Historiografia de Restauração do Sítio da Ressaca, São Paulo

Page 1

Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo AUH 0127 - Conservação e Restauração do Patrimônio Arquitetônico Profa. Dra. Maria Lúcia Bressan Pinheiro

Sítio da Ressaca o restauro de 1978

Bruna Bacetti Souza

9318101

Carolina Menegon Nossig

8960973

Laís Tomasi Stanich

8960701

São Paulo, junho de 2019


Sumário 1. Introdução 2. Cronologia 3. Contexto geral de preservação das casas bandeiristas 4. O Sítio da Ressaca: história e contexto até a década de 70 5. Programa CURA Jabaquara 6. O Restauro de 1978 e pós-incêndio de 1980 7. O Sítio na atualidade 8. Reflexões sobre o restauro 9. Conclusões 10. Referências bibliográficas


1. Introdução O Sítio da Ressaca situa-se na região sul de São Paulo, próximo a Estação Jabaquara e ao pátio de manobras do Metrô. Além de abrigar o Centro de Culturas Negras do Jabaquara, o Sítio possui uma casa-sede, que hoje faz parte da rede de construções históricas pertencente ao Museu da Cidade. Construída originalmente em taipa de pilão e datada de 1719 (segundo a inscrição na verga da porta do alpendre), a casa sofreu diversas modificações ao longo do tempo. Na década de 60, o entorno da casa foi loteado e, assim, sua conformação espacial foi desconfigurada, isolando a construção em um terreno extremamente instável. Na década de 70, em meio às obras de construção do metrô, foi tombada pelo Condephaat, e recebeu intervenções de restauro no âmbito do Projeto CURA Jabaquara, que compreenderam tanto a restauração da casa-sede quando a reconstituição de seu entorno imediato. Baseadas nos paradigmas construídos por Luís Saia em meio à fase heroica do SPHAN, as intervenções realizadas foram invasivas, contando com diversas operações prejudiciais à preservação da casa, e remontam a uma forma de intervir presente em muitas obras restauradas na época. Hoje, a casa do Sítio da Ressaca apresenta um quadro bastante crítico: a integridade de sua estrutura está comprometida e, em breve, a construção passará por intervenção de restauro.


2. Cronologia 1694 – Primeiro registro encontrado sobre do Sítio (documento de posse em nome do Padre Domingo Gomes Albernáz) 1719 – Construção (dedução segundo inscrição na verga da porta); Outubro de 1937 – Reconhecimento por Mário de Andrade em relatório enviado a Rodrigo Melo Franco de Andrade (Diretor do SPHAN); 1938 – Fotos de Benedito Junqueira Duarte, fotógrafo do Departamento de Cultura; 1944 – Luis Saia escreve “Notas sobre arquitetura rural paulista do segundo século”, onde reconhece a casa “como um daqueles exemplares particulares, em que o esquema ‘típico’ estava presente no agenciamento da planta” (MAYUMI, 2008); 1969 – Início do loteamento do Sítio e desconfiguração de seu contexto 1970 – Um terço da chácara é desapropriada pelo governo para a construção do pátio de manobras do metrô. O terreno continua a ser loteado. Outubro de 1972 – Tombamento pelo Condephaat pelo seu valor histórico (de acordo com processo 190/72 - segundo instrução de Luiz Saia) | Resolução SC s/n/72 1973 – Início do Programa CURA (Comunidades Urbanas de Recuperação Acelerada) 1974 – Inauguração da Estação Jabaquara do Metrô 1977 – Priorização do Programa CURA Jabaquara Outubro de 1978 a julho de 1979 – Início do primeiro projeto de restauro do Sítio 1980 – Incêndio e reparação dos danos causados Década de 1990 até os dias atuais – Obras pontuais de manutenção Abril de 1991 – Tombamento ex-officio pelo Conpresp | Resolução 05/CONPRESP/91 Novembro de 2010 – Regulamentação da Área Envoltória do Sítio da Ressaca | Resolução 08/CONPRESP/10 2019 – Mapeamento de danos e formulação de novo projeto de restauro.


3. Contexto geral de preservação das casas bandeiristas Mário de Andrade e o SPHAN em São Paulo Responsável pelo Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo desde 1935, Mário de Andrade assumiu também a diretoria da Delegacia Regional do IPHAN no Estado de São Paulo em 1937 - estendendo sua colaboração até 1945, ano de seu falecimento. Representante da chamada “Fase Heróica” do IPHAN, Mário foi uma das figuras mais importantes da missão historiográfica do órgão, período em que seus técnicos se empenhavam em registrar a identidade arquitetônica grandiosa da nação ligando o passado colonial barroco dos séculos XVII e XVIII à atualidade moderna do século XX. “Em Mário convergiam a política municipal modernizadora e nacionalista do Departamento de Cultura, e o nacionalismo do Ministério da Educação e Saúde de Getúlio Vargas. O mesmo desejo de modernidade, de formação de uma legítima identidade nacional, o mesmo projeto de recuperar e divulgar a cultura luso-brasileira, [...] monumentos arquitetônicos autóctones, livres de influências estrangeiras, que passariam a funcionar como referências da história da cidade, do estado, e do país. ” (MAYUMI, 2008, p. 294) (grifos nossos)

O esforço modernista dos arquitetos do SPHAN visava escrever a história da arquitetura brasileira ainda não registrada com base num amplo levantamento de campo para seleção dos exemplares representativos da cultura e identidades regionais dignos de tombamento federal. “A diretriz que norteou a seleção foi coerente com o esforço modernista e nacionalista de construir a memória nacional a partir dos vestígios coloniais, luso-brasileiros, desconsiderando e mesmo desprezando as manifestações neoclássicas e a variedade de estilos que constitui o Ecletismo arquitetônico. “ (LEMOS, 1993, p.23 apud MAYUMI, 2008, p.16)

É possível assimilar a metodologia e diretrizes aplicadas pela equipe paulista nos recenseamentos do Estado através do 1° Relatório Regional Paulista de 1937 e também da leitura das cartas trocadas entre Mário de Andrade e Rodrigo Mello Franco de Andrade, Diretor do SPHAN entre 1937-1945. Em um excerto da carta datada de 23 de maio de 1937 - reproduzida por Mayumi percebe-se na fala de Mário de Andrade uma forte valorização da componente histórica dos bens paulistas escolhidos como dignos de salvaguarda.


