C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u 1 C r i s t i a n i s m o e C u l t u ra C r i st ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ul2ra C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo VOL. e C ult ura169 C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o Face e C u l t u raàsC releições i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t uAntónio ra C r i sVazt iaPinto nis moS.J.e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u Cristianismo A A vaencíclica n ç o s e c u m énicosr ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism Caritas in Veritate e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist i a n i s m o e C u l t u ra C r i s t i a n i s m Francisco Sarsfield Cabral e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u lt u ra C r i sÉvora t i a n i s m o ee a C ultRestauração ura C r is t ia nis mo e de C ult Portugal ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism Francisco e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r ist ianismo e C ult uraSenra Coelho C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u lt u ra C r i sInácio t i a n i s m o Monteiro, e C ult ura C r is t iaS.J. nis mo–eMatemático C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e Cientista e C u lt u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is tMiguel Corrêa Monteiro ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u lt u ra C r i sO t i a Papa n i s m o e CeultauraSIDA C r is t iaem nis moÁfrica e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u lt u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t Michael Czerny, ia nis mo e C ultS.J.ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u lt u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism A Reconciliação Teologia e C u l t u ra C ristianismo e Cultura Cristianismo na e Cultura Cristianismo e Africana C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C u l t u Muanamosi C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e CMatumona ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u ou Estado C r is t i an i sm o Portugal: e C u l t u ra C r i s tNação ia nismo e europeia C ult ura C r ist ianismo e C ult uraeuropeu? C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura CCarlos Leone r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o A e Cexpulsão u l t u ra C r i s t ia nis e C ult ura C r is t iade nis moJesus e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u damoCompanhia – Colóquio C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo Tiago C. e C ult P.urados Reis Miranda C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u 2009 C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismoJulho e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r is t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u
Revista publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902
Brotéria
Julho 2009 Série Mensal Assinatura para 2009: Portugal 47,00 - (IVA incluído); U. Europeia 90,00 -; Outros países 95,00 Número avulso: 5,50 - (IVA incluído) Números atrasados (+3 anos): preço actual NIB: 0007 0101 00461660002 25
ISSN 0870-7618 Dep贸sito Legal 54960 / 92 Tiragem: 1100 exs.
Director Conselho de Direcção Conselho de Redacção
Recensão e Crítica
António Vaz Pinto S.J. Manuel Morujão S.J. Domingos Terra S.J. Alfredo Dinis S.J. António Júlio Trigueiros S.J. Daniel Serrão Domingos Terra S.J. Emília Nadal Francisco Sarsfield Cabral Henrique Leitão Isabel Horta Correia João Norton S.J. Mário Garcia S.J. Miguel Corrêa Monteiro Francisco Pires Lopes S.J. Isidro Ribeiro da Silva S.J.
Bibliotecário
António Júlio Trigueiros S.J.
Secretariado
Ana Maria Pereira da Silva Ana Rodrigues Isabel Tovar de Lemos
Design Gráfico Propriedade
Teresa Olazabal Cabral Brotéria Associação Cultural e Científica NIPC 503312070
Direcção, Administração, Assinaturas e Distribuição
R. Maestro António Taborda, 14 1249-094 Lisboa Tel. 21 396 16 60 - Fax 21 395 66 29 E-mail: broteria@gmail.com NIB: 0007 0101 00461660002 25
Composição e impressão
Oficinas Gráficas de Barbosa & Xavier, Lda., Braga Rua Gabriel Pereira de Castro, 31-A e C 4700-385 Braga Tels. 253 618 916 / 253 263 063 Fax 253 615 350 NIPC 500041539
!
ÍNDICE %
António Vaz Pinto, S.J.
'
Francisco Sarsfield Cabral
%
Francisco Senra Coelho
#
Miguel Corrêa Monteiro
!%
"% $
Face às eleições
Caritas in Veritate: a importância dos fundamentos A Universidade de Évora e a Restauração de Portugal Inácio Monteiro, S.J. Matemático e Cientista Michael Czerny, S.J.
O Papa e a SIDA em África: Um despertar humano e espiritual Muanamosi Matumona
A Reconciliação na Teologia Africana Carlos Leone
Portugal como Nação europeia ou como Estado europeu: o dilema da sociedade dual no século XX português
&!
Tiago C. P. dos Reis Miranda
&'
Recensões
!
Obras recebidas na redacção
Seis unidades de investigação - Um colóquio internacional
#
Editorial Face às eleições
António Vaz Pinto, SI
A 27 de Setembro e 11 de Outubro, os cidadãos e cidadãs
portugueses serão chamados a votar em eleições legislativas e autárquicas. A democracia representativa de modo algum se esgota nas eleições, quaisquer que elas sejam; mas, indiscutivelmente, como expressão da vontade popular, as eleições são o momento mais alto, onde através da escolha se avalia o passado próximo e, sobretudo, se projecta o futuro político imediato, com todas as consequências, sociais, culturais, económicas, etc. de escolha realizada Aterrando no concreto, tem de reconhecer-se que com a crise global em cima da nossa própria crise estrutural, o País e os portugueses vivem um momento particularmente difícil e negativo: para lá de preocupantes números, em várias áreas, em quase todos os âmbitos nota-se uma crise mais grave: o desânimo, a dúvida, a descrença e a ausência de um projecto mobilizador Assim, nestes próximos meses de «campanha eleitoral», de preparação, joga-se muito do nosso futuro colectivo. Como votar? Em quem votar? Claro de modo algum cabe aqui uma «indicação de voto» Mas julgamos oportuno sugerir um conjunto de indicações que nos ajuda a acertar. Têm surgido, ultimamente, na comunicação social, grupos de pessoas individualizadas e com nome, desafiando os principais partidos a pronunciarem-se sobre grandes questões nacionais: maior ou menor intervenção do Estado na economia; critérios de investimento público; combate ao desemprego e à corrupção, etc., etc. Parece-nos um saudável sinal de vitali7
dade da sociedade civil esta capacidade de congregar vontades e este surgir de propostas diferentes. Este, sem dúvida, é um dos principais critérios: o que pensa fazer o partido x e o candidato y que o representa, sobre as grandes questões: vida humana, desemprego, ambiente, educação, corrupção, justiça, integração de imigrantes e marginalizados, equilíbrio orçamental Será isto suficiente? É claro que não: as pessoas que representam as várias propostas, na sua credibilidade pessoal, na sua ideologia e na sua capacidade de realização, são também de importância fundamental e têm de ser serenamente ponderadas. Três últimas notas nos parecem ainda importantes: a primeira é a de não deixar que os partidos com assento parlamentar se tornem num clube privado, fechado e definitivo; a comunicação social, instituições e profissionais, não pode fechar-se à renovação às novas ideias, propostas e partidos. A segunda nota é a necessidade de aprofundar a «liberdade interior»: é certo que à direita, à esquerda e ao centro, há um conjunto significativo de «eleitores fixos», que votam sempre no mesmo partido, no «seu» partido; é compreensível e legítimo, mas o que faz mover a democracia é precisamente a atitude contrária: a daqueles que com seriedade vão oscilando, revendo e que mantêm e utilizam a sua capacidade de mudar, se honestamente acharem que o devem fazer A última nota, por fim, talvez a mais importante: é que o critério último que deve mover e levar a decidir, não pode ser o do meu interesse egoísta, o que mais me convém o critério último orientador só poder ser um: o do bem comum: que opção eleitoral me parece mais capaz de alcançar um maior bem comum?
8
Caritas in Veritate: a importância dos fundamentos
Francisco Sarsfield Cabral *
Houve tempos em que muitos encaravam a Doutrina Social
da Igreja como uma espécie de «terceira via» entre capitalismo e comunismo. Aconteceu sobretudo há perto de um século, quando importantes sectores da Igreja se entusiasmaram com o corporativismo. Ora «a Igreja não tem soluções técnicas para oferecer», como observa Bento XVI na recente encíclica Caritas in Veritate. João Paulo II já havia insistido em que a Doutrina Social da Igreja não é um programa de políticas económicas, sociais ou financeiras: é teologia moral. A encíclica de Bento XVI Caritas in Veritate surge como a mais eloquente ilustração da natureza teológica deste ensinamento da Igreja. Tal não significa que a encíclica se quede pela reflexão teológica abstracta. A novidade que ela traz está, precisamente, na ligação que estabelece entre os problemas da economia e da sociedade em que vivemos, por um lado, e as atitudes morais e as concepções da pessoa humana, por outro. É uma perspectiva cara a J. Ratzinger, que tem denunciado na cultura contemporânea uma «concepção débil da pessoa», incapaz de fundamentar solidamente os direitos humanos em geral e a solidariedade em particular.
Enquadrar a globalização Mas comecemos pelas propostas concretas da encíclica, naturalmente aquelas que suscitaram a atenção dos meios de comu* Jornalista.
Brotéria 169 (2009) 9-16
9
nicação social. Foi o caso, principalmente, da defesa da criação de «uma verdadeira autoridade política mundial, delineada já pelo meu predecessor, o Beato João XXIII» (n.º 67). Esta entidade, que não seria um governo mundial, é necessária para garantir o bem comum global. «O desenvolvimento integral dos povos e a colaboração internacional exigem que seja instituído um grau superior de ordenamento internacional de tipo subsidiário para o governo da globalização» (n.º 67). A esta ideia se liga «a urgência de uma reforma quer da ONU quer da arquitectura económica e financeira internacional, para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações» (n.º 67). Numa altura em que, como o Papa assinala, os Estados nacionais perdem força perante os poderes económicos e financeiros globalizados (n.º 24), o enquadramento político da globalização é indispensável para que a democracia mantenha sentido. Os agentes económicos e nomeadamente os que gerem empresas multinacionais, de cujas decisões dependem cada vez mais as nossas vidas, não respondem perante os cidadãos, ao contrário dos políticos. Têm apenas que prestar contas aos accionistas das suas empresas e pouco mais. Algo semelhante pode dizer-se dos mercados financeiros, cujo poder para o bem e para o mal cresceu muito nos últimos vinte anos. Ora Bento XVI preocupa-se muito justamente com a reabilitação da dimensão política da vida. «Tenha-se presente que é causa de graves desequilíbrios separar o agir económico ao qual competiria apenas produzir riqueza do agir político, cuja função seria buscar a justiça através da redistribuição» (n.º 36).
Constantes da doutrina Estas propostas, bem como a exigência do reforço do direito internacional para que os fortes não prevaleçam sobre o fracos , são uma constante na Doutrina Social da Igreja nas últimas décadas. Pode mesmo dizer-se que, neste campo, a Igreja tem desempenhado um papel pioneiro. 10
Curiosamente, o americano George Weigel, biógrafo de João Paulo II, criticou este e outros pontos da Caritas in Veritate num artigo na National Review. Weigel tem uma teoria: na encíclica haveria partes escritas por Bento XVI (as que ele, Weigel, aprecia) e outras confusas, contraditórias, etc. que ele atribui ao Conselho Pontifício Justiça e Paz, alegadamente «de esquerda» e que assim se vingaria de uma suposta derrota na redacção da Centesimus Annus. É uma posição de enorme arrogância. Além de diminuir Bento XVI, esta interpretação do neo-conservador, ou neo-liberal, George Weigel esquece a doutrina da Igreja. Em relação à autoridade mundial, Weigel não só ignora João XXIII (que Bento XVI evoca), como toda uma série de afirmações doutrinais da Igreja ao mais alto nível. Na Mensagem para o Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro) de 1999 afirmou João Paulo II: A corrida vertiginosa para a globalização dos sistemas económicos e financeiros torna patente a urgência de estabelecer quem deve garantir o bem comum global e a efectivação dos direitos económicos e sociais. É que o livre mercado, por si só, não consegue fazê-lo, uma vez que existem numerosas carências humanas que não têm acesso ao mercado.
E na Mensagem do ano seguinte insistia o Papa João Paulo II: Sem mais adiamentos, é necessária uma renovação do direito internacional e das instituições internacionais, que tenha o ponto de partida e critério fundamental de estruturação no primado do bem da humanidade e da pessoa humana sobre qualquer outra coisa.
De resto, já a Gaudium et Spes apontava a necessidade de instituir «uma autoridade pública universal, reconhecida por todos, com poder eficaz para garantir a segurança, a observância da justiça e o respeito dos direitos». E o Compêndio de Doutrina Social da Igreja diz no n.º 441 que «uma autoridade política exercida no quadro da comunidade internacional deve ser regida pelo direito, ordenada ao bem comum e respeitar o princípio da subsidariedade». 11
Ou seja, nesta como noutras propostas, a recente encíclica situa-se na linha defendida há muito pela Igreja. Nela se encontra uma desenvolvida homenagem à Popolurum Progressio, publicada por Paulo VI em 1967, documento que Bento XVI actualiza para o tempo presente. A Caritas in Veritate não é contra o capitalismo nem contra a globalização. Mas não aceita a sacralização do mercado, ao qual aponta limites e insuficiências. O que, naturalmente, desagrada a neo-conservadores como G. Weigel.
Repensar a economia Inúmeras vezes criticou a Igreja o chamado neo-liberalismo, que surgiu triunfal após o colapso do comunismo. Tendo contribuído para esse colapso, João Paulo II logo preveniu que não tínhamos chegado ao paraíso. Na mesma linha, esta encíclica sublinha, por exemplo, que «a sociedade cada vez mais globalizada não nos faz irmãos» (n.º 19). E coloca reservas à desregulamentação do trabalho, à mobilidade laboral, aos cortes nas despesas sociais e à limitação das liberdades sindicais (n.º 25), reclamando trabalho «decente» e explicita o que se deve entender por isso (n.º 63). A defesa das «organizações sindicais dos trabalhadores desde sempre encorajadas e apoiadas pela Igreja» não impede Bento XVI de as exortar a «abrirem-se às novas perspectivas que surgem no âmbito laboral» e a responsabilizarem-se «pelos novos problemas das nossas sociedades» isto é, a modernizarem-se. O Papa toca um ponto essencial ao pedir que «as organizações sindicais nacionais, fechadas sobretudo na defesa dos próprios inscritos, volvam o olhar também para os não inscritos, particularmente para os trabalhadores dos países em vias de desenvolvimento» (n.º 64). A lógica do mercado não pode resolver todos os problemas sociais (n.º 36). Segundo a encíclica, a economia precisa, também, da «lógica do dom sem contrapartidas» (n.º 37). A Caritas in Veritate considera que «as actuais dinâmicas internacionais, caracterizadas por graves desvios e disfunções, 12
requerem profundas mudanças, inclusivamente no modo de conceber a empresa» (n.º 40). A empresa, precisa o Papa, não pode visar apenas o benefício dos seus accionistas deve assumir um sentido de responsabilidade para com os trabalhadores, os fornecedores, os consumidores, o ambiente natural e a sociedade circundante mais ampla (n.º 40). Além deste apelo a que a gestão empresarial não se exerça apenas em função dos stockholders mas também dos stakeholders (os que, não sendo accionistas, têm interesse na empresa) (n.º 40), para usar uma expressão consagrada no mundo anglo-saxónico, e de se manifestar contra a gestão por critérios de mero curto prazo (n.º 32), Bento XVI encoraja, por outro lado, vários tipos de empresa, incluindo empresas que não tenham o objectivo exclusivo do lucro (n.º 41). Mas a mensagem essencial, neste domínio, é o desafio para «uma nova e profunda reflexão sobre o sentido da economia e dos seus fins», bem como para «uma revisão profunda e clarividente do modelo de desenvolvimento» (n.º 32). Um desafio que responsabiliza particularmente os intelectuais e académicos católicos, a começar pelas universidades católicas espalhadas pelo mundo.
Recusa de simplismos Um dos traços marcantes desta encíclica é a consciência que manifesta da complexidade dos problemas, afastando quaisquer soluções simplistas, inevitavelmente redutoras. Por isso a Caritas in Veritate não fornece alimento fácil para a comunicação social, cada vez mais centrada em slogans e em simplificações. Não é uma encíclica de leitura leve e ainda bem. Por exemplo, a encíclica condena a ideologia tecnocrática, que absolutiza a técnica. «Quando o único critério da verdade é a eficiência e a utilidade, o desenvolvimento acaba automaticamente negado» (n.º 70). Mas rejeita também os que, face aos efeitos negativos do progresso, advogam uma paragem no crescimento económico. A ideia de um mundo sem desenvolvimento «exprime falta de confiança no homem e em 13
Deus» (n.º 14). O que vai a par de uma exortação a uma séria revisão do nosso estilo de vida «que, em muitas partes do mundo, pende para o hedonismo e o consumismo, sem olhar aos danos que daí derivam» (n.º 50). A encíclica está atenta às preocupações ecológicas, pois o ambiente natural «foi dado por Deus a todos, constituindo o seu uso uma responsabilidade que temos para com os pobres, as gerações futuras e a humanidade inteira». Mas sublinha «que é contrário ao verdadeiro desenvolvimento considerar a natureza mais importante do que a própria pessoa humana» (n.º 48). Num outro plano, Bento XVI condena tanto o laicismo como o fundamentalismo religioso, «que impedem o encontro entre as pessoas e a sua colaboração para o progresso da humanidade» (n.º 56). Mas não cede ao «politicamente correcto» e denuncia o indiferentismo religioso, que pretende que todas as religiões são iguais. Há «algumas culturas de matiz religioso que não empenham o homem na comunhão, mas isolam-no na busca do bem-estar individual, limitando-se a satisfazer os seus anseios psicológicos» (n.º 55).
O fundamento da doutrina Este texto já vai longo e ainda não abordou o que me parece mais relevante na Caritas in Veritate: a sua preocupação de tudo fundamentar numa ampla perspectiva teológica e antropológica do homem e do mundo. O grande combate do teólogo Ratzinger é contra o relativismo pós-moderno, o qual recusa fundamento às opções morais (abrindo a porta à barbárie) e põe em causa a própria razão, chegando a negar a racionalidade. Daí emerge a «concepção débil da pessoa» referida no início deste artigo, concepção incapaz de dar força aos direitos humanos e a qualquer ética. «O homem aliena-se quando fica sozinho ou se afasta da realidade, quando renuncia a pensar e a crer num Fundamento» (n.º 53). Por isso insiste tanto Bento XVI na importância da razão, também nesta encíclica. A religião «precisa sempre de ser puri14
ficada pela razão, para mostrar o seu autêntico rosto humano». A ruptura do diálogo entre fé e razão «implica um custo muito gravoso para o desenvolvimento da humanidade» (n.º 56). O que envolve, também, uma consciência aguda dos limites da razão: «o saber humano é insuficiente e as conclusões das ciências não poderão sozinhas indicar o caminho para o desenvolvimento integral do homem» (n.º 30). Assim, as palavras «caridade» e «verdade» que dão o título à encíclica não estão ali apenas para embelezar: os dois conceitos, bem como a relação de um com o outro, são desenvolvidos na sua profundidade teológica e antropológica. «Sem verdade, sem confiança e amor pelo que é verdadeiro, não há consciência e responsabilidade social, e a actividade social acaba à mercê de interesses privados e de lógicas do poder» (n.º 5). É esta profundidade de análise que leva Bento XVI a dizer que o desenvolvimento precisa de uma «visão metafísica da relação entre as pessoas» (n.º 53). E, ao sublinhar que a globalização na solidariedade implica «a inclusão de todas as pessoas e de todos os povos na única comunidade da família humana», o Papa não hesita em afirmar que «esta perspectiva encontra um decisivo esclarecimento na relação entre as Pessoas da Trindade na única Substância divina» (n.º 54).
Sabedoria do humanismo integral Tudo se liga, portanto, porque tudo depende de um sentido profundo da condição humana na sua integralidade, onde convivem muitas dimensões: a económica, a política, a cultural, a ética, a religiosa A problemática do desenvolvimento não se reduz ao crescimento material, mas abarca o homem todo, incluindo a sua abertura à transcendência. Este é um humanismo integral. Assim, «a abertura à vida está no centro do verdadeiro desenvolvimento» (n.º 28), com o que isso implica, por exemplo, em matéria de aborto. E Bento XVI critica «a excessiva fragmentação do saber e o isolamento das ciências humanas 15
relativamente à metafísica», sendo que «as dificuldades no diálogo entre as ciências e a teologia danificam não só o avanço do saber mas também o desenvolvimento dos povos, porque, quando isso se verifica, fica obstaculizada a visão do bem completo do homem nas várias dimensões que o caracterizam» (n.º 31). Esta sabedoria da visão integral do homem leva a considerar insuficientes, embora indispensáveis, os imperativos éticos no campo da economia. «Há necessidade de trabalhar não apenas para que nasçam sectores e segmentos éticos na economia e nas finanças, mas também para que toda a economia e as finanças sejam éticas: e não por um rótulo exterior, mas pelo respeito de exigências intrínsecas à sua própria natureza» (n.º 45). Nenhuma encíclica tinha antes levado tão longe e tão fundo o enraizamento antropológico e teológico da Doutrina Social da Igreja. Este é, porventura, o maior mérito da Caritas in Veritate.
16
A Universidade de Évora e a Restauração de Portugal
Francisco Senra Coelho *
Introdução Celebramos neste ano três aniversários relacionados com a Companhia de Jesus que importa sublinhar pelo seu elevado significado histórico: 450 anos sobre o início da Universidade em Évora, 350 anos dos trágicos acontecimentos no castelo de Jurumenha com a morte de 3 Padres Jesuítas e mais de 100 académicos e os 250 anos da lei que dava os Jesuítas por «desnaturalizados, proscritos e exterminados». Pretendendo apenas fazer memória de alguns acontecimentos já estudados e publicados, utilizarei os conhecidos trabalhos do ilustre ensaísta eborense Gabriel Pereira como base desta evocação. De facto, a Universidade de Évora nasceu do Colégio do Espírito Santo fundado pelo Cardeal D. Henrique. Em 1553 os Jesuítas deram início ao ensino de Letras, Humanidades e casos de consciência, que em 1556 ampliaram com o curso de Artes. O Cardeal Dom Henrique a 19 de Fevereiro de 1558 escreveu ao embaixador Português em Roma, D. Afonso de Lencastre pedindo-lhe que intercedesse junto do Papa Paulo IV (1555-1559) para que no Colégio se erigisse «uma Universidadezinha em que somente se lessem Línguas, Teologia e casos de Consciências», sob o governo e administração dos Jesuítas 1. Por letras de 20 de Abril do mesmo ano a Sagrada Penitenciária deferiu o pedido, posteriormente confirmado por Paulo IV em Bula datada de 15 de Abril de 1559, segundo a qual na então Nova Universidade de Évora podiam ser ensinadas todas * Professor de História da Igreja no ISTE.
Brotéria 169 (2009) 17-24
1 Num precioso trabalho de António Bartolomeu Gromicho, nós podemos ver como foi difícil a fundação da Universidade de Évora face às pretensões quase exclusivistas de Coimbra. Este tema permanece como sugestão para uma posterior investigação, possivelmente cheia de interesse. Esta «luta» permanece ainda sob a neblina dos arquivos. Cf. GROMICHO, António Bartolomeu, «A Universidade de Évora», Revista Ocidente, vol. LX (1961).
17
2 VELOSO, J. M. Queiroz, A Universidade de Évora. Elementos para a sua história, Lisboa, (s.n.), 1949.
as ciências excepto Medicina, Direito Civil e a parte contenciosa do Direito Canónico. Podiam ser conferidos graus académicos à maneira da Universidade de Coimbra. Em 26 de Abril de 1559, o Cardeal Afonso Carafa expediu, por encargo do Papa, letras executórias das bulas. Segundo os primeiros estatutos desta Universidade, cabia ao Arcebispo de Évora o Governo da Universidade, no referente aos estudantes e oficiais não pertencentes à Companhia de Jesus. Foi o Papa S. Pio V quem confiou toda a administração ao Prepósito Geral e aos religiosos Jesuítas, pela Bula datada de 28 de Maio de 1568. Foi no dia 1 de Novembro de 1559 que a Universidade se inaugurou em Évora e no dia 6 de Novembro seguinte inauguram-se os primeiros Bacharéis, e no ano imediato os primeiros Licenciados e Doutores. Toda a organização dos estudos desta Universidade estava orientada para a formação de Teólogos. Com a lei de 3 de Setembro de 1759 que dava aos Jesuítas por «desnaturalizados, proscritos e exterminados» em todos os territórios de Portugal e seus domínios também, a Universidade de Évora extinguiu-se, tendo o Marquês de Pombal incorporado os seus bens na Universidade de Coimbra 2. Um autor eborense do séc. XIX descreve factos assaz interessantes em relação à Universidade de Évora e à Restauração de Portugal. Gabriel Victor Manuel do Monte Pereira, nasceu em Évora a 7 de Março de 1847 e faleceu em Lisboa a 16 de Dezembro de 1911. Frequentou a Escola Naval e quase no fim do curso desistiu da carreira da Marinha. Frequentou depois a Escola Politécnica, mas sem chegar a formar-se. Em 1887, ingressou no quadro da Biblioteca Nacional de Lisboa, da qual veio a ser director. A partir de 13 de Novembro de 1902 passou a ser Inspector de Bibliotecas e Arquivos. Nesta condição dedicou-se à investigação histórica, deixando-nos uma obra notável. Entre outras obras enumeramos de maior vulto: 1. «Catálogo Provisório dos Pergaminhos da Universidade de Coimbra (1880-1881)».
18
2. «Documentos Históricos da Cidade de Évora (1885-1891)» em três partes. 3. «Estudos Eborenses. História, Arte, Arqueologia (1886-1896)» série de 28 folhetos.
Foi nesta última obra, no seu primeiro volume, segunda edição integral, Edições Nazareth, Évora 1947 e terceiro volume, segunda edição integral, Edições Nazareth, Évora, 1951, e já publicado em 1950 que encontramos os interessantes acontecimentos que narramos e que vinculam de modo indelével a Universidade de Évora ao movimento da Restauração de Portugal.
Alterações de Évora Talvez já tenhamos verificado até na toponímia da cidade de Évora referências a este acontecimento. O que são as alterações de Évora? De 21 de Agosto a fins de Outubro de 1637, em Évora, assim designa Veríssimo Serrão, «grassou uma insurreição na cidade de Évora» 3. Estava-se a cerca de três anos da Proclamação Real de D. João IV (1640). Qual o motivo para estas alterações de Évora? Os novos impostos lançados pela Administração Filipina. De facto, o Alentejo vivia nos meados de 1631 uma grave crise agrícola e os novos impostos tributados neste ano foram a «gota de água» que faltava. O eco das más disposições já vinha de trás e de fora. Em 1635, fora lançado um tributo aos reais de água e às anatas e meias anatas. Isto provocou grandes protestos nas regiões do Norte e do Centro do país. Todo este ambiente de revolta, foi o suficiente para que duas personalidades conhecidas de Évora, o espadeiro João Barradas e o borracheiro Sesinando Rodrigues, ao terem pedido a revogação do imposto de anata, ao qual o Corregedor André de Morais Sarmento respondeu com uma negação a tal excepção, provocasse um gesto da população de Évora, que se amo-
3 SERRÃO , Joaquim Veríssimo, História de Portugal (1580-1640), vol. IV, Lisboa, (s.n.), 1980, pp. 130-134.
19
4
MENDEIROS, José Filipe, «O oliventino Sebastião do Couto, Mestre Insígne da Universidade de Évora e alma das alterações de 1637», Anais da Academia Portuguesa de História, Série II, vol. 18 (1969).
