A ciĂŞncia descobre a ayahuasca
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Chacrona (Psychotria viridis)
O chá, conhecido como o “vinho das almas” por diversas matrizes religiosas, vem sendo pesquisado no processo de cura de doenças, como a depressão Bruno Talevi Deborah Neiva Helena Sbrissia Lucas Grassi
M Enteógeno - ou manifestação interior do divino” é o efeito que certas substâncias dão, funcionando como alteradoras da consciência ao induzir ao estado xamânico
arina Stivi é diagnosticada com depressão e ouviu falar sobre a ayahuasca pela primeira vez dentro do consultório de seu psiquiatra. Uma vez que, por orientação do médico, ela parou de fazer uso de medicamentos que conflitavam com o chá e conseguiu estabilizar o seu quadro clínico, procurou tribos indígenas itinerantes que passam por São Paulo para fazersessões de cura através do “vinho das almas”. Do quíchua aya — espírito ou ancestral — e huasca — vinho ou bebida quente, seu chá, comumente ligado à religião do Santo Daime, é uma bebida de cunho enteógeno feita a partir da junção de duas plantas encontradas na Floresta Amazônica: o cipó jagube e um arbusto chamado chacrona. Seu uso é permitido pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad). Seis anos depois de ter experimentado o ayahuasca pela primeira vez, Marina se diz ser fiel à bebida ancestral. As consequências no quadro depressivo foram visíveis, tanto que atualmente seu tratamento não inclui nenhum tipo de medicamento artificial, apenas o acompanhamento psicológico com terapeuta. Por fazer uso da chá apenas sob orientação dos chefes indígenas, Marina tem acesso ao ayahuasca apenas quando as tribos fazem excursões
Chacrona (Psychotria viridis)
para sua cidade, aproximadamente duas vezes por ano. Na região de São Paulo, as tribos Huni Kuin e Yawanawa fazem esse tipo de trabalho, no entanto clãs peruanos também vêm até o Brasil para realizar cerimônias de cura. Com alta há cinco anos, Marina pretende se ater ao hábito de procurar recuperação de problemas emocionais através do chá. “Entendo que o processo da cura foi toda uma movimentação minha também, de autocuidado, conhecimento, de olhar pra coisas em mim que eu queria curar, me abrir pra espiritualidade. Mas acho que sempre que eu tiver alguma coisa pra curar vou buscar [o chá] com certeza. Ayahuasca é um presente”. A liberação foi feita em 2004, por causa das religiões com ritos em torno da bebida, e a substância não é considerada uma droga, mas uma erva medicinal. A ayahuasca é utilizada em comunidades religiosas sincréticas, como o xamanismo, kardecismo, catolicismo, umbanda e ritos orientais. A combinação das duas plantas gera um líquido espesso e amarronzado, que contém o DMT, ou n-dimetiltriptamina, e inibidores da monoamina oxidase. As substâncias combinadas agem no sistema nervoso central e promovem desde visões psicodélicas até euforia e experiências físicas, como vômito. O culto ao redor de chás remete à Grécia antiga, em que os mitos eleusianos falavam sobre pessoas que tomavam a bebida à base de centeio – o kikion – e tinham visões, aberturas de consciência sobre a vida, a morte e o planeta em volta deles. “A história da humanidade traz consigo o uso de psicoativos, permitindo a abertura da consciência e expandindo sua concepção do “próprio-eu”, catalisada em torno da bebida – uma verdadeira ferramenta religiosa, como o próprio nome ‘enteógeno’ revela, ou seja, o ‘Deus dentro de nós’” explica a jornalista e antropóloga Amanda Vicentini, que faz a pesquisa de sua tese de mestrado baseada nos efei-
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tos e a religião associados ao chá de ayahuasca. Ela diz que é tudo muito particular, porque cada ser humano se entende a partir de suas próprias experiências. Na rotina do dia a dia, vivendo no automático, o homem esquece da busca metafísica do sentido da vida, e o uso de bebidas como o ayahuasca é uma opção para compreender as verdades de um jeito próprio. Segundo a antropóloga existe, dentro de cada um, uma centelha que busca uma compreensão de algo maior. O doutor em Física Aplicada à Medicina e Biologia Draulio Barros de Araújo realizou pesquisas sobre o efeito do chá no corpo humano. Segundo Araújo, a composição química do chá age diretamente no sistema nervoso, especialmente nos receptores de serotonina (neurotransmissores responsáveis por regular sono, humor e apetite sexual). É por causa dessa atividade no sistema cognitivo que o chá estimula efeitos visuais e auditivos. Durante as quatro horas em que o chá atua no cérebro, o usuário é levado a um estado alterado de consciência, em que há uma mudança significativa na maneira que você interage e percebe suas emoções e pensamentos. De acordo com as pesquisa de Araújo, o uso contínuo do chá a médio prazo pode trazer consequências positivas, como efeitos antidepressivos e ansiolíticos, ou seja, diminuem a ansiedade e tensão. Outra possível decorrência do uso do chá é a diminuição do uso abusivo de substâncias tóxicas (drogas e entorpecentes, por exemplo). A CURA PELO AYAHUASCA Ainda não há estudos que obtiveram resultados positivos ou negativos quanto ao uso de ayahuasca a longo prazo, mas Araújo alerta que assim como toda substância, há contra indicações e riscos. “Neste momento em particular a ciência tem ficado mais reticente na utilização do chá para pessoas que tenham tendências em ter alguma variação de surtos psicóticos, como pacientes com esquizofrenia ou transtorno bipolar. Fora isso, a substância é extremamente segura.”