“A orientação paulista tem de se adaptar ao meio: primando a preocupação histórica à estética. Recensear e futuramente tombar o pouco que nos resta seiscentista e setecentista, os monumentos onde se passam grandes fatos históricos. Sob o ponto de vista estético, mais que beleza propriamente (esta quase não existe) tombar os problemas, as soluções arquitetônicas mais características ou originais. ” (MAYUMI, 2008, p. 16) (grifos nossos)

Dada a considerada, por Mário de Andrade, “miséria da arte tradicional paulista” 1, a componente estética/artística para a valoração da arquitetura residencial local fora abandonada em favor do atributo da antiguidade nas chamadas “casas velhas”. Estas passariam a ser identificadas então como “casas bandeiristas”, responsáveis por carregar o arcabouço histórico das técnicas construtivas coloniais e do programa da casa brasileira primitiva; colocando-as na posição de principais representantes de um modo de ocupar o território, de construir e de morar paulista característico de um tempo passado. “Se as casas bandeiristas não eram bonitas, restou-lhes naquele momento o atributo da “antiguidade”. (MAYUMI, 2008, p.30)

Luís Saia e o Paradigma da Restauração Durante todo o processo de formação e trabalho da Delegacia Regional Paulista, Mário de Andrade teve ao seu lado como assistente técnico e posteriormente sucessor, Luís Saia, “estudante de engenharia, dedicado à arquitetura tradicional, não passadista”. Assumiu o cargo de Diretor da Delegacia Regional do SPHAN em São Paulo no ano de 1946 e participou ainda da estruturação do órgão municipal de preservação do patrimônio histórico (DPH). Na Delegacia Regional, deu continuidade aos trabalhos de Mário de Andrade, priorizando os estudos e projetos de restauro da arquitetura civil em detrimento da religiosa. Responsável durante 35 anos pelas restaurações de grande parte dos monumentos paulistas, desenvolveu e aprimorou estudos e técnicas de intervenção nos edifícios de arquitetura tradicional já anteriormente visitados e valorados pelos levantamentos coordenados por Mário de Andrade.

1

Carta de Mário a Rodrigo, de 7-11-1937. In: ANDRADE, M. de. Cartas de Trabalho, correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade (1937-1945). Brasília, MEC-SPHAN-pró-Memória, Publicações da SPHAN nº33, 1981, p.75.


“Por volta dos anos 1950 um corpo de critérios e de procedimentos técnicos de restauração já havia sido consolidado através das várias oportunidades de experimentação. ” (MAYUMI, 2008, p. 16)

Em 1944, sete anos após o primeiro relatório regional paulista, Luís Saia escreve um artigo intitulado “Notas sobre a Arquitetura Rural do Segundo Século” no qual elenca e descreve 12 exemplares de residências desta tipologia no território paulista. Saia identifica as “constantes” tipológicas presentes: a planta retangular; paredes de taipa de pilão; telhado de quatro águas e cobertas com telhas de canal; implantação sobre plataforma natural ou artificial; a meia encosta, nas proximidades de um riacho; planta organizada em três faixas (social, familiar, de serviço a partir da fachada principal); depósito ou sobrado, aproveitando a acentuada inclinação do telhado; presença de alpendre encravado na fachada principal [...]. E ainda os classificou entre exemplares “puros”, onde todas as constantes estavam presentes, e os “tardios”, que contavam com a ausência e/ou alteração de algumas características principais, refletindo a degeneração do sistema social e econômico que passava a região de São Paulo entre os séculos XVII e XVIII. A experiência e intimidade de Luís Saia com tais edificações e suas restaurações proporcionaram a ele oportunidade de reunir pressupostos para os projetos de restauro subsequentes, implementados tanto pelos arquitetos do próprio SPHAN em São Paulo quanto pelo DPH. “A experiência adquirida pelo IPHAN em São Paulo, nas obras pioneiras da Igreja de Nossa Senhora do Rosário do Embú (1939), Igreja de São Miguel Paulista (1939) e Sítio Santo Antônio (1940) estabeleceu um corpo conceitual teórico e técnico respeitante à restauração dos edifícios de taipa de pilão que o próprio IPHAN transformou em paradigma quando passou a adotá-lo em todas as restaurações subsequentes: Casa do Padre Inácio (1947), Igreja de Nossa Senhora da Escada (1945), Casa do Butantã (1954), Casa do Caxingui (1967), Sítio Mirim (1967)” (MAYUMI, 2008, p. 66) (grifos nossos)

A recorrência das linhas de estudo e trabalho contemplando aspectos técnicos-construtivos, programáticos e plásticos será fundamental para a consolidação do modo de intervenção tradicional nas casas bandeiristas, definindo um paradigma para a restauração de edificações coloniais em taipa de pilão. O emprego do esqueleto de concreto armado e argamassa cimentícia para a consolidação de monumentos buscava demonstrar as vantagens dos materiais e técnicas modernas na recomposição


da imagem original dos edifícios. “Era usual também proteger o respaldo das paredes de taipa com lajes de concreto (também armado para cintar as paredes), evitando a desagregação eventual advinda de infiltração de água de chuva. ” 2. Ademais, a pintura alva à base de cal nas paredes, a utilização de extrato de nogueira para escurecer a madeira das portas e janelas e a reconstituição de gramados e calçamentos de pedra no entorno das edificações contribuíam para a ambientação das casas numa tentativa de emulação da paisagem original à época de sua construção, buscando valorizar e destacar a imagem e perfeição plástica da arquitetura brasileira seiscentista.

2

MAYUMI, 2008, p.68 apud LEAL,1977, p.41,131.


