EDIÇÃO 1
2015
RESISTÊNCIA QUILOMBOS URBANOS PRESERVAM LEGADO CULTURAL
QUEBRANDO O TABU GEOGRAFIA DAS EMOÇÕES SER MULHER E SER NEGRA PRECISAMOS FALAR SOBRE SUICÍDIO
IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE EM UM PASSEIO POR SÃO GONÇALO E GLÓRIA
CABELO BOM É CABELO LIVRE
IMPRESSÃO GRÁFICA UERJ
EXPEDIENTE EDIÇÃO UM - ANO DOIS - SET/2015 EDITOR Guilherme Alves REMIX DE IMAGENS E DIAGRAMAÇÃO Jonas Feitosa LOGO Pedro Esteves COLABORADORES Ana Gabriela Nascimento, Andressa Cabral, Bruna Vaz Mattos, Daniel Botelho, Eugênia Rodrigues, Guilherme Alves, Jonas Feitosa, Letícia Taets, Maxion Gonçalves, Nathália Dias, Raphael Bandeira e Thaiza Pauluze.
POR ESTUDANTES DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA UERJ
CONTATOS CACOS UERJ- GESTÃO 2015- INTEGRACACOS FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO RUA SÃO FRANSICO XAVIER, 524, SALA 10.053 PAVILHÃO REITOR JOÃO LYRA FILHO- MARACANÃ cacosuerj@gmail.com cacosuerj.blogspot.com issuu.com/cacosuerj 2 | SubVersões | n°1 | 2015
SOBRE
SUBVERSÕES é uma revista colaborativa, experimental e independente de Jornalismo organizada semestralmente por estudantes de Comunicaçao Social da UERJ, com apoio do Centro Acadêmico de Comunicação Social da UERJ (Cacos), desde 2014. A proposta inicial compreendeu a criação de um veículo impresso semestral, com a temática de cada edição sendo discutida coletivamente com base nos três pilares centrais - colaborativa, experimental e independente -, e com reportagens especiais escritas individualmente ou em grupos. No início de cada semestre é feita uma chamada para colaboradoras/es voluntárias/os, que se reúnem para discutir as pautas e o calendário. Cada edição referencia os trabalhos anteriores, mas também busca uma identidade própria, mantendo o projeto em constante movimento. Por colaborativa entendemos que a SUBVERSÕES nasceu na Gestão 2014 do Cacos UERJ - Escolhi Não Esperar, e é naturalmente puxada por um centro acadêmico ativo e atuante, mas assim como qualquer outro projeto, tem sua participação livre a todas e todos as/os estudantes que se comprometerem com ela. Colaborativa também significa que, independentemente das funções que exercem (reportagem, fotografia, edição, revisão, diagramação etc), todas/os devem atuar como equipe. Não temos grana nem muito tempo livre, mas com força de vontade, aliança e trabalho duro conseguimos driblar as dificuldades do caminho. Por experimental entendemos que a SUBVERSÕES é jornalística, mas não deve copiar um modelo único de fazer reportagem. Seu conteúdo deve ser vanguardista, explorando novas linguagens e abordagens que podem não ser as tradicionais - e que bom que não sejam! A liberdade para escrever e subverter deve estar acompanhada, no entanto, da responsabilidade com o conteúdo, com a correta apuração, com as fontes e com o/a leitor/a. Cada colaborador/a deve se entender enquanto repórter, mas principalmente também enquanto Comunicador/a Social no processo, buscando em seu trabalho um olhar sempre crítico e sensível aos temas que retratar. Queremos um jornalismo social, que traga novos olhares e novas versões, que busque apontar as contradições sociais e que se empenhe em dar voz a quem está à margem. Por independente entendemos que a SUBVERSÕES não deve estar alinhada ao interesse de quaisquer empresas ou instituições que possam interferir no correto andamento das reportagens, na busca implacável por analisar criticamente a sociedade ao nosso redor. Aceitamos de bom grado críticas, sugestões e a opinião de profissionais e professoras/es, porque acreditamos no valor da experiência e da aprendizagem contínua. O projeto pertence às e aos estudantes de Comunicação Social da UERJ e, em sua essência, não compreende lucro, ganhos pessoais ou mesmo subordinação à Faculdade de Comunicação Social ou à UERJ. Nossas/os colaboradoras/es atuam de forma voluntária, e todos os patrocínios são doações sem contrapartida ideológica ou política. A independência editorial da SUBVERSÕES é requisito essencial para que a revista continue a existir, nas formas que, futuramente, ela venha a tomar. O objetivo da revista, além de suprir a falta de veículos laboratoriais de participação livre na Faculdade de Comunicação Social da UERJ, é se manter enquanto projeto de extensão autônomo, auxiliando na formação profissional de estudantes que querem colocar a mão na massa e sentir-se fazendo jornalismo, experimentando e adquirindo prática e conhecimento. Para se concluir enquanto revista impressa, a SUBVERSÕES lança mão de diversas formas de financiamento, sejam editais da própria universidade, auxílio do caixa do Cacos, ou plataformas de financiamento coletivo. Apesar de concebida enquanto revista impressa, a SUBVERSÕES também é distribuída na internet. O chamado para a web é natural e segue um caminho prolífico do jornalismo que se apresenta para o futuro: complexo, em múltiplas plataformas, sem o imediatiso de um portal de notícias, mas sim valorizando o estilo slow web.
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12 16 20 28
MEU CACHO, MEU CRESPO
CANECÃO HOJE
QUEBRANDO O TABU
DA CHINA PARA O BRASIL
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SUMÁRIO
4
LEGADO CULTURAL ETERNIZADO
SUMÁRIO
A UERJ E AS FAVELAS
32
PARA ONDE VOCÊ VAI?
38
GONZO
44
POR UMA INTERNET + TOLERANTE
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FOTOGRAFIA + POESIA
LIVRE
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CIDADE
POR ANDRESSA CABRAL
O
lhar para as próprias raízes e trazê-las ao presente para então avançar é o conceito por trás da sankofa (san: voltar, kofa: trazer), expressão comum a povos da língua akan, da África Ocidental. Não por acaso ela é a filosofia central do cotidiano de resistência e re-existência das comunidades de Sacopã, Pedra do Sal e Camorim. Elas se localizam em áreas distintas da cidade do Rio de Janeiro - Zona Sul, Centro e Zona Oeste - e embora vistas muitas vezes como áreas de invasão, têm em comum o passado e o presente de luta por reconhecimento da cultura e da terra de negros escravizados. A palavra “quilombo” remete ao imaginário de um local rústico, pobre, onde os negros fugidos das senzalas podiam se refugiar junto aos seus irmãos e viver sua cultura com certa liberdade. O que muitos não sabem é que, a exemplo de Sacopã, Pedra do Sal e Camorim, existem comunidades quilombolas no espaço urbano em pleno século 21, com seus territórios organizados como qualquer outro bairro. Ao longo dos anos, as
lideranças foram passadas para os filhos, netos e bisnetos de seus fundadores e, com o crescimento das cidades, esses locais tiveram a estrutura física descaracterizada. Como era comum que os territórios fossem apropriados sem respaldo legal, em muitos casos só atualmente as famílias descendentes têm a chance de regularizar a posse das terras e de obter o reconhecimento histórico. A essência cultural e de cooperação coletiva, características da formação dos quilombos, são visíveis até hoje. VERDE EM MEIO AO CINZA Em meio à selva de pedra, pode-se dizer que os moradores da Associação Cultural Quilombo Sacopã, na Lagoa, são privilegiados. Localizados na rua homônima, os quilombolas vivem em um espaço cobiçado pela especulação imobiliária, onde poucos conseguem arcar com o valor do metro quadrado. No local, 30 pessoas – todos parentes – carregam a história de 105 anos e seis gerações de remanescentes de escravos. No século 19, o avô do líder Luiz Pinto, também conhecido como Luiz Sacopã, fugiu de Nova 6 | SubVersões | n°1 | 2015
Friburgo e chegou àquele local junto com outros negros forros (livres) e fugitivos. Eles se abrigaram naquela região, ainda não desmatada, e foram responsáveis por abrir, junto com outros moradores, a Rua Sacopã, que hoje divide espaço com casas e prédios luxuosos. O local passou a ser conhecido como área cultural nos anos 1960,
“HOUVE TEMPOS QUE ALGUNS MORADORES SE DIZIAM INCOMODADOS COM O BARULHO QUE FAZÍAMOS E NOS QUERIAM VER FORA DAQUI POR CONTA DISSO, MAS HOJE NÃO ACONTECE MAIS”. - LUIZ SACOPÃ
quando alguns bambas do samba começaram a frequentar o morro. A cultura musical se estendeu ao longo dos anos e até hoje a Família Pinto realiza uma feijoada no espaço do quilombo. Desde 2006 o quilombo Sacopã (ou Família Pinto) é reconhecido pela Fundação Cultural Palmares, que atua na certificação legal dos quilombos. Apenas em 2014, no entanto, o espaço foi reconhecido pelo Incra como quilombo urbano. Ainda há questões em aberto, mas a parte mais difícil do processo - o registro da posse da terra - já foi concedida. “O título final ainda não saiu, mas temos o registro da posse como garantia. O Incra nos reconheceu como proprietários. Agora não existe mais interesse imobiliário nas nossas terras”, explica o líder. “A partir do momento em que o espaço foi reconhecido como área cultural ele deixou de ter um valor financeiro para ter uma valor histórico”, conclui ele, orgulhoso.
da, presidente da Associação Cultural do Camorim (Acuca). Hoje o que resta é apenas a igreja. A casa-grande foi vendida e tornou-se uma pousada. Em outra área, com uma gruta onde os escravos se instalavam, está sendo construído o complexo de prédios que irá abrigar jornalistas nas Olimpíadas de 2016. Parte da terra do Camorim ainda foi
cido culturalmente. “Dentro da Acuca a gente oferece aula de capoeira, maculelê, dança afro, coco de roda... Mas como não somos reconhecidos como área cultural, não temos um espaço físico. Há anos, quando mudou a gestão da igreja, o padre abraçou a nossa causa e nos chamou pra fazer uma parceria com ele, cedendo o espaço”, conta Adil-
comprada por uma construtora que desmembrou, desmatou e fez uma série de escavações para construir os prédios que seriam a sede dos Jogos Olímpicos. Após a certificação, que veio em 2014, houve o repasse dessas terras para a prefeitura. Adilson conta que ainda luta para que o espaço seja reconhe-
son. Além da área cultural, a associação promove ações de reflorestamento no local e oferece aulas de guia de turismo na região do quilombo.
DINÂMICA URBANA Entre os bairros de Curicica e Vargem Grande, em Jacarepaguá, fica localizado o quilombo do Camorim. Mesmo muito urbanizado, o quilombo esconde tesouros naturais como o açude de mesmo nome e densas matas que fazem a felicidade dos desbravadores de trilhas. O primeiro indício da terra quilombola é a Igreja de São Gonçalo do Amarante, construída em 1625 por escravos. Bem pertinho, ficava localizado o Engenho do Camorim, com a casa-grande e a senzala. “Meu bisavô e meu avô foram capitães do mato aqui nessas terras e andavam atrás dos escravos que fugiam para a Pedra do Quilombo”, conta Adilson Almei-
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MUITO ALÉM DO SAMBA A Pedra do Sal, na região central, possui uma história intimamente ligada à escravidão e à
ETAPAS DA REGULARIZAÇÃO DE UM
QUILOMBO
ali. Com isso, a região ficou conhecida como “Pequena África”, por manter tradições afrobrasileiras no local, como o samba e as religiões de matriz africana. A Associação das Comunidades Remanescentes do Quilombo da Pedra do Sal abriga 25 famílias e uma carga histórica e cultural de quase dois séculos. Tombado provisoriamente em 1984 e reconhecido em 2005, o quilombo compreende os largos João da Baiana e São Francisco da Prainha e alguns imóveis das ruas Sacadura Cabral, Camerino, Travessa do Sereno e Argemiro Bulcão. Toda a região tem um apelo cultural muito forte. Na Pedra do Sal acontecem rodas de samba, shows de jazz e de black music e eventos de culinária que atraem moradores de outros quilombos da cidade. “Estamos retomando o nosso território diante de todas as adversidades e ocupando-o com eventos da nossa cultura”, conta Damião Braga, líder da Pedra do Sal. Apesar disso, há um atrito grande entre os organizadores dos eventos e os moradores, que se sentem prejudicados com o barulho e desrespeito à lei do silêncio. “Infelizmente a Pedra, onde acontecem os eventos, é um local da área municipal, que faz parte do Plano Diretor. Ela é do povo da cidade, mas acima de tudo é dos moradores do quilombo”, garante Braga. RECONHECIMENTO AINDA DEMORA
resistência negra. Vizinha do Cais do Valongo, era justamente por aquele porto que a mão de obra escravizada entrava no Brasil. A chegada dos negros naquele local iniciou-se no século 16, com a vinda dos escravos para carga e descarga de sal. Muitos, vindos da Bahia, vieram morar 8 | SubVersões | n°1 | 2015
A certificação legal das comunidades quilombolas é feita pelo Decreto n° 4887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas. São remanescentes das comunidades dos quilombos “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. O amparo legal da autoatribuição é dado pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário e que recomenda políticas sobre populações indígenas e tribais, buscando o reconhecimento histórico e diminuição das diferenças socioeconômicas entre estas comunidades e o restante da população.