5 S ERRÃO , Joaquim Veríssimo, op. cit., pp. 130-134.
tinou, obrigando o Corregedor a pôr-se em fuga para salvar a sua própria vida. Este motim sublevador teve o apoio dos vários estratos sociais e foi inspirado por uma figura típica local, o Manuelinho, que acabou por se tornar o símbolo da resistência contra os Filipes. A investigação do ilustre estudioso, Cónego Doutor José Filipe Mendeiros 4, citado por Joaquim Veríssimo Serrão 5, confirma-nos com provas à saciedade, que houve uma preparação doutrinária, prévia, para esta revolta. Reparemos bem: Foi o Padre Sebastião do Couto, um Jesuíta e professor na Universidade de Évora quem industriou e fundamentou ideologicamente as alterações de Évora. O acontecimento teve imediata ressonância em muitas terras do Alentejo, do Centro e Sul de Portugal, ao ponto das «alterações» serem hoje consideradas causas remotas da Restauração de 1640.
Os trágicos acontecimentos de 19 de Janeiro de 1659
6 PEREIRA, Gabriel, Estudos Eborenses, História, Arqueologia, vol. 3, 2.ª edição integral, Évora, Edições Nazareth, 1951, p. 245.
Segundo Gabriel Pereira: 1 A grande praça militar de Elvas estava cercada e investida pelo cerco espanhol, e por isso mesmo, corria o risco de ter que render-se. Uma vez rendida esta fronteira, ficava livre o caminho para a capital portuguesa. Como diz o autor citado, «se o exército espanhol fosse obrigado a levantar o cerco e a retirar, a liberdade ficaria garantida». Daqui nasce uma conclusão: era necessário, imperativo e urgente «reunir (em Elvas) todas as forças disponíveis, responder à concentração espanhola com a portuguesa» 6. 2 O modo de proceder à guarnição da Praça Militar de Elvas foi uma tarefa de todos, descrita por Gabriel Pereira de modo muito típico e até pitoresco. Passo a citar: ( ) levantaram as guarnições das praças, improvisando outras, com gente bisonha, leiga nas armas, rapazes e velhos, com chuços, arcabuzes e antigos mosquetes, que servissem para encerrar portas,
20
atirar por uma fresta ou detrás de ameias, gritar alarma e aparentar de guarnição verdadeira. Ninguém se recusou, naquela urgência, no perigo enorme, por aquelas terras alentejanas; foi uma leva em massa; o velho morgado e o reitor dos Lóios encontraram-se ao lado do operário, do quintaneiro, do bravio zagorro da charneca, e marcharam a guarnecer castelos e muralhas 7.
7
Ibidem.
8
Ibidem, pp. 245-246.
3 Foi neste contexto que surgiu a oportunidade da Universidade de Évora exprimir o seu patriotismo e a defesa da liberdade, enviando o resto dos seus estudantes. Os estudantes da Universidade e Colégio do Espírito Santo, nas idades compreendidas entre os 14 e os 20 anos, apenas uns 100 estudantes, porque os restantes estavam já no terço da cidade, que com os restantes terços das outras cidades tinham ido formar o Exército na Praça de Elvas, foram substituir os efectivos do Castelo da Juromenha, para que estes fossem reforçar a Praça de Elvas em maior perigo. Quando os jovens souberam deste pedido patriótico ufanaram-se de glória e dispuseram-se imediatamente para servir a causa nacional. Os estudantes reuniram-se e escolheram, por eleição, para chefe, o Padre Reitor. Era então Reitor o Dr. Francisco Soares, apelidado de «O Lusitano». Ouçamos a descrição que Gabriel Pereira faz dele: ( ) Um Santo Padre que passara a vida a estudar a sua Filosofia, a comentar S. Tomaz de Aquino, a ensinar Teologia. Era muito humilde, um destes homens mansos, tranquilos, que vivem bem na sua modéstia, no estudo, numa cela conventual, ou na sombra de uma árvore na cerca silenciosa. Teve um dia uma ambição! Queria ser mártir, ir para o Japão dar o seu sangue pela fé! ( ) Estava idoso, morrer aqui ou no Oriente na enxerga, na cela, ou varado por uma lança lá a morte seria útil à fé! 8
Acompanharam o Reitor da Universidade de Évora mais dois confrades e docentes da mesma Universidade: o Dr. Diogo de Alfaia e o Padre Francisco Cardoso. A viagem aconteceu até Juromenha, não só sem incidentes, mas até com muito frio, desportivismo e alegria. Chamo novamente Gabriel Pereira, na sua inconfundível pena descritiva: 21
9
Ibidem, p. 247.
E marcha para Juromenha! A curiosa companhia! Os padres iam nas suas caleças, os rapazes a pé; arranjaram uns burricos para levar algumas bagagens, mantimentos, roupas; carros, cavalos, muares tudo fora requisitado para o exército. Rapazes! Como eles iriam contentes pelas férias inesperadas! E assim amilitarados, em tom de guerra, pela campina fora. Chegaram, e fizeram o serviço de guarnição sem novidade, muito limpamente; em vez de sineta soava a corneta, e pelas noites nas torres e nas guaritas das muralhas não cessavam os alertas vibrantes 9.
Uma vez no ponto de defesa, estes jovens executaram sem dificuldades ou percalços o serviço de guarnição. O alerta nas guaritas das muralhas era constante e em vez da sineta universitária soava a corneta militar. 4 Nesta constante patriótica permaneceram alguns dias os jovens eborenses, até que numa manhã, a galope e sem parar, passou junto às muralhas de Juromenha, um cavaleiro gritando: Vitória! Vitória! Viva Portugal! Após este cavaleiro fugidio chegou outro, esse era mesmo natural de Juromenha, parou e contou que Portugal tinha derrotado os espanhóis na linha de Elvas. Então fez-se festa em Juromenha. A rapaziada eborense rompeu em salvas de mosquetes e artilharia, desfazendo-se os sinos em repiques festivos. O Padre Reitor partiu para Elvas e aí apresentou os parabéns aos generais, trazendo consigo a ordem militar de regressar a Évora. Estava-se no dia 19 de Janeiro de 1659, o Reitor, Dr. Francisco Soares, regressado a Juromenha, ordenou aos jovens que preparem todas as coisas para o regresso a Évora. Foi nesta altura, que chegou aos académicos a notícia de que ali mesmo no Castelo, na Casa do Governador, se encontrava um homem em perigo de vida, adoecera gravemente. O médico diagnosticou caso perdido, que o preparassem espiritualmente para a morte, levando-lhe o Viático. Quando os académicos se preparavam para se despedirem do Governador do Burgo, viram que se aproximava a Procissão do Viático para o doente terminal e entraram naturalmente no cortejo litúrgico. 22
O doente, segundo Gabriel Pereira, estaria no pavimento térreo, nos baixos da morada do Governador da Praça e que naquela casa ou ali próximo estariam os barris da pólvora ou paiol. Naturalmente, no cortejo iam as usadas tochas e velas acesas e deu-se o grave desastre, houve uma explosão enorme, tudo era ruína e destruição naquela casa. Foi impossível reconhecer os cadáveres, apenas o do Reitor, porque num pedaço da sua veste se encontrou o sinete do ofício, o cilício e as disciplinas. Os três padres e cerca de mais de cem académicos, entre estudantes e privilegiados da Universidade de Évora, morreram numa triste tragédia, apesar dos dias de imensa glória que a Nação Portuguesa experimentava e vivia 10. Poderemos neste momento interrogarmo-nos sobre a presença de colegiais de Nossa Senhora da Purificação, actual Seminário Maior de Évora, neste contingente rapidamente improvisado. A fonte do séc. XVI, que estudamos, apresentanos apenas a terminologia de estudantes e privilegiados da Universidade de Évora. Os estudantes dos 14 aos 20 anos não seriam colegiais, uma vez que estes eram normalmente Clérigos ordenados nas ordens maiores; quanto aos privilegiados, chegamos à conclusão provável de que se tratam de estudantes com isenções de propinas, pagando apenas parte ou porção destas, daí o chamarem-se também a alguns colegiais de «porcionistas». Poderemos admitir como hipótese, e continuar a investigação, difícil pela escassez das fontes, se no grupo dos heróicos patriotas, de certo modo mortos em acidente militar a quando da sua generosa entrega à defesa da liberdade da Pátria, estariam alunos do Real Colégio de Nossa Senhora da Purificação ou seja estudantes de Teologia já ordenados.
10
Ibidem, p. 248.
Os trágicos acontecimentos de 19 de Janeiro de 1959 encontram-se em outras fontes documentais para além de Gabriel Pereira o que nos assegura a sua veracidade histórica. Assim, encontramos os mesmos acontecimentos narrados: 23
1. Barbosa Machado, in «Évora Gloriosa», p. 137. 2. «Biblioteca Lusitana», artigo de Francisco Soares. 3. Pe. António Franco, in «Imagem da virtude em o noviciado da Companhia de Jesus na Côrte de Lisboa», Coimbra, 1717, cap. 48, Liv. 3.º, p. 615 e ss.
24
Inácio Monteiro, S.J. Matemático e Cientista
Miguel Corrêa Monteiro *
A 16 de Janeiro de 1724, nascia em Lamas, freguesia da
diocese de Viseu, um jovem que recebeu o nome de baptismo de Inácio Monteiro. Dionísio Monteiro e Luísa de Almeida foram seus pais. Tinha 15 anos quando, a 8 de Fevereiro de 1739, entrou como noviço no Colégio da Companhia de Jesus em Évora. O Catálogo da Província Portuguesa de 1740, que consultámos em Roma, faz referência a Inácio Monteiro, nos seguintes termos: «Fr. Ignatius Monteiro ex oppido Lamas Dioces. Visensis nat. 16 Januar. 1724, Societ. ingr. 8 Februar. 1739 bona valet. Schol» 1. Como se constata, Monteiro foi um adolescente saudável, facto que irá ser novamente assinalado, quando o mesmo contava 37 anos 2. Uma outra qualidade referida nos Catálogos é a sua inteligência «ingenium magnum» e o seu excelente aproveitamento «profectus in litteris ingens». Tendo sido um bom estudante, também as suas capacidades como professor e pessoa de bom senso serão notadas, como veremos. Na época em que Inácio Monteiro entrou no Noviciado, habitavam na Universidade 139 religiosos, sendo 43 sacerdotes e cerca de 22 Professores. O curso ginasial compreendia o estudo da Gramática (4 professores), de Humanidades (2), e de Retórica (2). Seguia-se depois o curso superior de Filosofia com 4 Professores, e o de Teologia (com 3 prof. de Teologia, 1 de Escritura, 2 Substitutos, e 2 de Teologia Moral). Havia ainda professores que leccionavam outros três cursos: um de grego, outro de hebreu e outro também de matemática.
1 Archivum Romanum Societatis Iesu (A.R.S.I.), Lus., 48, 221 v. (Catalogo dos P.P. e Estudantes da Compª de Jesus da Provª de Portugal), referente ao período entre 1730 e 1748. Na página 12 é referido o seguinte sobre o padre Inácio Monteiro: «Nome: P. Ignacio Monteiro; Nascimento: 16/1/1724; Patria: Lamas; Bispado: Viseu; Entradas: 8/2/1739; Prof.os de 4.º voto: 15 de Agosto de 1758; Governos ou Cargos ( ). 2 «Vires habet satis firmas». A.R.S.I., Lus., 49, 235 v. 4 A.R.S.I., Lus., 275.
* Professor do Departamento de História da F.L.U.L.
Brotéria 169 (2009) 25-36
25
3
A.R.S.I., Lus., 275.
4
A.R.S.I., Lus., 48, 221 v.
5 A.R.S.I., Lusitan. Cat. Trien. 1749-1770.
26
Depois de ter frequentado o noviciado durante dois anos, Monteiro deve ter iniciado os estudos de filosofia por volta de 1741-42, e isto porque no Catálogo de 1743 está registado o facto de aquele estudar filosofia e ter uma boa saúde «Philosophia incumbit bona valetudine» 3. Tivemos oportunidade de estudar em Roma o Catalogus Provincia Lusitana (1743) referente a Scholastici non Professi e onde está assinalado que «Fr. Ignatius Monteiro ex oppido Lamas Diocesis Visiencis annos aetatis numerat 19, Societatis 4 Philosophiae incumbit bona valetudine». No Catálogo de 1745, verificámos que Inácio Monteiro frequentava nesta altura o 3.º ano de Filosofia, que reunia 6 alunos; o 2.º tinha 6 e o 1.º tinha 8 alunos 4. Em 1746 Monteiro frequentou em Évora o 4.º ano de Filosofia. No Colégio de Évora havia nesta altura 9 professores de Teologia. Frequentavam o 4.º ano de Teologia 5 alunos; o 3.º tinha 6 alunos, o 2.º 5 alunos e o 1.º 7 alunos. O noviciado tinha 13 candidatos. Prosseguindo as investigações no Arquivo Romano da Companhia de Jesus, os Catálogos da Província Portuguesa, encontrámos igualmente no Catálogo de 1747 uma listagem inédita em latim de todos os mestres e alunos que frequentavam juntamente com Inácio Monteiro o Colégio Eborense. Na página 40 do referido Catálogo, o nome de Inácio Monteiro já consta como Magistri Latinitatis, com o seguinte apontamento: «Fr. Ignatius Monteiro ex oppido Lamas, dioc. Visencis, nat. 16/1/724»; em português pode-se ler: «ingressou na Companhia a 8 de Fevereiro de 1739: studia Matematica; doces gramar; reprime vales» 5. Partilhamos a opinião do padre João Pereira Gomes, S.J., que defende que Inácio Monteiro deve ter sido influenciado por um inaciano de nome Francisco Gomes, natural da sua terra e seu professor de filosofia. Este Jesuíta era um homem com bastante experiência e, sendo de formação peripatética, avivou nos alunos o gosto pela reflexão. Encontrámos provas disto no próprio Inácio Monteiro que escreveu, no Prefácio da sua Philosophia Libera, o seguinte: «apenas transpus o limiar da Filosofia tive por mestre um peripatético das fileiras aristo-
télicas e nessa atitude me formei» 6. No entanto, Monteiro era por temperamento um homem crítico e, incentivado certamente pelo seu professor, foi evoluindo. Está por isso na linha do que modernamente foi afirmado por António Sérgio, que o verdadeiro aprendiz de filósofo não é um mero reprodutor das ideias do mestre, mas aquele que, humildemente, soube ganhar uma cultura sólida, sendo depois capaz de ter as suas próprias opiniões. Inácio Monteiro também não foi um homem para se deixar influenciar: «o meu temperamento, porém, é não me deixar levar nem por facciosismos (a não ser que eu muito me iluda), nem pela autoridade das pessoas quando se trata de razões; gosto, acima de tudo, da liberdade do espírito; e só sujeito a minha inteligência e vontade em matéria de fé religiosa» 7. No 4.º ano de filosofia, o padre António de Freitas substituiu o padre Francisco Gomes que exercera o magistério em Évora durante um ano. Homem «de áureo génio, excelente engenho, assim para as cadeiras como para o púlpito», e o facto de abordar autores modernos influenciou Inácio Monteiro. Em 1747 e 1748, o nosso inaciano permanece em Évora, depois de terminada a formatura em Filosofia e de alcançar o título de «Mestre em Artes», dedicando-se ao estudo e aprofundamento da Matemática 8.
6 MONTEIRO, Inácio, Prólogo à Philosophia Libera, trad. do padre António Freire, Revista Portuguesa de Filosofia, tomo XXIX, fasc. 3 (Julho-Setembro 1973), 318.
7
Ibidem.
8
Ibidem.
* Na Universidade de Évora recebeu Inácio Monteiro as importantes bases culturais que lhe permitiram exercer mais tarde a sua actividade como mestre e cientista. De facto, foi nessa instituição que se formou em Filosofia e obteve o grau de «Mestre em Artes», demonstrando igualmente um particular interesse pelo estudo da Matemática. Em Évora teve contacto com as modernas tendências culturais e aprendeu a ter abertura de espírito, qualidade que o vai fazer chegar muito longe em termos académicos, como veremos mais adiante. As disciplinas estudadas na Universidade de Évora Filosofia, Ciências Naturais e Matemática influenciaram profundamente Inácio 27
9
MONTEIRO, Inácio, Metaphysica, Pars Prima, 2.ª ed., Veneza, 1778, p. XI. «Ainda que desde a minha primeira adolescência esteja acostumado ao modo de escrever da geometria e habituado à leitura diária de autores de matemática ».
10
SILVA, L. Craveiro da, «Inácio Monteiro. Significado da sua vida e da sua obra», Revista Portuguesa de Filosofia, tomo XXIX, fasc. 3 (Julho-Setembro 1973), 239.
11
MONTEIRO, Inácio, Philosophia libera seu Eclectica, 2.ª ed., Veneza, 1772, Lusitanae Juventuti, p. X. «Nam mathematicas quamvis ego disciplina, historiam naturalem, et Philosophiam non parum semper amarem, et tenuitate mea colorem, ex aliaque parte a libris fere nunquam, nisi invitus recedam».
12
Cf. A.R.S.I., Lus., 48, 185 v.
13
Ibidem.
28
Monteiro, que descobriu aí a sua verdadeira vocação para o ensino, dedicando-lhes toda uma vida de sacrifícios. Em Évora estudou filosofia, ciências naturais e matemática, disciplinas a que dedicou mais atenção, sendo justo por isso concluir que se sentiu por elas mais atraído. Aliás, em coerência com aquelas opções escreveria na Metaphysica, em 1770, estar habituado desde a adolescência à geometria e aos matemáticos 9. Para o Professor Craveiro da Silva, Évora iria marcar profundamente Inácio Monteiro pois «Foi portanto a Universidade de Évora que lançou as bases da formação filosófica e de ciências naturais e matemáticas que constituíram os principais campos da actividade investigadora e docente de Inácio Monteiro. Nesta alma-mater despertou o seu espírito para o mundo da cultura e aprendeu a dialogar com as correntes contemporâneas com abertura e espírito crítico, qualidades que o acompanharão ao longo da sua carreira de professor de ensino superior» 10. Na Carta à Juventude Portuguesa poderá com verdade escrever: «embora eu gostasse sempre muito das ciências matemáticas, da História Natural e da Filosofia, e as cultivasse segundo a exiguidade do meu talento, embora quase nunca ponha de parte os livros a não ser contra vontade » 11. No Catálogo de 1749, obtivemos a informação que Inácio Monteiro iniciou a sua actividade docente ensinando Gramática e Humanidades no Colégio Inaciano do Porto. Apesar de não haver muitas informações sabemos que era tido em alto apreço, sendo também apontadas as características do seu carácter, indiciadoras de uma carreira como professor. De um modo geral, as informações sobre a sua pessoa são bastante favoráveis apesar de assinalarem, como já vimos atrás, a sua tendência melancólica. Contudo, Inácio Monteiro tinha alguns extremos de comportamento, pois se às vezes foi considerado melancólico, outras, como em 1754, é-lhe referenciado um carácter colérico 12. Em 1764 apontaram-no como uma pessoa fogosa, mas três anos mais tarde, em 1767, assinalam-no como um homem de feitio temperado ou equilibrado 13. Contudo,
o brilho da sua cultura e da sua inteligência que o leva a manifestar interesse pelos mais diversos temas e pela problemática da sua época é característico de um ser inquieto e atento ao mundo que o rodeia, onde apesar do espírito de obediência, que foi sempre apanágio dos Jesuítas, manifestou interesse pelas novas tendências culturais. Lentamente, como veremos, o padre Inácio Monteiro tornar-se-á um ecléctico. Pelo Catálogo de 1750 conhecemos que Inácio Monteiro se encontrava nesse ano inscrito no colégio conimbricense onde iria frequentar o curso de Teologia. O Catálogo seguinte que aparece sem data, refere que a 15 de Abril de 1754, foi nomeado o novo Provincial de nome António de Torres e, segundo Craveiro da Silva, «deve abranger o ano de 1753-54. Neste, Inácio Monteiro é incluído entre os estudantes do 3.º ano de teologia» 14. Contudo, também se assinala que Monteiro era professor de matemática. No Catalogus Primus Lusitanaroum degentium Ferrariae anno 1770 que consultámos em Roma, encontrámos as seguintes notas inéditas referentes a Inácio Monteiro: «Nomen et Cognomen- P. Monteiro Ignatius; Patria- Lamensis Dioc. Visensis; Aetas- 1724 16 Jan.; Vires; Tempus Societ.- 1739 8 Febr.; Tempus Studiorum; Ministeria quae exercuit; Gradus in Societ. Profes. 4 votorum» 15.
Em Coimbra, ao mesmo tempo que exercia funções docentes como mestre de Artes, Inácio Monteiro cursava Teologia com sucesso, tendo-se formado em 1755. Ainda estudante, foi escrevendo aquela que seria a sua primeira obra de carácter didáctico, o Compendio dos Elementos de Mathematica, publicada em dois tomos, nos anos de 1754 e 1756 no «Real Collegio das Artes da Companhia de Jesus». É muito interessante verificarmos que Inácio Monteiro compreendeu, sendo autor e ao mesmo tempo estudante, que uma obra escrita em vernáculo seria da maior utilidade para os jovens leitores, pois além do mais o Compendio é uma obra técnica, o que aumentava a dificuldade dos leitores se fosse escrita em latim 16.
14
Cf. SILVA, Lúcio Craveiro da, op. cit., p. 240.
15 A.R.S.I., Lus., 49, 235v. (1749-1770).
16
O próprio Inácio Monteiro refere no Prólogo do Compendio, que «quem ler as obras de Wolfio, Regnault, Lamy, Corsini, Brixia, Parent, Borello e outros, que tratam semelhante argumento, talvez julgue que os elementos em portuguez são mais claros do que o latim, francez ou italiano».
29
17
A.R.S.I., Lus., 36, 70.
30
Depois de Coimbra o padre Monteiro seguiu para Santarém, onde leccionou no Colégio da cidade, local onde se encontrava à data da expulsão da Companhia de Jesus de Portugal, em 1759, como veremos adiante. Após terem cursado Filosofia, os candidatos a professos, ensinavam Latim, Poesia e Retórica durante um período que variava de três a seis anos. Era um tempo de acompanhamento formativo, pois os elementos da Companhia mais velhos colaboravam com os mais novos nessa adaptação ao ensino. Inácio Monteiro não foi excepção e, entre 1748 a 1751, ensinou aquelas matérias em Évora. O padre Monteiro manifestou desde cedo um carácter forte e pouco conformista. Esta mudança de atitude surgiu durante a sua estada em Coimbra, quando cursava Teologia e tornou-se notado porque não parecendo ligar ao que os seus mestres diziam, não fazia anotações. Este facto levou os professores a julgá-lo desinteressado e era sobretudo considerada uma falta grave numa época em que os estudantes iam escrevendo os cursos. Contudo, Inácio Monteiro apenas demonstrava a sua motivação pelas novas ideias e por leituras modernas. É o que se conclui de um documento publicado pelo Professor Craveiro da Silva que temos vindo a citar 17. Trata-se de uma cópia da resposta enviada de Roma ao próprio Monteiro a uma outra que este havia mandado aos superiores da Companhia por não ter sido escolhido pelo Provincial em Portugal, ainda decorria o 2.º ano de Teologia, para professor de Matemática. Inácio Monteiro julgou-se injustiçado por essa decisão já que tinha obtido na Universidade de Évora a respectiva especialização e decidira fazer queixa. Por esta interessante carta enviada a 12 de Dezembro de 1752, ficamos a saber que Monteiro manifestou uma dor intensa devido à recusa do Provincial em destiná-lo ao magistério da Matemática. É muito curiosa a chamada de atenção pelo facto do nosso inaciano não ter mostrado mais contenção ou mesmo humildade em relação às decisões superiores. Depois de o incentivarem a continuar a perseverar nos estudos, apontam a verdadeira meta a alcançar que é a prepara-
ção para o «cumprimento de todos os ministérios da Companhia». O Provincial não o tinha preterido por não o julgar apto, mas porque sabia que Inácio Monteiro não escrevera as lições de Teologia, como já assinalámos, e o magistério da Matemática, normalmente atribuído a alunos de Teologia pelos superiores, somente era confiado àqueles que escreviam as lições. De Roma desvalorizou-se um pouco a questão responsabilizando apenas Inácio Monteiro por não ter cumprido as suas obrigações e, por conseguinte, devendo apenas assumir as suas próprias responsabilidades pelo facto, e não apontar culpas ao Provincial. Há assim um apelo para que o nosso Jesuíta abandone o seu ressentimento e se entregue ao estudo, com a certeza de que mesmo não sendo professor de matemática, todo o investimento realizado nesse estudo não seria perdido. É muito curiosa a chamada de atenção sobre a atitude de Monteiro face aos «que defendem ideias novas», o que prova o entusiamo e a sua curiosidade pela novidade, reprovando ao jovem Inácio o falar por vezes com menos respeito de «autores dos quais dizem os entendidos que é profanação falar com menos acatamento». Apesar de tudo, fica-se com a indicação de que Inácio Monteiro lia os autores do seu tempo, e a sua atitude corajosa é bem o sinal que a opção pelo eclectismo tinha sido tomada. Contudo, não seria necessário esperar muito mais, pois em 1753, aparece assinalado no Catálogo desse ano como professor de Matemática. A prova de que Inácio Monteiro já tinha um bom nível de preparação em Matemática é o facto de ter publicado em 1754 o I tomo do seu Compendio dos Elementos de Mathematica. É um livro demonstrador do espírito reformador que já impregnava Inácio Monteiro, porque em relação aos métodos utilizados pela Escola Coimbrã e Eborense, esta obra defende o método das ciências experimentais, isto é, o recurso à objectividade trazida pela Matemática e ao cálculo para a Física. Segundo Craveiro da Silva o padre Monteiro aceita o «programa Iluminista que não se contenta com a formação humana das faculdades como propunha o Humanismo, mas vai mais 31
18 SILVA, L. Craveiro da, op. cit., p. 244.
19 GUIMARÃES, F. Rocha, «Inácio Monteiro e a Filosofia do seu tempo», Brotéria 31 (1940), 506-520. 20 GOMES, João Pereira, «Verney e o Jesuíta Inácio Monteiro», Brotéria, 38 (1944), 16-25.