4. O Sítio da Ressaca: história e contexto até a década de 70 Segundo Lia Mayumi, no livro “Taipa, canela-preta e concreto: estudo sobre o restauro de casas bandeiristas”, no contexto de busca pela constituição da memória tipicamente brasileira, o Sítio da Ressaca foi incluído na lista de bens arquitetônicos paulistas de interesse histórico, no primeiro relatório enviado por Mário de Andrade a Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 1937. Em 1938, Benedito Junqueira Duarte, fotógrafo do Departamento de Cultura, já havia feito registros da casa. Apesar disso, ela não foi tombada pelo órgão federal, mas foi objeto de estudo dos profissionais envolvidos no IPHAN na época. Apenas em 1972, houve o tombamento da casa pelo Condephaat, processo instruído pelo parecer de Luís Saia, do mesmo ano. “Trata-se de uma das ‘casas velhas’ arroladas por Mário de Andrade no primeiro relatório enviado a Rodrigo M. F. de Andrade, em 16 de outubro de 1937, com a lista dos bens arquitetônicos paulistas de interesse histórico. Segundo Mário, teria vivido no sítio o padre Domingos Gomes Albernáz, ‘que aí mantinha oitenta cabeças de gado em 1694’, como se lê nas Cartas de Trabalho de Mário. Em “Notas sobre a arquitetura rural paulista do segundo século”, de 1944, Luiz Saia referiu-se à casa como um daqueles exemplares particulares, em que o esquema ‘típico’ estava presente no agenciamento da planta, apesar de não ter sido construído todo o lanço de cômodos correspondente ao do quarto de hóspedes. ” (MAYUMI, 2008, p. 166)


Figura 1 - Foto de 1938 de Benedito Junqueira Duarte. Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/ocupacao/mario-de-andrade/patrimonio-artistico/?content_link=8>

Como colocado por Mário de Andrade, a primeira menção ao Sítio deu-se em um documento de posse, datado de 1694, em nome do Padre Domingo Gomes Albernáz, que faleceu em 1704. Porém, segundo a inscrição na verga da porta de entrada, acredita-se que a construção seja datada de 1719, contribuindo para a hipótese de que o padre não chegou a residir na casa. A construção, ainda, possuía telhas originais remanescentes datadas de 1713, 14 e 16, bem como o nome do oleiro (CR - Cristiano Raposo, ou António Branco Raposo). Segundo Maria Cecília Naclério Homem, citada por Mayumi, a casa teria sido construída por Maria Vasconcellos, neta do capitão-mor Antonio Aguiar Barriga, governador da Capitania de São Vicente. Em escritura de venda, datada de 1742-43 e efetuada por Maria Vasconcellos a Francisca Caminha, descreve-se que “o sítio se denominava Piranga, tinha 500 braças de testada e ‘possuía casa de paredes de mão coberta de telhas, de dois lanços, moenda de roda e pomar’. ” (MAYUMI, 2008, p. 169) A denominação “Ressaca” surgiu, pela primeira vez, em documentos cartoriais de 1780. Tratase de um requerimento feito por sua proprietária, dona Tereza Paula de Jesús Fernandes, no qual


“[...] requer ‘a medição e a demarcação do Sítio da Ressaca, com quinhentas braças de testada e meia légua para o sertão nas primeiras duzentas braças, e de uma légua para o mesmo sertão nas restantes trezentas braças da dita testada, até ligar com as terras do padre Domingos Gomes Albernáz’, conforme consta no parecer de Luiz Saia, de 1972. ” (MAYUMI, 2008, p. 169)

Posteriormente, a proprietária realizou doação e venda de partes do Sítio, seguidas por diversas sucessões. “Nos textos de Saia e Naclério Homem é possível se acompanhar a sucessão da propriedade. Em 1827 o Sítio Ressaca pertencia ao padre Vicente Pires da Motta, que o vendeu em 19 de agosto de 1827 a Jorge Heath, que vendeu a Guilherme Hopkins, que por sua vez o vendeu a Henrique Heriqueson, e este, em 1853, a Francisco Antonio Mariano. A viúva de Antonio Mariano, dona Justina Mariano Peruche, vendeu os Sítios Ressaca e Simão ao quinto de seus oito filhos, Felício Antonio Mariano Fagundes. Em 1900 Felício Mariano incorporou aos Sítios da Ressaca e Simão o Sítio Olho d’Água, ficando os três sob a denominação de Ressaca. Após a morte de Felício Mariano, em 1900, seus sete filhos dividiram a propriedade entre si, em 1903, sendo sua sétima parte vendida (hipotecada) a Antonio Cantarella, em 1908, que urbanizou o bairro do Jabaquara, abriu a avenida homônima e loteou o bairro de ndianópolis. ” (MAYUMI, 2008, p. 170)

O Sítio foi urbanizado em 1960 por Antonio Cantarella, e teve seu arruamento aprovado pela Prefeitura apenas em 18 de março de 1970, ano em que um terço de sua área foi desapropriada devido à construção da Estação Jabaquara e do pátio de manobras do Metrô. Assim, o contexto da casa-sede foi totalmente desconfigurado em decorrência do loteamento e das obras públicas, e a casa permaneceu isolada devido aos cortes feitos no sítio. A fim de salvar o que restou do patrimônio, o Condephaat efetivou o processo de tombamento da casa em 1972, mas foi apenas entre outubro de 1978 e julho de 1979 que o Sítio sofreu intervenções de restauro, realizadas a partir do Programa Comunidades Urbanas de Recuperação Acelerada (CURA).


Figura 2 - Sítio da Ressaca loteado, antes da desapropriação. À esquerda, talude do morro que foi terraplenado para receber o pátio de manobras dos trens. Foto provavelmente de 1977-78. Fonte: MAYUMI, 2008, p. 168

Figura 3 - Situação da casa-sede antes das desapropriações, da terraplenagem e da restauração. Fonte: MAYUMI, 2008, p. 166


Figura 4 - Empena oeste da casa, onde antes da restauração já se vê, através do revestimento da parede, uma fissura. No plano recuado, um trem do Metrô. Foto provavelmente de 1977-78. Fonte: MAYUMI, 2008, p. 170

Figura 5 - Muro de arrimo decorrente do isolamento da casa em terreno exíguo, quase sem guardar recuos das divisas em relação ao edifício. Foto provavelmente de 1977-78. Fonte: MAYUMI, 2008, p. 169


