Carinhanha: entre Rios de Histórias Léo Mackellene Simone Passos José Edvar Costa de Araújo Ana Argentina Castro Sales Tatiana Rodrigues Passos Ronaldo Santiago Lopes (Orgs.)
Apresentação A história de uma cidade é a história de seu povo
Pela primeira vez, em 103 anos de emancipação política, Carinhanha tem sua história narrada por seus moradores. São filhos de pescadores, agricultores, quilombolas, assentados, ribeirinhos esses que estão tendo a oportunidade de concluir o Ensino Superior gratuito e de qualidade. A nossa luta política, nesses oito anos, tem sido de fortalecer a democracia, de fazer uma política diferente, que valoriza e investe na qualidade de vida da população de nossa cidade através de projetos, programas e ações desenvolvidos durante a nossa gestão. Contudo, inovamos também por valorizarmos a história e a cultura de nossa querida Carinhanha, através de seus costumes, suas práticas, seus saberes, festas e tradições, e isso é motivo de grande satisfação para mim! Por isso, me sinto muito gratificada por ter podido contribuir para o registro das histórias de inúmeros cidadãos carinhanhenses que, somente num projeto como este, teriam a oportunidade de relatar suas memórias e histórias de vida. A história de uma cidade é a história de seu povo! Sendo assim, que este livro possa ajudar a manter viva na memória desta e das próximas gerações, a história e as manifestações culturais de Carinhanha. Neste momento, gostaria de agradecer a todos aqueles que nos ajudaram a construir uma Carinhanha melhor para todos, pois tenho a certeza de que muita coisa mudou nesses oito anos, e mudou para melhor. Obrigada a todos aqueles que depositaram sua confiança no nosso projeto de gestão. Que possamos continuar a escrever novos capítulos dessa história. Muito obrigado! Chica do PT Prefeita de Carinhanha
Prefácio Não é tarefa fácil revivificar o passado, muito menos quando queremos fazêlo de modo a evocar vozes silenciadas e expressões culturais multifacetadas de um modo de vida acuado pela indiferença dos vivos e do tempo presente. Mas esta não terá sido a primeira vez que se tentou isso, nem será a última iniciativa, porque sempre há quem se interesse em pelejar com o esquecimento e teime em cutucá-lo como se fosse um formigueiro. Se tudo parece imóvel e perdido, não é porque ainda não se mova e sim porque os olhos e ouvidos urgentes de quem passa não atinam para o fervilhar dos ecos do passado, em sinfonia imperceptível tão somente a quem perdeu a sensibilidade para a ausculta do tempo em seu caminhar senhorial de flecha indomável e incansável, indiferente à mortalidade de homens e mulheres, povos e lugares, tradições e folias, crenças e medos. Cada lugar guarda seu rol de acontecimentos, nem que seja incrustado nas pedras lambidas pelo movimento libidinoso das águas, nas ossadas carcomidas daqueles que os animaram com sua labuta, seus devaneios e desejos, entreveros e desgostos, vitórias e fracassos. Onde tenha sido cravada a âncora da significação das coisas pela bicharada humana, haverá um tesouro feito de ancestralidades cruzadas e tecidas no fru-fru das gerações inquietas, a chegar e a partir da festividade e do martírio desta vida, prenhe de simbologias inesgotáveis, bordadas em fios de pele e buriladas em pedras preciosas, em meio à busca de sentido de existências fogosas ou chãs, que se igualam ao final de tudo no pó do barro em que todos nos transformamos fatalmente. Neste trabalho, contudo, o que chama a nossa atenção é a largura e altitude do inventário de histórias e práticas sociais de um lugar demarcado pela dinâmica das águas de um rio, que oras vira mar, oras sertão. Que pode ter tido seu registro de batismo cunhado, tanto por inspiração da presença de aves, quanto de peixes, e sido ancoragem de barcos ruidentos, a chegar e a partir, trazendo e levando riquezas e gentes. Foi modelado para o pouso de viajantes e comerciantes, trabalhadores entre servis e revoltados, e ambiciosos proprietários, em ruas e casarios, hospedarias e fazendas. Abrigou costumes e tradições povoadas de sanfoneiros, reisados e outros festejos e ritos, gozos e injustiças deste mundo e do outro, numa composição feita de territórios, culturas e identidades herdadas e trazidas de lugares e temporalidades ainda mais longínquas.
A sonoridade dos inúmeros relatos de vivências econômicas e culturais vai formando um coro de vozes vigorosas, que esculpem com o véu diáfano da memória individual e social a musicalidade fugitiva de sanfonas e tambores, luminosos espetáculos azul-encarnados de reis e de bois, que pelos caminhos entrelaçados da lembrança e do esquecimento une Carinhanha à medievalidade europeia, ibérica, magrebina e africana e corre o risco de se perder, caso vingue o desinteresse dos passageiros e distraídos jovens de hoje, por tantas e ricas tradições culturais. Em tudo a pergunta sobre o espólio e o legado. A quem confiar a guarda e a tarefa de não deixar se perder na poeira do tempo tão ricas manifestações do sentido da vida e da morte, embebidas em artes e artimanhas culturais que outra coisa não são do que a prova viva da infindável capacidade de criar e recriar a existência humana, hoje e sempre, ainda que sejam transmudados os suportes e modos de expressão. Ao fim e ao cabo, este livro expõe com fartura de beleza etnográfica, ética e literária, o quanto ainda poderemos recolher e semear no campo da cultura de povos e lugares desse mundão de terras e águas, abismo e ares, do qual não sabemos nem a quinta parte. Fica aqui um caminho a navegar, sob o toque de sanfonas, tambores e sanfoneiros, lapinhas, reis e reiseiros, para dançar carnavais e chorar semanas santas, organizar vaquejadas, cortejos e procissões e, sobretudo, mergulhar no significado mais arcaico da necessidade de vida comunitária, sem o que já não haverá, pouco a pouco, o que nos ligue como humanidade, feita de muitas e perdidas coisas. Fortaleza, 01 de julho de 2012. Prof.ª Dr.ª Maria Juraci Maia Cavalcante Coordenadora da linha de pesquisa História da Educação Comparada Universidade Federal do Ceará
O livro que nos habita Um livro é como uma casa. Tem fachada, jardim, sala de visitas, quartos, dependência de empregada e até mesmo cozinha e porão. Suas páginas iniciais... servem solenemente para dizer ao leitor... o que se diz a uma visita de consideração. Que não repare nos móveis, que o dono da morada é modesto e bem intencionado, que não houve muito tempo para limpar direito a sala ou arrumar os quartos. Que vá enfim, ficando a vontade e desculpando alguma coisa... (DaMatta, Roberto)
E é assim, pegando carona nas palavras do antropólogo brasileiro Roberto DaMata, que começo a falar sobre a experiência deste livro, ou melhor, da construção e arrumação dessa casa que cabe entre as mãos de quem queira se aventurar em histórias de verdade, feitas de carne e osso, de amor, de medo, de fome, de trabalho, de fartura, de festa, de fé e de tudo o que está no meio. Escrever um livro não é coisa fácil. Nem para os mais experientes e nem para aqueles que resolvem fazê-lo de forma coletiva, com muitas mãos, muitas memórias e tantas histórias. A casa que aqui apresentamos com o nome de Mapeamento Cultural não seguiu à risca a receita, foi além. Aumentou seus cômodos e deixou uma janela aberta para o quintal. E é no quintal, nesse espaço tão íntimo de uma casa e, onde poucos podem entrar, que o leitor vai encontrar muitas belezas. Aqui, nessa casa de muitos moradores, existem muitos artistas. E das mais diversas artes! Das danças, músicas, festividades religiosas, lendas, croché, bordado, fazedor de barco, fotografias, rezador, fiandeira e tantos mais. Aqui tem até gente quem faça chover. E como não esperar tanta criatividade e arte de um lugar em que tantas vidas vieram ao mundo pelas mãos de parteiras. Aqui, nessa terra, há muitos causos que permeiam o imaginário dos moradores. E por isso é preciso que se dê um alerta ao leitor: cuidado com o encanto dos encantados. Quando for se aventurar nas histórias sobre o rio São Francisco é bom que leve junto à sua rede de pescar belezas e o fumo para o compadre d’água. Nesse livro que é casa, tem gente de cá e gente forasteira, andarilhos, migrantes. É uma casa onde afloram muitas culturas. No meio dessas páginas, há gente de Carinhanha, de outros lugares da Bahia, de Minas Gerais e do Ceará. Gente de cidade grande e de cidade pequena. Da serra, do sertão, da capital. Esse livro é, desde o começo, uma boa mistura e uma síntese do que podemos chamar de nordeste brasileiro....aqui, caro leitor, não há um sabor
qualquer! Não, não pense que vai encontrar aqui gente qualquer, história qualquer, cidade qualquer. Há aqui, entre as vírgulas e pontos finais, a beleza e a dureza que é viver em uma cidade como Carinhanha. Tentamos arrumar e lhe esperar da melhor forma possível, mas sabe como é, família grande tem sempre alguma coisa fora do lugar. Afinal, há crianças em nós que, vira e mexe, saem bulinando naquilo que estava quieto e às vezes até esquecido. Sem falar naquelas perguntas inoportunas que tiram de dentro da gente aquela dor ou aquela saudade que a gente teima em deixar guardadas bem longe, dentro do baú de nossa alma. Mas lembrar é tão bom! Revirar nossas memórias é como reviver, seguros pelas mãos do tempo, aquilo que foi. Mas, na verdade, aquilo que foi não foi, permanece em nós como um sono leve. Basta só um barulhinho a mais e, tudo fica assim, às vezes meio na penumbra, às vezes límpido e claro como o céu dessa cidade. Eu, como pessoa sensível que sou às pessoas, as coisas, mas principalmente ao passado, cresci um pouco mais desde que entrei a primeira vez em Carinhanha. Aqui, pude entrar em contato, de forma mágica, com o universo de meu pai (vaqueiro, agricultor, bombeiro hidráulico, aposentado, veterinário sem formação acadêmica) e ao de minha mãe (uma ribeirinha que não só lavava roupas na beira do rio, mas também pescava, moquecava peixe, trabalhadora de indústria, dona de casa). Esse livro foi um encontro com um passado que eu sabia que tinha, mas que não conhecia. E eu sabia que tinha porque “o sertão é dentro da gente” já disse o mestre Guimarães Rosa, o dono dessa ponte que nos leva sobre o São Francisco. Livro é aquilo que nos habita. Ana Argentina Castro Sales, em nome da equipe de coordenação.
Explicação Inicial... Olhe, uma coisa é o fato acontecido,outra coisa é o fato escrito. O acontecido tem que ser melhorado no escrito de forma melhor para que o povo creia no acontecido. (Antonio Biá, Narradores de Javé)
Essas memórias não são de uma só pessoa. Elas não têm nome, não têm autores. Não podem ser nomeadas. São a memória de muitos. Essas memórias são um tesouro depositado pelas práticas sociais em todas as pessoas da comunidade, que existe no espírito de cada um, e, ao mesmo tempo, não estão completas em nenhum: só na coletividade elas existem de modo completo. Assim, é um livro polifônico, em que se podem ouvir muitas vozes. Tentamos dar certa narratividade aos textos. Entretanto, essa narratividade não se manifesta como uma narrativa, um romance, por vezes até sim, mas se manifesta mais fortemente na organização e sequência dos textos. Há uma lógica sutil que permeia a ordem dos textos e que procura dar certa unidade ao livro. Quem tem olhos para ver que leia. O pior cego é aquele que não quer ler. É possível perceber que o foco narrativo também se altera entre os textos. Ora, isso se explica pelo fato simples de que o livro fora escrito a muitas mãos: há ali a mão do pesquisador, a mão do orientador e a mão do editor do livro. Então, é um livro polifônico também nesse sentido. Ao pesquisador, coube o papel de fazer a pesquisa de campo, reunindo informações, visitando e descrevendo lugares, sensações dele e dos entrevistados, construindo relatos de campo, registros etnográficos que, muitas vezes, beiravam o estilo literário. Ao orientador, coube o papel de lapidar, como ourives, as informações anotadas pelos pesquisadores, reorganizá-las, reconstruí-las. Como forma de fazê-lo o mais fielmente possível, muitas foram as vezes em que o próprio orientador teve que ir a campo. Ao editor, coube o papel de ler todos os textos e relatos e tentar dar a eles certa narratividade e unidade, nos moldes explicados no parágrafo anterior. Dessa forma, o livro saiu plural. Plural nas cores, nos sabores, plural nas pessoas, nos lugares, nas lembranças, nos amores. Plural nas pessoas que se empenharam ou simplesmente se envolveram com essa pesquisa. Plural nos textos, plural nas versões da História, nas versões da memória. Plural, essencialmente plural. As memórias aqui (re)visitadas não se encerram nesse contar; nunca foi essa a nossa intenção. E, se fosse, seria impossível, porque, aqui, estamos tratando de pessoas e de como essas pessoas percebem, dialogam e interagem com o espaço onde vivem. E como isso muda o tempo inteiro!