Para ser reconhecido como território quilombola, os representantes das comunidades devem buscar órgãos oficiais, como a Fundação Cultural Palmares (FCP) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). De acordo com a assessoria da FCP, as instituições trabalham juntas para que as terras sejam tituladas: enquanto a primeira é responsável pelo processo de certificação e de titulação das terras quilombolas, cabe ao Incra realizar o laudo antropológico, limitar a área a ser ocupada, além de cuidar de necessárias desapropriações de fazendeiros e empresas. Apesar das instituições tratarem deste tema específico, não há um prazo para que processo de reconhecimento dos quilombos aconteça. Os líderes quilombolas afirmam que apesar de cumprirem com toda a burocracia, há terras que só foram reconhecidas quase 10 anos depois de seus representantes entrarem com
FOTO : TAMIRIS BARCELLOS
o processo. O Incra argumenta que a regularização varia de caso para caso. Em algumas situações, os requerentes já são titulares das terras. Em outras, como o quilombo da Pedra do Sal, as terras estão em domínio do município. Segundo o vicepresidente da Confederação Nacional Quilombola, Damião Braga, representante do quilombo Pedra do Sal, a lentidão no processo deve continuar. “Felizmente nós, quilombolas, aprendemos a contar além dos dedos das mãos e dos pés. Hoje são cinco mil territórios quilombolas no Brasil, dos quais o Estado brasileiro reconhece, oficialmente, menos de 150”, lamenta. Em 2011, quando era vereador no Rio de Janeiro, Eliomar Coelho (PSOL) criou o projeto de Lei 1091, que previa considerar os quilombos como Área Especial de Interesse Cultural (AEICs) dentro do plano diretor da cidade. A aprovação da lei só aconteceu em 2014, abrangendo as
áreas da Pedra do Sal e Sacopã. Desde 1992 essas áreas estavam previstas no Plano Diretor da cidade, visando a proteção de patrimônios históricos e arquitetônicos. O foco estava na estrutura física, deixando em segundo plano as construções culturais e sociais. As AEICs são instrumentos que garantem o reconhecimento e a demarcação de territórios destas comunidades. Quando se trata de quilombos localizados em áreas urbanas, a legislação municipal nem sempre dá garantias de pertencimento. Assim como o processo de reconhecimento de terras, reconhecer o espaço quilombola como uma AEIC também demanda muito tempo. “Neste caso, cabe salientar a enorme importância que o movimento social e as próprias lideranças dessas comunidades tiveram em sensibilizar e pressionar o prefeito”, diz a assessoria de imprensa de Eliomar Coelho. (Uma versão desta reportagem foi publicada pelo Viva Favela)
FOTO + POESIA
foi tudo muito rápido minhas mãos cresceram meus pés ficaram tudo muito ácido a realidade procrastina suas verdades de repente eu era alto de repente eu era baixo de repente já nem era mais de fato quem sabe não virei algo que não se sabe
POR ANA GABRIELA NASCIMENTO colaboração GUILHERME ALVES
“Mas você não é negra, é morena”. “É tão bonita, tem os traços finos”. “Mas seu cabelo é bom, tem movimento”. “É no máximo mulata, café com leite”.
D
itas em tom de elogio, expressões como essas são comuns no cotidiano de pessoas negras de pele clara. Ao enaltecer características associadas à estética branca, demonstram o viés do racismo que inferioriza tudo que remete ao negro, inclusive os traços físicos. Em 1982, no ensaio “If the Present Looks Like the Past, What Does the Future Look Like?” (“Se o presente parece o passado, o que o futuro parece?” em tradução livre), a escritora americana negra Alice Walker cunhou o ter-
mo colorismo para se referir ao racismo que se baseia no tom da cor da pele - e não na origem familiar ou comunidade a que uma pessoa pertence - para discriminar. O argumento da ensaísta é que os negros de pele escura sofrem mais preconceito do que os negros de pele clara – no Brasil, o que se costuma chamar genericamente de “mestiço” ou “mulato”. Estes, por sua vez, numa espécie de “limbo étnico”, são levados a pensar, desde muito cedo, que ser branco é melhor que ser negro. Os efeitos disso em nossa sociedade podem influenciar relações econômicas, 12 | SubVersões | n°1 | 2015
de afeto, de poder e, de modo bem objetivo, na forma como o “mestiço” se relaciona com sua própria aparência. Há um estímulo e uma imposição, principalmente sobre as mulheres, para que se busque padrões de beleza associados ao fenótipo dos brancos, como o cabelo liso. Há cerca de dez anos, com a chegada das escovas progressivas ao mercado brasileiro, este ideal de beleza se difundiu à custa da descaracterização dos cabelos crespos e cacheados. Isto porque, diferente dos alisamentos térmicos – que não resistem ao contato com a água –, os compostos
químicos das escovas progressivas prolongavam o tempo do efeito alisante e, quanto mais repetições do processo, mais custosa se tornava a retirada do produto do cabelo. Entre estes compostos estava o formol, conhecido pelo uso na preservação de cadáveres. De lá pra cá, a escova progressiva ganhou novos nomes - marroquina, de chocolate, especial. O formol, apesar de banido em cosméticos pela Anvisa em 2009, ainda é encontrado como potencializador de alisamentos em alguns salões de beleza. O mercado brasileiro de produtos de beleza - terceiro maior do mundo, atrás apenas dos EUA e China - forneceu produtos alisantes a 25 milhões de mulheres em 2013, de acordo com a consultoria Kapar Worldpanel, em pesquisa divulgada pela Revista Exame. O crescimento do setor na década de 2000 foi impressionante: 350%, movimentando 18 bilhões de reais ao ano. Na contramão desta expansão, cresce um movimento liderado por mulheres que decidiram romper com o ideal do liso e hoje se empenham em retirar os resquícios dos produtos químicos do cabelo, passando pela chamada transição capilar. DA CABEÇA AOS PÉS “Inclusive, tudo isso que está acontecendo aqui hoje é por causa do meu cabelo!”, contou Barbara Lage, respondendo sobre quem ali havia passado por transição capilar. Ali era mais precisamente o encontro “Meu Cacho, Meu Crespo” – que se tornou também título desta reportagem - indo já para sua sétima edição, no Parque Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro. A ideia de reunir palestras, roda
de afoxé, desfile de moda negra e exposição de produtos artesanais surgiu depois da mobilização em torno de um depoimento escrito no Facebook por Barbara, que é trancista e expositora de turbantes, dizendo que iria cortar seu cabelo e deixá-lo crescer da forma como ele é. Era o fim de um ciclo que durou quase 20 dos seus 33 anos de vida, entre químicas alisantes e relaxantes. A transição capilar, mais do que uma mudança visual, provoca transformações profundas na vida de muitas das mulheres que passam pelo processo. “Eu comecei a ter cérebro quando o meu cabelo encrespou”, brinca a trancista ao contar, entusiasmada, tudo de novo que está aprendendo desde que decidiu deixar seu cabelo natural. “O meu povo não é burro. Meu cabelo não é ruim. Ser negro é bom”, afirma ela. Filha de pai e mãe negros, Barbara, apesar de ter a pele cla-
COMPORTAMENTO muito a entender quem eu era, a encontrar meu lugar no mundo e vi que tem muita gente perdida como eu estava porque ninguém ensina a gente a ser negro”, constata a trancista. A história de Barbara é exemplo de um debate ainda pouco difundido nas discussões sobre racismo no Brasil. Em um país altamente miscigenado como o nosso, de que forma e por quê as características típicas de pessoas negras são silenciosamente apagadas da construção de identidade da população? COLORISMO & MISCIGENAÇÃO
A socióloga e pós-doutoranda em Ciências Sociais Ana Paula Alves Ribeiro afirma que o histórico social brasileiro influencia o autorreconhecimento racial dos sujeitos. “Em uma sociedade em que a questão do fenótipo [neste contexto, as características físi-
25 MILHÕES DE BRASILEIRAS UTILIZARAM PRODUTOS PARA ALISAR O CABELO EM 2013 ra, sempre se viu também como negra – principalmente por conta da postura altiva de sua mãe em relação à identidade racial da família. Mesmo assim, os termos “morena”, “mestiça” ou “mulata” eram recorrentes para caracterizá-la, principalmente antes de optar pelo cabelo black. Assim como ela, muitas pessoas se veem neste tipo de situação cotidianamente. Entre as mulheres isto está intimamente ligado à busca por padrões de beleza enaltecedores das características físicas típicas de pessoas brancas, em detrimento aos traços associados aos negros. “Demorei 13 | SubVersões | n°1 | 2015
cas de um grupo étnico] conta e que passou no século 19 pelo estímulo à civilização do negro – e isso passa pelo processo de branqueamento – a miscigenação acaba contando. Ao contrário da sociedade americana, para quem uma gota de sangue basta para ser negro, a miscigenação afetará sim nossa identidade”, comenta Ana, que é colaboradora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros - NEAB e do Museu Afro Digital - Galeria Rio, ambos da UERJ. Assim, no senso comum, para ser incontestavelmente negro no Brasil é necessário ter a pele escura. Isso não significa que os
que têm pele clara não sofrem racismo e sim que sobre estes paira uma incerteza acerca de sua identidade racial. Esta incerteza começa de fora para dentro quando, ainda na infância ou adolescência, ouvem comentários “elogiosos” como os citados na abertura da reportagem. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada em setembro de 2014, apontou que apenas 8,1% da população brasileira se autodeclarava “preta” em 2013, enquanto que os “pardos” representavam 45% da população. Na pesquisa do IBGE, as pessoas entrevistadas se autodeclaram pretas, pardas, brancas, amarelas ou indígenas, seguindo o critério da “cor” da pele ou “raça”, com exceção da população indígena, a que se questiona também língua falada e etnia. A pesquisa, apesar de subjetiva, mostra que o número de pessoas que se dizem pretas vem crescendo, uma vez que elas re-
presentavam apenas 5,9% da população em 2004. A gerente da PNAD, Maria Lucia Vieira, declarou à Agência Brasil que não era possível saber se mais pessoas negras estavam nascendo no Brasil ou se mais pessoas negras estavam, somente agora, declarando-se enquanto negras. “A classificação parda ou preta pode estar associada à questão de autoafirmação e até mesmo das cotas. Os dados da pesquisa não têm nada a ver com as cotas, mas a pessoa passa a se enxergar ou passa a ter consciência da raça dela e passa a se declarar de forma diferente”, disse ela. Enquanto isso, 46,1% da população se declarou branca, e apenas 0,8% se declararam amarelos ou indígenas. Assimilar uma identidade racial negra vai contra as expectativas. Barbara acredita que este processo custou, por exemplo, o seu emprego fixo no setor administrativo de uma empresa de estética. Para estimular o crescimento do cabelo natural antes
de fazer o corte que finalizou sua transição, Barbara usou tranças por um tempo. “No trabalho, me perguntaram se eu usaria tranças coloridas, se eu teria discernimento de saber até onde eu poderia ir com as tranças. Quando eu comecei a usar coques e turbantes o incômodo cresceu mais. E o ponto final foi quando eu cortei meu cabelo curto. Pouco tempo depois me mandaram embora”, contou ela. REPRESENTAÇÃO E CONSUMO
Assim como as escovas progressivas fizeram a cabeça das mulheres nos salões de beleza, na publicidade a oferta de produtos alisantes é reforçada. Estimativas apontam para a parcela da população brasileira com cabelo crespo ou cacheado correspondendo entre 50 e 70% do total, embora o ideal do “liso perfeito” seja recorrente nas propagandas. A subrepresentação da
MULHERES NEGRAS FORAM REPRESENTADAS EM
APENAS 4,6% DAS NOVELAS EM DUAS DÉCADAS
ASSIMILAR A IDENTIDADE NEGRA VAI CONTRA AS EXPECTAVIAS 14 | SubVersões | n°1 | 2015
mulher negra e dos cabelos crespos não é visível apenas no mercado da beleza, no entanto. A pesquisa “A Raça e o Gênero nas Novelas dos Últimos 20 Anos”, desenvolvida pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa - GEMAA/UERJ indicou, por exemplo, que as mulheres negras estiveram em apenas 4,6% dos papéis em núcleos principais das novelas da Rede Globo entre 1995 e 2014. Com a falta de referenciais em produtos culturais populares como as novelas, mas também cinema, jornais, brinquedos, é comum que as meninas negras cresçam se espelhando em mulheres brancas. “Lembro como se fosse ontem da primeira vez que decidi alisar o cabelo. Eu queria ficar igual a Babalu da novela, personagem da Letícia Spiller”, lembra a trancista. “Ela não tem a cor da minha pele, não tem nada a ver comigo, mas a imagem dela foi muito massacrada na minha mente: beleza, olho claro, loira, cabelo liso sem um frizz e balançando. Falei para minha mãe: quero aquele cabelo para mim! Fiz o mesmo corte e alisei. Não durou nem 15 dias, porque o meu cabelo nasce. Nem se eu comesse Bubbaloo meu cabelo nasceria liso”, conta Barbara, hoje descontraída depois de muito tempo frustrada com cada milímetro de cabelo que despontava de sua raiz. “Não vemos crioulas nas novelas, só negras com feições finas, com cabelo cacheado. Quando tem uma negra nas novelas, ainda assim é muito diferente de mim”, ela critica. “Para ficar parecida com ela, você tem que relaxar ou alisar o cabelo mensalmente, ou seja, você deixa um bom dinheiro no salão de beleza e engorda financeiramente in-
dústrias”, argumenta Barbara. As indústrias citadas pela trancista incluem gigantes como Procter & Gamble e Unilever, que em 2007 lançaram linhas específicas para cabelos crespos para “controle de volume” e para quem faz escova progressiva. Para Ana Paula, nossa estrutura midiática é determinante não só na decisão de muitas garotas em modificar o cabelo, mas também na maneira como elas pensam seus próprios corpos. “Na grande mídia ainda somos pouco representadas, somos poucas as que estão lá, e ainda fazemos papéis subrepresentados. Não encontraremos papéis como os criados por Shonda Rhimes na rede ABC [rede de televisão americana]. Rhimes tem sido apontada como alguém que quer pensar a normalização do que chamaríamos de diversidade. Fico muito feliz vendo a programação americana. Muito pouco vendo a nossa”, aponta a socióloga, referindo-se a roteirista responsável pelos seriados Grey’s Anatomy, Private Practice e Scandal. “Temos avançado, inclusive apontando o que não queremos ver, o que não queremos ter como representação e quais os estereótipos que foram construídos e que rejeitamos”, ela pontua. “Vejo um movimento de ativismo político e cobrança muito evidente no que diz respeito às representações dos negros, e mais especificamente das mulheres negras na mídia. Há uma busca por autorrepresentação, fortalecimento de identidades em grupos”, completa. Decidida sobre o rumo que deseja seguir, Barbara representa milhares de mulheres que estão, por meio da afirmação da sua estética e reforço da autoestima, lutando por presença e voz não 15 | SubVersões | n°1 | 2015
“VEJO UM MOVIMENTO DE ATIVISMO POLÍTICO E COBRANÇA MUITO EVIDENTE NO QUE DIZ RESPEITO ÁS REPRESENTAÇÕES DOS NEGROS, E MAIS ESPECIFICAMENTE DAS MULHERES NEGRAS NA MÍDIA. HÁ UMA BUSCA POR AUTO REPRESENTAÇÃO, FORTALECIMENTO DE IDENTIDADE EM GRUPOS”. - ANA PAULA ALVES, socióloga
só na mídia, mas em todos os espaços que ainda carecem de serem por elas ocupados. “Quanto mais o meu cabelo foi encrespando, mais eu fui pensando, mais eu fui procurando saber. Entendi que eu não preciso relaxar nem alisar o meu cabelo para fazer você, ou ele ou ela feliz. Decidi não mais sofrer e vou gritar isso pra que ninguém que esteja perto de mim sofra também”, avisa Barbara.