32
longe e defende a difusão da cultura como indispensável às várias camadas da sociedade, quer falando de governantes, quer de profissões liberais. E tudo isto é apresentado através duma erudição notável para a época que supõe contacto íntimo, muitas vezes expresso, com os pensadores e homens de ciência contemporâneos e as novas correntes do pensamento» 18. Têm sido muitos os autores que escreveram sobre a história dos Jesuítas Portugueses, umas vezes com a imparcialidade que o historiador deve ter, outras vezes com espírito tendencioso, eivado de juízos de valor sobre os inacianos. Também há muito por fazer em relação aos jesuítas na diáspora, não obstante o contributo de diversos autores jesuítas como os padres Francisco Rodrigues e Domingos Maurício, João Pereira Gomes, Francisco Guimarães, António Leite, Lúcio Craveiro da Silva e António Martins, e mais recentemente outros autores como António Alberto de Andrade e Rómulo de Carvalho. Contudo, apesar de ainda conhecermos pouco sobre o que aconteceu aos padres Jesuítas no exílio a que se viram condenados em 1759, o estado da investigação tem avançado mercê do contributo de diversos autores. Um dos jesuítas estudados foi o padre Inácio Monteiro, que juntou o destino aos seus irmãos jesuítas expulsos de Portugal em meados do século XVIII. Tendo sido exilados, principalmente em Itália, na Prússia e na Rússia, os discípulos de Loiola estiveram dispersos durante perto de 60 anos. Esperando sempre por melhores dias, a maioria envelheceu no exílio sem retornar ao seu país de origem. O jesuíta Inácio Monteiro foi objecto de alguns estudos por parte de autores como o padre F. Rocha Guimarães S.J., que se debruçou sobre o autor na sua atitude face à Filosofia do tempo 19. Igualmente o padre inaciano João Pereira Gomes estudou Inácio Monteiro, integrando-o na polémica verneiana 20. Além deste artigo, dedicou-lhe outro em que abordou o conteúdo e limites da sua cultura científica. O Doutor António Alberto Banha de Andrade foi outro autor que estudou a figura do padre Monteiro na problemática
da evolução dos estudos nas aulas inacianas de Setecentos 21. Mais recentemente, António Martins dedicou-lhe um artigo na Revista Portuguesa de Filosofia como contributo para a análise mais profunda da sua Filosofia 22. Continuando a tradição de grandes investigadores jesuítas, o saudoso padre Lúcio Craveiro da Silva dedicou a Inácio Monteiro um valioso estudo sobre o significado da sua vida e obra, publicado na mesma Revista e que já temos citado, tendo sido o primeiro a investigar nos arquivos de Ferrara sobre aquele malogrado inaciano. Mais recentemente (1996), Ana Isabel Rodrigues da Silva Rosendo abordou a figura e a obra do padre Monteiro, privilegiando os aspectos ligados com a Matemática e com as fontes utilizadas, sobretudo a análise da sua primeira obra, a única escrita em português, intitulada Compendio dos Elementos de Mathematica 23. Não obstante a importância destes estudos, faltava uma dissertação que relacionasse todas as facetas de Inácio Monteiro, incluindo para além do pensador, as de homem e professor, de religioso e de exilado. Além disso os diversos artigos sobre o padre Monteiro, mormente os de âmbito filosófico, impunham o desenvolvimento da sua vida e obra, mas situando o autor no contexto histórico do seu tempo. Tal dissertação transformada mais tarde em livro pretendeu lançar mais alguma luz sobre a dispersão a que os jesuítas estiveram sujeitos e responder a uma série de perguntas tais como: para onde foram desterrados e quantos eram? Como foram tratados durante o exílio e quantos sobreviveram? Quem de todos eles teve a ventura de regressar? Estas questões foram abordadas pelo autor em tese de doutoramento intitulada «Inácio Monteiro (1724-1812) um jesuíta português na dispersão» que deu origem ao livro publicado pelo Centro de História da Universidade de Lisboa em 2004. A integração de Inácio Monteiro no contexto dos restantes irmãos de Congregação exilados em Itália foi outra das componentes originais da nossa tese, abordando, como não podia deixar de ser, a própria problemática política social e
21 ANDRADE, António Alberto Banha de, «Inácio Monteiro e a evolução dos estudos nas aulas dos Jesuítas de Setecentos», Revista Portuguesa de Filosofia, 29 (1973). 22
MARTINS, António, «Para uma análise da filosofia de Inácio Monteiro», Revista Portuguesa de Filosofia, 29 (1973).
23
ROSENDO, Ana Isabel Rodrigues da Silva, Inácio Monteiro e o Ensino da Matemática em Portugal no século XVIII, Tese de mestrado. Departamento de Matemática da Universidade do Minho, 1996.
33
cultural italiana, sobretudo em Ferrara, onde aquele jesuíta residiu durante 53 anos. Para se conhecer a obra de Inácio Monteiro, é necessário estudar os livros que publicou. Decidimos utilizar as segundas edições das obras que as tiveram, uma vez que são obras aumentadas e revistas. Entre as suas obras são de salientar: o Compendio dos Elementos de Mathematica, publicado no Real Collegio das Artes em Coimbra (o Tomo I em 1754, e o Tomo II em 1756). Igualmente a obra que o padre Monteiro publicou em 1755, a Orbis Theologici Mappam ( ) in tres partes divisam. Especialmente importante é a Philosophia Libera seu Eclectica Rationalis et Mechanica Sensuum, que foi publicada em Veneza na Tipografia de António Zatta (a 1.ª edição é de 1766 e consta de 7 Tomos. Data de 1775-1776 a 2.ª edição da obra completa e aumentada em 8 Tomos em 8.º). Em 1768 (1.ª edição) e 1777 (2.ª edição), Monteiro publicou na Tipografia de António Zatta em Veneza a sua lógica, Ars Critica Rationis dirigendae. A obra Principia Philosophica Theologiae foi publicada em Veneza na Tipografia de António Zatta, em 1770 (1.ª ed.), sendo a 2.ª edição de 1778. As Theses ex omnibus Philosophiae partibus disputadas no Templo Ferrarense da Companhia no ano de 1771, foram publicadas na Tipografia de José Rinaldi nesse mesmo ano. A última obra conhecida de Inácio Monteiro foi a Ethica, publicada em dois tomos na cidade de Ferrara igualmente por José Rinaldi em 1794, quando Monteiro contava 70 anos. A primeira edição da Philosophia Libera, obra principal de Monteiro, data de 1761, talvez porque esta foi a data da carta dedicatória à juventude portuguesa que serve de autêntica introdução. O padre Rocha Guimarães refere que o volume mais antigo deste curso que conheceu data de 1766, sem número de edição. A Logica (Ars critica rationis dirigendae) a que fizemos já referência tem data de impressão de 1768 (em Veneza), e foi publicada segundo o mesmo autor, depois do último tomo da Física (1766 ou 1767), como fazendo parte dessa obra. Através do frontespício do livro, 34
sabemos que se trata da 2.ª parte da Philosophia rationalis. No prefácio constatamos que é a primeira (primam habes Ecclectica Philosophiae Rationalis partem) 24. Inácio Monteiro publicou em Veneza, no ano de 1770, a Philosophia rationalis ecclectica em dois volumes, com 2.ª edição da mesma cidade em 1777. Consta de um tomo dividido em duas partes (a Teodiceia é tratada na 1.ª parte, e a Psicologia racional na 2.ª parte). Além do Compêndio de Matemática, Monteiro teria preparada uma obra sobre a Companhia de Jesus, mas se não a chegou a publicar, pode ser que não a tenha conseguido levar consigo para o exílio. No entanto, nunca encontrámos, no decorrer das nossas investigações, alguma referência expressa a esta obra, a não ser o que o próprio padre Monteiro refere na Philosophia Libera. Afirmou que tinha outras matérias preparadas em Portugal, destinadas à juventude portuguesa, mas no meio da catástrofe que se abateu sobre o reino não tinha sido possível conservá-las ou mesmo trazê-las consigo pelo que lamenta não as poder oferecer 25. Inácio Monteiro viveu uma época de grande efervescência política, social e cultural. Tal é o destino que muitas vezes se atravessa na vida de certos homens. Umas vezes são protagonistas e influenciam directamente a História. Outras, sofrem-lhe apenas as consequências. Aconteceu deste modo com o padre Monteiro. Em finais de 1799, já com 75 anos, pôde aperceber-se que, dez anos passados desde o início da Revolução, a Europa oferecia um quadro bem diferente daquele que existia quando desembarcara no porto de Civittavechia, com alterações bem significativas a nível dos mapas políticos, nomeadamente com o engrandecimento territorial da França provocado pela guerra. Inácio Monteiro ocupa, por mérito próprio, um lugar no desenvolvimento cultural português da segunda metade do século XVIII. A sua obra, escrita entre 1754 e 1794, principalmente na década de 1750-60, valeu-lhe ser apelidado por António Alberto de Andrade «o Professor mais bem informado do movimento científico e, porventura, filosófico, dentre os
24
O Padre Monteiro apresenta a sua Lógica, publicada depois da Filosofia Natural como «unico volumine comprehensam». Igualmente o editor adverte que se podem encadernar separadamente. (Lógica, p. 48). Veja-se GUIMARÃES, Rocha, «Inácio Monteiro e a Filosofia do seu tempo», Brotéria, 31 (1940), 509.
25
MONTEIRO, Inácio, Philosophia Libera, I, p. XII (Lusitanae Juventuti). «Alia erant, quae vobis in Lusitania paraveram; quoniam tamen illa, in ea quam scitis, rerum Catastrophe servari, et mecum adduci non potuere; a me vobis etiam offerri amolius non possunt».
35
26 ANDRADE, António Alberto de, Verney e a cultura do seu tempo, Coimbra, Imprensa de Coimbra, 1966, p. 242.
27
GOMES, J. Pereira, »Inácio Monteiro», Lisboa, in Enciclopédia Verbo, vol. 13, 1972, col. 1279.
36
jesuítas dessa época» 26. O seu discurso filosófico teve como principais características o eclectismo que é a opção mais consentânea com o seu carácter independente , antiperipatetismo, cartesianismo e cepticismo moderado. A sua vasta obra, como escreveu Pereira Gomes, «distingue-se pela clareza, método, erudição e modernidade das ideias, e constitui a expressão mais alta da cultura portuguesa nesse período» 27. Contudo, Inácio Monteiro deve igualmente ser recordado pela nobreza de carácter e pelas qualidades de professor que demonstrou e que a Universidade de Ferrara, onde chegou a ser Prefeito de Estudos soube reconhecer, pois o antigo jesuíta vivera de perto todos os acontecimentos ligados ao período jacobino em Ferrara, assistindo à chegada das tropas francesas à cidade até à criação das Repúblicas Cispadana e Cisalpina, bem como à administração criada pela autoridade militar francesa, e mais tarde, às consequências para a Itália em geral, e Ferrara em particular, da queda de Napoleão.
O Papa e a SIDA em África: Um despertar humano e espiritual 1
Michael Czerny, S.J. * 1 Publicado originalmente no Thinking Faith, o jornal online dos Jesuítas Britânicos. Consulte http://www. thinkingfaith.org/articles/ 20090325_1.htm
As palavras do Papa a 17 de Março no início do seu périplo
africano, acerca do uso do preservativo para prevenir o alastramento da SIDA, geraram uma tempestade na comunicação social. Mas os comentários do Papa não constituem a causa de preocupação que foi relatada, defende Michael Czerny, S.J. Por que razão é que os ensinamentos da Igreja não são irrealistas nem ineficazes , como se diz, mas válidos, eficazes e fundados na realidade? No início da sua primeira visita a África como Papa, Bento XVI concedeu a sua habitual conferência de imprensa aos jornalistas que o acompanhavam no avião, até Yaoundé 2. A quinta questão foi a seguinte: Santidade, entre os muitos males que atormentam África, um dos mais graves é o da difusão da SIDA. A posição da Igreja Católica sobre o modo de lutar contra ela é, com frequência, considerada irrealista e ineficaz. Vossa Santidade enfrentará este tema durante a viagem?
2 www.vatican.va/holy_ father/benedict_xvi/speeches/2009/march/documents/hf_ben-xvi_spe_ 20090317_africa-interview_ po.html
Qualquer resposta teria provavelmente dado uma manchete. E porque foi assim, um fragmento da resposta do Papa fez o delírio dos meios de comunicação, o que deixou algumas pessoas perplexas, entristecidas e até ultrajadas. Passemos em revista, com cuidado, aquilo que o Papa Bento XVI disse na realidade para tentarmos entender o que queria dizer. Apresentemos primeiro, no entanto, o «pano de fundo»: segundo estatísticas de 2006, o número de Católicos Africanos * Director da Rede Jesuíta Africana contra a SIDA (AJAN).
Brotéria 168 (2009) 37-46
37
baptizados é de cerca de 150 milhões, cerca de 17% da população africana, enquanto, em 1978, este número era de 12%. Segundo a ONUSIDA (2007), cerca de 22 milhões, na África Subsaariana, estão infectados com o HIV. Eles constituem 67% das pessoas infectadas no mundo. Em 2007, três quartos das mortes por SIDA ocorreram na África Subsaariana. Em resposta ao jornalista, o Papa foi breve, abordando em várias dimensões este gravíssimo e complexo problema. Quanto à afirmação de que a posição da Igreja é irrealista e ineficaz, o Papa respondeu: Eu diria o contrário: penso que o agente mais eficiente, mais presente na primeira linha da luta contra a SIDA é precisamente a Igreja Católica, com os seus movimentos, com as suas diversas organizações. As Comunidades religiosas de Irmãos, Irmãs e de Padres, bem como as comunidades de leigos, «trabalham arduamente, de modo visível e invisível também» e «atendem aos doentes».
3 LOZANO BARRAGÁN, Cardeal Javier, Declaração para a revisão da UNGASS do progresso alcançado para atingir os objectivos propostos na Declaração de Compromisso contra o HIV/SIDA, New York, 2 de Junho de 2006.
As estruturas oficiais do Vaticano calculam que a Igreja Católica, em todo o mundo, socorre actualmente cerca de 25% dos doentes com HIV/SIDA 3. Em África, a percentagem é naturalmente superior, quase 100% nas áreas mais remotas. Um cidadão seropositivo do Burundi recebe medicamentos retrovirais e explica o serviço: Quando nos deslocamos para outros lugares, apenas vêem em nós números. Tornamo-nos casos hospitalares a serem tratados. Tornamo-nos problemas. Perdemos o nosso sentido de dignidade e de mérito. Porém, nunca nos sentimos assim quando vimos ao programa da nossa Igreja. E isso porque recebemos uma abordagem completa dos nossos problemas, quer de ordem espiritual, médica, mental, social ou económica. (Testemunho pessoal).
Raciocinando a partir do importante, efectivo e realista registo da Igreja, o Santo Padre aborda duas questões fundamentais: Diria que não se pode superar este problema da SIDA só com dinheiro, mesmo se necessário; mas, se não houver uma dimensão humana, se os Africanos não ajudarem (assumindo um comportamento responsável)
38
Sem explicitamente usar esta linguagem, o Santo Padre está a fazer um contraste radical entre a abordagem da Igreja (sugerida pelas palavras dimensão humana e comportamento responsável ) e a abordagem típica das políticas públicas dos governos e das organizações internacionais (sugerida pela palavra dinheiro ). As políticas públicas lidam com populações inteiras. Servem-se de estatísticas para tentar compreender um problema que é então enfrentado através de programas e políticas. O resultado esperado é uma melhoria estatística. No caso da SIDA, a saúde pública faz aquilo que é tecnicamente necessário e possível para reduzir o número de infectados e o número de mortes. Longe de ignorar esta contribuição, tem de se reconhecer que as políticas e os programas públicos têm como denominador comum o mínimo daquilo a que cada cidadão tem direito. As medidas de saúde pública lidam com números e tendências e não em função de rostos humanos, de pessoas. A visão cristã do mundo inclui tudo isto, mas tem um horizonte mais vasto e profundo. Com uma visão globalizante, a Igreja vê cada pessoa como filho de Deus, como irmão ou irmã, cada uma capaz tanto do pecado como da santidade. Contudo, cada uma destas pessoas, únicas, completas e santas, não são imediatamente detectadas em estatísticas, mas constituem as pessoas reais, do mundo real. Como crentes, elas constituem os pilares das comunidades, os agentes silenciosos das mudanças profundas. Por isso, o trabalho da Igreja, ao ensinar, formar, orientar e desafiar as pessoas, é um projecto mais audacioso do que o da saúde pública, profundamente diferente na qualidade e no espírito. Enfrentando não apenas a SIDA, mas múltiplas adversidades, nos quatro cantos do Continente, os Africanos têm boas razões, produto da sua experiência, para acreditar na corajosa visão da Igreja. Tendo-se referido ao programa englobante da Igreja e afastando-se da abordagem necessariamente mais restrita das políticas públicas, o Santo Padre critica a posterior redução das 39
políticas públicas a um único meio e método: «Não se pode superar o problema com a distribuição de preservativos: pelo contrário, eles aumentam-no». Na Europa e na América do Norte, onde o uso do preservativo é culturalmente aceite por muitos, as pessoas questionam: «Por que razão é que a Igreja está contra a sua promoção?» Alguns mal intencionados chegaram mesmo a acusar os Papas João Paulo II e Bento XVI de partilharem responsabilidades quanto a um genocídio pela SIDA. Há aqui dois problemas distintos: o estatuto moral de actos individuais e a validade de uma estratégia envolvendo populações inteiras.
No que diz respeito aos actos individuais Segundo peritos em prevenção, o preservativo, quando correctamente usado, pode reduzir o risco de infecção pelo HIV, durante uma relação sexual; e as pessoas que usam consistentemente o preservativo têm menor probabilidade de transmitir o HIV ou de ser infectadas. Quando um homem e uma mulher têm relações sexuais, antes, dentro ou fora do casamento, a saúde pública mostra-se indiferente quanto à moralidade do que eles praticam na intimidade do seu quarto. Cultural e legalmente, quer na Europa, quer na América do Norte, aceita-se como comportamento sexual correcto aquele em que ambos os parceiros estejam de acordo. Neste contexto, o preservativo parece fazer todo o sentido. O que os fazedores da opinião pública e os meios de comunicação pretendem é que a Igreja aprove o sexo fora do casamento, o que é contrário à fé religiosa e aos valores culturais tradicionais de milhões de pessoas em todo o mundo. A Igreja entende a relação sexual como parte de uma visão moral. A fé católica permite as relações apenas no contexto do casal e excluindo meios artificiais de contracepção. Fazer algo errado pode ser mais seguro com um preservativo, mas a segurança não qualifica o acto como correcto. A Igreja não poderia encorajar maior segurança, sem que isso viesse 40
de alguma forma a sugerir a bondade do acto. Dizer «Não cometas adultério, mas se o fizeres, usa um preservativo» é o mesmo que dizer: «A Igreja não confia em ti para viveres uma vida correcta». Um homem e uma mulher não casados um com o outro, que têm relações, estão a agir em desconformidade com o ensino da Igreja. De forma nenhuma precisam que o Papa lhes diga que usem o preservativo. Do que verdadeiramente necessitam é de que a Igreja os ajude a viverem uma sexualidade respeitosa e responsável. Isso levou os Bispos Africanos a escrever, em 2003: A abstinência para os solteiros e a fidelidade para os casados são, não só, a melhor forma de evitar a infecção de si mesmo e dos outros através do HIV, como também, e mais importante ainda, a melhor maneira de assegurar o progresso no sentido da felicidade duradoura e de uma verdadeira realização4.
Num tempo de SIDA, há uma situação especial: casais que são discordantes (um dos membros é seropositivo) ou ambos estão infectados (ambos são seropositivos). Aqui, a Igreja acompanha pastoralmente o casal, no sentido de tomarem a decisão que promova melhor a vida, no que diz respeito às suas vidas, à sua família, ao seu relacionamento conjugal e ao seu desejo de terem filhos. Eles merecem o mesmo respeito e a mesma dignidade que todos os outros cristãos, em que se inclui ajuda para formar as suas consciências, não havendo um pacote acabado de soluções, que lhes seja ditado do púlpito, muito menos através da imprensa ou dum edital. Não encontrarão um tão acérrimo defensor do dever de seguir a própria consciência, como o Papa Bento XVI. E o que dizer das muitas situações que tornam os Africanos, especialmente as mulheres, mais vulneráveis à infecção pelo HIV a pobreza, os conflitos armados, as deslocações, os abusos e violações (mesmo no contexto de relações estáveis)? É evidentemente uma ilusão completa imaginar que um agressor sexual possa ser persuadido a usar o preservativo, seja pelo Papa, seja pelo Estado, seja por uma ONG, ou por qual-
4 Simpósio das Conferências Episcopais de África e Madagáscar, Outubro de 2003, parágrafo II. www. jesuitaids.net/go.aspx?ID=4 &TL=3&B1=htm/sceamsida2003p.htm&RZ=1
41
quer outra entidade. Contudo, podemos imaginar um casal de facto discordante, em que o marido recusa submeter-se a testes e insiste na manutenção de relações, invocando os ensinamentos da Igreja para não usar o preservativo. Envolvido em vários estádios de auto-engano, este homem não pode apelar para um nível moral mais elevado, pondo em risco a vida da esposa. Mas nenhuma solução de carácter geral poderá enfrentar todos os males aqui envolvidos. Ao nível das paróquias, a Igreja pode dar formação moral, o que geralmente faz, encorajando as pessoas a submeterem-se a testes e defendendo os direitos da mulher.
No que respeita a estratégias destinadas a populações inteiras
5 Prof. Edward C. Green, Director do Projecto de Investigação em Prevenção contra a SIDA de Harvard, em entrevista concedida a «Christianity Today», publicada em 20 de Março de 2009, citando investigação publicada desde 2004, em Science, The Lancet, British Medical Journal e Studies in Family Planning http:// www.christianitytoday.com/ ct/2009/marchwebonly/11153.0.html 6
LOPEZ, Kathryn Jean, «From Saint Peter s Square to Harvard Square: Media coverage of papal comments on AIDS in Africa is March madness» (Da Praça de S. Pedro à Praça de Harvard: cobertura dos media dos comentários do Papa acerca da SIDA em África é a loucura de Março), National Review, 19 de Março de 2009. http://article.nationalreview.com/?q=MTNlNDc1 MmMwNDM0OTEzMjQ4ND c0ZGUyOWYxNmEzN2E=
42
Há uma crença generalizada de que os programas de uso do preservativo são efectivos no que diz respeito a reduzir as taxas de infecção pelo HIV. Contudo, isso é uma verdade apenas fora de África e para subgrupos identificáveis (por ex., prostitutas e homossexuais). Não está provado que o uso do preservativo, como estratégia de saúde pública, tenha reduzido os níveis de infecção pelo HIV, a nível da população global 5. Na verdade, uma maior acessibilidade e um maior uso do preservativo estão associados a taxas mais elevadas (não inferiores) de infecção pelo HIV, talvez porque, quando alguém usa uma tecnologia de redução dos riscos, tal como o preservativo, frequentemente perde o benefício (diminuição do risco), porque as pessoas acabam por correr mais riscos do que fariam sem essa tecnologia 6. Por conseguinte, a nível público, uma política agressiva a favor do uso do preservativo agrava o problema , na medida em que desvia as atenções, credibilidade e recursos de estratégias mais eficazes como a abstinência e a fidelidade ou, numa linguagem laica, do adiamento do início da vida sexual e da diminuição do número de pessoas relacionando-se com múltiplos parceiros sexuais. Abstinência e fidelidade ganham pouco apoio público no discurso dominante no Ocidente, mas
são argumentos fundados em sólidas razões científicas e vêm sendo progressivamente incluídos, e mesmo favorecidos, em estratégias nacionais de luta contra a SIDA em África. Dois países com as piores epidemias de HIV, Suazilândia e Botswana, lançaram campanhas para desencorajar múltiplos e concomitantes parceiros sexuais e apelando para a fidelidade. O Papa identificou correctamente onde a ênfase deve ser colocada na manutenção da monogamia e da mútua fidelidade. Não deve ser desvalorizado o costume ridicularizado no Ocidente, mas apreciado por muitos grupos étnicos em África de preservar a virgindade da mulher antes do casamento 7. A promoção do uso do preservativo como estratégia para reduzir a infecção pelo HIV, numa população em geral, é baseada em probabilidades estatísticas e plausibilidade intuitiva. Esta política ganhou credibilidade considerável nos meios de comunicação e entre os fazedores da opinião pública ocidentais. Mas carece de base científica 8. Alguns especialistas na prevenção do HIV assumiram que, dado que vastas camadas da população ignoram se estão ou não infectadas, o uso do preservativo deveria ser automático, obrigatório e universal. Contudo, 95% dos Africanos, entre os 15 e os 49 anos, não estão infectados (ONUSIDA, 2007). Saber o seu estado é um grande passo, no sentido de levar as pessoas a serem responsáveis pelos seus actos. Disseram-me vários Africanos que, quando o resultado do teste é positivo, eles fazem a opção pela abstinência, em vez de correrem o risco de poderem infectar outrem. A esse propósito, os Bispos do Quénia afirmaram:
7
BUJO, Bénézet, «Community Ethics and AIDS» (Ética Comunitária e SIDA), em Bujo e Czerny (eds.), AIDS in Africa: Theological Reflections (SIDA em África: Reflexões Teológicas), Nairobi, Paulines Publications Africa, 2007.
8 Dez especialistas em Sida concluíram recentemente que «o uso consistente do preservativo não atingiu um nível suficientemente elevado, mesmo após muitos anos de difusão e de promoção agressiva, para provocar um decréscimo quantificável de novas infecções nas epidemias generalizadas da África Subsaariana». POTTS, Malcolm, HALPERIN, Daniel T. (et al.), em «Reassessing HIV Prevention» (Avaliando a Prevenção contra o HIV), Science 5877 (9 de Maio de 2008), 749-750.
Mesmo que o HIV não fizesse das relações sexuais pré-matrimoniais, da fornicação, do adultério, do abuso de menores e da violação algo de tão terrivelmente perigoso, ainda assim esses comportamentos seriam errados e sempre o foram. Não é o risco de contrair o HIV, nem os sofrimentos associados à SIDA, que tornam imoral a libertinagem sexual. Esses comportamentos constituem violações ao sexto e ao nono Mandamentos, pelo que são pecaminosos. Hoje em dia, no Quénia, certamente que as suas mais des-
43
9 Conferência Episcopal Queniana, This We Teach and Do (Isto, nós Ensinamos e Fazemos), I Volume, 2006, 26. www.kec.or.ke/ viewdocument.asp?ID=19
trutivas consequências são o HIV e a SIDA. A Igreja não ensina uma moral sexual diferente, mesmo quando ou ainda que a SIDA não cause ameaça. Mas este ensinamento não é fácil para o «mundo», incluindo os meios de comunicação, que não o querem entender e, muito menos, aceitar 9.
A verdade é que a cultura tem a sua influência. Um preservativo é mais do que um pedaço de látex; tem também algo a dizer sobre o significado da vida. Enquanto na Europa e na América do Norte a ideia tem receptividade (embora não para todos), em África a fertilidade é vista com agrado e o preservativo soa a algo de estrangeiro e estranho e os valores a ele associados como vindos de fora. Um Jesuíta da África do Sul escreveu-me o seguinte: «Aqui, a maior parte das pessoas pensa que O Papa e os preservativos é um espectáculo montado pelos meios de comunicação e não um assunto com o qual as pessoas estejam dispostas a gastar mais tinta ou a destruir mais floresta». Assim, quando o Papa Bento XVI afirmou que a distribuição de preservativos agrava o problema, não se tratou de uma «gaffe» ou de uma chamada de atenção casual. Ele tinha boas razões para dizer o que disse. A solução deve ter em vista dois elementos: a) Antes de mais, fazendo sobressair a dimensão humana da sexualidade, isto é, um ressurgimento humano e espiritual que traga consigo um novo modo de comportamento em relação aos outros o nosso esforço para renovar a humanidade interiormente, para dar força espiritual e humana a uma conduta adequada em relação ao nosso corpo e ao dos outros. Esta sexualidade é baseada na fé em Deus, no respeito por si próprio e pelo outro e na esperança em relação ao futuro. Compare-se este ponto de vista com a confiança que se deposita no preservativo. Todos devem reconhecer que «preservativo sempre e para todos» se insere numa noção de «sexo como brincadeira sem consequências». Lá no fundo, sabemos como isso é mentira. Significa utilizar outro ser
44
humano como se fosse um veículo ao serviço do meu prazer. Como política pública, isso significa tratar os cidadãos como seres impulsivos, incapazes de autocontrolo, incapazes de nada para além da sua auto-satisfação. Uma tal atitude é horrivelmente pessimista quanto à humanidade em geral e, quando imposta aos Africanos por instituições públicas e internacionais, tal representa também um inconsciente mas intolerável racismo. Este não é um caminho que a Igreja possa trilhar. A investigação epidemiológica séria vem confirmar aquilo que a Igreja tem ensinado. À medida que as evidências demonstram a existência de uma elevada prevalência e da natureza mortal da manutenção de múltiplos e concomitantes parceiros sexuais, deveremos reorientar as intervenções de prevenção e a investigação no sentido de promover a mudança de comportamentos, sobretudo no que diz respeito à diminuição de parceiros e incentivando a exclusividade sexual 10.
