Amália Rodrigues - Suplemento Jornal do Fundão

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Com ternura da Amália

Município do Fundão recebe importante acervo de memória da diva do fado e pretende assinar um protocolo com a Fundação Amália. Coleção servirá de base a conteúdo expositivo da futura Casa Amália.

Este Suplemento faz parte integrante da edição do «Jornal do Fundão» do dia 24 de agosto de 2023 e não pode ser vendido separadamente

HOMENAGEM / MUNICÍPIO PROJETA FUTURA CASA AMÁLIA NO FUNDÃO

OFundão não esquece Amália

Alcina Cerdeira, Vereadora do Município do Fundão

Amália da Piedade Rodrigues, Amália Rodrigues ou, apenas, Amália. O tempo transformou-a em várias Amálias, mas sempre como a mesma verdade e coerência durante a sua longa carreira. O seu nome continua presente e bem vivo na memória dos portugueses e dos seus admiradores e seguidores pelos quatro cantos do mundo. Amália cantou e conquistou, com o seu enorme talento uma marca indelével na cultura portuguesa. Foi, sem dúvida, a primeira mulher a internacionalizar a música portuguesa. Justamente, foi, também, a primeira mulher a receber honras no Panteão Nacional de Portugal. Sentimos orgulho por esse reconhecimento honesto, uma vez que o povo sempre a venerou, isto é, amou-a incondicionalmente e continua a amá-la. Como prova disso, entre outros pormenores, todos os dias vemos flores naturais junto da campa de Amália. No próximo dia 6 de outubro, decorrem precisamente 24 anos desde que Amália Rodrigues partiu, deixando um rasto de saudade. O seu legado está presente nos trilhos que o fado continua a percorrer, porque Amália teve a impressionante capacidade de trazer um outro mundo ao fado. Esse foi o seu destino, o fatum, que carregou sempre, através da sua voz exuberante, que com beleza, emoção, dramatismo e uma profunda intensidade, enchia qualquer palco.

Amália Rodrigues é do Fundão, é de Portugal e do mundo, que tão bem soube, através dos seus versos, cantar a sua razão de ser, rasgada por uma sina, uma “Estranha forma de vida”.

Amália tem uma profunda ligação às Beiras. Do Fundão “é materna”, sobretudo pelo lado da sua mãe, Lucinda Rebordão, que por sinal também cantava muito bem. Foi batizada na Igreja Matriz do Fundão, no dia 6 de julho de 1921, conforme consta do assento de batismo na Paróquia do Fundão.

A artista soma sucessos no mundo e canta, pela primeira vez, no Olympia, em 1956, a par do filme francês, em 1954, os “Amantes do Tejo”, onde cantou “Barco Negro”. Frequenta as maiores salas do mundo, levando a tal bravura e a sua maneira de cantar da Beira Baixa às grandes salas de espetáculos, os tais “rodriguinhos”, que se denominam melismas. Nos Estados Unidos da América, no ano 1966, o coração dos americanos encheu-se com o Folclore que a nossa fadista levou e que surpreendeu a plateia, tendo ido buscar esses temas populares

Indíce

Amália, o Fundão e a Beira Baixa

P.3 a 5

A família de Amália no Fundão

P.6/7

Espólio de Amália Rodrigues no Fundão

P. 8/9

Entrevista Estrela Carvas

P. 10 a 12

Fundação Amália

P.14

Crónica Fátima Nobre P.14

Concurso de fado Amália

P.15

Associação Fado Cale

P.15

“A Casa Amália Rodrigues vai integrar a Rede de Casas e Lugares do Sentir, que irá nascer na Rua da Cale para acolher o espólio e ajudar-nos a contar a história da Diva do Fado.”

às cantigas que a sua mãe interpretava quando se juntavam nos serões de família. É essa matriz que se encontra na génese de Amália.

O Fundão não se esqueceu dela, apesar de tantas controvérsias. Há nove anos, lançámos o Concurso de Fado Amália Rodrigues, que tem sido um enorme sucesso. Daqui já saíram grandes vozes do fado, fadistas que fazem precisamente do fado “um modo de vida.” Recentemente, nasceu, na Rua da Cale, a Associação Fado Cale, que promove o fado, a nossa identidade e os nossos fadistas. No âmbito do centenário do nascimento de Amália, em parceria com o Jornal do Fundão, foi lançado o livro "Amália: A raiz e a voz", com o objetivo de recordar as raízes de Amália, com capa da autoria de Álvaro Siza Vieira. Para celebrar essa efeméride, junto à Praça Amália Rodrigues, nasceu um mural que identifica muito bem a sinceridade de uma arte que nasceu no Fundão.

Há pouco tempo atrás, recebemos da Sr.ª Estrela Carvas o seu espólio pessoal, que doou à Câmara Municipal do Fundão, e que é composto por fotografias, dezenas de LP,s, recortes de jornais recolhidos e colecionados durante dezenas de anos, livros, revistas, que irão fazer parte da futura Casa Amália Rodrigues. A Casa Amália Rodrigues vai integrar a Rede de Casas e Lugares do Sentir, que irá nascer na Rua da Cale para acolher o espólio e ajudar-nos a contar a história da Diva do Fado. Para o êxito do projeto, contaremos com a participação de diversos parceiros, como é o caso da Fundação Amália Rodrigues, a Associação Fado Cale, vários privados, entre outras instituições relevantes. O acervo doado tem uma grande particularidade: reúne a história de Amália Rodrigues em artigos que foram publicados na imprensa nacional e internacional, a partir, sensivelmente, dos 11 anos da nossa benemérita, Sr.ª Estrela Carvas, a grande amiga, confidente e assessora de Amália Rodrigues. À Estrela queremos agradecer, por nos ajudar a recontar a história da vida artística de Amália Rodrigues, que está intrinsecamente e eternamente ligada ao Fundão e ao Concelho. Este suplemento do Jornal do Fundão pretende promover, desenhar e dar a conhecer os novos projetos do Município do Fundão, que vão certamente reescrever a história de Amália Rodrigues na eternidade, na sua terra, nesta casa que foi sempre sua.

Ficha Técnica

Edição: Jornal doFundão.

Diretor Jornal do Fundão: Nuno Francisco.

Coordenação: Rui Pelejão e Pedro Silveira.

Paginação: Benvinda Martins e Jorge Chorão.

Textos: Arnaldo Saraiva, Pedro Silveira, Fátima Nobre e Rui Pelejão. Contactos Jornal do Fundão

Morada: Rua dos Restauradores, L. 14, Loja 1 r/c , 6230-496 Fundão. Tel.: 275779350.

Email: redaccao@jornaldofundao.pt.

Website: www.jornaldofundao.pt.

24 de agosto de 2023 Amália

Amália, o Fundão e a Beira Baixa

Lá pelos idos de 1987, quando os mandantes da televis ã o ainda n ã o eram al é rgicos à cultura, o então único canal RTP transmitia nas tardes de sábado o programa ABZ, que era conduzido por Júlio Montenegro, e que contava com a minha colaboração e de uma pequena equipa de que, entre outros, faziam parte Adriano Nazaré e Cândido Lima. Um de nós sugeriu um dia que se convidasse Amália Rodrigues para uma entrevista; e ela, que seguia semanalmente o programa, acedeu logo ao convite, pondo apenas como condição – para grande espanto meu – que fosse eu a entrevistá-la.

A entrevista foi relativamente longa.

Lembro que fal á mos dos pa í ses onde mais gostava de cantar (“a Roménia, a França, a Itália, o Japão... todos”), das canções que privilegiava (“agora é o «Povo que lavas no rio»”), da sua relação de autora com a poesia (“poesia não”... ”sou um bocado cantigueira, ponho-me a escrevinhar”...), dos aplausos (sem os quais não podia viver) e das pateadas (“só tive uma, aqui no Porto, mas não foi a cantar, foi por chegar atrasada” ), do fado, naturalmente, mas também de outros tipos de música. Quando me disse que gostava muito da música brasileira e especialmente da música espanhola (“mais dentro do meu temperamento”), atalhei:

– “Sem esquecer a música da Beira Baixa...” E logo ela:

– “A música da Beira Baixa então... então espraio-me toda.”

Aproveitei esta confissão para encerrar a entrevista, com estas palavras:

– ”Se pudéssemos, pedir-lhe-íamos para cantar a «Santa Luzia», porque foi numa festa de Santa Luzia, no Castelejo, que vimos pela primeira vez esta grande senhora da canção nacional, esta grande senhora da canção internacional”.

E ia s ó acrescentar um breve agradecimento quando Amália me interrompeu. Tendo tomado as minhas palavras como um pedido que, juro, não estava nas minhas intenções – “se pudéssemos” traduzia da minha parte a ideia de uma impossibilidade –, Amália surpreendeu toda a gente, dizendo:

“Recorde-se que o avô materno de Amália, António Joaquim Gonçalves Rebordão, em casa de quem viveu até aos 14 anos, nascera ali ao lado, no Souto da Casa; que nascera a escassos quilómetros, em Alcaria, a sua avó materna, Ana do Rosário Bento; que a sua mãe, Lucinda, era do Fundão.”

– ”E este grande senhor /.../ realmente está a fazer-me uma grande partida, porque tenho muita vergonha de começar agora aqui a cantar, porque não sou capaz de cantar assim...”