BARBARA LAGE
C
asa lotada e clássicos de Noel Rosa e Edith Piaf sendo interpretados pela consagrada cantora e atriz Bibi Ferreira. Artistas e fãs prestigiando e relembrando histórias que marcaram a MPB. O dia era 16 de outubro e aquele era o último espetáculo apresentado no palco do Canecão. A memória da casa de espetáculos de Botafogo está para além das fronteiras físicas. O espaço projetou artistas e coleciona momentos inesquecíveis que deram ao local visibilidade nacional. Mas, por trás das luzes do palco, a história tinha um tom desafinado: uma decisão judicial determinava que no dia 17 de outubro de 2010 o espaço fosse reintegrado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Hoje, quase cinco anos depois, o lugar carrega apenas as memórias e sobrevive pela promessa de tornar-se um espaço de cultura democrático.
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CIDADE O CANECÃO SEGUNDO MANECO VALENÇA
A
POR BRUNA MATTOS
no de 1964. A história começa quando aquele terreno abandonado e que nada valia, no além túnel em Botafogo, recebeu uma proposta para se tornar um boliche. Na época, o imóvel já pertencia à Associação dos Servidores Civis do Brasil (ASCB). O empresário paulista Mário Priolli fez um acordo com a Associação para uso da área e jamais poderia imaginar o que estava por vir nos próximos 40 anos. Hoje, quem passa em frente às grades do número 215 da Avenida Venceslau Brás dificilmente acredita que naqueles muros pichados funcionava um dos templos da MPB. A casa de shows foi inaugurada em junho de 1967. “Depois de uma longa temporada na Europa, Maysa resolve voltar ao Brasil em 1969 e me procurou”, conta Maneco Valença, primo-irmão de Mário Priolli e um dos administradores na época. Para marcar sua volta, a cantora fez uma grande apresentação na casa, que naquela época ainda não era vista como ilustre. O público lotaria o lugar durante toda
a temporada. “Depois dessa turnê não teve para ninguém, ganhamos o Brasil”, relembra Maneco. Quando abordado sobre a esperança de um dia o Canecão voltar a funcionar, Maneco se emociona. E diz que a casa de espetáculos foi sua vida e sua história. “Daria tudo para ver o Canecão ativo novamente. O lugar do artista é o palco”, finaliza. ESTUDANTES DA UFRJ REIVINDICAM UM CANECÃO DEMOCRÁTICO
E
POR RAPHAEL BANDEIRA
m 2012, junto ao comando de greve estudantil e o Diretório Central dos Estudantes (DCE) Mário Prata, os estudantes da Universidade Federal do Rio de Janeiro mobilizaram um conjunto de ações culturais e debates para dar visibilidade às pautas unificadas da paralisação que ocorreu naquele ano. Entre as exigências, destacavam-se o investimento de 10% do PIB nacional para a educação pública, a criação de creches universitárias e também a transformação do Canecão em um lugar dedicado à democratização da cultura. Na ocasião, a antiga casa de espetáculo encontrava-se fechada havia dois anos. O DCE mobilizou os es-
tudantes para uma ocupação que durou cerca de dois meses e meio. Com shows gratuitos para centenas de pessoas, reuniram grandes artistas como Jards Macalé, El Efecto, Orquestra Voadora e Monarco. Os representantes do movimento afirmaram que, após a reintegração de posse pela Universidade (em 2010), o lugar foi abandonado, sem perspectivas efetivas de revitalização. Além disso, era preciso questionar o por quê de um patrimônio da cidade do Rio de Janeiro manter preços tão altos, excluindo o restante da população. Kenzo Soares, estudante de Jornalismo e ex-diretor do DCE UFRJ na gestão de 2010-2013, acredita na revitalização da casa de espetáculos. “O Canecão pode se tornar um centro cultural acessível de fato. Hoje, no Rio, falta um palco para artistas iniciantes”, observa ele. Em 2012, no “Fórum de Ciência e Cultura”, realizado na UFRJ, os estudantes apresentaram uma proposta de revitalização do Canecão, que foi aprovada e encaminhada ao Conselho Universitário, órgão máximo da universidade, mas não foi executada. A esperança é que o reitor recém-empossado Roberto Leher leve o plano adiante. “Leher sempre foi defensor da implementação da proposta dos estudantes de transformar o espaço do Canecão em um centro público e gratuito voltado pra cultura popular”, afirma Kenzo.
A CANTORA, O PRODUTOR E O PROFESSOR
A
POR EUGENIA RODRIGUES
sambista Teresa Cristina se emociona ao falar da casa de shows que frequentava desde a adolescência e na qual, ano depois, iria se apresentar. “Os melhores shows da minha vida! Chico, Gil, Gal, Bethania... Fazia amigos na fila, pulava da arquibancada para as mesas quando a luz se apagava. O dono da cadeira nunca apareceu”, ri. O show “Paratodos”, de Chico Buarque, deu trabalho para conseguir ingresso. “Queria ver de perto porque achava que ele não existia de tão perfeito”. Lembrando de seus próprios shows ali, garante: “O que acontecia lá refletia no resto do Brasil; gerava boas turnês”. Assim como Teresa, o produtor Jerson Alvim, que atualmente trabalha no bar Feitiço Mineiro, em Brasília, não consegue escolher o show mais marcante. Ele foi diretor artístico do Canecão de 1969 a 1974 e de 1985 a 2004.
“Wilson Simonal, Tom Jobim e Vinicius de Moraes, Clara Nunes, Roberto Carlos, Tim Maia. Astros internacionais como James Taylor, roqueiros como Raul Seixas e Cazuza”. Alvim acredita que o endividamento do Canecão se deu porque a casa recolhia os direitos autorais junto ao ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, instituição privada que centraliza a distribuição de direitos autorais de apresentações musicais) na mesma categoria de emissoras de TV, e não na de casa de espetáculos. Ele admite que manobras foram feitas, no entanto, para esconder dívidas. E duvida que um outro local repita o sucesso do Canecão. “Nenhum artista aguenta mais de uma semana numa casa desse tamanho”. O professor Carlos Vainer, responsável pelo futuro Espaço UFRJ, reconhece a responsabilidade. “É um patrimônio do Rio. Mas o ideal é espaço cultural público, e o fato de ser também um espaço universitário faz com que o foco seja no artista, não no empresário”. Vainer dá como DISCO MAYSA CANECÃO
exemplo um painel do cartunista Ziraldo, encontrado durante a reforma e que havia sido tapado para dar lugar a mais mesas - ou seja, mais lucros. O professor culpa a burocracia pelo atraso nas obras de revitalização do espaço, e conta que, ao contrário do que se acredita, só em 2013 a instituição teve plena posse do imóvel. Antes, estava obrigada pela Justiça a manter no local bens deixados pelo antigo proprietário. Depois foi necessário reformar o telhado, avaliar a estrutura e cumprir exigências do Tribunal de Contas da União. Ele calcula que o novo espaço será inaugurado somente no final de 2017. Por outro lado, está otimista: “O Plano Diretor da UFRJ prevê um complexo com centro de convenções, hotel-escola e estacionamento. O antigo Canequinho será um espaço para shows intimistas. Vamos integrar a universidade e a cidade!”, garante ele. *Esta reportagem foi originalmente realizada para O Malemolente, blog criado para receber materiais da disciplina de Técnica de Reportagem, Entrevista e Pesquisa Jornalística III, 2015.1, da FCS/UERJ
no metro da noite os vagões lotados cidadões comendo celulares os homens discutindo futebol e vulgaridades as palavras se perdiam pelos tuneis olhares comiam bundas mãos desrespeitosas se aproveitavam do cansado descuido eu no meio de tudo tão real quanto a tristeza apertada compartilhada por todos ali e que por todos era abafada em dominicais alegrias do mundo eu era sonho em meio a concreta irrealidade
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COMPORTAMENTO
QUEBRANDO O TABU É preciso informação e sensibilidade para entender o suicídio como um problema de saúde pública. A imprensa, ao contrário do que se imagina, não deve se omitir. Mais do que nunca, precisamos falar sobre suicídio
E
“
la pedia socorro e gritava ‘ele vai pular!’”. Ao relembrar o episódio ocorrido no início de 2013, o casal Eliza e Renato mexe em uma lembrança que permanece pouco compreensível até hoje, anos após terem sido confrontados, face a face, com uma tentativa de suicídio. Eles conversavam em um corredor quando gritos vindos de uma das rampas externas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro chamaram atenção para a cena: em pé num parapeito, seguro apenas pelas mãos da ex-namorada, um homem ameaçava se lançar do oitavo andar do prédio principal. “Nós corremos pra lá e um outro rapaz fez o mesmo. Começamos a puxá-lo, mas ele não vinha”, conta
POR GUILHERME ALVES Renato Gama, estudante de Psicologia. “Até que ele se jogou para o lado de dentro e ameaçou brigar com a gente. Nós todos tentamos acalmá-lo, mas ele saiu correndo”. O homem foi contido por outros estudantes, que também chamaram os seguranças e acionaram o serviço de atendimento psicológico da universidade. “Eu corri atrás dele com medo que ele se jogasse e eu não tivesse feito nada”, lembra Eliza Machado, estudante de Contabilidade. “Talvez ele tenha tomado consciência de que não era aquilo que ele queria. A missão naquele dia foi cumprida”. A carga violenta da história contada pelo casal é uma curva fora da reta quando se fala em casos de autoextermínio. Geralmente silenciosos e até certo ponto escondidos, 20 | SubVersões | n°1 | 2015
são invisibilizados pelo poder público, imprensa e sociedade como um todo. Se a morte em si é carregada de tabu, a procura pela morte é assunto ainda menos discutido. Apesar de haver poucas pesquisas sobre o assunto, um estudo realizado em 2005 na cidade de Campinas, com apoio da Organização Mundial da Saúde, trouxe dados importantes sobre o perfil de quem decide tirar a própria vida. A partir de listagens de domínio do IBGE, 515 pessoas foram sorteadas e entrevistadas por pesquisadores da Unicamp. Apurou-se que 17,1% delas já “pensaram seriamente em por fim à vida”, 4,8% chegaram a elaborar um plano para tanto, e 2,8% efetivamente tentaram o suicídio. Mais do que criar pânico, a amos-
tragem ajuda a situar a idealização do autoextermínio como algo mais comum do que se imagina. Precisamos falar sobre suicídio: é o que pedem todas as organizações que lutam pela prevenção deste tipo de fenômeno social, já entendido assim desde pelo menos o século 19. O sociólogo francês Émile Durkheim, no clássico “O suicídio”, apontava as dinâmicas sociais como causadoras, criticando a ideia de que o suicídio é um fenômeno isolado. Ao contrário: é inerente à condição humana, mas em uma realidade pautada em desigualdades - sociais, econômicas, de poder -, acaba também por impactar de formas distintas grupos específicos.