O ideal cristão da sexualidade é uma harmoniosa combinação entre a liberdade e a responsabilidade, como partes integrantes da personalidade, em cada etapa da vida. Na procura do ideal da entrega pessoal total, a moral sexual católica deverá orientar cada pessoa no sentido de acolher a sexualidade como uma dádiva, que foi concedida a todos, para que a aceite numa conduta honrada, pessoal e socialmente, reconhecendo a responsabilidade inerente ao potencial sexual e para integrar esta sexualidade de modo completo em todas as etapas da vida 11. b) Em segundo lugar, é preciso partilhar uma verdadeira amizade, acima de tudo com aqueles que sofrem, a disponibilidade para fazer sacrifícios e para praticar a abnegação, para estar ao lado dos que sofrem a capacidade de sofrer com eles, para permanecer presente em situações de provação.
10 GREEN, Edward C., (et al.), em «A Framework of Sexual Partnerships: Risks and Implications for HIV Prevention in Africa» (Um quadro de Parcerias Sexuais: Riscos e Implicações para a Prevenção contra o HIV em África), Studies in Family Planning 40(1) (2009), 68.
11 CZERNY, Michael F., «A SIDA: a maior ameaça à África desde o comércio de escravos», http://www.jesuitaids.net/pdf/2006_Czerny_ AIDS_Civilta_ENG.pdf
Este serviço generoso e compassivo tem sido a experiência africana vivida, praticamente desde o princípio. Muitos dos atingidos pela SIDA encontram, por via de regra, aceitação, solicitude e apoio na Igreja, quer pertençam a ela, quer não. 45
Por maioria de razão, a formação da consciência (a)) e os cuidados desinteressados (b)) andam de mãos dadas. A Igreja, que infatigavelmente serve estes doentes nas suas necessidades, torna-se também credível nos seus ensinamentos e na formação que dá. E, assim, o Santo Padre resumiu: «Estes são os factores que ajudam a trazer o verdadeiro progresso», na luta contra a SIDA. Inspirada na fé e na tradição católica, a mensagem integral e na verdade holística do Papa dirigia-se aos povos que iria visitar. Ela tem uma profunda ligação com a realidade humana no terreno. Um Jesuíta congolês escreveu-me, dizendo: Por aqui, temos acompanhado a visita do Papa com grande interesse, bem como a especulação dos meios de comunicação sobre a questão do preservativo, na sequência da sábia declaração do Santo Padre antes de aterrar em África. É uma vergonha que tanta gente não se aperceba que a solução para a SIDA não surge com a distribuição do preservativo, mas enfrentando a questão no seu todo.
O Santo Padre terminava respondendo de novo às alegações dos jornalistas, quando acusam as medidas propostas pela Igreja de irrealistas e ineficazes . Parece-me que esta é a resposta adequada, e a Igreja coloca-a em prática, oferecendo assim uma enorme e importante contribuição. Agradecemos a quantos o fazem.
Segundo a minha experiência, a maioria dos Africanos, católicos ou não, estão de acordo. Para eles, o que o Santo Padre disse é profundo e verdadeiro. Ele reafirmou o que têm vindo a experimentar desde há anos atrás e o que eles continuam a esperar. Eles também agradecem àqueles que implementam a estratégia da Igreja.
46
A Reconciliação na Teologia Africana
Muanamosi Matumona *
Introdução A Reconciliação surge cada vez mais como um tema interessante e pertinente no contexto actual, especialmente em África, quando o continente procura a todo o custo uma estabilidade total, para que os seus filhos possam merecer uma vida tranquila e feliz. É claro que tudo passa pela reconciliação dos próprios africanos: isto é, dos governantes até aos últimos cidadãos. Todos devem colaborar para que possam viver numa África reconciliada Neste sentido, o tema tem servido também como objecto de estudo no contexto da teologia africana, uma ciência que vai conquistando paulatina e seguramente o seu lugar no universo das ciências, depois de ter conhecido alguns momentos difíceis, quando muitas vozes do Ocidente se opunham a esta reflexão elaborada dentro das latitudes africanas 1. Assim sendo, longe de apresentar muitos argumentos para a sistematização e apresentação de um «tratado teológico» em profundidade, a nossa intenção é muito simples: aproveitar a oportunidade para reflectirmos, ainda que em diagonal, sobre a teologia africana e sobre o tema da reconciliação, visto num contexto peculiar, que é o mundo africano. Para este exercício, o nosso trabalho está dividido em três pontos: Trajectória, identidade e papel da Teologia Africana; A Reconciliação como tema pertinente e Realidade e
1 Veja a título de exemplo: RATZINGER, Joseph, Diálogo sobre a fé, Lisboa, Verbo, 1985, p. 161 e PAULO VI, «Allocutio», AAS, Vol. LVI, n.º 11 (30/11/1974), 636.
* Sacerdote angolano da Diocese do Uíje (Norte de Angola). Pós-graduado em Comunicação Social, Doutor em Teologia Fundamental pela Universidade Católica Portuguesa e doutorando em Sociologia pela Universidade de Lisboa.
Brotéria 169 (2009) 47-60
47
desafios actuais. Começaremos por apreciar a trajectória e o conteúdo da Teologia Africana que hoje é reconhecida como ciência, para depois enquadrar nela o tema da reconciliação, um valor que tanta falta está a fazer para que a África goze da dignidade que merece. Para terminar, abordaremos algumas questões ligadas ao projecto que deve ser elaborado e executado na Pastoral aprovada pela Igreja que está em África, sem esquecer que isto terá a ver com o tão propalado processo da inculturação do Evangelho no continente.
1. Trajectória, identidade e papel da Teologia Africana
2
Cf. SEUMOIS, A., Teologia Missionaria, Bologna, Dehoniana, 1993, pp. 243-249 e MUSHETE, Ngindu, «Breve historia de la Teología en África», in Itinerarios de la Teología Africana (Ed. Rosino Gibellini), Pamplona, Verbo Divino, 2001, pp. 17-29.
3 Isto tem a ver com a instituição das teologias do genitivo. Sobre a matéria veja ALSZEGHY, Z.; FLICK, M., Como se faz teologia, São Paulo, Paulinas, 1979, pp. 97-122.
4
Paris, Cerf, 1956.
48
Para avançar com a tarefa de apresentar, de uma forma resumida, a Teologia Africana, é de reconhecer que as investigações sobre a temática vão ganhando terreno, gerando até uma certa polémica, com incompreensões à mistura. Esta ciência surgiu no contexto da missionação. Para já, é de sublinhar que os problemas levantados pela missão ocasionaram uma reflexão teológica sobre a experiência da fé, em África. Depois das fases da «teologia da salvação das almas» (séc. XV-XX) e da «teologia da implantação da igreja» (1920-1955), que foram promovidas pelos missionários estrangeiros, com o intuito de baptizar e iluminar os negros para a sua salvação e implantar a Igreja, surgiu uma reflexão elaborada pelos próprios africanos, chamada, geralmente, «Teologia da Adaptação», ou «Teologia autóctone» 2. Vingou a primeira designação sobre a segunda, não perdendo esta última o seu peso, uma vez que a teologia africana passou a ser elaborada pelos próprios africanos e no seu mundo 3. Foi em pleno século XX, mais precisamente nas primeiras décadas (nos anos 30), já com uma consciência madura e mais esclarecida, que os africanos começaram a reflectir sobre a fé cristã dentro das latitudes culturais locais. A harmonia entre os valores tradicionais e a doutrina cristã foi a tónica de uma teologia africana de tipo «culturalista», cuja primeira sistematização foi elaborada numa obra colectiva intitulada Des prêtres noirs s interrogent (padres negros interrogam-se) 4.
Procuravam-se, neste contexto, os fundamentos do discurso teológico africano, exclusivamente nos valores da civilização da África tradicional contidos nos usos, costumes, filosofia, contos, provérbios, histórias, etc. Esta teologia centrou-se sobretudo nos valores da religião tradicional africana e trabalhou na sua articulação com os projectos da missionação. Viu-se que o monoteísmo africano era um ponto favorável no âmbito da evangelização. Assim, a adaptação missionária levantou uma questão teológica, uma vez que os teólogos se esforçaram por estudar e sistematizar os aspectos da cultura local que podiam corresponder melhor ao cristianismo, baseando-se em critérios seguros 5. Os resultados confirmaram que o africano é também chamado por Cristo, e há compatibilidade entre a «africanidade» e o cristianismo. Sem se perder algo, neste processo, há um enriquecimento mútuo: a cultura africana fica bem enriquecida com o Evangelho, acontecendo o mesmo com o cristianismo que, assim, confirma a sua universalidade. Em tudo isto, é de salientar que a encarnação do Verbo na cultura africana esteve sempre em consideração. E foram apurados argumentos válidos para sustentar a posição ideal do africano: reconhecer em si o «ser cristão» e o seu «ser africano», para viver em harmonia com a sua cultura, agora iluminada pela luz da revelação de Deus em Jesus Cristo 6. Mais tarde, a reflexão africana deu largos passos: já depois da primeira metade do século XX, se assistiu ao nascimento de várias teologias, com estilos novos e com novos horizontes de compreensão do homem e do mundo «específicos». A teologia, neste sentido, deixou de ser um fenómeno exclusivamente europeu, pois expandiu-se também geográfica e epistemologicamente, adquirindo novas formas, no confronto com outras mentalidades, diferentes da europeia. Foi assim que surgiram várias «teologias particulares» ou «regionais», que procuram enquadrar-se melhor no seu contexto 7. Nesta sequência, a África não fugiu à regra. Até hoje, os seus teólogos têm reflectido muito sobre a «experiência
5 Cf. METOGO, E. M., Théologie africaine et ethnophilosophie, Paris, L Harmattan, 1985, p. 55.
6 Cf. MEWUDA, B.-W., «Ser autenticamente cristão permanecendo autenticamente africano», Communio 7 (1990), 460-467.
7 Cf. GEFFRÉ, Claude, Un nouvel âge de la théologie, Paris, Cerf, 1972, p. 42; ALSZEGHY, Z.; FLICK, M., op. cit., pp. 97-122.
49
8
Cf. VANNESTE, A., «Théologie Africaine: Note historique», RTA VII (1983), 272 e MAURIER, Henri, «La Théologie Africaine francophone», Spiritus t. XXIII (1982), 227.
9 Cf. MATUMONA, Muanamosi, A Teologia Africana da Reconstrução como novo paradigma epistemológico. O contributo lusófono num mundo em mutação, Lisboa, Roma Editora, 2007.
10
AG, nº 22.
de Deus» neste continente, «baptizando» esta reflexão como «Teologia Africana». A expressão como tal Teologia Africana ganhou terreno mais tarde, principalmente na África francófona, nos estudos realizados na Faculdade de Teologia da Universidade de Lovanium, no ano académico 1959/1960, em Kinshasa. A seguir, a mesma nomenclatura chegou até à África anglófona 8, estando os PALOP numa fase mais ou menos estacionária, pois, ainda não deram passos de maior realce neste domínio 9. Hoje, defende-se que a Teologia Africana tem como uma das bases o Vaticano II que, no seu decreto Ad Gentes, compreendeu e aprovou a necessidade de um pluralismo teológico, no âmbito da inculturação, para que a Igreja realizasse da melhor forma a sua tarefa em terras de missões. Convém destacar a posição do Concílio: Para conseguir este objectivo, é necessário que em cada grande espaço sócio-cultural, se estimule uma reflexão teológica tal que, à luz da tradição da Igreja Universal, as acções e as palavras reveladas por Deus, consignadas na Sagrada Escritura, e explicadas pelos Padres da Igreja e pelo magistério sejam sempre de novo investigadas. Assim se entenderá mais claramente o processo de tornar a fé inteligível, tendo em conta a filosofia ou a sabedoria dos povos, e a maneira de os costumes, o sentido da vida e a ordem social poderem concordar com a moral manifestada pela revelação divina. Deste modo se descobrirá o caminho para uma mais profunda adaptação em toda a extensão da vida cristã. Toda a aparência de sincretismo e de falso particularismo será excluída, a vida cristã conformar-se-á bem ao génio de cada cultura 10.
Seria depois Paulo VI a reforçar o projecto:
11 PAULO VI, «Allocutio», AAS, Vol. LXI, n.º 9 (30 de Setembro de 1969), 577.
Uma adaptação da vida cristã nos domínios pastoral, ritual, didáctico e também espiritual não é apenas possível, mas autorizada pela Igreja. É isso que exprime, por exemplo, a reforma litúrgica. Neste sentido, vós podeis e deveis ter um cristianismo africano 11.
Mas, nem tudo tem sido pacífico Pois, mesmo com a «exegese» do Vaticano II que dava como legítima esta reflexão, o Magistério e os teólogos do Ocidente encararam sempre 50
esta teologia com muita suspeita 12, o que parecia contrariar o espírito do Concílio. Por exemplo, Paulo VI, que, em 1969, no Uganda, autorizara a inculturação no campo da teologia, em África, manifestou, indirectamente, uma certa reserva quanto à Teologia Africana, aquando do encerramento do Sínodo de 1974, frisando: Há certamente uma exigência da autenticidade e da eficácia para a evangelização; será portanto perigoso falar das diversas teologias, segundo os continentes e culturas 13.
Mais tarde, em Abril de 1983, a Teologia Africana merecia, indirectamente, o «aval» de João Paulo II, aquando da visita ad limina dos Bispos congoleses. Na ocasião, o Sumo Pontífice considerou que «a teologia africana quer dizer o contributo africano à investigação teológica» 14. A partir destas premissas, reforçadas pelo Magistério da Igreja, a Teologia Africana aprovou duas correntes principais: a culturalista (que prioriza o diálogo entre o Evangelho e os valores da cultura tradicional) e a da libertação (que considera a situação sociopolítica do continente). Hoje em dia, está a ganhar terreno outra tendência, que é a Teologia da Reconstrução Neste contexto, há toda uma série de problemas urgentes que continua a interpelar esta reflexão: a pobreza das populações, o materialismo, os golpes de estado militares, a instabilidade política e económica, a corrupção generalizada, etc.15. O I Sínodo Especial teve isto em conta, pois a Ecclesia in Africa considerava, assim, os factos: Como se poderia anunciar Cristo naquele imenso continente, esquecendo que é esta uma das áreas mais pobres do mundo? Como poderia deixar de ter em consideração a história feita de sofrimentos de uma terra onde muitas nações se debatem ainda hoje com a fome, a guerra, as tensões tribais, a instabilidade política e a violação dos direitos humanos? Tudo isto constitui um desafio para a evangelização 16.
12
Cf. RATZINGER, Op. cit., p. 161.
13
PAULO VI, «Allocutio», AAS, Vol. LVI, n.º 11 (30 de Novembro de 1974), 636.
14
JOÃO PAULO II, «La Théologie Africaine. Discours aux évêques zairois», AAS, Vol. LXXV, n.º 8 (1 de Agosto de 1983), 652.
15 Cf. MATUMONA, Muanamosi, Cristianismo e Mutações Sociais. Elementos para uma Teologia Africana da Reconstrução, Uíje, SEDIPU, 2005 e Teologia Africana da Reconstrução.
16
Ecclesia in África, n.º 51.
51
2. A Reconciliação como tema pertinente
17
Cf. Ibidem, pp. 142-146.
18 Cf. TRIPIER, P., La réconciliation. Un sacrement pour l espérance, Paris, Éd. Le Centurion, 1976, pp. 135-137.
19 Cf. LÉON-DUFOUR, X., Vocabulaire de Théologie Biblique, Paris, Cerf, 1962, pp. 891.
20 Cf. SCHREITER, R. J., El ministerio de la reconciliaçión. Espiritualidad y estrategias, Santander, Sal Terrae, 2000, pp. 27, 153.
52
Se a Teologia Africana conta, agora, com três correntes principais, as mesmas se articulam em vários pontos, que são os temas principais deste tratado. Entre estes se destacam a paz, a justiça, a reconciliação, o ecumenismo e a cultura. Pelo que a Reconciliação ocupa um lugar especial nesta reflexão. Pois, o continente negro não deve ser reconstruído na base de quaisquer valores. No contexto da Teologia da Reconstrução, por exemplo, defende-se que a África deve ser reconstruída também, e sobretudo, na base de um elemento bíblico-teológico importante, que é a reconciliação. É este valor que deve ser promovido e estudado na missão da teologia e da Igreja de transformar a história e a vida do africano de acordo com os planos de Deus 17. Decididamente, a Reconciliação é, antes de mais, um conceito bíblico. Surge, à primeira vista, como obra de Deus. Pelo que neste processo Deus é o ponto de referência, porque a Reconciliação pressupõe uma determinada compreensão de Deus e uma relação com o mesmo Deus, que intervém no contexto da aliança, aliança que pode ser ferida, mas também pode, sob certas condições, ser novamente restabelecida até de maneira total. Assim, a reconciliação é o processo do restabelecimento da relação entre o Criador e o homem 18. Se no Antigo Testamento, Deus para com Israel mostra-se disposto a convidar o seu povo ao arrependimento, para restabelecer a comunhão, que se manifesta numa nova atitude, pois está em causa a conversão que implica o perdão (Ez 32, 34; Ex 32, 33; Jer 31, 31-34; Is 55, 6; Os 10, 12) 19, no Novo Testamento está bem patente a ideia da nova criação em Cristo (2 Cor 5, 17-20), sendo resultado da acção de Deus no homem. Assim sendo, a Reconciliação deve ser entendida como um processo que implica a renovação mediante o sangue que Jesus derramou na cruz 20. O evento do Reino de Deus, anunciado por Jesus Cristo, convida a uma mudança completamente radical. Só pode
entrar neste Reino quem deixar o seu antigo modo de ser, para chegar a uma vida nova (Rm 6, 4; I Cor 6, 11). Trata-se de uma transformação que é uma conquista de todos os dias, e revela que entre o pecado e a morte se interpõe a conversão, que é a metanoia do homem velho ao homem novo. Em tudo isso, é necessária uma fé ardente em Jesus, pois sem este suporte, não há verdadeira salvação cristã. A falta da fé seria negar a base da própria salvação cristã e escorregar meramente para caminhos da libertação horizontal: histórico-político-social 21. À luz deste princípio, e atendendo à situação dramática na qual está mergulhado o continente africano, a Teologia deve propor um movimento de transformação que requer não só uma conversão pessoal, mas também a conversão das estruturas culturais, económicas, sociais e políticas, que devem tender sempre para o futuro absoluto. Esta conversão das estruturas depende igualmente da conversão pessoal. Aliás, a conversão e a reconciliação possuem uma dimensão sacramental, sendo o ponto de encontro do mistério e da vida, a celebração dos dons de Deus para a vida dos homens. Este mistério diz respeito não só à vida da Igreja, mas a toda a cultura contemporânea. Na sua irradiação em todo o âmbito da convivência, faz-se cultura da vida quotidiana e social 22. Em África, a Reconciliação coloca-se no contexto geral do drama profundo dos antagonismos, dos conflitos, das divisões entre os homens e entre os povos, das injustiças e violências que fazem do continente um mundo dilacerado. Desde logo, a Reconciliação emerge como uma questão de cultura e de civilização de amor em África, pois é um projecto evangélico e civilizacional. Para a solução dos conflitos socais, advoga-se como caminho normal a conciliação. Mas, os cristãos não podem contentar-se com uma pura coexistência pacífica, uma simples convivência em que cada um se resigna à tolerância. A conciliação não basta. Há que ir até à Reconciliação, que é a palavra de ordem do cristão, exactamente porque crê antes de mais no dinamismo da solidariedade e da comunicação inscrita pelo próprio Deus no mais profundo do
21
Cf. SACRÉE CONGREGATION LA DOCTRINE DE LA FOI, Instruction sur quelques aspects de la «Théologie de la Liberation», Vaticano 1984, n.º 2.
POUR
22 Cf. MARTO, António, «Para uma cultura da reconciliação e da penitência», Communio 2 (1989), 169-174.
53
23
Cf. SECAM, «L Église famille de Dieu: lieu et sacrement de pardon, de réconciliation et de paix en Afrique. Lettre Pastoral», DC 2262 (2002), 64-86.
24
Cf. PEINADO, M. M., «Educación para la paz en el nuevo milenio», in Para uma cultura da paz (Org. José Manuel Pureza), Coimbra, Quarteto, 2001, p. 111; MBARGA, Jean, «La culture évangelique de la réconciliation et du pardon», in Ressources culturelles pour la réconciliation et le pardon, Roma, Urbaniana University Press, 2007, pp. 41-49.
54
coração do homem para a construção de um mundo melhor. É uma proposta de vida e exigência de uma mudança de fundo conversão nas relações com Deus e com o africano, na família, no trabalho, nos comportamentos sociais, nas relações entre os povos, para, com a ajuda de Deus, vencer o «pecado social», que é a causa da desgraça do continente. Isto leva, de facto, à reconciliação social: um processo que envolve todos os membros de uma sociedade, pois todos ficam afectados de uma ou de outra maneira pelo mal, pelo que todos devem participar neste processo da reconciliação e, consequentemente, na reconstrução da sociedade. Na base da radical transformação do mundo, o africano encontrará a plenitude do sentido nos seus esforços para lutar contra a injustiça, a ditadura, a corrupção, o tribalismo, o ódio, as guerras, e outras mazelas que constituem obstáculos maiores ao bem-estar. Em África, de uma forma específica, a ausência de uma relação verdadeira com a Reconciliação provoca relações humanas conflituosas 23. Aliás, no plano político, a conversão e a reconciliação supõem o sentido de promover um bom governo que trabalhe com honestidade e justiça para o bem comum. Sem a reconciliação, não se pode reconstruir a sociedade africana. Para isso, tem de se encontrar um caminho que permita libertar a sociedade das tristes recordações do passado e dos sofrimentos do presente. O arrependimento é sempre necessário: não é uma volta para trás. Trata-se de assumir de uma forma adequada o passado para poder caminhar para o futuro. É um combate contra o mal e as suas consequências, que implica sempre o perdão. Aliás, Jesus convida a perdoar. O perdão dá possibilidade para um futuro diferente, sem marcas das ofensas do passado, que devem ser esquecidas. Uma crença política que julga poder prescindir deste fundamento estará sempre em perigo de cair na idolatria. Não há acção humana que não necessite antes de tudo da redenção e da libertação do pecado 24.
3. Realidade e desafios actuais: inculturação à prova Não há qualquer dúvida que a Reconciliação é uma realidade pertinente na teologia e na Igreja que está em África. Assim, numa altura em que muitas ciências se dedicam, com entusiasmo, ao estudo sobre a «reconstrução de África» 25, pareceu-nos oportuno e legítimo considerar o papel da Igreja e da Teologia, em África, neste processo da reconstrução do continente, que deverá apoiar-se também na Reconciliação. Decididamente, quando o continente permanece mergulhado numa crise profunda, a teologia africana deve iluminar uma Pastoral eficaz para que não seja um «vazio». E a inculturação deverá ser evocada: neste contexto, deve-se considerar toda a cultura actual, onde o africano vive a sua fé. A cultura contemporânea deve dialogar com o Evangelho, pois o continente africano mudou de fisionomia. Passou do mundo primitivo para o mundo moderno, vivendo plenamente o processo da globalização. E a cultura, sendo tudo o que estrutura e afecta uma sociedade, os problemas que o continente enfrenta devem ser considerados: as marcas da modernidade, a pobreza, as guerras, a instabilidade política e económica, etc.. É, justamente, com esta África e a sua cultura, que o cristianismo deve dialogar para incarnar a sua mensagem 26. Este dado não representa uma grande novidade, pois, especialmente depois do Vaticano II, o desafio da Igreja tem sido este: acompanhar a marcha da sociedade com todas as suas vicissitudes. É com esta atitude que a Igreja se tem situado, organizando uma pastoral profética, que visa a denúncia das injustiças e da má gestão dos governos africanos, educando e convidando os fiéis a participar nas tarefas que visam a transformação da sociedade. Entre as iniciativas, destacam-se as Conferências Nacionais, projectos que, nos anos 90, assinalaram, de uma forma clara e directa, a participação da Igreja no processo da democratização de alguns países africanos 27. Nesta lógica, a inculturação do cristianismo em África deve também ter em conta a realidade económica e política, e os valores espirituais dos aspectos da cultura que podem ser
25
Cf. KOUVOUAMA, A., Modernité Africaine. Les figures du politique et du religieux, Paris, Paari, 2001, p. 59.
26
Cf. MATUMONA, Muanamosi, «Inculturação e Promoção Humana», in Diálogo, Testemunho e Profecia. Para uma Missão Ad Gentes no III Milénio, Lisboa, OMP, 2004, pp. 139-158 e Idem, Teologia Africana da Reconstrução, pp. 217-228.
27 Cf. MOREL, Yve, «Démocratisation en Afrique noire. Les «Conférences nationales», Études 3766 (1992), 733-743.
55
28
Sobre o tema veja: METZ, Jean Baptiste, Pour une Théologie du monde, Paris, Cerf, 1971, p. 159 e COSTÉ, René, Théologie de la paix, Paris, Cerf, 1997, pp. 283-284.
56
esquecidos. Avança-se, assim, com a ideia de uma inculturação libertadora, integral que implica uma responsabilidade moral dos cristãos perante o futuro do continente, para que os africanos assumam a responsabilidade de traçar o seu próprio futuro, tendo em conta o papel e o sentido da reconciliação. A realização da missão da Igreja de promover a reconciliação implica, necessariamente, uma pastoral forte e bem organizada, cujo modelo pode ser chamado de «Pastoral da Reconciliação». Esta funcionará para que a conversão individual e social seja um facto. Pois, a África precisa de homens (todos: povo e governantes ) reconciliados consigo e com Deus, para transformar a sua sociedade, porque só um homem reconciliado estará em condições de trabalhar em prol de uma sociedade africana nova e renovada. Sabendo que a pastoral é a organização e a prática concreta no seio das comunidades eclesiais, esta deve aproveitar as teses sobre a Reconciliação, defendidas pela teologia africana, que devem ser, criteriosamente, adaptadas e aplicadas ao contexto africano, para justificar e legitimar os projectos que visam a justiça e a paz. Mas, a paz em questão deve ser a Paz de Cristo, escatologicamente prometida e não privada ou parcial. Neste contexto, a Igreja deve incutir a esperança anunciada por Cristo na sociedade africana, actualmente «agitada» pela instabilidade política e económica. Será uma forma de discernir os sinais dos tempos à luz dos dados teológicos. Nesta ordem de ideias, a Pastoral da Reconciliação deverá situar-se no coração da pastoral social. Com uma prática eficaz, na medida em que a sua palavra será tomada a sério, a Igreja mobilizará realmente as consciências para uma conversão e para um empenhamento responsável, a fim de que o maior número possível de cristãos e de homens de boa vontade se tornem verdadeiros obreiros da reconciliação 28. Como sacramento de salvação, a Igreja, envolvida ela mesma na conversão, é pois sacramento de perdão, de reconciliação e de paz, e grande sinal de amor de Deus, um sinal que deve interpelar o povo, os políticos e a cultura, para que se orientem para a via da democracia, do pluralismo, do
respeito pelas liberdades fundamentais e pelos direitos do homem, valores que dignificam o homem e a sociedade. Porque, se o «remédio» visa suscitar as transformações profundas destinadas a uma renovação radical dos homens e da sociedade africana, a Igreja deve atacar as raízes e as causas do mal: o coração do homem que promove a guerra, as injustiças, as divisões e outros males. É só com este espírito que o homem africano pode conduzir o seu continente para a reabilitação 29. Nesta fase de reajuste, o discurso da Igreja sobre a reconciliação não pode continuar a ser abstracto, quando em África existem violações dos direitos humanos e outras mazelas. É necessário que haja um equilíbrio entre «espiritualidade» e «estratégia»: uma espiritualidade que se abre a estratégias concretas e a uma estratégia sustentada por uma espiritualidade. O contrário não funciona para alcançar a verdadeira reconciliação. Deve existir uma interacção mútua, de forma que a espiritualidade sirva de guia para a estratégia e esta, por sua vez, ajude a plasmar a espiritualidade na prática. Os condicionamentos políticos, económicos, sociais, culturais e religiosos impõem-se no devido contexto. Pelo que tem que se pensar: quem necessita da reconciliação, quais são os meios que podem ser usados para lograr os objectivos traçados e como será a situação final da reconciliação que servirá para reconstruir a sociedade. O ministério da reconciliação ajudará a Igreja a sanar tanto indivíduos como a sociedade dos seus defeitos, para que estes assumam os seus compromissos no âmbito do processo de reconciliação 30. No âmbito desta pastoral, há um ponto a considerar e que merece ser realçado: a educação para a promoção da cultura da justiça, paz e reconciliação, como meio para promover a aprendizagem dos valores da graça que se chamam mutuamente: o amor a Deus e ao próximo, abertura a Deus e ao outro, o diálogo, a cooperação, a partilha, a tolerância, o perdão, etc.31 A educação para a paz e reconciliação orienta para a acção, e seu âmbito de actuação supera o marco escolar. Deve promover habilitações que permitam traçar estraté-
29 Cf. M ÄNA , Ka, Christ d Afrique. Enjeux Éthiques de la foi africaine en Jésus Christ, Paris, Karthala, 1994, p. 53.
30 Cf. SCHREITER, R. J., op. cit., pp. 24-37, 180.
31
Cf. COSTÉ, René, «Les défis de la paix à l aube du III millénaire: quelles tâches pour l Église?», NRT 117 (1995), 332 e Idem, Théologie de la paix, 335-365.
