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Ano 2 • Número 97

R$ 2,00 São Paulo • De 6 a 12 de janeiro de 2005 João Roberto Ripper

Drama de trabalhadora rural no sul do Maranhão, região do cerrado onde ação do agronegócio provoca desequilíbrio hídrico

Mais um ano. E as mudanças? D

assistenciais do Estado”, conclui o professor Plinio Arruda Sampaio, ao analisar os dois anos do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Liderança popular combativa no Centro-Oeste, dom Pedro Casaldáliga, exemplifica o flagrante descaso do governo: “Existem duas categorias de ministérios – os de primeira classe, que são os econômicos; e os de segunda classe, ligados às questões sociais”. Págs. 2, 8, 12, 13 e 14

Uma democracia formal na América Latina

Lições para derrotar o imperialismo

No continente, os movimentos sociais que querem mudanças estão numa encruzilhada: não há como tomar o poder via insurreição, nem conseguir transformações pela via institucional. A análise é do sociólogo argentino Atilio Borón, para quem, apesar de sólidos mandatos eleitorais, os governos estão cautelosos, por temor da influência dos EUA. Pág. 10

A reeleição do presidente George W. Bush, em novembro de 2004, pode ser interpretada como o fortalecimento do império estadunidense. Não é essa, entretanto, a opinião do professor Tom Hayden, para quem o grupo de apoio de Bush está ruindo, por causa de políticas econômicas negativas, e as mobilizações populares no país vão se intensificar. Pág. 11

Energia: o governo estimula mercantilização O modelo energético do governo brasileiro prioriza os interesses das grandes empresas, principalmente transnacionais, e trata com descaso os problemas sociais, muitos deles criados a partir das próprias políticas econômicas. Para Gilberto Cervinski, do Movimento dos Atingidos por Barragens, é preciso criar um projeto de país que coloque em primeiro plano o desenvolvimento social. Isso, acredita, só vai ser conquistado com mobilização popular. Pág. 7

Kipper

evastado pelo agronegócio, que planta soja e semeia fome, o cerrado é um dos símbolos da resistência do povo brasileiro – heróico sobrevivente à carência de políticas públicas sociais. Destruição ambiental e humana são os frutos amargos do modelo econômico vigente, gerador de desemprego e desesperança. “Na falta de reformas estruturais, o combate à desigualdade limitou-se aos gastos

Mast Irham/EFE/AE

O sofrido povo brasileiro ainda aguarda as transformações sociais prometidas pelo governo, dois anos atrás

Manifestação – Estudantes indonésios protestam contra o aumento dos combustíveis na capital Jacarta

Reforma urbana é a solução para falta de moradia Pág. 6

Elite lucra com os juros da dívida externa

Para Veríssimo, economia do país continua injusta

Pág. 9

Só prejuízos nos acordos com a Alca e a Europa São intensas as pressões para que o Brasil troque o Mercosul por acordos comerciais com os Estados Unidos e a União Européia. Se fizer isso, poderá perder 1,428 bilhão de dólares, com ganhos equivalentes para EUA e UE. Liderados pelo agronegócio, os lobbies culpam o Mercosul pelo insucesso das negociações com a Alca e a UE. Na verdade, há desequilíbrio entre as propostas dos países pobres, em relação ao que defendem os mais ricos. Pág. 5

Pág. 16

E mais: TERRA – O agrônomo Fernando Gaiger defende um modelo agrícola voltado para o mercado interno e acrescenta que a discussão em torno de políticas esvazia o debate sobre reforma agrária. Pág. 3 TRANSGÊNICOS – Rubens Nodari, do Ministério do Meio Ambiente, denuncia a ausência de uma política nacional de biossegurança. Pág. 4


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De 6 a 12 de janeiro de 2005

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, 5555 Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Fábio Carli • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Dafne Melo e Fernanda Campagnucci 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

NOSSA OPINIÃO

Contra o fatalismo Época de passagem de ano, de votos de um ano melhor. Vivemos em um tempo em que a capacidade tecnológica para criar um mundo mais humano nunca foi tão grande, mas é acompanhada do sentimento de impotência diante de tudo o que nos ameaça – vírus, desemprego, violência, taxa de juros. Vamos nos acostumando com o novo século – e o novo milênio. Preenchemos cheques de 2005 com naturalidade. Parece longe o tempo em que escrevíamos 19... Fomos nos acostumando a tantas coisas – às mais cotidianas delas, às piores: miséria e abandono de gente pelas ruas. Estar abandonado, sentir-se abandonado é a situação mais dura que uma pessoa pode enfrentar. Ao lado disso, fomos nos acostumando à violência cotidiana, aos riscos de circular pelas ruas, pelas praças, pelos espaços públicos. No ano passado, o mundo foi se acostumando também à guerra. O governo estadunidense, depois da invasão do Iraque, declarou o fim da guerra com a queda do regime de Sadam Hussein, mas a guerra passou a fazer parte do cotidiano daquele país. A invasão e o massacre de Faluja não foram recebidos com a indignação que um ato tão monstruoso quanto esse merecia. Os palestinos continuam a se enfrentar com pedras contra os bombardeios e os disparos mortíferos das tropas de ocupação de Israel, co-

mo se isso fizesse parte permanente do cenário mundial. E, no entanto, tudo o que os homens vivem foi construído, de uma ou de outra forma, pelos próprios homens. E assim como foi feito, pode ser desfeito e refeito. Em outras palavras, podemos viver sem guerras, sem miséria e sem abandono. As guerras são resultado das pretensões expansionistas das potências imperiais, ansiosas para se valer de sua superioridade militar para expandir os territórios para exploração econômica. Os impérios podem ser derrotados até mesmo militarmente, como foi o caso da guerra do Vietnã, em que se somaram a capacidade heróica de resistência dos vietnamitas com o trabalho político, que corroeu as bases da atuação estadunidense, levando-os a uma estrepitosa derrota. É possível encontrar uma solução justa e duradoura para o conflito palestino, com o reconhecimento do direito dos palestinos de desfrutar de um Estado como desfrutam os israelenses. É possível terminar com o abandono das pessoas nas ruas das nossas cidades, se governos com condições prioritariamente sociais e não financeiras, se dedicarem a isso. Da mesma forma que é possível sair do modelo econômico neoliberal – que está por trás tanto das políticas de guerra, quanto da proliferação da miséria e do abandono pelo mundo

todo. Quando alguns perguntam sobre onde estaria a alternativa às políticas neoliberais – que o governo atual mantém, herdadas do governo anterior –, devemos nos lembrar que, diante da crise de 1929, também se dizia que não havia alternativa às políticas primário exportadoras, que justamente tinham levado os nossos países à pior crise de suas histórias. A alternativa não foi elaborada teoricamente primeiro, para depois ser colocada em prática. A pergunta sobre onde estaria a alternativa foi sendo respondida na prática, com medidas concretas que foram configurando, aos poucos, uma política radicalmente distinta. Foi seis anos depois da crise que Keynes publicou seu famoso livro, que terminou por ser uma codificação de políticas já realmente existentes, com teorizações sobre seu conteúdo e suas projeções futuras. Podemos, sim, mudar o mundo, construir outro mundo possível. Contanto que sejamos capazes de captar os fios que articulam esse mundo, as teias que nos prendem a eles, forjar a vontade de impor os valores humanistas e encontrar as formas de convencer às vítimas das guerras, da miséria e do abandono, que podem ser sujeitos de suas vidas e fazer história. Aí, sim, teremos um bom 2005. Lutemos por isso, desejando-nos um ano melhor.

FALA ZÉ

OHI

CRÔNICA CARTAS AOS LEITORES

Em defesa da imprensa independente São Paulo, janeiro de 2005 Caros amigos e amigas Durante todo o ano de 2002, intelectuais, artistas, jornalistas e representantes de movimentos sociais somaram forças em nome de um projeto político e editorial. A idéia era construir um novo jornal que ajudasse a veicular informações não divulgadas ou noticiadas de forma deturpada pela mídia tradicional. A publicação também teria a missão de contribuir para a formação da militância social e da opinião pública em geral. Assim nasceu o Brasil de Fato. Seu ato de lançamento se transformou numa grande festa com a presença de mais de 7 mil militantes sociais, durante o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, em 2003. Para tocar o jornal, foi montada uma equipe de jornalistas comprometidos com o projeto. E todos fomos à luta. Nesses dois anos, o jornal tem sobrevivido graças a uma grande disposição de transpor os obstáculos que qualquer veículo da imprensa independente enfrenta, incluindo boicotes de todo tipo. Apesar de tudo, estamos resistindo! Mas, neste momento, estamos preci-

sando de apoio extra para driblar as dificuldades resultantes da concentração do poder econômico e do aumento dos custos de produção do jornal. O Brasil de Fato depende da valiosa contribuição de seus assinantes. Só assim vamos manter um veículo de imprensa independente e de esquerda. Mesmo elogiado por todos, tanto por sua linguagem quanto por sua linha editorial, o Brasil de Fato precisa aumentar o número de assinaturas para seguir adiante. Por isso, apelamos para sua consciência e seu compromisso pessoal. Se você ainda não é assinante, faça a sua assinatura. Se é assinante, conquiste mais uma assinatura com um(a) amigo(a). Se você é vinculado(a) a algum sindicato ou movimento, coloque nosso pedido na pauta da reunião da diretoria, para que a instituição faça assinaturas coletivas. Contamos com seu apoio. Ou melhor: a única alternativa que nos resta é o seu apoio. Atenciosamente Conselho Editorial do Brasil de Fato

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815

Impasses do crescimento Leonardo Boff O governo estabeleceu para 2005 o lema “crescimento econômico e inclusão social com democracia”. O propósito é sincero e honesto. Como torcemos para que isso ocorra! Mas analisando a agenda nota-se a ausência de um visão crítica de fundo acerca dos impasses que se escondem atrás do crescimento econômico. O olhar sobre o problema é velho e não incorporou a crítica dos últimos 30 anos. Há que se tomar em conta que já há quatro séculos o crescimento representa a ideologia dominante em todas as sociedades ditas modernas. Estruturou-se ao redor de dois pressupostos: de que os recursos da natureza e o crescimento para frente seriam ilimitados. Ambos os pressupostos são ilusórios: os recursos são limitados pois escasseiam cada vez mais; o crescimento para frente é limitado porque se fôssemos estendê-lo a toda a humanidade precisaríamos de três Terras semelhantes à nossa, o que é claramente absurdo. A história destes quatro séculos tem mostrado que deixado à sua lógica interna, o crescimento implica explorar as classes, criar perversas desigualdades sociais, submeter países, devastar a natureza e hoje colocar em risco a sustentabilidade da Terra.

Aduzamos o exemplo do agronegócio mais agressivo. Ele avança matando e desmatando, destruindo a biodiversidade, aterrando nascentes e riachos, envenenando solos, contaminando águas, expulsando os povos do cerrado e da floresta. Emprega pouca gente pois usa técnicas avançadas até reguladas por satélite e beneficia poucas empresas nacionais e transnacionais que destinam seus produtos para a exportação. Em 2004 absorveu o crédito de 39 bilhões de dólares, enquanto a agricultura familiar, responsável por 60% do que comemos, recebeu apenas 7 bilhões. O que é mais grave, ele bloqueia o desenvolvimento social. Márcio Pochman, um dos pesquisadores que mais entende de crescimento e emprego no país, nos forneceu os dados. Entre 1980 e 2000 as famílias ricas no Brasil passaram de 1,8% a 2,4%. A renda média das famílias ricas comparada com a média do total das famílias passou de 10 para 14 vezes. Pela lógica das coisas esta proporção atualmente deverá ter-se mantido, até se agravado. O emprego tem aumentado mas revela que 54% dos novos empregados recebem no máximo até 1,5 salários-mínimos, salários de pobreza. Quer dizer, o crescimento

econômico sozinho beneficia aqueles que já têm, às custas daqueles que não têm. Por esse caminho não há como haver inclusão social. Precisamos de sinais que apontem para rumos novos de uma economia que realmente possa incluir. Para isso temos que partir de outro pensamento. Não podemos mais tratar a natureza e a Terra como um baú de recursos, pois essa atitude pode destruir as condições da vida. Temos que assumir estrategicamente a ecologia (que não é o meio ambiente mas o ambiente inteiro) que nos ensina que todos somos interdependentes, que a relação para com a Terra não pode ser apenas de exploração mas de respeito e cooperação, que a pessoa humana é o primeiro destinatário do desenvolvimento. Sempre a Terra cuidou de nós dando-nos tudo o que precisávamos. Mas a ferimos tanto que agora cabe a nós cuidar dela para que continue nos cuidando. Concretamente: o ministro da Fazenda Palocci precisa incorporar o olhar da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Só então é possível um crescimento consistente, base para um desenvolvimento com inclusão, ecológico e democrático. Leonardo Boff é teólogo

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De 6 a 12 de janeiro de 2005

NACIONAL REFORMA AGRÁRIA

A agricultura deve foçar o mercado interno A discussão em torno do modelo agrícola é uma forma de esvaziar o debate necessário sobre a posse da terra

Brasil de Fato – O agronegócio virou símbolo de desenvolvimento no Brasil? Fernando Gaiger – Esse processo não é recente. Começou com o aumento das pressões pela reforma agrária, já depois do fracasso da questão da Nova República e do “não fazer nada” no governo Collor. Agronegócio e agricultura familiar surgem na mesma época, o que é uma coisa a se discutir, pois, nesse momento, cessam as discussões sobre o latifúndio e a pequena propriedade. Parece que os termos do debate mudam. Acho que essa agricultura desenvolvida, dita comercial, já é mais antiga. No Brasil, se desenvolveu nos anos 70, ganhando espaço com a política de crédito e a modernização agrária. Mas, nos anos 80, com a crise da dívida e os problemas de financiamento do Estado, o crédito rural barato se tornou insustentável. Em função disso, vieram os aumentos recorrentes tanto da produtividade do trabalho, quanto do rendimento físico da terra. Ou seja, a agricultura deixou de ser perdulária, de gastar excessivamente, porque o crédito não era mais abundante. Houve diminuição da área e crescimento da produção resultando em aumento da produtividade. Mas isso aconteceu em todos os segmentos onde foi incorporada a agricultura modernizada, seja de pequeno, médio ou grande porte, seja familiar, seja não familiar. Com o retorno da reforma agrária à pauta de discussões, do lado da esquerda, começouse a rediscutir o papel da pequena propriedade. E a direita passou a centrar fogo no termo agricultura familiar em oposição à agricultura de grande tamanho. Essa estratégia esvaziou o debate porque ambas as agriculturas fazem parte do núcleo duro do sistema capitalista agrário. São o núcleo produtivo. Sob esse prisma, os agricultores familiares modernizados e o agronegócio são a mesma coisa: detentores da produção gerando a riqueza agrícola do país. À margem disso, estão os cientistas e toda uma agricultura que não é mais de subsistência em si porque as pessoas não estão vivendo só de agricultura. Elas estão sendo obrigadas a buscar outros meios de vida além do campo: a filha é empregada doméstica, o pai trabalha meio período na cidade, o filho migrou etc. Então, o debate agricultura familiar versus agronegócio se dá no mesmo campo.

Além de uma política eficaz de distribuição de terras, é necessário assentar com qualidade, diz pesquisador

Quem é Paulista de 40 anos, o agrônomo Fernando Gaiger morou no Rio Grande do Sul, onde trabalhou na Fundação de Economia e Estatística (FEE-RS), na área de pesquisa agrícola. Depois foi para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no qual ficou seis anos. Atualmente, está licenciado do Ipea para fazer doutorado no Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Participou, em 2003, da elaboração do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária. Não se está discutindo a forma de acabar com o latifúndio de vez e de resgatar os excluídos da marginalidade econômico-social.

O agronegócio não é sinal de desenvolvimento e sim de atraso. Não é bonito o país ser uma fazenda BF – O senhor acredita que o debate deveria centrar-se na oposição entre o latifúndio e a pequena propriedade? Gaiger – Sim, porque sempre tivemos segmentos de pequeno tamanho da agricultura familiar incorporados ao processo produtivo. Muitos agricultores familiares têm cálculos capitalistas. No debate que vemos pela mídia, quem é contra a reforma agrária defende o agronegócio; e parte daqueles que são a favor, em função do país ter perdido algumas oportunidades históricas de fazê-la, começou a tentar reafirmar a agricultura familiar. Acho muito ruim o debate ter caminhado para isso. No final das contas, na discussão do fundo público de recurso (o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf), quem está ganhando dinheiro é o agronegócio, seja agricultura familiar, seja agronegócio. O Pronaf tem, lógico, agricultores não tão capitalizados. Mas 60% de seus recursos vão para agricultores integrados do Sul do país. Vou ser muito criticado por isso, mas agricultura familiar e agronegócio são irmãs nessa troca de sinais no debate. É verdade que a agricultura mudou, ou seja, se houve essa troca de sinais é porque tem algum fundo de realidade no sentido de que não dá para se pensar políticas agrárias como se pensava antigamente. Isso não significa que a reforma agrária saiu da pauta principal

Arquivo pessoal

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or conta de uma estratégia da mídia e pela articulação dos setores contrários à reforma agrária, o debate a respeito do desenvolvimento do país vem sendo focado na disputa entre o agronegócio e a agricultura familiar. Na opinião do agrônomo Fernando Gaiger, essa visão equivocada é proposital, para esvaziar a discussão que realmente interessa: a questão do latifúndio e da pequena propriedade. Gaiger explica que, com essa distorção, criou-se a imagem da agricultura como principal motor da economia. Porém, qualquer país desenvolvido tem sua produção centrada na esfera urbano-industrial. Isso significa que o caminho para a agricultura brasileira crescer não passa pela exportação, mas pela evolução do mercado consumidor interno. Por isso, diz o agrônomo, é preciso uma política econômica mais agressiva, de modo a possibilitar a elevação do Produto Interno Bruto (PIB) e, conseqüentemente, o poder aquisitivo da população de baixa renda.

a Argentina, México; outros países que atenderiam os mercados que suspendessem os subsídios. Participei de uma pesquisa cujos resultados ainda não foram divulgados, mas que, a grosso modo, aponta para o seguinte: se fossem retirados os subsídios e as políticas de apoio dos países desenvolvidos em 50%, nosso emprego e nossa renda subiriam entre 1,3% e 1,5%; a desigualdade não mudaria em nada – ao contrário, aumentaria no meio rural; considerando uma linha conservadora, pela qual o Brasil tem apenas 11 milhões de miseráveis, a redução desse número seria de 400 mil. Portanto, caso houvesse uma mudança astronômica nas políticas de apoio e subsídios agrícolas nos países desenvolvidos, os impactos no Brasil seriam pífios.