(437 mil em 2012) ou por conflito armados. O Brasil figura na 113° posição mundial em termos relativos: 5,8 mortes por 100 mil habitantes em 2012, quase a metade da média mundial. A posição é falsamente confortável, no entanto. Em termos absolutos, somos o 8° país no mundo em que as pessoas mais se matam, com 11.821 casos registrados em 2012. O Mapa da Violência 2014 - os jovens do Brasil, do pesquisador Julio Jacobo Wailselfisz, aponta, a partir de dados oficiais do Ministério da Saúde, que a taxa de suicídios no país aumentou 33,6% entre 2000 e 2012, mais que o triplo da taxa de crescimento da população em si (11,1%). Para piorar, a baixa qualidade dos dados nas compilações da OMS e do Ministério da Saúde é uma realidade: as subnotiO BRASIL É O PAÍS NO ficações, principalmente nos países em que o ‘comportamento MUNDO QUE AS PESSOAS suicida’ é crime, comprometem MAIS SE MATAM e muito os resultados. No Brasil, é comum que os suicídios sejam registrados como “acidente com arma de fogo”, “overdose” e SEGUNDA MAIOR CAUSA DE “queda acidental”, como conta o jornalista André Trigueiro no reMORTE VIOLENTA ENTRE cém-lançado Viver é a melhor opJOVENS ção, que traz estes e outro dados. O suicídio é a segunda Isso tudo ajuda a entender que o maior causa de morte violenta en- problema pode ser ainda maior tre jovens de 19 a 29 anos em todo do que as pesquisas mostram. o mundo, atrás apenas de acidenHUMANIZAR tes de trânsito. O dado é da Organização Mundial da Saúde, que Um dos mais importantes no ano passado lançou o relatório Preventing suicide - a global impe- estudos dedicados a compreenrative, um dos mais importantes der por que as pessoas se matam documentos já produzidos sobre foi feito em 2002, coordenado a prevenção deste tipo de morte. pelo Prof. José Manoel Bertolete, Analisando os registros na da Universidade Estadual de São última década, a OMS aponta que Paulo (Unesp), e pela pesquisadohouve queda de 9% no número de ra suíça Alexandra Fleischmann. casos registrados - 883 mil em 2000 Ao analisarem 31 artigos ciene 804 mil em 2012 -, mas as taxas tíficos publicados entre 1959 e ainda impressionam: o número de 2001, englobando mais de 15 pessoas que se suicidam supera o mil casos de suicídio na populadas que morrem por homicídio ção em geral, os pesquisadores
8°
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apontaram que em 90% dos casos caberia um diagnóstico de transtorno mental à época da morte. Segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria, a depressão, o transtorno de humor bipolar, a dependência de álcool e outras drogas psicoativas e a esquizofrenia são os principais transtornos mentais relacionados ao autoextermínio. Isso não quer dizer que quem sofre de alguma dessas doenças necessariamente vai querer se matar algum dia, mas sim que elas são um fator de risco muito relevante. Também significa que, ao contrário do que uma abordagem simplista pode indicar, o suicídio não é um ato de livre-arbítrio, não na esmagadora maioria das vezes. É resultado de um histórico de sofrimento, que pode e deve ser evitado com atendimento especializado e humanizado. O ato suicida é ambivalente: está entre o querer morrer e o querer viver de maneira diferente. Entre os jovens, as transformações psicológicas características desta idade, aliadas à pressão por assumir responsabilidades e uma identidade no mundo adulto muitas vezes leva à frustração. Em termos relativos, contudo, são os idosos o grupo social mais afetado, principalmente entre os acima de 70 anos. Quando se atinge esta idade, como bem observa Trigueiro, é preciso saber lidar com as perdas: da juventude, da autonomia, de entes queridos. A juventude enquanto valor social é especialmente cruel para quem já não é mais jovem. Alguns dos municípios com maiores taxas de suicídios do país são assentamentos indíge-
90% DOS CASOS DE SUICÍDIO SÃO EVITÁVEIS
que existe ao redor do assunto. Este é o trabalho, por exemplo, do Centro de Valorização da Vida (CVV), uma ONG que existe desde 1962 e que se multiplica em centenas de pólos em todo o país, realizando atendimento gratuitos. O PAPEL DA IMPRENSA
nas. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, 2,9% da população é indígena, mas 19,9% dos suicídios acontecem entre eles, taxa muito acima da esperada proporcionalmente. A violência das disputas de terras, crise de identidade e valores (principalmente entre os jovens) e falta de assistência do poder público são apontados como fatores que podem elevar estas taxas. Quem é alvo de discriminação social tende a engrossar os dados de suicídio. É o caso de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros. Mulheres vítimas de violência doméstica e relacionamentos abusivos também têm taxas elevadas. O cultura machista acaba por permear estes preconceitos, atingindo inclusive homens heterocissexuais, para quem a pressão pelo ideal de “macho” e de provedor da família é, por vezes, insuportável.
Comparando dados entre 1980 e 2012, por exemplo, o Mapa da Violência 2014 mostra que os homens representaram 84,9% das pessoas que se suicidaram no Brasil, quase quatro vezes mais que as mulheres. Por fim, a cultura do hiperconsumo, mesmo não sendo em si um fator de risco, também contribui para que as diferenças de econômicas afetem relações de identificação e afeto, principalmente entre os jovens mais pobres. Identificar grupos de risco não deve significar estigmatizá-los, tratando-os como potenciais suicidas. Se é verdade que os transtornos mentais podem levar ao suicídio, é verdade também que, como qualquer doença, eles podem ser tratados, curados ou, no mínimo, controlados. Ouvir e aconselhar pessoas em situação vulnerável é uma das melhores forma de retirar o peso do tabu 22 | SubVersões | n°1 | 2015
A percepção de que a imprensa e a literatura podem influenciar os casos de suicídio é antiga. No século 18, o alemão Goethe teve de vir a público se defender, já que aparentemente “Os sofrimentos do jovem Werther”, livro publicado em 1774, estava motivando uma onda de jovens suicidas pela Europa. O romance contava a história de um rapaz que decidia tirar a própria vida depois de um amor frustrado. Entre os casos relacionados ao livro estavam aqueles em que os suicidas se vestiam como o protagonista, adotaram o mesmo método que ele ou traziam o romance consigo quando se mataram. O fenômeno originou o termo “Efeito Werther”, usado na literatura médica para designar os casos de suicídio por imitação. O que os estudiosos do tema defendem é tudo vai depender da abordagem dada pelo veículo. A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) criou uma cartilha, Comportamento suicida: conhecer para prevenir - dirigido a profissionais de imprensa (2009), especialmente para este fim. Segundo a ABP, a imprensa nacional acaba noticiando suicídios somente em cinco casos: quando quem morreu é uma figura pública ou celebridade; quando antes do suicídio houve um assassinato, cometido pelo suicida; em atos terroristas, como os casos de homens-bomba; quando o suicídio afeta a coletividade, como um engarrafamento de trânsito; ou quando profissionais sem treinamento exploram
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casos de forma antiética. Ao contrário do que se sugere, falar de suicídio é necessário e pode impedir que novos casos aconteçam. Abordagens que exploram vítimas e seus métodos são potencialmente cruéis com familiares e amigos. É bastante lembrada a abordagem feita, em 1993, pelo noticiário Aqui Agora, do SBT, que exibiu o suicídio de uma adolescente de 16 anos ao vivo na televisão. A equipe de reportagem chegou junto com os socorristas, enviados para tentar impedir que ela se jogasse do sétimo andar de um prédio em São Paulo. Na época, a emissora foi acusada de sensacionalismo, uma vez que poderia ter noticiado o fato sem mostrar seu desfecho. Especialistas sugerem que casos notórios sejam utilizados em reportagens abordando o suicídio como o problema social que ele é. Carregar as reportagens de tensão ou focar na reação impactada de amigos e familiares pode encorajar pessoas mais vulneráveis, que tomam o suicídio como forma de chamar atenção. Romantizar o fato, colocar a vítima como heroína ou ressaltar um lado “solucionador” também são abordagens que devem ser evitadas. Por fim, sempre que possível, esclarecer e ajudar a identificar possíveis transtornos mentais que são fatores de risco, mas sem estigmatizar estas doenças. QUEBRANDO O TABU NA UNIVERSIDADE A estudante de Psicologia Evlyn Rodrigues já entrou na UERJ sabendo que ali eram recorrentes os casos de suicídio. Quando estagiava no serviço de atendimento psicológico do curso, ela atendeu uma estudante que pensava em se matar. “A única coisa que a prendia era a religiosidade”, conta Evlyn. “Foi uma situ-
ação muito difícil. Até os grandes especialistas dizem que sempre é uma situação nova, que nós psicólogos nunca estamos suficientemente prontos para atender”. Estudar em uma universidade em que o suicídio é presente foi a primeira motivação para que esta reportagem fosse escrita. Talvez seja impossível encontrar um estudante que não se lembre de ao menos um caso ao longo de sua trajetória na UERJ. Ao buscar entender como esta relação tão próxima com a morte influencia na forma como eles vivem seu dia a dia é que a angustiante história do casal Eliza e Renato chegou até mim. “É assustador quando você está aqui”, desabafa a estudante Eliza. “Uma coisa é ouvir uma história, outra é você ver que de fato acontece, e com uma certa frequência. Foi o assunto da turma na época”, lembra. Estive com a Prof. Maria Christina Paixão Maioli, mé-
dica e coordenadora do Núcleo de Acolhida ao Estudante (Nace/ UERJ), projeto de extensão criado em 2010 para pautar a prevenção do suicídio entre estudantes da universidade. Psicólogos, assistentes sociais e pedagogos ficam à disposição para atender quem se encontre deprimido e precise de apoio ou tratamento. Além disso, o núcleo realiza o atendimento a familiares e amigos de pessoas que se suicidaram na universidade. Antes do Nace, o “UERJ pela Vida”, criado em 2008, foi a primeira ação prática neste sentido na universidade, ao organizar palestras e distribuir material informativo. Segundo a professora, 75% dos casos registrados na UERJ são de pessoas ligadas à universidade, a maioria estudantes jovens que se encontram, justamente, na faixa etária com maior incidência deste tipo de morte. “O problema, no entanto, não é da UERJ. É
75%
DOS CASOS REGISTRADOS NA UERJ SÃO DE ESTUDANTES
do mundo”, afirma Maioli. “Há suicídios na Ponte Rio-Niterói, em unidades da UFRJ, no metrô. É um fenômeno onipresente”. Estatisticamente falando, o número de casos na universidade não é alto: a média, com oscilações, é de menos de dois casos por ano. “É quase “insignificante” se comparada com o que ocorre no resto da cidade e do país. Mas, para dentro da universidade, os suicídios são profundamente perniciosos”, afirma a professora. Ela acredita que o imaginário coletivo criado ao redor do tema, especialmente dentro da UERJ, contribui para que a impressão do número de casos seja muito maior do que de fato é registrado. “Temos como acabar com o suicídio? Não sei”, pondera Maioli. “Mas temos como diminuir e tentar abordar o assunto de uma forma eficiente”. A professora destaca o que chama de “controle do meio”, isto é, formas de dificultar a consumação. No caso da UERJ, o Nace atua na capacitação dos seguranças, para que estes estejam aptos a identificar pessoas com comportamento suicida. “O que podemos fazer também é o controle do acesso, já que as pessoas se jogam das passarelas, varandas e sacadas”, afirma ela. No ano passado, redes de proteção foram instaladas nas passarelas centrais do prédio. A continuidade da ação em outras passarelas e locais de risco depende da disponibilidade de recursos da Prefeitura
do Campus. Além do Nace e do serviço de atendimento psicológico do Instituto de Psicologia, o Campus Maracanã também conta com um pólo do Centro de Valorização da Vida (CVV), que atende tanto a comunidade interna quanto a externa. Para os estudantes entrevistados e a própria coordenadora,
conta da preservação do projeto original. Todos os corredores são iguais, os andares são todos iguais”, critica Maioli. Ocupar o espaço com cores, objetos e cultura - música, poesia, afetos -, apesar da burocracia resistente, parece ser excelente ferramenta para humanizar um espaço tido como estéril. Para todos os entrevistados, lutar contra a insensibilização quando o suicídio deixa de ser “novidade” é uma necessidade. Se há alguns anos um primeiro caso presenciado foi assunto na turma de Eliza, hoje em dia pouco se comenta e pouco se choca. Para Renato Gama, a universidade deve ocupar papel protagonista nesta discussão. “Qualquer movimento que silen-
SÓ OUVIR ÀS VEZES É O SUFICIENTE PARA AJUDAR
contudo, falta divulgação e popularização para que estes serviços possam, de fato, cumprir seu papel. Pergunto à Prof. Maria Christina sobre a relação entre o ambiente e os suicídios, já que é comum que se atribua ao aspecto físico da UERJ a “culpa” pelos casos registrados ali. “O cinza da universidade faz parte do projeto original, da década de 70, quando o uso do concreto era comum”, explica a professora. A universidade acaba sendo muito sombria e escura e se, por um lado, as rampas e passarelas criam um ambiente acessível, por outro também expõem a fragilidade do “gigante de concreto”. “É preciso criar identificação. Não se permite, por exemplo, particularizar os ambientes externos por 24 | SubVersões | n°1 | 2015
cie os suicídios é egoísta e negligencia nosso papel enquanto agentes sociais que podem ajudar na prevenção”, opina ele. “Não temos condição de mudar o mundo nem de evitar tudo, mas acho que pequenas mudanças, um olhar cuidadoso, a gente pode ter”, opina a estudante Evlyn. “Encaro isso como uma responsabilidade que tenho no dia dia. Ter mais sensibilidade, tentar enxergar uma oportunidade de às vezes apenas ouvir alguém. Só o ouvir às vezes é suficiente”.