5. Projeto CURA Jabaquara Na década de 60, as discussões internacionais do campo do restauro consolidavam novas terminologias, como ‘revalorização’, revitalização’ e ‘requalificação’. Esses conceitos foram inseridos na realidade paulistana primeiramente a partir de visitas realizadas pelos consultores da Unesco, iniciadas em 1967. Em 68, a Unesco publica o relatório da visita ao Brasil do consultor Michel Parent, cujo enfoque era “a valorização do patrimônio no contexto da intensa industrialização, do rodoviarismo, do crescimento e da repentina transformação das cidades. ” (MAYUMI, 2008, p. 171) Nesse mesmo ano, iniciavam-se as obras das duas primeiras linhas do Metrô (Norte-Sul, Leste-Oeste), que acarretaram em grandes operações urbanas na cidade. Assim, surgiu a necessidade de inventariar o patrimônio cultural urbano e ambiental dos trechos afetados pela nova rede de transporte. Em 1972, criou-se o Programa CURA, que consistia em uma proposta urbanística desenvolvida para promover a qualificação de bairros através da oferta de infraestrutura e equipamentos públicos e comunitários3. Em 1973, o Programa foi transformado em uma linha de financiamento do Banco Nacional de Habitação (BNH), a qual foi aderida pela Prefeitura do Município de São Paulo no mesmo ano. A Empresa Municipal de Urbanização (Emurb) foi responsável pela coordenação do programa na cidade, já que exercia parceria com o Metrô na elaboração de planos de reurbanização de áreas diretamente servidas pela nova rede de transporte. Inicialmente, quatro áreas foram definidas como prioritárias, incluindo o Jabaquara, que foi objeto de intervenção 4 anos depois da adesão ao programa. O Projeto CURA Jabaquara, de 1977, a fim de propor a remodelação da área, teve que lidar com duas realidades conflitantes. De um lado, havia a crescente demanda do mercado imobiliário pelo adensamento da região devido à construção da Estação do Metrô Jabaquara. Do outro, era necessária a reconstituição de um sítio adequado para a casa-sede do Sítio da Ressaca, preservando suas visuais.

3

LUCCHESE, Maria Cecília. Curam-se cidades: uma proposta urbanística da década de 70. São Paulo: Universidade de São Paulo (Dissertação de mestrado), 2004.


Figura 6 - O perímetro 4 corresponde à área de renovação imobiliária. Em vermelho, dentro do perímetro, está a casa-sede do Sítio. Na margem direita, o perímetro do metrô Jabaquara. Fonte: MAYUMI, 2005, p. 172

O Projeto, enfim, foi dividido em quatro áreas, sendo uma delas a área destinada à renovação imobiliária. Nela, estava situada a casa do Sítio da Ressaca, demarcada em vermelho na figura 6. No canto direito, encontra-se o perímetro da Estação do Metrô Jabaquara. As condições da casa-sede em meio a um terreno isolado e desconfigurado definiram como prioridade não só a restauração no edifício, mas também a reconstituição de uma ambientação digna para a casa e a proposição de um uso cultural para o projeto. Como afirmou a diretora da Divisão de Preservação do DPH, Carla Milano Benclowicz, no texto de justificativa do programa de revitalização da área: “A melhor maneira para se proteger um edifício ou um sítio urbano de valor histórico, é inseri-lo nas funções vitais e contemporâneas da área onde ele se encontra. Para sua revitalização fazem-se pois necessárias soluções modernas e criativas, para uma melhor adaptação às novas funções previstas.


No caso da casa sede do Sítio da Ressaca, foi fundamental na formulação da proposta de revitalização, a análise dos seguintes aspectos: as exíguas dimensões do imóvel, a topografia acidentada do terreno, as dimensões da área a ser desapropriada, a escassez de equipamentos ligados à cultura na região, o alcance limitado de um pequeno museu histórico e a possibilidade de se criar uma futura identificação cultural na paisagem urbana local. Foi pois objetivo da proposta, a valorização do Sítio da Ressaca, devendo esta ser realizada através dos seguintes enfoques concomitantes: - o primeiro, visando o restauro do edifício histórico, no intuito de restituir-lhe seu valor arquitetônico camuflado por sucessivas reformas, situando-o dentro de sua perspectiva histórica; - o segundo, propondo o tratamento adequado do edifício histórico e sua área envoltória, prevendo-se a distribuição espacial criteriosa de espaços abertos e fechados para abrigar as atividades culturais previstas para o local; - o terceiro, procurando implantar no local as diferentes atividades artísticas da SMC, numa programação organizada conjuntamente às sociedades representativas da coletividade, a fim de atuar dinamicamente no seu progresso cultural. ” (MAYUMI, 2008, p. 179)

Portanto, para a intervenção na área foram então estabelecidas cinco operações: 1) a desapropriação da área; 2) a restauração da casa; 3) a remodelação de seu entorno imediato através da implantação de uma praça; 4) a construção de um anexo, onde se instalou o Centro Cultural do Jabaquara; 5) a definição de diretrizes de ocupação do entorno visando à preservação das visadas da casa. Com essas diretrizes e sob o gerenciamento da Emurb, foram contratados o arquiteto Gustavo Neves da Rocha Filho para o projeto do centro cultural, a paisagista Rosa Kliass para o projeto da praça envoltória, e o arquiteto Antônio Luiz Dias de Andrade, Janjão, para a coordenação da intervenção na casa-sede. As obras foram acompanhadas por engenheiros da Emurb e pela Divisão de Preservação do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), que, concomitantemente à Casa do Tatuapé, teve no Sítio da Ressaca uma de suas primeiras experiências de restauração deste tipo arquitetônico.


De acordo com as declarações de Carla Benclowicz e Luís Saia em seus pareceres na década de 70, é possível notar que já havia um discurso empenhado em definir novo uso do edifício de acordo com as demandas modernas, além de reinserir o objeto no contexto urbano atualizado. Portanto, foi definido que o edifício deveria abrigar atividades museológicas. Além disso, havia também a busca por uma conexão direta entre a arquitetura colonial e a moderna, tidas como as expressões legitimamente brasileiras, objetivo que se materializou com a construção do Centro Cultural do Jabaquara ao lado da casa. O Centro Cultural foi pensado de forma a abrigar a maior parte das atividades, como cinema, teatro, biblioteca, salas expositivas, entre outros, buscando concordar com as atividades museológicas da casa, sob tutela do DPH. Visualmente, o Centro Cultural buscou preservar as visuais da casa, sendo instalado em uma cota bem inferior. O projeto paisagístico de Rosa Kliass, em consonância com essa mesma proposta, buscou recompor o terreno envoltório da casa e a antiga vegetação, baseando-se nas fotos de 1938 de Benedito Junqueira Duarte.