Mas, feita a advertência “depois não digam que estou a cantar mal”, sem gastar nenhum segun-do em concentração, Amália “espraiou” a sua melhor voz, no melhor estilo do típico cantar da Beira

Baixa:

Luzia, Nossa Senhora Luzia

Ai vinde abaixo dar-me a mão

É comprida a ladeira é comprida

Ai não me ajuda o coração.

Foi um momento mágico, dos mais sublimes que a televis ã o portuguesa j á produziu – e que, estranhamente, nunca nenhuma biografia, ou filme, ou vídeo de Amália lembrou, nem nunca entrou no youtube.

Aliás, nunca em disco ou espetáculo se ouviu Amália cantar a “Santa Luzia”, que Fernando Lopes Graça qualificou como “preciosa”, “de um estranho melodismo oriental” (A Canção Popular Portuguesa, p. 52). Mas em sua casa ou nas dos seus familiares muitas vezes a terá ouvido e cantado. Ela mesma lembrou, em entrevista de Abílio Laceiras (Jornal do Fundão, 17 de Janeiro de 1992), que a sua mãe “cantava cantigas da Beira Baixa”, como a “Santa Luzia”; e noutra entrevista, de Veríssimo Baptista, também ao Jornal do Fundão (29 de Março de 1991), afirmara: – “Eu devo a mim sentir que podia cantar a Santa Luzia. Ora, qualquer pessoa que não seja, que não esteja ligada, que não tenha laços à Beira Baixa não pode cantar aquilo.”

Mais: como se lê em Amália – Uma Estranha For- ma de Vida, de Vítor Pavão dos Santos, “a família de Amália ia anualmente em peregrinação” ao Santuário de Santa Luzia do Castelejo. Recorde-se que o avô materno de Am á lia, Antó nio Joaquim Gon ç alves Rebordão, em casa de quem viveu até aos 14 anos, nascera ali ao lado, no Souto da Casa; que nascera a escassos quilómetros, em Alcaria, a sua avó materna, Ana do Rosário Bento; que a sua mãe, Lucinda, era do Fundão; e que o seu pai, Albertino, como o seu avô paterno Jorge Rodrigues, nascidos em Castelo Branco, tinham-se fixado no Fundão, onde nasceram e viveram os numerosos irmãos de Amália; só ela e a sua irmã mais nova, Odete, nasceram em Lisboa, mas no seu caso... “por acaso”, disse ela em entrevista de Fernando Assis Pacheco (O Jornal, 15 de Janeiro de 1988).

E recorde-se que tanto pelo lado materno como pelo lado paterno era notório o gosto musical.

Amália por várias vezes fez o elogio da voz das tias e sobretudo da mãe, que António Paulouro, que muitas vezes a ouviu, disse ser “voz puríssima”, tida por muitos fundanenses como “o nosso rouxinol”, “o rouxinol do cimo da vila” (Jornal do

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MEMÓRIA / AS RAIZES DA FADISTA NA REGIÃO DR Amália Rodrigues sempre reconheceu influência do canto da Beira Baixa

Fundão, 17 de Abril de 1987); mas ele também fez o elogio de Jorge Rodrigues, “seleiro, convidado para cantar nas missas solenes”, e do seu filho, que o acompanhava em coros e que tocava o cornetim com um “sentimento que não vinha no papel, tinha-o ele, mais ninguém”. Não admira que sejam numerosas as canções da Beira Baixa que Amália cantou em palcos nacionais e internacionais, ou de que existe algum registo gravado. Lembremos, entre as mais belas e mais típicas, “Quando eu era pequenina”, “Don Solidon”, “Martírios”, “Senhora do Livramento” e “Milho grosso”, de que só conhecemos um extraordinário fragmento, incluído por Carlos Coelho da Silva em Amália, O Filme (2008), no qual se vê e

“Mas não devem esquecerse as canções que Amália interpretou de Arlindo de Carvalho, as quais, como ele próprio dirá, tanto devem às canções que ouviu desde menino da boca de camponeses e camponesas, ganhões e pastores da Beira Baixa.”

ouve Amália a cantar com a sua mãe, que faz a “segunda voz”.

Mas não devem esquecer-se as canções que Amália interpretou de Arlindo de Carvalho, as quais, como ele pró prio dirá, tanto devem às canções que ouviu desde menino da boca de camponeses e camponesas, ganhões e pastores da Beira Baixa: ”As moças da Soalheira”, “Verde lim ã o” ,”Fadinho Serrano”, “Azeitona maçanilha” (com letra de Luís Simão) e a fabulosa “Hortelã mourisca” (com letra de José Vicente).

Nem deve esquecer-se que Amália cantou o “Natal dos simples” (ou “Natal dos mendigos”) de José Afonso, canção que, se tem a ver com alguma música popular espanhola, não deixa de conter elementos populares da Beira, na música como na letra; o próprio Zeca lembrou a propósito dessa canção: ”Na região de Alpedrinha e nos ambientes da Beira-Serra, lá para os lados de Folgosinho, os mendigos acercam-se dos portais dos grandes senhores para cantar as janeiras e encher os alforges de pão e castanhas”

(Cantares de José Afonso, p. 80). A música popular da Beira Baixa também pesou, e de que maneira, no modo de cantar e de compor do Zeca, que por sinal incluiu no seu repertório de grande intérprete canções populares beirãs como “Senhora do Almortão”, “Milho verde”, “Resineiro engraçado”. O espantoso é que, como Amália (e como Fernando Pessoa), Zeca tinha sangue de fundanense, pois no Fundão nascera não a sua mãe, que era

Edição

JF editou livro histórico no centenário de Amália

Com ilustração de capa de Àlvaro Siza Vieira e organização do Professor Arnaldo Saraiva, o “Jornal do Fundão” publicou por ocasião do centenário do nascimento de Amália Rodrigues um livro de homenagem à fadista.

“Amália, a Raiz e a Voz” reuniu documentos inéditos e recolheu testemunhos únicos com textos de artistas, intelectuais e escritores como Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gisela João, Carlos do Carmo, Custódio Castelo, Camané, Manuel Alegre, José Alberto Sardinha, Maria João Pires, Pedro Abrunhosa, Sérgio Godinho, Rui Zink ou Rui Vieira Nery. O livro pode ser adquirido ao balcão do “Jornal

do Fundão” ou online através do seguinte link: https://espacolivro.eu/ bookazine/753-amalia-a-raiz-e-a-

Nunca é tarde para conhecer melhor Amália. Nos cem anos do seu nascimento, impunha-se a tentativa de definir com mais rigor o seu perfil de grande Diva, de repensar ou analisar o seu extraordinário percurso, nacional e internacional, na música, no teatro, no cinema, na televisão, mas também se impunha a tentativa de iluminar com novas luzes a raiz ou as raízes que sustentavam e alimentavam a sua personalidade e o seu canto. Se Amália estava arreigadamente fixada em solo lusitano, que nunca por longo tempo trocou por outro, as suas raízes mais fundas mergulhavam em terras ou culturas da Beira Baixa e do Fundão, como este livro provará sem risco de desmentido.

Compreender-se-á que o Jornal do Fundão que além do mais a teve sempre como amiga, quisesse celebrar dignamente o centenário do seu nascimento; e achou que, chamando a atenção, como nunca fora feito, para as raízes fundanenses e beirãs de Amália, não podia contentar-se com uma visão bairrista ou regionalista, como a que veiculavam algumas publicações lisboetas.

“Amália não é um exclusivo da capital nem do fado: contemse as numerosíssimas canções folclóricas do seu repertório, que provêm de todas as regiões de Portugal – e algumas até são comuns a várias regiões, ou tornaramse comuns graças a ela.”

beirã de Aveiro, mas o seu pai, e talvez o tio Filomeno com quem, por volta dos 9 anos, ele foi viver a poucos quilómetros do Fundão, em Belmonte.

Lembre-se ainda que Amália tornou famosa a canção “Covilhã, cidade neve”, que para ela escreveram em 1970 Nóbrega e Sousa e Joaquim Gon çalves, por sugestão de Duarte Simões e por intermediação de Campos Costa, como este mesmo revelou no Notícias da Covilhã de 1 de Abril de 1994. E poderíamos acrescentar que Amália também cantou, musicado por Alain Oulman, um dos mais sublimes poemas escritos por um beirão, a “Cantiga partindo-se”, de João Roiz de Castelo Branco.

AMÁLIA

A RAIZ E A VOZ

Consciente de que aquilo que tinha “na massa do sangue” era “a maneira de cantar da Beira Baixa” (Vítor Pavão dos Santos, Amália, Uma Biografia, p. 196), Amália não se limitou a revitalizar, a nacionalizar e internacionalizar canções da sua terra, ou que falam da sua terra; como muitos músicos e musicólogos – desde Frederico de Freitas – reconheceram, é verdade que sem aprofundarem a questã o, ela marcou e transformou o fado com as modulações ou os modismos, a “ornamentação vocal melismática” (Ruy Vieira Nery, Para uma História do Fado, p. 233) da música e do cantar da Beira Baixa, cuja beleza, riqueza e complexidade não escapou a estudiosos como Rodney Gallop, Lopes Graça, Michel Giacometti. Pois apesar disso, a Beira tem permitido uma excessiva lisboetização de Amália, como a que já se fez do fado, que até levou à liquidação patrimonial ou à rasura do “fado de Coimbra”.