57
32 Cf. PEINADO, M. M., op. cit., pp. 115-123.
gias para a acção transformadora da realidade a partir de um contexto. Uma tal educação chama uma mudança de coração, baseada no reconhecimento dos pecados com manifestações sociais e individuais, inculca uma maneira totalmente humana de viver na justiça, no amor e na simplicidade. A promoção desta educação é uma exigência. Dependerão dela a mudança radical e o sucesso de transformações pacíficas. A educação para a reconciliação tem de ser um esforço para consolidar uma nova maneira de ver, entender e viver o mundo, e de encarar o novo empenho para superar as desconfianças e as diferenças. É uma educação para a acção que deve levar o homem africano a transformar a situação de conflito num facto positivo de mudança 32. A promoção da paz, no horizonte da reconciliação, é uma responsabilidade de todas as esferas individuais e grupais. Engloba uma educação que contempla os valores da paz, solidariedade e justiça social, implicando uma maior compreensão das raízes da violência. Os espaços desta acção pastoral não devem ser apenas as paróquias e comunidades locais, mas também partidos políticos, organizações da sociedade civil e, de modo muito particular, todas as estruturas militares e meios de comunicação social para que estes esqueçam e ajudem a esquecer totalmente o passado dramático de África, para lembrar-se exclusivamente da reconciliação, que prestará um auxílio indispensável para alcançar, em simultâneo, a justiça e a paz, valores com os quais se pode reconstruir a sociedade africana.
Conclusão Esta nossa breve reflexão permite-nos entender a grande oportunidade que a Igreja de África tem para realçar a importância da Reconciliação na vida das suas comunidades e porque não, na vida dos seus países. Na medida em que o quadro sociopolítico do continente continua mais ou menos dramático, ninguém dúvida que a Reconciliação é uma via certa para sanar os males que afectam o povo africano, resultados também da 58
má governação Esta é a razão que motiva os teólogos africanos a priorizar a reconciliação na lista dos temas que envolvem a chamada «teologia africana», um tratado que, como vimos, já é aceite pelo Magistério, depois de uma caminhada mais ou menos tortuosa. É justamente esta teologia que deve ser considerada como mais um ponto de apoio da Pastoral da Igreja que está em África. Neste sentido, os africanos são chamados, nas suas comunidades, a promover, de uma forma clara e sem ambiguidades, a chamada Pastoral da Reconciliação, no contexto da inculturação, pois o Evangelho proclamado deve adaptar-se à realidade concreta, dialogando com os valores culturais. Num mundo dilacerado, obviamente marcado por uma série de males, a Boa Nova de Jesus surge como um bom «remédio» para transformar o continente e o homem africano, tendo como referência a Reconciliação, caminho que levará também à justiça e à paz. BIBLIOGRAFIA
a) Documentos da Igreja JOÃO PAULO II, «Discours aux êveques zairois», AAS, Vol. LXXV, n.º 8 (1 de Agosto de 1983), 652-658. IDEM, «Adhortatio Apostolica Postsynodalis Ecclesia in Africa», AAS, Vol. LXXXVIIII, n.º 1 (2/1/1996), 5-82. PAULO VI, «Allocutio», AAS, Vol. LXI, n.º 9 (30 de Setembro de 1969), 573-578. IBIDEM, Vol. LXVI, n.º 11 (30 de Novembro de 1974), 631-639. SACRÉE CONGREGATION POUR LA DOCTRINE DE LA FOI, Instruction sur quelques aspects de la «Théologie de la Liberation», Vaticano, 1984. SCEAM, «L Église famille de Dieu: lieu et sacrement de pardon, de réconciliation et de paix en Afrique. Lettre pastoral», DC 2262 (2002), 64-86.
SÍNODO DOS BISPOS, «A Igreja em África ao serviço da reconciliação, da justiça e da paz. «Vós sois o sal da terra Vós sois a luz do mundo» (Mt 5, 13.14)». Instrumentum Laboris, Vaticano, 2009. VATICANO II, «Constitutio Pastoralis De Ecclesia in mundo huius temporis», AAS Vol. LVIII, n.º 15 (7 de Dezembro de 1966), 1025-1120. b) Obras e Artigos ALSZEGHY, Z.; FLICK, M., Como se faz Teologia, São Paulo, Paulinas, 1979. COSTÉ, René, Théologie de la paix [Col. Cogitatio Fidei 203], Paris, Cerf, 1997. GEFFRÉ, Claude, Un nouvel âge de la théologie, Paris, Éd. Cerf, 1972. KOUVOUAMA, Abel, Modernité africaine. Les figures du politique et du religieux, Paris, Paari, 2001.
59
LÉON-DUFOUR, Xavier, Vocabulaire de Théologie Biblique, Paris, Éd. Cerf, 1962. MÄNA, Ka, Christ d Afrique. Enjeux éthiques de la foi africaine en Jésus Christ, Paris, Karthala, 1994. MARTO, António, «Para uma cultura da reconciliação e de penitência», Communio 2 (1989), 169-175. MATUMONA, Muanamosi, «Inculturação e Promoção Humana», in Diálogo, Testemunho e Profecia. Para uma Missão Ad Gentes no III Milénio, Lisboa, Obras Missionárias Pontifícias, 2004, pp. 139-158. IDEM, Cristianismo e mutações sociais. Elementos para uma Teologia Africana da Reconstrução, Uíje, SEDIPU, 2005. IDEM, A Teologia Africana da Reconstrução como novo paradigma epistemológico. Contributo lusófono num mundo em mutação, Lisboa, Roma Editora, 2007.
MOREL, Yve, «Démocratisation en Afrique noire. Les «Conférences nationales», Études 3766 (1992), 733-743. MUSHETE, Ngindu, «Breve historia de la Teología en África», in Itinerarios de la Teología Africana (Ed. Rosino Gibellini), Pamplona, Verbo Divino, Pamplona 2001, pp. 17-38. PEINADO, M. M., «Educación para la paz en el nuevo milenio», in Para uma cultura da paz (Org. José Manuel Pureza), Coimbra, Quarteto, 2001, pp. 105-126. RATZINGER, Joseph, Diálogo sobre a fé, Lisboa, Verbo, Lisboa, 1985. SCHREITER, R. J., El ministerio de la reconciliación. Espiritualidade y estrategías, Santander, Sal Terrae, 2000.
MAURIER, Henri, «La Théologie africaine francophone», Spiritus XXIII (1982), 227-245.
SEUMOIS, A., Teologia Missionaria, Bologna, Dehoniane Dehoniane, 1993.
MBARGA, Jean, «La culture évangelique de la réconciliation et du pardon», in Ressources culturelles pour la réconciliation et le pardon, Roma, Urbaniana University Press, 2007, pp. 41-49.
TRIPIER, P., La réconciliation. Un sacrement pour l espérance, Paris, Centurion, 1976.
METOGO, E. M., Théologie africaine et ethnophilosophie, Paris, L Harmattan, 1985.
VV. AA., Dês Prêtres Noirs s interrogent, Paris, Cerf, 1956.
METZ, Jean Baptiste, Pour une théologie du monde, Paris, Cerf, 1971.
60
MEWUDA, B.-W., «Ser autenticamente cristão permanecendo autenticamente africano», Communio 7 (1990), 460-467.
VANNESTE, A., «Théologie Africaine: Note historique», RTA, Vol. VII (1983), 272-275.
WIEDENHOFER, S., «A teologia política perante novas tarefas», Communio 4 (1995), 307-317.
Portugal como Nação europeia ou como Estado europeu: o dilema da sociedade dual no século XX português
Carlos Leone *
Se
Resumo: este artigo pretende apresentar de forma atendermos à História moderna sistemática uma apreciação da relação entre a de Portugal (tomando como referência vida cultural e intelectual portuguesa no século para o início da modernidade 1385) XX e as transformações ocorridas no país nesse para considerarmos a relação do país período, afectando a nossa relação com a Europa quer como nação quer como Estado. Pretende-se com a Europa no século XX, seremos integrar esta apresentação das transformações levados a afirmar que entre 1910 e 1985 sociais em Portugal numa interpretação mais (os termos do essencial do século XX ampla da História de Portugal, de que se dá conta de forma sumária na introdução. português) se procedeu à resolução de Palavras chave: Nação; Estado; Portugal; Europa; um conjunto de disputas sobre o que é sociedade dual. Portugal como nação e qual a relação que Portugal mantém, como Estado, no concerto europeu actual. Essas disputas não terminaram, mantêm-se mesmo em grande medida inalteradas desde há séculos, são em grande medida irresolúveis e respeitam sobretudo à consciência nacional e à relação que esta mantém com o contexto Europeu há sempre várias noções de nação portuguesa e de Europa em jogo, nesta questão. O século XX, contudo, logrou criar uma solução institucional para a relação Portugal Europa na forma da definição do Estado, que de império colonial passou a membro da União Europeia (CEE, em 1985). Como todas as soluções políticas, é transitória. Mas, como todas as soluções institucionais, diz-nos algo de relevante sobre o consenso que se obteve, ao cabo de um século decisivo na História de Portugal como foi o anterior, a respeito do país e da sua relação com a Europa dos nossos dias.
* Licenciado em Filosofia e doutorado em História das Ideias FCSH Universidade Nova de Lisboa.
Brotéria 169 (2009) 61-82
61
A reflexão dos autores portugueses do século XX foi atenta a este processo, participando dele, aliás, de modo decisivo. Foi neste século que emergiram de forma consolidada, entre nós, as ciências sociais e humanas e, simultaneamente, se procedeu a um acréscimo na escolarização sem precedentes. Estes processos, bem como as evoluções políticas que se registaram, reconfiguraram a consciência nacional, a definição do país, a relação com o exterior, mas não aboliram o «Portugal histórico» que António Sérgio verberava a Jaime Cortesão e que tantos outros ainda hoje estimam. Em rigor, nem isso seria possível e, além do mais, haveria que determinar se a imagem de um Portugal vergado ao peso de uma História mitificada é, sequer, adequada. Este ensaio compõe-se de três partes: uma introdução que integra o século XX na modernidade portuguesa; uma caracterização dos principais entendimentos de Europa entre 1910 e 1985 (e imagens de Portugal associadas a essas imagens da Europa); uma nota final sobre os limites da recriação de Portugal e sua «sociedade dual» no século XX.
1. Uma hipótese de trabalho: o século XX português como sinopse de uma modernidade atribulada A perspectiva adoptada neste ensaio dá como boa uma narrativa particular sobre a relação entre Portugal e a Europa, a saber, a que pretende justificar a própria existência de Portugal na sua integração europeia e não em qualquer excepcionalismo lusitano. Isto não significa que o destino (termo desde logo impróprio) do país se deixe revelar em qualquer fórmula de âmbito europeu aplicável mecanicamente a Portugal. Significa, sim, que tentaremos aqui dar conta da modernidade portuguesa (de 1385 a 1986) como um processo de europeização, conduzida de diversas formas (por vezes contraditórias entre si) e com resultados bastante díspares. Deste modo, a contemporaneidade fica limitada ao período posterior a 1985, em que actualmente nos encontramos e no qual a pertença europeia é dada como adquirida mesmo pelos seus detractores, período que caberá a outro texto abordar. 62
Esquematizando de forma muito genérica, podemos dividir a nossa modernidade em dois grandes períodos, comummente aceites na historiografia dedicada à Europa: «inicial» e «tardia». Por modernidade inicial referimo-nos ao período entre 1300 e 1700; por modernidade tardia, ao período posterior, até final do século XX. Naturalmente, esta periodização pode ser ainda desagregada (reservando termo «tardia» apenas para a segunda metade do século XX, como é usual nas ciências sociais, por exemplo), mas para efeitos de apresentação de uma hipótese de trabalho, esta divisão basta-nos. A hipótese que aqui trabalhamos compõe-se de um elemento que aqui não será testado e de outro que encontra no século XX ampla matéria documental, a saber, em primeiro lugar, terá sido na modernidade inicial que as principais imagens de Portugal como nação e os principais modos de relacionamento com a restante Europa se firmaram; em segundo lugar, a partir do século XVIII encontramos uma constante discursiva sobre Portugal, focada não tanto na nação como na sociedade e muito em particular no papel do Estado, constante essa que radicaliza certos pressupostos anteriores e que conforma a imagem decadentista de Portugal, ou, mais exactamente, a imagem de Portugal enquanto distinto da Europa, algo que será o casus belli da reflexão sobre Portugal no século XX e que será objecto de uma viragem em 1985, não obstante essa data também não significar uma refundação de Portugal nem o fim da sociedade dual que está na origem da reflexão moderna (desde o século XVIII) sobre Portugal. 1.1. Três datas para uma modernidade inicial Se tivermos de eleger datas capitais neste período entre 1300 e 1700, três anos são incontornáveis: 1385, 1580 e 1640. O primeiro, pela resolução de uma crise dinástica que lança Portugal para uma expansão marítima crucial no desenvolvimento do país e da Europa; 1580, pela resolução de novo problema de sucessão ao trono, integrando Portugal, de forma condicionada (enquanto monarquia dualista), no projecto Filipino de 63
consolidação de um poder ibérico de dimensão europeia; 1640, por fim, por de novo dar início a uma dinastia reinante e a um tempo histórico marcado pela distinção de Portugal e do seu Império, desta feita quer relativamente a Espanha quer relativamente aos outros poderes da Europa moderna. Poder marítimo, poder continental, poder isolado, a consciência de Portugal como nação sempre se fez de uma referência à Europa. O que 1640 trouxe de novo, em particular a partir do século XVIII, foi uma consciência desta série de mutações como forma de decadência. Sempre se fizera sentir (logo desde Gil Vicente, pelo menos) uma crítica ao despovoamento do Reino por força da empresa marítima; do mesmo modo, sempre se fizera sentir um descontentamento com a situação resultante dos limites da Expansão e com a união com a Coroa espanhola; e mesmo a Restauração não se fez sem uma consciência da tarefa imensa que era a reassumpção da dimensão imperial própria. Em todos os momentos, a percepção de uma relação entre a nação portuguesa e as demais europeias (não apenas Espanha) esteve presente. Primeiro como sendo Portugal parte maior de um projecto expansionista. De seguida, na forma de uma união ibérica, e católica, perante a afirmação de poderes protestantes do Norte da Europa. Por fim, na consciência da situação autónoma mas periclitante entre Espanha e Inglaterra da nação portuguesa na sua relação com a Europa moderna, já sentida como distante no tempo das Luzes. 1.2. De Pombal até à CEE, uma mutação no discurso sobre Portugal Aquela evolução da consciência nacional portuguesa, e a sua ligação intrínseca à relação entre Portugal e Europa, altera-se de forma sensível no século XVIII. Quando, somando-se a uma já então longa tradição decadentista (de que não apenas as Trovas de Bandarra mas também, a seu modo, Os Lusíadas pertencem), se forma um discurso influente (social e politicamente) que postula o atraso e o isolamento de Portugal face à 64
Europa moderna, dando esse estado de coisas como o principal problema do país que competiria ao Estado resolver, encontramos já a modalidade específica de relacionamento de Portugal e a Europa que ainda hoje nos é familiar e que matizou a reflexão sobre Portugal no século XX, em particular a reflexão sobre Portugal como Estado. Desde Pombal, e de forma nítida mesmo entre críticos de Pombal, os partidários portugueses da modernização social pensam no Estado mais do que na Nação. Isto é, concebem a modernização como um projecto instrumental que não carece de justificação pois se auto-justifica moral e praticamente pela condição de menoridade (material e civilizacional) descrita pelo discurso isolacionista sobre Portugal desde final do século XVI. Deste modo, no pombalismo (e mesmo depois), no Liberalismo, na I República e ainda no Estado Novo, encontramos a mesma inabalável crença em Portugal enquanto realidade política específica, diferenciada da Europa moderna, situação relativamente à qual cabe ao Estado agir (nem sempre de modo a integrar o país nessa realidade, como é sabido). Só depois de 1974, justamente no momento histórico do final do Império restaurado em 1640, se assiste ao reorientar da consciência nacional para uma nova relação com a Europa, também aqui no sentido de uma pertença percepcionada como solução para séculos de isolamento e atraso, também aqui num processos de integração conduzido pelo poder do Estado. Não curamos aqui de determinar qual a veracidade desta narrativa do isolamento de Portugal, apenas constatamos a sua relevância na reflexão sobre Portugal, como nação e como Estado, desde meados do século XVI (no mínimo). Interessa-nos, sim, atender aos modos como esse discurso foi prosseguido, criticado, reformulado e, por fim, desde 1985, reduzido a uma polémica histórica (sempre passível de reacendimento junto da consciência nacional, mas até hoje sempre enquadrado por uma integração do país nas instituições europeias que retira a essa polémica consequências sociais relevantes). O século XX que aqui nos interpela, entre 1910 e 1985, é portanto o final (até ao momento) de uma discussão de Portugal 65
enquanto nação e estado europeus que constitui o discurso sobre a nossa identidade colectiva desde há séculos. O centro da nossa atenção será o confronto entre diversas noções de Europa que se verifica em Portugal durante o século XX e o que o que cada uma dessas noções significa na reflexão sobre Portugal enquanto Estado, e, por vezes, também enquanto nação. Naquilo que tem de encerramento de polémicas antigas e naquilo que conseguiu criar como seu, o século XX sintetiza de forma original não só a História moderna de Portugal enquanto Europa mas igualmente enquanto anti-Europa. E, há motivos para crer, anuncia já muitos tópicos da contemporaneidade (isto é, do período posterior a 1985).
2. Imagens da Europa e reflexos de Portugal Para maior clareza de exposição, vamos subdividir a nossa apresentação da relação entre Portugal e Europa no século XX (nos termos acima descritos) em dois grandes momentos: o primeiro (2.1), foi o da formação e desagregação da I República, o da ditadura militar que se lhe seguiu e ainda o da afirmação do Estado Novo, ou seja, compreende o período 1910-1945; o segundo (2.2), foi o do imediato pós-II Guerra Mundial, o das crises das décadas de 1960 e 1970 e termina, já em 1985, com a adesão à Comunidade Económica Europeia, isto é, abrange o período 1945-1985. Pela sua extensão similar, continuidade e sequência cronológica, os dois períodos iluminar-se-ão ainda mutuamente, pois não só se tornará assim visível a evolução de discussões sobre Europa e Portugal entre um e outro, como o significado dessa evolução será articulável com o quadro maior que esquematizámos já («1»). 2.1. A refundação do Estado e as influências europeias O ano de 1910 representa na História de Portugal um momento de refundação. Mesmo os adversários mais aguerridos da implantação da República de imediato o reconheceram (pensa66
mos desde logo no integralista António Sardinha, entre outros). Para melhor aferir o âmbito e o significado de tal refundação, contudo, importa determinar-lhe as ambições e os objectivos que cumpriu. Se a retórica republicana portuguesa se fez, desde o século XIX e até bem depois a instauração do novo regime, em nome da nação, a sua acção política desde muito cedo se regeu pelo interesse no domínio do aparelho de Estado como modo privilegiado de levar a cabo o seu programa. Como já referimos, esta transição do discurso identitário português da Nação para o Estado é um processo com uma história multissecular, no qual a I República participa mas não controla. Com efeito, ao ter de se confrontar com as responsabilidades da condução política quotidiana, o Partido Republicano (uma designação cujo sentido forte ou até, talvez, legítimo se esgotara, afinal, juntamente com a Monarquia) rapidamente privilegiou a intervenção do Estado junto da sociedade, da qual terá ficado até hoje na nossa memória colectiva a aposta na educação sintomaticamente um tópico do pós-25 de Abril de 1974. Isto significa que a bem conhecida refundação republicana de Portugal foi em primeiro lugar uma reorientação do aparelho de Estado sob o impulso ideológico do Partido Republicano. Integra-se portanto numa longa tradição moderna portuguesa, promovida pelo menos desde o consulado pombalino, de substituição do Estado à iniciativa da sociedade civil no sentido de promover, regular e, se necessário, determinar impositivamente alterações de monta nas mais diversas esferas da sociedade: educacional, cultural, religiosa, económica e um vasto (e discutível) et caetera. A procura de reconhecimento internacional da I República e as dificuldades que conheceu para o obter (desde logo pela «velha aliada» Inglaterra, cujo ultimato de 1890 tão útil tinha sido à propaganda republicana da época) ilustra a importância que o novo regime atribuía ao reconhecimento externo (maxime europeu) da legitimidade da sua existência e acção. Com efeito, nem entre partidários nem entre adversários da República se fizeram sentir com influência teses catastrofistas quanto ao futuro da nação, pelo menos não mais 67
do que até aí já se manifestavam na cultura (literária, artística e política) de finais de Oitocentos, início de Novecentos (reconheça-se, aqui, que o tema era então relevante). Notamo-lo para insistir na dimensão estatal e não nacional daquela refundação republicana: a História, a integridade territorial, a legitimidade colonial, enfim, a tradição viva da nacionalidade (a sua consciência), não conheceram um abalo generalizado; foi ao nível da definição do regime político e da sua esfera de actuação junto da sociedade no seu conjunto que em 1910 se refundou Portugal, pois a I República afirmou-se pela dimensão de envolvimento cívico com traços de revolucionarismo (ao menos retórico) com os seus cidadãos ou, pelo menos, com alguns sectores influentes da sociedade portuguesa (em particular urbanos e suburbanos). Para tanto, importava não polemicar com a Nação e explorar o poder do Estado, para isso cumpria integrá-lo numa rede de alianças à escala europeia que lhe salvaguardassem a legitimidade e garantissem o Império. A entrada na I Guerra Mundial ao lado de Inglaterra foi mais imposta a esta do que por ela procurada. Visou (e com sucesso) acolher Portugal debaixo da protecção inglesa, necessária à defesa das colónias africanas de possíveis ataques alemães e, não menos importante, envolver a população e as instituições portuguesas num grande confronto que, apesar de Mundial, foi sobretudo europeu. A união nacional assim congregada em torno do novo regime, defendia-o não só de ameaças exteriores mas também de confrontos interiores. Foi portanto num cenário de alinhamento europeu (anglófilo e francófilo) determinado pela defesa dos interesses do novo regime republicano (compagináveis com a tradição nacional que o precedia) que se assistiu ao florescimento, já visível de forma nítida em 1915, de concepções de pertença europeia concorrentes e a concomitantes imagens de Portugal. Seguindo aqui trabalho anterior (Leone 2005, vol. 2, parte I), vamos esquematizar essas correntes próprias do Portugal da I República: 68
Oposição declarada ao novo regime, promovida pelo Integralismo Lusitano através dos seus diversos órgãos 1, promovendo em alternativa uma concepção de monarquia de cariz absolutista. A concepção altamente mitificada da história nacional e a crença na capacidade de um Estado restaurado (como monarquia absoluta) para resgatar Portugal aos problemas da modernização vão estar ideologicamente na origem das forças sociais triunfantes no derrube da I República e, depois do período ditatorial, na afirmação do Estado Novo como reaccionário. Não sendo descendentes directos do Integralismo, os movimentos católicos e conservadores que dominarão o Estado português desde final da década de 1920 foram a sua consequência (ideo)lógica relevante e estarão alinhados com a hora europeia 2 de entre-as-Guerras. Há ainda muito por estudar na reflexão política portuguesa destas décadas, mas foi um período invulgarmente fecundo e complexo a nível da concepção do Estado e suas instituições, bem como das relações a estabelecer internacionalmente 3. Desinteresse radical pelo regime e sentimentos ambivalentes mas violentos pela tradição nacional, em particular pela realidade colonial, marcam por outro lado a intervenção pública do modernismo português, a partir de 1915. A natureza artística do movimento explica-o em parte, tal como as idiossincrasias pessoais dos seus autores. Em todo o caso, a ligação ao modernismo (futurismo) europeu é manifesta, quer nas formas utilizadas (manifestos, programas) quer na concepção artística (literária, sobretudo, com os tópicos da violência, da velocidade, etc. bem presentes). É em nome dessa ligação ao futurismo europeu que Pessoa qua Campos verbera o presente colonial de Portugal e a sua pobreza, mas sem nunca desenvolver um projecto político consequente (que nunca procurou, de resto).
1 Uma apresentação sucinta da plêiade de título do movimento encontra-se em: SOVERAL, Carlos Eduardo de, Nação Portuguesa, vol. 3 (1997) 696-699.
2 Cf. LOFF , M., O nosso mundo é fascista!, Porto, Campo das Letras, 2008.
3 Cf. para um estado da arte TEIXEIRA, A. Braz, Conceito e formas de democracia em Portugal e outros estudos de história das ideias, Lisboa, Ed. Sílabo, 2008. MESQUITA, A. P., Salazar na história política do seu tempo, Lisboa, Caminho, 2007.