A certeza que temos é que a construção desse livro pode ser comparada ao trabalho de um artesão, um artesão de chaves, que constrói inúmeras delas. Elas servem para abrir portas muito especiais: elas são chaves para as nossas próprias lembranças, para compreendermos o nosso espírito individual, a nossa alma coletiva, casa muitas vezes habitada, tantas vezes abandonada. Esse foi um trabalho audacioso. Três meses de pesquisa e um mês para transformar todos os dados colhidos, todos os relatos de campo nesse livro de mais de 600 páginas. Destas, tivemos que fazer um recorte doloroso, penoso, desgastante, e cruel ao mesmo tempo, excluindo informações, deixando, para uma segunda ou terceira edições, manifestações e pessoas que ficaram de fora desta, que, no fim, ficou com 460 páginas. O livro, contudo, é apenas um produto; de outros que poderão ser realizados. Por trás desse produto, o mais importante: o processo. O processo de muitas vidas, as que se foram, as que estão e as que virão. E, além de tudo, o processo de aprendizado de todos os que participaram: todos os bolsistas, coordenadores e gestores públicos, em várias instâncias. Por isto, este livro é uma festa para todos. Não importa se o depoimento, história, memória ou informação não está aqui na primeira edição. Esse depoimento, essa história, essa memória estão impressas no processo vivido; é nas pessoas que se escrevem os verdadeiros livros, os mais importantes. A ideia deste livro não é a de reverenciar indivíduos, mas a comunidade, o coletivo, a cidade, Carinhanha. Esse livro é, portanto, para todos, foi feito para reunir... apesar de qualquer diferença. Pois os saberes expressos em tudo o que foi testemunhado pelos pesquisadores, ouvindo e vivendo com as pessoas, grupos, manifestações pesquisadas, têm esta capacidade: a cultura popular reúne, sempre reuniu, no meio das diferenças e das divergências. Por isto, essencialmente, ela sobrevive e emociona. Todos os textos que compõem esse livro foram trabalhados a partir dos relatos de campo dos pesquisadores Ana Maria Sena de Carvalho, Anderson Dias dos Santos, Áurea Belém Farias Santana, Cristiane Fernandes de Araújo Nascimento, Dalvanice Santana Ribeiro, Damião Ribeiro dos Santos, Iela Silva Martinelli, Iranilde dos Santos Ferreira, Jeane Mangabeira, Joana Rodrigues Gonçalves Magalhães, João Santos de Souza, Josemária Alves de Jesus, Leandro Cerqueira Viana, Lucinete Pereira de Jesus, Luisa Kelly Marques de Jesus, Magda Pereira Lima, Manoel Gomes Filho, Maria do Socorro Sena de Carvalho, Sara Costa do Ouro, Sonia Sena de Souza e Wesley Bruno Silva do Nascimento Gomes. A despeito de todos estes nomes, queremos aqui fazer agradecimentos especiais aos pesquisadores: Cristiane, pela sua delicadeza e paciência em atender a nossos pedidos; o mesmo dirigimos a sua parceira Magda. Também dirigimos um agradecimento especial às irmãs Sena, Ana Maria e Maria do Socorro,
que descobriram, neste trabalho, as suas próprias chaves que davam acesso às suas memórias mais longínquas e que, junto com Kelly, formaram o trio que carinhosamente apelidamos de “três mosqueteiras”. Leandro e Iranilde, não podemos deixar de reconhecer seu esforço na reta final da pesquisa, nos sentimos imensamente gratos pela sua atenção e pelo seu empenho. Josémaria, a você também os nossos agradecimentos, por nos apresentar de forma tão bela a tradição familiar da Dança de São Gonçalo. Damião, nos sentimos bem em saber o quanto você se apaixonou pela pesquisa. Dalva e Lucinete, dupla que o acaso (ou Deus) escolheu e ele (ou Ele) mesmo cuidou em cuidar. Dalva, gratos por sua paciência e disponibilidade para com esse trabalho. Lucinete, acreditamos demais no seu potencial. Os textos de vocês duas são maravilhosos. Bem como os textos de Áurea, muito agradecidos, nossa amiga, pelo empenho na pesquisa de campo e construção dos textos. Mesmo. Um agradecimento também àquelas que, em seu esforço e empenho, mesmo com todas as dificuldades que se manifestaram ao longo da pesquisa, foram exemplos de superação, a Iela e Joana nosso muito obrigado. Também queremos agradecer de forma especial à pesquisadora Sônia. Ao longo de quatro meses de trabalho árduo, os pesquisadores selecionados segundo critérios previstos em Edital, receberam uma bolsa-auxílio para realizar as pesquisas deliberadas em reuniões de planejamento que aconteceram pelo menos uma vez por mês, desde fevereiro de 2012. Ao longo da pesquisa, todos eles participaram de cursos de formação em pesquisa, que iam desde orientações para abordagem nas entrevistas até reflexões sobre escrita e estilística. Um blog (mapeamentoculturalcarinhanha.blogspot.com.br) e uma lista de grupo de discussão (googlegroups) foram ferramentas eficazes de acompanhamento, discussão e construção da pesquisa. Entendemos, certamente, que aqui não constam todas as pessoas, grupos e manifestações que poderiam/deveriam constar. Para isso, precisaríamos de muito mais tempo e recursos (inclusive humanos) a serem investidos. Com o tempo que tivemos, com as pessoas com as quais pudemos contar, com o recursos de que pudemos dispor, esse foi o trabalho que desenvolvemos. As pessoas, manifestações, grupos, ruas, ofícios que aqui estão são mais exemplos da cidade que elementos representativos dela. Além disso, mesmo as pessoas, grupos e manifestações que aqui constam estão apenas apresentadas, no sentido de que cabe a cada uma delas um estudo bem mais aprofundado que pode ser levado a cabo, inclusive, pelos próprios pesquisadores, graduandos da Universidade de Brasília, pelo sistema Universidade Aberta do Brasil (UnB/UAB), em suas futuras pesquisas monográficas, projetos de mestrado, doutorado, quem sabe, enfim. Esperamos, sincera e verdadeiramente, que este livro possa emocionar a todos aqueles que nele aparecem, a todos aqueles que a partir dele poderão perceber estas pessoas, esta cidade (ou cidades; no plural) como nos emocionou, nos tem emocionado. Que ele cumpra a pretensão que nele sempre existiu de
inaugurar uma nova forma de ver, fazer e registrar a memória e a história cultural de um lugar, de uma cidade: a partir das pessoas, com as pessoas, para as pessoas, desde a (dita) mais importante, até aquela que lhe está mais à margem. Recebam, portanto, com benevolência o resultado deste trabalho árduo em que muitos e muitos se empenharam para desenvolver, seja fazendo a pesquisa de campo, organizando informações, ou construindo o texto final que é este livro. Para que tudo caminhasse bem, tivemos o auxílio ainda de uma pessoa muito, muito especial, a Maria de Lourdes. Escrevendo assim é capaz de muitos estarem se perguntando “quem é essa pessoa?”. Por isso, vamos nos utilizar do nome pelo qual todos a conhecem: Nega. Nega também foi uma forte colaboradora no decorrer da pesquisa. Gratos pelas comidinhas deliciosas nos intervalos das formações e reuniões com os bolsistas e também pela disponibilidade. Também queremos agradecer pela hospitalidade e tentativa de fazer com que nós, que somos de fora, nos sentíssemos em casa. Também queremos agradecer pelas conversas, muito boas conversas, sobre Carinhanha e sobre a vida. Queremos também estender um agradecimento muito especial a duas pessoas especiais: Maria Raimunda (Mundinha) e Dona Darinha. Mundinha, grata pela sua disponibilidade, pelas conversas que orientaram o nosso olhar ao longo da pesquisa. Dona Darinha, a senhora foi de fundamental importância na construção desse livro, gratos pelo apoio de todos os dias. A senhora terá sempre o nosso carinho e nosso respeito. Um agradecimento também imenso à nossa querida Chica, que nos deu a oportunidade única e imensa de conhecer a riqueza cultural que é essa cidade, que nos possibilitou um crescimento pessoal, profissional, espiritual sem igual. Pelo exemplo de mulher, pelo exemplo de guerreira, pelo exemplo de honestidade, de pessoa humana que é. Nosso muito obrigado, muito obrigado mesmo, querida Chica, e esperamos que todos nós, que estivemos envolvidos com a construção desse trabalho, tenhamos conseguido corresponder à confiança que em nós foi depositada. A Maristela Macedo de Sousa Alexandrino. Não sabemos nem como começar a agradecer, porque você não se fez, não se faz presente apenas neste livro. Essa história começa muito antes disso. Para escrever essas linhas, muitas páginas tiveram que ser galgadas. Estamos juntos numa caminhada que já se faz longa. Você esteve presente em boa parte dela, nos auxiliando no que podia e, às vezes, até no que não podia, contornando situações que iam além de suas obrigações. Essa história começou em 2009, no primeiro trabalho que desenvolvemos. Nossa empatia foi recíproca e automática. A energia era tão afinada que sua filha tem a mesma idade, nasceu no mesmo dia, no mesmo mês, no mesmo ano (24 de agosto de 2004) do filho de Léo e Simone, coordenadores dos três projetos (Carinhanha entre Rosas e Veredas, 20092010, Carinhanha entre o sabor e o saber, 2011, e Carinhanha entre Rios de
Histórias, 2012). É preciso reconhecer, de verdade, que o que estamos colhendo hoje é fruto de um trabalhoso plantio, e você, querida, foi e é muito importante nesse processo todo. Podemos afirmar, com firmeza nas palavras, que você e Chica são das poucas pessoas que compreendem, sincera e verdadeiramente, a grandeza de um trabalho como esse e não apenas porque sabem, mas porque sentem, porque, como nós, também se doam se doaram a ele. Dois agradecimentos finais e muito especiais a 1) alguém cuja intervenção foi crucial para que este livro saísse tal como vocês agora estão sendo convidados a ler, o Deputado Zezéu Ribeiro. Graças a esse apoio, muitas das histórias e memórias registradas pelos pesquisadores puderam permanecer no corpo do texto original, sem que precisássemos fazer mais cortes e recortes. Na verdade, o próprio projeto só existe por conta dele. Foi ele o grande iniciador disso tudo. Em 2009, construía-se a ponte que liga uma margem do Rio São Francisco à outra e que traria desenvolvimento econômico para Carinhanha. Preocupado com os efeitos da modernização própria desse desenvolvimento econômico, Zezéu nos procurou para que realizássemos um primeiro projeto envolvendo a memória cultural do município. O público desse primeiro projeto era composto por estudantes e professores do Ensino Básico. A ideia era realizar uma pesquisa em torno de histórias ligadas ao Velho Chico. Os alunos receberam formação em que entraram em contato com a obra de João Guimarães Rosa, que, em seu Grande Sertão: Veredas, faz inúmeras menções ao rio Carinhanha; daí a ponte chamar-se “Ponte Guimarães Rosa”, por projeto do próprio Zezéu. Essa formação visava sensibilizar os alunos e professores à riqueza da literatura oral e da cultura local. Este primeiro projeto culminou em um primeiro livro, Carinhanha: entre rosas e veredas, publicado em 2010. Como desdobramento desse primeiro projeto, no ano seguinte, fomos convidados pela Prefeita Chica do PT, sempre em parceria com o Deputado Zezéu, para a realização de um segundo projeto, dessa vez, com agricultores, pescadores, cozinheiras, professores e alunos registrando a culinária local e a memória coletiva em torno dessa culinária. O projeto chamou-se “Literatura de Comer” e culminou num segundo livro, Carinhanha: entre o sabor e o saber. Esses dois primeiros projetos funcionaram como uma espécie de “ensaio” para o audacioso projeto de Mapeamento Cultural de Carinhanha, auge dessa parceria iniciada em 2009, que culmina neste livro que ora apresentamos. Assim, somos imensamente gratos ao Deputado Zezéu, que, com sua sensibilidade, nos possibilitou a grande oportunidade de conhecer esta cidade que todos nós, da equipe de coordenação, aprendemos a admirar, rica em manifestações culturais, em histórias, em vida; 2) ao Banco do Nordeste, cuja importantíssima política de fomento à arte e à cultura, possibilitou, junto à Prefeitura Municipal de Carinhanha, gestão Governo das Realizações, os recursos materiais necessários para o custeio dessa obra que é, para nós, pesquisadores e organizadores, e para os carinhanhenses, um verdadeiro marco histórico. Sejam todos bem vindos à Carinhanha: entre Rios de Histórias.
Sumário À Margem, 21 Introdução
Entre ruas, casas e pessoas, 27 Capítulo I
Para chegar e partir, o Rio, 28
Carinhanha/Da neblina ao vapor/Vapor de cima, vapor de baixo/A lancha de Seu Nonô/A estrada vence o rio/Um rio chamado tempo.
A Nova Velha Árvore, 45 A Velha Nova Rua, 50
Casa do Capitão Artur Lima/Dr. Heber Pereira da Silva/Hotel de Darinha, Darinha de Seu Benvindo/Casa da Família Lino/Casa da Família Oliveira Lisboa/História e Arquitetura.
Matrizes da História Oficial: a Praça, a Igreja, os Homens, 61
A Praça da Matriz/Igreja Matriz de São José/A Casa do Coronel João Duque/Barulhos de João Duque: Vielas/Seu Virgílio de Oliveira Souza/A casa/Carinhanhas.
Heróis, Heroínas entre outras Histórias, 80
Dedicatória às mulheres/Dona Irene, saudades/O Movimento de Mulheres: a História Feminina de Carinhanha/Maria Madalena Villares Barral/A mulher que rezava pra chover/Dona Ditinha/O Alto-Falante de Guiomar, rádio pioneira da comunidade e região/ Jorge Augusto Ribeiro/Honorato Ribeiro dos Santos/Wanderley de França Barbosa/O Padre/O Grupo dos Escoteiros, Educação Complementar/Amor pela Educação/Seu Edésio Marques de Souza/Antônio Rodrigues Villares, o início/Filarmônica Pedro Leite/João Pernambuco, Vaqueiro Rei do Sertão/Vaqueiro também por fazer parto de vaca/Versos de vaqueiros/Seu João Pipoqueiro/Seu Donizete/Seu Conde/Pescadores, heróis encantados/ Seu Alexandre, Seu Zé Ribeiro (Dequinha), Seu Agripino, Seu João, Seu Joaquim Pepi, Seu Jason, Seu Vicente, Seu José Messé e Seu Honório/Benzer e Rezar/A fé que move montanhas, a reza que move a fé: rezadeiras de ofício, ladainhas e velórios/Natalina Francisca Moreira/Dona Rita Carvalho/A Tradição da Ladainha de Santo Antônio/“Eu rezo, Deus Cura”: Ofício de Benzimento/Seu Vicente Benzedor/Dona Chica Mocotó/Seu Olegário Ribeiro de Lima/Parteiras/Mãe Ana/Mãe Ninha/Mãe Nilza Mangabeira/Mãe Antônia Batata/Mãe Joaquina/Mãe Perolina/O rio e as lavadeiras.
Mais louco é quem me diz que não é feliz, 177
Dona Zizinha, cadê o fusca?/Chica de Amélia, Família & Sociedade/Raimundo doido/As caminhadas de Sassá/Chiquinho doido/Mentiras ou anedotas? Histórias de Deraldinho da Malhada/Celso Barrão.
O Rio Dorme, 196 Notas, 197
De Sanfonas e Sanfoneiros, 199 Capítulo II
A sanfona, 201 Ouvi o toque da sanfona me chamar, 204
Festas Juninas/A Vila de São João/Santos Festejos: Festa do Padroeiro com missa Solene/ Santo Antônio/São João/São Pedro/Quadrilha dos quadrados/A quebra da panela/Dona Diolina/O casamento de Dona Diolina/A brincadeira, o ritual/O casamento da filha de Dona Diolina.
O sanfoneiro bem maneiro puxa o fole, 224
Seu João Sena/A Sanfona e os Baraúnas/Seu Delindo/Meleta/Seu Geraldo Lopes/Dois sanfoneiros, uma história/Outros sanfoneiros de Carinhanha.
Notas, 235
Terno, eterno Terno, 237 Capítulo III
Batendo Caixa, Misturando a vida, 238 A caixa. Lapinha, Reis e Reiseiros, 240 Os ternos de reis, 247
Terno de Contradança/Seu Gertudes/Outros olhares sobre a contradança/Samba no Pé e Garrafa na Cabeça –Terno Reis de Caixa /Dona Zelinda/Grilo/Terno da Barquinha/Terno das Ciganas/Terno das Baianas/Entrevista com Joaquim Tapuio/Nomes de outros ternos da região.
Os Reis de boi, 282
A mulinha de ouro subiu o Rio São Francisco/A Família de Dona Cizaltina e a Mulinha de Ouro sobem o rio/A Vida de Cizaltina em Carinhanha: dificuldades e resistência/A Mulinha de Ouro nas Festas de Reis/O Futuro da Mulinha de Ouro/Os barulhos dos Reis de Boi/A Genealogia dos Reis de Boi de Olívia e de Homero/Construindo o Boi/Olívia/Reis de Bois: o mesmo e o diferente.
Notas, 302
Festas e Festejos, 305 Capítulo IV
Introdução, 306 Fevereiro
Carnaval, Clube Recreativo 2 de Julho e Liga Operária Beneficente, 307 Março
Semana Santa, 318
A Quaresma/Alimentos: Jejum e Ceia/Pais e Filhos, Padrinhos e Afilhados/Proibições/ Rezas e cantos em casa e na rua/O Sábado de Aleluia/O Ritual da Igreja Católica/O Lava Pés/A Limpa do Cemitério/Curiosidades.
A Lamentação ou Encomendação das Almas, 326
A lamentação: devoção, medo e molecagem/O ritual em Carinhanha/Símbolos/O percurso, os cantos, as orações.
Festejos de São José, 338 Seu Honorato/Dona Elvira.
Vaquejada da Agrovila XXIII, 345
Agrovila XXIII/Pretinho Mascate/A pista/Patrocinadores/Realização das vaquejadas/O esporte/A corrida do boi/A festa da vaquejada/Vicente Trindade/Zé de Aciza. Abril
Pega do Boi, 353
A comunidade Cheira Cabelo/Seu Jerônimo/Os preparativos/A pega do boi/Origens/ Atualmente. Maio
A Festa do Divino Espírito Santo, 359
Origens... próximas, distantes/O Convênio, as Irmandades e o controle da Festa/ Mudanças... Permanências na estrutura da Festa/Ontem... hoje, rituais/A coroação do Imperador/Levantamento do Mastro/A folia do divino/Os caboclos e a cavalhada/A organização da festa/Cortejos e procissões.