AUTORES António Alves Fernandes, António Melo, Antonio Saez Delgado, António Valdemar, Arnaldo Saraiva, Augusto

Am á lia n ã o é um exclusivo da capital nem do fado: contem-se as numerosíssimas canções folclóricas do seu repertório, que provêm de todas as regiões de Portugal – e algumas até são comuns a várias regiões, ou tornaram-se comuns graças a ela. Nem é um exclusivo nacional, por muito que isso doa aos que só vêem nela “a alma portuguesa”: contem-se as suas canções estrangeiras, ou veja-se o seu sucesso internacional. Mas só ignorantes ou distraídos deixarão de ver o peso específico que na sua música e no seu canto teve a música e o canto da Beira Baixa, que por ela chegou, sublimado, a todo o planeta.

24 de agosto de 2023 Amália
EDIÇÃO DIFUSÃO & DISTRIBUIÇÃO APOIOS
Canário, Caetano Veloso, Camané, Carlos do Carmo, Custódio Castelo, David Ferreira, Gisela João, José Alberto Sardinha, Lúcia Reis, Manuel Alegre, Manuel Cargaleiro, Maria Bethânia, Maria João Pires, Nadejda Kozlenko, Pedro Abrunhosa, Roberto Vecchi, Rui Pelejão, Rui Vieira Nery, Rui Zink, Sara Pereira, Sérgio Godinho, Vítor Pavão dos Santos ORGANIZAÇÃO Arnaldo Saraiva EDIÇÃO Rui Pelejão, Joana Morão GRAFISMO E PAGINAÇÃO Joana Torgal DESENHO DA CAPA Álvaro Siza ISBN 978-972-96499-2-9 TIRAGEM 000 exemplares ENCADERNAÇÃO Capa brochada com badanas PÁGINAS 210 DIMENSÕES 150 x 200 x 15 mm À VENDA NO JORNAL DO FUNDÃO jornaldofundao.pt assinaturas@jornaldofundao.pt AMÁLIA A RAIZ E A VOZ Nunca é tarde para conhecer melhor Amália. Nos cem anos do seu nascimento, impunha-se a tentativa de definir com mais rigor o seu perfil de grande Diva, de repensar ou analisar o seu extraordinário percurso, nacional e internacional, na música, no teatro, no cinema, na televisão, mas também se impunha a tentativa de iluminar com novas luzes a raiz ou as raízes que sustentavam e alimentavam a sua personalidade e o seu canto. Se Amália estava arreigadamente fixada em solo lusitano, que nunca por longo tempo trocou por outro, as suas raízes mais fundas mergulhavam em terras ou culturas da Beira Baixa e do Fundão, como este livro provará sem risco de desmentido. AUTORES António Alves Fernandes, António Melo, Antonio Saez Delgado, António Valdemar, Arnaldo Saraiva, Augusto Canário, Caetano Veloso, Camané, Carlos do Carmo, Custódio Castelo, David Ferreira, Gisela João, José Alberto Sardinha, Lúcia Reis, Manuel Alegre, Manuel Cargaleiro, Maria Bethânia, Maria João Pires, Nadejda Kozlenko, Pedro Abrunhosa, Roberto Vecchi, Rui Pelejão, Rui Vieira Nery, Rui Zink, Sara Pereira, Sérgio Godinho, Vítor Pavão dos Santos ORGANIZAÇÃO Arnaldo Saraiva EDIÇÃO Rui Pelejão, Joana GRAFISMO E PAGINAÇÃO DR: Coleção João Barroca
Em Castelo Novo com a irmã Celeste Rodrigues e amigos, entre os quais Armando Paulouro

A Beira Baixa parece que nunca se deu conta disso; nunca lhe prestou uma grande homenagem, que ali á s Lisboa também nunca lhe prestou, pois foram demasiado pobres as que lhe fizeram no Coliseu lisboeta, e é melhor nem falar nas do La Féria; desprezou-a ou esqueceu-a, até em nomes de instituições e de ruas. E no entanto Amália é nome de centro cultural em Rio Tinto, de alameda na Charneca da Caparica, de avenida na Amadora, Odivelas, Sintra e Cascais, de praça e praceta em Vila Franca de Xira, Santa Iria da Azoia, Arruda dos Vinhos, Lourel, de jardim em Lisboa, e de rua em várias cidades e povoações, até do Brasil e de Espanha, algumas delas com nomes tão improváveis como Unhos, Castelões de Cepeda, Cepães, Abuxarda.

Em quantas terras da Beira é lembrada Amália Rodrigues? (Talvez sejam lembrados sujeitos que não têm nada que ver com elas, nada fizeram por elas, e nem são dignos de memória.) O Fundão, onde os pais de Amália a projectaram, é um triste exemplo: quando ela conhecera os

“Lembre-se ainda que Amália tornou famosa a canção `Covilhã, cidade neve´, que para ela escreveram em 1970 Nóbrega e Sousa e Joaquim Gonçalves, por sugestão de Duarte Simões e por intermediação de Campos Costa.”

primeiros triunfos alguém dali a chamou para um espetáculo beneficente, o qual só foi pago com uma lápide – que José Sampaio lamentou, no Jornal do Fundão de 5 de Abril de 1991, estar havia muito perdida; a Câmara resolveu há anos dar o nome de Amália a um espaço público que não está devidamente valorizado, e atribuir-lhe uma medalha, que demorou anos a entregar-lhe. Compreende-se o desabafo que Amália, que nunca se bateu por honrarias, deixou em 1991

na entrevista de Veríssimo Baptista: ”no fundo acho que o Fundão, de verdade, de verdade, não tem assim grande carinho por mim”.

Sim, o Fundão e outras terras da Beira não têm sabido honrar e mostrar a sua gratidão a Amália, nem têm sabido valer-se do trunfo que Amália é. Com tal trunfo já outras terras, não só portuguesas, teriam construído um museu, erguido uma escultura, organizado um roteiro, editado um cd ou um dvd, fomentado publicações, colocado placas em casas ou lugares.

Não se trata de bairrismo provinciano, e Amália sobreviverá bem sem tais homenagens. Trata-se de um acto de gratidão e de reconhecimento, que presentifica na comunidade quem tanto fez (e faz) por ela, e trata-se de um acto de cultura, que promove e prestigia a arte musical, que estimula a alegria do canto e da criação, e que vale como incentivo para quantos, a braços com as dificuldades típicas do interior português, sonham com horizontes ilimitados, ou tão só com o bom

cumprimento da sua vocação e com a dignificação da sua vida.

Daqui desafio os três presidentes, que sei que prezam os valores culturais, das C â maras do Fund ã o, da Covilh ã e de Castelo Branco, as cidades da fam í lia amaliana, a congregarem esforços para que seja prestada a Amália a grande homenagem que a Beira Baixa ainda lhe deve, tantos anos j á passados sobre a sua morte. Uma homenagem em que se ouçam as canções beirãs por ela imortalizadas e internacionalizadas nas vozes dos melhores cantores portugueses que, estou certo, não faltarão. Uma homenagem regionalmente motivada, mas que no entanto deverá ter cariz e dimensão nacionais. Amália, afinal, foi a mais bela e expressiva voz que Portugal já deu ao mundo. .

• Texto Publicado no livro “Amália: A Raiz e a Voz”, Julho de 2020, edição Jornal do Fundão com produção editorial “Canto Redondo”

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Coleção João Barroca Com a irmã Celeste Rodrigues e amigos no Fundão DR Com António Paulouro no Jornal do Fundão DR A célebre visita de Amália à Romaria de Santa Luzia no Castelejo

Os primos de Amália do Fundão

Alguns dos familiares de Amália Rodrigues no Fundão recordam memórias de família com a fadista

Portugal, no início do século XX passa por um momento difícil, com a entrada da I Guerra Mundial e a Implantação da República no País. Temos um País profundamente rural, atrasado, paupérrimo, e uma taxa de analfabetismo que rondará os 70 por cento. Uma população constituída por cinco milhões de habitantes. A febre pneumónica é uma realidade, a taxa de mortalidade infantil é altíssima, e umas das primeiras vítimas dessa doença foi a irmã da fadista Amália Rodrigues, conhecida carinhosamente por Aninhas, que faleceu com 16 anos, bem como o “Zezinho” e o António, que ainda meninos morreram. No que diz respeito ao Fundão, a sua população rondava as três mil pessoas, uma terra marcadamente rural, onde o comboio combateu o isolamento e o vazio da Vila.