Figura 7 - Situação em 1979. À esquerda, o Centro Cultural em construção. À direita, a casa ainda com o muro de arrimo à sua volta, mas já no terreno aterrado. Fonte: MAYUMI, 2008, p. 179

A última operação do conjunto consistia na definição de diretrizes para ocupação do entorno, para a qual foram realizados estudos de gabarito buscando manter as visuais da casa. Vale ressaltar


que esses estudos também contemplavam o cone de aproximação do Aeroporto de Congonhas, relativamente próximo à área. Segundo Lia Mayumi, “[...] Os parâmetros de ocupação foram definidos em relação ao cone de aproximação do aeroporto de Congonhas e à preservação das visadas da casa sede do Sítio da Ressaca, tanto as que partem dela como aquelas que a atingem partindo do ponto mais alto da região, correspondente ao sítio onde se localiza a estação Jabaquara do metrô. A definição e o detalhamento de diretrizes em forma de índices geométricos e numéricos pela Empresa de Urbanização decorreram basicamente da necessidade de serem fornecidos balizamentos aritméticos aos empreendimentos imobiliários dos terrenos a serem reurbanizados. Um desses empreendimentos, destinado à construção de prédios de apartamentos, deveria ser viabilizado juntamente com a construção de um calçadão de pedestres (que nunca foi construído, embora fosse obrigação da empresa imobiliária) que, constituindo uma linha de visada a partir da estação em direção ao monumento, permitiria fruição visual. ” (MAYUMI, 2008, p. 177)

Por fim, a operação de restauro da casa é hoje objeto de muitos debates. Sendo pensada de acordo com os parâmetros da época, a intervenção incidiu sobre muitos aspectos construtivos e materiais da casa, e buscou reconstituir, como afirmou Carla Benclowicz, “seu valor arquitetônico camuflado por sucessivas reformas, situando-o dentro de sua perspectiva histórica”.


Figura 8 - Regulação de gabaritos no entorno da casa-sede, elaborada em função da preservação das visadas desta. Fonte: MAYUMI, 2008, p. 175


6. O Restauro de 1979 e pós-incêndio de 1980 O restauro do Sítio da Ressaca foi mais um exemplo de intervenções em casas bandeiristas, o qual visava a conformação dessa tipologia e o retorno de sua imagem pura. No caso desse sítio, o conceito da restauração foi de “(...) restituir-lhe seu valor arquitetônico camuflado por sucessivas reformas, situando-o dentro de sua perspectiva histórica”

4

ou seja, recomendava-se a retomada da

feição primitiva do edifício. Essa diretriz foi apoiada pelo arquiteto responsável pela coordenação do projeto Antônio Luís Dias de Andrade, Janjão, como pode ser observado em seu relatório de visita ao edifício, de 8 de dezembro de 1978: “(...) Os serviços poderão ser contratados em duas etapas, correspondendo inicialmente aos trabalhos de limpeza, remoção dos acréscimos posteriores e prospecção, que fornecerão elementos mais seguros para uma segunda fase, de recomposição e restauração do monumento. (...) Pudemos observar que (...) o telhado foi reforçado, com a colocação de pontaletes e mãos francesas, afora todo o barroteamento do forro. Estes elementos deverão ser removidos na recomposição do partido original da cobertura. ” 5

Nesse mesmo relatório, Janjão realiza o planejamento da obra segundo os critérios adotados pelo IPHAN desde 1938, com a divisão da obra em duas grandes etapas: investigativa (de limpeza e prospecção) e a restauração propriamente dita, com o papel de configurar esteticamente o edifício. Sob essa perspectiva, a valorização da obra se dá pela sua matéria estrutural original e por sua configuração original, de modo que os acréscimos construídos ao longo do tempo são vistos como interferências sem valor histórico ou artístico. Alguns dos procedimentos tradicionais consolidados pelo IPHAN são representativos dessa visão: o descarnamento total das paredes; a introdução do esqueleto de concreto armado; o preenchimento das lacunas nas bases das paredes com placas de concreto; a execução de novo revestimento com argamassa cimentícia; o novo piso de solo-cimento; a calçada de contorno da casa com pedras. (MAYUMI,2008, p.184). No caso do Sítio da Ressaca, no plano realizado por Janjão, que elenca as intervenções a serem feitas na obra, ainda sem detalhamentos, pode-se observar a aplicação desses preceitos:

4

Texto justificativo do programa de revitalização do Sítio da Ressaca, elaborado pela Diretora da Divisão de Preservação do DPH Carla M. Benclowicz. Fonte: Acervo DPH/STPRC. 5 Texto do relatório citado em MAYUMI, Lia. Taipa, canela-preta e concreto: estudo sobre o restauro de casas bandeiristas. São Paulo: Romano Guerra, p. 183, 2008. Grifos realizados pela autora.


“1) Prospecções: remoção completa do revestimento, interna e externamente, para exame minucioso das paredes, e de eventuais vestígios de reformulações das envasaduras e da possível existência de sobrado; 2) Recomposição da estrutura: alicerces de concreto armado e concretagem de brocas. Vigas baldrames. Amarração das paredes. Concretagem das colunas e vigas; 3)

Recomposição

da

estrutura

com

placa

de

concreto

com

tratamento

impermeabilizante, substituindo o atual encamisamento de tijolos, a fim de dar maior proteção ao embasamento; 4) Piso: remover completamente, e refazer em solo-cimento; 5) Envasaduras: recompor as originais, restaurar as esquadrias remanescentes; 6) Carpintaria: as originais são de canela-preta, sassafrás e ipê. As novas são de peroba (esquadrias) e cedro (caixilharia); 7) Recomposição do revestimento das paredes: aspecto e textura semelhantes à tabatinga poderão ser obtidos através de massa de adequado traço de cal, cimento e saibro em substituição à areia, o que aumentará a plasticidade da massa; 8) Calçamento: ao redor da casa, recomenda-se pedra para a proteção da obra.” 6

Para melhor compreensão das intervenções realizadas no restauro do Sítio da Ressaca, elas serão apresentadas seguindo os grandes temas apresentados no relatório de Janjão.

a. Consolidação da parede no trecho comprometido No início das obras, em 14 de novembro de 1978, já havia sido diagnosticada a desestabilização estrutural envolvendo os alicerces e o muros de taipa. A proposta de Janjão para consolidação estrutural consistiu na construção de uma viga baldrame auxiliar de concreto armado no perímetro da casa. Contudo, essa primeira proposta sofreu mudanças a partir do início de janeiro de 1979, quando a parede do banheiro se desagregou do conjunto e ameaçou ruir. “No dia 11 de janeiro, face a ocorrência de falha estrutural na empena SW, foram interrompidos os trabalhos em andamento (prospecção e execução de reforços). (...)

6

Id. Ibidem.