A Dança dos Caboclos, 374
A Fabulação de Vital Rodrigues Cerqueira a respeito da Origem Indígena dos Caboclos/ Os Caboclos na Festa do Divino/A Sobrevivência do Grupo: Disciplina, Dedicação, Apoio/ Rituais dos Caboclos na Festa do Divino/Personagens e Figurinos. Junho
O Ritual da Cavalhada, 390
Entre mouros e cristãos: origens/A cavalhada no Brasil e em Carinhanha/A cavalhada na Barra do Parateca/O ritual e a corrida das argolinhas. Julho
Dança de São Gonçalo, 400 Notas, 406
Minha Terra é Minha Nação, 409 Capítulo V
Territórios, Culturas e Identidades: Movimentos Sociais e Luta pela Terra, 410 A Comunidade Quilombola da Barra do Parateca, 413
Formação e povoamento/”O navio negreiro aportou no porto”: Marco étnico/Luta pela terra/ Sincretismo/O Candomblé/A Umbanda.
A Comunidade Quilombola da Estreito, 424
Formação e povoamento/“Minha terra é minha nação”: Marco étnico.
A Comunidade de Canabrava, 428
Formação e povoamento/Dona Glória/12 de agosto, o dia “D”: luta e conquista/O bravo canto de Canabrava.
A Comunidade das Três Ilhas, 439
Formação e povoamento/A batalha das Três Ilhas.
Notas, 444
Palavra dos autores, 445
O que vale são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela, hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe. João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas
À margem Introdução
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Quando abriu o olho, ainda tudo estava em sonho. Tudo ainda meio nebulado e sem saber se tinha de fato acordado. O tropeção no chão de cimento cru ainda descalço trouxe ele à tona e um palavrão. Quando lavou o rosto, os olhos se abriram de verdade e o bocejo veio num hálito surdo. Ainda era muito cedo, mas tinha que levantar. “Deus ajuda a quem cedo madruga”, foi o que disse enquanto botava o chapéu. Calçou o chinelo de dedo apalpando com a ponta dos dedões cada par da japonesa branca de cabresto preto e, de peito nu, em mangas de camisa aberta sem botões, avançou para o quintal onde estava o barco reformado. Ainda todos estavam dormindo. Era cedo da manhã, tão cedo. O vento frio que batia fez cócegas na garganta e ele tossiu. Tosse seca no escuro da matina. Puxou qualquer secreção nas narinas, tossiu tosse cheia, escarrou e cuspiu. Com dificuldade foi empurrando o barco pela areia, ouvindo o arrastar das pedras no casco do barco ao longo do caminho. Esbarrou em uma ou duas pedras maiores. Isso o obrigou a parar para tirá-las do caminho, mas já estava acostumado. Não havia pressa em sua labuta. Tudo era calmo, de uma calma quase triste, quase bela. Ele as atirava longe, e logo retomava o esforço inicial, até alcançar a margem do rio nos fundos do quintal. Remou e o rio era imenso. Imenso. Maior ainda do que o que parecia porque era o rio de todo dia. Aprendera com os antigos que não há dia mais longo que um dia após outro dia quando estes dias seguem a mesma rotina. E, naquele dia, era muito cedo. A frase ancestral de quem cedo madruga ecoava trazendo energia renovada praqueles braços queimados pelo sol que remavam. A neblina espessa pairava como uma respiração sobre as águas.
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Naquele dia, no entanto, ao invés de continuar rumo ao ponto equidistante de todo dia, em que ele se fiaria em jogar a rede em círculo pra depois de algum tempo puxar, quando não viu mais nenhum lado da margem coberta de neblina, parou e ficou lá, barco que a gente deixa à deriva quando pára pra descansar os braços cansados de tanto remar. Colheu o remo pra dentro do barco e esperou. Ele ficou em silêncio durante muito tempo. Nessa posição durante muito tempo. Cantarolou algumas frases. Solfejou algumas notas, e calou. Assobiou uma melodia que se dispersou quando dois pássaros lhe passaram pelo alto da vista. Torceu-se todo pra acompanhar o voo das carunhenhas. Claro que ele não sabia que aquelas eram aves carunhenhas. E não porque fosse ignorante. Os homens desse sertão o que mais sabem é o verdadeiro nome desses bichos, desses seres, dessas aves. Mas daquelas ali, ele não sabia. E ficou olhando. Ficou olhando porque apesar de não reconhecer aquelas aves, ele reconhecia aqueles sons, de algum lugar ele reconhecia aqueles sons. No fundo, ele sabia que aquelas eram aves carunhenhas. Ouvira muitas histórias sobre elas, mas as tinha por aves extintas por aquelas bandas do São Francisco. E isso era o seu maior espanto. Desentendeu. Seguindo aqueles seres esvoaçantes, os pássaros levaram seu olhar para longe, muito longe. Quando voltou o olhar para a margem de onde tinha saído, percebeu que a neblina já se tinha dissipado, bebida pela água do rio. Era o dia que amanhecia. Ele reconhecia aquele lugar, mas ao mesmo tempo não. Esfregou os olhos. Apertou. Mas... era como se fosse o galpão. O mesmo imenso galpão que sempre estivera por ali, só que... era como se... como se... ele não sabia. Mal entendia. Estaria perdido? Dentro. Ele já não via a rota, imerso
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no caminho de todo dia. Já não sabia aonde ia, simplesmente ia, no piloto automático. Sem lembrar que sua alma era longe. Havia tanto tempo perdido que ele mesmo esquecera de que estava perdido. Humilde que era, homem perdido na História, sempre a mesma história, a grande história dos grandes. Olhando ali aquele galpão, era como se ele visse ali naquela paisagem tantas vezes avistada um outro mundo, um mundo outro naqueles recantos. Como se estivesse vendo uma cidade que ele nunca tinha visto, ou não queria ver. Uma cidade escondida dentro da cidade, ocultada pela poeira cotidiana de ser sempre o mesmo. A cidade pequena esmagada pelas histórias dos grandes. E a nova velha cidade se abria e vindo de debaixo do chão ele ouvia, ao longe, coros de vozes, conversa animada, som de sanfonas e de caixas embaralhandose a violas e guitarras, fogos e barulhos de que ele tanto ouvira falar no tempo em que ele aprendia o abc. Quando deixou de querer entender o que via − e jura que via − pôde apurar a audição pra ouvir a antiga banda tocando, o “Ê” grosso dos caboclos, o luminoso “Viva!” dos Reis de sua infância, a estridência aguda das mulheres dançando. E, pouco a pouco, ia distinguindo cada som, cada ruído, cada palavra daquela polifonia de cores animadas que vinham de algum lugar perdido no tempo lhe apontar o caminho de volta.
Entre ruas, casas e pessoas CapĂtulo I
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Para chegar e partir, o Rio “Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico, o resto é vereda.” João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas.
Carinhanha Um entre-lugar. Entre dois rios. Pros lados do pontal, andando mais um pouco pela praia, sentindo na canela a água gelada do Velho Chico, além das pegadas líquidas, quebrando a tensão superficial da água, só o vento cantando nos ouvidos, até alcançar o rio que dá nome à cidade. O velho Chico é barrento. “O Carinhanha é quase preto, muito imponente, comprido e povooso”, é assim que o Rosa escreveu, “cada lugar é só de um grande senhor, com sua família geral, seus jagunços mil, ordeiros”. Grandes Sertões cortados por essas veredas de rios. “Carinhanha é que sempre foi de um homem de valor e poder: o coronel João Duque – o pai da coragem” é o Rosa ainda quem escreve. Seu Conde conta que o Tomaz dizia que o coronel não queria ser enterrado em Carinhanha. Quando ele morreu, desceram o rio com o corpo e a canoa não queria andar. Isso é ele quem conta. Então, tiraram-no da canoa, e açoitaram seu corpo sem vida como se quisessem tirar o peso de todos os pecados que um homem do seu naipe havia de ter cometido em vida. Suados do açoite vingado, enxugaram a testa e bem que poderiam ter dito “tá bom! Vamo ver se agora vai!”. E a canoa flutuou leve para longe dali. Carinhanha entre dois mundos: entre a barroquíssima Minas Gerais e a triste Bahia, “ó quão dessemelhante estás e estou de nosso antigo estado. Pobre te vejo a ti, Rica te vejo eu já. A ti tocou-te a máquina mercante, que em tua larga barra tem entrado. A mim vem me trocando e tem trocado. Tanto negócio e tanto negociante. Triste Bahia!”. Entre dois mundos: o Clube 2 de Julho e a Liga Operária.
31 Situada no cotovelo de dois rios, o Carinhanha e o São Francisco, tem neles fundamentada a sua história. O Hino de Seu Honorato canta que “o nome vem de uma ave”. Outras histórias contam que vem da mistura de nome do peixe Kari com o nome de uma índia chamada Nhanha, mas isso é uma história muito anterior, a um tempo de muito antes de 1712. Desde meados do século XIX, era pelas águas do Rio Velho Chico que se escoava toda a produção agrícola do município que até meados do século XX, era um dos maiores do Estado da Bahia. Era terra grande, eram seus Iuiú, Malhada, Feira da Mata, Cocôs e Coribe. A produção era levada daqui para Pirapora, no Estado de Minas Gerais, e Juazeiro, divisa do Estado da Bahia com Pernambuco.
Da neblina ao vapor Navios, com suas rodas, seu casco de ferro, sua chaminé e seu apito. Barcas de madeira, com esculturas primitivas na proa – cabeças de mulher ou de animais – parecendo imensos animais fantasmagóricos, impressionavam qualquer vivalma. Muitos chegavam pela noite, e quando chegavam, finalmente, era um vozerio grande. Ordens gritadas pelo mestre, homens caíam na água com a âncora, outros com as varas, depois a barca ficava imóvel como uma enorme ave adormecida sobre o rio. A escultura na proa representava a cabeça de uma mulher, de loiros cabelos rolando para as águas, de olhos azuis de conta, de lábios vermelhos e carnudos, bons para um beijo, de rosadas faces. A luz vacilante do barco iluminava a escultura e quem a olhasse bem sofreria um súbito e intenso amor por aquela mulher feita de madeira e que só possuía a cabeça e o pescoço, mas que era tão linda, tão linda que parecia viva, capaz de falar. Barca primitiva, 1906
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As carrancas na proa dos barcos eram uma forma de espantar os maus espíritos que viviam nas profundezas do rio. E guardavam na madeira lustrosa esse poder encantatório de aproximar o bem ou de afastar o mal. A barcaça era movida a varas. Os remeiros empurravam a barca com estes paus escorados no peito nu, em carne viva, quando não existia vento a favor para içar as velas. Diante da Necessidade da construção de um local adequado para ancoramento das barcas de Carranca, dos grandes vapores e das pequenas lanchas, em 1948, iniciou-se a construção do Cais pela Comissão do Vale do São Francisco. Ele ficou pronto ainda no início da década de 50. O vapor era, para muitas pessoas, um meio de transporte para outras localidades. Totó, Antônio Cardoso Lima, narrou viagem que fez para Januária para continuar seus estudos. A viagem durava três dias. Nostálgica e agradável viagem.
“No vapor, existiam as cabines onde ficávamos a maioria do tempo observando as paisagens das margens do Velho Chico pelas pequenas janelas. Era uma grande festa quando o vapor aportava no porto das cidades ribeirinhas. A certa distância ele soava o apito avisando aos mercadores e à população que ele estava chegando. As escadarias se enchiam de gente pra ver as pessoas que chegavam a passeio ou pra ficar. Não eram poucos os que por aqui chegaram pelo vapor e nunca mais voltaram”.
Casarão
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Barcas no porto
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Assim como Totó, Dona Ivone Menezes lembra também desse tempo com imensa saudade.
“Da época em que estive na cidade de Barra, entre 1953 a 1957, no Colégio da Imaculada Conceição, um colégio de freiras. Ficava meses sem retornar a Carinhanha, mas quando chegavam o período de férias, era grande a alegria, a ansiedade pra rever a família e os amigos. A viagem de volta durava quase cinco dias, mas eram dias felizes e de animação, entre todos que vinham no vapor”. Quando aqui chegava, sua família já estava a sua espera no Cais. Era forte a emoção ao abraçá-los. A memória de Dona Ivone trazia de volta uma época de sua história de vida que se enlaçava à história desses grandes vapores que por aqui passaram.
O vapor faz sorrir aquela que chegou a conhecer todos os portos do Velho Chico. De vapor em vapor, de apito em apito, lá ia ela correndo rumo à penteadeira passar ruge e batom. Era preciso ficar bonita dentro do vapor, mesmo que fosse pra fazer a comida daqueles que trabalhavam e daqueles que partiam. Essa senhora cuja beleza do par de olhos azuis o tempo não conseguiu levar chora ao lembrar das águas, devolvendo o tempo às águas do vento. Hoje, depois de um AVC e de tantos portos navegados, Dona Zelinda Vapor ainda conserva a vaidade nas unhas pintadas de um claro lilás. Ela não quer se entregar às limitações impostas pela doença e por isso anda dentro de casa, sobe e desce batente, vai só ao banheiro. E diz “Eu era da rua”. E dizem que, diferentemente de outras jovens da cidade, gostava de uma blusinha de alça e roupas diferentes das demais mulheres. Assim, circulava pela cidade com seus brincos e colares arrancando os olhares e os desejos dos homens e colocando medo nas mulheres casadas. O porto era sempre o seu destino. Esperar o vapor, sua meta. Suspiros e sorrisos são postos dentro de sua sala clareada pela luz da rua, enquanto lembra emocionada o tempo de sua juventude que era o mesmo tempo dos vapores. Podia-se dizê-la lavadeira de roupa, já que lavava a roupa de algumas pessoas da cidade. Podia-se dizê-la tanta coisa: mulher a frente do seu tempo, “mulher da rua”, como ela mesmo diz, mulher mãe, mulher dona da sua vida, mulher desprendida, mulher feliz e dona de si, mulher livre. Hoje, não tem mais porto que ela possa ir, e nem poderia. A bengala que passou a ser sua companhia inseparável pode, quem sabe, ser tudo o que ela tem. Assim como o apito do vapor já foi tudo o que ela teve. Entre uma coisa e outra, há a saudade de um vapor que numa tarde partiu deixando a esperança de um dia voltar. Enquanto isso, resta-lhe a lembrança do vapor, cenário de suas aventuras, dos sons que o vapor emitia: Piiiiiiiiiiii! Puuuuuuuuuu! O primeiro vapor construído para navegar no Rio são Francisco foi o Saldanha Marinho, construído em 1871, em Sabará, Minas Gerais. O segundo foi o Presidente Dantas, construído pelo governo da Bahia, em 1872. Os principais vapores que navegaram o Rio São Francisco e passavam por Carinhanha, de Pirapora a Juazeiro, da Companhia Baiana de Navegação ou da Companhia Mineira de Navegação eram o Antônio Nascimento, Afonso Arino, Barrão de Cotegipe, Baependi Barreira, Benjamin Guimarães, Cordeiro de Miranda, Chico Bispo, Carinhanha, Djalma Dutra, Delcuc Moscou, Engenheiro Halff, Fernando da Cunha, Fernão Dias, Governador Valdares, Janso Melo, Juracy Magalhães, Júlio Vitor, Mata Machado, Otávio Carneiro. Grande parte dos vapores que navegaram o Velho Chico vieram dos Estados Unidos desmontados, transportados por navios oriundos do Rio Mississipi no Estado do Arizona.
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Vapor Wenceslau Braz, Vapor Benjamin Guimar達es, Vapores no Rio S達o Francisco.
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O mais famoso vapor foi, no entanto, o Vapor Benjamim Guimarães. Construído em 1913, nos EUA, navegou no rio Mississipi e, pelos rios da Bacia Amazônica, já na década de 20, a firma Júlio Guimarães adquiriu a embarcação e montou, no porto de Pirapora, recebendo o nome de “Benjamim Guimarães”, uma homenagem ao patriarca da família proprietária da firma.
