Aproximações entre Patrimônio Cultural e Antropologia Urbana no bairro de Santa Ifigênia, São Paulo

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

FLA0516 – Práticas Culturais em Contextos Urbanos

Manifestações da memória no território de Santa Ifigênia, São Paulo: Aproximações entre Patrimônio Cultural e Antropologia Urbana

Bruna Bacetti Sousa Nº USP: 9318101 Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani

SÃO PAULO 2020


1. Resumo O presente ensaio pretende ressignificar estudos elaborados, no âmbito da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), acerca da conformação urbanística e patrimonial do bairro de Santa Ifigênia. O projeto intitulado “O complexo processo de tombamento do Bairro de Santa Ifigênia, São Paulo: três décadas de debates, tensões e conflitos pelo espaço urbano construído” focou análise no processo de tombamento do bairro paulistano aberto no ano de 1986 pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo) 1 e ainda não concluído oficialmente até a presente data. Durante a pesquisa - por meio de levantamentos historiográficos e da leitura crítica dos autos do processo em curso no órgão de preservação estadual – identificou-se uma porção de elementos materiais e imateriais que se apresentam como permanentes históricos atributos de legitimidade do conjunto urbano na atualidade; e ao mesmo tempo, explicitam fragilidades na abordagem e retratação da área pela historiografia oficial e pelos agentes e agências públicos. Intenciona-se agora olhar o território sob o viés da antropologia urbana para – à luz de seus conceitos e instrumentos de diagnóstico e interpretação do ambiente - preencher algumas lacunas presentes nas análises técnicas e apreender, de maneira mais eficiente e transversal, as referências culturais da área. Palavras-chave: Santa Ifigênia; Patrimônio Cultural; Antropologia Urbana.

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Processo SC 24.507/86 aberto em 17 de março de 1986 em Sessão Ordinária do Egrégio Colegiado do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo, ata nº 707.


2. Santa Ifigênia “de perto e de dentro” Contígua ao Centro Histórico de São Paulo e inserida no Distrito da República, Santa Ifigênia, primeiro bairro planejado da cidade 2, apresenta atualmente um conjunto urbano - histórico e, ao mesmo tempo, dinâmico representante das diversas temporalidades e narrativas constituintes da construção não só do próprio bairro, mas sobretudo, da cidade de São Paulo. As camadas históricas que se amalgamaram no território ao longo dos séculos, quer seja por sobreposição ou por justaposição, hoje apresentam-se como memórias morfológicas; arquitetônicas; paisagísticas e sociais de seu processo de formação e desenvolvimento. Seus bens edificados; o traçado urbano e a diversidade de uso, ocupação e apropriação do espaço condicionam os estudos sobre a área à investigação integrada das formas de morar, trabalhar, de devoção, lazer e deslocamento e conferem a este lugar de ambiência única pluralidade de significados e valoração dignos de preservação. A narrativa formulada e divulgada sobre o bairro é comumente baseada em sua cotidianidade marcada pela diversidade social e vocação histórica à multiplicidade de usos e ocupações. Reunindo elementos como: a localização privilegiada próxima à região central, o bem estruturado sistema de mobilidade e transporte – contando com estações de trem, metrô e, durante alguns anos, a rodoviária municipal – e a intensa e variada oferta de comércio e serviços; a região se configura concomitantemente como espaço de passagem e permanência, atraindo e abrigando desde sua formação múltiplas camadas da sociedade paulista. A primeira fase de ocupação do bairro deu-se, em meados

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Parecer Técnico UPPH nº GEI-692-2018, pg. 1 juntado ao Processo SC 24.507/86.