Fundão, Terra e raiz de Amália Rodrigues

Por terras do Fundão viviam ali no Rua dos Galegos a família de António Joaquim Gonçalves Rebordão, natural de Souto da Casa, casado com Ana do Rosário Bento, de Alcaria. Desse matrimónio nasceram 16 filhos, uma das filhas chamava-se Lucinda Rebordão, a mãe da nossa fadista

Amália Rodrigues. Lucinda Rebordão casa com Albertino Rodrigues, e o jovem casal foi residir para uma casa simples no Rua dos Galegos. Nasceram desse matrimónio, nove filhos, Amália Rodrigues é a quinta filha. José Filipe Gonçalves, segundo primo de Amália Rodrigues, explica-nos que António Joaquim, o avô de Amália Rodrigues ajudou a construir a Casa Acastelada do Fundão, cujas obras terminaram em 1917. Teve aqui uns problemas financeiros e rumou até Lisboa à

procura de melhores condições de vida. Os pais Amália também foram “às sortes,” pouco tempo depois, com destino à capital. Todavia, mais tarde, regressa ao Fundão sem eira nem beira. As dificuldades eram tantas que a deixaram ao cuidado dos avós maternos, a bebé Amália Rodrigues, com apenas 14 meses, que viveu com os avós até aos 14 anos. Os restantes filhos de Albertino e da Lucinda Rebordão regressam ao Fundão.” Além do Rua dos Galegos, a Rua da Cale assume uma importância de relevo e emocional na vida dos familiares de Amália Rodrigues: “O Carnetim do Ti Albertino tocou muito na Rua da Cale, nomeadamente na oficina de sapateiro do seu cunhado, Filipe Duarte, aquando o seu regresso de Lisboa.

Amália Rodrigues um certo dia veio cá e estacionou o seu carrão americano na Rua da Cale. Amália, na altura, comprou uma bela de uma máquina, depois de uma longa digressão, onde ganhou muito dinheiro. Quando se soube que Amália estava na Fundão, a Rua da Cale encheu-se de gente, porque era uma segunda-feira, dia de mercado e estava cá toda gente do concelho, inclusive os bombos de Lavacolhos. Foi um festival de carinho manifestado com a prima Amália, abrigando-a a sair à rua, e até cantou os cânticos de Santa Luzia. Amália tentou comprar uma Quinta no Fundão. Manifestou esse desejo, mas, infelizmente não se concretizou. O local escolhido seria ali para os lados da Quinta do Ouro. Como alternativa,

resolveu comprar no Brejão.” Os avós que criaram e educaram Amália Rodrigues viviam com grandes dificuldades em Lisboa:“ Eram tempos difíceis, como deve imaginar.

Sazonalmente enviavam Amália para o Fundão para junto de sua família. Havia tanta pobreza, tanta fome, que a irmã da mãe de Amália Rodrigues, a Ti Maria do Carmo acolhia Amália nessas temporadas. Ela tinha uma taberna no Fundão e a pequena Amália ajudava a Tia nas lides da taberna, servindo uns copos de vinho. Também limpava o estabelecimento, em troca da estadia e de alimentação. Era uma Tia de pulso e um pouco severa. Já na altura Amália cantava os tangos do Gardel, e os clientes adoravam ouvi-la,

DR

24 de agosto de 2023 Amália
REPORTAGEM / FAMÍLIA DA FADISTA COM RAÍZES NO FUNDÃO Amália com a família no Fundão

como deve imaginar, pedindo-lhe que cantasse mais. Um dia tentou fugir de casa, seguindo a linha do comboio, com destino até Alpedrinha. Os familiares foram buscá-la, e regressa novamente a casa, tendo levado um grande corretivo. Amália vinha frequentemente ao Fundão, mas de quando em vez; isto é, nunca se esqueceu das suas raízes. Os pais de Amália voltam para Lisboa e Amália aos 14 anos vai viver com os seus pais.

A tristeza da Amália, terá a ver pelo facto de viver a sua infância, fora do calor dos seus pais. Marcas que também fazem parte do seu fado, uma dor, um sofrimento.”O avô de José Filipe Duarte Gonçalves, que se chamava Filipe Duarte casou com Ana Rebordão ( irmã da mãe de Amália) e era sapateiro na Rua da Cale, número de polícia nª 137. “Ainda hoje lá está a Casa junto à loja da Maria, frente ao Rosel. O meu avô Filipe era sapateiro e o Albertino era seleiro e sapateiro. Albertino animava a oficina do meu avô, e era já na altura um músico que era muito cobiçado pelas duas bandas Filarmónicas do Fundão, a Música Nova e a Velha. Tocava cornetim, e bem. Gostava de viver bem a vida (risos). Amália já em idade adulta frequentava a casa dos meus avôs na Rua Cale. A minha

“Eram tempos difíceis e sazonalmente os pais enviavam Amália para o Fundão para a casa da Ti Maria do Carmo, que tinha uma taberna onde Amália ajudava e cantava

mãe Zezinha era prima confidente de Amália, e trocavam muitas impressões sobre a vida. A Lucinda cantava tão bem os Martírios, que os aprendeu aqui, no Fundão. Na procissão da Semana Santa, a Lucinda fazia de Verónica, e levava o Santo Sudário. As pessoas paravam para a ouvirem, enquanto cantava os Martírios, que era acompanhada cornetim do seu marido. Era um momento alto. Seria, de certeza absoluta, uma grande artista, se tivesse oportunidade. Amália aprendeu e tentou aprender com a sua mãe alguns timbres, algumas músicas populares ligadas ao cancioneiro do concelho do Fundao. Amália aprendeu uns certos retoques, que identificam os cantares da Santa Luzia... de origem mourisca, que terá aprendido com a esposa do Sr. Torrinhas, que vivia ali no Beco dos Combatentes. Foi dali que saiu o Cortejo para a Romaria de Santa Luzia com os carros de bois do Sr. Eloio, devidamente enfeitados. Amália

foi convidada para a Inauguração do Cinema do Casino Fundanense, e por essa altura, a chamada elite do Fundão pediu ao encarregado do Casino para avisar a Amália e a Celeste que deveriam retirar-se, porque só podiam ali entrar sócios daquela instituição. Claro, foi como muita tristeza, que as duas irmãs se retiraram. Foi um desgosto para a sua mãe Lucinda e, nesse mesmo dia, tomou o comboio para Lisboa. ”

Memórias de infância

O JF foi conhecer outros familiares de Amália Rodrigues, que residem no Fundão, as primas da fadista, em segundo grau, recordam algumas histórias, como o caso de Lúcia de Fátima Rebordão, 66 anos, Anabela Rebordão, 63 e Maria Fernanda Rebordão, 61 anos. Entres risos e alguma comoção, as irmãs recordam-se de alguns momentos que passaram com Amália. “A nossa mãe teve um contato muito próximo com a nossa prima Amália Rodrigues. Já, em adulta, a nossa mãe, Eduarda Rebordão, era filha Ana de Jesus Rebordão, irmã da mãe de Amália começou a namorar com o nosso pai. Como era jovem resolveu seguir o seu instinto, ou seja, realizar a sua grande aventura, tendo ido para Moçambique, mas a nossa mãe ficou cá. Casaram por

procuração, imagine, na altura era assim. A nossa mãe resolver ir ter com a nosso Pai a Moçambique. A viagem demorou 28 dias. Três dias antes, a minha mãe antes do embarque foi para Lisboa, para casa da nossa prima Amália Rodrigues, a preparar os últimos pormenores. Foi muito bem acolhida. As conversas eram conversas de família, sem rodeios. Não havia barreiras. Foi a nossa prima Amália que levou a nossa mãe ao ponto de embarque. Criou-se uma relação de amizade enorme, nem imagina. Amália tinha uma família enorme e tinha uma agenda de três meses seguidos pelo mundo fora. Foi de uma dedicação à sua carreira... Ela canta as suas origens, o Fundão, as suas sonoridades vêm daqui."

As primas contaram-nos ainda: “Nós privamos com Amália algumas vezes. Uma delas foi quando veio fazer um espetáculo à Santa Casa da Misericórdia do Fundão, ainda tempo em que o Sr. Armando Paulouro fazia parte da mesa de Administrativa. Foi uma noite fantástica. A outra ocasião foi no Festival de Encontros de Rancho Folclórico, tendo sido organizado pelo Rancho de Silvares, que teve lugar no Parque Desportivo do Fundão. Falámos imenso, e fui comprar uns bolos de azeite à Ti Joaquina... comeu queijo picante. Ela adorava queijo picante e bolos de azeite. Bebeu um chá e conversou-se muito... Nós éramos pequenas, mas ainda nos lembramos desses momentos.”

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DR Lúcia Rebordão, Anabela Rebordão e Maria Fernanda Rebordão, primas de Amália José Filipe Gonçalves, primo de Amália Rodrigues

ACERVO / PARA A FUTURA CASA AMÁLIA NO FUNDÃO

Um lugar para visitar e celebrar a vida da fadista

OMunicípio do Fundão continua a trabalhar para criar na cidade uma Casa Amália, que integre um mais vasto roteiro amaliano, aqui mais focado nas raizes da fadista e integrada na Rede de Casas e Lugares do Sentir. Depois de preparar um protocolo com a Fundação Amália, o Município do Fundão recebeu agora um importante espólio de Estrela Carvas, secretária e confidente da Diva do fado ao longo de três décadas.

O importante acervo que se encontra agora à guarda do município do Fundão inclui centenas de documentos, fotografias, recortes de imprensa, livros, discos, CD`s, DVD`s, uma impressionante coleção de videocassetes e objetos pessoais.

Todo este acervo vai agora ser catalogado e tratado, por forma a preservá-lo e a torná-lo

conteúdo expositivo para a futura Casa Amália, que o município pretende criar na cidade, mais precisamente na Rua da Cale.