Vapor de cima, vapor de baixo “O vapor era dividido. Tinha a parte de cima, que era para os que podiam pagar, lá eram as camarinhas, tinha mais banheiros, tinha muito mais conforto. E tinha a parte de baixo, pra quem não podia pagar” dizia alguém. “Ficava muito perto da água. Os pais tinham que ter muito cuidado com as crianças”, lembrava outrem. “Não tinha camarinha, todo mundo armava sua rede num espaço que era de todos. A comida também era diferente. Lá embaixo era arroz e feijão. Os pratos já eram prontos. Lá em cima, embora a comida fosse feita também em baixo, tinha frango, tinha comidas mais diferentes. A gente via as cozinheiras subindo com as bandejas”. “Eram três refeições que eram servidas lá em cima. Tinha o café da manhã, o almoço e o jantar. No jantar, eles serviam a sopa. Depois vinha a comida, o arroz, a carne...”, complementa um terceiro. Em seu romance Seara Vermelha, Jorge Amado descreve um cenário de que algum carinhanhense muito bem podia ter sido testemunha. Conta ele que “debaixo, aqueles que não podiam pagar viam chegar os passageiros da primeira classe e seus parentes e amigos que vinham se despedir. Famílias com crianças, gente bem cuidada, lágrimas e risos. Uma vez, logo depois do café, embarcaram uns porcos. Um homem bem vestido comandava os outros. Eram uns vinte porcos, grandes, de alguma raça pouco conhecida por ali. Iam para São Francisco, para um fazendeiro de lá. Deu trabalho metê-los a bordo. Os imigrantes riam vendo as peripécias do embarque e riram mais ainda quando um porco caiu na água e foi preciso que dois homens se jogassem para comboiá-lo até o navio. O homem bem vestido gritava: − Salve o bicho, pelo amor de Deus, que é do coronel! Os mais pobres dormiam por cima dos caixões, da mistura com os bichos e as malas grandes do pessoal de primeira que não cabiam nos camarotes”.1
Mas não para por aí, alguns contam que “tinha vapor de dois andares, de
três. Eram uns grandes e uns maiores ainda”. Era uma verdadeira “comunidade instantânea” aquela que se formava na parte debaixo do vapor. “Quando a gente dava sorte, pegava uma turma boa
pra viajar. De noite, se tinha algum tocador, tinha serenata. Se era noite de lua, então, era uma beleza”.
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A lancha de Seu Nonô Claudionor Antônio dos Reis, o Seu Nonô, era um comerciante que usava sua Lancha Otávio Barbosa para ir a cidades próximas comprar e vender mercadorias de porto em porto. Seu Nonô começou a trabalhar com compra e venda de alimentos pelo rio em 1965. Ele sempre gostou de viajar pelo rio. O comércio era o seu forte. Vendia todas as mercadorias que trazia, além de comprar também produtos da região, como o milho, o algodão, a mamona. Às vezes, levava fretes de gado e até mudança. Chegando à cidade de JanuáriaMG, comprava cachaça e de lá seguia até Montes Claros, para comprar cimento, óleo e cereais que fornecia a seus fregueses ribeirinhos. Sua embarcação era considerada um verdadeiro mercado flutuante, onde era possível encontrar de tudo. Em 1980, Seu Nonô parou de viajar, pois achou que já estava precisando estabelecer comércio em terra. Assim, ancorou a embarcação no Cais do porto em Carinhanha. Depois de algum tempo, ela afundou nas águas do Velho Chico.
A estrada vence o rio Em meados da década de oitenta, com o advento da construção de estradas interligando os municípios, o que fazia escoar mais rapidamente a produção agrícola, bem como tornava o transporte de passageiros muito mais rápido, devido também ao assoreamento cada vez mais acentuado do Rio São Francisco, devido à derrubada das matas ciliares das suas margens, a navegação fluvial perdeu espaço. Os grandes vapores foram desaparecendo do Rio São Francisco e grande parte deles nem sequer existe mais. Os que ainda insistem, continuam realizando pequenas viagens turísticas, como o Benjamim Guimarães, na cidade de Pirapora, tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico & Artístico (IEPHA) e pelo Estado de Minas Gerais. O Saldanha Marinho, outro vapor, se encontra ancorado em terra firme na orla de Juazeiro, como um símbolo dos áureos dias de navegação pelo Velho Chico. Na metade da década de noventa, na gestão do prefeito Raimundo Pedro, foi demolido um galpão, o maior deles, que fora construído junto ao Cais em 1948. Este casarão servia de depósito para guardar todos os tipos de produtos que eram transportados pelo rio. No seu lugar, foi construída a
Barca Sergipana, 1950.
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Praça Carinhanha. O outro galpão ficou durante muito tempo abandonado e entregue à própria sorte. Em 2010, a praça foi demolida para dar lugar a Praça José de Oliveira Lisboa, sendo esta praça parte do novo projeto da Orla da cidade de Carinhanha. Junto com a construção da praça, foi realizado um trabalho de restauração do galpão onde hoje é a Casa da Cultura. Com o advento da conclusão das obras da Ponte Guimarães Rosa, o transporte de passageiros que ainda acontecia com as pequenas lanchinhas entre as cidades de Carinhanha e Malhada, perdeu fôlego e praticamente desapareceu.
Um rio chamado tempo Tudo é vapor agora, ecoando nas vozes de outrora.
“Ele era muito bonito, muito grande. Fizemos uma viajem de oito dias até chegar em Carinhanha, subindo o rio contra a corrente até chegar em aqui. Fizemos essa viajem pra fugir das águas da barragem de Sobradinho. Mudamos pra Carinhanha.” “Viemos, meu pai, minha mãe com meu irmão muito doentinho, ele era pequenininho, e eu, que tinha sete anos na época.” “Às vezes, quando o rio estava mais seco, ele encalhava nos bancos de terra. Aí o vapor parava e as pessoas tomavam banho no rio. Era uma diversão. Só quem não gostava eram os marinheiros, que tinham um trabalho danado pra fazer o vapor navegar novamente. Eles mergulhavam, cavavam... cavavam. Até desencalhar.”
Cais
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“Era muito bom quando ele parava nos portos das cidades. A gente podia descer, passear um pouco. Numa dessas, eu e uma prima quase perdemos o vapor. Quando chegamos, a prancha já estava sendo levantada e, nessa viajem, como estávamos sozinhas, meu pai tinha entregue a nós à camarareira. Quando a gente viajava sem o pai ou a mãe, tinha uma senhora que ficava responsável pelas camarinhas, a quem o pai entregava a gente e fazia as recomendações. Ela era muito rígida.” “Meu pai trabalhou no vapor como comissário. Vendia os bilhetes cuidava da sua chegada e partida.” “Tenho muita saudade do vapor. Tinha um o vapor que tinha um dos apitos mais saudosos que se ouvia de longe. Era uma coisa duíííída! Quando alguém saía de Carinhanha pro Rio de Janeiro, São Paulo, pra lugares mais distantes, a família ficava toda no porto, vendo o vapor ir embora e ouvindo o apito de despedida e era só saudade no coração.” “Hoje em dia, as pessoas não têm mais respeito uma pelas outras, talvez passar oito dias num vapor nem desse mais certo.” “Tenho muita saudade da viagem de vapor. Seria tão bom se voltasse! Um dia pode ser que volte. Mas não volta não. Não volta não.”
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A Nova Velha Árvore O rio rugia surdamente. Aquele mundo de água capaz de suportar o peso dos homens, o peso dos dias, caminhões, carretas, carros. Tudo cabia naquela balsa que trespassava o rio trazendo a moderna idade para os morros ainda cobertos de uma floresta rala, ralíssima. Sim. Aos pés do Velho Chico a vegetação ainda é a mesma. Os vapores apitam ao longe... longe que estão no tempo. Aquilo que é lembrado se destaca do tempo, rompe a barreira das datas e se eterniza em algum outro nível de realidade: a realidade lembrada, mais real que o próprio real, um real que se apresenta naquilo que temos de mais nosso: nossa memória, aquilo que em nós mora. Pau do Fuxico
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No cais, tudo é esperança naquilo que chega e medo pelo que vai. Lágrimas doces e salgadas riscam o rosto de quem olha e vê chegar, de quem olha e vê partir. Para além daquelas vozes vindas de depois de detrás do tempo a falar do vapor e das barcas, vozes que iam se diluindo, diluindo, até a textura daquilo que passa, caminha-se pelo porto e ali avista-se ela. As raízes vinham do chão, espalhando-se como suportes, bases de um tronco imenso que, muito em cima, se abria em galhos e na copa gigante. O sol, com dificuldade, filtrava entre a folhagem. Olhando assim ela sempre parece centenária. Ela tem cipós que escorrem da copa como cabelos de búfalo, dando a ela aquele ar de quem é amoroso, mas fala sério. Lembrava um gigante sentado a meditar olhando pro rio, a respirar e a observar. O tronco se misturava com as raízes e com os galhos. Era um corpo geral. Era sim, um gigante fixo, cravado no coração da cidade. Olhando-a assim grande, imponente, não se poderia imaginar quanto ela já viu. Era um gigante fixo, era um pé de fícus. Quem poderia imaginar que a frondosa árvore chamada carinhosamente de Pau do Fuxico não fosse centenária? Era impossível pensar nisso debaixo daquela exuberância arbórea. Mesmo não sendo tão senhora assim, esta árvore é uma caixa viva de memórias. A primeira delas é a sua própria. Bem próximo dali, fica a antiga casa do Dr. Barral defronte do União Hotel, na Duque de Caxias, primeira rua da cidade; hoje, do Sr. Edmílson Bispo dos Santos, o popular Biga. A história começa em setembro de 1970, quando o Dr. Barral, vendo que aquela planta, ainda uma pequena muda, não poderia ficar ali, pois já sabia que ela se tornaria uma imensa árvore, resolveu arrancá-la, mas teve o cuidado de tirá-la pela raiz, e se encaminhou para jogá-la no lixão que ficava onde hoje se encontra o Beira Rio. Quando já quase ia chegando, o Dr. Barral encontra Seu Zé Sales, José Sales Pereira. “O que o Sr. Vai fazer com essa muda, Seu Dr. Barral?”, teria lhe perguntado Seu Zé Sales. O Doutor deve ter lhe respondido que a jogaria fora. Ao que o Sr. José Sales Pereira deve lha ter pedido, jáque foi ele, o Seu Zé Sales quem fincou suas raízes no local que se tornaria sua morada. “Assim como
meu filho, que nasceu há dois meses, você crescerá e dará muitos frutos” disse ele naquele momento. Dona Carlota é quem conta dessa forma. “Acredito que Deus disse ‘Amém’”.
Os anos se passaram e ela cresceu rápido, se tornando uma árvore admirável. Quem diria que esta enorme árvore tem somente quarenta anos? E, mesmo tão nova, guarda, como uma caixinha de memória, tantas histórias. Ora, quantos já não se sentaram no banco que lhe fica ao redor pra falar das suas vidas, da vida alheia, de histórias de amores correspondidos, mal correspondidos, não correspondidos, de fofocas da cidade, de fuxicos da política? Ela, gentil, paciente e silenciosa, respira e guarda todas estas histórias e observa o rápido crescimento da cidade, de pequena vila à cidade que quer ser grande, inaugurando ruas, praças e pontes.
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A Velha Nova Rua As ruas também respiram. À noite, quando nos recolhemos a nossas casas, à segurança dos nossos aposentos e do mundo que aparentemente controlamos, as ruas podem respirar aliviadas. Durante o dia, as ruas suspendem a respiração assustadas com a nossa velocidade. A gente passa por elas e nem as percebe, esquecidos dela. Nossas pernas nos levando, ruas abaixo, tão desapercebidos, tão distraídos. Despedindo-se do pé de fícus, de costas pra ele, pode-se ver a praça da Igreja da Matriz, mas ainda não é hora de contar essa história. Desçamos por esta rua. A Rua Duque de Caxias surgiu no final do século XVIII, como um complemento do centro urbano que ao poucos foi se construindo ao redor da Igreja Matriz de São José, e com o tempo foi se tornado uma das principais ruas da cidade, pois fazia a ligação entre cidade alta e cidade baixa, principalmente com a localização do porto do cais na parte baixa. De acordo com as histórias dos moradores da rua, esse espaço antigamente era um grande areão, o que dificultava muito o transporte de alimentos e outros objetos vindos por meio dos vapores e lanchas. Ficou também conhecida como “Rua das Pedras”, por ser, durante muito tempo, a única rua calçada de pedras da cidade.
Rua Duque de Caxias
Andando pela rua, logo percebemos que grande parte do casario encontrado ali localizado demonstra que era nessa rua onde residiam as grandes e influentes famílias da cidade no século XIX e início do século XX. As casas desta rua trazem consigo uma singularidade. Aqui convivem casas de estilo Imperial, de estilo da Nova República e casas com formato arquitetônico americanizado. É o tempo materializado nas casas, a história de Carinhanha materializada nas casas. E nesta rua isso fica bem perceptível devido à quantidade de casas construídas neste estilo, muitas delas construídas na década de quarenta, a exemplo da casa da família Oliveira Lisboa. A rua também guarda um tesouro de valor grandioso, isto é, o seu calçamento, colocado entre os anos de 1952 a 1955. Vindo da Serra de João Alves no Município de Malhada, no lombo de burro, e, chegando ao rio, era trazido em pequenos barcos a remo. Os moradores mais antigos como seu Antônio Cardoso Lima, popular Totó, se lembram que “parecia uma
procissão de barco trazendo aquelas pedras grandes e pesadas”. O calçamento desta rua foi um marco para todo o processo urbanístico desta cidade feito pelo Sr. José de Oliveira Lisboa, gestor da cidade na época. Ela foi a primeira nova rua da cidade. A Rua Duque de Caxias guarda nestas pedras muitas histórias, a memória de grandes transformações que fizeram de sua ladeira um caminho incessante de ida e volta. A própria rua viu a chegada dos grandes vapores e a descida estonteante de seus moradores para saudar os que vinham e os que partiam pelo Velho Chico.
Casa do Capitão Artur Lima A vida é um livro aberto escrito diariamente a cada passo, a cada descoberta. Rastros de uma história guardados em nossas memórias e daqueles com quem tivemos o privilégio de conviver. A história de uma casa também pode ser comparada a um livro aberto. Nas centenárias casas de nossa cidade, marcas da história daqueles que ali viveram suas grandes conquistas, suas grandes frustrações.
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A casa pertenceu a Artur Lima, popularmente conhecido por Capitão Artur Lima, que comprou a casa do Dr. Josefino Moreira de Castro, em 1938. É o que consta no testamento da família, mas de acordo com uma de suas filhas, sua família já vivia desde o começo da década de trinta. A casa, hoje, só preserva metade de sua estrutura original. Metade caiu no final da década de 1980, depois de intensas chuvas. Hoje, no local, funciona um Clube do Hotel Canoeiro, de propriedade de Joana Costa. Construída entre os anos de 1910 e 1920, era grande e majestosa. Como se tratava da casa de um dos únicos médicos da cidade, era a residência de uma arquitetura destacável no estilo imperial. A casa se localiza na Rua Duque de Caxias, berço vivo da história desta cidade, e se encontra em bom estado de conservação. Pouco foi mudado na sua estrutura original. O madeiramento ainda é o original de sua construção. Disse Dona Valdete, filha de Artur Lima, que seu pai também realizou mudanças na casa, mudanças estas que não modificaram muito a sua fachada e a estrutura original da casa, como portas e janelas que guardam toda rusticidade daquele tempo e os ladrilhos que ainda estão preservados no piso do quarto. A família morou naquela casa até a década de 1940, quando o Sr. Artur comprou as terras onde fez a Chácara Paraíso, compradas do Coronel João Duque, nos anos cinquenta. Após o casamento com o Dr. Heber Pereira da Silva, Dona Valdete se mudou para casa. Ali, durante algum tempo, também funcionou a loja de móveis de Dona Odete Lima Navarro. Por este motivo, a casa foi dividida metade ficando para Dona Odete e Metade para Dona Valdete.