Agência Brasil

Luís Brasilino da Redação

do debate, mas é necessário ter outras políticas além da distribuição de terra. Na agricultura, hoje, temos um núcleo produtivo, um rentista e um marginalizado de economia de subsistência. Nesse núcleo produtivo está a agricultura comercial, seja ela patronal, seja agronegócio, seja familiar. Os conceitos estão esvaziando temas importantes como a reforma agrária e políticas públicas de resgate da cidadania: educação, saúde, Previdência, assistência técnica. BF – Quais os caminhos para o desenvolvimento do país? Gaiger – Desenvolvimento não é agronegócio. O que mais me preocupa em toda essa história – claro que me entristece a violência no campo e o fato de a reforma agrária não estar saindo – é a gente ver que está ficando “bonito” ser fazenda. Foram necessários 50 anos de história para virarmos uma nação ainda subdesenvolvida mas, pelo menos, urbana e industrial. E, em 12 anos, está ficando bonito voltar para o campo. Foi Getúlio Vargas, um estancieiro, quem nos tirou da estância. E é um operário que vai coroar um processo iniciado por um intelectual urbano, de nos levar de volta à estância. Isso é o inverso do desenvolvimento. E de onde vem a voz destoante nesse cenário? Do movimento camponês. Olha que coisa mais louca estamos vivendo. Antes, eram chaminés; agora, as capas boas da revista Veja são aqueles mares de soja, de cana, com um cara num tratorzinho. Não é um software, um cumpus de uma universidade, uma indústria não poluente. A modernidade não está no campo, e olha que eu sou agrônomo. Os ricos, como o Xico Graziano, estão falando que a reforma agrária não é necessária. É uma coisa de outro mundo. Ele pode até dizer que a demanda ou a importância econômico-social da reforma agrária diminuiu – até concordo, uma vez

que tem menos gente no campo. Mas, ao mesmo tempo, ele vende a idéia de que estamos muito bem com o agronegócio. Só que isso não é sinal de desenvolvimento e sim de atraso. Não é bonito o país ser uma fazenda! BF – O que precisa ser feito para mudar essa filosofia? Gaiger – Muitas coisas. Precisamos de reforma agrária em muitas regiões do país, tem muita grande propriedade para ser desapropriada, muita gente querendo terra. Fazer isso não é custoso, se for um processo onde quem tem terra e não produz nela seja penalizado e outros recebam essa terra. O caro não é a reforma agrária, mas o processo de resgate da cidadania das populações empobrecidas. Ou seja, oferecer saúde, educação, assistência técnica etc. Sem dúvida, no meio rural, o acesso a esses elementos é muito pior. O primeiro passo é assentar, não jogando na terra de qualquer jeito; é preciso assentar com qualidade e isso não é uma coisa fácil diante do que temos em caixa. O que fazer, então? Primeiro, tentar melhorar o caixa. Como? Crescendo. Porque não adianta pensar que eu vou melhorar o caixa apenas poupando. As pessoas acham que, apertando, vai melhorar. Se eu estou endividado, existem duas saídas: ou trabalhar mais ou economizar mais. Muito melhor, é continuar gastando e crescer. Para isso, é necessário mais coragem e audácia do governo federal em busca de caminhos alternativos. Mas a política econômica é pouco audaciosa; é medrosa, temerária. BF – Qual o papel da mídia nesse jogo de cena? Gaiger – A mídia apresenta uma visão distorcida, com a ajuda dos acadêmicos e dos especialistas da área. Acredita-se que, se tivéssemos um mundo sem barreiras no segmento agrário, se os mercados centrais fosse liberados, iríamos nos desenvolver, ter um boom de crescimento. Isso não é verdade porque os mercados agrícolas, de commodities, não são quentes. Primeiro, os mercados consumidores agrícola na Europa e nos Estados Unidos não são dinâmicos, não têm muito espaço para crescer. Ou seja, mesmo absorvendo os mercados dos países desenvolvidos em função de a agricultura deles não ser mais subsidiada, acho que haveria apenas um impacto inicial, nada mais. Outra coisa: temos mais concorrentes do que parece. Tem a Austrália,

É preciso cobrar melhorias na educação para o povo ficar mais crítico e impor algum tipo de controle sobre a mídia BF – O senhor quer dizer que as exportações agrícolas estão sendo supervalorizadas? Gaiger – Quero dizer que somos um país urbano-industrial. Há estudos mostrando que, no Brasil, a renda interna é o principal fator da oferta agrícola para exportação. Então, uma recessão interna teria um impacto muito maior sobre o aumento de nossas exportações agrícolas do que um crescimento econômico mundial ou um aumento dos preços internacionais. De forma geral, se não crescermos, temos espaço para exportar e vice-versa. 28% do PIB nacional é ligado ao agronegócio – a agricultura, as indústrias fornecedoras da agricultura, as transformadoras da agricultura, o setor de distribuição e o de comercialização. Quero dizer que a riqueza da nossa agricultura não é a que vemos na Veja e o que a revista mostra não é o futuro da nossa economia. É uma falácia dizer que o futuro da nossa agricultura é “para fora”. Nossas galinhas de ovos de ouro deveriam ser nossos próprios pobres porque, se eles deixarem de ser pobres, se nós crescermos, teremos um potencial de mercado inigualável. A agricultura não vai nos possibilitar crescer. Nossa agricultura, para crescer, precisa que nosso país cresça, com todo mundo tendo renda. No entanto, há um esforço concentrado de intelectuais do agronegócio para fazer valer a tese de que essa é a única saída para a crise. E isso não é verdade. BF – Como impedir que esse tipo de pensamento se consolide como verdade? Gaiger – É preciso apoiar quem está na luta tentando fazer as coisas caminharem de forma melhor, sustentar a luta dos sem-terra, cobrar melhorias na educação para o povo ficar mais crítico e impor algum tipo de controle sobre a mídia – não dá para alguém ser dono de todos os tipos de comunicação, jornal, rádio e televisão. É necessário democratizar a imprensa nacional. A mídia “morde” quando os movimentos estão conquistando espaço na luta e “sopra” quando a conjuntura está muito ruim para os movimentos. Atualmente, a mídia está no ataque, principalmente porque um parceiro nosso está no poder e não está fazendo o que deveria. Aí, eles deitam e rolam.


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De 6 a 12 de janeiro de 2005

Espelho da mídia

NACIONAL SEGURANÇA ALIMENTAR

Governo favorece transgênicos

Luiz Antonio Magalhães 2004 começou muito mal... A relação da imprensa brasileira com o governo Lula foi, no ano passado, marcada por altos e baixos. No início do período, com o escândalo Waldomiro e a tentativa de expulsão do jornalista Larry Rother, do The York Times, o governo foi intensamente criticado. Naquele momento, a mídia ensaiou um movimento no sentido de desmoralizar o presidente. Lula, porém, soube reagir ao mau momento e reconquistou a confiança da mídia com o mesmo remédio que está utilizando para deixar os mercados financeiros quase eufóricos com seu governo: a ortodoxia econômica. ... e acabou muito bem para Lula A partir de meados do ano passado, quando ficou patente que a economia dava sinais de reação, a imprensa começou a “pegar mais leve” com o governo federal. Não obstante, vários jornais fizeram marcação cerrada à gestão Lula, especialmente durante a campanha eleitoral. Alguns veículos faziam quase campanha aberta pelos candidatos do PSDB e PFL, mas evitavam criticar a política econômica do governo. Esse padrão de comportamento da mídia deve se repetir ao longo de 2005 e, mais ainda, em 2006, quando os barões da nossa imprensa tentarão apear Lula do Palácio do Planalto, mesmo apoiando a sua maneira de governar o Brasil. Ausência reveladora O relatório final da CPI do Banestado foi muito criticado nos jornalões brasileiros pelos nomes que ficaram de fora da lista dos “indiciados” por crimes de lavagem de dinheiro e evasão fiscal. Na verdade, a CPI não indicia ninguém, apenas requer o indiciamento, o que é muito diferente. De toda maneira, poucos jornais se dispuseram a investigar, por conta própria, a razão da presença de Samuel Klein, dono das Casas Bahia, na lista da CPI. Os jornalões noticiaram que Klein “foi indiciado”, mas em seguida se calaram. Tal comportamento certamente nada tem a ver com o fato de o maior anunciante do Brasil em mídia impressa ser... as Casas Bahia. As ausências, tanto na lista da CPI quanto no noticiário, são mesmo reveladoras. Gordo e magro, a comédia No final de 2004, a imprensa conservadora comemorou a divulgação de estatísticas do IBGE que mostravam o crescimento da obesidade no país. O jornal O Globo chegou a dar em manchete que “4 a cada 10” brasileiros são obesos – conclusão que os números do IBGE não autorizam. Colunistas e repórteres se irmanaram na capacidade de falar bobagens e confundir conceitos para concluir que os programas sociais do governo federal destinados a combater a fome são desnecessários porque “o problema do Brasil não é comida de menos, mas de mais”. O que ficou de fora das análises são os dados mais importantes, referentes à desigualdade de renda. A partir deles, é possível concluir que a fome existe e a obesidade também. E um estudo mais profundo dos números do IBGE também revelaria a existência de obesos pobres, que não são famélicos, obviamente, mas que comem muito mal justamente pela renda baixa. Discurso preparado Os dois grandes jornais paulistas foram, na campanha eleitoral do ano passado, verdadeiros cabos eleitorais do prefeito José Serra (PSDB). Depois da vitória nas urnas, Folha e Estado começaram a preparar os ânimos de seus leitores para a provável falta de resultados práticos da nova administração no início do mandato. Quase todos os dias publicavam matérias sobre o “descalabro” do final da gestão Marta Suplicy (PT). É possível que a prefeitura de São Paulo tenha realmente enfrentado muitos problemas – que de resto afligem quase todos os municípios brasileiros – para fechar as contas e respeitar a draconiana Lei de Responsabilidade Fiscal. As matérias, porém, não questionavam a LRF, mas tinham o objetivo de fornecer um discurso para Serra: o da “herança maldita”. Como o PT também usou este expediente com Fernando Henrique Cardoso, vai ter que ouvir calado.

Nodari, do Ministério do Meio Ambiente, constata que não há política de biossegurança Tatiana Merlino da Redação

A

ausência de uma política nacional de biossegurança leva o governo a agir de “forma conjuntural”, na opinião do gerente de recursos genéticos da Secretaria de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, Rubens Nodari. De acordo com ele, o governo não tem diretrizes nem princípios orientadores das ações de governo, dificultando “que se consiga avançar de forma soberana”. Para o especialista, a liberação dos transgênicos atende a interesses econômicos de poucos e vai fazer com que toda a indústria de alimentos tradicionais daquela espécie entre em colapso: “Quem vai ganhar dinheiro é basicamente a empresa que vai licenciar a tecnologia, cobrar a patente e ainda vai vender o herbicida para o agricultor”. Nodari afirma que houve um fortalecimento da bancada ruralista “nos últimos tempos” em função de duas grandes safras, “que aumentaram o poder do agronegócio e elegeram deputados”. Com o dinheiro que ganha, o agronegócio “tenta sensibilizar” o governo, a sociedade e os órgãos de comunicação, que segundo o especialista, “estão comprados”. Brasil de Fato – Como o senhor avalia a medida da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que autorizou a comercialização de sementes transgênicas de algodão sem análise? Rubens Nodari – Nós já conhecíamos essa face da CNTBio de ser pouco rigorosa nas questões de liberações comerciais. Houve o episódio da soja, que a liberação exigia estudos de impacto ambiental, e não foi feito. Tem o caso de uma vacina para aves liberada este ano, para a qual também não foram feitos estudos ambientais, embora o Ministério do Meio Ambiente tenha pedido. O episódio do algodão se soma a tantas outras medidas que explicitam o ponto de vista operacional e de concepção da CNTBio.

Não há uma política nacional de biossegurança. O governo age de forma conjuntural, resolve um problema agora, outro depois BF – Casos como do algodão e outros que o senhor citou mostram que não há uma política soberana em relação à biossegurança? Nodari – Não há uma política nacional de biossegurança. O próprio governo age de uma forma conjuntural, tentando resolver um problema agora, outro depois. Não temos diretrizes, princípios,

No nonono

Quem é Engenheiro agrônomo com doutorado em genética pela Universidade da Califórnia, mestrado em agronomia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rubens Onofre Nodari é gerente de recursos genéticos da Secretaria de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e professor da Universidade Federal de Santa Catarina. orientadores das ações de governo, uma política que indique os principais pressupostos, quais os instrumentos, onde queremos chegar. Como isso não está posto, acaba se refletindo sobre as nossas discussões e ação dentro do governo, que se torna lenta e divergente dentro do ministério. Por outro lado, o governo não tem apoiado financeiramente a realização de pesquisas por um grupo de cientistas independentes. Com isso, é difícil que se consiga avançar de uma forma soberana, de uma forma equilibrada com a questão da biossegurança. BF – Os movimentos sociais e entidades ambientalistas acreditam que tem prevalecido uma “política do fato consumado”. Nodari – Se o caso do algodão seguir o caminho da soja, temos dois eventos inequívocos que suportam essa hipótese. Com a ausência de uma política, temos um espaço para o fato consumado que está ocorrendo. BF – Os interesses econômicos estão prevalecendo sobre os in-

teresses da sociedade? Nodari – Sim, os interesses econômicos de poucos. Quem vai ganhar dinheiro é basicamente a empresa que vai licenciar a tecnologia, cobrar a patente e ainda vender o herbicida para o agricultor. As empresas querem abarcar o setor excedente e tornar isso um oligopólio, pois o setor ainda não está oligopolizado. É uma tentativa dessas indústrias. Pode existir diferenças pontuais de uma empresa para outra, mas no conjunto, têm interesses muito similares. BF – Com a liberação da soja transgênica, quais são as conseqüências para a soberania alimentar e para a economia? Nodari – Primeiro é uma ameaça porque a liberação dos transgênicos vai fazer com que toda a indústria de alimentos tradicionais daquela espécie entre em colapso. Isso aconteceu na Argentina e nos Estados Unidos. Hoje, se um produtor na Argentina quiser comprar uma semente de soja não transgênica, não vai encontrar. Segundo, o custo da produção vai aumentar. Terceiro, o controle dos transgênicos não é feito pela União, mas pelas empresas, e isso é uma ameaça. Um quarto ponto é que com essa “febre” os agricultores podem passar a se dedicar mais a essas commodities, e não àquilo que precisamos comer no dia-a-dia.

Com o dinheiro que ganha, o agronegócio tenta sensibilizar o governo, a sociedade e os órgãos de comunicação, que estão comprados BF – E para o meio ambiente, quais seriam as conseqüências? Nodari – No sistema convencional, os agricultores não conseguem eliminar todas as ervas daninhas e há muitos insetos que se alimentam dessas plantas, e não da soja. Na

lavoura transgênica, a aplicação do herbicida mata todas as outras plantas não transgênicas. Se tiver um inseto ali, ele acaba não tendo o que comer e alimentando-se da própria soja. Aos poucos, pode se tornar uma nova praga, adaptada para se alimentar da soja. Além disso, há uma ameaça de contaminação. Não existe convivência de transgênico e não transgênico sem contaminação. Se a soja transgênica resistente ao herbicida Roudup é plantada a poucos metros de distância de lavouras convencionais é suficiente para que ocorram cruzamentos entre ambas, pois a taxa de cruzamento entre variedades de soja pode chegar a 3%. Nos Estados Unidos, está ocorrendo uma diminuição da produtividade da soja transgênica em 4% nos últimos anos. Existem efeitos no ambiente que demoram a aparecer. BF – Como o senhor vê o desrespeito à legislação brasileira por parte da Monsanto ao introduzir soja no Brasil via contrabando? Nodari – Não é só da Monsanto. Todas as empresas têm feito um lobby muito grande, não só para liberar os transgênicos.

A esperança do Ministério do Meio Ambiente é de que o governo apóie com sua base a versão do projeto de biossegurança aprovado na Câmara BF – Para os movimentos, o governo está cedendo às pressões da bancada ruralista. Nodari – A bancada ruralista se fortaleceu muito nos últimos tempos em função de duas grandes safras que aumentaram o poder do agronegócio e elegeram deputados. Além disso, com o dinheiro que essas empresas do agronegócio ganham, tornam-se mais robustas e tentam sensibilizar o governo, a sociedade, e os órgãos de comunicação, que estão visivelmente comprados. É uma campanha muito bem orquestrada. E hoje, por exemplo, as empresas criaram organizações não-governamentais que estão fazendo propaganda das empresas de biotecnologia. É uma operação bastante agressiva que ocorre em todos os níveis de governo, sociedade, produtores, no Congresso Nacional. Eles estão bem organizados e com muito dinheiro. A entrevista com o gerente de recursos genéticos da Secretaria de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente foi feita antes da aprovação do Senado, dia 21 de dezembro, da medida provisória que regulariza o plantio e a comercialização da soja transgênica para a safra de 2005

A batalha dos transgênicos O governo mais uma vez se utilizou do expediente da medida provisória para impor a soja transgênica à população brasileira. No apagar das luzes de 2004, em 21 de dezembro, o Senado aprovou a MP 223 autorizando o plantio das sementes para a safra 2004/2005. A decisão agradou os deputados da bancada ruralista, já que mantém as alterações introduzidas no texto original por eles. O único voto contrário à MP foi da senadora Heloísa Helena (PSOL-AL). Já a questão da regulamenta-

ção dos alimentos gera polêmicas. A Comissão Especial da Câmara encarregada de analisar as questões relativas ao projeto que cria a Lei de Biossegurança decidiu, dia 10 de novembro de 2004, adotar o texto aprovado no Senado, descartando a proposta aprovada anteriormente pela própria Câmara. Desde então, os movimentos sociais e as entidades da sociedade civil que atuam em defesa do meio ambiente tentam reconquistar o apoio do Planalto para manter o primeiro texto do projeto aprovado pelos deputados. Do outro lado, encontram a pressão

das bancadas ruralistas e do agronegócio. Em maioria na Comissão Especial, os deputados ruralistas decidiram destituir o deputado Renildo Calheiros (PC do B - PE) da relatoria do projeto e substituílo pelo deputado Darcísio Perondi (PMDB - RS), conhecido defensor dos transgênicos. Considerada por muitos como um golpe da bancada ruralista, a destituição de Calheiros preocupa as entidades sociais. A principal diferença entre os dois projetos é que o texto aprovado no Senado dá amplos poderes

à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) para decidir sobre pesquisa, produção e comercialização dos transgênicos. A questão é que o organismo tem relações estreitas com a indústria da biotecnologia. Já o texto de Calheiros, quase idêntico ao do projeto elaborado pelo próprio Ministério do Meio Ambiente e enviado ao Planalto, defende o princípio de precaução e dá a palavra final sobre a liberação comercial dos transgênicos para o recém-criado Conselho Nacional de Biossegurança. (TM)


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NACIONAL COMÉRCIO EXTERIOR

Alca e UE: perdas de 1,4 bilhão de dólares C

omo numa manobra orquestrada, no mesmo momento em que fracassaram as negociações para colocar de pé, ainda em 2004, o acordo comercial com a União Européia (UE) e a adesão do país à Área de Livre Comércio das Américas (Alca), cresceram as pressões para transformar o Mercado Comum do Sul (Mercosul) num mero arranjo comercial entre seus países membros. A decisão, se adotada, significaria um retrocesso para Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai e o abandono das veleidades de constituir uma zona econômica integrada na região. Em meio a pressões de grupos aparentemente interessados em que o país abandone o Mercosul e busque, de forma isolada, se acertar com os Estados Unidos e a União Européia, surgem dois novos estudos mostrando que um acordo com a Alca e a UE tende a produzir mais estragos do que avanços para o Brasil. Produzidos por economistas e pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), um organismo ligado ao Ministério do Planejamento, os dois trabalhos concluem que, nas bases propostas pelos países mais ricos do planeta, aqueles acordos colocariam o Brasil diante da perspectiva de perder nada menos do que 1,428 bilhão de dólares, com ganhos equivalentes para EUA e UE.