fico entre a ação e o aço entre o verso e o faço complexo o céu, seus trabalhos nervosos, esparços azuis alados trabalhos chuvosos molhados uma tarde amena de domingo o sol passa pela janela frisada flocos de poeira pairavam calmos só o kaos liberta falou a voz vinda do corredor e os flocos de poeira sumiram.
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CIDADE
DA CHINA
PARA
O BRASIL
A imigração chinesa se tornou pauta após uma série de denúncias de trabalho escravo e procedência ilegal de alimentos em pastelarias no Rio POR LETÍCIA TAETS
M
“
eus pais se conheceram na adolescência e, apesar de serem necessários poucos dias para que ele conhecesse a família dela, a situação contrária não foi tão fácil”, conta Manoelli Gianiem, 18 anos, filha de um chinês e uma brasileira. Estudante de Arquitetura, a jovem nasceu de uma mistura cultural ainda hoje difícil e pouco visível, mesmo após um século da vinda dos primeiros imigrantes chineses ao Brasil. “Antes de conhecerem minha mãe, meus avós ofereceram diversos bens materiais para que meu pai rompesse a relação, o que foi em vão. Eles não aceitavam o fato de que o único filho homem e mais velho de uma famíliagg quisesse casar com uma brasileira pobre, moradora da favela
e sem qualquer conhecimento sobre a cultura chinesa”, observa ela. A imigração de chineses para o Brasil foi pauta da grande mídia, em março deste ano, graças a Operação Yulin, lançada pelo Ministério Público do Trabalho e pelo Procon em 2013 para apurar denúncias de trabalho escravo em pastelarias chinesas, que também foram investigadas sobre a procedência dos alimentos que vendiam. Uma denúncia anônima levou os procuradores a uma pastelaria em Parada de Lucas, zona norte do Rio. No local havia uma mulher chinesa trabalhando em regime de escravidão: a vítima vivia em cárcere privado, não recebia salário e era agredida pelo dono da pastelaria. O expediente diário era dado das cinco e meia da manhã às onze da noite. A mesma 28 | SubVersões | n°1 | 2015
pastelaria ainda usava carne de cachorro nos salgados vendidos aos consumidores. O dono confessou que recolhia os animais nas ruas da zona norte, mesmo sabendo que o abate de cães é ilegal no Brasil. Três inquéritos foram abertos pelo MPT e encaminhados à Justiça Federal — um está concluído e dois se encontram em andamento. Na terceira fase da operação, deflagrada neste ano, o Ministério Público do Trabalho foca as investigações em um grupo de comerciantes estrangeiros acusados de aliciar pessoas na China com falsas promessas de emprego no Brasil. Aqui, os imigrantes seriam explorados e teriam os passaportes apreendidos. Estabelecimentos da capital e região metropolitana do Rio foram alvos de fiscalizações do Procon, que multou e fechou pastelarias
em péssimas condições de higiene. Estima-se que existem 200 mil imigrantes chineses vivendo no Brasil atualmente, 10 mil somente no Rio de Janeiro. Ao chegarem aqui - motivados, principalmente, por aspectos financeiros -, encontram uma série de dificuldades, principalmente com as diferenças culturais e a língua. A cultura chinesa é conhecida pela riqueza de costumes milenares, além de valores ortodoxos como a tradição e a honra. Uma vez no Brasil, a ordem é conservar, preservando hábitos e crenças. Talvez por isso a integração entre os imigrantes e os brasileiros se torne difícil. “O que talvez não seja de conhecimento geral é que quando chineses - povos orientais, no geral - vêm para o Brasil, não desejam unir suas culturas e costumes com os nossos: o intuito é, exclusivamente, ganhar dinheiro”, conta Manoelli. “Há um preconceito gigantesco da parte deles para com os brasileiros e nossos hábitos, afinal, eles são a cultura da honra e das tradições milenares, das quais nós não seríamos dignos”. O oposto também acontece: o preconceito e o estranhamento com o outro
e com a diferença não parte apenas dos chineses, mas também dos brasileiros, que vão desde aqueles que classificam todo o povo chinês como “sujo” - ignorando que muitas famílias têm nas pastelarias, legalizadas, o sustento da casa, até aqueles que questionam se os imigrantes teriam ou não o direito de vir para o Brasil para trabalhar. Não é segredo que os chineses são vistos, geralmente, com estranheza. A grande diferença de idiomas faz com que seus sotaques, por exemplo, sejam motivos de piadas, assim como a dificuldade de compreender o português. Provavelmente a imensa diferença cultural e o obstáculo da comunicação com brasileiros tenha sido usada como arma pelos aliciadores para camuflar ainda mais a real condição em que os trabalhadores escravizados viviam. Com as denúncias feitas pelo poder público, o debate sobre a invisibilização destas pessoas em plena cidade é reacendido. Do lado oposto às histórias das pastelarias ilegais, a família de Manoelli mostra que, apesar das diferenças e da tradição, é possível que, com o tempo, se construa
uma relação de respeito e de integração entre imigrantes chineses e brasileiros. Apesar das dificuldades iniciais, seus pais permaneceram juntos. Com o passar dos anos, a aceitação plena do relacionamento veio e foi possível uma real fusão de ambas as culturas. A estudante conta, ainda, que seus avós - mesmo não acostumados com as formas mais comuns de demonstração de carinho no Brasil, como beijos e abraços - buscavam diferentes formas de demonstrar seu afeto pela família brasileira, mesmo sem dominar a língua portuguesa. “É importante ressaltar que minha família brasileira é católica (assim como meu pai atualmente), mas uma parte da minha família chinesa é budista, que, mesmo sendo uma doutrina, foi o mais próximo de uma religião que encontrei no lado chinês”, conta ela. “Apesar dos tempos de grande intolerância religiosa que vivemos, esse aspecto sempre foi respeitado no meu meio de convivência. Acredito que essa interseção entre dois mundos tão distintos me ensinou a ser tolerante e respeitosa”, finaliza.
200 MIL CHINESES VIVEM NO BRASIL Acredita-se que a primeira leva de imigrantes chineses chegou ao Brasil ainda no século 19. Dedicaram-se, principalmente, às atividades agrícolas, ao plantio de chá, à mineiração e à construção civil. Outras ondas migratórias, no início do século posterior, trouxeram os comerciantes de produtos importados. De acordo com o Museu da Imigração de São Paulo, atualmente a comunidade chinesa no país possui cerca de 200 mil pessoas, concentradas, em sua maioria, no Estado de São Paulo.
OPERAÇÃO “CARNE DE CACHORRO” O nome “Yulin”, usado na operação que investiga a higiene e condições ilegais de trabalho em pastelarias chinesas no Rio de Janeiro, faz referência à cidade chinesa de mesmo nome, onde é realizado anualmente o “Festival de Carne de Cão”. Aproximadamente 10 mil cachorros são abatidos para o evento, que acontece todo dia 21 de junho. O consumo de carne de cachorro, permitido e comum na China, é uma das tradições mais conhecidas daquele país. 29 | SubVersões | n°1 | 2015
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Parei um pouco pra sonhar e acabei acordando a vida tem dessas coisas, silêncios que falam olhos que riem, ombros que choram. a imutabilidade do real me é bruta e machuca a menos que eu perca um tempo, ou ganhe, sonhando. mais que o olhar o verso. mais que o asfalto o poema. mais que a cidade a vida. o metro da noite
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DO ESQUELETO AO METRÔ-MANGUEIRA,
A UERJ E AS FAVELAS
Pioneira no sistema de cotas, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi construída, nos anos 60, em cima dos escombros da Favela do Esqueleto. Meio século depois, outra favela, a do Metrô-Mangueira, reacende a discussão sobre a relação entre a educação e as comunidades
POR DANIEL BOTELHO & NATHÁLIA DIAS
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a década de 1960, quando a Favela do Esqueleto já contava com milhares de habitantes, o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, passou a defender as remoções como melhor forma de lidar com o “problema” das favelas. O surto remocionista fez com que Lacerda entrasse para a memória coletiva da cidade como o responsável pelo maior número de remoções já vistas no Rio de Janeiro até então. No recém-publicado livro SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro olímpico, o pesquisador Lucas Faulhaber e a jornalista Lena Azevedo trazem dados importantes sobre esta política de Estado na cidade do Rio. Na véspera dos megaeventos, o atual prefeito da cidade, Eduardo Paes (PMDB), tornou-se recordista no número de remoções, contabilizando 67 mil pessoas desde que assumiu a prefeitura, em 2009. O número supera as remoções, somadas, de Carlos Lacerda e Pereira Passos, o prefeito o bota-abaixo da década de 1920. Para Faulhaber, os projetos de segregação de Lacerda na década de 60 e de Paes atualmente são exatamente o mesmo. “Na cidade-mercadoria, lugar de pobre morar é longe das áreas mais valorizadas. Nos anos 60, a extrema periferia urbana era Vila Kennedy, Cidade de Deus. Hoje, com o crescimento da cidade, os novos condomínios/ depósitos de gente são da franja urbana de Santa Cruz e Campo Grande”, observa. 32 | SubVersões | n°1 | 2015
CIDADE
A
O FIM DO ESQUELETO
Favela do Esqueleto foi removida dez meses após o golpe militar de 1964, e o processo contou inclusive com a repressão do regime a qualquer tentativa de organização contrária dos moradores. Situada na Zona Norte da cidade, ao lado do Maracanã, na favela moravam cerca de 18 mil pessoas, transferidas no processo de remoção para a Vila Kennedy, região do subúrbio de Bangu. O curioso nome da comunidade surgiu por conta dos primeiros moradores, que chegaram em 1950 e construíram suas casas ao redor do esqueleto de um hospital que seria erguido no local, mas que teve as obras abandonadas. Em seu lugar, havia planos para a construção de prédios da Universidade do Estado da Guanabara, atual Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ), dona do terreno. Na Vila Kennedy, as famílias receberam casas com apenas um quarto, sem vaso sanitário ou janelas. O prazo para quitar o imóvel financiado era de até 15 anos. Em outubro de 1967 a Favela do Esqueleto já se encontrava no chão. O Campus Universitário Francisco Negrão de Lima (Maracanã), construído em seu lugar, seria inaugurado em 1976, já como parte da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. MEGAEVENTOS MOTIVAM REMOÇÕES ATUAIS Cinquenta anos depois do Esqueleto, a UERJ novamente se encontra com a política de remoções. Localizada ao lado do Campus Maracanã, a Favela do Metrô-Mangueira já abrigou mais de 600 famílias, mas vem sofrendo processos de remoção desde 2010.
