Projeto Revista Semeá Cultura

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Revista SemeáCultura | Junho2016

cultura Junho2016

O Mito do

Saci

Alguns mitos são universais, outros estão restritos a uma região ou país, porém todos são expressões da necessidade humana de registrar e transmitir uma descoberta. Página 10

Infográfico do Saci Página 8

O Saci de Monteiro Lobato Página 18

Os mitos e a globalização Página 21



revista

semea

cultura

Expediente Projeto Gráfico Bruno Olivoto Ilustrações Mauricio Pereira Textos Alzira de Jesus Ferreira Arouca Amanda Rorato de Miranda Danielle Ferreira Mendes da Cruz Isabela Claudio Razera Mariana Couto Silva Shiraiwa Regina Erika Shiino


Sumรกrio 10 O Mito do

Saci


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Infográfico do Saci

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Cultura Popular Conformismo e Resistência

O Saci de Monteiro Lobato

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Os mitos e a globalização



ção muitas tradições, contos aproximarmos dos mitos brae lendas brasileiras vêm per- sileiros, entendemos parte de

dendo lugar para os oriundos de nosso processo de construção outros países. Tornou-se comum histórica e social. em nossos tempos a substituição

Ao propor, em sua primeira

de danças, cantigas, festejos e edição, a abordagem de mitos e histórias tradicionais brasileiras lendas da cultura popular brasipor aquelas que são dissemina- leira, a Revista Semeá Cultura esdas por outros países apesar de pera trazer a partir desta leitura possuirmos tantas manifestações uma reflexão na qual os probleregionais que acabam sendo es- mas, contradições e ambiguidaquecidas em detrimento das cul- des existentes na formação da turas estrangeiras.

nossa sociedade (pós) moderna

É importante termos contato possam ser compreendidos e com os mais diversos elementos debatidos a fim de provocarmos culturais, mas também é neces- um processo de ressignificação sário conhecer aquilo que de junto aos personagens folclórialguma maneira permeia nos- cos e populares.

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evido ao avanço da globaliza- so imaginário coletivo. Ao nos

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Editorial


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Cultura Popular

Conformismo e Resistência O

conceito de cultura para a filósofa Marilena Chauí diverge de como ela era compreendida na ótica iluminista. No Iluminismo, a cultura é uma forma de avaliar o quanto uma sociedade é civilizada. Desta maneira, passa a ser percebida como um conjunto de práticas artísticas, científicas, filosóficas, que permitem a existência de uma hierarquização dos valores de cada indivíduo ou classe na sociedade – assim, a cultura passa a ser associada ao progresso. O modelo que servia como referência aos iluministas era o da cultura capitalista da Europa Ocidental. Este parâmetro era utilizado como forma de avaliação e hierarquização dos regimes políticos e classes sociais, legitimando os processos de dominação e exploração. Tratando da concepção de cultura na obra “Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil” de Chauí, é possível compreendê-la como algo próprio do

ser humano, como o conjunto de atividades e costumes humanos que tem ligação com o meio em que ele vive. Abordando a cultura popular, Chauí ressalta as diferenças culturais, a importância de perceber a pluralidade cultural de cada sociedade e o quanto os “dominados” vivem em constante e dinâmica interação com a estrutura

“a cultura é uma forma de avaliar o quanto uma sociedade é civilizada” social e a cultura dominante e não podem ser compreendidos como algo à margem ou isolado que deve ser superado por um suposto progresso. Para compreender esta relação de interatividade entre cultura popular e cultura dominante, é necessário primeiro entender o

que é a “cultura de massa”. Diferente da cultura popular e apesar de ser produzida para o povo e em nome do povo, a cultura de massa é um produto da indústria cultural que tem uma finalidade ideológica e mercadológica, e é imposta pela cultura dominante. Apesar da resistência, a cultura popular por vezes é influenciada e incorpora aspectos relativos aos interesses das classes dominantes. Assim, podemos pensar na questão de “conformismo e resistência” abordada por Chauí. “Aceitar” uma imposição cultural parece conformismo, no entanto, incorporar características da cultura de massa, não significa aceitá-la como ela é dada, mas adaptá-la a realidade cultural de cada indivíduo. O povo não fica passivo em relação às imposições culturais do Estado e da indústria cultural. Por isso, cultura popular é a cultura realizada pelo povo num processo contraditório de reelaboração cultural e de continuação identitária.