MANIPULAÇÃO Os dados frios e concretos desnudam parte da manipulação tentada por setores empresariais e políticos, no Brasil, que acusam o Mercosul como responsável pelo insucesso das discussões com a Alca e a UE. Na verdade, o que existe é um efetivo desequilíbrio entre as propostas apresentadas pelos países menos desenvolvidos, em contraposição ao que defendem os mais ricos. Nada disso é novidade e, no Itamaraty, os negociadores brasileiros sabem disso. Exatamente por esse motivo, têm cobrado concessões comerciais mais amplas (tarifas de importação mais baixas, fim de cotas de impor-

Luciney Martins/Rede Rua

Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

Agência Brasil

Novos estudos indicam que acordos comerciais devem favorecer Estados Unidos e países europeus

Sindicalistas protestam contra a política submissa do governo Lula em relação ao FMI

tação e maiores facilidades de acesso a mercados), que nem os Estados Unidos nem os países europeus parecem dispostos a aceitar. É só por este motivo que as conversações emperraram e podem, até mesmo, não conduzir a lugar algum, caso não surjam ofertas mais atraentes por parte dos países mais desenvolvidos.

ALCA Os riscos maiores de perdas estão concentrados nas negociações com a Alca, formada inicialmente pelos EUA, Canadá e México, mas com ambições de se transformar numa grande área de livre comércio de bens e de serviços e de livre trânsito de investimentos, envolvendo 34 países do continente americano (com exceção de Cuba). Lançada em dezembro de 1994, em Miami (EUA), a Alca deveria concretizar esse acordo mais amplo até o final de 2005 – prazo que, muito provavelmente, não poderá ser cumprido. O estudo “Alca: uma estimativa do impacto no comércio bilateral Brasil-Estados Unidos”, assinado pelos economistas Honorio Kume e Guida Piani, e disponível no endereço eletrônico do Ipea desde 13 de dezembro de 2004, indica que as exportações brasileiras com destino ao mercado estadunidense tenderiam a crescer, potencialmente, algo como 1,228 bilhão de dólares. A estimativa toma como base os produtos em que o Brasil tem maior

competitividade (basicamente produtos de origem agropecuária, como açúcar e suco de laranja) e a hipótese de eliminação de tarifas de importação e de extinção de barreiras não tarifárias.

DESEQUILÍBRIO Praticamente 53% do aumento das vendas externas previsto ficaria concentrado no setor agroindustrial, com destaque para o açúcar e derivados (34% do ganho estimado) e suco de laranja (13,6%). Assim, apenas essas classes de produtos responderiam por 47,8%, ou quase metade, do que o país poderá exportar a mais para os EUA. As vendas de calçados responderiam por 25,9% do avanço projetado, perfazendo uma participação total de 73,7% apenas com os grupos citados (açúcar bruto e outros açúcares, suco de laranja e calçados). Na outra ponta, comprovando o desequilíbrio das propostas apresentadas até aqui, os EUA conseguiriam ampliar suas vendas para o Brasil em 2,233 bilhões de dólares – um ganho quase todo concentrado nas exportações de manufaturados, que representariam 97,7% do aumento previsto.

DIFICULDADES As exportações de máquinas e equipamentos estadunidenses para o Brasil, num exemplo, cresceriam o correspondente a 855,6 milhões de dólares, o equivalente

Negociações são marcadas pelo desequilíbrio dos interesses entre ricos e pobres

a 38,3% do ganho previsto. Os números mostram uma perda na conta do Brasil de 1,228 bilhãode dólares. Adicionalmente, seria mantida a relação de extremo desequilíbrio no comércio entre os dois países, já que o Brasil tende a ampliar suas exportações de produtos básicos e de baixo conteúdo tecnológico (e, portanto, mais “baratos”), em troca de mais importações de produtos de maior valor agregado e elevado conteúdo tecnológico, sofisticados, e mais “caros”. “Entende-se como exitoso um processo que leve a resultado

‘equilibrado’, pelo qual as concessões recíprocas venham a gerar, no agregado (ou seja, no total), um aumento das exportações quase equivalente ao das importações”, sustentam Kume e Piani. Mas o que as projeções do estudo apontam, dizem os pesquisadores, são as “dificuldades de se alcançar um ‘resultado equilibrado’ nas negociações da Alca, que podem se agravar no caso de vários produtos agrícolas brasileiros, para os quais não há uma garantia de retirada total das barreiras não tarifárias aplicadas pelos Estados Unidos”.

Para a Europa, lucro de 422 milhões de dólares Vistas com maior complacência por parte do governo e setores da esquerda, as negociações com a União Européia tendem a reproduzir resultados semelhantes, embora o “estrago”, para o Brasil, não alcance as mesmas dimensões daquele esperado no caso de adesão à Alca. Os números do Ipea sugerem que o país teria um saldo negativo de 422,8 milhões de dólares, computado o crescimento das exportações para a UE, e deduzido o avanço mais acelerado das importações dos países europeus. O trabalho, concluído em novembro de 2003, é dos economistas Honorio Kume, Guida Piani, Pedro Miranda e Marta Reis Castilho. “Os resultados aqui obtidos (...) mostram que a denominação ‘acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Européia’ não é apropriada”, apontam os pesquisadores. Na verdade, prosseguem, as conversações entre as partes. “Envolvem dois acordos distintos: um de liberalização bastante abrangente para produtos industrializados (o que interessa aos países europeus); e outro de liberalização bastante restrita para os produtos de origem agropecuária (o que não interessa ao Mercosul e ao Brasil, em particular)”. Numa nota adicional, já se antecipando às pressões para inclusão de outras áreas no acordo, os economistas do Ipea apontam que se o

setor de serviços (bancos, empresas de engenharia, o mercado de informática, turismo, audiovisual etc.) fosse considerado na avaliação, “o desequilíbrio seria provavelmente agravado” – desequilíbrio, claro, desfavorável ao Brasil. Os termos colocados sobre a mesa de negociações fariam simplesmente eternizar uma situação já existente hoje na relação comercial entre o país e a comunidade de países europeus: as exportações brasileiras com destino àqueles

países concentram-se em produtos primários (soja, açúcar, algodão, carnes), de baixo valor, enquanto as importações são constituídas basicamente de bens industrializados (produtos químicos, plásticos, borracha, máquinas e equipamentos), de alto valor. Como resultado concreto desse desequilíbrio, o país é obrigado a realizar esforços cada vez maiores, achatando salários e desempregando seus trabalhadores, para exportar produtos de baixo valor

e, assim, pagar a conta das importações, centradas em bens mais “caros”.

DESIGUAIS No caso específico da União Européia, demonstra o estudo do Ipea, 56% das exportações brasileiras são produtos básicos, e 82% das importações são produtos químicos, plásticos e borracha (28,5%) e bens de capital (53,5%). Ou seja, mais da metade das compras brasileiras no mercado europeu são

Mercosul reage, a despeito dos críticos Entre janeiro e novembro de 2004, as exportações brasileiras para Argentina, Paraguai e Uruguai, com destaque para o primeiro, cresceram 59%, em comparação com o mesmo período do ano passado, saltando de quase 5,075 bilhões de dólares para 8,072 bilhões de dólares – um avanço de praticamente 3 bilhões de dólares. No mesmo período, as exportações totais aumentaram 31,6%. Embora represente pouco mais de 9% da totalidade das vendas externas, o Mercosul respondeu por 14,3% do aumento das exportações. Esse crescimento, neste

ano,se dá sobre uma base que já havia disparado em 2003, quando as exportações para a região haviam saltado 71,3% (mais de três vezes acima do ritmo verificado para as vendas externas totais do país). As exportações para os sócios do Mercosul bateram no fundo do poço em 2002, saindo de mais de 9 bilhões de dólares, em 1997, para 3,311 bilhões de dólares, refletindo a crise aguda sofrida pela economia argentina. Desde então, as vendas entraram em disparada. O detalhe significativo é que o Brasil consegue aumentar as vendas nos setores que

tendem a experimentar as maiores perdas se e quando se concretizarem as negociações com a Alca e a União Européia. Nada menos do que 91% das exportações destinadas ao Mercosul nos primeiros onze meses deste ano foram de produtos manufaturados, de alto valor. A participação desses produtos nas exportações para os demais países do globo, excluído o Mercosul, limita-se a 50% – a outra metade é formada por itens de baixo valor e com perspectivas limitadas de crescimento de vendas no mercado internacional. (LVF)

máquinas, equipamentos e veículos (caminhões e tratores). O trabalho do Ipea, que também adota como pressuposto a liberalização geral do comércio entre o Brasil e a UE, mostra que as exportações brasileiras, tomando 2002 como base, aumentariam algo como 902,8 milhões de dólares (apenas 20,6% acima dos níveis de dois anos atrás). Detalhe: perto de 42% daqueles ganhos estariam concentrados nas vendas de etanol (álcool combustível). Quase 80% do aumento projetado (78,6% em percentuais exatos) virão dos produtos agropecuários. No outro prato da balança, a União Européia conseguiria vender 1,326 bilhão de dólares a mais para o Brasil – ou 47% a mais do que o suposto ganho esperado para as exportações brasileiras. Restaria, assim, um saldo de 422,8 milhões de dólares em favor da Europa. Ao contrário do Brasil, praticamente 54% do aumento das exportações européias sairão do setor de bens de capital (máquinas e equipamentos mecânicos, equipamentos elétricos e eletrônicos, aparelhos, suas partes e acessórios). Na verdade, todo o avanço estimado para a União Européia na relação com o Brasil acontecerá no setor de produtos industrializados. (LVF)


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NACIONAL QUESTÃO URBANA

Hamilton Octavio de Souza Exemplo nacional Diferentemente do relatório do deputado José Mentor (PT-SP), o outro relatório da CPI do Banestado, do senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT), propôs o indiciamento do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, pelos crimes de evasão de divisas e favorecimento do BankBoston. Blindado pelo governo, o presidente do BC tem sido exemplo da impunidade oficial. Mais privatização Aprovada pelo Senado na véspera do Natal, a lei das Parcerias Público-Privadas (PPPs) retoma o processo de privatização dos serviços públicos e de transferência do dinheiro público para grupos privados. Nem o neoliberalismo do governo Fernando Henrique Cardoso foi tão generoso com o capitalismo tupiniquim. Um presente de Papai Noel. Arquivos secretos Colocados sob a condição de “sigilo eterno”, os documentos brasileiros sobre a Guerra do Paraguai (18641870) estão gerando muitas especulações sobre violências praticadas pelas tropas brasileiras, suborno de autoridades, demarcação fraudulenta das fronteiras e outras barbaridades. Tudo indica que os registros podem causar muita vergonha ao país. Arquivos revelados Documentos do FBI divulgados no final de dezembro de 2004 comprovam denúncias de torturas praticadas pelas forças armadas dos Estados Unidos nos prisioneiros da base militar de Guantánamo, na ilha de Cuba. Na verdade, muitos desses prisioneiros são cidadãos afegãos seqüestrados em seu país e mantidos encarcerados sem acusação formal e direito a defesa. Conta crescente A política de juros altos, mantida nos governos FHC e Lula, foi responsável – segundo dados da Fundação Getúlio Vargas – pelo aumento da dívida interna em R$ 500 bilhões, nos últimos dez anos. O custo dessa política recai diretamente sobre os trabalhadores, seja pela falta de investimentos públicos, seja pelo alto valor dos juros que encarecem financiamentos e crediários. Conseqüências Por mais otimismo que o governo queira irradiar na sociedade, não dá para esconder que a exclusão social continua responsável pela explosão de violência que constrange o país: a média de mortes violentas é de 15,7% do total mas, em alguns Estados, chega a 24,5% de todos os óbitos – índices típicos de países em guerra, ou em situação de calamidade. Modelo chileno Estimulado pelo governo FHC, o sistema privado de saúde entrou em colapso há algum tempo, com boa parte dos trabalhadores empregados e da classe média reclamando dos serviços ruins e dos reajustes abusivos dos planos. Agora, as empresas do setor fazem “depuração” contínua para jogar fora da proteção os clientes pouco lucrativos. O cidadão que se dane. Artilharia pesada Em entrevista à edição de dezembro da revista Caros Amigos, o ex-presidente do BNDES, economista Carlos Lessa, atira pesado contra a destruição do Estado, o governo Lula e o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, a quem atribui a proposta de querer “liqüidar os bancos públicos”. Essa guerra vai longe. Pós carnaval Em debate há mais de ano, o projeto da reforma do ensino superior, divulgado oficialmente pelo ministro Tarso Genro, da Educação, no dia 6 de dezembro de 2004, só deve ser enviado ao Congresso Nacional em março. As entidades de professores, estudantes e funcionários da educação continuam divididas sobre apoiar ou não o projeto.

Habitação: precisamos de reforma Solução passa por Planos Diretores que reservem terra urbanizada para moradia popular Jorge Pereira Filho da Redação

“N

ão se resolve o problema da habitação apenas com subsídio habitacional. Precisamos de uma reforma fundiária e uma reforma financeira”, defende a arquiteta Ermínia Maricato, secretária-executiva do Ministério das Cidades e militante pela reforma urbana. Criada durante o governo Lula, a pasta tem sido afetada pelos cortes orçamentários para que o governo cumpra o superávit fiscal imposto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Recentemente, o ministro Olívio Dutra vem encabeçando a defesa de que os gastos em habitação e saneamento sejam excluídos das restrições fiscais. Para Ermínia, o atual crescimento econômico deve ser transitório e não pode deixar de contemplar as necessidades do desenvolvimento, sob pena de repetir um modelo de crescimento que tivemos durante os anos de 1940 e 1980, mas que não reduziu as desigualdades sociais. Brasil de Fato – Qual o balanço que a senhora faz desses primeiros dois anos de Ministério das Cidades? Ermínia Maricato – Bem, o Brasil vem de um período de mais de uma década de ausência de formulação de política urbana que não existe em âmbito nacional. O ministério está formulando a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano em conjunto com a sociedade e os demais entes federativos. Fizemos uma Conferência Nacional das Cidades em 2003, que alcançou 3,4 mil municípios e 26 unidades da federação. Depois, tivemos uma conferência nacional em Brasília, com 2,7 mil delegados do país todo quando foi eleito o Conselho da Cidade, que representa diversos setores da sociedade. Teremos uma nova conferência em 2005. Além disso, ampliamos o orçamento de saneamento, habitação, reformulamos programas de moradia. Acho que, em dois anos, tanto do ponto de vista das realizações como do esforço para ocupar esse vazio institucional, avançamos muito. BF – O Ministério das Cidades foi um dos mais atingidos pelo contingenciamento no orçamento do governo federal em 2003 e 2004. A pasta está desprestigiada? Ermínia – Não creio que o ministério tenha sido o mais penalizado, o ajuste fiscal distribui o sacrifício. Para 2005, estamos esperando R$ 1,020 bilhão, é um aumento muito grande de recursos. Evidentemente, no entanto, para as necessidades do Brasil, ainda é pouco para atingirmos a baixa renda, tanto na habitação, como no saneamento e no transporte urbano. Mas tivemos avanço. Se compararmos o orçamento de 2003, o de 2004 com o de 2005, principalmente, veremos isso.

