Pâmela: morte e vida após o rompimento da barragem de Fundão, em MG

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| Pâmela | Viajei mais de dois mil quilômetros para conhecêla. Bati em sua porta com atraso, às nove e vinte da manhã de um dia ensolarado e frio, e quase acreditei que voltaria para casa sem saber sua história.

Na sala, o pôster do casamento com o Wesley conta mais do que uma história de amor: a saudade da primogênita Emanuele, que estaria com sete anos se não levada e morta pela lama da barragem de Fundão em novembro 2015.

Exagerei nas palmas. Parei a vizinha que passava com um pastor alemão para confirmar que eu realmente estava na Rua Água Marinha.

A barragem de Fundão em Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana (MG), rompeu no dia 5 de novembro de 2015. A estrutura de contenção de rejeitos de minérios é controlada pela Samarco Mineração S.A, empreendimento conjunto da empresa brasileira Vale S.A. e da anglo-australiana BHP Billiton. Dezoito pessoas morreram na tragédia: treze profissionais contratados pela empresa, quarto moradores de Bento e um visitante da cidade. Uma pessoa ainda está desaparecida. A lama do considerado maior desastre industrial e impacto ambiental da história brasileira contaminou o rio Doce, bacia hidrográfica que atende mais de 200 municípios de Minas Gerais e Espírito Santo.

Quando cogitei sentar à sombra quase dez minutos depois, um barulho: era ela, com calça flanela cinza e rosto inchado de sono, que abria a porta e me pedia para aguardar.

DESPEDIDA Era uma quinta como outra qualquer. De costume, a família sentou à mesa para o café da manhã e cada um seguiu com sua rotina. Só Wesley, auxiliar de pedreiro, que estava sem serviço e ficaria o dia cuidando das crianças – para alegria delas, que quase todas as tardes batiam ponto na casa dos avós maternos. Lá na parte mais alta do Bento. Se esse encontro fosse há pouco mais de dois anos, não haveria espera. O barulho das panelas na cozinha e a TV ligada no canal infantil indicariam que a família Fernandes de Sena já estava a todo vapor. Pâmela, a mais velha das quatro filhas de Gracilda e José, costumava acordar antes das sete da manhã. Costumava. A casa oito da Rua Água Marinha, em Ouro Preto (MG), não é sua e está longe de ser seu lar. Se levanta cedo é para arrumar o filho Nicolas, de quatro anos, para a escola. Depois volta a dormir e só acorda antes do previsto quando alguém bate à porta por muito tempo. Aí a única alternativa é enfrentar mais um dia.

O único compromisso de Pâmela era a escola, que só não adiou porque lembrou, aos quarenta e cinco do segundo tempo, do trabalho de geografia que precisava entregar. Largou o prato do almoço na mesa, vestiu a farda às pressas e se despediu de todos.

- Emanuele tava encostada no braço do sofá. Me beijou e eu beijei ela na bochecha, daquele jeito que a gente faz quando ta com pressa, sabe? Ela resmungou e disse ‚poxa, mãe, beija direito‛. Eu fui, dei o beijo e saí. Foi a última vez que se viram.


FOTO: JÉSSICA CORONA

LICENÇA, WESLEY PRECISA FALAR Parecia chuva, mas o céu estava claro. Talvez um problema na tubulação da barragem, como acontecia de vez em quando. Nenhuma hipótese era tão pessimista quanto a enxurrada de lama. Os moradores de Bento tinham fé. Na Samarco. Quando Wesley se deu conta do que estava acontecendo, já não havia muito o que fazer. Pegou os meninos e correu para irmã-vizinha na esperança de que a lama passasse e tudo continuasse em pé. Mesmo com o trauma, lembra dos detalhes com uma riqueza incrível.

- Eu tava com os dois meninos debaixo do braço até que a lama veio e o muro caiu em cima da gente. Na hora levantei o braço, num reflexo mesmo. Foi quando a lama levou todo mundo.