Para Faulhaber, a situação vivida pelos moradores da favela é emblemática no contexto geral de agressão aos direitos da classe trabalhadora. “Esta favela está na lista daquelas que foram removidas diretamente em nome dos megaeventos, exclusivamente por estar perto do Maracanã”, ele critica. No local, a administração pública pretende criar o “Polo Automotivo da Mangueira”, centro comercial com lojas de autopeças e borracharias que já funcionam na região. Os moradores afirmam, no entanto, que houve a promessa de primeiro construir o polo no terreno das antigas oficinas, e só então demolir as casas, o que foi descumprido pela Prefeitura. As primeiras pessoas retiradas de Metrô-Mangueira foram reassentadas para Kosmos, depois Triagem - ambos bairros da Zona Norte - e, finalmente, inseridas no programa “Minha Casa, Minha Vida”, do Governo Federal. Em maio uma nova ten-
O PROJETO INICIAL DA UERJ COMPORTOU A EXPULSÃO DE FAMÍLIAS POBRES PARA PERIFERIA
18 MIL PESSOAS FORAM REMOVIDAS DA FAVELA DO ESQUELETO PARA VILA KENNEDY.
Visão da Favela do Esqueleto, década de 1960, com a construção inacabada que deu origem ao nome da comunidade. (Imagem duplicada)
PLANO POPULAR DE URBANIZAÇÃO DA VILA AUTÓDROMO Foi feito por moradores e técnicos da UFF e UFRJ pensando no desenvolvimento urbano, econômico e popular da Vila Autódromo, comunidade localizada em Jacarepaguá. O objetivo era apresentar uma alternativa à remoção da favela, mas a Prefeitura interrompeu as negociações pouco tempo depois da apresentação do projeto. Atualmente, cerca de um terço das 583 famílias que viviam no local até fevereiro de 2014, quando as remoções começaram, ainda resiste na comunidade. Até agora as remoções custaram 96 milhões de reais aos cofres da Prefeitura. Para se ter uma comparação, este valor é quase sete vezes maior que o estimado para a implantação do plano de urbanizaçao, que custaria cerca de 14 milhões de reais. (Com informações de El País).
gados do Rio de Janeiro, atende a comunidade desde 2014 e esteve presente no local. “Eu vi que houve disparo de arma letal. A gente quer evitar que as pessoas sofram esse tipo de violência”, ela afirmou, em entrevista para o Centro Acadêmico de Comunicação Social da UERJ (Cacos UERJ). A advogada observou que a Prefeitura não havia cumprido com o prometido em 2014: indenizar as pessoas.
Os episódios na favela do Maracanã se somam à extensa lista de remoções recentes da Prefeitura no período pré-megaeventos, com casos no Recreio, como Restinga, Vila Harmoniosa e Vila Recreio II, na região do porto, no Centro, e as sucessivas tentativas na Vila Autódromo, em Jacarepaguá. E A UNIVERSIDADE COM ISSO Hyago Costa tem 22 anos, é estudante de Letras na UERJ e morador da Mangueira. Ele presenciou a tensão no dia da remoção no Metrô-Mangueira de dentro da faculdade. “O que pude ver foi um total despreparo tanto da polícia quanto dos seguranças da UERJ. Também uma grande falta de comedimento por parte dos alunos e uma forte revolta por parte dos moradores da Favela do Metrô. O resultado foi uma noite infeliz que lembraremos por muito tempo”, lamenta ele. Para Faulhaber, as parcerias entre a universidade e movimentos sociais e populares são de suma importância, apesar de escassos ou mal divulgados, inclusive na discussão das remoções forçadas como política de Estado.
“Tanto o apoio dos estudantes da UERJ na luta diretamente do Metrô-Mangueira, quanto a elaboração do Plano Popular da Vila Autódromo, por parte do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/ UFRJ) e Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (NEPHU/UFF), são lições de que a universidade pode sim exercer o seu papel social”, comenta. Primeira universidade no Brasil a implementar a política de cotas, em 2002, a UERJ ainda não é, para muitos, um espaço de ensino democrático, plural e, principalmente, popular. “Ser aberta e inclusiva é diferente. Vemos alunos de classes sociais diversas, mas nem todos são incluídos nos meios sociais da Universidade. Vemos, por exemplo, diferença de tratamento de cursos. É só passar pelos andares que notamos quem são privilegiados em relação a outros”, afirma o estudante Hyago. O projeto inicial da UERJ enquanto universidade pública comportou a expulsão de famílias pobres de uma região valorizada e central da cidade para uma região periférica, excluindo-os da integração entre sociedade e universidade. Atualmente, o panorama
“NA CIDADE-MERCADORIA, LUGAR DE POBRE MORAR É LONGE DAS ÁREAS MAIS VALORIZADAS.” - LUCAS FAULHABER, pesquisador
EDUARDO PAES JÁ CONTABILIZA O RECORDE DE
+67 MIL REMOÇÕES 34 | SubVersões | n°1 | 2015
FOTO : TÃNIA REGO / AGÊNCIA BRASIL
tativa de remoção foi feita pela Prefeitura. Os moradores amanheceram com os sons de tratores, enviados sem prévio aviso e, ao longo do dia, pelo menos oito casas foram demolidas, além de uma igreja e um ferro-velho. À noite, houve violenta repressão policial, quando estudantes da UERJ foram até o local para apoiar a manifestação de moradores (veja no box). Heloísa Samir, advogada de Direitos Humanos e integrante do Coletivo de Advo-
NOITE DE TERROR NA UERJ
Protesto contra as remoções na Favela do Metrô-Mangueira, no final de maio.
“SOMOS SERES HUMANOS.”
se repete: apesar das cotas, e da consequente popularização, são comuns casos de exploração e autoritarismo por parte da Reitoria - e, consequentemente, do Governo do Estado - para com estudantes e, principalmente, trabalhadores terceirizados (formados expressivamente por negros, pobres e moradores de comunidades ignoradas pelo poder público). É importante lembrar que o confronto do dia 28 de maio aconteceu em meio a um intenso questionamento à figura do Reitor da UERJ, Ricardo Vieiralves, com seu histórico crescente de falta de diálogo com a comunidade acadêmica, relegando para segundo plano pautas de assistência estudantil e respeito ao direito de trabalhadores terceirizados.
Por ser uma universidade popular, sobretudo se comparada à outras instituições de ensino, a UERJ também carrega consigo as contradições sociais históricas do Brasil, refletidas no dia a dia da Universidade. A crise, educacional ou social, é estrutural, é do sistema. É a que conecta a remoção de uma favela, política higienista e gentrificadora, à construção de uma universidade pública. É a que conecta uma Assembleia Estudantil à violência policial e institucional. Uma universidade fechada - literal e simbolicamente - ao povo, que não reflita e atue para transformar socialmente seu entorno, está condenada ao fracasso de apenas reproduzir a ordem.
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No início da noite de 28 de maio de 2015, estudantes de diferentes cursos da UERJ se preparavam para a realização de uma Assembleia Geral Estudantil no Campus Maracanã. Entre as pautas, a discussão da crescente precarização dos trabalhadores terceirizados da instituição e reivindicações de assistência estudantil, inseridas num contexto de grave crise administrativa da reitoria da universidade. O estudantes foram surpreendidos, no entanto, com a notícia de que bombas estavam sendo jogadas na Favela Metrô-Mangueira, localizada ao lado da UERJ, onde a prefeitura de Eduardo Paes realizava mais uma remoção com o apoio da Polícia Militar. A assembleia foi cancelada e alguns alunos resolveram apoiar moradores que se reuniam na rua para resistir às remoções. Com o objetivo de conter o protesto, a PM lançou bombas de gás lacrimogêneo nos manifestantes, que buscaram se proteger da ação truculenta dos policiais fugindo para a UERJ. A recepção foi tão truculenta quanto a ação policial: com ordens do setor de Segurança da universidade, funcionários fecharam as portas de acesso ao Campus e impediram, inclusive com uso de violência física, a entrada e saída de qualquer pessoa do prédio principal. Os estudantes que estavam na manifestação reagiram jogando pedras e quebrando vidros. Violentos jatos d’água, destinados a combater incêndios, foram direcionados aos manifestantes que estavam no estacionamento - ao mesmo tempo, a PM os ameaçava do lado de fora, na saída para a Rua São Francisco Xavier. Houve a denúncia de que um estudante teria sido encarcerado e ameaçado por seguranças da universidade, além de que um segurança teria sido ferido com uma pedrada. A confusão só foi encerrada cerca de uma hora depois, quando a universidade foi esvaziada em meio a um cenário de guerra. Momentos antes, seguranças afirmaram a estudantes que o Batalhão de Choque da PM teria sido autorizado a entrar no prédio. Em nota oficial sobre o acontecimento, o reitor da UERJ, Ricardo Vieiralves, criticou o envolvimento de estudantes com os moradores da favela, falando em “associação perigosa entre membros da UERJ e pessoas estranhas à nossa comunidade.” A nota provocou revolta entre membros da comunidade acadêmica, que consideraram o texto preconceituoso, racista e elitista. Desde então, o debate acerca da relação entre a Universidade e a comunidade ao seu redor, principalmente as favelas vizinhas, como Mangueira e Metrô-Mangueira, ganhou força dentro da UERJ.
o terceiro olho da coruja é o tempo, entre os dois que enxergam a concretude do universo fica um pouco mais acima. para abri-lo é preciso entender a quinta dimensão, o amor. nem bom nem mal energia natural que flui por todos os caminhos, eu sou a quinta dimensão eu sou o terceiro olho da coruja preferiria ser o olho do cu.
POR ONDE VOCÊ VAI? Viver em um lugar é mais do que apenas morar por lá - passa por se identificar, conhecer, gostar e compartilhar histórias. Localidades tão distintas quanto São Gonçalo, a “cidade-dormitório” do subúrbio, e o bairro da Glória, na Zona Sul carioca, evidenciam que essas “geografias das emoções” influenciam, e muito, a forma como cada morador entende e se relaciona com sua ideia de lar.
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TÃO PERTO TÃO LONGE POR ANA CAROLINA GONÇALVES
I
“
h... Longe, hein?”. O comentário é comum sempre que se fala em São Gonçalo, cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro e vizinha de Niterói. O que faz do lugar “do outro lado da poça” perto ou distante, no entanto, é a perspectiva - e a vivência. É conhecida por ser só uma “cidade-dormitório”, mas quem mora, sabe: São Gonçalo possui o território tão grande quanto as amizades e laços que são construídos nela. A realidade é dura, contudo: o segundo município mais populoso do Estado do Rio de Janeiro é também o vice-campeão nacional no deslocamento de população entre cidades, “perdendo” apenas para o fluxo Guarulhos São Paulo. Diariamente, pelo menos 120 mil dos 1,03 milhão de moradores de São Gonçalo vai traba-
lhar ou estudar em Niterói, segundo dados do IBGE. Isso porque os gonçalenses costumam fazer grande parte das suas atividades rotineiras na cidade vizinha ou mesmo na capital. Para muitos deles é mais fácil e rápido - quando não há trânsito, claro. O hábito diz muito sobre a forma como os moradores acabam enxergando a própria cidade. - Experiências em São Gonçalo eu nem tenho muitas, porque basicamente faço tudo em Niterói conta a estudante Ana Abad. - Acabo chegando mais rápido lá do que no centro de São Gonçalo, mesmo morando relativamente mais perto.