BF – Mas, em 2004, o orçamento atingiu quase 60% da verba do ministério? Ermínia – Ocorre que quando o orçamento sai do Congresso, vem muito maior do que é o determinado. Acho que o contingenciamento atinge todo mundo. O que nós sentimos mais é que temos recursos do FGTS para o empréstimo no setor público e esses recursos só podemos gastar em uma quantia significativa na área do saneamento. Nesse caso, houve um tratamento excepcional. Esperamos ainda saber qual é a flexibilização que teremos na área de habitação e transporte. BF – O ministério formulou uma proposta para o Fundo Monetário Internacional (FMI) excluir do

Quem é Ermínia Maricato é secretáriaexecutiva do Ministério das Cidades, pesquisadora, arquiteta e militante da reforma urbana. Autora de diversos livros sobre a questão urbana, entre eles, Metrópole na Periferia do Capitalismo e A Cidade do Pensamento Único. cálculo do superávit fiscal o gasto em habitação. Ermínia – Sim, mas essa proposta não é só do ministério. Foi assinada na reunião dos presidentes latino-americanos, pelo Grupo do Rio, o presidente tem levado em seus discursos internacionais. O Olívio Dutra (ministro das Cidades) levou para o Fórum de Barcelona a proposta de eliminar do cálculo do superávit os recursos que fossem destinados a saneamento e habitação visando cumprir as metas do Milênio, que se referem à população mais pobres, as quais o governo brasileiro se comprometeu. Estamos fazendo isso em nível internacional e esperamos marcar uma reunião chamada pela Organização das Nações Unidas com os países não-desenvolvidos para ver se acertamos uma proposta nesse sentido, visando o cumprimento das metas do Milênio de habitação e saneamento. BF – Como a atual política econômica interfere, hoje, na questão da reforma urbana? Ermínia – Bem, eu estou no governo, devo lealdade a ele, há um debate interno, aqui. Quero acreditar que essa política econômica é transitória para assegurar não só crescimento, mas especialmente desenvolvimento. Crescimento tivemos entre 1940 e 1980 e isso não significou distribuição de renda nem diminuição da desigualdade. Entendo que estamos crescendo, e isso é fundamental porque gera emprego. A desigualdade, no Brasil, antes era mais suave e assumiu essa condição dramática entre a década de 80 e 90, quando não houve crescimento econômico. Nesse período, tivemos apenas duas bolhas de expansão e houve aumento do desemprego e urbanização da pobreza. O processo de urbanização havia sido grande com o período de crescimento econômico. Com a eliminação das oportunidades, você tem o recrudescimento da violência nas cidades. Há 30 anos, nossas cidades não eram tão violentas e pobres.

Se colocarmos muito subsídio no mercado da forma que ele é hoje, vamos promover uma ampliação do preço da terra BF – As favelas continuam a crescer nos últimos anos? Ermínia – As favelas continaram a aumentar não só no período em que não houve crescimento econômico, mas também antes. Mesmo quando o Brasil cresceu muito, com exceção da cidade de São Paulo, as favelas se expandiram muito nas cidades de Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Fortaleza. Isso mostra que temos uma exclusão histórica em relação à moradia que vem da senzala. A força de trabalho quando se torna livre no Brasil não consegue ganhar o bastante para se sustentar com a compra de mercadorias no mercado formal. Não é verdade que o salário no Brasil cobriu as despesas da força de trabalho. A habitação sempre esteve fora do

Lindomar Cruz/Abr

Fatos em foco

cálculo de reprodução da força de trabalho. Encaramos essa questão como estrutural, não algo restrito, mas para isso precisamos mudar muita coisa, a começar com o perfil do mercado privado, que hoje é um mercado de luxo e atinge apenas uma minoria da população brasileira. Queremos que esse mercado chegue à classe média. Porque, com os recursos públicos, nós poderemos chegar na baixa renda. Há décadas, os recursos públicos vão para a moradia de renda média. BF – Mas e a distribuição de renda? Ermínia – Temos de desfazer alguns paradigmas. A questão é que não se resolve o problema da habitação apenas com subsídio habitacional. Isso é muito defendido tanto por alguns setores da esquerda quanto pelo setor da construção civil. Se colocarmos muito subsídio no mercado da forma que ele é hoje, vamos promover uma ampliação do preço da terra. Iremos alimentar a especulação e não vamos fazer a universalização do acesso. Precisamos de uma reforma fundiária e uma reforma financeira. Senão o governo põe dinheiro e esses recursos vão para a mão dos proprietários de terra, que elevam o preço da terra. Ou vai para a mão de um produto especulativo. Subsídio é necessário, defendemos isso há anos. A população que ganha menos de três salários mínimos responde por 84% do déficit habitacional do país. Essa população depende de subsídio, senão vai continuar a ocupar terra e, em boa parte das vezes, prejudicando o meio ambiente, em áreas de mananciais. Essa população ocupa porque tem que morar em algum lugar. Não há alternativa para a população pobre. BF – O que seria essa reforma fundiária? Ermínia – Essa reforma fundiária, que nós chamamos de reforma urbana, se faz com o Estatuto da Cidade por meio do Plano Diretor. É dessa forma que o Estatuto da Cidade direcionou a função social da propriedade. Não é simples. Com essa tradição que temos de exclusão social, não é fácil aplicar uma lei em benefício da população pobre. É uma lei complexa, mas que precisa ser utilizada. BF – Desde 2001, quando foi aprovado, o Estatuto tem promovido mudanças? Ermínia – Olha, o Estatuto tem sido muito pouco aplicado. Agora, há mais de duas mil prefeituras que precisam elaborar seu Plano Diretor até 2006. Nós estamos trabalhando para fazer uma campanha com o objetivo de fortalecer as lideranças sociais para conseguirmos fazer Planos Diretores que tenham terra urbanizada para habitação social. Hoje, é raro vermos um Plano Diretor que leva isso em consideração. Agora, o interessante é que essa terra não pode ficar no fim do mundo, na periferia. Estamos falando de ter-

ra urbanizada, relacionada com transporte e saneamento. BF – A senhora vê, na sociedade brasileira, um grau de esclarecimento sobre a necessidade da democratização do solo urbano compatível com o que diz o Estatuto da Cidade? Ermínia – Legislação no Brasil sempre foi avançada, mas a aplicação, quando não serve aos interesses dos poderosos, é retardada. Programas de regularização fundiária, tanto em nível federal quanto em municipal, enfrentam muita dificuldade para serem realizados. É relativamente fácil nesse país registrar o latifúndio em área de terra devoluta (que pertence ao poder público). Se você pegar a história do Brasil, os exemplos são abundantes. Desde 1850 até pouco tempo, a maior parte do território brasileiro era devoluto. Hoje, no entanto, não é isso que ocorre, pois houve uma privatização dessas terras. Quando você quer fazer uma regularização fundiária de bairros que existem há três décadas, ocupados por uma população pobre, há muita dificuldade. BF – É possível realizar uma reforma urbana sem discutir a questão agrária? Ermínia – Essas coisas são paralelas, para que a gente segure o que temos de população no campo – estima-se hoje que sejam 16% dos brasileiros –, a agricultura familiar é fundamental para segurar os jovens e dar a eles uma perspectiva que não teriam nas grandes cidades. E, sem dúvida, é necessário fazer a reforma agrária. BF – Enquanto isso não ocorre, as migrações continuam? Ermínia – Continuam e estão seguindo mais para as cidades de porte médio, atualmente, entre 100 mil e 500 mil habitantes, com exceção de Manaus, as capitais do Centro-Oeste e Curitiba, que continuam a crescer muito. Manaus é um caso dramático de altíssima taxa de crescimento sem acompanhamento de política de infra-estrutura e habitação. BF – Os movimentos sociais urbanos dizem que embora haja maior diálogo com o Ministério das Cidades, falta justamente uma ação estrutural do governo. E dizem também que os programas para baixa renda não são acessíveis pelos níveis de exigências do poder público. Ermínia – Os movimentos têm razão em relação ao nível de exigência, mas creio que sabem de nosso esforço. As críticas nos ajudam a tentar sensibilizar as exigências. O problema é que nosso país não sabe como é que se trabalha com a população pobre. Toda a dificuldade dos programas sociais do governo reflete isso. Quando é que tivemos política de habitação voltada para baixa renda? É verdade que o Banco Nacional de Habitação (BNH) teve uma parcela de seus recursos destinados para essa faixa da população na construção de conjuntos fora da cidade. Mas nunca foi perguntado para quem quer que fosse, liderança social ou comunitária, se os procedimentos estavam corretos ou não. O BNH fechou em 1985. Depois, não houve mais nada. Temos de reaprender a fazer uma política que seja democrática e tenha um controle social. Os movimentos sabem que estamos tentando reverter a prioridade do investimento em habitação para baixa renda. Quando entramos, em 2002, 70% dos recursos do FGTS foram para rendas acima de cinco salários-mínimos. Reduzimos isso para 50% e, em alguns programas, para 40%.


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De 6 a 12 de janeiro de 2005

NACIONAL ATINGIDOS POR BARRAGENS

O modelo energético não interessa ao país O

modelo energético foi forjado à imagem e à semelhança da política econômica do governo brasileiro: favorece grandes empresas e não interessa à maioria da população. A avaliação é de Gilberto Cervinski, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que defende a adoção de alternativas para a geração de energia, como investimento em biomassa. Em 2004, o movimento realizou algumas das maiores mobilizações de sua história, com o objetivo de reivindicar políticas sociais do governo. “Foi também o momento para mostrar o repúdio às orientações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que associa barragens a desenvolvimento”, comenta Cervinski. Brasil de Fato – Em 2004, o MAB organizou diversas mobilizações. Qual é o balanço das jornadas de luta do ano? Gilberto Cervinski – Este ano marcou a afirmação nacional do MAB. Há quatro anos, tomamos a decisão de consolidar o movimento nacionalmente, organizando os atingidos em vários lugares do Brasil. Em 2004, fizemos muitas lutas unificadas. Houve uma jornada em 14 de março, Dia Internacional da Luta contra as Barragens, quando realizamos ocupações de terra e hidrelétricas e protestos em diversos Estados. Depois disso, após um ano sem diálogo com o governo, conseguimos nos fazer ouvir. Mesmo assim, não houve mudanças na política energética. Decidimos então fazer uma marcha, de Goiânia a Brasília, em maio, levando a público o problema oculto dos atingidos por barragens, que são mais de um milhão no Brasil, e que não recebem apoio do Estado. Foi também o momento para mostrar o repúdio às orientações do presidente Lula, que associa barragens a desenvolvimento. Com a construção de novas hidrelétricas que o governo propõe, nos próximos três anos, estima-se que sejam expulsas de suas terras mais cem mil famílias. Da marcha, participaram pessoas de 15 Estados. Em novembro, realizamos outras ações nacionais, em sete Estados, onde ocorreram protestos. A principal delas foi a de Barra Grande, entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, quando famílias ocuparam uma área para impedir a destruição da mata nativa da região. Depois, ainda em novembro, houve a Conferência Nacional da Água e da Terra, em Brasília (DF), onde se reuniram dez mil camponeses, elaborando uma pauta conjunta de reivindicação. O balanço das ações do ano é cobrar o governo a atender os movimentos sociais, pois 2003 foi um ano de total descaso.

É preciso mudar a concepção sobre energia, que não pode ser vista como uma mercadoria BF – Tantas mobilizações sinalizam uma mudança na relação entre o MAB e o governo? Cervinski – O governo manda menos que as empresas. Nunca tivemos grandes esperanças no governo Lula, mesmo este podendo ser um estimulador da mudança social, mas nunca vai ter força para resistir à ação dos grandes consórcios econômicos. Além disso, avaliamos que o

Atingidos por barragens defendem mudanças no setor energético, onde o governo manda menos que as empresas

Quem é Gilberto Cervinski é da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Na década de 80, participou da resistência da população de sua cidade natal, no Rio Grande do Sul, contra a construção de uma barragem, que teria deslocado 4 mil pessoas. Até hoje, a obra está impedida. Partido dos Trabalhadores (PT) não pode mais ser considerado de esquerda e se configura como uma agremiação de centro. Abriu mão de diversos princípios históricos e, no governo, a situação é ainda mais complicada, pois está articulado com diversos partidos que são de direita mesmo. Isso se reflete, em todas as medidas, na condução da política econômica, que está dirigida por grandes grupos financeiros, representados pelo presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Ao mesmo tempo, em nossa avaliação, as mobilizações sociais nunca prejudicam a mudança social, apenas sinalizam a necessidade de o governo repensar os rumos de sua administração. A luta popular é o motor da solução dos problemas, e isso é uma constatação histórica. Por isso, as mobilizações de 2004 foram poucas, precisam ser intensificadas. É preciso ocorrer um avanço da organização popular para que o governo priorize, de fato, a área social. Não são as empresas que vão resolver problemas como pobreza e fome. É preciso que haja um plano nacional para isso, um projeto de país, e isso surge a partir da mobilização do povo e de sua luta. É claro que o governo frustra as expectativas dos movimentos sociais e vai contra os princípios históricos do PT, mas a luta popular pode mudar essa orientação. Fazer luta é ajudar o governo e o país. BF – O governo atendeu algumas das reivindicações do MAB? Cervinski – Tivemos diversos encontros com integrantes do governo, mas não adianta ficar só no discurso. Falar que vai resolver os problemas sociais e criar as Parcerias Público-Privadas (PPPs) não é coerente. Nessa lógica, a população entra com os gastos, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e as empresas ficam com os lucros.

João Peschanski

João Alexandre Peschanski da Redação

Agência Estado

Para comunidades, política do governo prioriza construção de hidrelétricas e não atende a sociedade

O modelo econômico do governo atrapalha o desenvolvimento, pois as estatais, que poderiam gerar energia, precisam se manter nos parâmetros do superávit primário, estabelecido pelo ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e ficam impossibilitadas de investir em geração de energia. Sem isso, ficamos reféns das empresas privadas, principalmente transnacionais. As empresas não têm preocupação em resolver os problemas sociais, pensam em seus lucros, e ainda agravam as mazelas, despejando famílias e levando a mais desemprego. Nas propagandas, as empresas e o governo dizem que a energia hídrica é uma das mais baratas, mas só é barata quando se deixa de lado os custos sociais e ambientais, que são altíssimos. No caso de Barra Grande, 2 mil hectares de mata nativa vão ser destruídos. A araucária não vai nem poder ser cortada, pois a lei não permite, então vai ser alagada mesmo. Os agricultores vizinhos, se derrubam qualquer árvore, são multados. Chega uma empresa dos Estados Unidos e derruba hectares da mesma árvore e não acontece nada. Além disso, as características dessas empresas são: alto índice de automatização, não gerar empregos, necessitar de grande quantidade de energia. Para produzir uma tonelada de alumínio, são necessários 15 mil quilowatts, o que representa o consumo de uma família por nove anos. Dessa indústria, que não gera empregos e gasta energia, os países ricos não querem. O Brasil, como tem um subsolo rico em minérios e muita capacidade de produzir energia, tornase então um exportador dessa matéria-prima, cuja densidade energética é muito alta, e é disso que as empresas precisam. BF – Também precisam de um governo que dê o aval para essas empresas.

Cervinski – Aí entra a lógica da privatização e o entreguismo. O presidente Fernando Henrique Cardoso foi muito eficiente nisso, mas o governo atual, com a política econômica, está aceitando a lógica. O país se submete a ser dependente. Submetemo-nos a exportar matéria-prima, empregar nossas riquezas de forma barata, subsidiada, com alta densidade energética. Enquanto isso, importamos dos países ricos produtos com alta densidade tecnológica, como produtos de telecomunicações. Por isso, nós exportamos soja, que tem uma densidade energética, pois a produção depende de água, terra e muita energia. O modelo energético está a serviço das transnacionais, que são o setor mais avançado do capitalismo, na perspectiva da exploração dos trabalhadores e recursos naturais. É um modelo que exporta energia para os países ricos. No mesmo sentido, privatiza a água, favorecendo as grandes empresas, e não prioriza a questão social. Não precisava ser assim, é o resultado de uma série de opções que os governos tomaram.

O modelo energético está a serviço das transnacionais, que são o setor mais avançado do capitalismo BF – No discurso dos integrantes do governo, barragens são sinônimo de desenvolvimento. O senhor está dizendo que representam, pelo contrário, maior subserviência aos países ricos. Cervinski – O governo diz que barragens trazem desenvolvimento e que quem for contra é contra a geração de energia, contra o desenvolvimento e contra o emprego. Na verdade, o que há é geração de pobreza e entreguismo de nossas riquezas. O impacto social é terrível: destruição de terras, expulsão de famílias, violência para a região... Isso é desenvolvimento? Só se essa palavra quiser dizer beneficiar a mesma meia dúzia e deixar o povo sem nada. BF – Como seria um modelo que atendesse às necessidades do povo? Cervinski – Uma certeza existe: as barragens não são a saída.

Para pensar alternativas, é preciso mudar a concepção sobre energia, que não pode ser vista como uma mercadoria, mas como um bem público. Como a água, é um patrimônio da humanidade e absolutamente necessário para a preservação da vida. Somos contra a mercantilização da energia. Em primeiro, para o Brasil, uma das principais fontes de energia poderia ser a economia da própria energia. Na visão mercadológica, não há empresa que queira poupar energia. O professor Carlos Wainer, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostrou que o país poderia economizar 20% do que se consome. Temos 86 mil megawatts de capacidade instalada – e a economia daria um acréscimo de mais de 15 mil megawatts. Em segundo, podese pensar em repotenciação. Há muitas barragens e turbinas velhas, que não estão operando ao máximo. Estudos da Universidade de São Paulo apontam que se poderia ter um acréscimo de 6 mil megawatts. Em terceiro, é preciso haver eficiência na utilização. Hoje, temos uma perda de 15% de energia em etapas do modelo, como a transmissão. Em países onde há mais cuidados com a perda, pode-se atingir 6%. Isso nos daria mais um acréscimo de 6 a 7 mil megawatts. Tudo isso, sem construir uma barragem.

O governo diz que barragens trazem desenvolvimento e quem for contra é contra o desenvolvimento BF – Quais as alternativas? Cervinski – No campo das alternativas, há a biomassa. Todos o camponeses, em todas as regiões, poderiam produzir esse tipo de energia, pelo bagaço, palha ou conjunto de plantas que poderia ser produzido. Isso não expulsaria família alguma, geraria emprego e distribuição de renda. Há também a energia eólica. No Brasil, calcula-se que se tenha uma capacidade de pelo menos 29 mil megawatts por esse meio. Também existe a energia solar, sobre a qual há poucos dados. Aliás, muitas pessoas falam que não há pesquisas confiáveis sobre as alternativas. É preciso desenvolver tecnologia brasileira. BF – Em termos práticos, como se implementa um novo modelo energético? Cervinski – Pegue os investimentos para a barragem de Barra Grande, algo como R$ 1,3 bilhão e invista um quinto em economia ou repotenciação e se produz a mesma energia que com a hidrelétrica. Não se expulsaria 2 mil famílias e não destruiria a mata nativa da região. O restante poderia ser investido em reforma agrária e se assentaria 40 mil famílias. Se cada família tiver quatro pessoas, imagina o número de empregos que se estaria gerando, algo como 100 mil. Também haveria mais produção de alimentos e crescimento de mercado interno. Se as famílias produzissem energia por meio da biomassa, seria auto-sustentável em energia. Isso é um modelo que leva à distribuição de renda. O modelo energético atual foi forjado à imagem e à semelhança da política econômica, cuja prioridade não é a questão social.