Dr. Heber Pereira da Silva O Dr. Heber veio para Carinhanha no final da década de quarenta. Veio de vapor, no Benjamim Guimarães, para trabalhar no Posto Médico que funcionava onde hoje se encontra a loja de calçado da Casa Magalhães na Praça J.J Seabra. Ali próximo, funcionava uma escola onde trabalhava a recém-formada Valdete Lima. Conta Dona Valdete que Dr. Heber sempre a acompanhava todos os dias no final do expediente, puxando conversa sobre vários assuntos, mas como tinha compromisso com outras pessoas não dava muita conversa. Seu pai ficou sabendo disso e como também trabalhava ali perto, na Casa da Estação do Correios e Telégrafos, passou a ir buscá-la todos os dias para levá-la para casa, afim de que o jovem médico não a importunasse
mais. Qual o quê! O jovem médico era insistente, e começou a mandar cartas e mais cartas conquistaram o coração de Dona Valdete, sua amada. Eles namoraram e, tempos depois, no dia 26 de junho de 1950, vieram a se casar.
“Vim morar em terras de índio, e me apaixonei por uma índia que tomou meu coração” era o que ele dizia, afirma Dona Valdete. A casa onde moravam era também seu consultório médico, onde trabalhou até meados da década de 1980. Trabalhou no SESP e, por muito tempo, no antigo FUNRURAL. Foi um dos primeiros médicos a trabalhar no antigo hospital onde hoje funciona o Hospital Municipal. Também trabalhou no município de Malhada, de meados de 2000 a 2004. No início da gestão de Francisca Alves Ribeiro, em comum acordo com sua esposa, Dona Valdete decide doar os aparelhos que usava em seu consultório médico. Como ele dizia que uma índia roubou seu coração, com o tempo também aprendeu a amar a terra que tão bem o acolheu. Heber amou a medicina até o último dia de sua vida. Sempre disposto a ajudar aqueles que necessitavam de atendimento médico, faleceu aos noventa anos de idade, deixando um legado que nunca será esquecido, e a gratidão das muitas pessoas que Ajudou durante estes mais de sessenta anos de profissão.
Funcionários do SESP
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Hotel de Darinha, Darinha de Seu Benvindo É ainda na rua Duque de Caxias onde fica o Hotel União, ou simplesmente “Hotel de Darinha”. O hotel de Darinha não deveria se chamar hotel e sim casa de Darinha. Lá não se tem a frieza dos hotéis comuns, onde você apenas passa e da qual não se faz parte. O café começa a ser servido à 7h30, mas os preparativos se iniciam ainda de noite. É comum passar no corredor que leva ao refeitório e sentir o cheiro da farofa de gergelim inundando os espaços noturnos do hotel. E quando amanhece, além do café da manhã feito à mão, a imensidão do São Francisco observa enquanto se come. Nas primeiras conversas do dia, quem fica, quem está chegando, quem está indo embora, quem não conhecia Carinhanha e até alguns estados do Brasil como o Ceará. Conversa vai, conversa vem, quando se percebe, estamos ali dividindo nossa estadia com alguém que provavelmente não veremos nunca mais. Apesar de todo o aconchego do lugar, é um lugar de passagem. É o lugar temporário daqueles que por ali passam. É como se fosse uma casa construída a muitas mãos, mas não é uma casa de tijolo e cimento, ela é construída de memórias. Dona Lindaura Fonseca da Silva, mais conhecida como Dona Darinha, conta com grande alegria do dia em que o hotel passou a funcionar. Quando Dona Darinha terminou o curso magistério, no dia 13 de dezembro de 1975, só poderia lecionar em lugares como Feira da Mata, Malhada, Serra do Ramalho; na época, ainda localidades de Carinhanha. Naquele momento, quem lecionava nesses lugares eram as professoras leigas. Como as vagas nesses lugares mais próximos já estavam preenchidas, Darinha teria que ir para lugares mais distantes, Mangas e Montalvânia, por exemplo, já no estado de Minas Gerais. Por estes dias, ela recebeu a proposta de ir lecionar em Itacarambi, a convite de um conhecido de seu pai. Por ela ser o pivô da família, uma vez que era a mais velha dos oito irmãos, e por ser também ela quem cuidava deles − isto porque a saúde de sua mãe andava meio debilitada −, ela não pôde aceitar.
Foi preciso, então, pensar numa nova maneira de ajudar no sustento da família. Mas o que fazer para aumentar a renda naquela época, onde as famílias se sustentavam ou da pesca ou da lavoura? Então, o seu pai, Benvindo José da Silva, pensou inicialmente na ideia de investir numa farmácia, uma vez que nessa época só havia uma funcionando. Dona Darinha sempre foi além de muito responsável, também muito prudente, por isso não aceitou a ideia do pai, pois não tinha experiência farmacêutica. E foi nessa discussão sobre no que deveriam investir que resolveram optar por colocar um hotel na cidade – simbólico que o nome dele seja “Benvindo”. Aqui, na época, havia o Hotel Glória, localizado também na Rua Duque de Caxias e que pertencia ao Sr. Hermelindo Oliveira. Hoje, no local, é o fundo da residência de Raimundo Magalhães. Na Rua 13 de Maio, havia a de Dona Nana, Pensão São Raimundo. Decidiram colocar um hotel, mas ainda não havia um local adequado para isso, pois moravam na rua Barão do Rio Branco, onde hoje é a Escola Chapeuzinho Vermelho, e achavam o local inadequado para tal investimento; uma vez que a rua era pouco movimentada. Era preciso um lugar mais movimentado. A ida-e-vinda dos vapores tornavam as ruas próximas ao rio ideais. Eram vários pescadores chegando de outros lugares o tempo todo precisando de um lugar para dormir. Assim, seu pai alugou uma casa pertencente à família Lima, na Rua Duque de Caxias. A casa possuía somente 8 quartos. Fizeram uma pequena reforma e começaram o trabalho. Com o progresso do trabalho, a casa foi ficando apertada. Havia, então, a necessidade de um outro local. E, por coincidência ou providência divina, no final de 1975, estava à venda a casa onde hoje funciona o Hotel. Fizeram então uma reforma rápida e mudaram, pois o trabalho não poderia parar. Dona Darinha lembra com emoção o nome do primeiro hóspede. Foi o Sr. José Gomes. Lembra com precisão a data, dia 04 de Março de 1976, uma Quartafeira de Cinzas. “Ainda lembro que ele se hospedou sozinho no hotel”. Toda a família se envolveu no trabalho. Por isso, o hotel recebeu esse nome “União”, representando a união de sua família. Dona Darinha relembra que no início dos trabalhos, eram ela, seu pai e sua irmã Maria Helena os responsáveis. Quanto mais o tempo passava, mais ela se apaixonava pelo que fazia. “Sempre busquei agradar meus clientes, deixá-los satisfeito com o local e o atendimento”.
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A cidade ainda não tinha energia elétrica. A energia era a motor. Quando dava nove da noite, a energia era desligada. Darinha, então, providenciou um gerador para manter a luz por mais tempo acesa. “Era pesado para ligar,
mas mesmo assim, quando meu pai não estava, era eu quem fazia esse serviço”. Lembrou com grande satisfação a chegada da energia elétrica. “Ah, foi uma grande benção pra toda a região. Foi o pontapé inicial pro desenvolvimento da cidade e, principalmente, do hotel”. Passava o tempo, Dona Darinha continuava envolvida no trabalho e, mesmo se casando em 22 de Junho de 1985, continuou morando no hotel. Nele, teve e criou seu filhos. “Não foi fácil criar os filhos dentro do hotel, um
ambiente que não era próprio! Meu esposo era caminhoneiro e viajava bastante, estava bastante ausente, aí meu pai era quem auxiliava na educação deles. São 36 anos de funcionamento, e o Hotel ‘União’ representa mesmo a união da nossa família”. Dona Darinha crê que
esse foi um dos segredos para ele funcionar até hoje.
Disse que muitas foram as alegrias vividas ali. Se emociona ao lembrar que teve a oportunidade de hospedar muitas pessoas ilustres e famosas sem precisar sair de casa. Recordou que já hospedara em seu hotel biólogos, médicos, cientistas que vinham pesquisar sobre a vida do Rio São Francisco, fazendeiros, pescadores, professores, políticos e artistas famosos. Conta que o hóspede que jamais esquecerá foi o ex-deputado Valdir Pires, porque além d’ele ser um político respeitado na época, era um homem muito educado que, nas suas conversas, demonstrou ser um homem sério naquilo que fazia. Sua personalidade e seu caráter sempre o farão lembrado. Dos vários artistas famosos que acolheu, lembrou de Joelma e Chimbinha da Banda Calypson, Agnaldo Timóteo, Jacaré, e tantos outros que já perdera as contas. Sorrindo, disse que não é alguém que se apega a esses artistas que a mídia valoriza e, por isso, não lembrava de muitos nomes. Dos vários momentos importantes da sua vida dentro do hotel, lembrou também que ali já viveu um momento constrangedor, que foi a morte de um fiscal da Controladoria Geral da União (CGU), que estava fazendo uma vistoria pública no município e acabou sofrendo um infarto, já que possuía uma ponte de safena do coração. Teve que manter a calma e principalmente ser profissional, pois era o nome do seu estabelecimento e de seus hóspedes que estavam expostos. Lembra que, no momento, era a mais tranquila e, portanto, era quem tranquilizava a todos.
Hoje o hotel mantem a mesma estrutura de quando compraram a casa. Parte dele ainda é de adobe e outras de alvenaria. O forro que há logo na entrada também é o mesmo de 1976. Mesmo com a evolução da área arquitetônica, procuraram manter as características originais do lugar: a decoração rústica nas portas, no telhado. A fachada e o interior original do espaço dão a ele um aspecto aconchegante. O “Hotel União” ou o “Hotel de Darinha”, como se popularizou, já é considerado patrimônio material da cidade, uma vez que é impossível fazer referência à Rua Duque de Caxias sem lembrá-lo. Dona Darinha, mulher de fé, pessoa simples e serena nas palavras, demonstra um verdadeiro amor por esse lugar onde viveu a maior parte de sua vida. Não é sem pesar que ela afirma que ultimamente se depara com a difícil decisão de ter que deixar o local para ir viver perto dos filhos. Ela não sabe se se acostumará por lá, se conseguirá viver sem essa rotina, sem a prática de acolher e cuidar dos seus hóspedes como tem feito durante 36 anos, mas sabe que sua família também precisa dela. Seja qual for sua decisão, prudente que é, é certo que tomará pelo melhor caminho. Se por acaso a decisão for a de deixar o ramo da hotelaria, independente de quem for o próximo dono, o Hotel União jamais será esquecido, e será sempre lembrado como o “Hotel de Darinha, Darinha de Seu Benvindo”.
Casa da Família Lino É ainda nesta rua que se pode encontrar a casa da família Lino. É Dona Eva Bezerra Lino quem conta que a casa que hoje é de sua família foi comprada do Sr. José Borges, em 1950, por seu pai, o Sr. João Pereira Lino. Foi a morada da sua família. Dona Eva teve 11 irmãos. Com o falecimento dos seus pais, a casa ficou por alguns anos fechada. A casa conserva seu aspecto original, tendo algumas alterações que de certa forma não alteraram seu estilo rústico. A fachada é bem simples não tendo muitos detalhes, como algumas casas da mesma época e da mesma rua. Pelo formato de sua construção, pode inferir que seus primeiros moradores eram pessoas de origem simples. A cor da casa é um verde claro. As janelas e portas da frente não são mais aos originais. O piso também foi trocado, preservando, apenas, seu formato original e as memórias gloriosas da família Lino.
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Dona Eva não soube precisar a data de construção da casa, mas considera que ela tenha mais de cem anos. “Existiam poucas casas na Rua Duque de Caxias. Era um areão imenso”. Alguns anos depois, ainda na década de 50, foi calçada na gestão do Sr. José de Oliveira Lisboa, popular Zuza Lisboa, que também residia nessa rua, um pouco mais pra baixo, descendo para o rio. Ainda lúcida, depois de tanto tempo, consegue lembrar muito bem o que se passou na sua família, naquela rua onde construirá toda a sua história junto com o Sr. João Pereira Lino. Histórias de uma vida que viu Carinhanha mudar muito nestes 62 anos. Dona Eva é uma das poucas pessoas que ainda têm algo a contar da história da cidade, histórias que vão além das paredes da sua casa, que estão guardadas em sua memória que transcendeu o tempo, lembranças dos fatos que acorreram há tanto anos.
Posse Zuza Lisboa Intendente
Casa da Família Oliveira Lisboa A história da humanidade é repleta de monumentos construídos para enaltecer a grandeza das grandes civilizações, de seus reis e imperadores, monumentos que guardam a história do homem para ser admirada por todas as gerações de agora e de depois. O Sr. Raimundo Lisboa, popular Raimundo de Zuza, é filho do Sr. José de Oliveira Lisboa, o popularmente conhecido Zuza Lisboa, um dos grandes homens da história desta cidade. Foi por sua causa o calçamento da Rua Duque de Caxias, patrimônio material de Carinhanha, a construção do Cais e da Praça J. J. Seabra, popularmente conhecida como Praça da Matriz. Foi ele um dos primeiros incentivadores da educação na cidade, quando fundou o Ginásio São José, na década de 1940, na Casa do Careta, à época, de sua propriedade.
História e arquitetura Na década de 1940, com a Casa do Careta sendo usada como Ginásio, o Sr. Zuza Lisboa constrói uma casa na Rua Duque de Caxias. No local da construção desta casa, encontravam-se três pequenas casas feitas pelo processo arcaico de enchimento, onde as paredes eram trançadas com pedaços de madeira e cobertas com barro. A casa construída na década de quarenta apresenta uma arquitetura americanizada. Sua estrutura é disposta em colunas quadradas e detalhes em espiral. O mundo, no início desta década de 1940, não era mais influenciado pelos países europeus, mas por uma nova potência que surgia, os Estados Unidos da América, que começava a influir, com seu capitalismo, sua cultura e sua arquitetura, grande parte dos países do mundo. Até os anos 30, a arquitetura local ainda preservava o estilo imperial. Entretanto, em tempos de vapor, com a visita constante de estrangeiros, principalmente americanos − o vapor mais famoso, o Benjamim Guimarães, veio de lá pelo Mississipi – a arquitetura passou receber essa nova influência.
Zuza Lisboa, 1977
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A casa ainda preserva, ainda hoje, a sua estrutura original, principalmente pela vontade de seus proprietários em conservá-la assim. Foram construídos cômodos ao fundo, mas estes levaram em conta a arquitetura original da casa. Ao lado da casa se encontra um ponto comercial que também foi construído pelo Sr. José de Oliveira Lisboa, na mesma época da casa, onde ficava seu escritório, onde comercializava o algodão beneficiado em sua usina. Naquela época, era tudo transportado pelos vapores e pelas Chatas − grandes embarcações parecidas com balsas que transportavam alimentos, minérios e outros produtos − que navegavam pelo São Francisco, de Pirapora, em Minas Gerais, a Juazeiro, na Bahia. O ponto comercial de Seu Zuza ficava localizado em lugar estratégico, pois a rua Duque de Caxias dava acesso ao Rio são Francisco e, da porta da sua casa ou de seu comércio, ele avistava quem chegava ou partia pelo rio. Em 1978, o Sr. José de Oliveira Lisboa doou para sua filha, Maria Conceição Viana e seu marido Artur Viana, o ponto comercial que no ano de 2010 foi vendido ao Sr. Andrey Costa. A casa, entretanto, ainda é de propriedade da família, residindo nela o Sr. Raimundo Lisboa, que lembra com saudade de seu pai, um homem que lhe deixou um grande exemplo de vida e de trabalho, e principalmente de amor a esta cidade que ajudou a construir.