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O Mito do

Saci O

s mitos são símbolos e, em uma análise mais técnica, trazem uma mensagem e/ou informação codificada, decifrável apenas para aqueles que conhecem o código e, consequentemente, a sua decodificação. Alguns mitos são universais, outros estão restritos a uma região ou país, porém todos são expressões da necessidade humana de registrar e transmitir uma descoberta, um conhecimento


O Saci é dono de muitas facetas e alguns autores divergem sobre sua origem. Num geral, sabe-se de um negrinho de beiços largos e vermelhos, com uma perna só, que fuma cachimbo e usa uma carapuça vermelha. Alguns acrescentam a ele esporas, olhos avermelhados, pelos no corpo e outras características mais aterrorizantes. É um menino travesso nascido do broto de bambu e tem várias “espécies” – Saci-trique, Saci-pererê, Saci-saçurá são al-

“protagonista de aventuras em que predominam a astúcia, a zombaria e a malícia” gumas, cada qual com suas preferências. Segundo o historiador e antropólogo Câmara Cascudo, o Saci-moleque, de hábitos noturnos e de temperamento arredio, surgiu no final do século VXIII nas áreas meridionais do país. Cascudo observa que o mito teria sido originado no Paraguai, com a dis-

persão dos índios Tupi-Guarani. Os camponeses paraguaios falavam de duendes de cor avermelhada, do tamanho de uma criança de aproximadamente 7 anos, que roubava fogo dos acampamentos por não saber faze-lo sozinho. Tal criatura era chamada de Yaci-Yateré. Souza Carneiro trata o Saci como uma adaptação de um mito africano, chamado Dudu-Calunga, um menino preto, perneta e zarolho. Para Lindolfo Gomes o Saci tem origem ameríndia, com a lenda indígena de Jaci (Lua) e Guaraci (Sol), e devido às influências europeias e africanas, acabou tendo sua figura modificada. O que observamos é que a lenda conhecida no sul, do pequeno índio vermelho, foi sendo adaptada à medida que o personagem do Saci teve suas características modificadas devido a estas influências: um jovem negro, que usava um gorro vermelho, fumava cachimbo e tinha apenas uma perna, pois a outra havia perdido numa luta de capoeira. Como podemos notar, há diversos elementos neste mito

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ou uma lição. A palavra mito vem do grego mythós e significa história, mensagem ou palavra. Assim como as lendas, os mitos não têm autoria conhecida e explicam a existência do homem e os mistérios da natureza. Tratam de sentimentos básicos como paixão, amor, ódio e medo. Um dos maiores mitos brasileiros é o Saci. Este figura ao lado de outras criaturas fantásticas como o Lobisomem, a Mula-sem-cabeça, o Curupira, dentre outros, mas segundo o sociólogo Renato Ortiz, se destaca por ser “protagonista de aventuras em que predominam a astúcia, a zombaria e a malícia”. Ao longo dos anos, com as transformações urbanas e sociais, as demais figuras foram pouco a pouco se extinguindo do imaginário popular. Com exceção do Lobisomem, hoje em dia pouco ouvimos sobre dos personagens e mitos populares que preenchiam os contos de outrora. A figura do Saci, no entanto, conseguiu permanecer no imaginário coletivo, apesar de ter perdido força com o fenômeno da globalização.


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que apontam para diferentes origens e influências incorporadas à figura do “duende fantástico”. Para os autores Amadeu Amaral e Alceu Maynard Araújo, o Saci é o encontro da história brasileira que representa um “mito síntese das três raças geradoras da ‘alma nacional’”. O que é importante observar nesta composição do mito é que estas três etnias (índia, branca e negra) nunca conviveram em completa igualdade de condições, sejam sociais, econômicas ou culturais. O Brasil tem uma longa trajetória histórica marcada pela opressão de índios e negros, através de conquistas violentas dos brancos. Para o sociólogo Florestan Fernandes, o processo

de africanização do duende ameríndio traduz a influência dos negros no Brasil, porém transferindo suas piores características e/ou situações, afirmando sua condição inferior numa sociedade escravista e desigual. A figura do Saci-moleque surgiu num período de expansão geográfica paulista, onde a estrutura social se viu alterada com os latifúndios do café, da cana de açúcar e o uso da mão-de-obra escrava africana, num local que desde o início da colonização era povoado por uma população esparsa e seminômade, com origens indígenas e portuguesas. Neste cenário temos a figura do caipira típico, segmento da população que era livre, pobre e que se recusou a trabalhar de

forma escravizada aos senhores de engenho. Assim, o escravo e o colono europeu foram chamados sucessivamente ao exaustivo trabalho nas plantações. Tais transformações colocaram em confronto as classes sociais da época – negros, caipiras e a elite rural. O resultado disto é que, segundo Renato Queiroz, para a elite rural a fisionomia do Saci é semelhante a de animais como o macaco, o bode e o corvo – espécies que emprestavam nomes às ofensas dirigidas aos negros. Aspectos como mal cheiroso, ladrão, demoníaco e feiticeiro também foram conferidos ao mito. O fato do Saci poder ser capturado e preso dentro de uma garrafa é a tradução simbólica da escravidão, além da figura aparecer somente no lugar da