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NACIONAL DOIS ANOS DE LULA

Governo fraco favorece forças de direita A

mbigüidade. É essa a marca do governo Lula, na opinião de dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Felix do Araguaia (MT) e uma das figuras mais importantes da história recente da Igreja no Brasil e na América Latina. Ambigüidade por ter dois pesos e duas medidas em relação à área econômica e à social: “Há ministérios de primeira e segunda classe”, diz ele, em entrevista ao Brasil de Fato. Devido a uma política conservadora no campo econômico e à sujeição ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e outros organismos financeiros internacionais, o clima é de decepção, sobretudo entre aqueles que apostavam que o país sairia de uma vez por todas de uma “política do cabresto”, avalia o bispo, que está à espera de um sucessor há dois anos. Com a saúde debilitada pela doença de Parkinson e a pressão alta, ele lamenta: “O povo tinha conquistado o poder por meio do Lula, e do PT, mas foi decepcionante”. Brasil de Fato – Como está a situação dos Xavante na terra indígena Marãiwatsedé? Dom Pedro Casaldáliga – Continua do mesmo jeito. A novidade é que a Polícia Federal e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) vieram na área para fazer um cadastramento dos que seriam “fregueses da reforma agrária” – os ocupantes brancos. O prefeito do Alto Boa Vista e o presidente da associação dos fazendeiros da área impediram o cadastramento. Depois, veio uma nova ordem do juiz para que se fizesse o cadastro, e ainda não se fez nada. BF – As ameaças de morte ao senhor e outros que apóiam os Xavante continuam? Dom Casaldáliga – Em outubro, dois jovens xavante foram baleados e houve também conflitos entre ocupantes brancos e índios. No momento não há um clima abertamente agressivo, há mais uma espécie de expectativa, desconfiança. Entre os Xavante há uma postura firme de que eles estão na sua terra e vão ocupála. Mas infelizmente a política indigenista, a política rural e a reforma agrária, neste governo, se empurra com a barriga.

Estamos em um clima de ameaças, até de massacre, como o de Felisburgo. Falar mal do agronegócio virou pecado mortal BF – Que outras críticas o senhor faz ao governo Lula? Dom Casaldáliga – Tenho que reconhecer que o governo está sendo neoliberal. O índio não produz, o índio não planta soja, não exporta. Na visão do governo, o índio atrapalha as transnacionais, as madeireiras, as mineradoras. Já o índio, por sua história, sua natureza, é antineoliberal. BF – Recentemente, no mesmo dia em que o ministro da Justiça, Márcio Thomas Bastos, visitava Roraima, houve um atentado a um líder indígena da região. As milícias de direita se reorganizaram no governo Lula ? Dom Casaldáliga – No caso de Roraima, a situação se manteve igual, e em certo ponto até piorou. Houve três agressões nesses dias (final de novembro), e vai

Xavantes de Marãiwatsedé, terra indígena onde dois jovens foram baleados em outubro

passando o tempo e se justificando a presença dos invasores, vai se retificando que se plante, que se construa. Não se enfrenta a política indigenista. BF – A mesma coisa pode-se dizer da reforma agrária? Dom Casaldáliga – Também. Felizmente, no caso da reforma agrária, há o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que cutuca, que obriga, que força. Mas estamos em um clima de ameaças, até de massacre, como o ocorrido em Felisburgo (MG). Hoje, falar mal do agronegócio virou pecado mortal. Quando, de fato, o agronegócio, tal como está se encampando – e eu posso dar testemunho sobre isso por conta do agronegócio da soja, aqui no Mato Grosso –, é um desastre ambiental que acaba por ser econômico, também. Cinco anos depois, não restou nada. Aqui na nossa região estamos experimentando o arraso que se faz no pouco que resta de mata. BF – Quem está se beneficiando diretamente com o negócio da soja na região? Dom Casaldáliga – Pode haver agronegócio em um país, podese plantar soja. Mas não em termos de uma monocultura desenfreada, sem consideração com o ambiente, a saúde, com o intuito exclusivo de exportar e deixando milhões com fome. Não somos contra o agronegócio, a indústria rica, nem contra a máquina, só que deve-se levar em conta a saúde da população e o ambiente. BF – Quanto ao plantio dos trangênicos, pode-se dizer que as apostas feitas pelos movimentos sociais no governo Lula foram perdidas? Dom Casaldáliga – Sobre os transgênicos, ninguém tem uma palavra definitiva. Por isso mesmo, seria preciso ter prudência política e ir com cuidado nesse assunto. Enquanto houver algum tipo de insegurança não se pode abrir as portas como abriram e se abrem cada vez mais. Haveremos de pagar danos futuros. Mas, como a política oficial do governo hoje é economicista, prioriza a exportação, está submetida ao FMI, exercendo um tipo de hegemonia econômica no continente e frente ao mundo, então se prescinde do que seriam advertências mais do que salutares, em termos de preservação do ambiente, em termos de entrar no Centro-Oeste e na Amazônia, de modo gradativo, discreto, pensando em um futuro sustentável mesmo. BF – Então, pode-se falar de uma política entreguista? Dom Casaldáliga – Durante o governo Fernando Henrique, eu sempre falei que se realizava uma política entreguista e isso continua. Há crise na política da reforma agrária, os números de emprego parecem um pouco

Cristiano Navarro/CIMI

Paulo Pereira Lima da Redação

Cristiano Navarro

Bispo de São Félix do Araguaia critica modelo do agronegócio, cobra políticas indigenistas e reforma agrária

Quem é

Missionário da Ordem dos Claretianos, o catalão dom Pedro Casaldáliga, 77 anos, está à frente da prelazia de São Félix do Araguaia (MT) há mais de 30 anos. Foi o primeiro a denunciar a existência de trabalho escravo no Brasil, em 1971. No mesmo ano divulgou a primeira carta pastoral, “Uma Igreja da Amazônia”, em conflito com o latifúndio e a marginalização social. A partir dessas denúncias, a prelazia tornou–se referência para os movimentos de oposição à ditadura, mas também foi alvo de ataques pelo fato de ser encarada como foco da guerrilha. Dom Casaldáliga foi preso e torturado pelos militares.

mais otimistas, mas são empregos transitórios. BF – O espetáculo do crescimento não está acontecendo? Dom Casaldáliga – Com dois anos de governo fica claro que há duas classes de ministérios: os de primeira classe, que são os econômicos e os economicistas, e os ministérios de segunda classe: os tipicamente sociais. O Frei Betto saiu do governo, como outras figuras importantes do Partido dos Trabalhadores, que se desvincularam principalmente pelo desvio na política do partido. Todo mundo teve paciência e esperança nos dois primeiros anos, agora muitos se cansaram. BF – O senhor também se cansou de ter esperança em Lula? Dom Casaldáliga – Minha esperança não se cansou porque eu não tenho fé no Lula, mas sim no Deus da vida e tenho fé no povo. Tenho carinho e respeito pelo presidente, mas tenho liberdade para criticá-lo duramente. BF – A que se deve essa posição ambígua do governo? Dom Casaldáliga – Se você se submete ao FMI e às políticas do Banco Mundial, você só pode agir assim, não tem outra alternativa. Lula considera uns elementos da política econômica neoliberal muito eficazes. E ele escuta muito esse lado. BF – Esse conservadorismo na economia também avança na política de aliança partidária? Dom Casaldáliga – Quando, ao longo desses meses, consideramos as notícias do Congresso, de alianças com figuras hegemônicas até do período da ditadura militar e que agora estão aí, conchavando com o governo; quando se fazem certos tipos de alianças e concessões, entendemos perfeitamente que a guinada só pode ser para a direita. BF – E quais as perspectivas para os próximos dois anos de governo? Dom Casaldáliga – Continuo acreditando em Deus e no povo. Os movimentos populares estão aí, presentes: os estudantes, os sindicalistas, os sem-terra, os amigos

de Lula, cobrando com palavras mais fortes. Concretamente vamos ter o Fórum Social Mundial (de 26 a 31 de janeiro, em Porto Alegre). Tivemos uma lição nas eleições, o PT ganhou muitos municípios mas perdeu outros importantes. O povo, obviamente, não devia estar muito satisfeito. Há também as atitudes pessoais, porque a prefeitura de São Paulo foi perdida, apesar de todo investimento. Porto Alegre também foi perdida, como Goiânia. Não é que o partido esteja totalmente desmoralizado, mas escuto muitos de dentro do PT que não estão nada satisfeitos.

Mais do que movimentos sociais reivindicando por sua categoria, é preciso uma movimentação popular social BF – Que posição os movimentos sociais deveriam adotar em relação ao governo em 2005? Dom Casaldáliga – Devem continuar se organizando, fazer reivindicações concretas e maiores, devem se interligar, para que não puxem cada um pelo seu lado. Mais do que movimentos sociais reivindicando por sua categoria, é preciso uma movimentação popular social, com reivindicações maiores, com denúncias contra o desemprego e a política de juros altos, em defesa do salário digno, da reforma agrária. BF – Alguns estudiosos reconhecem que na América Latina há uma virada à esquerda, com as eleições de Lula, Hugo Chávez, na Venezuela, Nestor Kirchner, na Argentina, e Tabaré Vázquez, no Uruguai. Como o senhor classifica essa nova esquerda? Dom Casaldáliga – Levamos séculos de direita, isso não muda de uma hora para outra. Nossas oligarquias, elites, estão aí há muitos séculos. São como camaleões, se adaptam, mas continuam defendendo seus privilégios. São coronelistas, herdeiros familiares na política, donos das terras e dos bancos.

BF – A política externa do governo Lula foi também entreguista? Dom Casaldáliga – Sim, está submetida ao FMI e ao Banco Mundial. Há uma grande facilidade para o capital estrangeiro entrar no país, não só dos Estados Unidos, como de países da Europa, a China, a Rússia. Eu sou a favor do intercâmbio cultural, político e econômico, mas dentro de certas normas que respeitem a própria casa. Enquanto se vão criando empresas do agronegócio, todas transnacionais, somem muitas microempresas, tem-se perdido muitas pequenas propriedades rurais. Conta-se muito o que se faz, mas nada se diz sobre o que se desfaz. BF – Diante desse quadro, podese afirmar que não há um projeto alternativo de sociedade para o Brasil? Dom Casaldáliga – Tal como funciona, não. Apesar dos muitos encontros, textos criados nos últimos anos querendo um projeto para o Brasil, ainda somos mais do que obedientes ao FMI. A própria classe média do país vem sendo desmanchada. As transnacionais e as grandes empresas estão satisfeitas. Queremos resolver a violência lá no Haiti, mas, e aqui? É lamentável que haja muita impunidade. BF – A reforma do Judiciário pode ajudar a combater a impunidade? Dom Casaldáliga – Há muita lentidão e ambigüidade em certos setores da Justiça, e muitas falcatruas estão sendo reveladas nos meios de comunicação. A reforma no Judiciário é essencial, assim como uma reforma política, dos partidos, por exemplo. Porque eu sinto que as estruturas são deficientes, maleáveis. O poder judiciário é extremamente absoluto, julga a si mesmo. BF – Há algo a destacar de positivo na área social no governo Lula? Dom Casaldáliga – Sim, o Fome Zero, a Bolsa Família, são muito importantes, mas têm caráter emergencial. Atender a emergências é fundamental, mas é necessário reformar a estrutura: outro poder judiciário, outra política, outro ministério da fazenda, atender mais diretamente aos movimentos populares, aos sindicatos, propiciar a participação dos municípios e Estados, resolver o problema dessas autarquias, hoje impotentes – o Incra, o Ibama e a Funai. Na prática, elas não têm poder algum. BF – E qual a posição da Igreja? Dom Casaldáliga – A Igreja, em geral, tem sido muito correta, pois tanto os amigos como os inimigos de Lula vêm fazendo críticas, cobrando do governo, inclusive em termos de reforma agrária. A Igreja tem respaldado o MST, e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil tem sido bastante crítica. BF – Qual a marca dos dois anos de governo Lula? Dom Casaldáliga – A ambigüidade. Por toda a política feita até aqui. Por ser um partido de esquerda, mas que na prática é muito de direita. Esse é um sentimento muito generalizado, de colegas bispos, religiosos, sindicalistas, intelectuais, do povo. Todos voltam àquela expressão triste de que todos os políticos são iguais. É lamentável, pois já tínhamos conseguido fazer com que o país saísse de uma política de cabresto. O povo tinha conquistado o poder por meio do Lula, e do PT, mas foi decepcionante.


Ano 2 • número 97 • De 6 a 12 de janeiro de 2005 – 9

SEGUNDO CADERNO AMÉRICA LATINA

Credores ganham com a dívida externa Elites se opõem à realização de auditoria porque obtêm lucro com o endividamento dos países latino-americanos

Brasil de Fato – Por que há essa resistência em tratar o tema da dívida? Eric Toussaint – Por dois fatores. Os governos não querem tratar do tema. O governo brasileiro, por exemplo, quer ter um pacto social entre o grande capital e o povo. O representante desse pacto é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele não quer levantar a questão da dívida porque interessa à burguesia brasileira – que tem uma postura rentista – a continuidade do pagamento da dívida. Essa burguesia investe nos mercados financeiros internacionais ou investe no país, fazendo empréstimos ao Estado, gerando uma imensa dívida interna. Obviamente, não querem que o presidente coloque em questão o pagamento da dívida. Isso os afetaria como classe social. E Lula não que entrar em contradição com a burguesia e tampouco com o FMI ou com o Banco Mundial. Repete a política ordodoxa monetarista de ter um superávit fiscal de mais de 4,5% como intocável. Governos e classes dominantes não querem questionar por que têm interesse em manter um alto nível de endividamento. O segundo fato é que os movimentos sociais na América Latina, em geral, não relacionam diretamente os impactos do pagamento da dívida com a falta de recursos para gastos sociais. É um erro. Se não existe dinheiro para a reforma agrária ou para a educação, isso tem a ver com o Controle de capipagamento da tais - Medida que um país toma para dívida. controlar o fluxo de entrada e saída de dólares de seu território. Um dos objetivos é direcionar o investimento estrangeiro e impedir a ocorrência de ataques especulativos contra o país.

Risco país - Espécie de prêmio que os países pobres são obrigados a pagar aos investidores. O risco país é um suposto cálculo realizado arbitrariamente pelas agências estadunidenses e européias.

BF – Isso tem a ver com o conceito cunhado de que a dívida é impagável? Toussaint – A dívida se paga, é pagável. O problema é que é inaceitável o pagamento da dívida. É escandaloso o povo pagar uma dívida que nunca

Ativistam pedem rompimento com a Alca e o FMI, por uma política econômica que privilegie o salário e o emprego

se apóia sobre as mobilizações do povo e que realmente utiliza grande parte dos seus ingressos fiscais para melhorar as condições de vida da população. Isso é extraordinário. Por não ter uma situação igual à da Argentina ou à do Brasil, a Venezuela não vai decretar de maneira isolada o não pagamento da dívida. A decisão não pode ser tomada sozinha. Sempre se menciona represálias, mas quais seriam? Os Estados Unidos não vão invadir o Brasil porque deixou de pagar a dívida externa.

Quem é Eric Toussaint é historiador e cientista político, presidente do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), autor de A finança contra os povos e A bolsa ou a vida. contraiu. O tesouro utiliza os impostos pagos pela população para cumprir o pagamento. No Brasil, a arrecadação fiscal é uma das mais altas do mundo. Os mais pobres pagam impostos altíssimos quando compram combustível ou alimentos. Esse imposto, que gera receitas, deveria ser investido em gastos sociais, como geração de empregos, investimento na saúde e educação. No entanto, serve para o pagamento da dívida externa. Isso é escandaloso, injusto e inaceitável. Uma dívida que já foi paga várias vezes, contraída pelas ditaduras militares ou por regimes democráticos que pediram novos empréstimos para pagar a dívida antiga. Isso não tem nenhuma legitimidade. BF – A auditoria da dívida poderia ser um instrumento para traduzir isso para a sociedade? Toussaint – A conclusão de uma auditoria da dívida interna e externa seria de que a dívida não é legítima. A partir daí se organiza um movimento exigindo do governo a suspensão do pagamento. A auditoria pode se fundar com bases jurídicas sob o argumento de um governo soberano que dirá que não a reconhece. É possível dizer: “Não pago”. O governo da Argentina suspendeu o pagamento da dívida pública para os credores privados no final de dezembro de 2001. São 100 bilhões de dólares e a Argentina simplesmente não paga. Não houve represálias, não houve intervenção, não aconteceu nada. A conseqüência foi um crescimento econômico. Se a Argentina pode, por que o Brasil não pode, sendo uma economia mais poderosa? BF – Mas não se trata de uma decisão isolada... Toussaint – Não deve ser isolado. (Hugo) Chávez propôs a (Nestor) Kirchner e a Lula que, no lugar de pagar os credores, investissem os recursos em saúde e educação, com a criação de um fundo humanitário internacional, em lugar do FMI. Essa é a proposta de Chávez. No entanto, a Venezuela continua pagando a dívida externa. A diferença é que parte dos recursos do petróleo são destinados aos programas sociais. É o único governo no mundo, falando do mundo capitalista, que

BF – O governo brasileiro cumpre um ajuste fiscal superior ao percentual exigido pelo FMI, que era de 3,75%. Qual a justificativa para o cumprimento de uma taxa de 4,5% de superávit? Toussaint – A meu ver, a estratégia de Lula é eleitoral. Em 2006, ele pretende ser tanto o candidato da burguesia como o do PT, só que isso vai fracassar. A burguesia vai dizer “muito obrigado, o senhor nos serviu, mas já temos nosso candidato”. O governo Lula está fazendo o contrário do que o PT havia prometido: uma ruptura com o modelo aplicado por Fernando Henrique Cardoso. Se o FMI e o Banco Mundial parabenizam o Brasil é porque Lula está seguindo o mesmo modelo. BF – Outro tema que revela a vulnerabilidade dessa política econômica é o controle de capitais. Qual sua avaliação sobre a estratégia do governo venezuelano de manter o controle sobre o câmbio? Toussaint – Apoio com muito entusiasmo a política de Chávez. O controle do câmbio é muito importante porque permite impedir a especulação contra a moeda nacional e limita a evasão de capitais. No Brasil e na Argentina,

não há controle; portanto, ocorre a evasão de capitais sem nenhum problema. Na Venezuela, os capitalistas têm que pedir autorização ao Estado para converter bolívares em euros ou dólares. BF – A tese de que o controle de capitais afasta os investidores é verdadeira? Toussaint – Isso é falso. O controle evita a evasão de capitais e não impede a entrada de capitais. Há entrada de capitais na Venezuela porque as pessoas têm poder de compra. Quando o governo venezuelano decide dar cerca de 500 mil bolsas de estudo de 100 dólares para que as pessoas se eduquem, o que ele está fazendo? O que os venezuelanos farão com esse dinheiro? Se alimentam, compram roupas, isso entra na economia como poder de compra. Isso entra no mercado interno e estimula a economia. Isso é básico. Não é socialismo, marxismo, nada disso. BF – Por que há tanto temor em controlar os fluxos de capitais se a lógica é tão simples assim? Toussaint – Porque a burguesia brasileira, por exemplo, não quer tolerar nenhum controle sobre o que faz com seu dinheiro. A burguesia diz a Lula que se o governo quer servir aos interesses dela não pode fazer esse tipo de controle. É a única explicação. O ministro Antonio Palocci, da Fazenda, é claro com Lula em relação a isso; e Lula assume a política de Palocci. O presidente brasileiro sabe o que está fazendo. Dizer o contrário seria subestimá-lo. E o que faz Chávez é mostrar que é possível aplicar outras medidas econômicas sem provocar represálias financeiras e econômicas contra a Venezuela. Apesar do controle de câmbio, o risco país da Venezuela é o mesmo que o risco

Agência Brasil

E

xplicar à população que a falta de recursos para saúde ou educação está relacionada com o pagamento de juros da dívida externa não tem sido tarefa fácil para os movimentos sociais. Ainda mais se os governos estão dispostos a dificultar o acesso às informações sobre o endividamento dos países enquanto cumprem à risca as metas de ajuste fiscal impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Eric Toussaint, presidente do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), explica que a aliança entre Estado e burguesia é um dos fatores que têm impedido que recursos como uma auditoria para esclarecer a maneira como foi contraída a dívida seja um tema velado. “Governos e classes dominantes não querem questionar por que têm interesse em manter um alto nível de endividamento”, diz. Para Toussaint, falta uma decisão soberana dos governos para questionar o pagamento da dívida e exigir sua anulação. “Que tipo de represálias pode haver? Os Estados Unidos vão invadir o Brasil?”, ironiza. Toussaint enfatiza as vantagens do controle de capital realizado pelo governo venezuelano, desfazendo o mito tão propalado pela mídia empresarial de que essa medida afugenta os investidores. “O risco país da Venezuela é o mesmo que o risco país do Brasil. O que atrai os investidores é o poder de compra”.

país do Brasil. Se houvesse algum tipo de represália, o risco país da Venezuela seria o dobro ou o triplo. É possível tomar esse tipo de medida, melhorar a estabilidade econômica do país e controlar os capitalistas.