Dois anos depois e ele não faz ideia de como está vivo para contar história. Ainda carrega as cicatrizes no corpo e os pinos no pé, que quebrou enquanto nadava entre os rejeitos. Foi atingido por destroços e arrastado pelo barro tantas vezes que pensou em desistir e apenas se entregar. A ajuda não veio da polícia ou dos bombeiros, mas dos motoristas que passavam na rodovia que liga o distrito, a 24 km de Mariana, a outros municípios da região. Lá, Wesley encontrou o vizinho Arnaldo, que não pensou duas vezes antes de mergulhar no que o Bento se tornara para salvar Nicolas, que gritava por socorro. Sem sinal de Emanuele e temendo pelo menino, seguiram para o hospital de Santa Bárbara, meia hora longe dali.


UM DIA DE ANGÚSTIA, DUAS SEMANAS DA ESPERANÇA O dia de aula estava quase no fim quando Pâmela soube do rompimento da barragem. De mãos atadas e sem notícias da família, começou a chorar.

- A reportagem chegou antes do resgate. Né por nada não, mas o que eles podiam fazer?! A lama só pegou assim, ó, no meu pé, mas por mim eu tava lá passando o que eles passaram. Família tem que passar as coisas junto. Apesar de tudo, mostra muita gratidão por ter poupado a vida de Moisés, com pouco mais de um ano, de quem ela nem sabia que estava grávida. A certeza de que Wesley e Nicolas estavam fora de perigo só veio na sexta-feira. Foi logo ao encontro do filho, que ficou internado uma semana de tanta “porcaria” que engoliu. Já o marido foi transferido para Belo Horizonte, capital mineira, e ficaria um mês internado. Os dias passavam, mas não a esperança de Emanuele estar viva. Duas semanas depois da tragédia, a espera finalmente teve fim. Naquela quarta-feira, 18 de novembro, Pâmela acordou mais disposta. Tomou um café da manhã reforçado e saiu com a mãe para buscar doações de roupas que não fossem tão esquisitas quanto as que estavam levando para ela.

- Peguei roupa pra mim, pro Nicolas e olhava pra Emanuele também, pra quando ela voltasse. Até que me chamaram. Deu aquela coisa tão boa de ‘ah, acharam ela e vão me falar que ela ta bem’, mas quando vi a cara do pessoal já sentei na cadeira. DÚVIDA A menina foi encontrada sem vida três dias antes e reconhecida pelos avôs e tio. Pâmela só viu o caixão, já fechado, que enterrou na mesma quarta sem a presença do marido. Com a voz embargada, comparou a morte de um filho a arrancar o coração em pedaços.

Meses depois, um perfil nas redes sociais abalou a família que tentava se conformar com a perda. Fotos de uma criança idêntica a Emanuele levantaram dúvidas sobre sua morte e não ter visto o corpo deu ainda mais força a hipótese.

- Não tem como, era a mesma coisa! Até o jeito de sentar. Fiquei com aquela foto um tempão, mas resolvemos esquecer a história. Ruim demais pensar nela sofrendo longe da gente. Hoje, se apega ao sorriso da filha estampado em quase todos os cômodos da casa. Dá para acreditar que Pâmela só tem 23 anos? RECOMEÇO Entre idas e vindas em casas cedidas pela Samarco e depois de uma multa de mais de R$100 mil, Pâmela só quer paz. A jovem vive longe de tudo e de todos e sua rotina é ocupar a cabeça com tarefas domésticas, já que o cartaz “manicure e pedicure” colado no muro não atrai muita gente. Não nega que detesta a empresa e garante que dinheiro nenhum paga pela dor que vive até hoje. Vem superando a saudade com a ajuda do choro e do marido, apesar dos problemas que surgiram na relação depois de tudo que aconteceu. Quando fala em futuro, pensa em abrir seu próprio salão de beleza e fazer um curso de estética – nunca pensou noutra profissão. Mas sonho ela só tem um:

- Voltar lá pro Bento.


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