Afastamento espiritual da decadência de valores do Norte da Europa (percepcionado como progredindo apenas materialmente) e promoção de uma espiritualidade especifica69
4
Cf. SAMUEL, P., A Renascença Portuguesa um perfil documental, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1990.
mente portuguesa que seria bem diversa da que vigorava na restante Europa, assim se fez, por seu turno, o projecto cívico da Renascença Portuguesa 4. Esta oposição à Europa não se fazia de nenhum retorno a passado político português mitificado, no entanto. O saudosismo, embora menos definido politicamente que o Integralismo, integrava-se também numa tradição portuguesa de feição pronunciadamente cultural. Herdeira de uma literatura que remontava à Idade Média, o seu lastro social mais próximo era o do neogarretismo da viragem do século, fecundado pela iniciativa de poetas como o jovem Jaime Cortesão e, sobretudo, Teixeira de Pascoais. O meio cultural nortenho, em particular portuense (tutelado por figuras como Sampaio Bruno, por exemplo) contribuíram fortemente para que se formasse na primeira década da I República um grupo muito activo e vocacionado para a instrução popular assim em linha com inspirações republicanas centrais mas sem um projecto político-social definido (aliás, recusando explicitamente formular tal projecto), limitando-se a uma crítica da política republicana nos seus aspectos mais materiais e quotidianos. Crítica social, por seu turno, foi o essencial da corrente saída do órgão da Renascença (A Águia) e organizada em torno das figuras de Raul Proença, António Sérgio e, pouco depois, Jaime Cortesão. O «grupo da Biblioteca» (Nacional), que esteve na origem da Seara Nova, até à década de 1930, partilhava a crítica acerada à política republicana, mas não em nome de uma espiritualidade nacional exclusivista, antes sim radicalizando as suas premissas: propaganda da modernidade técnica, defesa da organização moderna do Estado (de Direito, republicano e democrático), integração da História nacional no concerto europeu das nações e reforma do sistema educativo, conformidade à organização administrativa (logo, também colonial) do Estado português, promoção das actividades individuais e colectivas de tipo cívico (cooperativismo e associativismo, sob grande impulso de Sérgio) emuladas a outras tradições culturais, valorizando em particular a inglesa. De todos
70
os grupos, foi o mais claramente europeísta, o mais consistente e duradouro, partindo nos seus primórdios de uma posição dada como ultrapassada (o liberalismo oitocentista revisto) e formando sucessivas gerações até ao seu triunfo ideológico com o derrube do Estado Novo. Entre todos estes (e outros, menos representativos) grupos, muitos conflitos e muitas polémicas se geraram, bem como ocasionais tentativas, fugazes e mal logradas, de união de esforços em defesa da nação face à desagregação (ingovernabilidade) da I República 5. Todavia, com o advento de um golpe militar bem sucedido, de 1927 a 1933 Portugal foi governado por uma ditadura militar que conheceu oposição desde o exterior (cf. em particular a Liga de Paris 6). Num período também ele muito conturbado internacionalmente, a reflexão sobre Portugal e Europa ocorreu sobretudo no domínio crítico e artístico, com o advento do movimento da Presença, cuja revista surge em 1927 e atravessa toda a década de 1930, em diálogo com visões mais positivas e convencionais da modernidade (em particular a da Seara) e em confronto com a emergente geração «neorealista» que, nos seus órgãos próprios e também na Seara que entretanto começa a influenciar, advoga contra o Estado Novo um comprometimento intelectual e cívico não de tipo pedagógico ou crítico, como seareiros e presencistas praticavam, mas abertamente político 7. O surgimento de uma geração (filo)comunista é igualmente o surgir de uma imagem de Europa nova na cultura portuguesa, escapando aos modelos demoliberais francês e inglês dominantes nas elites culturais portuguesas, progressistas e reaccionárias. Em rigor, essa nova Europa, enunciada muito claramente no ensaísmo de Bento de Jesus Caraça 8, é pensada sub specie soviética e isso, muito particularmente num país submodernizado como Portugal persistia sendo, significava um pensamento revolucionário para a sociedade portuguesa mas ainda e sempre por intermédio do poder de Estado, grande modelador do desígnio colectivo. A influência social desta Europa (mitificando ela própria a realidade sovié-
5 De que o exemplo mais claro será a empresa da Revista dos Homens Livres.
6
Cf. MARQUES, A. H. Oliveira (dir.), A unidade da Oposição à Ditadura, 1928-1931, Mem-Martins, Publicações Europa-América, 1973.
7 Para uma panorâmica recente, cf. VVAA, Revistas ideias e doutrinas, Lisboa, Livros Horizonte, 2003.
8 CARAÇA, B. de J., Cultura e Emancipação (Obra Integral de B. J. C., vol. 1, coord. A. P. Pitta), Porto, Campo das Letras, 2002.
71
9
Por todos, cf. SOUSA, Marcelo Rebelo de «Estado de Direito», in SERRÃO, J., (dir.), Dicionário de História de Portugal, «Suplemento», vol. 7, Lisboa, Figueirinhas, 1999. Há consenso na situação em que de facto o estipulado de direito, constitucionalmente, sobre direitos liberdades e garantias dos cidadãos foi letra morta face à legislação ordinária que efectivamente é aplicada pelo Estado Novo.
10
Já a fórmula «catolaicismo» (Braga de Macedo) designa bem muito do espírito deste Estado Novo, como casos concretos bem ilustram (cf., por todos, o muito simbolicamente europeísta Sílvio Lima: LEONE, C., O Essencial sobre Sílvio Lima, Lisboa, INCM, 2004.
72
tica) nunca será suficiente para alterar a sociedade portuguesa nem, sequer, controlar o aparelho de Estado; mas constituiu-se como força opositora ao Estado Novo mais significativa, tanto por mérito da sua organização interna como pelos limites do ideário progressista da oposição republicana tradicional e suas debilidades organizativas. Voltaremos a estas questões e ao que elas significam mais tarde. Neste momento, importa reter alguns aspectos definidores do Estado Novo, vários dos quais muitas vezes subapreciados: a ligação ao regime espanhol instaurado por Franco, significou um reavivar de uma tradição de pensamento ibérico que vê as duas nações (concretamente, no caso, os dois regimes) como gémeos, pelo que o isolacionismo do regime salazarista foi pensado face à Europa. De facto, mesmo se a hora europeia parecia ser de irresistível ascensão do fascismo, nunca o Estado Novo prescindiu do que os especialistas denominam Constituição Semântica 9, ou seja, a manutenção formal de um regime político republicano caracterizável como Estado de Direito 10, sem divagações restauracionistas de tipo monárquico nem radicalismo totalitários. Na génese do Estado Novo, como já mencionámos, deu-se um debate teórico relevante e raro na nossa História, do qual até hoje se retém a referência, indubitavelmente real, do corporativismo de extracção mussoliniana; não obstante, a organicidade da democracia merece ser pensada a sério, dado ela ter a sua origem em disputas teórico-ideológicas sobre a melhor forma de governo (sempre concebido republicanamente) que foram mantidas entre autores portugueses nos quais se contam os mais qualificados ao tempo, desde liberais a conservadores. O Estado Novo vinga na década de 1930 num contexto ibérico e europeu que o favorecia mas persiste no pós-guerra não apenas como anacronismo mas também como uma defesa do conservadorismo instalado no poder político face a uma Europa (e Ocidente) em evolução rumo a um laicismo e a um novo liberalismo (de feição social democrata) em tudo avessos à própria concepção do Estado português (como império colonial) e à sua prática política profundamente endocolonial.
Em comum com as imagens de Europa do século XX que lhe são anteriores, o salazarismo tem a percepção da Europa como problema para Portugal. Ou pela distância (grupo seareiro, primeiro e segundo modernismo, neorealistas) ou pela excessiva intromissão da Europa moderna transpirenaica em Portugal (integralistas, saudosistas), toda a reflexão original do século XX português sobre Europa concebera Portugal como dependente de um certo modo da influência exterior. Com o Estado Novo, o problema é resolvido a partir do poder de Estado (e à custa do Direito que formalmente o legitimava), primeiro com a associação a uma nova ideia de Europa (ligando-se privilegiadamente a Espanha e a Itália) e de seguida, derrotada a ideologia fascista, adoptando explicitamente o isolamento que, ambiguamente, promovera durante a II Guerra Mundial. O surgir de uma nova Europa, ela própria dividida entre dois modelos sócio-ideológicos bem distintos, com o final da II Guerra Mundial, vai assim obrigar a diversas formas de compromissos por parte do Estado Novo (abandono do termo Império, reforma do Acto Colonial) que, no entanto, serão insuficientes para reformar por via estatal o regime. Desta forma, e de um modo original na modernidade portuguesa, a pressão de acontecimentos externos apoia a formação de grupos organizados na sociedade civil que, a partir de perspectivas diversas sobre Portugal e sua relação com um dado modelo de Europa, vão definir os termos dessa relação na segunda metade do século XX português. 2.2. Do Estado à sociedade, o europeísmo ou Portugal como modernização A bipartição mundial resultante do desfecho da II Guerra Mundial alterou significativamente o próprio conceito de Europa, cada vez mais aberta e integralmente subsumido no de Ocidente. A oposição ao Leste europeu sob domínio soviético (e, posteriormente, a um outro Leste, chinês) definiu em termos internacionais a Europa enquanto Ocidente e, com isso, permitiu 73
uma adaptação do Estado Novo: desavindo do laicismo, do democratismo, do capitalismo e do humanitarismo ocidentais, estava no entanto a ele ligado do ponto de vista mais amplo e convenientemente vago dos «ideais e valores» (históricos, religiosos, além de geográficos, claro); ao Estado português do terceiro quartel do século XX serviu bem o encapsulamento dessa ideia ocidental, o comunismo, na órbita de Leste, pois garantiu-lhe um inimigo interno de confiança (organizado mas fraco, o PCP) e conferiu-lhe um lugar, ainda que de retaguarda, na comunidade ocidental (crescentemente dissociada do colonialismo e do modelo ditatorial), tudo isto sem reais custos, dada a distância física e a insignificante influência do sovietismo em Portugal. No novo contexto, a oposição republicana, ainda representada por vultos críticos da I República entretanto envelhecidos (Cortesão, Sérgio, Vieira de Almeida, etc.) desenvolveu desde 1945 até 1958 constante actividade dentro da estrita e arbitrária «legalidade», no sentido de derrubar o regime por dentro. A mais conhecida e eficaz dessas iniciativas foi justamente a última de relevo, a candidatura presidencial do General Humberto Delgado. Escolha significativa da estratégia corrosiva seguida pela oposição legalista, Delgado fora um dos tenentes do 28 de Maio de 1926, facto a que repetidamente se referiu em campanha para se legitimar, no sentido de estabelecer credenciais da sua candidatura entre os sectores mais conservadores da sociedade portuguesa. No entanto, Delgado embarcara na candidatura após uma experiência militar na sede do Ocidente do pós-II Guerra Mundial, os EUA, que o marcara de forma indelével. A sua candidatura constituiu uma subversão do isolamento do Estado português a partir do aparelho de Estado, desde o seu pilar primordial, os militares. Pouco esclarecido ideologicamente, sempre pronto a adoptar atitudes caudilhistas, os traços da sua persona política conciliavam aspectos típicos da I República com novidades da cultura política posteriores a 1945, em especial no que ao envolvimento directo com a população e ao lado espectacular da sua intervenção pública respeitava. O sucesso que obteve 74
e que só ilegalmente lhe foi negado permite marcar com precisão no tempo histórico o passamento de qualquer adesão geral mesmo que por inércia a uma imagem de Portugal como isolado da Europa e, simultaneamente, de qualquer imagem de Portugal como reduto do conservadorismo social e da contra-revolução política 11. Não por acaso, este período marca o início (que se estenderá até 1974) de um surto imigratório da maior importância na História portuguesa 12. Nele destaca-se o impressionante rol de intelectuais (artistas, cientistas, docentes, políticos) que desfalcam Portugal da maior parte da sua massa crítica dedicada à reflexão (e acção) sobre a relação entre o país e a Europa. Hoje retém-se o percurso de Eduardo Lourenço, pensador maior da segunda metade do século XX português e que tantas vezes elegeu como sua preocupação a relação de Portugal quer com a Europa quer com Espanha em particular 13. Mas, sem de modo algum diminuir a figura e a reflexão de Lourenço a este respeito, importa salientar a sua integração num movimento mais vasto, social e intelectualmente, no qual se cruzam no exterior de Portugal (e por regra no Ocidente que expande a Europa, seja na América do Norte seja na do Sul) numerosos autores de várias gerações que partilham essa procura de um modo de vida livre dos constrangimentos impostos pelo poder de Estado aos portugueses, contra a realidade europeia (ocidental). A reflexão sobre Portugal e a Europa, contudo, nunca se extinguiu no interior do país. Este mesmo período, bem como a década de 1960, é marcado em Portugal pelo surgimento de uma geração católica (ou, a seu modo, catolaica) que antecipa vários traços do que virá a ser o Concílio Vaticano II, ainda que sem nunca se constituir como uma alternativa às forças que sustentavam o regime. Sob a figura intelectual tutelar do Pe. Manuel Antunes 14, surgem numerosas organizações católicas com um espírito muito diverso do dos movimentos de entre-as-Guerras que haviam formado o solo do salazarismo, com destaque para a Juventude Universitária Católica, de onde surgirão personalidades como Maria de Lourdes Pintasilgo ou
11
Isto não invalida que entre círculos sociais restritos e mesmo selectos, até socialmente influentes não se tenha prosseguido a visão radicalmente crítica da Europa moderna, em particular no chamado grupo da «Filosofia Portuguesa». Contudo, os pressupostos filosóficos díspares entre membros deste grupo obstam a uma simples catalogação da «Filosofia Portuguesa» e, também eles, contribuíram para uma escassa influência propriamente política.
12
O que não é dizer pouco: veja-se SERRÃO, J., Emigração Portuguesa, (3.ª ed.), Lisboa, Livros Horizonte, 1977, para uma panorâmica histórica.
13
Sobre Lourenço e a sua evolução ao longo do meio século que a sua Obra já leva, FRANCO, J. E., «Espelho e Mito: a ideia de Europa em Eduardo Lourenço» Colóquio-Letras 170 (Jan/Abr 2009), 307-317.
14
Cuja Obra Completa (ainda em publicação) reúne um conjunto de trabalhos dedicados a temas europeus e portugueses quase único entre a intelectualidade nacional e (como numerosos testemunhos demonstram) desde cedo com grande influência entre católicos e não católicos.
75
15
Sobre O Tempo e o Modo, cf. a antologia (2003); sobre o movimento em seu redor, COSTA, J. Bénard da, Nós, os vencidos do catolicismo, Coimbra, Tenacitas, 2003.
76
Adérito Sedas Nunes. A sua acção, antes de chegar, já próximo do 25 de Abril de 1974, a uma oposição pública ao Estado Novo, será não apenas especializada em meios técnicos e académicos, mas também visará o grande público, se assim se pode dizer, através da revista O Tempo e o Modo, promovendo o debate de temas «ousados» (Deus, casamento, etc.) e devolvendo aos leitores autores exilados ou marginalizados 15. A inspiração numa doutrina social da Igreja alinhada com os valores do pós-guerra, antes mesmo do Vaticano II, alinhava este catolicismo progressista com os valores liberais triunfantes no Ocidente; a sua condição de católicos, tolheu-os sempre, em particular como colectivo, de qualquer acção concertada, teórica ou prática, no sentido de contrariar os termos impostos pelo Estado Novo à consciência nacional. Mesmo o episódio da «primavera marcelista» não alterou significativamente estes dados. Não apenas por a mudança política ter sido superficial, mas sobretudo por o tempo de auto-reforma ter já passado. Tal como o Estado Novo não se podia auto-reformar nem ser reconvertido por dentro pelos cristãos progressistas críticos do corporativismo, também a alternativa ultramontana de um retorno à Monarquia para resolver a sucessão de Salazar, falhara. Os sectores (variavelmente) conservadores próximos do regime sofreram com a crescente insularidade deste nas relações internacionais e isso reflectiu-se no carácter pessoal e não vinculativo do ponto de vista institucional das reflexões de autores como Sedas Nunes e Manuel Antunes sobre Portugal e sua relação com a Europa. Os anos da década de 60 marcam também uma influência do comunismo e da extrema-esquerda em crescendo nos meios estudantis. Fortes pela durabilidade do regime soviético e pelo surgimento na cena internacional da China comunista, os movimentos comunistas (pelo menos desde 1962) e de extrema-esquerda (desde 68) adquiriram uma visibilidade e influência entre a juventude, sobretudo a partir de redes estudantis liceais e universitárias que a parcelar liberalização do regime no final da década de 1960, veio potenciar. Em rigor, as condições sociais para uma radicalização ideológica da
juventude das classes médias estavam reunidas: crescimento económico com consequente acesso a bens de consumo e de comunicação social, ameaça de mobilização para um conflito colonial sem perspectiva de vitória, opressão política interna, tudo se conjugou para que a imagem soviética da Europa surgida na década de 1930 se fortalecesse (no que o controlo da Seara Nova foi capital) e para que novas inspirações (chinesa, sobretudo) desabrochassem. No seu afastamento face à realidade social do país no seu todo, delas não surgiu nenhuma reflexão sobre Portugal que se consolidasse 16 e nunca o seu ideal de Europa vingou quer na nação quer no Estado portugueses. Contudo, os meios universitários e técnicos (em crescendo com o aumento de uma classe média urbana desde a década de 1950) não se limitaram a reconfigurar alternativas previamente existentes (católicos, comunistas, republicanos). Gerou-se na década de 1960 uma tecnocracia que animou a primavera marcelista e que transitou para a democracia com a legitimidade política assente no seu combate institucional pela integração em estruturas internacionais europeias que forçassem a modernização do regime e, assim, da sociedade (uma estratégia, aliás, prosseguida depois do 25 de Abril pelos partidos com funções de governo, sem excepção). Na Universidade, assistiu-se a uma transição da influência social, intelectual e institucional das Letras para as Ciências Sociais (e Económicas) que, a par com a manutenção das Faculdades de Direito como alfobre da «classe política» portuguesa, permitiu uma transição suave do ponto de vista ideológico de um regime para o outro. Este facto é geralmente obscurecido pela atenção prestada à retórica revolucionária do período 1974-1976, em grande medida tonitruante, precisamente por ser nada mais do que isso. Contudo, se se atentar aos percursos profissionais mais do que às declarações ideológicas, facilmente se constata como as relações sociais (familiares, escolares, associativas, etc.) ditaram sempre com maior relevância a consciência do que é Portugal e de como se relaciona com a Europa do que qualquer outro factor. A adesão à CEE foi algo natural numa
16
Pese casos singulares como o de PEREIRA, João Martins, Pensar Portugal, Hoje, Lisboa, Dom Quixote, 1971; Idem, Indústria, Ideologia e Quotidiano, Porto, Afrontamento, 1974; Idem, O socialismo, a transição e o caso português, Amadora, Bertrand, 1976.
77
sociedade que não se interessava pelas colónias e num Estado incapaz de se reformar pelas suas próprias forças. «A Europa» foi o caminho único que restou ao Estado português ao fim de quatro década de ditadura, o único desejado pela sociedade portuguesa que dentro dele, mas contra ele, medrara. Se a pressão política causada pela guerra colonial sobre o regime o demarcou ainda mais da Europa do pós-Guerra, não surpreende que tenha sido no exterior de Portugal, nos meios do exílio, que se formou a alternativa de poder de Estado necessária à governabilidade. O papel charneira do PS depois de 1974 advém da sua origem tardia e marcada pela distância do país, que contribuiu para agregar portugueses dispersos pela Europa ocidental; nele se reuniram herdeiros dos velhos republicanos, intelectuais dissidentes quer do regime quer do PCP e da extrema-esquerda; católicos progressistas; quadros técnicos especializados e elites politizadas por influências culturais estrangeiras (sobretudo francesas). O conjunto formou um vasto fresco da sociedade portuguesa que reclamou para si a palavra de ordem «a Europa connosco». De facto, entre este Portugal pós-Estado Novo e a Europa (ocidental) nada de relevante os diferenciava. A imagem da Europa torna-se um eco do que se quer para Portugal no futuro, a unidade ultramarina de toda a tradição nacional (e estatal) anteriormente vigente perde influência e, sequer, viabilidade. Como nação, regressa-se à Europa; como Estado, torna-se Portugal membro da Europa.
3. Sociedade dual e integração europeia O processo de transformação de Portugal, enquanto Estado e Sociedade, que sumariamente apresentámos acima, decorreu durante o século XX de um modo que, face a períodos anteriores da nossa História, se distingue pela sua faceta decisionista. Isto é: enquanto Estado, Portugal termina o século XX integrando-se voluntariamente num espaço civilizacional (geográfico, cultural, económico, político-legal) a que quase sempre pertenceu defectivamente, o europeu. Mesmo subvalorizando 78
a interpretação estrangeirada da História de Portugal 17, certo é que nenhuma interpretação histórica da sociedade e do Estado portugueses deixa de assinalar a marginalidade face à História Europeia em que Portugal se encontra desde o século XVII (independentemente do juízo de valor que se faça, ou não, a esse respeito). 3.1. A sociedade dual evolui Ao longo do século XX encontramos três autores que nos dão, cada um a seu modo, imagens desse processo recorrendo a um mesmo conceito, «sociedade dual» (ou dualista). O termo surge primeiro com António Sérgio, que concebe a sociedade portuguesa como estando dividida entre dois campos, duas sociedades que competem em vez de cooperar: a sociedade urbana e litoral, comerciante, defendendo desde o início da modernidade a política de «transporte», sem implantação da produção de riqueza; a sociedade rural e interior, firmando-se na defesa da política de «fixação», isto é, no privilégio às actividades tradicionais e, por isso, menos cosmopolita e mais conservadora que a anterior. Esta esquematização é sumária mas configura dois tipos mentais e sociais em que se reconhecem opções políticas e culturais efectivas. Do mesmo modo, a tese sergiana de uma necessária conciliação entre ambas as políticas é tentada, pelo menos, desde Pombal 18. O estado dessas tentativas é objecto de atenção nas décadas de 1950 a 1970 pela emergente sociologia portuguesa, nomeadamente em ensaios de Adérito Sedas Nunes 19 dedicados à evolução da sociedade portuguesa durante o século XX. Sem se reclamar de inspiração sergiana, Sedas Nunes descreve a mutação da sociedade portuguesa como um processo de «êxodo nacional», pois não se verifica um simples abandono do campo pela cidade (que assim significaria a preferência popular por uma economia aberta e uma vida cosmopolita) mas sim um abandono do país por parte dos menos e dos mais qualificados que passam pela franja urbana, litoral e
17
Entenda-se: mesmo que se aceite o papel decisivo da Expansão portuguesa (algo que ninguém questiona), muito já se polemizou sobre o isolamento que se lhe seguiu. Entre a visão catastrofista de António Sérgio e uma visão muito matizada e depreciadora das teses de Sérgio sobre o fim do contacto entre o escol de portugueses com vivência europeia (os «estrangeirados»), as hipóteses são várias. Cf. LEONE, C., Portugal Extemporâneo, (2 vols.), Lisboa, INCM, 2005.
18 Cf. SÉRGIO, A., «As Duas Políticas Nacionais», in Ensaios II, Lisboa, Ed. Seara Nova, 1929. 19
NUNES, A. Sedas, Antologia Sociológica, Lisboa, ICS, 2000.
79
20
Cf. sobre isto e sobre o que se segue MARTINS, H., Classe Status e Poder, Lisboa, ICS, 1998.
21
Recriação não isenta de ambiguidades, como muitos exilados políticos descobriram a seu próprio custo. Cf., por todos, o que Casais Monteiro escreve sobre «salazaristas teleguiados» no Brasil da década de 1950, MONTEIRO, A. Casais, O País do Absurdo, 2.ª ed., Lisboa, INCM, 2007.
80
«moderna» de Portugal a caminho do estrangeiro, uma vez que só no exterior as premissas da modernidade (liberdade política e capacidade de iniciativa individual desimpedida) se encontram realizadas. Assim, a investigação de Sedas Nunes, tecnicamente sociológica (a de Sérgio era essencialmente um ensaísmo histórico-pedagógico) explora pistas anteriores de acordo com critérios e modelos de cientificidade que se implantam sobretudo na segunda metade do século XX mas, nesse passo, confirma e aprofunda a visão da sociedade portuguesa como marcada por uma essencial divisão interior, agora entre os que têm poder e influência e os que não têm, ficando os primeiros e partindo os segundos. Sensivelmente no mesmo período, o português de origem moçambicana Hermínio Martins, formado já no exterior (economista e sociólogo em Inglaterra, para onde partira depois de concluir o Liceu em Lourenço Marques), mas reclamando-se dessa influência sergiana e estrangeirada 20, desenvolve de modo teoricamente mais elaborado ainda esta divisão interna à sociedade portuguesa e seus reflexos na organização das instituições e do poder do Estado. Martins relaciona a origem social à consciência pessoal e social num modelo que valoriza a integração em meios urbanos já existentes, relativizando a sua localização. Muito sumariamente, a integração em certos círculos define o indivíduo como burguês ou não, progressista ou não, etc., independentemente da realidade geográfica (única excepção de monta, Coimbra, urbana e académica, logo juvenil, mas vincadamente conservadora, o que em pelo menos parte se explica pela influência da Faculdade de Direito na Universidade e na rede de contactos que se forma nela e prossegue pela vida profissional, disseminando-se pelo país). Pela sua própria experiência e pela sua investigação, Martins percepciona como é a influência exterior (no sentido do êxodo nacional mas também da pressão estrangeira) que possibilitará a dissolução do aparelho repressivo do Estado Novo e o desbloqueamento da sociedade portuguesa que, de Paris a Caracas, recria «pequenos portugais» no exterior 21.
3.2. O Estado recria-se Esta reflexão sobre a sociedade portuguesa assinala a transformação associada à europeização. Por isso, o seu termo lógico após 1974 era, como já se ensaiara sem sucesso no marcelismo, a adesão à Comunidade Económica Europeia. Tal só veio a suceder em 1985, com efeitos em 1986, a par (e não por acaso) de Espanha. Apesar de entendida no imediato apenas como uma cornucópia financeira e económica, a integração na CEE foi o segundo grande momento de redefinição do Estado, e com ele da nação, no pós-1974. Se, na segunda metade da década de 1970 e ainda início da década seguinte, a politização da sociedade portuguesa e o envolvimento cívico da população se destacaram e moldaram as forças e agentes políticos para as décadas seguintes, a segunda metade da década de 1980 e início da seguinte foi, graças aos fundos europeus, o período de explosão social (mírifica mas também real) de modernização social e de mobilidade social renovada (ainda que sob velhas formas de clientelismo partidário e cooptação grupal com sistemático recurso a meios do Estado). Este findar de século não representa por isso nem um triunfo sobre o passado, pois muito desse passado apenas se refez, nem uma morte de Portugal, pois foi Portugal quem se fez deste modo e logrou a integração europeia. O pós-1986 inicia um ciclo histórico novo, finda a modernidade que se iniciou no século XIV, tal como terminou no século XX, sob o signo europeu. Hoje, com mais de duas décadas de integração europeia, vislumbram-se mais nitidamente problemas em crescendo desde a adesão, nomeadamente o da determinação do estatuto soberano do Estado. Com efeito, a comunidade europeia realiza-se pela integração voluntária, que ademais tem de cumprir certas formalidades (governo democrático, entre outras), mas significa uma partilha de soberania do Estado que assim optou. Uma decisão soberana que implica abdicar de soberania ou, de outra perspectiva, reconfigurar a soberania. Enquanto Estado-membro da UE, Portugal tem hoje uma realidade insti81
tucional nova e em mutação que, e resto, corre em paralelo com a dinâmica social. Muito do discurso (não apenas político) sobre a crise de identidade (europeia e portuguesa), a falta de legitimidade (da EU e dos Estados), explora estas situações sem contudo as pretender resolver ou pensar consequentemente. Mas, na verdade, estes problemas são já do século XXI e o facto de serem portugueses significa desde logo que Portugal é Europa. Como Estado e como sociedade.