No acervo cedido por Estrela Carvas há também centenas de recortes de imprensa nacional e estrangeira, que a assessora de Amália guardou religiosamente ao longo da vasta e internacional carreira da artista e que são hoje um precioso fundo documental para quem decida estudar a vida e obra da mais importante cantora portuguesa do séx.XX.

Este acervo vem juntar-se a algumas peças que o Município já tinha à sua guarda, nomeadamente o célebre quadro com uma caricatura de Amália Rodrigues feita pelo seu amigo José Vilhena. O Fundão não esquece Amália e as raizes e carreira de uma das figuras fundamentais da cultura portuguesa do último século.

24 de agosto de 2023 Amália
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Município do Fundão
DR Município do Fundão
Com o Presidente francês Jacques Chirac Com o Presidente da República portuguesa Mário Soares DR Município do Fundão
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Dezenas de videocassetes da coleção que agora irão ser digitalizadas Uma original coleção de pacotes de açucar DR Município do Fundão
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O quadro de Vilhena na posse da CMF

Inéditos

Escrever poemas num maço de tabaco

Amália tinha também uma pulsão pela escrita e pela poesia. A mais célebre fadista de todos os tempos, foi também uma poeta notável Os poemas de Amália, inscrevendo-se numa tradição lírica popular mas ao mesmo tempo refletindo o seu conhecimento profundo da obra de alguns dos maiores poetas da Língua . Há uma edição bilingue que contém todos os seus poemas já publicados, pela primeira vez traduzidos para Inglês por Jamie Rising, ilustrações originais de André Carrilho e um novo estudo crítico introdutório da autoria

do mais reconhecido historiador atual do Fado, Rui Vieira Nery.

No entanto no acervo cedido ao Município do Fundão encontram-se os originais manuscritos de muitos dos poemas escritos por Amália, alguns deles inéditos, e que agora serão cotejados para uma futura publicação. Muitos desses originais eram escritos em objetos do dia a dia, como maços de tabaco, blocos de notas de hotéis ou até guardanapos de papel. Entre os originais agora na posse do Município do Fundão encontram-se também originais datilografados por poetas que escreveram letras para Amália, como David Mourão Ferreira.

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DR Município do Fundão Foto de rodagem de um dos filmes em que Amália entrou DR coleção Municipio do Fundão Com o realizador espanhol Pedro Almodôvar DR Município do Fundºão Com o escritor brasileiro Jorge Amado DR Município do Fundão Com o Papa João Paulo II DR Município do Fundão

“Amália era uma mulher além do seu tempo”

Estrela Carvas foi das pessoas mais próximas de Amália ao longo da sua carreira. Secretária, confidente e amiga, que agora partilha recordações com os leitores do JF

Estrela Carvas acompanhou como secretária, motorista, técnica de som e confidente Amália Rodrigues. Agora cedeu ao Município do Fundão o seu espólio privado que acompanha e reflete a carreira da diva do fado durante mais de três décadas. Pretexto para uma conversa e uma viagem às memórias de uma vida com Amália.

Onde nasceu?

Nasci na bela cidade de Murça, Trás-os-Montes. Segundo reza a história a quinze de maio de mil novecentos e quarenta e dois.

E tem irmãos?

Hoje já só tenho um, mas tive 8 irmãos. Nascidos todos em Murça?Todos em Trás-os-Montes, exceto o mais novo, do segundo casamento da minha mãe, que nasceu em Nova Lisboa, em Angola.

Quer dizer que a sua mãe se divorciou e voltou a casar. Isso é insólito, para a época, não é?

É, mas devia ter voltado a casar muito mais cedo, porque passou a vida dela a levar pancada e, assim, não teria levado tanta (risos).

Então, como foi a sua infância? Foi passada em Trás-os-Montes? Não, a minha infância foi passada em Angola. Quando tinha 5 anos, fui eu e os

meus irmãos, que o meu pai já lá estava. Lembro-me do Mário, o mais novo, que nem tinha conhecido o meu pai, ainda. Estávamos no porto de Luanda e ele olha e vê imensa gente e diz, “Ena! Tantos pais!” (risos).

O que os levou a partir para Angola? Vivia-se mal em Portugal?

Não, o meu pai vivia bem, era dono de uma empresa de camionagem, mas também era dono do mulherio todo

24 de agosto de 2023 Amália
ENTREVISTA / ESTRELA CARVAS, SECRETÁRIA E CONFIDENTE DE AMÁLIA RODRIGUES
DR coleção Estrela Carvas
Amália e Estrela: Unidas por uma relação profissional que acabou em amizade

“Amália fez-me uma festa na cara, pôs-me a mão no ombro e disse: Venha cá, entre, vamos tomar um chazinho. E, olhe, andamos a tomar chá a vida toda.”

lá do sítio, de maneira que eu não sei bem se tivemos de ir porque ele gastou tudo com mulheres, ou se teria muitos homens atrás dele (risos), e para acabar com tudo, foi para Angola e começou logo a trabalhar no Governo Geral de Angola, como motorista, e foi-o sempre, até ao fim…

E a mãe, o que fazia?

A minha mãe era dona de casa, estava em casa para levar tareia, para aturar o meu pai que fazia filhos, a torto e a direito, mas pouco assistia, sendo capaz de comprar sacos de feijão para alimentar a família e a boa carne, no talho, para os amigos e afins. Mas teve azar, um dia a mulher do talho disse-lhe, “Chega, Sr. Pedro, os seus filhos a comer feijão e você a levar carne para os seus amigos”. Obrigou-o a levar carne para a família, caso contrário não lha vendia mais. Foi em Luanda que estudou e casou, também?

Sim, foi lá onde casei, para mal dos meus pecados (risos) casei com um militar com quem tive dois filhos, primeiro, uma rapariga, a Célia, e depois um rapaz, o Paulo, cuja madrinha de batismo foi, inclusivamente, a Amália Rodrigues. E devo dizer que tenho as madrinhas mais famosas do mundo, pois a da minha filha Célia é a Nossa Senhora de Fátima. Quando é que regressam a Portugal? A minha família, a minha mãe e os meus filhos, vieram para cá mais cedo, eu fiquei com os meus irmãos Gualter e Vasco, mas nos dias anteriores à Independência, às quatro da manhã, os militares vieram-me buscar, a mim e a outros funcionários, deixaram-nos no aeroporto e, com uma sandes ao peito, mandaram-nos para cá.

Não foram tempos fáceis?

Não, não foram, mas foram muito mais fáceis porque, quando cheguei a Portugal não havia casas para alugar e chegamos a Guimarães e encontramos uma casa, disseram-nos onde morava o senhorio, a minha mãe e os meus filhos estavam em Lisboa, em casa de familiares, à espera de assentarem arraias e eis que fui falar com o senhorio, mas ele pede-me um fiador. E eu disse-lhe, “Fiador? Então em sou retornada, vim corrida de Angola, não conheço ninguém.” E ele respondeu-me, “Ai é? Mas olhe que sem fiador não lhe alugo a casa.” E estava eu neste problema, o meu pai a prometer pagar três ou quatro meses adiantados de renda, mas sem sucesso, quando

me lembrei de ligar à minha comadre, que se chama Amália Rodrigues, que se chama, porque ela é eterna, e contando-lhe o sucedido, passei a chamada ao senhorio e só o ouvia a dizer que não, que não queria vender a casa, mas que a palavra estava dada e iria arrendar a casa. Ficamos!

O dia em que conheci Amália

Foi mais ou menos aos 11 anos que quis conhecer a diva do fado, correto?

Não, eu quis conhecê-la muito antes. Em Angola, tínhamos uma telefonia, comprada pelo meu pai, era uma Grundig branca e pequena, e eu lembro-me de a ouvir pela primeira vez e fiquei estática, queria abrir a telefonia para ver a pessoa daquela voz. E quis conhecer a dona dessa voz durante anos, até aos meus 18. Eu estava em Lisboa, pus-me em frente às janelas da casa dela e passei ali horas, durante dois dias, para ver se alguém vinha à varanda, porque eu tinha vergonha de tocar à porta, até que apareceu uma senhora loira, muito bonita, à janela, fez-me sinal com os dedos, para me aproximar e perguntou-me o

que queria. Eu disse-lhe que vinha de Angola e que só queria ver a Amália. A senhora saiu da varanda, abriu a porta, pediu-me para subir, chamou a Amália e disse-lhe que estava ali uma menina de Angola para a conhecer (risos) e eu fiquei especada a olhar para ela, ainda hoje não consigo explicar, porque aquilo era uma miragem. Uma pessoa que estava naquele patamar não descia para ver um pobre mortal como eu (pausa) e ela fez-me uma festa na cara, pôs-me a mão no ombro e disse-me: “Venha cá, entre, vamos tomar um chazinho”. E, olhe, andamos a tomar chá a vida toda. Como passou desse encontro para a posição de trabalhar para a Amália Rodrigues?