do século XIX, com as altas camadas da aristocracia cafeeira e suas chácaras implantadas ao redor das estações ferroviárias, substituídos no início do século seguinte pelos palacetes da classe média liberal e, mais tarde, por cortiços e habitações multifamiliares - onde se fixaram populações de baixa renda atraídas pelas atividades mistas estabelecidas ao longo do último século - tendo todos esses grupos deixado suas marcas características no tecido urbano local. O território hoje consolidado é, então, fruto dessas inúmeras contribuições de seus habitantes e usuários, que resultaram na constante reformulação do conjunto urbano desde sua formação. Se a cidade é, como qualificou LéviStrauss, a “coisa humana por natureza” ([1955]1981:117 apud MAGANANI, 2018, p. 310), mostra-se indissociável ao estudo do meio urbano o entendimento das relações humanas que nele se expressam. Assim, afim de compreender integralmente o conjunto patrimonial do bairro de Santa Ifigênia, faz-se indispensável a reflexão acerca da dimensão social deste. Arantes (2009) e Magnani (2018) partem do conceito cunhado por Meneses (2006) de interpretação da “cidade como bem cultural” para caracterizar o patrimônio cultural como “fato social” por excelência, aquele que é produto das relações de troca, aproximação e conflito entre os diferentes agentes sociais atuantes no campo de forças que é o espaço urbano, seja no plano político, econômico ou cultual. A paisagem construída a partir dessas relações dialéticas passa a constituir-se como um “agregado de representações simbólicas” portadora de significados e seus bens culturais atuam como “pontos de amarração” (Arantes, 2000b) da memória social, individual e/ou coletiva, no espaço urbano. Tais marcos territoriais ancoram experiências pessoais e acontecimentos ocorridos ao longo de diversas gerações, tornando-se dignos de proteção, conservação e


divulgação por representarem elementos fundamentais para a formação e transformação da consciência coletiva, da identidade e do sentimento de pertença. Procurando identificar tais símbolos e marcos presentes na paisagem do bairro, que atuam como suportes da memória social, e explicitar suas contribuições à atribuição de valor e sentido ao ambiente, pretende-se uma aproximação que lance ao território um “olhar etnográfico de perto e de dentro” (MAGNANI,2018). Dada a impossibilidade de produção de etnografia atualizada do local 3, a pesquisa se debruçará unicamente em reflexões a partir dos levantamentos de campo elaborados por técnicos do Condephaat nas décadas de 1980 e 2000. Através de análises do espaço físico e das relações sociais locais, intenciona-se identificar unidades significativas articuladoras dos diferentes usos e ocupações da área, afim de apreender tal território complexo e heterogêneo não de maneira totalizante indiferenciada e nem pela chave de sua excessiva fragmentação; mas por suas particularidades e seus “pontos múltiplos de apropriação desigual” (MAGNANI, 2018). O primeiro inventário sócio-espacial e cultural realizado por um órgão público de patrimônio sobre o bairro de Santa Ifigênia deu-se a partir de estudos iniciados no ano de 1982, revisados e concluídos em 1986 com a abertura do processo de tombamento do bairro pelo Condephaat. Foram enquadrados à época como elementos dignos de atribuição de valor e preservação uma extensa lista de bens materiais e ainda seu traçado urbano – remanesceste de um dos primeiros loteamentos regulares da cidade. Fica clara, a partir da seleção, a

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Em função das condições de isolamento decorrente da pandemia de COVID-19 vigentes ao longo do período de duração da disciplina.


intenção dos técnicos ao instituir como foco das políticas de preservação no bairro a salvaguarda de “conjuntos definidos por relações espaciais, estéticas e simbólicas constituídas ao longo do processo histórico de urbanização da área” 4; afastando-se da tendência característica de proteção da Área da Luz – priorizando bens isolados predominantemente portadores dos atributos de monumentalidade e excepcionalidade. A premissa da diversidade social de Santa Ifigênia – calcada no seu enquadramento como um bairro heterogêneo, dinâmico e popular - reverberou nas escolhas e indicações para o tombamento. Foram privilegiados bens testemunhos da primeira expansão urbanística da cidade, no século XIX, em estilo art-decô e art-nouveau; e ainda alguns palacetes ecléticos neoclássicos – primeiros edifícios de apartamento - do início do século XX. Tais conjuntos de edificações, que resistiram à degradação física e às constantes transformações urbanísticas implementadas no bairro, são representantes das diferentes temporalidades e das variadas formas de ocupação que ali se sucederam, apresentando desde exemplares habitacionais das classes médias urbanas, até lojas de comércio cotidiano, abarcando também hotéis ligados à dinâmica da atividade ferroviária, equipamentos públicos e clubes particulares. A despeito da denominação do processo como ‘tombamento de bairro’, o que se propôs efetivamente foi uma abordagem técnica-acadêmica, seletiva e de viés hegemonicamente arquitetônico e urbanístico frente ao território, pouco conectada com as questões sociais e imateriais inerentes ao lugar e à sua história.

