de me expressar mesmo, seja em qualquer formato. BF – Que avaliação você faz do movimento hoje? Há uma tentativa da chamada indústria cultural monopolizar o hip hop? Ferréz – Não estão monopolizando, não. Pelo contrário, tem alguns grupos que vão na TV mas não dão resultado nenhum, voltam para casa e vêem que não mudou nada nem a carreira artística do cara, porque a mídia não

vai mudar nada. A mídia não tem nada; é só entretenimento. BF – O que acha de a mídia chamar você de escritor “marginal”? Ferréz – Pode me chamar do que quiser. Sei que não sou nada disso. Cada um dá o nome que quiser. Não gosto muito de títulos, mas acho que tem uma literatura que é da margem mesmo, é da gente e tem uma forma de se expressar diferente. Sendo que todo mundo que trabalha é marginalizado, também sou marginal com todo orgulho. BF – A forma como tratam a periferia na mídia, identificando com violência, população carente, é preconceituosa? Ferréz – O cara levanta às 5 da manhã, trabalha para caramba, chega em casa e ainda tem pique de pegar o filho dele, olhar o caderno, arruma o barraco para não passar frio à noite, e depois ainda chamam o cara de carente? É meio difícil! Aí você vê um playboy o dia inteiro trancado no quarto ouvindo Legião Urbana e fumando maconha, fingindo que está tocando rock. Acho que esse cara é mais carente que a classe média e pobre. Você troca idéias com uns caras da elite e eles começam a chorar. Não acho meu povo carente, não, mas que faltam coisas, faltam. É um povo batalhador. BF – Falam do Capão Redondo como uma das regiões mais violentas de São Paulo. Ferréz – É violento dependendo do ponto de vista. Porque... o que é violência? Não ter um posto de saúde que funcione é uma violência. Não ter atendimento médico digno é outra violência. BF – Você acredita que o sistema de cotas nas universidades pode mudar a vida da periferia? Ferréz – O sistema de cotas é o começo de uma reparação histórica. Diz respeito à valorização dos negros, que ajudaram a construir o país, enriqueceram muita gente e hoje moram na periferia. É uma questão de direito ao estudo. Não é justo que um filho de playboy com 11 anos já fale três línguas, enquanto um garoto da favela não pode nem se alfabetizar direito. Também acho que tem de liberar a faculdade de vez para quem não tem dinheiro. É uma covardia o que acontece hoje em dia no Brasil. BF – Como rebater a crítica de que o sistema de cotas estaria criando um novo tipo de racismo? Ferréz – Vem ser preto, vem ser pobre na periferia e tentar a sorte em uma universidade, sem estudo. Depois do básico que a

periferia te dá, tenta competir com os playboys para ver se vai ter a mesma opinião. É preciso se colocar na pele dos que estão passando por isso. Ninguém quer entrar de graça na universidade porque não estudou. Todo mundo estudou. Só que tem essa visão, “que o negro vai entrar porque ele não estudou”. Ele vai entrar porque tem direito à cota dele. BF – Que avaliação você faz das políticas públicas voltadas ao meio cultural em dois anos de governo Lula? Ferréz – Está caminhando, mas ainda falta muito. O Lula está tentando fazer a parte dele e a gente torce para que faça mesmo, mas esperava mais do governo.