A simpatia foi mútua. Eu trabalhava em Lisboa, após o meu regresso de Angola, estava em casa do meu sogro, que me quis pôr fora, porque as noites se estendiam em serões em casa da Amália, e ela sabendo disso, convidou-me para trabalhar com ela, até porque ela já tinha feito tournée comigo, em Angola, organizada por mim e pelos meus irmãos Gualter e Carlos, antes de 74, em que a Amália fez espetáculos nos teatros mais ilustres, mas também nos sítios mais recônditos para os militares, em Luanda, Cabinda, Nambuangongo…De maneira

que, quando em vim de armas e bagagens para cá, e o meu sogro me disse: “Rua!”, o meu marido também não quis ficar em Portugal e foi para o Brasil e nós separamo-nos, porque para lá não iria eu, a minha mãe ficou em Guimarães, com a tal casa, ficou com os meus filhos, e eu fiquei em Lisboa a trabalhar para a Amália como técnica de som, como motorista, como engomadeira, amiga… Como reagiram os seus filhos após aceitar trabalhar com a Amália?

Pois, mas não trabalhar com a Amália implicava aceitar colocação do Estado, no Algarve, por minha conta e risco e eu não tinha dinheiro para alugar mais uma casa no Algarve e, por isso, decidi optar por ficar em Lisboa.

Ser a “secretária” da Amália, sendo que desempenhava várias outras funções, foi um desafio ou uma missão?

Eu acho que foi uma missão e, como sou católica, acredito que “reza-te a sina nas linhas traçadas na palma da mão” e isto de nos aturarmos já estava traçado. (risos)

Teve oportunidade de partilhar os grandes sucessos da carreira da Amália. Conte-nos alguns.

Foi o Olympia, de Paris, em França, que era a voz do mundo, na época, que lançou a Amália internacionalmente, um espaço onde só os grandes tiveram oportunidade de atuar. Convidaram a Amália, que ficou lá uma semana. “Cruzes! Quem é esta voz que esgota nos dois meses anteriores e estará sete dias a atuar ali onde estiveram o Frank Sinatra, a Edith Piaf, os Grandes”, era a Amália. Como era visitar com ela vários países? Chegávamos aos países, estavam à nossa espera, levavam-nos para o hotel, íamos para o quarto, ela encostava-se um bocado, pedia um chá, um pão com queijo, enquanto eu arrumava as coisas, ela estava com os guitarristas, depois vinha a empresária e levava-nos ao Teatro, mesmo que o espetáculo não acontecesse nesse dia, ela queria sempre visitar o espaço. Quando eram espetáculos europeus, eu ia de carrinha, com a aparelhagem, o único som que ela usava. Eu só ia de avião, por onde não pudesse ir de carro, ou seja, fora da Europa. A Amália ia de avião com os guitarristas. Duas ou três vezes ela chegou a vir comigo, mas eu consegui correr com ela, graças a Deus, porque a viagem demorava-me o triplo do tempo. Em cada hotel ela queria parar, para dormir e para não sei o quê, e eu, não, eu era mais roda batida que só parava para meter gasóleo e andar. Quando me dava o sono, estacionava no meio dos camionistas, que já me iam conhecendo, já era a “rainha dos camionistas” a dada altura. Como é que ela se preparava para os concertos? Como é que ela vivia os bastidores?

Ela chegava e eu punha-lhe as coisas das pinturas e ela é que se pintava. Se alguém chegava para a maquilhar, ela

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Estrela Carvas foi durante muitos anos uma das pessoas mais próximas da fadista

dizia, “Agora limpe esta zona, agora limpe deste lado, agora tire” e as pessoas zangavam-se e deixavam-na maquilhar-se. Depois eu ia montar a aparelhagem de palco que a outra já estava montada, no fim ela acompanhava-me para fazermos o teste de som, ela dizia “Está bom!” e íamos para dentro, os guitarristas iam para os camarins, eu passava-lhe o vestido, era assim.

Como descreve a voz da Amália?

A voz da Amália era o que cantava: se cantava a morte, era a morte que cantava, se cantava a vida, era a vida que cantava. Ela cantava de olhos fechado (pausa) já diz o poeta “eu canto/ com os olhos bem fechados/ que o maestro dos meus fados/ é quem lhes dá o condão”. Melhor do que ninguém a conheceu, um poeta que tivemos, de nome Pedro Homem de Melo, que escreveu estes versos.

Quem era a Amália. Ela era uma intelectual?

Era intelectual, não pelo estudo, mas pela vivência que ela teve, a Amália discutia qualquer assunto, com cabeça, tronco e membros.

A Amália foi acusada de fascista, comunista, alcoólica…como é que ela reagia a estas acusações?

Primeiro, as pessoas deveriam ter conhecido a Amália, porque se o tivessem feito, percebiam que ela era uma pessoa de primeiras impressões e a primeira impressão que ela teve do Salazar foi boa. Acontece na inauguração da Ponte do Tejo. O Salazar queria dois artistas para a celebração e tentaram contratar uma cantora lírica cujo cachê era alto e o Salazar quando soube o que a artista pedia disse “O quê? Isso não pagamos nós pela ponte.” E eis que surge o nome da Amália e ela não cobra cachê, porque disse-lhe que para cantar no país não recebia, pagava. Ele gostou da resposta. Ela cantou na Ponte e, no fim do concerto, pediram-lhe para cumprimentar o Salazar e ela foi, com alguma timidez, no momento em que se iam cumprimentar, alguém chama a atenção do Salazar e a Amália, após uns minutos de espera, diz-lhe “Oh Sr. Presidente, mande-me embora que os meus bichos já não têm cabeça”. Referia-se à estola que vestia, cujas extremidades tinham as cabeças dos animais, ao que ele responde, sorrindo, “Tem graça, a criaturinha!”.

A Amália não tinha ideologia política, cria que todos precisamos uns dos outros e somos todos escolhidos por Deus

(pausa) quanto ao álcool, ela detestava álcool. Não bebia. Conte-nos duas ou três peripécias que ocorreram com Amália e a que a Estrela assistiu?

Eu sei lá, olhe, um dia estávamos deitadas, eu dormia perto do quarto dela, num sofá-cama e sinto abrir a porta e eu disse “Já é de dia, Eugénia?” Era a empregada. “Não, não, durma sossegada.”

E eu virei-me para o lado, mas como me virei, sentei-me no sofá e disse “Isto é voz de homem! Homem nesta casa, só o César, e o César não está cá.” Levantei-me a correr, abri a porta do quarto da

“Ela adorava, sobretudo, um bom conversador. Amigo ou inimigo. Então se fosse inimigo, era o ideal.”

Amália e disse-lhe “Amália não se mexa, não faça barulho, temos um homem cá em casa.” Ora, foi a mesma coisa que lhe dizer, “Amália ponha-se de pé e venha comigo procurar.” E aí fomos nós, e encontramos um rapazito. Eu, entretanto, liguei à polícia, ele não parecia estar bem. Pelos vistos, pensou que estava a entrar na sua casa e entrou pela janela. Olhe, ainda tive de ir fazer chá ao ladrão, eu sei lá o que é que eu tive de fazer. A polícia chegou e a Amália pediu para não fazerem mal ao miúdo, coitado!

(risos)

Depois…depois há aquela que já contei, quando a Amália quis deixar de fumar e eu escondia-lhe os cigarros. Começou por fumar de hora a hora um cigarro,

mas a boa da Amália tinha outro maço escondido e de meia em meia hora fumava um sem eu saber. E eu disse, “Ai, espera!”. Um dia, ela zangou-se comigo, meteu-se num táxi, foi a Santa Apolónia comprar dois maços de Winston, entrou, com os maços debaixo do braço, muito senhora do seu nariz, sem me falar, eu fechei a porta às chaves, ela subiu, foi ao quarto, atirou com os pacotes para cima da cama e foi à casa de banho, vestir a camisa de noite. Eu entrei no quarto e tirei-lhe os pacotes e escondi-os (risos). Ela saiu da casa de banho, depois queria fumar e não encontrava os cigarros, “Os meus cigarros?” E eu disse-lhe que ainda faltava uma hora para ela fumar o próximo, virei costas e fui-me embora! Acompanhou Amália por muitos lugares do mundo, recorda-se de alguns?

Ai meu Deus foram tantos, Espanha, França, Itália, Suiça, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Canadá, Estados Unidos, Rússia. E em África Angola, Moçambique, África do Sul, Rodésia. Fomos ainda à Jordânia e a Jerusalém ...perguntem-me em que país é que ela não esteve. Porque deixou de trabalhar para a Amália?

Porque a Amália, após os seus problemas de saúde, deixou de atuar com tanta frequência. E também por incompatibilidades com quem a Amália passou a trabalhar. Houve uma altura em que a Amália convidou outra pessoa para a acompanhar ao Brejão, portanto, se eu já não era precisa, recusei-me a continuar. A Amália ainda me tocou no braço e disse-me para eu ir fazer a mala, e eu respondi-lhe que não, que desde há cinco minutos que tinha deixado de trabalhar para ela.

Qual foi a sua última saída ao estrangeiro com Amália?

Lembro-me de ela ter sido convidada pela Keiko, que era a empresária do Japão, mas era uma tournée de um mês e a Amália, estamos a falar de 87/88 (pausa), ligou-me e convidou-me para ir e eu fui. No fundo, foi diferente, porque eu já não trabalhava, não vivia com ela, já não estava lá.

Da solidão à relação com o Fundão

Como se sente por ter cedido o seu acervo pessoal ao Fundão?

Sinto uma enorme alegria por ir existir uma casa museu dedicada a Amália. Era uma homenagem que faltava e nessa perspetiva o Fundão é inovador.