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Parecer do Conselheiro-Relator Antônio Augusto Arantes de 19 de março de 1993 juntado ao Processo SC 24.507/86, fl.392 v.2.


A minuta de resolução de tombamento foi aprovada pelo colegiado do Conselho ainda em 1986 5, porém não homologada em razão de equívocos internos do órgão e, também, em função de uma apresentação de manifestação contrária à decisão por parte da municipalidade. Apenas nos anos 2000 o processo foi retomado com a atualização dos estudos para revisão da proposta; em 2009 aprovou-se a nova minuta de resolução de tombamento 6 – a qual também não contou com homologação, em decorrência de manifestações da sociedade civil contrárias ao teor das alterações em relação à proposta original - por fim, o processo foi novamente reaberto em 2017 e segue, até o presente momento de elaboração deste trabalho, em fase de análise e redação de minuta final de tombamento. Nessa nova fase, que se iniciou com os estudos da década de 2000 e aprofundou-se

em

2017,

destaca-se

uma

inflexão

no

discurso

dos

representantes técnicos do órgão de preservação; mantendo como mote a valorização da peculiar ambiência urbana do território foram introduzidas reflexões para além do simbolismo arquitetônico e estético da área, de modo a fortalecer a expressão e o entendimento integral da paisagem cultural construída. Pretendendo uma busca pela identidade do bairro e entendendo a cidade como território do presente que é, ao mesmo tempo, portadora de representações do passado, propôs-se uma nova perspectiva de aproximação ao cotidiano dos usuários e das atividades desenvolvidas no local. Delimitando

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Proposta de Tombamento do Bairro de Santa Ifigênia aprovada em 24 de março de 1986 em Sessão Ordinária do Egrégio Colegiado do Condephaat, ata nº 708. 6 A primeira revisão da Proposta de Minuta de Resolução de Tombamento do Bairro de Santa Ifigênia foi aprovada em 29 de junho de 2009 em Sessão Ordinária do Egrégio Colegiado do Condephaat, ata nº 1537.


porções do território a partir da identificação de lugares detentores de significação social atribuída pelo uso diário e histórico, estabeleceram-se novos diagnósticos que orientaram a estruturação de uma renovada proposta de tombamento para promover a valorização desses espaços por meio do sentimento de pertença. Essa metodologia de categorização dos conjuntos urbanos se coaduna à concepção de “lugar” cunhada por Arantes (2009), segundo o qual: “Lugares são espaços apropriados pela ação humana. São realidades a um só tempo tangíveis e intangíveis, concretas e simbólicas, artefatos e sentidos resultantes da articulação entre sujeitos (identidades pessoais e sociais), práticas (atividades cotidianas ou rituais) e referências espaços-temporais (memória e história). ” Dada a intencionalidade de preservação não limitada a bens isolados, mas que também não se vincularia diretamente ao instrumento da área envoltória generalizadora, uma alternativa seria a divisão do território em microáreas estruturadas a partir de equipamentos e/ou atividades âncora pontos de referência e aglutinação de determinadas práticas correlacionadas – que, quando definidas, poderiam respaldar a proposição de diretrizes de intervenção especificas para cada parcela característica do bairro. Foram identificadas três formas primordiais de uso e apropriação do espaço no bairro, sendo estas classificadas como: lugares de moradia – abarcando as residências uni e multifamiliares nas suas mais variadas tipologias – lugares de trabalho – correspondentes à hotéis, lojas e galpões – e lugares de