(...), pode-se desde já, apontar o roteiro dos trabalhos a serem empreendidos, de acordo com o cronograma de obras estabelecido:

1 - Consolidação da parede no trecho comprometido; 2 - Reforços estruturais no restante do Edifício; 3 - Desmonte e substituição das peças danificadas da cobertura; 4 - Recomposição da cobertura: estrutura, trama e entelhamento; 5 - Recomposição dos primitivos espaços do Edifício: área posterior e piso do sobrado; 6 - Recomposição dos revestimentos; 7 - Recomposição das envasaduras e pisos; 8 - Acabamento e pintura. ”

7

Segundo Mayumi, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas S.A. (IPT) foi contratado para elaboração de um laudo estrutural de emergência, que deveria indicar as possíveis razões para o solapamento da parede, que afundou 20cm numa extensão de 4m. As possíveis causas foram a retirada do encamisamento de tijolos, a escavação da base da parede para construção do sistema de consolidação e prospecções arqueológicas, fatores responsáveis pela diminuição da espessura do maciço de taipa, além da existência prévia de vazamentos originários das instalações de água e esgoto. A falha estrutural na empena sudoeste acarretou no deslocamento da parede sudeste.

7

ANDRADE, Antônio Luiz Dias de. Relatório complementar: obras Sítio da Ressaca. São Paulo: 28 de fevereiro de 1979. Disponível no Solar da Marquesa, Museu da Cidade de São Paulo.


Figura 9 - Desenho do IPT, mostrando a redução de 60% da espessura da parede provocada pelas obras. Acervo DPH/STPRC. Fonte: MAYUMI, 2008, p. 195

Duas soluções foram apresentadas para a resolução do problema. A primeira, elaborada pelo IPT, consistia na demolição do trecho comprometido e sua substituição por uma parede de alvenaria de tijolos. A segunda proposta, realizada por Janjão e executada, tinha como objetivo “salvar” parte do material existente e consistia na construção de esqueletos horizontais que suportariam três vigas baldrames a serem concretadas na base dos muros de taipa. A consolidação das partes desagregadas foi realizada com argamassa armada, interna e externamente. “Esse foi o conceito de consolidação adotado para tornar novamente monolítico o trecho de parede desagregado. Se ele por um lado conservou todos os fragmentos do material original, por outro lado, acarretou prejuízo para a espessura da parede acabada (devido à capa de argamassa armada) e para a autenticidade material do maciços de taipa (os interstícios entre os pedaços desagregados foram irreversivelmente preenchidos por argamassa de cimento).” 8

Além disso, para concretizar essa consolidação da parede, foi necessário realizar o reforço estrutural do restante do edifício. Isso foi feito através da amarração das paredes com pinos de aço.

8

MAYUMI, Lia. Taipa, canela-preta e concreto: estudo sobre o restauro de casas bandeiristas. São Paulo: Romano Guerra, p. 186, 2008.


Figura 10 - Perspectiva a partir das fachadas noroeste e sudeste. Em: MAYUMI, 2008, p. 188

b. Recomposição da cobertura O sistema de consolidação das paredes e da estrutura do edifício foi completado com a alteração do sistema estrutural da cobertura. Janjão propôs a substituição dos frechais de canelapreta por vigas de concreto armado, apoiadas sobre lajes de concreto. O vão entre o respaldo e os elementos da cobertura foi fechado com alvenaria de tijolos. Essa solução adotada é inusitada nas restaurações das casas bandeiristas.


Figura 11 - Cortes longitudinais da cobertura e detalhes: antes e depois. Em: MAYUMI, 2008, p. 189

A cobertura também foi inteiramente refeita, sendo todas as telhas substituídas. Isso ocorreu ao longo do restauro de 1979, e o trabalho teve de ser refeito no ano seguinte após um incêndio na cobertura.

c. Recomposição dos primitivos espaços do edifício Um dos outros princípios essenciais do restauro desta casa bandeirista é o retorno à sua imagem original - não necessariamente de fato, uma vez que não se havia informação suficiente sobre a casa, mas a ideia que se tinha das casas bandeiristas. Seguindo esse critério, Janjão propôs a reconstrução de uma parede, que teve seus resquícios revelados durante as prospecções arqueológicas. Apesar de a posição da parede ter sido encontrada, a prospecção não fora suficiente para revelar o local exato da porta de passagem. A dúvida foi suficiente para fazer o DPH vetar a reconstrução, veto que foi justificado pela necessidade de ambientes mais amplos para comportar a atividade museológica pretendida para o imóvel.


Figura 12 - Plantas da casa, antes e depois da restauração. Em vermelho, a marcação da parede encontrada durante as prospecções arqueológicas. Em: MAYUMI, 2008, p. 192

d. Recomposição dos Revestimentos Outra alteração realizada normalmente no restauro das casas bandeiristas é a recomposição dos revestimentos. Os revestimentos das paredes, apesar de constituírem matéria original, não são valorizados como documento - de forma que são descartados desde o princípio para realização das prospecções. Janjão apresenta duas justificativas para a remoção e substituição dos revestimentos das paredes (além da necessidade de realizar as prospecções arqueológicas): o mau estado de conservação e a necessidade de remoção para realizar a consolidação estrutural. Descarnando todo o edifício, propôs-se refazer um revestimento que recompusesse o aspecto irregular característico das paredes de taipa e o aspecto plástico da tabatinga. O procedimento adotado consistiu em: 1) remover todo o material despregado; 2) umedecer ligeiramente a taipa; 3) lançar um


chapisco de cimento e areia (traรงo 1:4), de espessura uniforme; 4) executar a camada de acabamento com argamassa de cimento, cal e areia fina (traรงo 1:3:7), usando desempenadeira metรกlica (a areia mais fina e a desempenadeira metรกlica contribuem para um aspecto menos granuloso e rugoso).


7. O Sítio na atualidade Desde seu restauro em 1978, o Sítio tem passado por vistorias e manutenções periódicas, que contemplam ações em instalações elétricas, pinturas e acessibilidade. Porém, desde o início dos anos 2000, a casa passou a apresentar rachaduras nos mesmos locais afetados nas intervenções de 1978. Além das rachaduras, o piso já aparenta estar reclinado. Ainda no ano de 2019, há previsão de um novo restauro para consolidar sua estrutura e, portanto, estão sendo realizados novas inspeções e levantamentos. Nas imagens, é possível notar a parte posterior da casa escorada e as rachaduras encontradas atualmente.