BIBLIOGRAFIA
CARAÇA, B. de J., Cultura e Emancipação (Obra Integral de B. J. C., vol. 1, coord. A. P. Pitta), Porto, Campo das Letras, 2002. COELHO, J. Prado (dir.), Dicionário de Literatura Portuguesa, 4.ª ed., vol. 3, Porto, Mário Figueirinhas Editor, 1997. COSTA, J. Bénard da, Nós, os vencidos do catolicismo, Coimbra, Tenacitas, 2003. FRANCO, J. E., «Espelho e Mito: a ideia de Europa em Eduardo Lourenço» Colóquio-Letras 170 (Jan./Abr. 2009), 307-317. LEONE, C., O Essencial sobre Sílvio Lima, Lisboa, INCM, 2004. IDEM, Portugal Extemporâneo, (2 vols.), Lisboa, INCM, 2005. LOFF, M., O nosso mundo é fascista!, Porto, Campo das Letras, 2008. MARTINS, H., Classe Status e Poder, Lisboa, ICS, 1998. MESQUITA, A. P., Salazar na história política do seu tempo, Lisboa, Caminho, 2007.
82
MARQUES, A. H. Oliveira (dir.), A unidade da Oposição à Ditadura, 1928-1931, Mem-Martins, Publicações Europa-América, 1973. MONTEIRO, A. Casais, O País do Absurdo, 2.ª ed., Lisboa, INCM, 2007. NUNES, A. Sedas, Antologia Sociológica, Lisboa, ICS, 2000. SAMUEL, P., A Renascença Portuguesa um perfil documental, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1990. SÉRGIO, A., Ensaios II, Lisboa, Ed. Seara Nova, 1929. SERRÃO, J., Emigração Portuguesa, 3.ª ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1977. SERRÃO, J. (dir.), Dicionário de História de Portugal, «Suplemento», vol. 7, Lisboa, Figueirinhas, 1999. TEIXEIRA, A. Braz, Conceito e formas de democracia em Portugal e outros estudos de história das ideias, Lisboa, Ed. Sílabo, 2008. VVAA, Revistas ideias e doutrinas, Lisboa, Livros Horizonte, 2003.
Seis unidades de investigação, um colóquio internacional
Tiago C. P. dos Reis Miranda *
O conflito que levou à expulsão da Companhia de Jesus dos
domínios portugueses em meados do século XVIII foi acompanhado de uma intensa troca de panfletos políticos e teológicos, que se estendeu para além da Europa e prosseguiu sob outros contextos, mais ou menos encadeados, favorecendo a conservação de uma série de parâmetros de análise e pressupostos explicativos bastante esquemáticos. Em poucas palavras, a ideia central geralmente encontrada nas obras de história resume-se à existência de uma clara e irredutível oposição entre o conjunto dos padres da Companhia e o governo do Reino, personificado no Marquês de Pombal: de um lado, os representantes tardios da mais militante missionação tridendina; de outro, o iluminado impulso de reforma de um aparelho de Estado incipiente e ineficaz. A maioria da alta nobreza costuma figurar como partidária dos jesuítas; a burguesia ascendente, nas hostes do grande ministro. Nem sempre parece ser fácil dizer com certeza quem deu início às hostilidades. Mas não resta também grande dúvida de que ambas as partes, à sua maneira, tenderam a afirmar-se acima de tudo pelo rebaixamento dos adversários. E essa atitude dificultou o diálogo. Tanto na altura, como depois. Aproveitando a aproximação da passagem dos duzentos e cinquenta anos da lei de 3 de Setembro de 1759, seis uni* Investigador do Programa «Ciência 2007» (Centro de História de Além-Mar/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa).
Brotéria 169 (2009) 83-87
83
1
Ver MONTEIRO, Nuno Gonçalo, D. José. Na sombra de Pombal, [Lisboa], Círculo de Leitores, 2006.
84
dades académicas nacionais com sede em Lisboa, no Porto e em Évora decidiram reunir-se para organizar um colóquio que promova um encontro de pontos de vista entre investigadores com trabalho já feito em torno do tema. Vinte e oito convites foram dirigidos a dezasseis diferentes universidades, para os próximos dias 19 e 20 de Outubro, no auditório da Biblioteca Nacional. O que se espera obter logo a seguir é a publicação de uma colectânea de textos expressamente voltada para o próprio processo de expulsão, em seus vários aspectos: desde os políticos e institucionais, aos religiosos, pedagógicos, patrimoniais e artísticos. Trata-se, assim, de procurar compreender o assunto como um «fenómeno total»: com antecedentes, linhas de força e repercussões que se espalharam por todas as áreas das sociedades dos domínios portugueses e muitos outros espaços vizinhos ou associados, em cinco continentes. Nessa justa medida, o processo de expulsão da Companhia de Jesus emerge também, com certeza, como um «fenómeno global». Sem pôr de lado a teia dos factos, o alargamento dos territórios e dos problemas de análise permite reavaliar a importância relativa de grupos específicos e, sobretudo, de alguns indivíduos. Cabe notar, por exemplo, que o ilustre valido de D. José começou o reinado como um fidalgo em ascensão, sendo depois singularmente favorecido por um quadro de circunstâncias políticas e naturais que pavimentaram o seu caminho para o marquesado. No preciso momento da expulsão, ainda não tinha sequer três meses como titular do novo condado de Oeiras e enfrentava uma série de obstáculos ao reconhecimento da sua influência nos tribunais de Lisboa, nalguns dos governos ultramarinos, em legações portuguesas no exterior e noutras pequenas instâncias de exercício de poder, em todo o império. Por muito que se queira ver nele uma espécie de «chave» da perseguição anti-jesuítica, Sebastião José de Carvalho e Melo, dito «Primeiro-Ministro do Reino», integrou uma rede de numerosos agentes, que incluía o próprio monarca 1, representantes do clero secular, da maior parte das outras ordens religiosas, oficiais do governo central e ministros de
justiça formados nos bancos de Coimbra, cujos nomes nem sempre se encontram expressos na História do Padre Caeiro 2 ou nos escritos que outros missionários também nos deixaram. Urge agora identificá-los um pouco melhor e compreender as dinâmicas da sua actuação. O excessivo protagonismo atribuído a Sebastião de Carvalho pode também explicar por que motivo ainda não se regista uma maior consciência da dimensão diplomática de todo o processo. Que, no início, foi decisivo o tratado de fronteiras assinado em Madrid, não há muita dúvida. Que, anos depois, foi de Lisboa o mais agudo empenhamento na longa campanha pela extinção, também já se sabe. O que, no entanto, está por frisar é a coincidência da decisão de expulsar os padres jesuítas, com o auge da Guerra dos Sete Anos, fortemente penalizadora da capacidade de desdobramento da actuação militar periférica das grandes potências 3. No que respeita à relação específica com a Inglaterra, a formalização da ruptura com os loiolanos propiciou um novo e inesperado terreno de troca de experiências e um estreitamento de afinidades que contribuiu para baixar a tensão acumulada por largas dezenas de incidentes de contrabando de ouro nas águas do Tejo e pelos fortes protestos da Feitoria Britânica contra a erecção das companhias de comércio monopolistas 4. A discussão relativa à natureza supostamente iluminada do governo português encontra agora a historiografia europeia e norte-americana em meio a um esforço de conciliação de numerosos e surpreendentes «estudos de caso» de cariz nacional, para chegar a novos trabalhos de síntese. Até há pouco tempo impensáveis nos manuais escolares, as «Luzes Católicas» têm vindo a obrigar a rever modelos de análise forjados em países de tradição luterana ou calvinista e com um conjunto de práticas políticas e sociais sem correspondência directa e imediata na Europa do Sul. As balizas cronológicas das interpretações dominantes ganham uma nova feição. Os próprios conceitos que antes pareciam encerrar leituras unívocas passam agora a ser objecto de indagações e reajustes 5. O período da
2
CAEIRO, José, S.I., História da expulsão da Companhia de Jesus da Província de Portugal, Tradução portuguesa de Júlio de Morais, S.I., e José Leite, S.I.; revisão e notas, António Leite, S.I., 3 Vols., Lisboa / São Paulo, Editorial Verbo, 1990-1999.
3 A espantosa dimensão de recursos materiais e humanos mobilizados nos principais teatros da guerra pode ser comprovada pela leitura de MIDDLETON, Richard, The Bells of Victory. The PittNewcastle Ministry ant the Conduct of the Seven Years War (1757-1762), Cambridge, Cambridge University Press, 1985; S ZABO , Franz A. J., Seven Years War in Europe 1756-1763, Harlow, Pearson Longman, 2008, e DULL, Jonathan R., La Guerre de Sept Ans. Histoire navale, politique e diplomatique, traduit de l Anglais par Thomas Van Ruymbeke, Bécherel, Les Pérsiades, 2009. 4
MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis, «O governo português e a Companhia de Jesus no quadro da aliança com a Inglaterra: desarranjos e acomodações»; Lusitania Sacra, 2.ª Série, V, (1993), 251-297 (parte de dissertação de mestrado, intitulada «Ervas de Ruim Qualidade»: a expulsão da Companhia de Jesus e a aliança anglo-portuguesa, defendida na Universidade de São Paulo em 1991).
5 O UTRAM , Dorinda, The Enlightenment, Cambridge, Cambridge University Press, 1995 (traduzido para Português por Joaquim Cândido Machado da Silva e publicado em Lisboa pela editora Temas e Debates, em 2001), e KIRK, Linda, «The Matter of Enlightenment», The Historical Journal, n.º 43(4), Cambridge, Cambridge University Press, 2000, pp. 1129-1143.
85
6
Ver ISRAEL, Jonathan I., Radical Enlightenment, Philosophy and the Making of Modernity 1650-1750, Oxford, Oxford University Press, 2002, pp. 115-116 e 536-539, e FITZPATRICK, Martin, JONES, Peter, KNELLWOLF, Christina e MCCALMAN, Ian (ed.), The Enlightenment World, London and New York, Routledge, 2007, pela ausência quase complete de referências a Portugal. 7 A lista oficial encontra-se disponível em <http://whc. unesco.org/fr/list> (consulta de 20.07.2009). 8 Bons exemplos são os títulos já editados pela etiqueta K617, de Saem Le Couvent, Centre International des Chemins du Baroque, <http://www.cd-baroque.com/index.php/cdbaro que> (consulta de 20.07. 2009). 9 Maria Susana Cipolletti, da Universidade de Bonn, deve explorar em Lisboa a sua própria experiência a esse respeito.
10
Ver, por todos, LEITÃO, Henrique (coord.), Sphaera Mundi: a Ciência na Aula da Esfera. Manuscritos científicos do Colégio de Santo Antão nas colecções da BNP, Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, 2008.
86
história dos domínios portugueses posterior ao terceiro quartel do século XVIII tende a ser integrado nesse movimento com uma certa facilidade, ainda que sem brilhantismo. Mas o governo d el-rei D. José continua a encontrar alguma resistência na estrutura dos estudos das grandes reformas políticas e culturais à escala europeia 6. Debatê-lo em Lisboa, com renomados colegas de outras origens, pode ser uma forma de reduzir as distâncias. No que respeita ao legado da actividade da Companhia de Jesus, a tendência dos últimos anos, em termos gerais, vai no sentido do reconhecimento da sua extraordinária relevância. Os testemunhos arquitectónicos remanescentes de várias missões no Brasil, na Argentina, no Paraguai e na Bolívia têm vindo a ser classificados pela UNESCO como património histórico da humanidade 7. As pautas de música dos períodos mais altos da sua presença na América do Sul e no Extremo Oriente são transformados em registos sonoros por gravadoras com distribuição mundial 8. As cartas e as memórias dos missionários na Amazónia tendem a assumir o valor de elemento de prova para a definição dos actuais territórios de reserva dos povos indígenas 9. E, no propósito de refundar a história da Ciência e das práticas científicas em Portugal, vasculhando de facto os arquivos, jovens investigadores de áreas diversas vão reunindo conjuntos de impressos, mapas e apostilas de cursos que actualizam os argumentos adiantados por pioneiros como Domingos Maurício Gomes dos Santos, António Alberto Banha de Andrade e João Pereira Gomes três dos mais destacados colaboradores da centenária Brotéria 10. O colóquio de Outubro propõe-se a fazer o balanço e a reunião de todas essas tendências, incentivando o surgimento de contribuições originais, que sejam de interesse para os especialistas, mas que se expressem numa linguagem também acessível a um público não académico. Quem queira contar com um certificado de presença, poderá escolher entre diversas modalidades de inscrição, com descontos previstos para estudantes de licenciatura, mestrado e doutoramento. Além
disso, aguarda-se para breve que o Conselho Científico Pedagógico da Formação Contínua (CCPFC) credencie o encontro, de modo a que a frequência de professores de História do primeiro e do segundo graus possa ser considerada na progressão na carreira. Mesmo em época de crise económica, o leque de apoios financeiros e institucionais que se têm vindo a congregar já assegura um impacto pouco usual a esta iniciativa. E é muito provável que até ao fim de Setembro se estabeleçam novas parcerias. Todos serão certamente bem-vindos, dentro de um espírito de diálogo franco, sereno e rigoroso, que a memória dos homens procura e a distância do tempo permite.
87
A expulsão da Companhia de Jesus dos domínios portugueses (1759-1761) Colóquio Internacional Biblioteca Nacional de Portugal 19 e 20 de Outubro de 2009 Comissão Organizadora Mafalda Soares da Cunha (CIDEHUS) António Camões Gouveia (CEHR e CHC) Tiago C. P. dos Reis Miranda (CHAM) Secretário Executivo Nuno Gonçalo Monteiro (ICS) Zulmira C. Santos (CITCEM) Entidades Promotoras Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa [CEHR-UCP] Centro de História de Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores [CHAM-UNL/UA] Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa [CHC-UNL] Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora [CIDEHUS-UE] Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura Espaço e Memória da Universidade do Porto [CITCEM-UP] Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa [ICS-UL] Apoios A.P.H. Associação de Professores de História BNP Biblioteca Nacional de Portugal Activ. Culturais (a/c Manuela Rêgo); Relaç. Públicas (a/c Conceição Chambel) Brotéria Cristianismo e Cultura Câmara Municipal de Lisboa Câmara Municipal de Oeiras F.C.T. Fundação para a Ciência e a Tecnologia FLAD Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento Fundação Oriente Fundação Robinson Santa Casa da Misericórdia de Lisboa / Museu de São Roque Sociedade Martins Sarmento Contactos trmiranda@fcsh.unl.pt ou coloquios.cham@fcsh.unl.pt (a/c Sofia Diniz)
&&
recensões
Bíblia MIES, Françoise: L Espérance de Job. 653 págs. LEUVEN UNIVERSITY PRESS, LEUVEN-PARIS-DUBLEY, MA, 2006. (87,00 A)
Investigadora qualificada do Fundo Nacional da Investigação Científica das Faculdades Universitárias de Notre Dame de la Paix (Namur), a A. da presente obra oferece aos seus leitores um estudo pluridisciplinar extenso, profundo e de apreciável riqueza de conteúdo. O livro é dedicado a Maurice Gilbert, S.J., seu prefaciador e antigo Reitor das ditas Faculdades Universitárias daquela cidade belga. Embora à distância de várias décadas, A Esperança de Job surge, contudo, na sequência do imponente trabalho, Job et son Dieu (1970), de Jean Levêque, estudo a que subjaz a ambição de apresentar uma abordagem teológica do livro de Job baseada na leitura crítica desse mesmo texto, havendo sido Levêque o primeiro a apontar com persistência as passagens onde o personagem bíblico deixa supostamente entrever uma ténue luz de esperança. Em contraposição a esse célebre livro, o presente estudo de F. Mies não se limita aos textos emblemáticos a que o autor de Job e o seu Deus se tinha restringido mas vai muito mais longe, ousando apostar num estudo sincrónico que abrange o conjunto do livro bíblico em referência. Pela sua
amplidão, pelo fino sentido crítico e pela constante preocupação teológica, o estudo de Mies, além de igualar nesse aspecto o notável trabalho do seu predecessor, acaba também por ultrapassá-lo, em certo modo, tanto pela originalidade da metodologia adoptada como pela importância capital agora atribuída a Jb. 14, 13-17, secção «finamente» estudada na obra em apresentação. Atingido pela desgraça, confronta-se Job com a sua sorte, avançando «a uma luz muito ténue» (1). É precisamente à procura dessa luz crepuscular que parte a presente investigação, esforçando-se empenhadamente por atingir o seu foco de irradiação, não sem ter em conta que, na sua unidade dramática, o livro de Job constitui um enigma com diferentes facetas, exigindo, por isso, o adequado rigor nos princípios metodológicos. O estudo não incide, é claro, sobre a esperança no livro de Job «mas sobre a esperança de Job, do personagem Job», concentrando-se, «com paciência, perseverança e esperança», no «ponto de vista de Job», dentro da interacção específica com os outros personagens do livro: «a pesquisa deverá portanto comparar a maneira como Job se situa face à dos outros protagonistas e interrogar-se sobre o sentido global da esperança à escala da obra», atendendo, porém, às «duas dimensões da esperança, temporal e relacional, não só para as reencontrar, mas para ver como, no contexto linguístico e dramático dado, essas mesmas se modulam e articulam» (9).
89
Para tanto, adopta a A. três estratégias que ocupam as três primeiras partes do vol.: Semântica da esperança campo semântico forjado pela língua hebraica para exprimir a esperança, sendo aqui inventariado e analisado todo esse vocabulário hebraico da esperança; Simbólica da esperança recurso a um discurso indirecto, o registo simbólico, «que aflora em cada versículo do livro» (121), ou seja, a esperança não se exprime apenas por termos explícitos mas também por símbolos e metáforas, que Job modela para seu uso; Dramática da esperança nesta estratégia, remete Mies para o género literário da obra bíblica, concebendo-a como um drama e, portanto, «como uma acção no tempo de uma história», que «permite precisamente a uma esperança em acto poder desentranhar-se» (207), emergindo aqui em força a dimensão relacional da esperança e o confronto entre os dois tempos vividos por Job: o acto de esperança e o da verificação da esperança, frustrada ou atendida. Ao desenvolvimento dessas três estratégias, segue-se Razão da esperança parte mais reflexiva , questionando-se aqui a A. acerca do tipo de racionalidade que Job mobiliza e interrogando-se, por igual, acerca das motivações profundas que subjazem à sua esperança: «como é que, apesar da desgraça, tentado pelo desespero, Job espera apesar de tudo e persiste nessa esperança?» (449). Da Conclusão final (síntese e abertura), realçamos apenas este texto significativo: «O leitor é remetido ao mesmo tempo que ele (Job) para o mistério de Deus e para a obediência de espírito. O desespero de Job faz estremecer. Todavia, para o leitor, Job, na sua esperança, resplandece com
90
verdadeira luz, tal como Moisés descendo do Sinai (Ex. 34, 29-35): não é Moisés, segundo a tradição judaica, o autor do livro de Job?» (588). Em registo de conclusão crítica: «A esperança de Job é enigmática, surpreendente, impressionante» (590). Mas qual o critério que a valida? Em que critério nos podemos basear para saber que a sua esperança não é em vão ou que o Deus bom é que prevalece sobre «o Deus mau, temido e acusado»? A resposta tem a sua importância e salta bem à vista: «Este critério reside na teofania, na resposta de Deus. Sem a resposta de Deus, podemos vaticiná-lo, o livro de Job não teria tido o seu lugar na Bíblia. É a teofania que acolhe favoravelmente a esperança de Job e assim a valida. Ora, esta validação não depende de Job: depende do dramaturgo. À escala do drama total, a esperança de Job revela-se justificada» (Ib.) porque, a esse nível, «Deus enquadra a história de Job e faz conhecer ao leitor a sua confiança no seu servo». ( ). « só Deus permanece até ao fim. A sua confiança está intacta. ( ). A confiança é um dos aspectos mais salientes da esperança na sua dimensão relacional. Neste sentido, podemos dizer que Deus espera em Job. ( ). A esperança de Deus no homem é espantosa» (592). Acodem-nos, a propósito, as ferventes palavras de Péguy, também recolhidas por Mies: «Singular mistério, o mais misterioso / Deus tomou a dianteira. ( ). / Foi Deus que começou. / Foi Deus que nos fez crédito, que nos deu confiança. ( ). / Deus fez-nos esperança. Foi Ele que começou. ( ). Ele esperou em nós, virá (porventura) a dizer-se que nós não esperamos nele?» (La porche du mystère de la deuxième
vertu, in Id., Oeuvres poétiques complètes, Paris, Gallimard, 1975, pp. 603-604). A esperança não é simples antecipação. Porque ela deseja e ama. Ela vê o que ainda não existe mas que virá a ser: «Job esperava aquele que, na sua prova, experimentava como ausente mas que postulava no ser.: Deus oculto, silencioso, estranho A vir. Na perspectiva do drama total, Deus estava já. Job esperou, viu e amou Aquele que é, que era e que vem» (593). Com L Espérance de Job, conseguiu inequivocamente a A. rasgar novas vias de entendimento acerca do dinamismo intrínseco e do significado profundo daquela que Charles Péguy designava como segunda virtude dessa mesma que Françoise Mies, através da aturada pesquisa deste seu trabalho, logrou de facto surpreender como foco intenso a irradiar da própria pessoa de Job. Isidro Ribeiro da Silva.
Filosofia MARCEL, Gabriel: Dieu et la causalité. 106 págs. PRÉSENCE DE GABRIEL MARCEL, 2008.
Um
texto importante do ilustre filósofo francês Deus e a causalidade abre o presente boletim com o n. 18 da série que temos vindo a apresentar nesta revista, movidos por vivo apreço e duradoira gratidão para com o autor de Homo viator que marcou indelevelmente tantos leitores do século XX. Isso consta, aliás, em «Nouvelles du monde» deste vol. (102-103) onde, a propósito, fizemos nossas as pala-
vras do extinto cardeal Lustiger acerca da projecção filosófica de Gabriel Marcel: «Uma sentinela filosófica, um homem que soube, pelo seu itinerário espiritual dar que pensar e ajudar a pensar a uma geração: a presente geração deve ainda nutrir-se dele e dele tirar proveito». O referido texto, Deus e a causalidade, é extraído do vol. De la connaissance de Dieu (1958), sob a direcção do P. J.-M. Le Blond, S.J., e seguido aqui de algumas páginas da tese notável de Anne Mary, Le mystère au théatre (Sorbonne, Paris, 2007) sobre o mesmo assunto. Introduzindo o dito tema do vol. em causa, alude o jesuíta Le Blond à expressão de S. Catarina de Sena «Nós somos um amor de Deus subsistente» , lembrando como ela, do mesmo modo que todo o místico que transpõe as aparências e capta a manifestação de Deus no Mundo, tinha «a experiência íntima, mística desta acção criadora», expressiva da generosidade que dá o ser. Em consequência dessa afirmação, comenta Le Blond: «É isso que de maneira inadequada, pálida, tecnicizada, a teologia se esforça por exprimir empregando, a propósito de Deus, a noção de causalidade» (8). Ora o conhecimento pleno de Deus criador e Pai, «que é união», só se cumpre no «Tu» paternal em cujo amor permanece a relação de origem. Um amor de Deus assim só é reconhecível pelo amor adorante, ímpar e transcendente de quem se aceita plenamente como criatura. Gabriel Marcel veio chamar a atenção para o risco de uma concepção mecanicista da causalidade, propondo, para maior clareza e densidade de significação, que seja substituída pelo termo de comunicação, mas não sem introduzir concomitantemente a noção de generosidade. Mas
91
generosidade de tal grau que, «aí onde eclode», dissipa toda a ambiguidade acerca da natureza do dom: «Ela envolve a afirmação da liberdade do beneficiário, e envolve-a a tal ponto que ela própria não pode ser reconhecida senão livremente. Ela exerce-se em condições tais que corre o risco ( ) de ser desprezada ou falsamente interpretada. Ela não pode evitar esse risco sem perder o seu carácter próprio» (10). É que a generosidade, sobretudo quando é levada ao absoluto, «situa-se no plano onde o espírito fala ao espírito» (11). Também o acto criador humano, como o do dramaturgo, «se bem que a um nível subalterno, imita o acto divino, e remete necessariamente para esse mistério superior. O dramaturgo assemelha-se ao demiurgo» (20) faz notar Anne Mary, versando o tema de «O mistério do teatro» em registo marceliano; na verdade, para o autor de Théâtre et religion (Vitte, Lyon, 1958), o vínculo que une o criador aos seus personagens «está fortemente cristianizado» (19). As questões que preocupam o filósofo de Le Mystère de l tre vamos reencontrá-las inevitavelmente no seu teatro. Assim, a substituir a «lógica implacável e imparável» que se traduz numa «causalidade de encadeamentos perfeitos e calculados», deparamos com um certo número de noções «girando em torno do mistério» e opondo-se a essa causalidade: «a graça, a esperança, o mistério, a intersubjectividade, todos esses termos que estão na base do teatro marceliano». Os termos de causa ou de causalidade são assim substituídos pelos de «fonte» e «alma», mais capazes de captar a irrupção da vida em força. Daí o aviso deixado por G. Marcel n O Mistério do Ser: «Quando disse que a
92
generosidade é a alma do dom, não quis de modo nenhum dizer que é a sua causa, mas sim a essência activa, o que é inteiramente diferente» (cit. 24). Concluindo, a propósito da temática em causa: «Esta desvalorização da causalidade no pensamento marceliano tem consequências sobre a maneira como o filósofo encara a presença de Deus no mundo. Ele rejeita a ideia de um Deus Causa e desejaria acabar com todo o uso teológico da noção de causalidade , com o deus da tradição aristotélico-tomista, o deus primeiro motor , como já o deixara claramente expresso em L homme problématique». Dos restantes textos do vol., na sua maioria merecedores de adequada atenção, aludimos aqui, muito de passagem por exigência de brevidade, apenas a um O desenvolvimento espiritual de Ferdinand Ebner (27-41). O filósofo cristão austríaco (1882-1931) veio, com os seus artigos na revista Der Brenner, abrir caminho «a reflexões teológicas a que o Concílio Vaticano II viria dar sequência» (Bernard Casper in EVLBC). Sobre o itinerário do seu pensamento, sobretudo à base do Diário e das Cartas, fez G. Marcel duas conferências, em Viena e em Salzburgo (1965), que ficaram inéditas no texto original em francês. O problema que se punha a Ebner era o da vida, da sua vida: «Para Ebner, a vida é um mistério que transportamos no fundo de nós mesmos e se o homem se abandona à paixão, é a voragem, a loucura, a morte. Desde esta época ele acumula notas para uma Metafísica de existência individual, que não completará. Torna-se-lhe bem claro que não é pela via do conhecimento que o homem pode conseguir reconhecer-se ou determinar o valor da vida» (30). Prisio-
neiro ainda do Idealismo, experimenta o filósofo bem a fundo a necessidade de um renascimento espiritual. Começa a ler os Evangelhos e vê em Kierkegaard «o pensador mais próximo de Ebner» alguém «que compromete a uma análise séria do cristianismo» (32). Evoluindo para a fenomenologia não da vida mas do «eu vivo» (34), vai sendo dominado pela preocupação de «não trair o Espírito na minha vida» (37). Vão-se multiplicando «as afirmações sobre Cristo» (38) nos seus escritos, faz-se-lhe sentir a revisão de vida e de si próprio, «unicamente num diálogo com Deus» (39). Finalmente, o sismo acontece «abalando o fundo da minha existência até este dia» para pôr em evidência aquilo que constitui o fundo mais fino da sua existência espiritual: «É nisso que vejo o exercício principal da minha vida: aprender a rezar em verdade o Pai-Nosso, acolher o infinito da Palavra de Deus na finitude do meu entendimento» (40). Gabriel Marcel critica, todavia, o cristocentrismo demasiado exclusivo de Ebner e apelida de «irritante» a sua piedade, por lhe parecerem deixar transpirar, lá no fundo, a sua «misantropia inveterada» (40), traindo assim, «o que há de mais vital no pensamento evangélico»: «Cristo, porque é Cristo, abre a cada um de nós o acesso do próximo, não apenas amado, mas também saudado como tal» (41). O carácter trágico do Diário e de muitas das Cartas do filósofo austríaco provém de algo bem manifesto, segundo Marcel: «é que Cristo é para Ebner uma bóia de salvamento, à qual se agarra perdidamente, sabendo que, se a larga, será para ele a loucura ou a morte. Se lhe tivesse sido dado amar espontaneamente os homens, tal dilema não se lhe teria apresentado com esta
insustentável acuidade» (Ib.). Isidro Ribeiro da Silva.