devoção – relacionados à Igreja Santa Efigênia e à Igreja Luterana Protestante de São Paulo. Essa divisão em macroáreas pode ser explorada mais detalhadamente à luz das categorias etnográficas concebidas no campo da Antropologia Urbana. Percebe-se grande afinidade de tal classificação ao conceito de “mancha”, que segundo Magnani (2018) está: “ [...] sempre aglutinada em torno de um ou mais estabelecimentos, apresenta uma implantação mais estável, tanto na paisagem quanto no imaginário. As atividades que oferece e as práticas que propicia são resultado da multiplicidade de relações entre equipamentos, edificações e vias de acesso, o que garante uma maior continuidade e a transforma em um ponto de aglutinação físico, visível e público para uma rede mais ampla de usuários. ”

Seguindo tais atributos, foram indicadas, pelos técnicos e conselheiros, algumas possíveis manchas na área, sendo a primeira delas chamada Santa Ifigênia Parisiense 7, localizada no entorno da Igreja Católica de mesmo nome e apresentando conjunto urbano com volumetria, tipologia e ambiência homogêneas - testemunho arquitetônico da ocupação característica do início do século XX - tal mancha se destaca por proporcionar possibilidades de encontro e suscitar práticas sociais atreladas ao centro religioso. A segunda mancha notória é denominada Santa Ifigênia Ferroviária 8, estabelecida no entorno das estações da Luz e Júlio Prestes, é assim qualificada em função de toda rede de

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Parecer do Conselheiro Jon Andoni V. Maitrejean de 22 de setembro de 2008 juntado ao Processo SC 24.507/86, fl.909 v.4. 8 Parecer do Conselheiro Jon Andoni V. Maitrejean de 22 de setembro de 2008 juntado ao Processo SC 24.507/86, fl.910 v.4.


relações e atividades estabelecidas historicamente em função da presença ferroviária nesta porção do território – o cotidiano movimentado e a concentração de estabelecimentos de serviços ligados à ferrovia são os grandes destaques deste espaço de passagem. No coração do bairro, em especial na Rua Santa Ifigênia, encontra-se uma zona de alta vitalidade e diversidade estabelecida a partir da concentração de lojas de artigos eletroeletrônicos, a qual denominaremos de Santa Ifigênia Comercial, quiçá a principal e mais característica mancha do bairro. Nas demais ruas do miolo do bairro prevalece a forte presença de exemplares de uso misto, combinando habitação multifamiliar e cortiços com atividades triviais desenvolvidas nos térreos dos edifícios, tal arranjo permite a fixação de populações de média e baixa renda na área e a consolidam como um lugar de moradia popular. O conjunto do bairro, é então essa totalidade estruturada a partir das relações estabelecidas entre seus diversos fragmentos de múltiplas e heterogêneas representações. Conforme qualifica Bosi (2003), um bairro deve ter “fechamento e proximidade de elementos, deve ser mais denso que seu entorno e permitir a dialética da partida e do retorno”, deve ainda receber peregrinações a seus “lugares mais densos de significação” – aqui entendidos tal qual “manchas”. E esses fluxos de chegada e partida, junto aos deslocamentos entre tais manchas, definem percursos e selecionam espaços de conexão entre os diversos pontos desse território mais amplo, definidos como “ marcos ou vazios na paisagem urbana que configuram passagens. Lugares que já não pertencem à mancha daqui, mas que também não se situam na de lá” (MAGNANI 2018), denominados “pórticos”.