Matrizes da História Oficial:
A Praça, a Igreja, o Homem “Era o São Francisco, ouviam falar dele em suas terras de sol e seca. Nunca tinham visto tanta água e associavam a visão da água à ideia de fartura, imaginavam que aquelas terras próximas seriam de uma fertilidade assombrosa. E se admiravam que os camponeses chegados da beira do rio fossem andrajosos e fracos, os rostos amarelos de sezão, piolhentos e sujos. Com aquele farturão de água, era de esperar que toda gente por ali estivesse nadando em dinheiro. Não tardaram, no entanto, em descobrir que todas aquelas terras ubérrimas pertenciam a uns poucos donos e que aqueles homens magros e paludados trabalhavam em terras dos outros, na enxada de sol a sol, nos campos de ouricuri, nos carnaubais e nas plantações de arroz e algodão, ganhando salários ainda inferiores àqueles que pagavam pelo sertão.” (Jorge Amado, Seara Vermelha)
Já é lugar comum dizer que os Sertões brasileiros conservam ainda uma estrutura social muito próxima da Idade Média europeia. É um ponto de vista “eurocêntrico”, que tende a olhar para o local a partir do lugar da Europa (o centro). Entretanto, a julgar pela cor da pele, pelos costumes, pelas lendas locais, pela cultura, pela alimentação, pelas canções, o Sertão brasileiro é fortemente marcado pela influência da cultura indígena e africana, principalmente na Bahia. Esse ponto de vista eurocêntrico tem como base argumentativa alguns itens que podemos listar: a presença de grandes extensões de terra nas mãos de determinadas famílias, o que lembra os grandes feudos medievais; o sistema de apadrinhamento e arrendamento da terra, que lembra o velho sistema de vassalagem, próprio do feudalismo; a presença forte do sobrenatural no imaginário coletivo; e, principalmente, a forte influência da Igreja Católica. Assim, todas as manifestações coletivas, todo o comportamento da comunidade, a própria dinâmica social, a própria História, giravam em torno da Igreja Católica. É ainda assim em muitas cidades do nordeste brasileiro, é assim também em Carinhanha.
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A Praça da Matriz A Praça da Matriz foi construída na década de 50, na gestão do Prefeito José de Oliveira Lisboa, e concluída na gestão do prefeito Sr. Francisco Lacerda Pinto. Sua arquitetura original tinha como base um jardim plano com bancos localizados em grande parte de sua área. Estes primeiros bancos foram doados pelas “principais famílias” de Carinhanha na época. Contam os moradores do entorno que, há mais de cinquenta anos, este local sempre foi um local de vivência comunitária. O calçamento do seu entorno foi trazido no lombo de jumento, da cidade de Cocos. As grandes transformações urbanísticas vivenciadas pela cidade nestas últimas décadas não alteraram seu padrão original. Desde o início do século XVIII, com a construção da Capela de São Caetano − primeiro nome da Igreja Matriz de Carinhanha −, o local sempre foi ponto de encontro entre os habitantes da cidade. Nestas seis décadas, ela passou por grandes transformações em sua arquitetura, sendo a maior delas na gestão do Sr. Francisco Lima Cunha, no período de 1988 a 1992, quando foi construído o jardim suspenso e o coreto. Ela abriga grandes festas como a Festa do Divino, o carnaval e as gincanas culturais comemoradas no dia 17 de agosto com a finalidade de valorizar e integrar a população jovem e adulta da cidade. Aqui se revela uma faceta sutil da colonização: a supressão do local em favor de uma forma de relação outra, estranha, que transforma as pessoas em estrangeiros em sua própria terra e os lugares em verdadeiros não-lugares.
“Debaixo da praça estão os vestígios de uma aldeia indígena” é a fala
corrente da população. A praça é o ícone desse processo de colonização que vai solapando os lugares e não só os ressignifica, mas os substitui completamente, fundando heterotopias através da sobreposição dos espaços; o que é próprio da imposição cultural do colonizador sobre o colonizado, provocando uma constante substituição dos traços originais do lugar, o esquecimento de uma origem, justamente pela sobreposição desses lugares que guardavam a memória viva daqueles mortos agora soterrados pelo cimento da praça que sobre eles se ergueu.
1967
Existe um simbolismo forte no fato de se construir uma praça, lugar do riso, da celebração festiva, da espontaneidade, da futilidade e do encontro fortuito de uma legião de desenraizados que não moram na praça, sobre o lugar onde repousam os ancestrais de toda uma civilização, de toda uma cultura, de uma forma local de relação social. O riso dos passeantes soa como a gargalhada macabra de uma civilização que só pode se impor sob o signo da violência e da mortandade. Respira através das frestas do cimento e da história, o espírito dos caiapós submetidos pelo punho de ferro do bandeirante Manuel Nunes Viana no início do século XVIII. O tempo passou e se erigiu sobre a praça uma Igreja. O lugar, séculos depois, também se transformou: ficava cheio de cavalos e jumentos. Seus donos, chegando do trabalho, da labuta da roça, ali, amarravam seus animais para descansar para a labuta do dia seguinte. Tornara-se de novo a praça um remanso de paz e de sossego.
Igreja Matriz de São José A Igreja Matriz é um patrimônio de imenso valor para a população católica da cidade, pois guarda em suas paredes muito da história da cidade. Foi ao seu redor que Carinhanha cresceu, onde seu povo construiu uma história rica em cultura e religiosidade. Está localizada na Praça J.J. Seabra, no Centro de Carinhanha, sendo proprietária a Paróquia São José. A Igreja Matriz foi construída como Capela de São Caetano pelos primeiros moradores de Carinhanha aproximadamente no ano de 1779. Depois de muitos anos, com a vinda do Padre Pedro Machado da Cruz, foi dado o nome de Igreja de São José. Tempos depois, Dona Maria I Rainha de Portugal deu o título de Paróquia de São José, sendo reconhecido pela Igreja Católica por Dom Joaquim Coutinho Azevedo, em 1806, como uma das primeiras paróquias da região. Em 06 de agosto do mesmo ano, foi enviado o primeiro vigário para a paróquia, o Pe. Machado da Cruz Pereira, no ano de 1818, foram construídas as torres, por intermédio do Pe. Frances José Dorne (Jesuíta), dando à igreja o estilo jesuíta, até os dias de hoje. A fachada possui duas torres frontais com altura aproximada de 07 a 10 metros, com três portas na frente, três janelas e duas portas de cada lado. Ao fundo,
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se encontra um anexo o qual é chamado de sacristia. A cor atual da igreja é marrom claro, mas sempre esteve pintada na cor branco, com detalhes em azul claro, como se encontra na sua área interna. Na década de 1970, o Pe. Wanderley de França Barbosa realizou uma grande reforma onde foram retirados os coros laterais que ficavam ao lado do altar, deixado somente o coro frontal. Conta o Sr. Honorato Ribeiro, memorialista da cidade, que, nas grandes festas da igreja como São José e Festejos do Divino Espírito Santo, a igreja ficava totalmente cheia de fieis, com os dois coros completamente lotados. No fim da década de 1980, o Pe. Edimir realizou a troca do piso da igreja e acabou encontrando um fato histórico, uma lápide onde se encontravam, enterrados ao lado da segunda porta da lateral direita do altar, os restos mortais do corpo do Pe. Nicodido. Conta Seu Honorato que esteve presente nesta descoberta que causou imensa surpresa no povo da época, a lápide foi retirada, mas o padre ainda continua enterrado lá. A última grande reforma realizada na igreja aconteceu em 2008, com o vigário Pe. Wander, que foi a colocação do forro. Dessa forma, o imóvel, hoje, encontra-se em estado de excelente conservação, ainda mantendo, em sua fachada, características de sua construção. O seu interior, no entanto, é que passou por algumas reformas que modificaram sua estrutura original, entre elas as colunas, que eram de enchimento com o tronco de madeira no centro, que foram trocadas por colunas de concreto, aconteceu também alteração no piso, como foi citado acima, permanecendo o original somente no canto da escada que leva ao coro frontal da igreja e a retirada dos coros que ficavam à direita e à esquerda do altar. Altar central em 1967 e durante celebração em 1980
A Casa do Coronel João Duque A data de construção da casa conhecida como Casa dos Padres ou Casa Paroquial não é definitiva. Ao que tudo indica, foi construída aproximadamente entre 1900 a 1910, pelo Coronel João Duque, para ser sua morada quando estivesse em Carinhanha, já que residia em sua fazenda no Itacarambó, no estado de Minas Gerais, terras localizadas no atual Município de Juvenília. Coronel João Duque, filho de um grande comerciante da região, o Sr. Antônio Bernardino Duque, chamado popularmente de Marotinho, português que fincou suas raízes em nossa região. A história desta casa é retratada em sua grande parte pela história do Coronel João Duque, história esta que permeia o poder político desta cidade no início do século XX, por meio de dois grandes movimentos. O primeiro, ocorrido no ano de 1919, foi quando o Sr. Josefino Moreira Castro, Intendente da cidade, começou a atacar a oposição da época, que tinha em Olívio Pinto e João Duque, suas principais lideranças. Em relação ao cargo de Intendente, este era escolhido por votação popular, mas só participavam da votação aqueles homens que possuíam certa quantia em dinheiro declarada, ou seja, só os homens ricos, proprietários de terra e grandes comerciantes, do município podiam dar seu voto. Este cargo era de grande prestígio. Por alguns motivos, um deles é que o intendente tinha poder de nomear pessoas para ocupar cargos públicos no município. Neste tempo, todos os cargos públicos eram federais, oriundos do Governo Federal. Neste contexto, o cargo de intendente era de grande visibilidade, pois dava ao seu possuidor muito poder dentro do contexto municipal; por esse motivo quem estava no poder temia seus opositores. O conflito de 1919 foi denominado de Barulhos de João Duque. O Sr. Josefino, vendo o crescimento dos opositores ao seu governo e ao governo do Estado da Bahia, solicitou do governador uma companhia de soldados, a fim de confrontá-los. Esta luta durou nove dias. No final, o Coronel João Duque saiu vitorioso, sendo eleito tempos depois Intendente, cargo que ocupou até 1922. Este conflito tem um celebre documento escrito por Rui Barbosa ao presidente da República, o Sr. Rodrigues Alves, onde ele relata as atrocidades cometidas pelo Sr. Josefino Moreira Castro contra a oposição e a população de Carinhanha, e a total omissão do Governo da Bahia em relação ao conflito.
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Durante a entrevista, o Sr. Osmhar leu o documento que se encontra no livro Obras completas de Rui Barbosa, volume 46, tombo 03 de 1919, causando um conflito de opiniões sobre o Coronel, pois outras pessoas dizem que João Duque fora um atraso para a História de Carinhanha. Diante do depoimento de Osmar, entretanto, são percebíveis os motivos desta rejeição, pois a luta pelo poder em Carinhanha perpassava o comando do município, tendo uma conotação muito maior que adentrava o governo do estado, que era governado por Antônio Muniz Sodré de Aragão, que tinha como aliado em nossa cidade o Sr. Josefino Moreira Castro; este, um dos grandes motivos da luta armada entre os soldados e os jagunços do Coronel João Duque. Em 1928, acontece o segundo fato envolvendo o Cel. João Duque. O Cel. João Alkimim ganhou o pleito para Intendência, mas não assumiu, pois aconteceu novamente um levante armado que durou dois dias de intenso tiroteio, vindo o Sr. João Alkmim e sua família a se afugentarem na casa dos Correios e Telégrafos, atual casa da família do Sr. Edilson, localizada na Praça da Matriz defronte à Igreja de São José.
João Duque ao lado do Cônego Júlio em batizado na fazenda Pajeú, 1923
Depois do ocorrido, João Alkmim foi expulso da cidade com a promessa de nunca mais colocar seus pés em Carinhanha. O Coronel João Duque foi empossado Intendente pela segunda vez, e, durante seu segundo mandato, recebe no município, na década de 30, o jovem estudante Carlos Lacerda, a quem disse a célebre frase “Em política, não há assassinato, mas sim remoção de obstáculos”. No fim da década de 30, João Duque foi deposto pelo governador da Bahia, junto com outros coronéis da região. Anos depois veio a falecer. Sobre a sua morte, dizem que foi pela desilusão na política. Depois da morte de João Duque, sua esposa, Ana Joaquina Duque, teve de vender a casa para o poder público municipal, para pagar algumas dívidas deixadas pelo Coronel junto ao município. Sendo comprada pela Sra. Ilda Fonseca, tempo que funcionou ali seu hotel, durante muitos anos. Em 1964, a Diocese de Bom Jesus da Lapa compra a casa de Sr. Ilda Fonseca e, a partir daí a casa fica sendo a morada oficial dos padres da Paroquia de São José de Carinhanha, tendo como seu primeiro morador o Padre Pedro Moura, anos depois, Padre Wanderley de França Barbosa, Padre José de Souza Evangelista (que escreveu um livro sobre a História de Carinhanha), Padre Edmir José da Silva, Padre Getúlio Mota Grossa, Hélio Divino Stival e Padre Wander Ferreira, que era o Pároco, quando, novamente, a casa foi vendida para o Sr. Edvardes Araújo Cardoso, no dia 05 de novembro de 2007. Atualmente, encontra-se fechada, mas sem duvida é um dos maiores patrimônios da nossa cidade, e de grande valor histórico para a população de Carinhanha. O imóvel se encontra em bom estado de conservação. Em alguns pontos necessita de reparos para preservar a estrutura. O imóvel preserva sua estrutura original. Quase todas as paredes são de adobe, só não é a parte posterior da casa, que foi construída depois, já de tijolos. A fachada tem características dos imóveis do tempo colonial. A cor da casa pintada na cor branca, os 02 portais e 06 janelas grandiosos. Na calçada, ainda há marcas de sua construção original.
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Barulhos de João Duque: Vielas As Ruas conhecidas atualmente por 21 de Abril, Muniz Sodré e Travessa 21 de Abril surgiram no início do século de XIX, como caminhos que levavam ao centro da cidade, onde se localiza a Igreja de São José. Estas ruas, inicialmente, foram ocupadas pelas famílias nobres da cidade que começa a crescer. Naquela época, como ainda não existiam carros, somente carros de boi − um dos únicos meios de transporte da população numa época em que a cidade era basicamente agrícola e se limitava a estas ruas − a área que ficava ao redor da Igreja Matriz de São José é formada por vielas cujo espaço comporta apenas a passagem de pessoas, carroças e animais de montaria e tração. Ali também funcionou, por muito tempo, alguns pontos comercias, entre eles o do Sr. José Alves de Araújo, popularmente conhecido como Zé Preto, que tinha, na Rua 21 de Abril, um grande comércio de tecidos e outros produtos. O principal fato histórico, entretanto, que se passou naquelas pequenas vielas foi o conflito armado denominado de “Barulhos de João Duque”, no ano de 1919. Durante três dias, os jagunços entrincheirados naquele local travaram um grande tiroteio de que se encontram marcas até hoje, nas paredes e nas janelas da Casa do Sr. José Alves de Araújo, atual casa da professora Mercedes de Araújo, na Rua 21 de Abril. O Pe. José Evangelista de Souza, em seu Coronéis do Médio São Francisco: fatos e histórias, conta que O povo ficou assombrado com aquela cavalaria, aquela jagunçama invadindo a cidade! Só cavaleiros de chapéu na cabeça, lenço amarrado no pescoço, carabina a tiracolo, facão na montaria, embornal de munição; gritando palavrão e atirando pro ar –assustou todo mundo! João Duque e Alvino Pinto comandavam os dois pelotões. A polícia resistiu e era fogo de lá e fogo de cá. Só se via homem pulando pelas janelas dos fundos do quintal, mulheres fugindo com os meninos na cadeira e a roupa do corpo. Um inferno de tiroteio e fedor de pólvora queimada2.
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Rua 21 de abril e Travessa 21 de abril
Este embate aconteceu com maior força nessa Travessa 21 de Abril, denominada, por muito tempo, por Beco do Pega; afinal, foi ali que o conflito chegou ao seu apogeu. As pessoas lembram que, durante doze dias, os moradores daquelas ruas não podiam sair de casa. A solução encontrada foi furar as paredes laterais das casas até chegar à última casa da rua, a qual dava acesso ao rio, onde pegavam canoas e barcos para fugirem do conflito. A Rua Muniz Sodré e a 21 de Abril eram consideradas caminhos que levavam ao rio, lembrando que nos primeiros séculos da nossa cidade ainda não existia água encanada, e, por este motivo, as pessoas buscavam construir suas casas o mais próximo possível do rio. Era um trajeto difícil, pois naquele tempo o rio tinha altos barrancos que dificultavam o acesso para realizar seus afazeres domésticos: lavar roupa, pegar água para as necessidades diárias etc. Este era trabalho realizado pelas mulheres, visto que a maioria dos homens da cidade, nesta época, trabalhava na roça.