Anderson Barbosa

Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)

Manifestantes protestam contra o Fundo Monetário Internacional, em Brasília

BF – Além do aspecto econômico, qual sua opinião sobre o processo político em curso na Venezuela? Toussaint – O segredo, e um dos grandes êxitos da Venezuela, é a capacidade do povo se mobilizar para defender suas conquistas. Se Chávez pôde resgatar a presidência em 13 de abril de 2004 é porque o povo se lançou às ruas para defendê-lo. A questão da mobilização do povo é fundamental. As etiquetas podem ser perigosas ao definir o que é esse processo. A Venezuela continua sendo uma sociedade capitalista na qual o setor público, com a estatal petroleira PDVSA, ocupa um espaço que em outros países capitalistas não ocupa mais. Temos um país capitalista com um governo de esquerda que se apóia sobre a mobilização das massas e que faz reformas sociais. No contexto mundial isso já é muito. Desafortunadamente, na atual conjuntura, não há atualidade de revoluções socialistas. Não podemos comparar a revolução bolivariana com a guerrilha do Movimento 26 de Julho em Cuba, que destruiu o aparato de Estado de Batista. Na Venezuela, não se quebrou o aparato de Estado. Inclusive Chávez contorna os ministérios com as missões para poder avançar no investimento social. BF – Quais são os limites deste processo? Toussaint – Os limites, como disse Chávez, têm a ver com o debate entre Lênin e Trotsky, quando Trotsky dizia que o socialismo em um só país não pode funcionar. Tem quer haver uma estratégia internacional. E Chávez disse que não há solução nacional. O futuro da revolução bolivariana tem a ver com o que está acontecendo no país e com a capacidade do povo venezuelano de defender suas conquistas e seu presidente. Temos que ver o que está acontecendo nos países vizinhos. Considero fundamental não só o apoio e a solidariedade com a Venezuela, mas as mobilizações sociais na Europa, na Ásia e na África. Se a Venezuela, apesar de toda a riqueza do processo, for ilhada, o futuro do país não será muito otimista. Vimos que os Estados Unidos intervieram para apoiar os golpistas em 11 de abril e que a Espanha de (José Maria) Aznar também. Se não houver avanço, no plano internacional, as forças contra Chávez podem mais uma vez entrar em ação.


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AMÉRICA LATINA NEOLIBERALISMO

O paradoxo dos governos de esquerda Para sociólogo, mandato eleitoral proveniente das bases pede transformações, mas dirigentes estão cautelosos Agência Brasil

Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)

que quer, com condições de impunidade total. Tem um território imenso, uma grande população, uma elite intelectual e tecnológica de primeiro nível mundial, uma estrutura econômica altamente diferenciada, com agricultura, pesca e um forte setor industrial. Se o Brasil não faz é porque não quer.

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Brasil de Fato – Qual sua avaliação do cenário político latinoamericano? Atilio Borón – O cenário é paradoxal. Temos um mandato eleitoral proveniente das bases, que pede uma política de transformação, e governos que estão sumamente cautelosos. Há um excessivo temor da influência dos Estados Unidos nos países e do aprofundamento das políticas do consenso de Washington. Em alguns casos, os governos têm deixado as políticas tradicionais e aprofundado um modelo econômico completamente incongruente com os objetivos que haviam sido apresentados em suas campanhas. Nesse cenário, temos um elemento de novidade, a grande surpresa histórica, que é a revolução bolivariana. Existe um processo de reforma agrária ainda incipiente, um processo de transformação econômica que se iniciou recentemente. Mas o mais importante é a revolução no plano das consciências, que poucas vezes se presenciou na América Latina. Esse é um fato que não deixa de me surpreender cada vez que venho à Venezuela: o crescimento do nível de consciência da população. BF – Nos últimos anos, temos presenciado um aumento das pressões sociais que levaram à queda de alguns governos, mas não resultaram em uma alternativa de poder. Quais são as dificuldades nesse sentido? Borón – Uma marca de toda a região são as dificuldades das grandes mobilizações sociais nos últimos três anos. Foram capazes de derrubar governos impopulares (Argentina, Bolívia, Equador), mas não foram capazes de construir uma nova fórmula governativa, capaz de superar o modelo anterior. Há uma preocupante improdutividade desses movimentos na hora de construir uma nova ordem política, uma nova institucionalidade política, e isso tem a ver com uma fase imatura de todo esse processo de massas no continente. Há uma espécie de romantização das virtudes do espontaneísmo, da batalha contra as oligarquias. BF – Como aproveitar esse descontentamento social para a construção de uma alternativa à tomada do poder? Borón – Colocando essa energia social e política em um rumo que nos leve a enfrentar e resolver os grandes dilemas pertinentes à tomada do poder. Não é apenas

BF – Se a lógica é essa, por que o governo opta por seguir outro caminho? Borón – Porque caíram na armadilha do capital financeiro internacional e estão a serviço desse capital. O único setor que está sendo favorecido no Brasil é o capital financeiro. As duas pessoas que mandam no país são (Antônio) Palocci e (Henrique) Meirelles. Lamentavelmente, Lula é uma figura decorativa. O mundo sabe que não é ele quem manda. Lula é um presidente sem poder nenhum, é apenas uma personagem a mais. A América Latina necessita de governos que reafirmem os interesses nacionais e, nesse caso, há uma responsabilidade muito grande do Brasil. Não vamos colocar a culpa no Uruguai e em Tabaré Vázquez, ou na Argentina de (Nestor) Kirchner. O Brasil precisa voltar a assumir o Mercosul como instrumento de fortalecimento regional. Na última reunião do bloco, na qual Venezuela foi incluída como país membro, a incorporação foi graças ao presidente argentino, que exigiu a integração venezuelana. Soube que Palocci não queria que Chávez participasse do bloco para não desagradar os EUA, que sabemos que têm grandes problemas com o processo político em curso na Venezuela. É preciso romper com esse ciclo de medo. O Brasil tem condições objetivas de iniciar uma política econômica pós-neoliberal sem temor de nenhuma represália dos EUA.

Consulta popular sobre a adesão à Área de Livre Comércio das América (Alca), feita em 2002

derrubar o governo em si, é preciso uma construção alternativa; se trata de uma tarefa de educação política, de formação política. A idéia de que a capacidade instintiva, de impulso das massas na rua, é suficiente para uma rebelião, é completamente equivocada. É necessário algo mais. É preciso estabelecer novos circuitos de acumulação de poder político. Vemos crescimento da organização social em muitos países, mas o problema é o salto qualitativo desses novos movimentos. BF – Essa concepção de projeto de poder passa pela discussão do modelo de democracia que temos? Borón – Sim. A essa altura, não deveríamos ter medo nenhum para voltar a chamar a democracia, como nos anos 60, de democracia formal. Acredito que hoje ninguém pode discutir isso, sem aceitar que países como Argentina, Brasil, qualquer um... são democracias meramente formais, onde sobrevivem grandes desigualdades sociais. São democracias onde cada vez mais temos menos cidadãos. As forças sociais têm que pensar uma nova estratégia político-eleitoral e isso muitas vezes gera barreiras muito difíceis de superar. Em época de campanha, um minuto de programa político na televisão custa 30 mil dólares. No Brasil, vocês têm um regime mais permissivo para os partidos, mas só para os que já estão incorporados. Uma nova forma de organização política emergente não terá a oportunidade de chegar ao poder pela via institucional porque vai estar impossibilitada por questões econômicas. E assim os movimentos sociais seguem caindo em armadilhas, como a do governo brasileiro, eleito com um mandato popular, mas que tem governado para atender interesses dos mercados.

Não é apenas derrubar o governo em si, é preciso uma construção alternativa; se trata de uma tarefa de educação política BF – Quais as condições concretas para evitar essas armadilhas? Borón – Essas armadilhas são muito difíceis de evitar. O grave da conjuntura atual é que não podemos conquistar o poder pela via insurrecional porque não

temos condições objetivas nem subjetivas para isso, e tampouco militares. As forças sociais que querem mudanças não podem conquistar o poder e, se conquistam, rapidamente são absorvidas por um Estado que tem sido redesenhado de tal maneira a atender aos interesses dos mercados. Esse dilema leva a uma crescente instabilidade no continente.

O Brasil tem condições objetivas de iniciar uma política econômica pós-neoliberal sem temor de nenhuma represália dos EUA BF – Por isso o senhor afirma que é um paradoxo a convivência entre democracia e capitalismo? Borón – Exatamente, um paradoxo sem solução. Quando você tem uma ordem social que se baseia na exploração da força de trabalho e na depredação da natureza, essa ordem não tem condições de gerar uma democracia genuína. Pode gerar outra coisa, mas não podemos chamar isso de democracia. O sociólogo inglês Colin Klaut diz que a era da democracia capitalista acabou. Hoje, ainda que pelos critérios permissivos da democracia burguesa, não há um só país democrático. Todos são pós-democráticos. Isso quer dizer que nesses países sobrevive um ritual democrático – as pessoas vão às urnas, mas não têm condições de eleger absolutamente nada porque as candidaturas são todas iguais. O que prevalece, sem nenhum contrapeso, é a ditadura dos mercados. Esse é o diagnóstico que Klaut faz para Europa e EUA. Imagine como será para a América Latina, que obviamente está em uma fase avançada de pós-democracia. Nesse aspecto, somos a vanguarda da pós-democracia. O que prevalece é o caráter desigual, predador e desintegrador da estrutura social, se assemelhando aos regimes escravocratas e militares do passado. Por isso, é necessário, mais do que nunca, uma reorientação das políticas de governo. BF – Como ultrapassar esse obstáculo e reinventar essa democracia? Borón – A reinvenção será produto de movimentos e de grandes eclosões sociais. Acredito que isso não vai ocorrer pacificamente, nem se produzirá pela via institucional. Os governos que não to-

marem nota dessa mudança vão enfrentar cenários sociais cada vez mais convulsionados. Fato é que a necessidade das massas, cada vez mais insatisfeitas, será muito difícil de sustentar com essa institucionalidade. BF – A esquerda está preparada para canalizar essa eclosão social? Borón – Não. A esquerda latino-americana tem enfrentado muitos problemas. Imagino que teremos muitas mobilizações populares e a construção caótica de uma nova ordem. A esquerda que está no poder resiste em adotar as mudanças que a sociedade exige. Isso fará com que essas mudanças ocorram de maneira turbulenta, devido à incapacidade dessas elites de centro-esquerda ou de esquerda de iniciar essas mudanças. Esses governos temem ser inimigos dos EUA; no entanto, qualquer político de esquerda que queira governar bem terá que brigar com eles. Não tem remédio. Isso não é antiamericanismo, nem antiimperialismo abstrato. Os EUA lideram a ordem de dominação dos países. Portanto, o líder de esquerda que queira governar para ter boas relações com a embaixada dos EUA será mais produtivo se ficar em casa. Se não, terminará tristemente, como está ocorrendo com várias lideranças de esquerda no continente. Os governos que querem estar bem com os EUA não fazem outra coisa senão frustrar as expectativas de mudanças.

A esquerda que está no poder resiste em adotar as mudanças que a sociedade exige BF – Em outra oportunidade o senhor disse que Lula poderia acabar como o ex-presidente argentino Fernando De La Rua... Borón – Isso vai depender muito do que pensa o povo brasileiro. Acredito que a expectativa gerada por ele é muito grande. Se o povo brasileiro estiver disposto a cobrar isso, a história pode se repetir, e terminar mal. Diferente do que acontece na Venezuela. Enquanto Brasil caminha na contramão de fortalecer uma integração com bases sociais, Chávez lidera um processo que busca a alternativa para o desenvolvimento econômico, da integração necessária, como fazem com Cuba – médicos e educação em troca de petróleo. O processo não chega a ser socialista, mas é baseado na justiça social.

BF – Como fazer isso? Borón – Suponhamos que o Brasil decida revisar as políticas de privatização. Que decida acabar com a loucura da liberação da conta de capital e todo esse respaldo à especulação financeira que prevalece hoje no país, um dos maiores cassinos especulativos e financeiros do mundo. O que os EUA farão? Vão bombardear o Brasil, bloquear o Rio de Janeiro? O Brasil pode fazer o

Quem é O sociólogo argentino Atilio Borón é secretário executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e professor de Teoria Política na Universidade de Buenos Aires. Autor de Estado, capitalismo e democracia na América Latina e A coruja de Minerva.

João Alexandre Peschanski

a capital da “grande surpresa histórica”, como define a revolução bolivariana, processo político venezuelano liderado pelo presidente Hugo Chávez, o sociólogo argentino Atilio Borón analisa a conjuntura política do continente. A seu ver, os movimentos sociais que anseiam por mudanças estão em uma encruzilhada: a falta de condições objetivas para tomar o poder pela via insurrecional e a impossibilidade de se promover transformações sociais pela via institucional – considerando o fracasso dos governos de esquerda – exigem repensar a estratégia política dessas organizações. Borón, que acompanhou de perto a evolução do PT e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, afirma que o Brasil é o único país que pode avançar na construção de uma nova ordem política. “O Brasil tem condições objetivas de iniciar uma política econômica pós-neoliberal sem temor de nenhuma represália dos EUA”, avalia.


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INTERNACIONAL GOVERNO BUSH

Agora precisamos de mais mobilização

Brasil de Fato – Cinco anos depois das manifestações em Seattle, nos Estados Unidos, em que as pessoas conseguiram interromper negociações sobre a globalização, o que aprendemos? Quais são os novos desafios? Tom Hayden – Na época, os protestos foram qualificados de “isolados”. Desde então, esses protestos “isolados” continuaram reaparecendo em Quebec, Quito, Cancún, Washington, Miami, Porto Alegre, Bombaim. Desde 1999, os movimentos progressistas venceram eleições ou ganharam influência em países como Argentina, Bolívia, Brasil, Índia, Uruguai e Venezuela, atrapalhando ainda mais o caminho das grandes corporações. Os projetos da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) ficaram paralisados, possivelmente de vez. Na atualidade, o desafio dos movimentos sociais é permanecer fortes e unidos, ao mesmo tempo em que avaliam quais reformas progressistas podem ser conquistadas em negociações com os Estados Unidos e a União Européia, se é que alguma reforma progressista pode ser conquistada em negociações com esses países. O Brasil demonstrou ser uma liderança brilhante, ao evitar tanto a anexação sob a Alca, como o confronto ideológico com Washington. O Brasil é o Estado-Nação equivalente à federação sindical de trabalhadores estadunidenses Congresso de Organizações Industriais (CIO), durante o New Deal dos anos 30 – um período em que o capitalismo se estabilizou, mas apenas ao conceder direitos coletivos de negociação aos trabalhadores, bem como a seguridade social. Será possível chegar a um New Deal global? Não sei. Ao mesmo tempo, o movimento pela justiça global foi parcialmente ofuscado e atingido pelo movimento contra a guerra no Iraque. Agora se tornou um movimento tanto contra a globalização das corporações como contra a militarização. Contra o império dos Estados Unidos e pela democracia. BF – O que significa ser contra a globalização hoje? Hayden – Acho que o movimento se autodenomina um movimento pela justiça global, contra a globalização das corporações. Dizer “não” também significa dizer “sim” para tendências pródemocráticas, para o fortalecimento dos trabalhadores, para a restauração do ambiente e para o respeito à diversidade das multidões. BF – Nas manifestações contra a Alca em Miami, em novembro de 2003, a repressão pareceu rápida e eficaz. Os defensores da globalização aprenderam a lidar com os manifestantes? Hayden – Eu estava lá. Sim, os

Divulgação

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reeleição de George W. Bush para a presidência dos Estados Unidos, em novembro, foi uma grande decepção para os movimentos sociais desse país e de outros. Porém, as mobilizações populares precisam continuar, pois o modelo imperial criado por Bush está ruindo, por causa de políticas econômicas desastrosas e do desgaste do governo ocasionado pela invasão do Iraque. A avaliação é do professor estadunidense Tom Hayden, para quem, em seu país, é preciso recuperar uma palavra de ordem, corrente nos anos 60: “Mais democracia, não menos”.