Em Santa Ifigênia, o principal pórtico presente na paisagem é o Viaduto Santa Ifigênia – construído em estrutura metálica no ano de 1913 - possibilita há mais de 100 anos a ligação em nível entre os largos São Bento e Santa Ifigênia, facilitando a comunicação da ocupação além-Anhangabaú com o Centro Histórico da Cidade de São Paulo. Outro logradouro público que cumpre tal função congregadora de espaços diversos e possibilitam uma livre apropriação pelos usuários é o Largo General Osório, de conformação acanhada mais se assemelha a uma praça imediatamente à frente do Memorial da Resistência e no meio do caminho entre as estações da Luz e Júlio Prestes; atuando como um elemento de transição entre as escalas do bairro - interligando o eixo perimetral de equipamentos públicos monumentais ao interior de caráter popular e cotidiano. Os debates atuais no âmbito do órgão estadual de preservação ampliaram o escopo de patrimonialização do Bairro de Santa Ifigênia, preocupando-se também com seus aspectos imateriais ligados ao reconhecimento de uma Paisagem Cultural 9 digna de salvaguarda,

de modo a promover

o

reconhecimento de seu patrimônio cultural integral. Os estudos elaborados a partir de 2017 incluem a indicação de alguns bens que resgatam simbolicamente a memória da cultura cinematográfica da cidade e historicamente vinculada a este bairro - um importante centro de produção e distribuição de filmes durante o século XX. Foram destacados como “Lugares de Interesse Cultural” 10 de Santa Ifigênia bares, restaurantes e lojas que conferiam ao território uma atmosfera de

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O conceito de Paisagem Cultural aqui utilizado apoia-se na breve descrição desenvolvida por Chuva (2012) como “[...] um dos principais passos dados no sentido da superação da falsa dicotomia entre patrimônio material e imaterial, pela ênfase na relação entre o homem e o meio, especialmente se associada à noção de lugar, não como uma categoria de patrimônio imaterial, mas como um dos elos pertinentes para constituir um patrimônio cultural integral. ” 10 Instrumento legal instituído pela Resolução SC-12 de 2015.


sociabilidade e boemia ligados à indústria do cinema; e enquadram tais lugares como suportes de práticas, formas de expressão e representatividade cultural intrínsecas à vida no bairro. 3. Considerações Finais Uma última abordagem proposta com vistas a compreender o retrato do bairro nos dias atuais e expandir a percepção acerca da memória e da história do território, no passado e no presente, formula-se a partir da concepção da área como um polo cultural da cidade. A região é alvo já há muitas décadas de planos de intervenção que vinculavam a implantação de projetos culturais em edifícios públicos à requalificação – física e simbólica - do ambiente, seguindo uma estratégia de planejamento territorial conhecida por “acupunturismo urbano”. A partir da restauração de edificações portadoras dos mais célebres e monumentais cânones estilísticos arquitetônicos e de sua adaptação para abrigar equipamentos de diferentes expressões culturais intencionava-se que estes bens operassem como âncoras de transformação e valorização do seu entorno. As iniciativas que congregavam o poder público nas esferas municipal, estadual e federal à inciativa privada e, ainda, a investimentos internacionais foram inúmeras - Projeto Luz Cultural (década de 1980); Projeto Cultural Luz e Luz Cultural (década de 1990) e Programa Monumenta-Luz (passagem dos anos 1990 paras os 2000) – e manifestavam em sua totalidade um costume introjetado de apresentar como perímetros de intervenção a denominada “Área da Luz”, apesar dos projetos terem sido concebidos para áreas que abrangiam muito além do Bairro da Luz propriamente dito, estendendo-se também por porções de Santa Ifigênia, Campos Elíseos e Bom Retiro. Tal incongruência geográfica é


nociva, pois generaliza os diferentes territórios por propagar uma representação única e homogênea de espaços complexos e diversos; e, através do estimulo a apagamentos e/ou omissões das referências cultuais específicas de cada bairro, ainda promove a desconexão entre grupos sociais e os espaços por eles habitados e/ou frequentados. É por meio dessa generalização que tais programas fortalecem a apreensão desse conjunto de equipamentos como constituintes de uma grande mancha contínua de culturalização - que se espraia de Santa Ifigênia aos bairros vizinhos conectando-os metaforicamente - e formando um circuito de equipamentos culturais variados (contando com a Estação Pinacoteca e o Memorial da Resistência, o Museu da Língua Portuguesa, a Pinacoteca do Estado, a sede da OSESP e etc.) que, apesar de públicos, são considerados vetores de erudição em meio a áreas de ocupação popular e pouco dialogam ou se relacionam com a população local, suas práticas cotidianas e manifestações características. Mobilizando novamente as categorias de caracterização da apropriação do espaço urbano e aplicando-as ao bairro em estudo, a identificação de tal complexo como um circuito antropológico é corroborada pela argumentação de Magnani (2018) que atesta os “circuitos” como “ [...] o exercício de uma prática ou a oferta de determinado serviço em estabelecimentos, equipamentos e espaços que não mantêm entre si uma relação de contiguidade. [...] cujos pontos de encontro podem estar disseminados pela paisagem mais ampla da cidade, mas que constituem uma unidade significativa e reconhecida pelos usuários habituais. ”