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por parte dos senhores brancos em relação às feitiçarias e divindades negras como uma estratégia de sobrevivência. A figura do Saci-moleque transfere-se para os centros urbanos com o processo de urbanização, industrialização e o fim da escravatura. Acaba por perder parte dos seus traços, como as zombarias com os animais, as plantações e as colheitas das fazendas, mas nas narrativas do final do século XIX e início do XX ele ainda apresenta-se voluntarioso, um tanto agressivo e com poderes sobre-humanos (dizia-se que quando lhe retiram a carapuça ele perdia seus poderes; do contrário, só era possível se livrar da endiabrada figura com um rosário, um crucifixo ou água benta). Em grande parte, a sua transferência para o mundo urbano se deve a Monteiro Lobato que durante os anos 20 o elegeu para representar a cultura campesina genuinamente brasileira, num momento da história em que segundo ele as tradições brasileiras

estavam sendo substituídas por elementos “alienígenas”, além do país passar por uma “descaracterização” em suas tradições culturais devido à forte presença de imigrantes italianos, espanhóis e japoneses. O caráter brincalhão do Saci adaptava-se ao tom humorístico das críticas feitas aos hábitos urbanos e estrangeiros. Mas era necessário fazer do Saci uma criatura mais cativante, a fim de despertar a simpatia em todos os cidadãos e assim ele foi domesticado, transformando-se num ser de alternância de boas e más ações, astuto e tolo, mas ainda preservando seu caráter travesso, o temor aos símbolos cristãos, alguns de seus poderes mágicos e ainda suscetível à captura. Com a atuação da mídia, estas marcas foram eliminadas e o Saci-moleque tornou-se uma figura bem-comportada, sorridente e simpática do Saci-menino, devidamente controlada pelos agentes da cultura de massas. Passou a estampar capas de livros, revistas e jornais, virou personagem das telas da TV e do cinema, tornando-se símbolo nacional.

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casa destinado aos empregados: a cozinha (por isso suas malcriações eram azedar o leite e roubar o fumo). Para esta elite, o Saci não era mais que uma crendice popular, resultado de uma mentalidade supersticiosa dos campesinos e dos negros. Já para os caipiras, o Saci não tinha semelhança com demônio, nem exala cheiro forte. Sob a ótica dos camponeses, o Saci-moleque tem fortes características contestadoras, pois suas zombarias são destinadas aos senhores da elite e suas terras. Dar nó em crina de cavalo e assustar os cavaleiros viajantes eram suas façanhas mais conhecidas, numa época o cavalo era símbolo de poder aquisitivo e distinção social. Para os negros escravizados, a figura do Saci era quase como um amigo, no qual poderiam atribuir a responsabilidade por peraltices como pequenos furtos, quebra de utensílios, etc. – coisas pelas quais os negros seriam mais punidos e responsabilizados. Além dos negros aproveitarem do certo temor


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Inforgráfico do

Saci

Nóis que véve pras roça, nóis ta tudo pertinho desses bicho todo que o povo chama de mito. Nóis conhece tudo os feito do Lobisome, da Mula-sem-cabeça, do Curupira e do danado do Saci. Das zombaria desse peste o povo tem é muita história pra contá.


OLHOS Os óio do Saci são vivo que nem oio de cobra. Tem gente que fala que é vermeio feito brasa, otros diz que o diabinho sorta memo é fogo dos óio.

CACHIMBO Saci tem cachimbo pra mor de pita o fumo dele. E “ai” de quem negar fogo ou fumo pro pito do Saci.

ALTURA O saci tem meio metro de altura! Quem sabe tem um metro, quase. É do tamanho de um minino de uns doze ano de idade.

DENTES Tem gente que fala que o Saci é banguela. Mas há quem diz que o danado suga o sangue dos animá da fazenda e deixa marca iguar de dente de morcego.

BERMUDA Ói, num é todo Saci que anda por aí vestido não. Mai tem Saci que usa inté camisa de argodão, diz que esses é o tar do Saci-trique ou o tar do Saci-sacerê.

PÉ Tem Saci que quando trepa em barranco deixa trêis risco, sinar de que tem trêis dedo no pé.

MÃOS O Saci tem um furo no meio das mão. Diz que ele gosta de brincá com á brasa do cachimbo passano ela por dentro dos furo.