Para a gente da periferia, a arte é igual a oxigênio, a gente precisa dela para viver BF – Há autores que inspiraram você? Como é o processo de criação de suas obras? Ferréz – Eu me espelho muito na realidade que vivo. Eu não me influencio muito por obra de ninguém, não. Já li muita literatura estrangeira, porque quando ia comprar livros nos sebos eles eram os mais baratos. Hoje em dia, leio mais autores nacionais como Graciliano Ramos, Lima Barreto, mas gosto bastante de João Antônio e Plínio Marcos. BF – Morando no Capão Redondo desde que nasceu, sua presença irradia novos projetos? Ferréz – A gente quer dar mais uma consciência critica para o cara, para ele poder ver que a situação está ruim e que se ele não mudar de vida, não estudar, não vai se formar. A gente fala que o caminho menos sofrido para o pobre é ir para a escola. Por isso, tentamos valorizar muito a educação. Temos trabalhos com as ONGs (organizações não-governamentais) para ajudar a modificar isso. Em relação aos projetos, certamente procuro ajudar. Outro dia, um grupo queria montar uma rádio, mas falei com eles: “Pô! Mas outra rádio? Vamos montar alguma coisa diferente!”. Aí um dos caras montou um círculo de leitura, outro fez um esquema para montar palestras antes de shows. Procuro influenciar bastante nisso. Às vezes, um vem aqui me pedir um livro emprestado, outros vem fazer trabalho de escola. Tudo vira meio que um movimento cultural, o 1 da Sul. Tem um grupo aqui que faz roupas com frases dos meus livros.

BF – O 1 da Sul quer dizer o quê? Ferréz – O 1 vem por ser o primeiro número. A idéia é mostrar que todos somos um só pela dignidade da zona sul (onde está localizado Capão Redondo), todos lutamos e somos os mesmos. É uma experiência de autogestão. A gente faz nossas próprias roupas e não usa roupa americana. O negócio é privilegiar as roupas feitas aqui no bairro. Todo mundo que trabalha (costureira, estampador, ilustradores) é daqui e o dinheiro também fica aqui. Esse movimento é ligado ao hip hop e principalmente à literatura. Toda camiseta tem uma frase, tem um desenho que lembra literatura. BF – Você defende uma arte engajada? Ferréz – A arte tem de ser engajada, com certeza. Arte pela arte, nunca. É como um amigo meu fala, que a arte para o rico é pendurar um quadro na parede, um quadro raro. Para a gente da periferia, a arte é igual a oxigênio, a gente precisa dela para viver. Senão vira balela. Já chega certos cantores que fazem música para a massa e essa massa, às vezes, não tem dinheiro nem para comprar pão, mas compra os CDs deles. BF – Você tem algum projeto amadurecendo? Ferréz – A gente vai montar um livro no ano que vem, chamado Literatura Marginal. É um livro de autores que antes escreveram na revista Caros Amigos, autores da periferia. Tem o Alexandre Ubuso, o Gato Preto, Elton de Morais. Alguns são de São Paulo, outros, não. A dona Laura, por exemplo, é do Rio Grande do Sul. O livro deve sair no começo do ano que vem. BF – E seria uma coletânea? Ferréz – Sim e será lançado pela minha editora e por outra do Rio de Janeiro. No meu caso não é bem uma editora. É um selo, o Literatura Marginal, que será colocado para dizer que o livro veio daqui também. BF – Fanzine, livro, letras de música de rap. Por onde mais você transitou? Ferréz – Trabalhei durante seis messes num portal da internet de humor, o Humortadela. Lá, escrevia piada todos os dias. Era em cima das notícias dos jornais, mas muitas vezes eu inventava piadas, contos, crônica bem-humorada. BF – Nesse sentido, qual a grande ferramenta para mudar o país politicamente? Ferréz – A educação. Uma educação bem-feita, séria, valorizando o ser humano, a vida. A gente tem de aprender a saber viver; não adquirir bens materiais. BF – Você tem esperança que, um dia, suas obras e de outros autores da periferia sejam adotados como livros didáticos nas escolas? Ferréz – Esperança, não. Tenho certeza. Porque não tem nada de novo na praça que esteja mostrando a cara do povo. O bom é que tem um livro didático que saiu, Os Desafios do Conhecimento, para os professores e tem alguns textos do meu livro Capão Pecado. A Secretaria Municipal de Educação de São Paulo comprou recentemente cópias do Capão Pecado para dar nas escolas. É uma quebra de barreira incrível porque o Capão Pecado é forte – nada mais forte que um filme americano –, mas tem muita coisa realista ali. É um orgulho para mim ver que o aluno está estudando meu livro, e não o Harry Potter.


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