Figura 13 - Empena posterior, atualmente escorada. Foto de Carolina Nossig


Figura 14 a 17 - Problemas estruturais encontrados na casa-sede atualmente. Fotos das autoras

Como exposto anteriormente, além de problemas na casa-sede, o Sítio da Ressaca também possui questões relacionadas à sua área envoltória. Aparentemente, ela foi regulamentada oficialmente só em 2010, quando foi publicada a Resolução nº 08/2010 - Regulamentação da área


envoltória da Casa Sede do Sítio da Ressaca - em nível municipal, pelo Conpresp. Nesse contexto, a visual pretendida entre a Estação Jabaquara e a casa-sede já havia sido obstruída pela construção de diversas torres residenciais ao longo do trajeto. Através do mapa da Regulamentação, nota-se que a área de obstrução da visual já havia sido até mesmo excluída da Resolução.

Figura 18 - Mapa da Resolução nº 08/10, que define as diretrizes de gabarito da área envoltória ao Sítio. Fonte: DPH


Figura 19 - Entorno do Sítio da Ressaca. Observa-se que a visual entre o Metrô (canto superior direito) e a casasede (canto inferior esquerdo) foi comprometida com a produção de diversos condomínios verticalizados


8. Reflexões sobre o restauro À luz dos conceitos da Carta de Veneza redigida no ICOMOS de 1964, o grupo buscou relacionar tais indicações com as escolhas de projeto da equipe de arquitetos encarregada pela restauração do Sítio da Ressaca no fim da década de 1970. Organizando as intervenções em grandes temas, verificamos a concordância ou não destas com as premissas presentes nos artigos da referida carta patrimonial, a mais atual à época das obras de restauro. a. Valoração histórica e não estética, artística, arquitetônica Artigo 1°: “A noção de monumento histórico [...]. Estende-se não só às grandes criações, mas também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural. ” Artigo 3º: “A conservação e a restauração dos monumentos visam a salvaguardar tanto a obra de arte quanto o testemunho histórico. ”

Verificamos a noção de ‘monumento histórico’ muito presente no processo de valoração das Casas Bandeiristas, que inicialmente eram denominadas apenas ‘casas velhas’, mas que com o decorrer dos estudos acerca de suas características ganham o atributo da antiguidade, do testemunho histórico mesmo não sendo classificadas a partir de atributos estéticos e monumentais.

b. Ineficiência dos esforços de manutenção Artigo 4°: “A conservação dos monumentos exige, antes de tudo, conservação permanente. ”

Refletindo acerca da situação atual do imóvel, percebe-se que as açõe de manutenção realizadas foram feitas de forma pontual e não muito eficiente, dada a necessidade de um novo projeto de restauro integral da edificação.

c. Apropriação favorece a preservação Artigo 5º: “A conservação dos monumentos é sempre favorecida por sua destinação a uma função útil à sociedade”


Destaca-se a importância de um uso que ative o patrimônio e no caso do Sítio da Ressaca optou-se pela construção de um Centro Cultural contíguo à casa colonial, abrigando novas e variadas funções ao terreno do Parque. Contudo, atualmente o sítio apresenta poucas atrações e é, relativamente, vazio.

d. Recomposição do estado original da edificação / Desconsideração das camadas históricas que se sobrepunham no edifício Artigo 6°: “A conservação de um monumento implica a preservação de um esquema em sua escala. Enquanto existir, o esquema tradicional será conservado [...]” Artigo 9°: “A restauração é uma operação que deve ter caráter excepcional” Artigo 11°: “As contribuições válidas de todas as épocas para a edificação do monumento devem ser respeitadas, visto que a unidade de estilo não é a finalidade a alcançar curso de uma restauração [...]”

A opção pela conservação do dito “esquema tradicional” ignorou diversas camadas integrantes da historicidade do edifício, optando pela eternização de um programa original mesmo se fosse necessário recompor elementos integralmente. Ao mesmo tempo que integrava ao entorno da casa novos elementos (como o Centro Cultural e o projeto paisagístico do parque projetado por Rosa Kliass)

e. Ausência de distinguibilidade entre as intervenções do restauro e a composição original Artigo 9°: “ [...] todo trabalho complementar reconhecido como indispensável por razões estéticas ou técnicas destacar-se-á da composição arquitetônica e deverá ostentar a marca de nosso tempo. Artigo 12°: “Os elementos destinados a substituir as partes faltantes devem integrar-se harmoniosamente ao conjunto, distinguindo-se, todavia, das partes originais a fim de que a restauração não falsifique o documento de arte e de história. ” Artigo 15°: “[...] Os elementos de integração deverão ser sempre reconhecíveis [...]”


Intervenções nas paredes, envasaduras e telhado feitos com novos materiais e emulando a aparência original foram documentadas, porém não explicitamente distinguidas na edificação.

f. Arqueologia/interdisciplinaridade Artigo 9°: “ [..] A restauração será sempre precedida e acompanhada de um estudo arqueológico e histórico do monumento. ”

Verifica-se nos arquivos do DPH os cadernos de campo registrando os estudos e prospecções arqueológicas que acompanharam a obra de restauro. Atualmente, alguns existem elementos encontrados nas escavações encontram-se expostos na casa.

g. Uso de técnicas e materiais modernos e o paradigma da restauração Artigo 10°: “ [...] a consolidação do monumento pode ser assegurada com o emprego de todas as técnicas modernas de conservação e construção cuja eficácia tenha sido demonstrada por dados científicos e comprovada pela experiência. ”

O uso de técnicas e materiais modernos demonstra a atualidade das intervenções propostas, integrando-se aos preceitos modernistas tão em voga à época do projeto de restauro. As experiências dos restauros anteriores criaram o paradigma de como deveria ser elaborado e executado a restauração de edificações em taipa de pilão.

h. Intervenções muito invasivas Artigo 15°: “[...] Os elementos de integração deverão [...] reduzir-se ao mínimo para necessário para assegurar as condições de conservação e restabelecer a continuidade das formas. ”

Algumas escolhas de projeto desde a fase de prospecção (escavação para estudo do solo) até as intervenções escolhidas (uso de concreto armado nos trechos das paredes que sofreram solapamento) enfraqueceram e sobrecarregam estruturalmente o edifício, não sanando os problemas originais.


i. Documentação do processo Artigo 16°: “Os trabalhos de conservação, de restauração e de escavação serão sempre acompanhadas pela elaboração de uma documentação precisa sob a forma de relatórios analíticos e críticos, ilustrados com desenhos e fotografias. [...] Essa documentação será depositada nos arquivos de um órgão público e posta à disposição dos pesquisadores [...].”