PERNA O Saci é minino de uma perna só, ele perdeu a ôtra perna foi no jogo de capoêra.

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GORRO VERMELHO O gorro de cor vermeia é a chamada carapuça do Saci, é ela que guarda tudo os poder do negrinho. Quando o homi tira a carapuça do Saci o danado não pode mais fazê arte.


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O Saci de

Monteiro Lobato

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m 1917 uma pesquisa nacional sobre o Saci-Pererê foi lançada por Monteiro Lobato na edição vespertina de O Estado de S. Paulo. Tal investigação foi publicada no início de 1918, durante a Primeira Guerra Mundial, o que Marcia Camargos aponta como um contraponto que vinha: “[...] despertar consciências adormecidas ao enfocar um símbolo de resistência como o Saci, autêntica manifestação da alma de nossa gente.” Lobato foi inquietado pela presença de uma cultura europeia que invadia o país - em especial na cidade grande - na forma das artes, dos costumes, da gastronomia, da linguagem e das crendices populares. Inerentes a todas as culturas, a mitologia e suas crendices podem ser compreendidas de acordo com a realidade do lugar de onde foi despertada. O incômodo quanto à importação de mitos estrangeiros dá-se

uma vez que não há vivência destes mitos para que sejam integrados à cultura brasileira e, por outro lado, a importação acarreta uma desvalorização das criações e da cultura nacionais como um todo. Destas inquietações lançaram-se discussões acerca de uma valoriza-

“[...] despertar consciências adormecidas ao enfocar um símbolo de resistência como o Saci, autêntica manifestação da alma de nossa gente.” ção das tradições nacionais e daí a abertura do tal “[...] inquérito sobre o Saci, para tirar a limpo o que de positivo havia na memória da nossa gente sobre o insigne perneta.” O artigo que inaugurou o inquérito foi chamado Mitologia brasílica, inquérito sobre o Saci-

-Pererê. Nele, a sociedade é convidada a externar sua habilidade de autoria: “[...] se conclui que o povo é o grande criador, e que o artista tem por missão operar como instrumento estético por meio do qual o povo dá corpo definitivo e harmônico aos seus ingênuos esboços.” A figura escolhida para representar a criação brasileira foi o Saci-Pererê. O Saci foi descrito de muitas maneiras. Na grande maioria dos depoimentos fica claro que os responsáveis por disseminar tal figura mitológica foram os negros que eram referência na infância de muitos dos colaboradores. Eram trabalhadores das fazendas e cuidadores das crianças que, quando adultas, trouxeram diversas narrativas do Saci para as páginas do jornal. Histórias de vários pontos do país, das cidades grandes e dos campos, teciam o tal negrinho de uma


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perna só com as mais diversas características, físicas e intrínsecas. Muito foi contado sobre as peripécias do Saci, sobre suas brincadeiras e até suas maldades. Muitos dos relatos se conversam e muitos se divergem e eis a beleza do mito cultural, pois não há apenas uma versão que possa ser chamada a correta ou a verdadeira. O Saci não precisa ter uma única história para ser vista como aquela real da sua existência, ele é dono das suas várias faces carregadas de construções que emergem das referências que pertencem ao seu povo, seus criadores. As adaptações à sua aparência ou à sua personalidade, ainda que irreais e fantasiosas, são criadas na realidade daqueles que a ele dão vida e nela são modificadas, como bem afirma Lobato “[...] as supers-

tições evoluem, determinadas pelo meio ambiente e pelas variações etnológicas. Nascem, crescem – e não morrem. Transformam-se.” Quanto à sua etnia, Lobato critica que sejam indicadas apenas as origens indígenas e africanas anulando a colaboração do branco, ao afirmar que: “A fisionomia moral ou espiritual do singular duende é claramente indicativa de que em sua elaboração interveio a mentalidade do civilizado”, uma vez que o perfil que identifica tal diabinho espirituoso aproxima-se aos demônios gregos. No entanto, Lobato não retira da construção do Saci as ori-

gens dos negros e dos indígenas: Para Lobato, o preto e o índio deram, por assim dizer, a matéria-prima com a qual o europeu plasmou a maliciosa figurinha. A construção do símbolo nacional na figura do Saci traduz uma sociedade marcada pelo preconceito racial, pelo desprezo à população pobre rural e apegada aos princípios ocidentais e cristãos. Atribuindo-lhe ares brincalhões e infantis, foram reforçadas as figuras estereotipadas com as quais os negros costumam ser representados através dos meios de comunicação de massa. Ao se apropriar de criações culturais de grupos subalternos ou ‘minoritários’, as mesmas são redefinidas, adaptadas e exploradas pela classe dominante hegemônica.