Acha que os portugueses souberam amar verdadeiramente a Amália?

Não. O português, para mim, tem um defeito muito grande. Tudo o que é dos outros é melhor do que o nosso.

A Amália preferia estar mal-acompanhada a estar só? Como reagia a isso? Depende daquilo que entendemos por estar mal-acompanhada. Se estar mal-acompanhada era por alguém que a cansava, porque não tinha assunto, porque só falava de si próprio, e a Amália, que gostava de uma boa discussão, chateava-se, e quem acabava com aquela desgraça era eu.

Ela adorava, sobretudo, um bom conversador. Amigo ou inimigo. Então se fosse inimigo, era o ideal.

A Amália queixava-se de solidão. Isso acontecia mesmo enquanto cantava ou só depois de deixar de cantar?

24 de agosto de 2023 Amália
“A voz da Amália era o que cantava: se cantava a morte, era a morte que cantava, se cantava a vida, era a vida que cantava.”
DR
Estrela Carvas acompanhava Amália Rodrigues para todo o lado

Olha, vou dizer isto assim, sem vaidade, sem nada, foi a vida que assim quis, a vida proporcionou isso. Só houve uma pessoa que entrou no ciclo da Amália –fui eu. Calada e muda. Muitas vezes ela estava a falar sozinha, não era para mim.

A Estrela, acha que a companhia do marido, César Seabra, não lhe bastava?

Tinham mundos diferentes?

Com o César ela foi ela, como mulher, mas como pessoa (pausa)… até porque o César não queria que ela cantasse. Pertenciam a mundos diferentes, ele queria que a Amália o acompanhasse mais.

Considera que a Amália era uma mulher à frente do seu tempo?

Sim. Como mulher, como pessoa. Ela estava para além do tempo.

Quem foram as grandes paixões, o grande amor da Amália?

Grande amor, aquilo que nós entendemos por amor, não sei se a Amália teve. Acho que não. Agora, a pessoa de confiança, o companheiro e amigo foi o César, o marido.

Há quem diga que a Amália considerava a família um fardo. Diziam também que a mãe preferia a Celeste. Isto tem algum fundo de verdade?

Não, a família não era um fardo para ela…a família, alguns, receberam a sua ajuda, porque precisavam e ela podia, agora, a mãe da Amália foi uma pessoa pobre, nós não fazemos ideia do que era criar uma família grande com aquela pobreza.

A mãe da Amália não era má, porque ela estava à porta de casa, no Fundão, e passava um pobre e ela pegava nele, despia-o, lavava-o, dava-lhe o pão e mandava-o embora. Ora, isto não é ser má pessoa. Mas as pessoas iam lá a casa, queriam ver à Amália, e ela dizia: “Se vocês a conhecessem…!” Perdia protagonismo, porque ela é que era a mãe da Amália. E eu dizia-lhe “Oh, Dona Lucinda, vá-se lá deitar.” E ela respondia, “Não vou! Não vou!” (risos) No fim, foi lá para casa, porque a Amália era a única que podia suportar as despesas.

A Amália temia a morte, o fim?

A Amália sabia que tinha de morrer, mas pelava-se com o medo de morrer. (risos)

Por que acha que Amália criou uma Fundação?

Para ajudar, dentro das possibilidades da fundação, todas as causas solidárias, porque aquilo que a Amália queria era dar a quem precisava, não havia outro fim.

Qual era a relação de Amália com o Fundão?

A relação da Amália com o Fundão foi sempre muito funda por uma razão muito simples, é que a Amália não nasceu no Fundão. A Amália nasceu em Lisboa, a mãe é do Fundão, a Celeste é do Fundão e os irmãos são do Fundão. Em todas as vezes que fomos ao Fundão ela era bem-recebida pelas primas, eram simpáticas, mas não houve assim nada de marcante. A

“A relação da Amália com o Fundão foi sempre muito funda por uma razão muito simples, é que a Amália não nasceu no Fundão. A Amália nasceu em Lisboa, a mãe é do Fundão, a Celeste é do Fundão e os irmãos são do Fundão.”

Amália era lisboeta de coração, não há nada a fazer!

A Estrela deixou de viver por causa de Amália ou Amália fez com que a vida de Estrela fosse mais preenchida. O que acha?

Não, porque a minha vida, tirando o outro trabalho que tive foi e continua a ser, sempre, Amália. Agora, a minha vida foi e é preenchida pelos meus filhos e os meus netos e, para o resto, estou-me borrifando (risos).

Qual era a diferença entre a sua convivência com a artista e com a pessoa? Para mim havia acima de tudo Amália, um ser humano. Depois, nos

espetáculos era a artista, respeitada por toda a gente, adulada, eu deixava-a nos camarins a ser adorada, desmontava a aparelhagem, servia-lhe o chá, depois íamos jantar, depois do espetáculo, normalmente.

Hoje há fado ou a memória de Amália? A memória de Amália, definitivamente , ela vivia o que cantava. Ela não cantava, vivia.

Sente a falta dela? Sinto.

Se pudesse, o que lhe diria agora? Então, Amália, por onde andou deixando-me aqui sozinha (pausa) tenho muitas saudades!

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DR coleção Estrela Carvas DR coleção Estrela Carvas
No baptismo do filho Pedro de quem Amália Rodrigues era madrinha Estrela acompanha Amália numa visita a militares em África

CRÓNICA

A “amalialite” que me atingiu

Apaixão é uma doença da alma – Amália disse mais ou menos isto, e com razão. Fui atingida pela “amalialite” por volta dos meus 15 anos, quando via o filma Sangue Toureiro e Amália cantou “Há Só um Amor na Vida”. Não foi pelas palavras nem pela voz, mas pela interpretação. Amália ao cantar leva-nos a sentir que o que exprime ao cantar tem a ver consigo própria, porque lhe sai da alma. Mas se for um folclore ou uma marcha, transmite-nos o colorido e o encanto que a gente quase estamos a ver as coisas a acontecerem.

Sabe-se que em certos momentos Amália acabava a chorar, depois de cantar um fado “pesado”, sobretudo em idade mais madura. Vivia na alma as palavras que dizia. Houve alguém que disse que se Amália cantasse sempre com tal emoção morreria no palco. Por isso, era frequente que depois de interpretar um fado, Amália cantasse um tema ligeiro, que aliviasse.

A “amalialite” acompanhou-me a vida toda e morrerá comigo, porque é uma doença que não tem cura. Num show, Amália referiu que tinha uns amigos amalianos ferrenhos… não foi o meu caso. Só a vi em alguns shows, no Porto ou em Lisboa, e nunca fui ao seu camarim. Mas espreitava todas as notícias que iam saindo nos jornais ou em revistas e escutava e lia, atentamente, as entrevistas que dava na rádio, na televisão e em revistas. Interessava-me muito o que Amália dizia, porque eu queria conhecer a pessoa que Amália era. Reconheci-lhe uma inteligência intuitiva surpreendente, uma lucidez acutilante, que eu diria um pensamento filosófico, mais do que uma Fé (vivo sem esperança no céu nem medo do inferno, disse), uma nobreza de caráter e de sentimentos que permaneceram apesar do que viveu, uma humildade quase chocante e uma honestidade intelectual sobejamente comprovada. Enfim, Amália não se deslumbrou com o mundo que teve a seus pés. Permaneceu moldada e condicionada pelas raízes beirãs donde nasceu. Amália disse: “posso calar, mas digo sempre a verdade, não minto”. E calou muitas vezes…sobretudo depois de abril de 1974. Eu até acho que, como Cristo na cruz, Amália perdoou a quem lhe fez tanto mal, porque eles não sabiam o que estavam a fazer… Ainda, como Cristo, Amália ressuscitou (in Amália- a Ressurreição, de Fernando Dacosta).

Conheci Amália pessoalmente quando já não cantava e confirmei o que já pensava sobre a sua pessoa. Os seus Versos, publicados, reforçaram-me a ideia que já tinha sobre a pessoa de Amália. Há quem escute a voz de Amália a qualquer momento e em quaisquer circunstâncias. Não é o meu caso. Passo longos períodos sem a ouvir, porque só a ouço quando necessito, quando, por exemplo, me doem as dores da saudade ou quando necessito de me rever. Terá de ser, sempre, em momento solitário e em recolhimento!

Enfim, viver uma paixão dói, arde, porque “o amor é fogo que arde sem se ver”, mas também nos proporciona subir a patamares emocionais que raiam o Divino! Quem não vive uma paixão, morre sem os conhecer!

Bem-haja, Amália, pelo alimento que deu à minha alma! Foi, para mim, o sal da vida na longa noite que nos perturba..