Quem é Líder dos movimentos por direitos civis, nos Estados Unidos, nos anos 60, Tom Hayden é um dos principais intelectuais que fazem oposição ao modelo de globalização. Escreveu diversos livros, como Street Wars (New Press, 2004), onde analisa a repressão policial a movimentos sociais. Em Los Angeles, cidade no sudoeste estadunidense, dá aulas no Occidental College. Em 2003, lecionou na Universidade Harvard, em Cambridge.

construção da ala progressista do Partido Democrata. Em Miami, protesto contra a implementação da Área de Livre Comércio das Américas

políticos estão tentando ligar os protestos com o terrorismo. O prefeito de Miami disse que as precauções da polícia em sua cidade eram um “modelo de segurança nacional”. Miami foi também um território desfavorável para os protestos e recebeu pouca cobertura da imprensa. No entanto, a campanha de assédio da polícia continuou em Boston e Nova York, nas convenções partidárias. Não houve protestos significativos em Boston, mas a polícia recebeu cerca de 60 milhões de dólares em verbas federais para equipamentos como armas antimotim e gás de pimenta (que depois usaram para matar um estudante que estava comemorando a vitória do time de beisebol de Boston, o Red Sox, na Série Mundial do esporte). Em Nova York, apesar da campanha de medo e do armamento de alta tecnologia, houve pelo menos 500 mil manifestantes e cobertura de primeira página. Além disso, houve mais de mil detidos. Esses dois números foram os maiores na história das convenções partidárias dos EUA.

O governo dos EUA precisa aprender com o mundo que a boa vida é possível depois do Império BF – Mesmo com pessoas em todo o mundo tendo lutado contra Bush, ele foi reeleito. Qual é a dimensão dessa derrota para os movimentos sociais, especialmente para os movimentos sociais estadunidenses? Hayden – O movimento antiguerra fez todo o possível nas circunstâncias dadas, mas o eleitorado não tinha ainda alcançado o ponto de apoiar a retirada das tropas. A maioria agora vê o Iraque como um “erro”, mas hesitou em mudar de presidente durante a luta. Além do mais, não houve muitas críticas do adversário de Bush, o democrata John Kerry, em relação ao paradigma da “guerra contra o terrorismo”, o que deu espaço para a reeleição.

seus governos para evitar acordos políticos com Bush. Precisamos da opinião pública mundial para continuar dizendo “não” a Bush. BF – A doutrina da guerra contra o terrorismo correu o mundo. O que significa realmente? Como é posta em prática nos EUA? Hayden – A guerra contra o terrorismo substituiu a Guerra Fria como paradigma dominante. Enquanto precisamos continuar trabalhando em questões específicas, tem de haver um esforço intelectual e político para desconstruir essa guerra contra o terrorismo. Ela significa um desvio permanente de recursos orçamentários para a guerra, a diminuição das liberdades civis, e uma polarização global mais profunda. BF – Bush não foi derrotado nas eleições. Como derrotá–lo nas ruas? Hayden – Não sei se ele pode ser derrotado nas ruas, mas é possível vencer muitas lutas democráticas nas ruas, nos níveis local e estadual, e manter a pressão sobre Bush no nível nacional. Muitas vezes o fator da opinião pública não é levado em conta. Por exemplo, foi por causa da opinião pública que Bush adiou a invasão de Faluja e as eleições no Iraque até depois das eleições de novembro nos EUA. BF – Existem pensamentos, discussões e reuniões para criar uma frente de esquerda nos EUA contra o imperialismo, unindo as lutas locais, ou existe a idéia de criar um partido de esquerda? Hayden – Sim, há muitas reuniões. Mas, com a diversidade do nosso país ao longo de linhas de gênero, raça e classe, é difícil unificar as pessoas em torno de uma única organização ou um único partido. Elas se unificam, para o bem e para o mal, por causa de Bush, da direita religiosa, da guerra no Iraque, dos cortes no orçamento, da falta de empregos etc. Acho que vai haver um renascimento dos protestos de ruas e, ao mesmo tempo, uma re-

BF – O senhor foi líder dos movimentos estudantis nos anos 60. Desde então, os ideais das organizações mudaram? Hayden – De certo modo, muitos ideais foram absorvidos culturalmente e politicamente; por exemplo, a idéia da democracia participativa. Acabamos com a segregação racial no sul do país, estabelecemos direitos civis para as minorias e para as mulheres, estendemos o voto aos maiores de dezoito anos, fizemos aprovar leis ambientais fortes etc., e todas essas reformas estão em pé. O que foi devastador para os movimentos dos anos 60, e é muitas vezes esquecido, foi uma série de assassínios (John Kennedy, Martin Luther King, Bob Kennedy, Malcolm X), que destruíram a possibilidade muito real de uma maioria progressista chegar ao poder. Nunca nos recuperamos plenamente disso. BF – Vista de fora, a sociedade estadunidense parece bastante desorganizada. Por quê? Hayden – Pode ter a ver com a mentalidade do colono de fronteira, que deu nascimento ao individualismo arrasador. BF – Em uma entrevista ao Brasil de Fato, em dezembro de 2003, Noam Chomsky disse que, para se organizarem contra o imperialismo, as pessoas teriam de aprofundar seus conhecimentos sobre esse assunto. Como o senhor define o imperialismo? Hayden – Experiências como o Vietnã, e agora o Iraque, infelizmente proporcionam uma oportunidade para os estadunidenses aprenderem fatos a respeito do imperialismo, o sofrimento que ele impõe sobre o mundo, e os custos que impõe internamente. Eu o definiria menos em termos ideológicos e mais em termos que os estadunidenses usam no dia-adia. Por exemplo, a maioria dos estadunidenses é muito aberta aos argumentos de que não devemos ser o policial do mundo, ou não devemos fomentar o crescimento da exploração predatória de trabalhadores. O grande problema desde 11 de setembro de 2001 é

João Peschanski

João Alexandre Peschanski da Redação

João Peschanski

Para o professor estadunidense Tom Hayden, os movimentos sociais devem aumentar a resistência à globalização

BF – Bush fez algumas mudanças no governo, substituindo alguns secretários (nome dado aos ministros, nos Estados Unidos) e o resultado foi uma gestão ainda mais direitista. Internamente, quais serão as conseqüências? Hayden – É possível que o governo Bush abuse do poder que recebeu das urnas e crie uma grande reação pública contrária; a mesma coisa aconteceu com Richard Nixon e Watergate. BF – Para outros países, qual vai ser o impacto da reeleição de Bush? Hayden – O movimento global terá de aumentar a pressão sobre

Movimentos sociais lutam por um mundo mais democrático e participativo

que os estadunidenses aceitaram a guerra contra o terrorismo como uma suposta proteção para o seu modo de vida. Outra vez, como na Guerra Fria, há um inimigo externo para culpar. Outra vez, a prioridade é a segurança pública; as raízes dos problemas vêm depois. Os progressistas precisam argumentar que as próprias políticas dos EUA fomentam as condições em que o terrorismo cresce, mas essa argumentação leva tempo para se firmar e vai depender dos eventos futuros.

O movimento global terá de aumentar a pressão sobre seus governos para evitar acordos políticos com Bush BF – Quais são os meios de derrotar o imperialismo? Hayden – Mesmo os defensores de um império dos EUA estão ficando em silêncio depois de um ano no Iraque. A verdade é que o Pentágono não tem tropas suficientes para sua missão no Iraque e a opinião pública é fortemente contrária a enviar mais tropas. Assim, há limites reais à capacidade militar dos EUA, embora o Pentágono, é claro, continue a guerra agressiva de baixa intensidade na Colômbia. Do mesmo modo, os defensores do império estão se arriscando em déficits orçamentários historicamente sem precedentes, na casa de muitos trilhões de dólares. Eles não podem se dar ao luxo de manter o império. Finalmente, os defensores do livre comércio das grandes corporações ficaram frustrados por sua incapacidade de impor sua agenda por meio de OMC, Alca etc. De modo que eu diria que o imperialismo, ou o império, se não está derrotado, não está vencendo no momento. Na medida em que o império depende da opinião pública, os Estados Unidos estão próximos de esgotar qualquer boa vontade que antes existia no mundo. Em toda a América Latina há movimentos populares lutando duramente contra o neoliberalismo, por exemplo. Em diversos países, progressistas com raízes nos anos 60 estão chegando ao poder. Não somente nos países oprimidos, mas também na Europa. Estamos entrando naquilo que os franceses chamam de um mundo multipolar (com o Brasil sendo um dos pólos), em oposição a um império. Os movimentos sociais representados por Porto Alegre estão levando a algo mais profundo do que esse mundo multipolar. Estão lutando por um mundo mais democrático, mais participativo, mais sustentável. Não acredito que o governo dos EUA ou o Pentágono possam fazer reverter esse processo democrático mundial. O governo dos EUA precisa aprender com o mundo, talvez com os europeus, que a boa vida é possível depois do Império.


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INTERNACIONAL CERRADO

Muitas histórias e tantas paisagens sobre João Roberto Ripper do Rio de Janeiro (RJ)

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iderança entre os trabalhadores rurais do cerrado, Manuel da Conceição, assim como a terra em que vive, teve o corpo devastado pelas torturas da ditadura. Uma de suas pernas secou, como secaram tantos brejos, veredas, igarapés e pântanos. O cerrado, a partir de seu coração, no centro do Brasil, se mistura com o pantanal; a mata de araucária, no sul do país; a mata atlântica; a caatinga, no Nordeste; a zona dos cocais e babaçuais, no Maranhão e Piauí; e a Floresta Amazônica. Hoje, o cerrado é oferecido em holocausto, em troca da Amazônia, por uma política que ignora as suas populações. A partir dos anos 70, o agronegócio tem como sócio majoritário a soja. Há tratores de 230 mil dólares, mas a monocultura significa não produzir para o próprio povo e não contemplar quem produz nem suas famílias. Quantas sementes têm que ser plantadas para dar retorno a esse investimento? Que quantidade de terra é necessária pra tanta semente ser cultivada? Quantos chapadões são sacrificados e deixam de gerar agricultura diversificada, extrativismo e caça para os povos do cerrado? Além da soja, tem a cana-deaçúcar, os eucaliptos e sua produção de carvão vegetal com utilização de mão-de-obra escrava, tudo sugando as chapadas, chupando água do lençol freático que sempre foi a garantia de vida das veredas, das matas ciliares, dos pântanos, igarapés, rios. Manuel teve o corpo e o coração muito machucados pelos militares, mas não perdeu a beleza, pois sua dignidade é perene, límpida, transparece e aparece em tantos outros homens e mulheres que povoam o cerrado brasileiro. Disse um índio no Fórum Social Mundial: “Indiscutivelmente, a expansão do agronegócio está matando as culturas dos povos do cerrado. Existe um conhecimento sobre o cerrado que está inscrito na prática das populações. Com toda certeza, quando seca um pântano,

Fotos: João Roberto Ripper

Um dos ecossistemas mais ricos do país, fonte de águas de muitos rios, a região, no coração do Brasil, é oferecida em

Cerrado é oferecido em holocausto por uma política que ignora seus habitantes

Expansão do agronegócio representa morte para a cultura local

um igarapé, um rio, ou quando migra um camponês, um indígena, um quilombola, a humanidade fica mais pobre”.

DESTRUIÇÃO Os camponeses, habitantes originários do cerrado, sempre trabalharam com paisagens diversificadas.

Nas baixadas, a agricultura; nas chapadas, o gado à solta, a caça e coleta de ervas medicinais e de frutos, como o pequi; nas encostas, uma mistura de agricultura, extrativismo, um pouco de pecuária. Os chapadões foram um grande achado para o agronegócio. Que consegue, hoje, captar água a até 150 metros de profundidade, trazendo para a superfície a água do lençol freático, num local onde a água já é escassa por seis meses. Essa operação provoca um desequilíbrio hídrico de tal porte que rios, córregos e lagoas, antes perenes, tornam-se intermitentes e até deixam de existir. Com a falta d’água, antes de o agronegócio produzir grãos para exportação, produz a sede, a fome e a expulsão de milhares de habitantes. O problema afeta as bacias do Prata e Amazônica.

EM COMUNHÃO Manuel da Conceição trabalha desde os seis anos, quando to-

Família de pequenos proprietários vivem situação de extrema pobreza em conseqüência da destruição de suas terras

mava conta dos irmãos menores, enquanto os pais iam para a roça. “Me fiz grande, analfabeto de pai e mãe. Com nove anos, acordava às quatro da madrugada, ia com meu pai na sua oficina de ferreiro fazer ferramentas para os outros

agricultores”. No povoado, não tinha escola e ele não tinha tempo. Já com 18 ou 20 anos, Manuel conta que comprou uma carta de ABC e saiu pelas casas pedindo lição para um e para outro. Foi aprendendo a soletrar.


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INTERNACIONAL

a destruição e a resistência no cerrado holocausto ao agronegócio; ela e os brasileiros que a povoam vêm sofrendo contínua devastação e violência Manuel tem quatro filhos. Manoel é pedagogo; Raquel é líder rural no Piauí. Mariana, que acaba de ser formar em agronomia , é filha da companheira com quem vive desde 1986. A outra filha é Rosa, que estuda antropologia em Alagoas. Em 1963, o MEB, Movimento de Educação de Base, fez um encontro no Maranhão. Manuel participou, e lá, ouviu falar, pela primeira vez, em sindicalismo, cooperativismo e política. Também em 1963, ele participou da fundação do primeiro sindicato dos trabalhadores rurais do Maranhão, em Pindaré Mirim, com a presença de mais de mil trabalhadoras e trabalhadores. No dia da fundação do sindicato, os trabalhadores decidiram lutar em três frentes: obrigar os fazendeiros a prender seus gados, que destruíam as roças dos trabalhadores; derrubar as cercas dos fazendeiros, que avançavam pelas terras onde os trabalhadores já tinham plantado; e começar a organizar trabalhadoras e trabalhadores para controlar a produção, armazenar, não entregar aos grandes comerciantes como pagamento de dívidas e esperar a alta das safras. O sindicato chegou a mobilizar 50 mil trabalhadores. “Quando estávamos no auge da organização e da luta, em 1º de abril de 1964, nosso município foi cercado pela Polícia Militar e pelo Exército. Eles proibiram todas as reuniões. Fomos acusados de comunistas e subversão. Criaram muitos grupos paramilitares e implantaram o terror”, conta Manuel.

RIOS MORTOS O líder rural lamenta que os rios da região estejam sendo devastados, aterrados por areia, envenenados por adubos químicos. “Os rios só têm água roxa e preta. Acabou a fartura de peixes, pássaros, cutia,

Trabalhadores do Cerrado lamentam o envenenamento dos rios por agrotóxicos e a devastação das florestas pelos tratores das empresas e dos latifundiários

tatu, anta, veado. O que tem agora é eucalipto, capim pra criar gado. Não tem mais mata ciliar. Os tratores devastam as florestas e as terras. Nas chuvas tudo é arrastado, entupindo os rios”. Manuel diz que estão desertificando o Maranhão. Mais: “Quando falarmos dos seres humanos, a coisa é ainda mais grave. Quero ver qual é o governo que vai conseguir segurar a violência no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, São Luís com essa grande quantidade de trabalhadores pobres que são expulsos, com fome e sem trabalho”.Os pobres viram marginais, diz, e não vai ter governo que dê conta de atender esses milhões de brasileiros que, sem querer, caem na marginalidade para sobreviver.”

RESISTÊNCIA Para fazer frente a tudo isso foram criados, há 18 anos, o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural e, mais recentemente, a Central de Cooperativas Agroextrativistas do Maranhão (CCAMA), em Imperatriz. Antes de se organizar, esses trabalhadores não tinham nem terra e nem ferramentas. Hoje, são mais de 30 mil trabalhadores assentados em Buriticupu, onde 38 grandes fazendas foram ocupadas. “Eles ainda estão muito pobres, mas pelo menos já têm o que comer” – conta Manuel. Declarando seu amor pelo cerrado, ele lembra que nele deixou sua família quando foi preso e depois se refugiou na Suíça. “Aqui fiz a minha roça, colhi meu babaçu. Eu tenho todo interesse de dizer que o que faço hoje é tentar levantar as vozes adormecidas dos povos do cerrado”.

MARIAS Maria Querobina da Silva Neta, 58 anos, é outra líder do cerrado e da zona dos cocais e babaçuais no Maranhão. Baixa, forte, olhar firme, ela não estudou quando criança. Aos cinco anos, ajudava a tomar conta dos irmãos e se encarregava das tarefas da casa. Com oito, ia para a roça levar comida para os pais e os irmãos e, com dez, colhia arroz, feijão, algodão, fava, mandioca e cuidava da casa de farinha do pai. “Quebrava coco de babaçu pra

fazer azeite, sabão; nessa idade a gente começava a fazer de tudo lá no Olho D`água do Tolentino, no município de Peixeira, no Maranhão. Me casei com 18 anos e tive quatro filhas. Duas se formaram no

magistério e hoje eu estou estudando no Mobral, no projeto Vamos ler. Já leio bastante, posso ler essa reportagem, mas escrevo com muita dificuldade.” Faz tempo que os problemas

de terra são grandes. Antigamente, a maioria era terra devoluta e, quando o Sarney era governador, “se vendia terra até por telefone”. “A gente colocava uma roça e logo depois chegava alguém se dizendo dono da terra e querendo cobrar renda da nossa produção”. Ela fez parte do Conselho da Igreja, foi catequista de adultos e ajudou a criar um novo sindicalismo. Em 1978, com outros companheiros, ganhou a diretoria do Sindicato de Imperatriz. As filhas seguiram os passos da mãe. Hoje, uma é líder no assentamento Sol Brilhante, outra é diretora do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e vice-presidente da Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Imperatriz Ltda. Eleita presidente do sindicato em 1985, Maria conseguiu promover várias ocupações com proposta extrativista. Organizou um grupo de mulheres e conquistaram a Fazenda Taiguara. “Aí começamos a conquistar várias fazendas. As mulheres foram o esteio da guerra. Nossa missão era quebrar coco de babaçu, fazer muita denúncia de devastação e ocupar terras pra garantir extrativismo, agricultura de subsistência e recuperação do cerrado”, conta.