SHOLES, Lynn e MOORE, Joe: O último mistério. 296 págs. EUROPA-AMÉRICA, MEM-MARTINS, 2007. (20,00 -)
Sob capa de ligeireza, a seriedade. Tábuas da lei para orientação de homens e civilizações na via do bem houve várias, na maioria desaparecidas. Desses códigos (caso de Hamurabi) poucos se recuperaram, de outros ficou notícia ou apenas o mito. «Das doze tábuas originais dadas por Deus aos líderes espirituais do mundo antigo, resta apenas uma. E só uma pessoa pode descobrir o seu paradeiro e decifrar a sua mensagem para o mundo Corten Stone, filha de um anjo. Hoje angelos (mensageiro) daria jornalista . Obrigada a recuperar o último mistério antes que os caídos o façam, vê-se perante o aterrador destino de combater o filho da aurora antes dos últimos dias . Pelo tema inspirativo e pelo seu teor apocalíptico vê-se a que género de literatura pertence hoje tão cultivada por toda a parte mas em especial nos Estados Unidos (2006) saturados de civilização . Nota-se a mensagem do Génesis sobre a luta dos anjos nos planos de Deus e a sua influência na história dos homens e da sua liberdade. Condenados de vez, os caídos não irão repetir o mesmo erro. Desde a p. 19 se sugere que a Bíblia é literalmente correcta e tenta mostrá-lo com os fósseis da criação, ou «reavaliar a nossa linha de pensamento». Misturado na acção anda um xamã peruano. Mas o cenário inicial é o de um avião com 280 pessoas a bordo, em que o piloto 93
matou o vice e vai suicidar-se, sem que haja acesso à cabine. Há portanto mais influência do Pentágono que do Antigo Testamento/o 11 de Setembro de 2001. Tempo decrescente: 20 ou 103, até ser abatido por um caça. Contudo, esta versão ficcional deriva ao sabor dos autores. Entre personagens de base e outros ocasionais, vão tratando, em textos breves, vários temas de sugestão. O mundo acaba para uns, mas continua (ameaçado) para outros, até se cumprir o último mistério . «Ninguém pensava poder ter de chegar a este ponto» (17). O resto é com o leitor do Contemporânea -135. Em terra, há mais dramas, tanto de realidade como de ficção. Comandados pelo dinheiro. Da alegórica heroína romanesca se afirma: «já foste ao inferno uma vez e voltaste; podes fazê-lo outra vez». Na eterna aventura da existência, o último mistério da vida. Por isso, «aterragem e descolagem eram para ela momentos de oração ( ) Não era pessoa que rezasse muito ( ) Estava em terra». De terra em terra, uma pista a seguir. Na qual todos «estamos talvez a soletrar a escuta de Deus». «Tal como o condor, o teu espírito tem asas para voar» e seguir os sinais. O misticismo humano é sempre uma sedação primitiva, distanciamento dos abusos da civilização como produto do homem. Algo a ver com o calor do novo dia . Entrementes, a sugestão evangélica: «Para entrar no Reino dos Céus é necessário enfiar a agulha» (166). O final levanta um pouco a ponta do véu que foi a ficção: a permanente e alegorizada procura da luz que nasce da Bíblia. E contra Deus não há pistolas nem metralhadoras que valham. Nem na mão do diabo. F. Pires Lopes.
94
História SERVICE, Robert: Estaline. 704 págs. EUROPA AMÉRICA, MEM MARTINS, 2007. (47,00 -) «José, o Terrível» (594), «era um verdadeiro líder», «tinha uma certa dose de paranóia. Mas não parecia louco àqueles que com ele conviviam» (608). O «pequeno psicopata bexigoso» foi «um déspota sem precedentes na história» (544). Contudo, a ordem soviética encobria a realidade de «roubo, corrupção, nepotismo, proteccionismo, informações erradas e desordem geral». Este «sistema totalitário era um fracasso objectivo». Mas «nem a sua omnipotência lhe permitia aperfeiçoar a ordem piramidal» (544). Estaline (1878-1953) «é das figuras com pior reputação na história. Durante 33 anos personificou a ordem comunista soviética» (21). Até à abertura dos arquivos com Yeltsin em 1991, todos os anos saía uma nova biografia mas, sem novidade nenhuma (a não ser a mudança de nascimento para 1879). Tinha o apetite de dominar, unir e matar . Na sua espessura de 704 páginas de 42 linhas e letra miúda, esta grande biografia não é tão grossa como o biografado, que marcou bem a história da U.R.S.S. e do mundo com os horrores de que ainda não nos refizemos. Mas o autor marca-o também no seu calibre de inesquecível revolucionário, líder do partido, déspota, chefe militar e imperador as cinco partes que não esgotam a envergadura do personagem: Stalin, o homem de aço (1912). Como obra monumental
que é proporciona-nos «o primeiro estudo em larga escala desde há mais de vinte anos», já que revolve «material inédito recolhido nos arquivos de Moscovo e de testemunhos pessoais e documentos privados». Contudo, sendo um dos melhores especialistas em história da Rússia, Service não se fica pela imagem convencional do líder soviético como simples burocrata sanguinário. Desfeita agora a opacidade do sistema e modificado o rumo político, com a abundância de documentação e a variedade de pormenores nunca antes consentidas, retrata-nos a sua infância e educação, o revolucionista jovem e o marxista passional, com papel decisivo (e ameaçador) na guerra civil de 1918-20 que impôs o governo soviético donde saiu, por colapso de Lenine, a preponderância do georgiano e o futuro grande terror estalinista. Mas o historiador mostra-nos também, subjacente, o homem de ideias e o poeta, cujo vigor de analista não cedia ao de Lenine e outros construtores da U.R.S.S. Já nos deu a grande biografia de Lenine como um dos resultados dos trinta anos de investigação. Agora (2004) tenta decifrar-nos «o homem por detrás do mito»: «este livro pretende mostrar que Estaline era uma figura mais dinâmica e variada do que convencionalmente se supõe» (8). Nem só um burocrata e um assassino; também um líder teórico, um escritor e editor, um tanto poeta e apreciador de arte, um pouco familiar e sedutor um Estaline mais autêntico, menos petrificado pelo sistema e menos calcinado pela governação voluntarista. Em suma, procura-se o indivíduo sob o governante, a réstia de humanidade subjacente
a toda a desumanidade tão plurifacetada nos políticos do século XX. «Duro e gélido nas manifestações externas, Estaline tinha um interior sensível» (304). Depois do suicídio da segunda mulher (1932), «gelou-se-lhe a alma» (307), para de aço desde 1912. Nunca mais foi o mesmo. Fica pois a dominante: desde que nasceu em 1878 até à sua morte em 1953, Estaline foi um terramoto humano, dada «a interligação do homem e do seu tempo durante uma longa existência, talvez demasiado longa» (9). «Violência, ditadura e centralismo estavam sempre presentes na mentalidade russa» (171). Estaline terá sido um dos seus expoentes máximos. Vou ver se não esqueço um conceito da sua terminologia: zakabalenie, estultificação das massas. Mas também procurarei não esquecer esta frase de 1921: «Quem me dera que o nosso povo acreditasse no Marxismo como acredita em Deus» (243). Na capa: o homem dos bigodes minazes. Na contracapa: o militar fardado que tinha A Verdade (Pravda) nas mãos. Ainda antes da morte de Lenine, já em 1923 ele estava a ficar «demasiado grande para as suas botas» (226); Lenine tirou-lhe as medidas. Depois, deu-as ele, à frente do partido, do Estado, da Internacional. Aos ódios provenientes do fracasso económico-social juntou-se a repressão. E tudo foi de mal a pior: o Terror do Estado. Com os custos que só o povo soube e pagou até com o sofrimento e a vida. Tudo era Estaline, enquanto Estaline fosse poder: «As suas medidas, sempre brutais, tocavam as raias da depravação» (329). Vivia entre o Kremlin e a datcha, sem contactos populares que o teriam «cumulado de queixas sobre as horríveis condi-
95
ções de vida no país» (340). E as purgas não tardaram. Às derrotas do partido sucediam os castigos à nação. «O burocrata reservado dos anos 20 tornou-se o assassino em massa» das décadas seguintes (346). Paranóide sociopático, «não tinha controlo total sobre si mesmo», com o seu pendor antipático, rancoroso e vingativo ; velhos amigos foram à tortura, trabalhos forçados, execução (353). «Terá sido dos homens mais perversos que já viveram» (353-4). Com Hitler às portas de Moscovo, Estaline «tratava a guerra como conduzia a política, com imensa selvajaria», mas «não conseguiu parar a brutalidade nazi» (430-1). Agora sabe-se que (nas famosas purgas e acusações contra líderes comunistas da Europa oriental pós-guerra) Estaline era «o verdadeiro criminoso dos processos» de Moscovo (526). Uma biografia que leva tempo e esforço a ler, mas tão depressa não haverá outra que a supere. E lê-la só fará bem ao Ocidente. F. Pires Lopes.
Literatura ARCHER, Jeffrey e MOLONEY, Francis J.: O Evangelho segundo Judas por Benjamin Iscariotes. 128 págs. EUROPA-AMÉRICA, MEM MARTINS, 2007.
Chegou-nos a 19 de Março. Viria mais apropriado no 1.º de Abril, porque é uma mentira bem apresentada na capa. E por dentro também: não só com os dois frontispícios um enganador, outro a sugerir o verdadeiro e com XXV capítulos, luga96
res paralelos, numeração dos versículos e citações em vermelho, até a fitinha marcadora e glossário de esclarecimentos ao fim. Não. Não é um Evangelho, nem sequer apócrifo «rejeitado pela Igreja nascente». Apenas uma versão moderna sobre a história de Judas, com base em muita informação evangélica. Avisa porém, a iniciar, que «é resultado de colaboração intensa entre um autor de ficção e um investigador»; a saber, Jeffrey Archer e Francis J. Moloney (este indicado àquele pelo Cardeal Martini). Segundo o projecto, o primeiro «escreveria uma história tendo como público-alvo os leitores do século XXI» e o segundo «asseguraria que o texto final pudesse parecer crível a um leitor, cristão ou judeu, do século I». Segundo esta ficção, o autor hipotético seria o filho mais velho de Judas, Benjamin Iscariotes, fictício narrador do que o pai lhe contou e nesse tempo se passou. Claro que é um Judas diferente do referido nos Evangelhos mas cautelosamente enxertado neles e interessado juiz em causa própria . Nem é de estranhar que resulte mais simpático ou menos rebarbativo que a personagem colhida da tradição. Esse o resultado da colaboração de dois autores acomodatícios: um para a ficção, outro para a moderação. Diremos apenas que o resultado é um híbrido ficcional pelos dois lados: histórico e religioso. Ou seja; um Judas de massa sintética, esquinas arredondadas e vocação de água chilra como apóstolo. É que desde o princípio só vê em Jesus de Nazaré «um profeta e verdadeiro filho de Israel, embora não o Messias há muito esperado» (12), considerando os cristãos uma nova seita . Em suma: como qual-
quer judeu crente à antiga, mas sem os exageros a que a tradição o condenou, quer de um quer de outro lado. Numa palavra: ficção branda, nem carne nem peixe. Quando muito, uma visão humana de Jesus no seu tempo. Já líamos o livro quando vimos no DN (21.III.07) a notícia do seu lançamento mundial em Roma na véspera. Pareceram-nos sugestivas estas afirmações do consultor bíblico de Archer: «Não pretende encontrar a resposta para o mistério da vida de Judas a sua relação com Jesus continuará sempre a ser polémica , mas reaproximar os cristãos dos quatro Evangelhos clássicos ( ) A obra contém alguma especulação, claro, mas também apresenta a figura de Jesus de uma forma muito forte e mostra grande compaixão pela de Judas». Notámos algumas contradições internas (v.g. X, 30 e 35) e históricas: se Judas morreu com 70 anos no ano da destrutiva invasão por Tito (70 d.C.) não podia citar textos posteriores (datas, pág. 109). Aliás os apenas fragmentos do chamado Evangelho de Judas são datados de cerca de 180 e de tipo gnóstico (séc. II). Nem a tradução nos agradou pois foge por vezes ao português corrente e (104) não distingue Caná de Canãa, «erro vulgar em traduções»; milho (31) na Palestina no séc. I, se veio da América com descobrimentos? F. Pires Lopes.
SILVERBERG, Robert: Roma eterna. 356 págs. EUROPA-AMÉRICA, MEM MARTINS, 2006. (25,50 -)
O título é um lugar comum. Mas o conteúdo desafia-o: uma ficção nebulosa , na lógica do Império Romano como seria o mundo se o poderio romano não tivesse acabado. Fora as línguas, «tudo o mais seria igual» (339): «civilização oca, vida sem sentido» (344). Virgílio, na Eneida , concede aos romanos um império sem fim Roma: cidade e império ; urbs et orbis em tentativa de globalização. Na realidade, em 1951 A.U.C. (ab urbe condita) e na magnificência do Forum, já «tudo parecia um enorme memorial ao reino moribundo» (151). Dominam o mundo, mas nem a força militar impede que a violência espreite nas fronteiras ou que intrigas sangrentas abortem os corruptos que o dirigem. Depois, em vários pontos do globo, rebeliões e inimigos impõem outras (ou iguais) concepções, enquanto «aqueles que aqui nascem dão tudo por garantido» (20). Mas há o outro lado de Roma Um pouco na linha de recentes ficções científicas já publicadas na editora, o autor recorda neste romance (2003) como «um novo sofredor acalenta um sonho». Mas desse plano não há resultado que valha. Mais ficção histórica do que reconstituição histórica. Assim, numa viagem ficcional nos leva a assistir ao longo do Império a séculos de dominação, de guerras civis, assassinatos políticos, loucuras e perversões que fizeram a história e contagiaram tantos hodiernos na luta pela sobrevivência. A cobiça permanece e determina o assalto de fronteiras. Como outrora o dos hebreus, o grande êxodo continua «é agora» (334) à face da Roma eterna . «Limitamo-nos a brincar aos Romanos e enganamo-nos» (29). Do meio para diante, 97
o texto assemelha-se ainda mais a uma natureza-morta; sem dinâmica de futuro, volve-se para a recordação do passado. «Tudo é ridículo» e «a loucura de César é contagiosa» (199). Em mãos cada vez mais imbecis, convertia-se «o Império na entidade imortal que abarcava todo o globo» (225). Para o fim, já é mais a vida geral do que imperial: «Dormir em pé dá muito jeito na acalmia das batalhas» (273). Os períodos tratados, em cronologia ab urbe condita (A.U.C.) abrangem no nosso calendário (mas também isso é ficção) os anos que vão de 450 a 1970. O ritmo da narrativa não é muito entusiasmante, mas desperta a curiosidade e lê-se com gosto, pelo que de inédito nos conta, vg. sobre Maomé ou os Maias da América. F. Pires Lopes.
Teologia LÉON-DUFOUR, Xavier: 25 noms propres pour entrer dans la Bible. 128 págs. CERF, PARIS. (11,00 -)
Nunca é tarde demais para aplaudir uma
boa ideia como o é a que esteve na base deste livro que foi aguardando algum tempo pela apresentação. Trata-se de extractos do célebre Le Vocabulaire de Théologie Biblique, publicado sob a direcção de Léon-Dufour, já falecido, mas que, em vida, nos visitou ocasionalmente certo dia. Acabava de regressar então da América Latina, precisamente no mês em que, presumindo autorização sua, havia publicado a Brotéria um artigo seu, saído nos Études, sobre os cinquenta anos da Humani
98
generis. É também dele o preâmbulo do presente vol., organizado por um grupo de leigos sob a direcção do Padre Philippe Baud e completado na mesma série da editora por outro vol. análogo, sob o título Trente-cinq mots pour entrer dans la Bible. É certo que a obra de referência acima apontada nos permite uma abordagem aprofundada dos principais termos utilizados pela Bíblia. Contudo, a sua estatura e configuração podiam, na altura, desencorajar eventualmente os que se iniciavam de raiz nos estudos bíblicos. Para esses, continuará a ser porventura mais útil a proposta em presença, já que os «indispensáveis» 25 nomes próprios para entrar na Bíblia, aqui seleccionados, permitem familiarizar-se mais facilmente com os principais nomes bíblicos e encontrar as referências necessárias para tornar profícua a leitura das passagens bíblicas mais significativas sobre a matéria. É que os nomes dos principais heróis da História do Povo de Deus, de Arão a Yavé, têm um significado teológico específico, uma vez que cada um deles, à sua maneira, sugere uma modalidade de viver a Aliança. Muito ajudará, para tanto segundo recomendação do próprio Léon-Dufour (8) a leitura da notícia geral sobre o «Nome» que aparece na Introdução (9-16), composta à base de textos de Henri Cazelles e de Jacques Dupont. Mas isso depois de o mesmo exegeta voltar a recordar-nos, logo de entrada, algo que importa ter sempre presente acerca da simbólica bíblica: «A linguagem bíblica está assim enraizada na experiência humana, significando através de imagens materiais realidades de ordem espiritual. Uma das características da linguagem bíblica, é que
através da metáfora a imagem original conserva uma força de sugestão sempre viva. ( ). O Verbo de Deus feito carne confere o sentido pleno às realidades terrenas mais humildes tanto como aos gloriosos acontecimentos da história dos Padres» (7-8). Concluindo sumariamente sobre todos os nomes da lista apresentada pelo vol., registamos palavras finais, alusivas à epístola de Paulo: « em Jesus Cristo, Deus não se dá mais a conhecer através de um nome, mas através d Aquele que está acima de todo o nome (Fil. 2, 9)» (120). Isidro Ribeiro da Silva.
SESBOÜÉ, BERNARD: Invitation à croire. Des sacrements crédibles et désirables. 533 págs. CERF, PARIS, 2009. (32,00 -)
O presente livro, do professor emérito da
Faculdade de teologia do Centre Sèvres de Paris e também autor de uma imponente produção teológica, apresenta-se como o II tomo de Croire. Invitation à la foi catholique pour les femmes et les hommes du XXI siècle, obra aparecida em diferente editora há precisamente uma década (Éd. Droguet et Ardant, 1999). Eram aí abordadas as grandes afirmações do Símbolo dos Apóstolos, depois de prévia análise da experiência humana e do próprio acto de crer. Reconhecendo o jesuíta como insuficientes as apenas 20 páginas aí atribuídas ao tratamento dos Sacramentos, resolveu preencher essa lacuna, versando agora mais amplamente a economia sacramental da Igreja, mas mantendo o mesmo método e dirigindo-se aos mesmos destinatários, num mundo onde a prática sacramental não só regista
grande baixa como é frequentemente contestada. Este II vol., para além de apresentar como ponto de partida o significado antropológico do rito, assenta na preocupação essencial de fundamentar os sacramentos na pessoa de Cristo, antes de passar a expor, um por um, os sacramentos que constituem o septenário clássico: Baptismo, fundamento da identidade cristã por meio da entrada do neófito no mistério pascal; Confirmação, dom do Espírito e coroamento do Baptismo; Eucaristia, memorial por excelência da morte e ressurreição de Cristo e ponto cimeiro de todos os sacramentos; Penitência ou Reconciliação, conversão, perdão e reconciliação ou reentrada no mistério de Cristo; Unção dos enfermos, memorial das curas operadas por Jesus e expressão da ternura de Deus para com a humanidade pecadora; sacramento da Ordem, memorial da investidura dos discípulos por Jesus nos vários ministérios; Matrimónio, instituição humana e sacramento da Igreja, unindo os esposos na memória da união de Cristo e da Igreja. Estes sete Sacramentos são a fé vivida do mesmo modo que o Credo é a fé professada. «É a fé que, sem esquecer o domínio essencial da palavra, passa ao do agir, é a fé que toma corpo concretamente, é a fé que se compromete na vida» (323). Este organismo dos «sete ritos essenciais, constitutivos da Igreja» «sete dons permanentes do Deus trinitário aos homens» faz-nos assim «sair do rito» do rito que funciona simplesmente como tal, que levaria a fazer de cada sacramento uma caricatura dele próprio e, consequentemente, a tornar-se mero álibi do compromisso cristão. Ora, muito pelo contrário, os sacramentos, «situados na
99
charneira da palavra e do gesto», pressupõem a fé do candidato, conferem-lhe a capacidade de um comportamento evangélico e são o alimento necessário desse modo de proceder: «O cristão é convidado a levar uma vida eucarística» (Ib.). Em razão do poder de transposição simbólica, o rito apresenta-se como lugar privilegiado de expressão do sagrado. «No rito sagrado encontramos sempre a conjugação complementar e unificada de palavras sagradas e de acções santas» (17). Todavia, o equilíbrio entre palavra e acção é frágil, já que o rito pode absorver a palavra ou torná-la opaca; e, reciprocamente, a palavra pode volatilizar o rito concreto, que pertence à nossa condição de homens, e reduzi-lo a uma abstracção sem impacto na existência. Ora, os Sacramentos, cuja estrutura assenta na relação entre uma palavra e um gesto, operam a conversão cristã do rito e do sagrado: «Uma palavra acrescenta-se a um elemento, dizia S. Agostinho, e isso faz um sacramento» (19-20). O cristianismo instaura uma ritualidade nova e, em vez de nos convidar a realizar ritos sacrificiais, exorta-nos, em força, ao dom de nós próprios. A grande novidade cristã reside na referência histórica ao acontecimento de Cristo: «A referência à vinda de Jesus Cristo faz-nos sair do mito geral, porque este acontecimento é um facto histórico datado na história. A referência primeira já não é imediatamente cosmológica mas histórica: a morte e ressurreição de Cristo» o que faz dos sacramentos um memorial ou «actos de memória daquilo que Cristo realizou definitivamente por nós» (21-22). Assim, cada sacramento é, a seu modo, uma actualização do dom de Cristo na nossa vida, acompanhando a existência
100
do crente na sua longa marcha com Deus. Mas «não podemos compreender os sacramentos e a ritualidade cristã senão à luz da pessoa de Cristo», primeiro sacramento «Cristo é o sacramento de Deus por excelência» (32) , fundador e fundamento de todos os sacramentos: «Nos sacramentos, tudo vem de Cristo» (29-30). Eles são simultaneamente «sinal e causa da graça», pela simples razão de que «Cristo é na realidade simultaneamente o sinal e a causa da nossa salvação» (32). Com efeito: «Tudo o que Jesus viveu, fez e sofreu, isso são os sacramentos originais da nossa salvação» (33). Por isso: «Os sete sacramentos constituem um organismo estruturado recapitulando a totalidade do que Jesus viveu e fez» (35). Em suma, todo o simbolismo sacramentário reflecte e deixa transparecer o mistério de Cristo. São os sacramentos que fazem a Igreja «Lugar total dos sacramentos cristãos» (De Lubac, cit. 37). É a pessoa da Igreja portadora do dom de Deus e actuando através de cada ministro «o grande sujeito dos sacramentos» (Id.), respondendo, pela fé, ao grande dom de Cristo, que é na sua humanidade sacramento de Deus: «Os sacramentos fazem primeiro a Igreja, para que a Igreja possa por sua vez celebrar os sacramentos. A Igreja é santificada antes de ser santificante e recebe a sua vida dos sacramentos» (36). Esta grande visão da Igreja-sacramento advém-nos dos teólogos alemães do século XIX e foi retomada no século XX, antes do Vaticano II, por um grupo de notáveis teólogos: O. Semmelroth e K. Rahner (Alemanha), Y. Congar, Y. Montcheuil e H. de Lubac (França) e ainda por E. Schillebeeckx (Holanda). Tal perspectiva acabou por vingar oficialmente, vindo depois
a ser confirmada pelo Concílio: «É pelo Espírito do Pentecostes que Cristo constituiu o seu corpo, a Igreja, como o sacramento universal da salvação» (Lumen gentium, n. 48). A passagem de Cristo à Igreja faz-se, portanto, pelo dom do Espírito; Espírito que a Igreja invoca (epiclese) na celebração de cada sacramento. Atingimos assim, com a perspectiva até agora apontada, a realidade mais profunda dos sacramentos sem podermos, todavia, por razões óbvias de espaço, aludir sequer à sua história e referir outros aspectos : «eles são gestos de Cristo celebrados pela Igreja, no poder do Espírito que lhe foi concedido» (39). Os sacramentos testemunham, em suma, o sentido das nossas vidas. Porque receber um sacramento é professar em acto que Cristo continua presente «nas diversas formas de memorial do que ele
realizou», é professar igualmente que «a nossa vida adquire sentido à luz do que ele nos revelou do desígnio de Deus sobre nós e do que ele cumpriu em nosso favor». Assim, remetendo-nos com lisura e plena responsabilidade ao quotidiano: «Depende só de nós levar uma vida baptismal, confirmada pelo Espírito, eucarística, reconciliada, serenada na provação, vivida no amor e ao serviço da humanidade no matrimónio, ou ao serviço da Igreja pelo sacramento da ordem» (324). Nos tempos que correm, uma irrenunciável tarefa se impõe à Igreja ou a cada membro do povo de Deus a de tornar os Sacramentos «de novo desejáveis e de fazer compreender ao nosso mundo que eles são outros tantos beijos com que Cristo nos brinda: eles são por excelência a expressão da ternura de Deus» (Ib.). Isidro Ribeiro da Silva.
101
102
obras recebidas na redacção
OFERTA DOS EDITORES Aschedorff Verlag Soester Strabe 13 - 48155 Münster (Alemanha): 1) MEIER, Johannes; NEBGEN, Christoph, Jesuiten aus Zentraleuropa in Portugiesisch- und Spanisch-Amerika, 2008. Editora da Universidade do Porto Praça Gomes Teixeira - 4099-002 Porto: 1) CABRAL, João Paulo, Gonçalo Sampaio. Professor e botânico notável, 2009. Fundação Alentejo Av. Dinis Miranda, 116 - 7005-140 Évora: 1) Fundação Alentejo 1999-2009. 2) RICO, Hugo; LIBÓRIO, Tânia, Impacte do Centro de RVCC da Fundação Alentejo na qualificação dos alentejanos, 2009. 3) SARAGOÇA, José Manuel L., Tecnologias de Informação e Comunicação, Educação e Desenvolvimento dos Territórios, 2009. Mensajero Sancho de Azpeitia, 2 bajo - 48014 Bilbao (Espanha): 1) RIBADENEIRA, S.J., Pedro de, Confesiones. Autobiografìa documentada, Bilbao, Santander, Mensajero, Sal Terrae, 2009. Publicações Europa-América Apartado 8 - 2726-901 Mem Martins: 1) DUNCAN, Glen, Um dia e uma noite e um dia, 2009. 2) FINN, Robert, O perito, 2009. 3) NERUDA, Pablo, Confesso que vivi, 2009. 4) TÉNOR, Arthur, Viagem extraordinária no império dos mundos, II, 2009.
103
«...de forma breve e destinada a um público geral, a história do ensino e das actividades científicas na famosa "Aula da Esfera", possivelmente a mais interessante instituição de ensino científico na história de Portugal.» 112 PÁGINAS ILUSTRADAS A CORES PREÇO: 20 - (COM IVA E PORTES INCLUÍDOS) 104
Pedidos de envio (acompanhados do pagamento) dirigidos à Brotéria