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Uma pesquisa publicada pelo grupo Hallak no Journal of Clinical Psychopharmacology, em 2016, analisou a ingestão do ayahuasca em pessoas diagnosticadas com depressão refratária, ou seja, que não conseguem a cura completa da doença apenas com os medicamentos comuns, e também que nunca haviam se submetido à ingestão do chá.
Acontece quando o paciente não responde da forma esperada após ter feito tratamento com pelo menos dois medicamentos de classes diferentes usados em dose eficaz e por tempo adequado
Após oito horas, foram realizados exames de imagem que demonstravam a ação da substância em três lugares distintos do cérebro — aquelas responsáveis pelo controle do humor e das emoções (núcleo accumbens, ínsula direita e área subgenual esquerda). Antidepressivos comuns também agem nessas áreas, apenas necessitam de um tempo de resposta maior. Avaliações do humor realizadas no dia e nas três semanas seguintes mostraram uma redução importante dos sintomas depressivos até o 21° dia. Apesar de dentro de igrejas o chá já ser usado para beneficiar problemas como vício e depressão, na área médica essa prática ainda está em fase de testes. Além dos tratamentos já citados, estudos estão analisando a possibilidade do uso do chá natural como recurso terapêutico para pessoas diagnosticadas com estresse pós-traumático e transtorno obsessivo compulsivo. A professora Evary Anghinoni fez o uso da bebida com a prescrição de uma psicóloga. Segundo ela, houve apenas uma sessão com a concepção da ayahuasca. “No meu caso houve um direcionamento para a liberação de correntes familiares, traumas passados. Questões da minha psique que eu precisava desenvolver.” Evary conta que conseguiu trabalhar isso, mas que as mudanças fizeram parte de todo um processo ao invés de partir somente da substância. “Eu fui, trabalhei o que precisava, e, junto com as consultas com a minha psicóloga eu consigo evoluir nas minhas questões constantemente”. A professora argumenta que não crê que o chá sirva para objetivos específicos — pelo menos não a partir da experiência que teve.
Jagube (Banisteriopsis caapi)
A história do ayahuasca
Tal qual os mitos indígenas, a religião em torno da infusão começa de forma xamânica e sincrética
Em 1930, o borracheiro maranhense Raimundo Irineu Serra foi para a região da Floresta Amazônica e teve contato com a bebida com um xamã peruano. Nessa ocasião, teve a visão da Virgem da Conceição, um exemplo de sincretismo religioso, e ficou nove dias na mata, se alimentando apenas de água e mandioca para receber a doutrina do Santo Daime: 130 hinos e todos os ensinamentos, ritualizando a bebida com uma fundação cristã.
A Ayahuasca é uma ferramenta poderosa na questão do retorno para a religião e o contato com o transcendente e o espiritual – a bebida tem potencial terapêutico para questões de ordem psicológica, podendo ajudar além de apenas o contato religioso. As reuniões de congregações em torno do chá ajudavam as pessoas “à margem da existência” – suicidas, alcoólatras e usuários de drogas, em sua maioria.
A partir da religião em torno do chá que se insere a Ayahuasca para o homem urbano, difundindo e diversificando a ritualização em torno da bebida. A religião do Santo Daime é rígida e disciplinada em seus hinários e ensinamentos – e algumas pessoas preferem se voltar a algo mais xamanista, indígena, e por isso buscam uma espiritualidade diferente, inserindo religiões ambientais, meditação, mantras orientais, candomblé e umbanda: existem vários centros de consumo em que se misturam outras espiritualidades, um verdadeiro sincretismo.
Na América do Sul, a Ayahuasca era usada como instrumento para entender melhor a vida, enraizada na relação dos povos com a natureza. A técnica envolvia a intermediação de um xamã/curandeiro, que conhecia mais sobre o universo, o oculto etc. Cada cultura desenvolvia seu ritual em volta do uso da bebida. Há o voo da águia, animais ancestrais e poderosos, visões sobre a vida e todos variam um pouco de como se davam seus rituais. Parte da espiritualidade, da transcendência de alguns povos da amazônia envolvia o chá e o consumo da bebida desde sua pré-história.
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