Seu Virgílio de Oliveira Souza Virgílio de Oliveira Souza nasceu no ano de 1924, poucos anos depois do primeiro conflito armado no município de Carinhanha. Filho de José Caetano de Souza Junior e Maria Angélica Oliveira, praticamente não conheceu seu pai, que faleceu antes dele completar um ano de vida, em 1925. Foi criado por sua mãe e por seus avós. Aprendeu desde cedo o ofício de fazendeiro com seu avó, o Coronel Virgílio José de Oliveira, do qual herdou o nome. Após o falecimento de seu avó, em 1943, começou a tomar conta das terras da família, e cada vez mais via que este era o caminho que devia seguir durante toda a sua vida. Se casa, pela primeira vez, em 1948, com a senhora Neuza Botelho Nonato, que faleceu um ano depois, deixando, deste casamento, uma filha. Ainda esse ano, sua avó, Angélica Maria de Oliveira, vem a falecer. Em 1951, casa-se novamente com Sra. Dejanira Alkmim de Oliveira. Com a ela, Seu Virgílio teve 14 filhos, sendo 09 homens e 05 mulheres. Na década de 50, inicia-se a construção de seu patrimônio comprando dos outros herdeiros a sua parte na casa em que sua mãe, Maria Angélica de Oliveira, continuou morando por muitos anos até quando veio a falecer, no ano de 1970. Em 1953, compra a casa ao lado, de propriedade dos herdeiros do Sr. João Fernandes de Castro, no valor de 12 mil cruzeiros. A casa foi construída na década de 1930, pelo Sr. João. Ela preserva uma arquitetura Imperial em sua fachada e sua estrutura, com suas quatro grandes janelas totalmente preservadas. O ponto comercial que ainda há na casa apresenta toda rusticidade daquela época: os detalhes das portas, da trava do cadeado, do madeiramento sem beneficiamento. Disse o Sr. Virgílio que ali funcionava a venda do Sr. João e que quase todos os dias ele ia até lá comprar querosene para abastecer os candeeiros da casa da fazenda. A casa foi doada pelo Sr. Virgílio ao sei filho Alexandre Alkmim Oliveira. Na década de 70, ele já havia comprado de seus tios o restante das terras da fazenda de seu avô, tornando-se o único proprietário das terras da fazenda Retiro. Com o falecimento de sua mãe, a casa ficou fechada por alguns anos, sendo emprestada a seu motorista Américo de Oliveira, que morou ali até meados da década de 1980. Nesta época, ele já residia na casa localizada na Praça da J.J. Seabra, mas, realmente, o lugar onde gostava de estar era em sua fazenda, com sua criação e bois, herança que alguns de seus filhos também
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acolheram. Em 2003, no dia 23 de dezembro, falece sua segunda esposa, que tinha sido sua companheira por mais de cinquenta anos. Na fala de seu Virgílio, falando de sua esposa, de quem carrega ainda muito amor e muitas lembranças, é notório um sentimento muito bonito por Dona Dejanira. Foi em sua fazenda que ele encontrou forças para continuar a vida, afinal, seus filhos já estavam todos criados e com suas vidas encaminhadas. Ele afirma que sempre gostou da roça, mas nunca para pegar no pesado, sempre gostou de mandar, de dar as instruções do que deveria ser feito na fazenda. E foi dessa prática que seus filhos sempre reclamaram. “Se enxada fosse bom não era tão barata”, fala para retrucá-los. Seu Virgílio considera que o homem, para ser alguém na vida, deve saber usar sua inteligência aliada à sua força, pois aqueles que só usam a força estão fadados a ser ninguém nesta vida. Por isso, “devemos sempre usar nossa inteligência, nossa
capacidade de pensar.” Seu Virgílio, hoje, com seus 88 anos de vida, forte e sereno, passa a maior parte do tempo em sua fazenda, paixão adquirida desde criança, quando seguia os passos de seu avô, o Coronel Virgílio José de Oliveira.
A Casa É pelos fatos passados que podemos melhor entender os caminhos construídos por um povo. Conhecendo estes caminhos, o popular e o singelo se tornam a verdadeira história a ser contada. Não são histórias fictícias, são como aquelas histórias que vêm sendo contadas há várias gerações com o sonoro e singelo ressoar de versos, cantigas e lendas que o tempo não é capaz de apagar. De acordo com os diálogos com seu Virgílio de Oliveira, em conversa sobre a casa localizada na Rua 2 de Julho, que há 98 anos é de propriedade de sua família, mas que foi construída por uma senhora conhecida por Juliana Rica, aproximadamente, entre 1850 e 1860, funcionava ali uma loja de tecidos, motivo daquelas cinco grandes e imponentes portas preservadas até hoje. Dizem que a Sra. Juliana Rica fora uma cortesã, sendo este o motivo do seu sobrenome Rica. Naquela época, os tecidos da loja eram trazidos no lombo dos jumentos, enrolados em couro de boi. Devia ser uma grande jornada a chegada destes tecidos até a nossa cidade. Com o tempo, a casa foi vendida para o Coronel Aristides Juvenal da Costa, grande fazendeiro da época, que morou, por muitos anos, naquela casa, e tinha ali sua morada quando estava na cidade. O Sr. Virgílio contou uma história que ouviu de seu avó sobre o Coronel Aristides. Conta ele que naquela época já existia rivalidade política em nossa cidade. Tinha na cidade um homem chamado por Zé da Raimunda, conversador. Era da situação, lado oposto do Coronel. Por isso, o Coronel não gostava do sujeito, e prometeu que mesmo que fosse depois da sua morte iria colocá-lo na cadeia, e só não fazia aquilo naquele momento porque o poder estava na mão de adversários políticos. Quem contou esta história ao avó de Seu Virgílio foi um pedreiro já de idade chamado Zé Pedreiro. O Coronel, já avançado na idade e muito doente, disse ao seu medico: “ô, Sr. Josefino
Moreira de Castro, quero que o senhor me dê uma conta que meus imóveis não dê pra pagar, para não deixar nada pra meus parentes”. Contam que o Coronel tinha em sua casa um relógio de ouro muito valioso que ficava na cabeceira de sua cama. Ficava ali pra não esquecer a hora de tomar os remédios receitados pelo seu médico. Uma noite, ele vem a falecer. No outro dia, passa cedo na frente da casa o Zé da Raimunda. Vendo a porta aberta, entrou para espiar. Quando ele vai saindo da casa do Coronel, o Zé Pedreiro passa, e pergunta: “Zé, o quê que cê faz aí?”. Ao que ele respondeu, “O Coronel Aristides morreu”.
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Mandaram chamar o Dr. Josefino para verificar se realmente ele estava morto. Ele notou que não estava na parede do quarto o relógio de ouro do Coronel, e começou a investigar, perguntado a um e outro quem tinha o passado por aí. E Zé Pedreiro lembrou que tinha visto Zé da Raimunda sair da casa bem cedo, no dia da morte do Coronel. E, assim, o Dr. Josefino colocou a polícia no encalço dele até o prender. Depois de lhe intimarem, ele se entrega dizendo que o relógio estava enterrado no bananal no fundo de sua casa, e Zé da Raimunda foi preso. Estava cumprida a promessa do Coronel Aristides. Com a morte do Coronel, a Casa foi leiloada e arrematada pelo Coronel Virgílio José de Oliveira, por quatro contos de reis, no dia 27 de outubro de 1914. Em relação à sua patente de coronel, conta seu Virgílio que era costume dos grandes fazendeiros comprar patentes do exército, e aqueles que a possuíam eram altamente respeitados por todos como uma pessoa de grande poder. O Coronel Virgílio José de Oliveira adquiriu a casa para ser morada de sua família, mas passava grande parte de seu tempo em sua grande fazenda no
Retiro, às margens do Rio Carinhanha. Com seu falecimento, em 1943, alguns anos depois a sua esposa, a Sra. Angélica Maria de Oliveira, dividiu todos os bens aos seus quatro herdeiros, incluído aí a mãe de Sr. Virgílio, a Sra. Maria Angélica de Oliveira. A casa, ainda hoje, conserva características da época em que fora comprada pelo Sr. Virgílio José. Ao sa ver, logo percebemos que esta é uma construção feita de adobe. Ou seja, construída através de uma prática rudimentar da época, alvenarias feitas em processo natural. Sua parte frontal possui cinco portas e três janelas, além de uma calçada alta composta por três degraus. Seu interior ainda guarda resquícios de como era ali há cem anos. Logo na entrada da casa, nos deparamos com uma pequena escada feita de madeira e sem nenhum acabamento. Entre os três degraus que nela existem, podemos ver os formatos dos tijolos e do adobe que ali foram usados. Seu espaço interno é muito amplo, possuindo vários compartimentos.
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Do lado externo da casa, notamos com mais evidência o seu tempo de existência. O quintal possui uma parte toda revestida de tijolos usados nos tempos remotos, e com característica artesanal. E é dessa área que conseguimos visualizar todo o telhado da casa, ainda feito de telhas, bem como o madeiramento feito sem o acabamento industrial com que grande parte das casas da nossa região é feita. Quando pensamos nas histórias que existiram nesse lugar tão antigo, logo compreendemos a importância de uma casa para a vida de uma família ou de uma pessoa, de modo bem particular. Uma vez que é nela que estão nossas lembranças. Enfim, é em nossa casa que estão as experiências quanto vivemos, e somente quem as vivenciou pode senti-las em toda sua plenitude. A memória está num plano em que a linguagem não alcança. Enfim, a casa onde começou a história da família de Sr. Virgílio, hoje pertence ao seu filho Jerônimo Alkmim de Oliveira.
Carinhanhas É preciso entender o contexto histórico em que se deu a fundação da sociedade Carinhanhense. A história da cidade gira em torno de poucas famílias. Mas e o restante do povo que aqui existia? Também ele não participou desta história? Sabemos que a sociedade do final do século XIX e início do século XX ainda carregava uma mácula em relação aos negros e aos mais humildes; vejamos as festas populares da nossa cidade como, por exemplo, a Festa do Divino em suas primeiras edições: somente as famílias consideradas nobres participavam da escolha do Imperador e dos Reis e Rainhas dos festejos; Às famílias mais humildes era reservada somente a participação nas missas. E carnaval? Dos blocos existentes só participavam as “ditas famílias”. A festa acontecia nas ruas e nos clubes fechados. Entre eles, o nosso conhecido Clube Recreativo 2 de Julho, que funcionava onde hoje se localizam as casas do Banco do Brasil, na Rua 07 de Setembro. Dona Ivonete Lima Menezes lembra que, durante o carnaval, existia um bloco denominado bloco das prostitutas e o cortejo do bloco tradicional. Este não podia passar pelas mesmas ruas onde passava o bloco das
prostitutas. Lembrou também que, das disputas das rainhas do carnaval, só participavam as filhas dessas famílias (ditas) “mais nobres” e a maioria dos cupons era comprado pelos homens mais influentes, que realmente eram os que decidiam a disputa, pois era quem detinham maior capital. Há muitos pontos de interrogação em relação à história cultural e social da cidade. As manifestações culturais que ainda vivenciamos, por exemplo, são oriundas das famílias mais humildes e principalmente das de origem negra, que são remanescentes dos escravos que aqui moravam. Devemos lembrar desta história construída da confluência e do entrechoque das diversas classes que, juntas, fizeram de Carinhanha isto que ela é hoje.
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Heróis, Heroínas
entre outras Histórias “Sou só um sertanejo, nessas altas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde do começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia – que também diziam. Tempo saudoso!” (João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)
Uma cidade não se constrói apenas de ruas e de casas. Também nunca uma só pessoa constrói uma cidade. A história viciada dos Heróis esquece os pequenos heróis do cotidiano. Honorato Ribeiro, em seu livro História de Carinhanha, diz que o mutirão é uma prática comum da cidade que bem caracteriza o instinto de sociabilidade do sertanejo brasileiro; consiste na celebração prestada por todos os lavradores da circunvizinhança a um companheiro, a fim de que a derrubada da área do mato onde fará sua lavoura fique pronta para o plantio. Assim acontece na zona urbana com os pedreiros e carpinteiros, nas construções das casas dos colegas pobres e humildes. É uma prática muito racional de auxílio mútuo chegando a reunir centenas de lavradores, que acorrem para o auxílio do companheiro. O mutirão é motivo para festas à noite, nas quais come-se, dança-se e bebe-se ao som da oitobaixos até o alvorecer do novo dia3.
Assim é que, descendo por este lado da cidade, encontra-se um cardume de homens trabalhando no cais. Saímos daqui e para cá voltamos. Pescadores e outros homens do rio conversavam, sentados, uns no parapeito do cais, outros na escadaria, ainda outros em pé, tranquilamente esquecidos. As chapas dos mastros, a culatra das peças, varais de escotilha, tudo quanto é aço e metal amarelo reluz fortemente, encandeando a vista. Que barcos seriam esses? Existiram? Existiriam? Donde vieram? Será o quinto império do vapor? Um vento mais forte faz gemer toda a mastreação, como se ela fosse se desprender toda, o pano bate com força um no outro, chocam-se cabos, ouve-se o cachoeirar da água ao longe. Volta o sossego e continua a
pasmaceira, o tédio, a calmaria sem fim convertidos em bocejos e na preguiça da sesta. Parecem barcos vindos de outras eras, de outras épocas. Alguém com uma viola entoando uma canção que falava do vapor. Era Vavá Cunha, cantando suas saudades do vapor.
Hoje não existem mais aquelas viagens Que a gente fazia muito tempo atrás Pendurada em um vapor olhando as paisagens Esperando a tarde pra ver o sol se pôr. Me lembro de você que viajava Período de férias, para o interior Levei alguns parentes e amigos e tudo aquilo que por lá ficou. Em cada morto uma multidão, em cada rosto uma expressão de tristeza e alegria Outro sorrindo quando alguém chegava, outro chorando quando alguém partia. Chegando em Juazeiro, apertava o coração apito anunciava o final da excursão. E a gente voltava pra casa trazendo no peito a saudade de alguém Entre beijos , sorrisos e abraços despedia dizendo ‘até o ano que vem!’. Nunca mais nos encontramos, tudo aquilo acabou Só ficou saudade, não existe mais vapor. Misturavam-se as épocas, pessoas, histórias. Ele buscava entender, mas ele era o outro.
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Na construção do cais, no calçamento da rua Duque de Caxias, na construção da Praça da matriz, havia trabalho para todos. Havia os que carregavam areia e água, os que amassavam a cal; outros mais rijos, sóbrios e valentes, reluziam de suor britando pedra, guindando material aos pedreiros, ou conduzindo às costas grossos pedaços de madeira. Davam conta da tarefa uns gemendo, outros cantando, velhas canções, trovas. O céu impassível, sempre límpido e azul, deslumbrante de luz. Orquestrando essas vozes, esses tons, as pedras e madeiras rugiam, transformando-se aos dentes dos instrumentos de trabalho, aos golpes dos martelos, ao comando dos mestres e feitores, canções de trabalho entoadas pela boca daqueles que construíam o futuro. Assobios, gritos, gargalhadas rasgadas até o cair da tarde, quando essa multidão de operários se agrupava em torno dos feitores e desfilava, depositando cada ferramenta, cada vasilhame em seu devido lugar. Cansados, suados, dispersavam-se, dividindo-se em grupos, seguindo várias direções, voltando pra casa, desdobrando-se na curva dos caminhos, nas forquilhas das encruzilhadas, até sumirem como sombras desgarradas. A história dos grandes, a história que vem nos livros, a história que ensinam na escola, história oficial, conta a história daqueles ditos mais importantes, dos mais ricos. Eles são importantes? Claro, mas eles não são os únicos. Há muita gente importante que sequer é lembrada nessa grande história. Na história dos grandes, muitos não têm vez, nem voz, nem existência. Nestas outras histórias, cada um deles é um personagem principal.