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DEBATE RUMOS DO GOVERNO

O que mudou depois de Lula? Plinio Arruda Sampaio

A

valiar é comparar fatos com valores. Nesta avaliação dos dois primeiros anos do governo Lula, escolhemos como termo de comparação o projeto de construção nacional. Usando a fórmula sintética e precisa de Caio Prado Jr.: em que medida estes dois anos de governo contribuíram para acelerar a transição entre o “Brasilcolônia de ontem para o Brasil-Nação de amanhã”? Três aspectos dessa transição serão examinados: redução da desigualdade; aumento da autonomia; e organização política do povo. Quanto à redução da desigualdade social, cabe dizer: considerados os dois anos, o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) foi medíocre, não chegando a afetar o PIB per capita. Melhorou em 2004, mas não teve impacto maior – seja na questão do emprego (que aumentou pouco diante do tamanho da força de trabalho), seja na dos salários (de fato, o salário médio diminuiu no biênio). O governo fez um esforço para exigir a formalização das relações de emprego – o que poderia se refletir em melhoria dos salários. Apesar disso, porém, o número de trabalhadores com carteira profissional assinada é ainda inferior ao dos trabalhadores sob contrato informal, o que ajudaria a explicar o fato escandaloso de a renda de quase um quarto (23,8%, segundo o Ipea) dos trabalhadores brasileiros ser inferior ao salário-mínimo. Tendo herdado uma situação de desigualdade secular, o governo poderia alegar a impossibilidade de reverter esse quadro em apenas dois anos. O argumento seria aceitável se, nestes dois anos, medidas eficazes tivessem sido tomadas para alterar as estruturas viciadas que criam a desigualdade. Isso, porém, não foi o que se viu. A reforma agrária não saiu do papel. A meta de assentamento de um milhão de famílias, em quatro anos, suficiente para gerar uma dinâmica virtuosa de redistribuição da riqueza no campo, foi cortada pela metade, e essa metade não está sendo executada. Não se falou de reforma urbana – outra medida estrutural de redução de desigualdades sociais. Nem mesmo se pôs em marcha um programa tradicional de construção de casas populares de dimensões minimamente proporcionais ao tamanho do problema. Não cogitou também da utilização dos impostos para redistribuir renda – instrumento de que se serviram os países desenvolvidos da Europa e da América do Norte para reduzir as distâncias entre ricos e pobres. O que se viu foi uma verdadeira fúria arrecadadora, completamente indiferente ao fato de que o sistema tributário vigente onera desproporcionalmente as camadas mais pobres da população.

PROGRAMAS SONOROS E INSUFICIENTES Na falta de reformas estruturais, o combate à desigualdade social limitou-se aos gastos assistenciais do Estado. Nesse plano, o que se constata é que, após dois anos de Fome Zero, Bolsa Escola, Renda Mínima e outros tantos programas com títulos sonoros, o governo não conseguiu desfazer-se inteiramente do conceito neoliberal dos “gastos sociais focalizados”. O anunciado vetor “estruturante” dessas transferências de renda aos setores mais pobres não passou do terreno das boas intenções. A desproporção entre os recursos alocados (mesmo que tenham sido superior em relação aos do governo passado) e o tamanho das demandas da imensa massa de pobres frustrou esse objetivo. Minúsculas transferências de renda não geram uma dinâmica

social favorável ao protagonismo político e social dos marginalizados. Em outras palavras: apesar das boas intenções, não se conseguiu sair da linha tradicional do assistencialismo praticado pelas elites dominantes e destinado meramente a atenuar situações gritantes e explosivas de pobreza. O grande argumento dos conservadores no terreno da redistribuição de renda é a necessidade de haver renda para ser distribuída. Assim, o governo estaria cuidando de cumprir essa condição prévia a uma política redistributiva vigorosa. Os resultados obtidos são motivo de vanglória, pois a economia cresceu, em 2004, a uma taxa próxima de 5% – o melhor resultado em nove anos. A taxa de crescimento é exibida como prova do acerto da política econômica. Mas, para colocá-la em perspectiva, convém compará-la com o crescimento das economias da Venezuela (18%); Uruguai (12%); Argentina (8,2%); Equador (6%); Panamá (6%); Chile (5,8%), no mesmo período. Nesse contexto mais amplo, cabe indagar se os proclamados 5% do Brasil serão mesmo o resultado de uma atilada condução da economia ou de uma conjuntura expansionista do mercado internacional, dadas as performances dos Estados Unidos e da China. Qual a garantia de que essa taxa se manterá por algum tempo? Mas o ponto central da polêmica redistributiva não é esse. Mesmo que a taxa de 2004 se mantenha por cinco, dez e até mais anos (o que nenhum economista se arrisca a prever), se o esquema estrutural de repartição da renda não for alterado, a situação de desigualdade social será substancialmente a mesma, ainda que num patamar de renda um pouco superior. A conclusão desta análise é de que não houve, nos dois primeiros anos do governo Lula, nenhum resultado significativo em termos de redução das desigualdades sociais.

AJUSTE NEOLIBERAL CONTINUA Para medir o desempenho do governo Lula no plano da redução da dependência – a segunda dimensão desta avaliação – a analise precisa abranger dois aspectos: o econômico e o político. No econômico, o fato básico e chocante é constatar a continuidade do processo de ajuste estrutural da economia brasileira aos cânones do modelo neoliberal. reforma da Previdência Social; remoção do entrave constitucional à autonomia do Banco Central; reforma do Poder Judiciário; e Lei de Falências: toda essa legislação estruturante, patrocinada a ferro e a fogo pelo governo petista, enquadra-se rigo-

rosamente na receita do Consenso de Washington – Estado fraco e mercado livre. A política econômica seguiu as mesmas pegadas. Tudo se subordinou ao mesmo mote: “Construção da confiança” (confidence building, como se lê nos manuais que instruíram a equipe econômica) dos centros do capitalismo financeiro no governo do Brasil. Para conseguir essa confiança, foram feitas concessões injustificáveis às multinacionais da energia e das telecomunicações, foram dadas isenções indevidas aos especuladores e investidores estrangeiros, fez-se “vista grossa” às transgressões das madeireiras estrangeiras às normas de proteção das florestas; e sancionou-se o retrocesso da legislação ambiental, a fim de favorecer as multinacionais dos transgênicos. Sem falar na manutenção de um superavit primário incompatível com o atendimento mínimo das demandas sociais e com a necessidade urgente de recuperar a infra-estrutura econômica do país. Este inventário das medidas estruturais e conjunturais só leva à conclusão de que, após dois anos de governo Lula, o Estado brasileiro tornou-se mais débil e menos equipado para executar políticas econômicas, pois um número maior de decisões relevantes foi transferido

para centros decisórios externos. Na dimensão política da questão da dependência, o governo e o Itamaraty conseguiram “empurrar a Alca com a barriga”; torpedear a cessão da base de Alcântara; criar o G-22; derrotar, pela primeira vez na história das negociações comerciais, propostas apoiadas conjuntamente pelos Estados Unidos e pela Europa. É verdade que nenhum dos resultados favoráveis obtidos é definitivo, e que o brilho desse desempenho ficou esmaecido pelo inexplicável envio de tropas brasileiras para servir como biombo das obscuras manobras da diplomacia estadunidense e francesa no Haiti.

FRAGMENTAÇÃO DA ESQUERDA Isto posto, pode-se entrar no exame do terceiro eixo da análise: a organização política do povo – um aspecto essencial, pois todos sabemos que redução da desigualdade e autonomia não são dádivas dos ricos e das potências estrangeiras. Pelo contrário, são conquistas arrancadas desses poderosos à custa de muita luta e de muito sacrifício. Requerem, portanto, povo consciente, organizado e mobilizado. Neste plano, encontra-se, sem dúvida, o pior resultado do governo Lula nestes dois primeiros anos. Para começar, a condução política do governo submeteu-se integral-

mente aos padrões tradicionais da corrupta elite brasileira: conchavos, toma-lá-dá-cá; alianças espúrias; financiamento obscuro das campanhas eleitorais – nada diferente das práticas condenáveis do governo Fernando Henrique Cardoso no relacionamento com a “base de apoio” parlamentar e partidária. Esse comportamento serviu apenas para confirmar o ceticismo de grande parte da população com tudo o que diz respeito à política (“são todos farinha do mesmo saco”) e para desmoralizar as vanguardas populares que, durante duas décadas, lutaram para convencer o povo de que o PT era diferente. À decepção com o comportamento ético seguiu-se o espanto diante da falta de medidas que sempre fizeram parte do programa do partido e do discurso de Lula durante toda sua vida política. Os indígenas, por exemplo, não conseguiam entender por que o governo não demarca a reserva Raposa Serra do Sol; as duzentas mil famílias que correram para o campo assim que souberam da eleição do Lula não se conformam de continuar na beira das estradas ou em áreas ocupadas, sob a mira dos jagunços; os ambientalistas viram frustradas suas esperanças de uma ação decisiva de repressão ao desmatamento e à penetração dos transgênicos; os atingidos por barragens não conseguem receber as indenizações a que têm direito; os sindicalistas autênticos reclamam do valor do salário-mínimo e contra a proposta para a estrutura sindical; sem falar nos idosos, golpeados pela nova legislação previdenciária. Um rosário de decepções. Tendo em vista que todas essas demandas constituíam as bandeiras de luta das vanguardas populares, pode-se concluir que, hoje, o movimento popular está mais fraco, mais confuso, mais dividido do que dois anos atrás. Para se ter uma idéia disto, basta atentar para o fato de que todas as tendências internas do PT “racharam” e que vários sindicatos importantes desligaram-se ou estão em processo de se desligar da CUT. Os demais partidos de esquerda e movimentos populares do campo e da cidade também não escaparam desse processo. Vêemse todos diante do dilema: romper com o “seu governo” ou recuar, a fim de não confrontá-lo diretamente. O governo Lula não reprime a esquerda ou o movimento popular, porém, provoca sua diluição e fragmentação. Esta avaliação aparentemente não se ajusta ao sentimento do povo, pois as pesquisas de opinião mostram aprovação de quase 70% ao desempenho do presidente Lula e de 45% ao seu governo. Por que a dureza da crítica, se o “povão” está contente? É cedo para tirar conclusões definitivas dessas pesquisas. Indicariam elas que Lula está substituindo sua base de apoio – o PT e os movimentos populares combativos – e enveredando para um novo tipo de “populismo”, fundado no seu carisma pessoal e na transformação do PT em uma formidável máquina eleitoral? Ou as pesquisas retratam apenas uma situação conjuntural que pode se desfazer rapidamente, se 2005 não trouxer os benefícios que a massa popular ainda espera? Quaisquer que sejam as respostas, uma coisa é certa: o governo Lula está obrigando todos os que lutam para acelerar a transição do “Brasil-Colônia de ontem ao Brasil-Nação de amanhã” a um profundo esforço de revisão de suas estratégias, de seu discurso e de suas práticas. Plinio Arruda Sampaio é diretor do Correio da Cidadania. É fundador do PT e líder do partido na Constituinte (1987/1988)


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agenda@brasildefato.com.br

HUMOR RETROSPECTIVA 2004

Rir... para não chorar

Latuff

Kipper

Maringoni

Maringoni Latuff

Maringoni

Latuff

Marcio Baraldi

Agê

Paulo Caruso

Latuff


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CULTURA

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PROJETO POPULAR

Este governo fez um acordo com o dragão Miguel Enrique Stédile de Porto Alegre (RS)

E

m quatro décadas de jornalismo, Luís Fernando Veríssimo estabeleceu marcas inconfundíveis em seu trabalho: um senso de humor apurado, uma crítica mordaz às estruturas conservadoras da nossa sociedade e uma esperança inabalável no ser humano. Uma esperança que se mantém mesmo diante da sensação de que perdemos outra vez a chance de construir um projeto nacional. Para Veríssimo, esse projeto começa pela mudança do modelo econômico, mas depende da correlação de forças para que “a eleição de um Lula não seja só uma curiosidade eleitoral mas signifique mesmo uma novidade”. Nesta entrevista, exclusiva ao Brasil de Fato, Veríssimo fala sobre o governo Lula, o Fórum Social Mundial e a derrota do PT em Porto Alegre. Brasil de Fato – Antes da vitória do Lula, na eleição de 2002, o senhor escreveu que o Lula representava uma nova possibilidade de retomar um projeto de Nação. No primeiro ano de governo, o senhor escreveu uma crônica sobre o cavaleiro preparado toda a vida para combater um dragão e, quando entrava na caverna, tornava-se amigo do dragão. Chegando ao fim do segundo ano de governo, estamos mais próximos de um novo projeto nacional ou dentro da caverna do dragão? Luís Fernando Veríssimo – Acho que não há dúvida de que houve um acordo com o dragão. A questão é saber até que ponto esse arranjo era inevitável, se é temporário e se é por estratégia ou por convicção. O certo é que o projeto que se imaginava não pode conviver com esse modelo econômico. Coisas como a dis-

Adriana Elias/Folha Imagem

Veríssimo avalia que, para combater a exclusão e distribuir a renda, governo tem que mudar a política econômica

tribuição de renda e o combate à exclusão não passam por programas de caridade pública, mas sim pelas áreas do governo, hoje dominadas pelo ideário conservador. BF – Durante o regime militar, o senhor criou a personagem “Velhinha de Taubaté”, que acreditava no Delfim e no milagre econômico. A euforia da política econômica atual na mídia seria um caso para a Velhinha de Taubaté? Veríssimo – A Velhinha de Taubaté apoiava o governo por ingenuidade. Pode-se dizer tudo dos grupos que apóiam a continuação deste modelo econômico, menos que sejam ingênuos. BF – Há alguns anos, sobre a relação entre a grande mídia e o governo FHC, o senhor escreveu que havia um “reflexo de autodefesa do patriciado e a conseqüente predisposição de ajudar o homem (FHC)”. Como o senhor vê esta postura dos grandes meios de comunicação e o governo favorável ou complacente

Quem é Um escritor prolífero e popular, mas reservado na vida particular. Luís Fernando Veríssimo é autor de centenas de livros, entre eles romances, relatos de viagens e sobre culinária, infanto-juvenis e de poesia. Criou personagens marcantes como o Analista de Bagé e Ed Mort, este último adaptado para o cinema. Escreveu também roteiros para a televisão. Segundo o cartunista Jaguar, Veríssimo pode ser visto “de manhã à noite, sempre com a placa “Homens trabalhando” pendurada no pescoço. com a política econômica? Veríssimo – Acho que há uma postura naturalmente conservadora de quem defende seus interesses, ou tem medo de mudanças vindas da “esquerda”, ou então acredita que o caminho certo é esse mesmo. Acho que não se deve pensar em termos de ogros e heróis, mas sim de interesses em jogo. As grandes empresas de comunicação têm seus interesses e convicções, são fortes e usam a sua força. O negócio é tentar dar força ao outro lado para que um acontecimento como a eleição de um Lula não seja só uma curiosidade eleitoral, mas signifique mesmo uma novidade. BF – Uma das maiores polêmicas do governo este ano foram as propostas de Lei do Audiovisual e de criação do Conselho Federal de Jornalismo, que foram interpretados por alguns setores como um retorno à censura. Como o senhor vê estas propostas? Veríssimo – Os projetos, antes de mais nada, foram mal redigidos. Falar em “fiscalizar, orientar etc.” a imprensa assus-

ta, e dá uma arma semântica à reação. Devia ter ficado mais claro que o objetivo, na questão do Conselho, era prevenir contra a concentração da informação, não restringi-la. Na lei dos audiovisuais também não ficou clara a intenção de promover a produção nacional. Na minha opinião os projetos se perderam no português. BF – O senhor foi autor da carta de encerramento do 1º Fórum Social Mundial. No final da carta, o senhor escreveu que “nos próximos [FSM], falaremos mais claro”. Estamos chegando a quinta edição. Que impressões o senhor tem deste processo? Veríssimo – O bom do Fórum é que ele é imprevisível. Vai criando suas próprias prioridades e seu próprio folclore, enquanto acontece. Acho que a idéia básica de discutir alternativas econômicas, ecológicas e políticas para um mundo em crise continua. Fica difícil dizer se o Fórum “adianta” ou não “adianta”, num sentido puramente prático. Sua função é manter viva essa evidência de inconformismo global e busca de alternativas. Sua função é continuar a existir e a fazer barulho. BF – Aliás, na carta do FSM, o senhor escreveu sobre a necessidade de recuperar o ser humano como parâmetro em oposição ao capital. Em um mundo em que Bush é reeleito, em que assistimos a massacres em Faluja, de sem-terra em Felisburgo (MG) ou os conflitos entre palestinos e israelenses, não parece que perdemos definitivamente este parâmetro humano? Veríssimo – Pois é, o mundo se retribaliza e se bestializa. Mas

podemos sucumbir à revolta ou ao desânimo, mas nunca ao niilismo. À idéia de que a humanidade não tem jeito mesmo. Temos que acreditar que tem, nem que seja por vaidade. Afinal, é a nossa espécie. BF – Provavelmente, este seja o último FSM em Porto Alegre, motivado principalmente pela saída do PT da prefeitura depois de 16 anos. O senhor, como morador da cidade, talvez pudesse explicar o que levou a população a encerrar uma administração por um projeto de oposição? Veríssimo – Penso que a derrota do PT nas últimas eleições municipais foi um reflexo da reação ao governo estadual do Olívio Dutra que deu um susto no conservadorismo gaúcho e criou aqui um antipetismo ressentido e virulento. Isso, aliado ao desgaste natural de 16 anos do PT no poder em Porto Alegre, e a um candidato da frente anti-PT simpático como o Fogaça, deu no que deu. Mas não sei se o Fórum vai embora, não. Já descobriram que ele é muito bom para o turismo na cidade. BF – Gostaria de retomar o tema do projeto nacional. Em quais pilares, na sua opinião, deveria se sustentar este projeto? Veríssimo – Como eu disse antes, a reorganização de prioridades passa pelo comando da economia. BF – Por último, na primeira edição do Brasil de Fato, o economista Celso Furtado aconselhava o presidente Lula a ter coragem para fazer as mudanças necessárias. Que conselho o senhor daria ao presidente? Veríssimo – Que aceite o conselho do Celso Furtado.


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