vulcão extinto há mais de 50 milhões de anos, espécie de lenda na cidade, pode apreciar a vista para o Dedo de Deus, a Baía de Guanabara e, acredite, também Cristo Redentor e o Pão de Açúcar. As paisagens naturais de São Gonçalo exibem a beleza que contrasta com o descaso do poder público com a cidade. Apesar de números gigantes, como o PIB de quase 12 bilhões de reais em 2012 e o maior colégio eleitoral do Estado, o município continua sem investimentos necessários em saneamento básico e iluminação nas
Em grande parte da cidade há boa opção de transporte para os bairros da capital, no Centro, Zona Norte e Zona Sul. E é nos diferentes pontos de saída da cidade que a cultura local pode ser vista: em Itaúna, bairro onde moro, o ponto de ônibus conta com um comércio que vende açaí com direito a tudo (comum na cidade), e conhecidos dos seus pais que te conhecem como “filha de fulana que é primo de ciclana da rua tal”. Lugar que têm pessoas dispostas a ir para qualquer lugar porque se acostumaram a fazer isso (e
A BR 101, QUE CORTA A MAIOR PARTE DO LITORAL DE SÃO GONÇALO, É UM EXEMPLO DE UMA CIDADE QUE É FEITA PARA SAIR E NÃO PARA FICAR Não é raro que os papa-goiabas (como também são conhecidos os moradores da cidade) não tenham conhecimento sobre a história do município ou os lugares de entretenimento e de cultura que ele oferece. Quantos dos moradores sabem que já fomos distrito da Vila de Niterói, e que a a região recebeu a primeira área de nudismo do país? Ou que, por sua potência industrial, São Gonçalo chegou a ser considerada, nos anos 60, a “Manchester Fluminense”, em comparação com a cidade industrial inglesa? Quem já saltou de parapente ou asa delta por cima do
ruas. A maior extensão litorânea da cidade é cortada pela BR-101, estrada conhecida pelo acesso à Região dos Lagos. Ao retirar todo um potencial de lazer para os moradores, a rodovia exemplifica o quanto São Gonçalo está voltada para a saída. “Nós temos a nossa “Zona Sul” estragada pela BR, que é usada para sair da cidade e não para ficar nela”, diz Pryscila Padrão, 28 anos, que morou toda a sua vida na cidade. Ela se mudou no início do ano para a Glória, na Zona Sul carioca, mesmo gostando de São Gonçalo. “Todas as coisas acontecem no Rio”, lamenta.
fazem com a maior disposição!). Que tem a quantidade proporcional de bares e igrejas - que não são poucas, e que te faz ter a sensação boa de chegar e sentir que “agora sim, estou em casa”. Como grande parte dos subúrbios da região metropolitana do Rio, São Gonçalo precisa investir em si mesma, aproveitando seu potencial econômico, cultural e natural. Neste processo, talvez, resgate a própria auto-estima do gonçalense, e seu amor pela cidade. Afinal, só se cuida daquilo que se ama, e só se ama aquilo que se conhece.
Foi e é complicado falar da cidade que você mora quando você não vive nela. Várias vezes durante a produção da matéria foi difícil dizer com exatidão como realmente são as variações daqui e se realmente é possível falar com autoridade sobre elas. Imagino que a maioria dos moradores que têm a mesma rotina de sair da cidade também se sentem assim. Conhecer um outro lado positivo, que é tido como inexistente na maior parte do tempo, e conhecer mais a história do lugar em que vivo desde pequena foi a melhor parte de produzir a matéria. Percebo que essa não foi uma dificuldade da Camila, que conhece todos os lugares da Glória e sabe falar sobre eles com propriedade. Nisso, vejo o quão claro é a diferença em realmente “viver” em um lugar e apenas morar em um. É engraçado ver tantas coisas em comum entre São Gonçalo e a Glória, mesmo sendo tão diferentes. Quando visitei a Glória para fazermos a matéria, senti como se estivesse em um lugar conhecido, mesmo que nunca tenha realmente ido lá para isso. “Conhecido” talvez mais pelas pessoas, que resguardadas as diferenças entre o subúrbio e aqui, possuem um ar mais simples e também vivem em botecos de esquina com ovos coloridos. 39 | SubVersões | n°1 | 2015
CIDADE
DAS RUAS MUITAS HISTÓRIAS
S
POR CAMILA INÁCIO
empre que penso na Glória me vem à mente os casarões antigos, a arquitetura portuguesa que tem o ar de séculos passados. Mesmo a famosa Praça Paris, mas não digo apenas por ela. Quem vive na Glória tem de conviver com o velho e o novo, entre a praia e favela, e com esse vaivém de um bairro que é perto de tudo: da Lapa, de Santa Teresa, da Zona Sul e do Centro. É um lugar aconchegante, com os seus botecos de esquinas e suas praças vazias. A praticidade no transporte público é algo que os moradores da Glória não podem se queixar: além do metrô, a localização estratégica entre Centro e Zona Sul garante grande variedade de ônibus. “Volto de ônibus da faculdade e desço no ponto do Amarelinho, mas não tenho medo de chegar tarde em casa”, conta Priscila Cardoso, 20 anos, estudante de Administração da PUC e moradora da Glória há 4 anos. “Uma coisa boa daqui é o movimento. É tudo perto”, observa ela. Nem só de flores vive a Glória, no entanto. Recentemente, um violento assalto na região testou a sensação de segurança dos moradores. Em maio, a estudante chilena Isidora Ribas Carmona, de 38 anos, foi assaltada e esfaqueada durante um passeio matinal na Praça Paris, uma das mais conhecidas do bairro. Moradores ouviram os gritos de Isidora e chamaram bombeiros para socorrê-la. A estudante foi levada para o hospital fora de perigo, mas o ladrão fugiu. Algumas iniciativas tem levado o bairro a respirar um pouco da sua beleza com exposições, peças teatrais e eventos de gastronomia. A Casa da Glória, localizada na ladeira da Glória, é um exemplo disso. A casa é um sobrado histórico construído no século XVIII que hoje abriga diversos eventos culturais. Além dela, já existe um outro projeto em andamento: a restauração do Templo Positivista, na Rua Benjamim Constant, que passará a ser o “Centro Cultural da Humanidade”, com salas para exposições, teatro e lojinhas. Contudo, as obras ainda não começaram, e um edital para captação de recursos deve ser lançado em breve para financiar a restauração do imóvel. “Nos últimos anos, a Glória mudou muito, e acredito que cada vez mais será uma referência cultural, com novos empreendimentos”, torce o Presidente da Associação de Moradores da Glória, José Marconi. Glória a Deus!
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GEOGRAFIA DAS EMOÇÕES
FOTO : CAMILA INÁCIO ANA CAROLINA GONÇALVES
A cultura, com o seu papel singular, junta não só pessoas, mas também lugares. Em um dos passeios com a Ana pelo bairro, encontramos um evento chamado “Bloco Arteiros da Glória”. O encontro reúne moradores do bairro e arredores em uma praça, misturando muito samba, cerveja e comida. Em uma das quitandas do evento, esbarramos com Mariana e Pryscila Padrão, que vivem e trabalham na região, mas que moraram a vida inteira em São Gonçalo e também estiveram na matéria da Ana . Irmãs e empresárias, elas acham que a Glória não tem muito a ver com a Zona Sul. “É mais charmoso. Gosto muito daqui, as pessoas são mais simples. Tem boteco, uma mistura de públicos”, observa Mariana.
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As identificações e afetos que criamos ao longo da vida muito têm a ver com a ligação com os lugares em que vivemos. Nossas emoções podem, e são em grande parte, também espacializadas e materializadas nos lugares, tempos ou corpos - conceito conhecido como “geografia das emoções” entre os estudiosos da relação entre território e subjetividade. Enquanto é difícil para muitos gonçalenses desenvolverem relações de afeto com sua cidade justamente porque mal param nela e mal a conhecem, para os moradores da Glória permanecer no bairro é não só comum, como prazeroso e cotidiano. O deslocamento diário - o movimento, portanto - reforçam muito este processo de identificação. Sinal de que construções históricas e sociais distintas fazem com que os moradores de cada uma dessas localidades criem diferentes percepções sobre sua noção de lar.
FOTO + POESIA
ando para minha finitude em busca do infinito, sinto o tempo correndo em minhas veias. meu rosto desnudo não credito o que vejo, paciente espero o tempo fazer em meu peito o trabalho do vento. enquanto isso enfrento moinhos de mãos vazias e amor em punho. me entendo por memórias entendo por memórias o que esqueci e o que lembro, sou metade sonho da outra esquecimento.
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GONZO Hunter Thompson na Sétima arte
O
POR JONAS FEITOSA
termo Gonzo ganhou notoriedade ao ser associado com a imagem de Hunter S. Thompson, um jornalista e escritor norte americano, que por meio de sua escrita extravagante gerou uma estética única. Este estilo de narrativa foi para além do campo do jornalismo, atingindo qualquer outra produção de mídia, mas principalmente o cinema. Este tipo de produção faz com que o narrador abandone qualquer pretensão de objetividade, pois o foco da matéria não é seu assunto principal, mas a mescla do personagem e ação. Uma abordagem que poderia ser chamada de “surrealismo descritivo”, pois não carrega distinção entre autor e sujeito, ficção e não-ficção. A história do Gonzo se mistura com a biografia de seu criador, e a sétima arte conseguiu traduzir bem nos três filmes a criação e exercício de Hunter S. Thompson. Os três filmes de maior circulação foram produzidos em décadas diferentes e retratam bem a trajetória de Thompson e o surgimento do jornalismo Gonzo, são eles: “Where the Buffalo Roam(1980)”, “Fear and Loathing in Las Vegas(1998)” e “The rum diary (2011)”. O estilo de vida que H. Thompson levava era inspirado no movimento Beat, grupo dos anos 50 da contracultura norte americana, que contou com grande nomes da literatura do século XX. A geração Beat tinha uma forte ligação com a boemia, e para além do hedonismo, buscavam a beatitude através do entorpecimento do corpo. Essa maneira de viver acabou reverberando em outros movimentos que surgiram nas décadas seguintes, como os hippies e os punks. O nomadismo era outro traço presente neste cenário, que influenciou o início da carreira de Thompson e sua mudança em 1960 para San Juan, Porto Rico, para trabalhar em uma revista de esportes chamada El Sportivo. Passou pela América Central e da América do Sul, trabalhando como free-lancer para diversas publicações. E é deste período que escreveu o livro “Diário de um jornalista bêbado”, inspiração para o filme “The rum diary (2011)”, estrelado por Jhonny Deep no papel do jovem Thompson. “The rum diary” é um filme, que assim como o romance homônimo, já apresenta uma narrativa de acontecimentos de uma forma literária, se assemelhando com o New
CULTURA Jourlism, porém em uma prática jornalística diferenciada. A história mistura ficção e realidade, onde o foco principal não é propriamente a trama principal, mas a tradução dos acontecimentos. O abuso de grande quantidade de álcool e a experiência com LSD líquido são outros ingredientes que ilustram a história. A trama é política, outro traço marcante da escrita de Thompson, baseada na especulação de Sanderson, um empresário em Porto Rico que por meio de suas articulações que trava ilicitamente com o governo, tenta explorar o país na forma do capitalismo mais selvagem. Nesta obra cinematográfica, como em seu trabalho completo, Thompson abusa dos pseudônimos, retrando a sua personalidade no jornalista Paul Kemp. O grande marco da carreira e estilo do jornalismo Gonzo foi o livro “Medo e delírio em Las Vegas”, que foi retratado no cinema (“Fear and Loahting in Las Vegas(1998)”) com a direção de Terry Gilliam, reconhecido com seu trabalhos do gênero de fantasia. Tanto o livro como o filme são referência na estética do Gonzo, trazendo a essência do estilo. A história se passa em Las Vegas, onde Hunter Thompson foi enviado para cobrir a Mint 400, uma corrida de motos no deserto. A trama se concentra no jornalista Dr. Thompson (pseudônimo de Hunter T. , que foi interpretado por Johnny Depp) e seu advogado, (Oscar Z. Acosta, retratado rotineiramente em seus contos, interpretado por Benicio Del Toro) que utilizam o
dinheiro da reportagem na compra dos mais variados tipos de drogas, experienciando a cidade de Las Vegas de uma maneira singular . Nesta obra estão presentes todos os traços do estilo de Hunter T., desde o entorpecimento para a construção do seu trabalho, como o desvio do foco do assunto principal para uma abordagem mais literária. As alucinações colocam lado a lado o ficcional da não-ficção, o que nesta obra permite profundas críticas ao sonho americano e o American Way of Life, através de uma percepção mais sentimental do que propriamente documental . A comédia “Where the buffalo roam(1980)”, é outro retrato desta personalidade subversiva do criador do Gonzo, interpretada dessa vez por Bill Muray, que dá um ar mais lúdico para este tipo de estética. O filme mostra inúmeras situações da biografia do jornalista ao lado de seu advogado Oscar Z. Acosta, que no filme recebeu o pseudônimo de Carl Lazlo. O filme tem como plano de fundo o cenário político dos Estados Unidos nas décadas de 60 e 70, mostrando o panorama da política proibicionista de drogas e repressão policial, como também a figura do então candidato a presidência dos EUA Richard Nixon, em uma entrevista oportunista feita por ele no banheiro. O filme é o mais completo biograficamente, mostrado uma cronologia mais extensa e apresentando inúmeras situações da vida de Thompson. Esta estética se choca com outra vertente literária da área do jornalismo, o New Journalism. As duas ver45 | SubVersões | n°1 | 2015
tentes nasceram em períodos próximos, e é comum associação do Gonzo como um campo do New Journalism. Pela narrativa de imersão e a valorização de um caráter mais literário do que propriamente técnico, esses dois estilos se assemelham em muitas questões, mas como aponta André Felipe Pontes Czarnobai em sua monografia “ Gonzo - o filho bastardo do New Journalism”, a prática e produção de conteúdos seguem uma dinâmica que individualizam o jornalismo Gonzo . A trajetória e o jornalismo de Hunter S. Thompson marcou profundamente uma série de profissionais da comunicação que enxergam nessa forma de produção uma maneira nova e mais livre em relação ao já tradicional estilo técnico proposto nas redações, fazendo este estilo vivo até os dias atuais. HUNTER THOMPSON
Meus campos de haxixe florecem sem hora marcada na vida não há tempo pra nada da mesma forma que estamos na outra já não somos meus campos de haxixe florecem sem hora marcada nuvens baixas, noite laranja dificultam nossa caçada a gente em revoada desejos e memórias deitados em minha mente sonhando dualidades nos quadrados da história meus campos de haxixe mais nada
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COMPORTAMENTO
H
POR THAIZA PAULUZE
á algumas semanas, propus a mim mesma um desafio: ficar longe da seção de comentários em sites e posts polêmicos no Facebook. É bem difícil no começo, ainda mais quando você sabe que um post tem potencial de gerar muito debate. Você quer ir lá ver o que está sendo discutido. E, se for algo que contrarie seus ideais, as chances de você ficar e discutir são grandes. Não por acaso: em pesquisa sobre os hábitos das pessoas na internet, o jornal americano The New York Times identificou que a raiva é uma das principais emoções que nos fazem compartilhar coisas nas redes sociais. Ou seja, as pessoas estão muito mais interessadas em “descurtir” mil vezes um post que causa repulsa que curtir um que tenha gostado. Outro estudo, feito em 2009 pela Universidade do Estado de Ohio, também nos EUA, apontou que passamos 36% mais tempo lendo textos se eles se alinham com nossa opinião. O que as duas pesquisas resumem é que tendemos a prestar atenção de fato somente naquilo que já concordamos. E, quando nos deparamos com algo fora do nosso universo, o impulso de compartilhar ou comentar com raiva é grande..