TESTEMUNHO / FUNDAÇÃO AMÁLIA RODRIGUES

Amália Universal

Ao falar de Amália é inegável falar-se da sua relação profunda com Portugal. Amália, como escreveu Manuel Alegre, mais do que ela própria é todos nós. O seu portuguesismo, a sua entrega ao que é ser português, revelou-se num intenso marco de identidade da cultura nacional. De origens beirãs, Amália nasceu em Lisboa, mas a sua universalidade e liberdade próprias fizeram com que cedo deixasse de ser só nossa. Na sua voz, «Pátria» e «Povo» ganharam uma nova dimensão, deu-nos Mundo e futuro. Acima de tudo, Amália foi um coração independente que não deixa margem para ser conectado a reduções territoriais porque foi o que mais universal aconteceu ao Portugal do século XX. Exemplo perfeito da simbiose entre a tradição e a modernidade, na voz de Amália ouvimos os eruditos e os populares: de Linhares Barbosa a Alexandre O’Neill, da poesia trovadoresca de D. Dinis, passando por Camões até David Mourão-Ferreira, Pedro Homem de Mello e Manuel Alegre. Na sua voz ouvimos o choro das guitarras, as marchas dos Santos Populares, o folclore de norte a sul do país. Conhecemos o folclore italiano, o flamenco, o cancioneiro norte-americano, canções francesas ou as rancheiras mexicanas. Com Amália a nossa língua e a nossa cultura viajaram para o Sankei Hall, no Japão, para o Lincoln Center, em Nova Iorque, para o Teatro Sistina, em Roma, ou para a antiga União Soviética, em 1969. Amália é sinónimo de irreverência. Uma mulher que seguia a sua intuição, que criava nos seus moldes, com medo, mas nunca esquecendo a sua essência. Uma humanista que defendia a sua verdade e a verdade dos outros. Voz, actriz e poetisa, que se tornou numa artista completa. Lutou, sem ambições de lutar. Deu as coordenadas para que outras mulheres e homens seguissem o seu caminho, sem medos, pois ela dissipou-os antes. Atuar nos quatro cantos do mundo permitiu que Amália fosse admirada por diversos públicos e países sendo considerada como uma das maiores

“Atuar nos quatro cantos do mundo permitiu que Amália fosse admirada por diversos públicos e pa íses sendo considerada como uma das maiores cantoras do século XX.”

cantoras do século XX. Por essa razão, Amália é hoje a mulher portuguesa mais condecorada da história. Portugal, Espanha e França condecoraram-na com as mais altas ordens honoríficas, seguindo-se-lhes Israel, Líbano, Bélgica, Brasil, Macau e Japão. É de destacar a Légion D’Honneur (1991) de França, o grau de Grã-Cruz da Ordem de Isabel a Católica em Espanha (1990), a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique em Portugal (1998) e a atribuição de membro da Ordem Nacional dos Cedros do Líbano (1971). Note-se que o Brasil condecorou Amália a título póstumo com a Ordem do Cruzeiro do Sul (2001) e a comunidade portuguesa nos Estados Unidos da América e no Canadá atribuiu-lhe, ainda em vida, diversos reconhecimentos pelo serviço prestado à cultura português de que são exemplos o Amália Rodrigues Day em Toronto, em 1985, e a congratulação do Estado de Rhode Island em 1970.

Conhecer Amália é conhecer Portugal, é conhecer a cultura portuguesa.

A Fundação Amália Rodrigues, instituída por testamento, em 1997, e fundada a 10 de dezembro de 1999, assume que a sua principal missão é perpetuar a sua memória e o seu legado para diferentes gerações e nacionalidades, apoiando e facilitando novas investigações, nos diferentes campos culturais que o universo de Amália pode e deve abranger, em várias disciplinas e temáticas. Da Literatura, à Música, passando pela História, pelo Património, pelas Artes Plásticas, pensar Amália é conhecer a história do país e do mundo. A Fundação Amália Rodrigues empenha-se na análise e investigação destas temáticas, nomeadamente pelo estudo do acervo museológico, verificando-o e relacionando-o com o percurso artístico de Amália Rodrigues e com as diferentes realidades que vivenciou. No futuro, pretende desenvolver ações de divulgação e sensibilização que permitam dar a conhecer, em particular aos mais jovens, as múltiplas dimensões da sua universalidade. Fundação Amália Rodrigues

24 de agosto de 2023 Amália
Fátima Nobre

Janela aberta para o fado

Concurso de Fado “Amália Rodrigues”

No nº33 da Rua da Cale no Fundão há uma janela aberta para o fado. A mais carismática artéria da cidade tem agora um novo espaço dedicado ao fado, com programação regular promovida pela Associação Fado Cale com o apoio do Município. Leonel Barata, um dos fundadores da recém-criada associação explica o projeto:

“A ideia surgiu pela necessidade de criar um espaço de fado na Beira Interior, de suporte e apoio para praticantes e simpatizantes desta arte, promovendo e orientando a possibilidade de experimentação e materialização de ideias e criações.O objetivo principal é a promoção e divulgação do fado, através de tertúlias, espetáculos, conferências, exposições, workshops, atividades de ensino e formativas.”

Nos seus primeiros meses de atividade, a Associação Fado Cale promoveu já um conjunto alargado de iniciativas: “Apesar das dificuldades normais de crescimento, sobretudo a nível financeiro, pelo custo associado à contratação de artistas e face ainda ao número reduzido de sócios, o balanço tem sido positivo porque temos tido muita adesão nas tertúlias quinzenais que promovemos

Fados numa noite de verão

Até ao final do mês, o nº33 da Rua da Cale vai ter fados numa noite de verão. O primeiro espetáculo é já amanhã – sexta-feira, dia 25 de agosto com o talentoso fadista Marco Rodrigues. Na próxima semana, dia 31 de agosto é a vez de Tânia Oleiro abrir a janela do fado na Rua da Cale. Mais informações: fadocale@gmail.com.

T. 932244848 www.fadocale.pt

no espaço cedido pelo Município do Fundão.”

A Associação Fado Cale tem vários projetos em curso ou na calha, dos quais Leonel Barata destaca um podcast mensal de fado em colaboração com a Rádio Cova da Beira, a produção de uma revista trimestral dedicada ao fado em parceria com o Jornal do Fundão, a colaboração com o município do Fundão para a criação da Casa Amália; dinamização de residências artísticas com fadistas “e tornar a Rua da Cale numa referência entre a comunidade do fado.”

Um dos projetos mais queridos pela Associação é a criação de uma Escola de Fado “que abre portas a partir do dia 4 de setembro, envolvendo atividades com os agrupamentos escolares, estimulando a prática e aprendizagem do fado nas suas diferentes vertentes, desde a poesia, história e teoria do fado, música, instrumentos e canto.

Para o futuro, a Associação pretende promover “um Festival de Fado anual no concelho do Fundão, que transporte a identidade e a alma lusa do fado, através de concertos, workshops, masterclasses, exposições, documentários, entre outras atividades...”, conclui Leonel Barata.

O Município do Fundão com o apoio da Associação Fado Cale promoveu a 9º edição do Concurso de Fado “Amália Rodrigues”. A iniciativa teve lugar no dia 2 de julho no Largo do Calvário no Fundão. A jovem alentejana Sofia Pires foi a vencedora desta edição que contou com cerca de duas dezenas de participantes, tendo sido apurados seis candidatos para a final. A novidade desta edição foi a criação de uma Menção Honrosa denominada Mário da Silva, que a partir de agora será entregue em todas as edições do concurso. Fadista fundanense e criador do Grupo de Fados do Fundão, Mário da Silva destacou-se como uma das mais inconfundíveis vozes da região

levando o nome do Fundão para além das suas fronteiras territoriais aliando o seu talento ao seu sempre e inconfundível humor e à alegria. Mário da Silva foi ainda membro permanente do Júri do Concurso de Fados Amália Rodrigues, no Fundão, desde a sua primeira edição. A fadista Lenita Gentil foi este ano a artista convidada para encerrar o Concurso de Fado Amália Rodrigues, tendo sido também membro do júri, que era ainda integrado por Alcina Cerdeira (Vereadora da Câmara Municipal do Fundão), Estrela Carvas (Secretária e confidente de Amália Rodrigues), Luís Cipriano (Maestro) e Leonel Barata (Fadista e Associação Fado Cale).

Para a semana revista “Fadista” com o JF

Na próxima edição do JF não perca o primeiro número da revista trimestral “Fadista”, totalmente dedicada ao mundo do Fado.

Uma iniciativa conjunta da Associação Fado Cale e do Jornal do Fundão que nesta edição de colecionador celebra o centenário da fadista Celeste Rodrigues, nascida no Fundão, e tem entrevistas exclusivas com vultos do fado como Jorge Fernando e Custódio Castelo.

PÁG 14 24 de agosto de 2023 //15

CASA DO BARRO _ TELHADO

CASA - MUSEU D. ILDA VALENTIM _ SILVARES

CASA DAS TECEDEIRAS _ JANEIRO DE CIMA

CASA S DOS OFÍCIOS _ SOUTO DA CASA

CASA DAS MEMÓRIAS DE ANTÓNIO GUTERRES _ DONAS

CASA DA POESIA DE EUGÉNIO DE ANDRADE _ PÓVOA DE ATALAIA

CASA DA ROMARIA DE SANTA LUZIA _ CASTELEJO

CASA DO MEL BOGAS DE CIMA

CASA DO BOMBO _ LAVACOLHOS

CASA DA PASTORÍCIA _ SALGUEIRO – TRÊS POVOS

CASA DA CEREJA ALCONGOSTA

CASA DO BARQUEIRO _ JANEIRO DE CIMA

CASA DO QUEIJO _ ORCA

www.visitfundao.pt

24 de agosto de 2023 Amália
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