Esse circuito tem se aprimorado constantemente e angariando novos pontos de articulação nos últimos anos. Camadas da população que antes não eram representadas ou incluídas no rol de debates, exposições e apresentações dos equipamentos tradicionais da área têm insurgido culturalmente, usando suas formas de expressão próprias como instrumento de resistência aos processos de culturalização institucionais impostos verticalmente pelo poder público - os quais são comumente mostram-se alheios ao cotidiano e à memória viva do território. Ocorre, então, o surgimento de uma nova mancha dentro desse circuito que ao mesmo o complementa, mas também vai de encontro a ele e o contradiz. Representada por casas de cultura e companhias de teatro que se envolvem com o modo de viver dos moradores, integrando-se a seus costumes, prestando assistência social à população em estado de vulnerabilidade social e trabalhando de forma a apoiar o desenvolvimento sustentável e legítimo do local, essa nova mancha se destaca e ganha importância. Essas iniciativas não governamentais que partem de coletivos como a Companhia Mungunzá de Teatro, o Pessoal do Faroeste, a Casa do Povo, o Coletivo de Galochas e etc. - devem urgentemente ser incluídos tanto nos orçamentos públicos de estímulo a produções culturais e de apoio ao desenvolvimento socioeconômico da população, quanto nos estudos técnicos e debates acadêmicos patrimoniais – visto que se conformam como lugares de integração à comunidade local, respeitando seus modos de viver, estimulando e disseminando suas formas de expressão, enfrentando a especulação e estigmatização da área como local degradado e mantendo viva a vocação histórica do território às manifestações artísticas; de maneira a fortalecer os laços dos habitantes com o bairro, perpetuando um senso de identidade calcado na


valorização das memórias sociais individuais e coletivas e na conservação de seu conjunto edificado remanescente de séculos de ocupação.

4. Bibliografia ARANTES, A. A. Patrimônio cultural e cidade. In FORTUNA, C.; LEITE, R. P. (Org.). Plural de cidade: novos léxicos urbanos. Coimbra: Almedina, 2009, p. 11-24. ARANTES, A. A. (2000b), Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas: Unicamp: São Paulo: Imprensa Oficial. BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. [S.l: s.n.], 2003. CHUVA, M. Por uma história da noção de Patrimônio no Brasil. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, v.34, 2012, p. 147-165. MAGNANI, J. G. C. Patrimônio Cultural Urbano, “de perto e de dentro”: uma aproximação etnográfica. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, v.37, 2018, p. 307-329. Processo SC 24.507/86.


Estação Julio Prestes

Santa Ifigênia, São Paulo Aproximações entre Patrimônio Cultural e Antropologia Urbana

Estação da Luz

Rua Santa Ifigênia

A

Processo de Tombamento SC 24.507/86 1

Bairro de Santa Ifigênia Perímetro de proteção Bens indicados para tombanento Área Envoltória

Manchas

2

Santa Ifigênia Ferroviária Santa Ifigênia Comercial Santa Ifigênia Parisiense

Igreja Santa Efigênia

Pórticos A. Largo General Osório B. Viaduto Santa Ifigênia

Lugares

3

1. Lugar de Moradia 2. Lugar de Trabalho 3. Lugar de Devoção base de dados: geosampa

B


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