Todo o processo foi muito bem documentado em forma de cadernos de levantamento de campo e croquis as situações originais e das intervenções propostas, encontrando-se nos arquivos do DPH. A tese de doutoramento junto ao livro sobre as Casas Bandeiristas, ambos escritos pela Lia Mayumi, ajudam muito na acessibilidade às informações.


9. Conclusões Ao fim do processo de estudo acerca do histórico da edificação e da análise das intervenções realizadas antes, durante e após o projeto de restauro da década de 1970, o grupo elaborou reflexões à luz da teoria ministrada em aula e dos textos indicados para leitura crítica. À primeira vista o fator que mais chama a atenção é o estado de conservação da casa na atualidade, apresentando inúmeras patologias, principalmente de origem estrutural (fissuras e inclinação das paredes, exposição da fundação, etc.). As ações de manutenção já não são mais eficientes para manter a edificação em segurança e pleno uso, logo, faz-se necessário um novo projeto de restauração que solucione os problemas gerados pelas agressivas intervenções e pela substituição integral de elementos originais, que sobrecarregaram a estrutura e alteraram a relação entre os materiais componentes do sistema. A difícil distinguibilidade dos acréscimos e/ou substituições também merecem destaque na análise. A opção dos arquitetos pela recomposição original do sítio - mesmo com boa documentação elaborada - não deixa explícito na obra, principalmente aos leigos, quais elementos de fato resistiram ao tempo e mantiveram-se íntegros e quais são novas contribuições que emulam uma perfeição formal jamais existente, verdadeiros falsos históricos. A última questão levantada à reflexão refere-se aos conceitos que embasaram o projeto de restauro, constituídos por Luís Saia na década de 1940. No ano de 1944, Luís Saia escreve o artigo “Notas sobre a Arquitetura Rural do Segundo Século”, para o oitavo número da Revista do SPHAN. Nele, fundamenta ideológica e arquitetonicamente os procedimentos de restauros pelos quais foi responsável e a partir dos quais consolidou-se o paradigma da restauração. Segundo Lia Mayumi, os conceitos expressos na Carta de Atenas dos CIAM de 1933 servem de embasamento para a argumentação de Saia. Inspirando-se nos artigos 65 e 66 da referida carta, afirma na página 55 do artigo em questão: “Do ponto de vista apenas documentário, foi obedecido um preceito da arquitetura moderna: honestidade no uso do material, respeito às legítimas verdades arquitetônicas, que mandam conservar aquelas peças que realmente sejam documentos de uma época e um povo. Da maneira com que se agiu ninguém, conhecedor de engenharia, pode ser enganado a respeito de restauração, nem a respeito da obra tradicional. ”


Através da leitura do excerto assimila-se o respeito do autor aos preceitos da Carta a qual estabelecia que “Serão salvaguardados (edifícios isolados ou conjuntos urbanos) se constituem a expressão de uma cultura anterior e se correspondem a um interesse geral. ” Além disso na estratégia de ambientação do monumento, sua adaptação ao tecido urbano modificado e nas negociações entre a paisagem urbana do presente e o cenário histórico primitivo também se faz presente conceitos fundamentados na Carta. Assim, sendo os conceitos de Luís Saia constituídos a partir das discussões da primeira metade do século XX, nota-se que há um anacronismo nas intervenções de restauro da década de 70, das quais o Sítio da Ressaca participa. Isso porque, no momento do restauro, outros conceitos já haviam sido colocados internacionalmente através da Carta de Veneza (1964), sobre a qual os arquitetos do DPH e o corpo técnico da equipe de restauro tinham conhecimento. Os preceitos da Carta de Veneza foram, assim, negados em prol das ideias construídas por Luís Saia, 35 anos antes.


10. Referências bibliográficas ANDRADE, Antônio Luiz Dias de. CASA SEDE DO SÍTIO DA RESSACA: Relatório de Obras. São Paulo: 16 de maio de 1979. Disponível no Solar da Marquesa, Museu da Cidade de São Paulo. ANDRADE, Antônio Luiz Dias de. Relatório complementar: obras Sítio da Ressaca. São Paulo: 28 de fevereiro de 1979. Disponível no Solar da Marquesa, Museu da Cidade de São Paulo. ANELLI, Renato Luis Sobral. Urbanização em rede: Os Corredores de Atividades Múltiplas do PUB e os projetos de reurbanização da Emurb (1972-82). Vitruvius, Arquitextos, set. 2007. Disponível em: <http://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.088/204>. Acesso em: 11 mai. 2019. ANTUNES, Fátima. A casa-sede do Sítio da Ressaca. Secretária Municipal de Cultura de São Paulo, 31 ago. 2010. Disponível em: <https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/patrimonio_historico/ladeira_memoria/ind ex.php?p=8218>. Acesso em: 11 mai. 2019. Casa do Sítio da Ressaca. Museu da Cidade de São Paulo. Disponível em: <http://www.museudacidade.prefeitura.sp.gov.br/quem-somos/sitio-da-ressaca/>. Acesso em: 11 mai. 2019. Estação Jabaquara - Linha-1 Azul | Metrô São Paulo. Disponível em: <http://www.metro.sp.gov.br/sua-viagem/linha-1-azul/estacao-jabaquara.aspx>. Acesso em: 11 mai. 2019. IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Cartas Patrimoniais. Carta de Veneza. 1964. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Veneza%201964.pdf>. Acesso em: 01 jun. 2019 MAYUMI, Lia. Taipa, canela-preta e concreto: estudo sobre o restauro de casas bandeiristas. São Paulo: Romano Guerra, 2008. MAYUMI, Lia. Taipa, canela-preta e concreto: estudo sobre o restauro de casas bandeiristas em São Paulo. São Paulo: Universidade de São Paulo (Tese de Doutorado), 2005.


Patrimônio Artístico: Casa do Padre Albernaz. Itaú Cultural, 2016. Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/ocupacao/mario-de-andrade/patrimonio-artistico/?content_link=8 >. Acesso em: 11 mai. 2019. SUANO, Marlene. Relatório Tarefa. São Paulo: 2 de janeiro de 1979. Disponível no Solar da Marquesa, Museu da Cidade de São Paulo.

Resoluções: CONDEPHAAT _ Resolução SC snº/72 - Trata do tombamento da casa-sede do antigo Sítio Ressaca

CONPRESP _ Resolução nº 05/91 - Trata do tombamento “ex-officio” de diversos bens. Resolução nº 08/10 - Trata da regulamentação de diretrizes para intervenções na área envoltória do Sítio da Ressaca


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.