POR UMA INTERNET MAIS TOLERANTE Uma rede com cada vez mais gente e mais ruído mostra seu lado obscuro em histórias de ameaças e discursos de ódio. Buscamos entender melhor o comportamento das pessoas online para responder à questão: porque se cultiva tanto ódio na web?
O
HATERS E TROLLS
Brasil tem atualmente mais de 85,9 milhões de usuários de internet (51% da população, dados de 2013/2014 do Comitê Gestor da Internet no Brasil - CGI.br), um número que cresce a cada dia - pesquisa do Ibope Nielsen referente a julho de 2014 já falava em 60% da população conectada. Paralelamente ao crescimento do número de usuários, também parece crescer a selvageria das caixas de comentários. O anonimato, ainda que apenas na teoria, facilita este movimento e a existência e proliferação de figuras como os haters (“odiadores”) e os trolls. Lola Aranovich, 48 anos, professora-adjunta do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade Federal do Ceará, dimensiona o nível da perseguição online: “Tive um troll que escreveu literalmente quinhentos posts me xingando,
entre o final de 2013 e o final de 2014”, conta ela, que desde 2008 mantém um blog com assuntos ligados aos movimentos feministas. Os trolls, como os definimos hoje, surgiram com a própria internet, aparecendo na rede de fóruns Usenet ainda nos anos 80. O termo vem da expressão trolling for suckers. Trolling é uma técnica de pesca em que linhas com iscas são deixadas na água e arrastadas a partir de um barco em movimento, à espera de peixes que as abocanhem. É isso o que o troll faz na internet: provocar e esperar alguém que se irrite. O importante não é a troca de ideias, mas o insulto provocativo. Já os haters são conhecidos por espalhar raiva de algo ou alguém na rede, mas sem necessariamente confrontar diretamente seu alvo. As duas figuras se misturam, é claro, e no geral esses tipos de pessoas são as que estão por trás de casos de cyberbulling e assédio na web. Lola lida com trolls desde 49 | SubVersões | n°1 | 2015
a criação de seu blog, o “Escreva Lola Escreva”, quando os comentários eram abertos, sem moderação. Hoje isso seria insustentável, porque o nível de violência verbal, contra ela e outras leitoras e leitores, é muito grande. “O perfil dos meus trolls é quase sempre idêntico”, conta a professora. “Homem, hétero, branco, de direita, cheio de ódio, muito preconceituoso”. Para Lola, a caráter de contestação do blog chama muito a atenção de um tipo específico de pessoas preconceituosas. “Há muita gente revoltada por não ter mais o privilégio de, por exemplo, contar uma piadinha machista, racista ou homofóbica e não ganhar mais os velhos tapinhas nas costas. Essa gente sente nostalgia da época em que podiam ser preconceituosos à vontade sem serem criticados”. Já os haters não seguem um tipo específico e, na maioria das vezes, nem comentam no blog, mas fazem questão de espalhar raiva sobre o que Lola escreve. “Claro que meus principais
haters são reaças e mascus [masculinistas, homens misóginos por definição], mas tem gay misógino que me odeia, feminista radical, hipster, ateu, carinha de esquerda... Tem de tudo”. A situação é cansativa: “Por um lado, eu encorajo mulheres a encontrarem sua voz, a não se calarem, a não se esconderem por trás de avatares. Por outro lado, eu não quero que nenhuma passe pelo que eu e tantas outras passamos, porque, sinceramente, ninguém merece”, desabafa. Pior que os insultos gratuitos, conta Lola, são as ameaças de estupro, morte e até tortura, que já resultaram em dois boletins de ocorrência. Foi só depois de um deles que o troll dos quinhentos posts parou de perseguir a professora. “Esse rapaz de 34 anos, formado em Direito, fazia vídeos em que chorava ao mencionar meu nome”, ela conta. “É algo muito doentio mesmo. Se ele morasse no Ceará, e não no Mato Grosso do Sul, eu ficaria preocupada”. Mascarados pelo anonimato, essas pessoas geralmente extravasam, como se poderia imaginar, problemas de personalidade na vida offline. É o que indicou um estudo, publicado em 2013, do Centro de Pesquisa em Comunidades Online e Sistemas de E-Learning do Parlamento Europeu, na Bélgica, apontando características em comum entre os trolls e pessoas que sofrem de transtorno de personalidade antissocial e problemas de autoconfiança. INVESTIGAÇÃO AINDA É INCIPIENTE As situações de perseguição relatadas por Lola mostram que a incapacidade de lidar com opiniões diferentes sem recorrer a discursos de ódio é uma ameaça, não apenas à civilidade na internet, mas à democracia fora dela. Mas existe uma forma de combater isso
de frente? No Brasil não há legislação específica a respeito quando se fala de crimes de perseguição e ameaça na internet, mas tanto a Constituição Federal quanto o Código Civil preveem indenização por danos morais, ofensa à honra, calúnia e difamação. Comentários que utilizem termos ofensivos, ou que acusem alguém de um crime, são passíveis de punição legal. O fato da internet ser um caminho de livre expressão e manifestação de ideias não autoriza a perseguição, muito menos a incitação de atos ilícitos. Atualmente, Polícia Federal e Ministério Público Federal são os principais canais de denúncia. Lola Aranovich, no entanto, não acredita que a Polícia Federal esteja preparada para lidar com esse tipo de crime. “Demorou três anos para que a Polícia Federal entrasse em contato comigo. Eu enviava pra eles prints de ameaças contra mim e nada acontecia. Continuo recebendo ameaças e continua não acontecendo nada, mas pelo menos a Divisão de Direitos Humanos da Polícia Federal me contatou este ano”, critica ela. Quando se trata da retirada de conteúdos ofensivos ou discriminatórios do ar as próprias redes sociais, como Facebook e Twitter, têm mecanismos de denúncia. Não são raros, no entanto, os casos de conteúdos agressivos que, apesar das denúncias de usuários, continuaram no ar. O Marco Civil da Internet, aprovado em 2014 e atualmente em processo de regulamentação, prevê a normatização da retirada de conteúdos ofensivos de sites e redes sociais, mas somente quando houver ordem judicial. A exceção são casos de “pornografia de vingança”: pessoas que sofreram violações da intimidade poderão exigir a retirada de conteúdo, de forma direta, aos sites ou serviços que estejam hospedando o material. 50 | SubVersões | n°1 | 2015
CASOS DE RACISMO E XENOFOBIA Em 2014, um jovem casal de Minas Gerais, foi vítima de comentários racistas após a publicação de uma foto no Facebook. Uma jovem negra, namorada de um rapaz branco, postou uma selfie em que retratava a demonstração de carinho entre os dois. Os comentários, muitos deles de desconhecidos, assustaram: alguns perguntavam onde o rapaz havia “comprado” a namorada, outros diziam que eles pareciam estar numa “senzala”. Após a vitória de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais de 2010, a estudante de direito Mayara Petruso, de São Paulo, postou no Twitter: “Nordestino não é gente. Faça um favor a São Paulo, mate um nordestino afogado”. Além de ser moralmente censurada por milhares de usuários, Mayara foi condenada em 2012 a um ano, cinco meses e 15 dias de reclusão pela Justiça de São Paulo. Mais tarde, a sentença foi convertida em prestação de serviços comunitários e pagamento de multa.
Campanha do Governo Federal funciona como “ouvidoria dos direitos humanos” na web
HUMANIDADE NA REDE Com a internet, as vias de troca de mensagens e opiniões tornaram-se maiores. É interessante viver em uma época em que qualquer pessoa com acesso à rede pode se manifestar publicamente sobre uma reportagem que leu, mesmo que, às vezes, isso contrarie as opiniões dos jornais, dos autores e dos citados na reportagem. Além disso, os comentários servem como um termômetro de conteúdo. Para os autores de sites e blogs, são indicadores de como o texto foi recebido. Para os jornais, demonstram o quanto a notícia afetou os leitores e polemizou. Crescem os números de blogs e sites que, a exemplo do “Escreve Lola Escreva”, não permitem comentários anônimos ou moderam comentários de usuários, tentando impedir que trolls e haters se reverberem na rede. Sites como o SaferNet também funcionam como pontes para que denúncias de cyberbullying ou ameaças cheguem ao poder público. No início deste ano o Governo Federal lançou uma grande campanha pela humanização da internet com o site Humaniza Redes. O portal funciona como uma “ouvidoria dos direitos humanos” na internet, e faz parte do Pacto Nacional de Enfrentamento às Violações de Direitos Humanos. A ideia é fazer com que os espaços virtuais sejam permeados por mais respeito à diversidade de opiniões e que as denúncias de atentados contra as minorias sejam encaminhadas às autoridades competentes. O desafio de construir uma internet mais tolerante é grande: iniciativas do poder público e dos próprios sites e aplicativos são importantes, mas somente com a mudança de hábito diária dos usuários é que as caixas de comentários podem voltar a ser espaços de diálogo. Para o Brasil, os próximos anos são ainda mais cruciais: a outra (quase) metade da população, ainda não conectada, deve se tornar usuária da rede em breve. Esperamos que ela encontre uma internet com menos ruído, mais democrática e voltada para a troca de ideias: a rede que cumpre, de fato, seu papel enquanto maior revolução tecnológica da História, a que alterou radicalmente as relações humanas nas últimas décadas.
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TRIP FOTOGRAFIA EDUARDO PAULANTI MODELO LUA PEREZ
haraflaeschen@gmail.com POESIA ERIC SIA MAPURUNGA
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POR TRÁS DA ARTE
ENQUADRAMENTO: DA GEOMETRIA QUE FIGURA O ESPAÇO, A EDIÇÃO UM DA REVISTA SUBVERSÕES É CONCEITUADA ATRAVÉS DE UMA UNIDADE DE LINGUAGEM VISUAL. A ARTE TRADUZ O IDEAL DO PROJETO, SER ALÉM DO SUBVERSIVO, BUSCAR AS VERSÕES DA REALIDADE QUE ESTÃO SUB EXPLORADAS PELOS VEÍCULOS TRADICIONAIS. PENSAR O QUADRO, É PENSAR JORNALISMO, É FAZER NOTÍCIA.
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INTERNET `POR QUÊ SE CULTIVA TANTO ÓDIO NA REDE ?
APOIO
REMOÇÕES LUGAR DE POBRE MORAR É ONDE É LONGE?
CANECÃO
JORNALISMO GONZO
PALCO DE UMA BELÍSSIMA HISTÓRIA, ESPERANÇA DE UM ESPETÁCULO FUTURO
HUNTER THOMPSON E SUA HISTÓRIA NO CINEMA