globalização C

om o advento da globalização há um incremento das novas tecnologias e, por conseguinte, um maior acesso à informação. Assim, as culturas locais perdem pouco a pouco espaço para uma cultura globalizada, veiculada pelos grandes conglomerados transnacionais de comunicação; tradições populares vão sendo diluídas e substituídas por manifestações consideradas mais cosmopolitas e modernas. O mundo nos parece cada vez mais estreito, mas também mais óbvio, de mais fácil e rápida assimi-

lação, visto que as referências cultu- de uma determinada localidade, rais, estandardizadas, são as mes- tampouco a experiência única e sinmas no Rio de Janeiro ou em Sidney, gular de cada indivíduo. igualando todos a um padrão que é Expressões como “cultura superior e inferior”, “cultura erudita”, “cultura popular” e “folclore” passaram a designar as diferenças entre povos, etnias, classes e grupos. Essa última denominação, por ser mais utilizada do que as considerado adequado e ajustado a outras, ainda faz grandes estragos uma sociedade que cada vez mais ao ser designada deformas reduse (re)conhece internacionalizada. cionistas, quando não racistas e Naturalmente, tal processo não leva excludentes. As manifestações em consideração as particularidades que não se enquadram no univer-

“as culturas locais perdem pouco a pouco espaço para uma cultura globalizada”

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Os mitos e a


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so ocidental costumam ser colocadas num patamar inferior. Para o filósofo Gramsci hegemonia pode ser identificada como a direção intelectual e moral que um grupo social exerce sobre outros em uma determinada sociedade. Já para a filósofa Marilena Chauí o conceito de hegemonia inclui o de cultura como processo social global que constitui a visão de mundo de uma sociedade e de uma época, e o conceito de ideologia como sistema de representações, normas e valores da classe dominante que ocultam sua particularidade numa universalidade abstrata. A hegemonia, por ser mais que ideologia, tem capacidade para controlar e produzir mudanças sociais. Ressignificar figuras da nossa cultura popular neste contexto não é um mero exercício de recuperação de valores culturais, históricos ou tradicionais de uma determinada comunidade ou país, mas uma busca natural por um sentimento de pertencimento. Os grandes

meios de comunicação deveriam contemplar o fato de que vivemos sob influências e representações diversas e, portanto, sempre teremos diferenças. Não apenas devido às distâncias e especificidades geográficas ou climáticas que invariavelmente influenciam nossos hábitos diários, mas porque o conjunto de linguagens, histórias, hábitos e fazeres diários nos tornam agentes culturais no sentido mais amplo do termo. Ao explorar as figuras de nossas lendas populares, tenta-se fortalecer e valorizar os mitos da cultura que representam parte de nossa diversidade cultural, em contraposição ao que nos é imposto pela cultura hegemônica dos meios de comunicação de massa globalizados. Em figuras como o Boitatá, Curupira, Lobisomem, Mula-sem-cabeça, Saci, entre outras, podemos projetar novas cargas semânticas, criando alternativas para sairmos do padrão hegemônico imposto pela globalização.

Segundo o estudioso Joseph Campbell “mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos tempos”. Através deles, histórias são transmitidas de geração a geração, dando forma ao que comumente denominamos de imaginário coletivo. E como se pode verificar, as histórias dessas figuras míticas têm se transformado ao longo do tempo, ajustando-se aos períodos históricos conforme as demandas socioculturais de cada época. Segundo o sociólogo espanhol Castells, em tempos de globalização e individualização da identidade nas redes globais, as denominadas comunidades culturais territoriais podem ser a principal alternativa para a construção de significados na sociedade. Tal reação defensiva se torna fonte de significado e identidade ao construir novos códigos culturais a partir da matéria-prima fornecida pela história, neste caso, a recuperação das tradições populares.




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No interior da mata o saci Esperando quando a noite chegar Ele quer brincar com fogo e sorrir Quer montar no seu cavalo e brincar... O fogareiro tá queimando no céu Então o gorro fita o olho pro céu Tanta gente que passa na mata Lhe leva um presente... É que o saci quer se divertir Ele pula numa perna só Da estrada eu já ouço o assovio E o coração fica na mão Ser amigo é o que fica melhor O muleque nunca vai te dar nó... Vem daqui, vem de lá ventania Pererê, sacizar... O O O O O O O O

saci-pererê, pererê saci-pererê, sacizar saci-pererê, pererê saci-pererê quer brincar saci-pererê, pererê saci-pererê, sacizar saci-pererê, pererê saci-pererê atiçar...

Luiz Melodia


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