Dedicatória às mulheres Esse espaço dedicaremos às mulheres, à singularidade da força desse gênero. Em Carinhanha, as mulheres parecem ter uma força especial, ímpar. E quero começar essa história, falando de uma das representantes dessa força singular: Irene, ou melhor, Dona Irene.
“Escrever sobre Carinhanha e não falar de Irene não fez nada!” era o que Darinha sempre falava. Durante toda a pesquisa, Darinha nos prestou um grande auxílio, abrindo as portas do seu hotel para fazermos reuniões e também abrindo outras portas, nos conduzindo a pessoas importantes para a pesquisa que culmina neste livro. E foi nas conversas com ela que conhecemos um pouco a respeito da pessoa de Dona Irene e das suas histórias.
Dona Irene participava do grupo de mulheres e, nas reuniões, ela estava sempre dividindo sua rotina com as companheiras, contando as histórias do dia a dia. Numa dessas, ela contou que arrumou as roupas sujas para lavar, foi para o seu quintal e começou a tarefa. Entre uma peça e outra, percebeu que havia esquecido suas roupas íntimas sujas em seu quarto. Então solicitou a seu esposo que as pegasse para ela. Para sua surpresa, o esposo trouxe suas calcinhas dependuradas num cabo de vassoura. Ela se sentiu afrontada e num gesto rápido pegou as peças e esfregou na cara do marido dizendo:
“Tenha vergonha! Você usou, abusou e agora traz minhas calcinhas penduradas num cabo de vassouras!” Dizer que ela era uma mulher afrente do seu tempo é lugar comum. O que podemos dizer é que ela não apenas assistiu as transformações políticas e sociais de sua cidade, ela contribui para essas mudanças. É preciso dizer também que ela faz parte da memória coletiva de Carinhanha. Infelizmente, durante o tempo da pesquisa para realizar esse livro, Dona Irene esteve em Salvador e não pudemos conversar diretamente com ela. Lamentamos muito não ter visto seu rosto, sua cor, sua voz e sua força pessoalmente. Dedicamos esta seção a essa grande mulher.
Dona Irene, saudades... Existe um momento na vida em que somos obrigados a nos despedir eternamente de uma pessoa. Às vezes, pai, mãe, tio, filho, neto, um amigo. Existem momentos em nossa vida em que a dor invade o nosso peito como uma lança que nos atravessa, como se houvesse arrancado de nós um pedaço. Uma dor que somente o tempo é capaz de amenizar. Aos 24 de junho de 2012, Carinhanha sentiu essa dor, pois perdera uma cidadã que soubera exercer com excelência sua missão. Irene França dos Santos, Dona Irene. No rosto do povo carinhanhense se percebia o semblante de tristeza. Como Jesus, Maria e Marta choraram a perda de Lázaro, hoje também a cidade chora sua perda. Dona Irene nasceu no dia 03 de maio de 1933, em Cocos, quando ainda era município de Carinhanha, não só por isso, mas também por isso, ela é
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cidadã carinhanhense. Veio para cidade ainda pequena. Moça negra e pobre, não teve a oportunidade de ir à escola, porém, não perdeu a esperança e * O Movimento aprendeu a ler e escrever no MOBRAL*, quando já casada com seu Gabriel Brasileiro de Barbosa dos Santos.
Alfabetização (MOBRAL) foi um projeto do governo federal, criado pela Lei n°5.379, de 15 de dezembro de 1867, e propunha a alfabetização funcional de jovens e adultos.
“Pelo batismo, recebi uma missão: vou trabalhar pelo reino do Senhor”, assim diz a canção, e assim também fez Dona Irene da sua vida,
crente que recebera uma missão no batismo, dedicou sua vida à evangelização. Como Cristã Católica, foi ministra extraordinária da Eucaristia, esteve junta à iniciação do Clube de Mães Santa Izabel, zeladora da igreja e do Apostolado da Oração do Sagrado Coração de Jesus. No Movimento de Mulheres, juntouse com outras mulheres para lutar pelos direitos feministas, onde cantava sempre:
Olê Mariê, olê Mariá, Mulher sai dessa cozinha Vem ocupar seu lugar. Jamais deixou de zelar do Centro Educacional Dona Carmen (CEDOCA) e da Santa Cruz. No dia do seu velório, as mulheres companheiras de luta disseram: “No
Evangelho deixa claro que a semente que caiu na terra boa deu fruto que vingou e cresceu, produzindo a trinta, a sessenta e até cem por um. E Dona Irene foi esse viveiro, essa sementeira. Participando de movimentos populares, (...) foi um grande viveiro que protegeu suas sementes e plantas, para crescer e produzir bons frutos”. Dona Irene não teve filhos, mas de coração tão grande não se esquivou de zelar por irmãos e sobrinhos como seus verdadeiros filhos; também aqueles mais necessitados, a quem Dona Irene voltava sempre seu olhar. Não teve medo. Enfrentou as críticas e, com muita humildade, zelou de Jota, Manuel de Zé de Paulo, Joaquim Moreira, Agostinho e tantos outros que recebera a mão dessa mulher como ajuda.
Como diz Honorato Ribeiro dos Santos, Dona Irene “soubera ouvir o
chamado de Cristo para assistir aos necessitados enfermos. Toda cidade conhece e respeita a sua figura dinâmica e ativa. Uma cidadã que soubera conquistar o seu espaço e ser útil para o próximo”. O historiador, em sua Biografia de Carinhanha, descreve um fato marcante. Conta ele que um homem, certa vez, foi encontrado no Sangradouro à beira do Rio São Francisco. Parecia estar morto. Não estava. Estava todo cheio de ferida e suas nádegas estavam em chagas vivas e mau cheiro. Chamaram Dona Irene, que foi correndo às pressas para ver quem seria aquele homem caído ali naquele estado. Ela chamou algumas companheiras e o levaram para a Casa do Ancião. Lá, todos os dias ela cuidava dele. Parece que era câncer, pois Irene, quando fazia curativo, tirava pedaços de carne que soltavam das feridas. Ela entrava e não sentia nojo, nem medo. Chegava em casa, tomava o seu banho e almoçava com seu esposo, comendo com apetite, e ainda contando ao marido, enquanto comia, o sofrimento do pobre do homem. Não sabia de onde ele era, nem seu nome, pois não tinha documentos. Cuidou dele até o dia que ele morreu. Não se pode deixar de falar do seu sonho pela democracia e por uma política libertadora, junto ao Partido dos Trabalhadores, sempre lutando por uma Carinhanha melhor. Pelo mesmo partido, foi a primeira candidata à vereadora negra do município. E, no governo deste partido, em 2005, sem formação acadêmica, só com os conhecimentos da vida, foi a primeira Secretária de Proteção Social de Carinhanha. Dona Irene foi mulher guerreira, de uma humildade enorme, e, acima de tudo, de amor incondicional ao próximo. Quem a conheceu lembrará sempre do seu sorriso, de suas brincadeiras e de seus ensinamentos.
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Aqueles que são crentes na Ressurreição e na Vida Eterna, independente de religião, confiemos que Dona Irene estará sempre presente, seja nos hospitais ou nas periferias, no Grupo dos Idosos ou no Clube de Mães, nas missas, nos ofícios ou na adoração, na Romaria da Terra e das Águas, no samba e ou na encomendação, na política e no nosso coração eternamente Dona Irene.
O Movimento de Mulheres: a História Feminina de Carinhanha Quando as pessoas se dão conta de sua força interior, elas abrem a porta para se darem conta das forças coletivas. A partir do momento em que as mulheres vão reescrevendo a sua história e se posicionado como sexo forte, elas vão interferindo no curso da história de sua cidade e reescrevendo, assim, a sua própria história. Podemos citar a força feminina na luta por garantir a justiça quando agricultores foram presos injustamente, por garantir os direitos humanos quando um homem foi assassinado na cadeia pública, por garantir a articulação junto às instâncias religiosas para que se conseguisse trazer para a cidade a Comissão dos Direitos Humanos para apurar os fatos. Elas também se doaram em episódios como a luta pela terra em Rio da Rãs, também se posicionaram na criação de partidos políticos até o ponto alto disso tudo: a eleição de uma mulher para líder maior do município. Essa história é história de coragem e, ao mesmo tempo, de delicadeza, quando lembramos que, para custear muita das ações do movimento, elas bordaram, costuraram, venderam panos de prato. O que leremos agora é apenas uma breve entrevista com algumas das mulheres que carregam consigo as memórias desse grande movimento, dessas mulheres que têm as vidas marcadas pelo fato de serem mulheres, mães e ativistas. Essa entrevista é fruto de um encontro no Hotel de Darinha. Aqui, pedimos licença para fazer um agradecimento a essa mulher que tivemos o prazer de conhecer, em cujo hotel tivemos a honra de nos hospedar, de cujas histórias tivemos a sorte de desfrutar. Precisamos lhe dizer, Darinha, que aprendemos muito com você, nas conversas, longas e ricas conversas, e que nutrimos, em nós, uma admiração profunda por sua energia feminina; energia essa que é mais que carnal, é espiritual e que parece fazer parte de todas vocês que fazem a História Feminina de Carinhanha.
Simone: Como começou o Movimento de Mulheres? De onde partiu essa iniciativa? Irmã Vanice: Sou religiosa e cheguei em Carinhanha em 1982. Eu estou desde esse momento. A melhor coisa que fiz foi ter vindo e ter ficado nessa cidade. Não se pode falar das mulheres em Carinhanha sem mencionar o papel da Igreja nessa caminhada. Antes de contar essa história, eu queria contar que todo esse grupo que está aqui foi do Clube de Mães, que foi anterior ao PT (Partido dos Trabalhadores) e anterior ao Movimento Político de Mulheres. Nossa congregação chegou aqui em 1973. Tem uma irmã que veio com esse grupo. Eu não vim com esse grupo. Essa irmã, ela era enfermeira e se interessou muito pelas mulheres. Então essa irmã foi quem criou o Clube de Mães, a Irmã Catarina. De origem Alemã, ela, em especial, se interessou pela situação das mulheres em Carinhanha. Nesse sentido, Irmã Catarina criou o Clube para ajudar na vida dessas mulheres. Muitas foram as ações do Clube: profissionalização das mulheres... ainda na casa paroquial foram criados cursos de corte e costura, música, datilografia. Foi instalada uma máquina de tear para tratar o algodão cru... Ela também teve um olhar voltado para saúde da mulher. Irmã Catarina, por ser enfermeira, se preocupava com a saúde das mulheres. O Clube de Mães atuou nas necessidades básicas mais fragilizadas que Irmã Catarina conseguiu identificar. Com o tempo, se fortaleceu e foi chegando noutros estágios, virando depois um movimento político, o Movimento de Mulheres. O Clube de Mães não se encerrou para se criar o movimento, mas criou as condições para que as mulheres se posicionassem e se organizassem politicamente diante da sociedade. Maria Raimunda: Ela criou aquela casa de parto e eu aprendi a aplicar injeção. Foi com ela, com Irmã Catarina, a primeira vez que eu vi um parto na minha vida. Foi com ela. Raimunda: Nós tínhamos o hábito de registrar em papel, mas no diaa-dia a gente vai lembrando de fatos, do teatro, da câmara de vereadores, das movimentações, de tudo né? Das companheiras, dos advogados que trazíamos de fora, porque determinadas companheiras foram para Talibã, injustamente de serviço. Então, o movimento de mulheres tem uma história, e tem história, história, assim, de justiça social muito grande, história que passa despercebida. É claro que o movimento precisa de festa, faz festa, mas também faz capacitação, seminário. Tudo isso. A gente trazia gente de Brasília, sem ter estrada, e a gente trazia pra cá, pra nos auxiliar. Então, eu gostaria de deixar aqui quem já foi presidente, Euvira que é atual, hoje, Luísa foi duas vezes.
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Irmã Vanice: Veio do Rio grande do Sul, chegou até Carinhanha em missão, Missão Estrela, em 1982. Euvira: Meu nome é Euvira do Nascimento dos Santos. Eu sou a atual presidente do movimento de mulheres. Já fui anteriormente também. Bem, o movimento de mulheres não começou, assim, já um movimento. Antes, tinham as reuniões, os encontros de mulheres que a gente fazia uma vez por ano. Então, esse encontro era pela igreja e quem estava à frente do encontro era uma irmã, a irmã Vanice. Tinha uma equipe que coordenava. Era eu, Vanice e Nilce Mangabeira, que já é falecida. Aí, quando tinha um encontro, ela nos chamava para o encontro de mulheres e era assessorado por uma jovem de Santa Maria das Vitórias chamada Dejanete. Ela trabalhava na Comissão Pastoral da Terra (CPT), e sempre assessorava o encontro de mulheres. Com a chegada de uma senhora, já nos anos de 1987, por aí, foi quando se pensou em criar o movimento de mulheres. Os encontros de mulheres sempre aconteciam de 1987 pra cá, e o movimento começou em 1993. Foram entregues a outras pessoas, desde que mudou o nome. Cada encontro tinha um tema, “Mulher na família”, “mulher...” − outras vão falar aí. Vou adiantar o que eu estou lembrando. “A mulher na política”, “Política pública para as mulheres”, vários temas. Depois de várias reuniões, encontros, foi tirado a conclusão de criar o movimento, em 1993. De imediato todo mundo concordou. As fundadoras concordavam e estava acertado fundar o movimento de mulheres. Daí, já veio a ideia de chamar uma pessoa, o Vanderlei Franco, pra falar a criação de um estatuto. Ele já foi chamado pra outra reunião e explicou que, depois dessa data, já com o estatuto, podia se chamar Movimento de Mulheres. Ele disse que o movimento era político, não uma política partidária, mas uma política da luta em direito das mulheres. Depois da elaboração do estatuto, eu tenho a lista de todos, porque eu tenho o livro de ata do dia em que se elaborou o estatuto e o dia em que ele foi aprovado. Eu tenho a lista de todas as mulheres que participaram. Logo foi realizada a primeira sessão pra escolher a diretoria. Então, Francisca, a atual prefeita, foi a primeira presidente do Movimento de Mulheres, que já era político. Após o estatuto, Jesulina Marques era a secretária e Jobélia, a tesoureira. Isso eu me lembro muito bem. Simone: Qual o sentimento que a senhora guarda desse tempo de cidade ainda pequena, quase sem acesso, sem estrada, e vocês estarem fazendo esse movimento em defesa das mulheres? Qual o sentimento nisso tudo?
Euvira: Tenho um sentimento de coisa boa. Foi bem realizado. Uma coisa assim que a gente tomou... a amizade, amor das pessoas, conhecimento das pessoas, conhecimento dentro da caminhada que essa caminhada já está sendo muito longa. Então, esse é meu sentimento, um sentimento de prazer, não é um sentimento de abatimento, mas de prazer, de participar, porque eu sou da turma desde o começo e tô aí até hoje. Nunca faltei. Nunca deixei de participar. Nunca fiquei um dia fora, um mês fora, seis meses fora, em todas as reuniões. Tem um grupinho aqui que é constante: Vanice, Raimunda, Belice são constantes nas reuniões. Temos as reuniões mensais e, quando têm as reuniões, elas sempre estão presentes. É um grupo bem assim. Mercedes: Meu nome é Mercedes. Filha mesmo de Carinhanha. Nasci e me criei aqui. Sou professora aposentada, já tem uns aninhos já, e minha participação, assim, era só a participação nos grupos das reuniões, que começaram com a chegada das irmãs. Eu, toda vida, fui de dentro da igreja. Tá certo! Com a participação, eu estava sempre presente nas caminhadas, dos movimentos que tinha. Isso foi um experiência pra mim, porque sou uma pessoa tímida, tímida até onde não pode mais. Essa participação até me “bateu” mais, né, me deu mais estímulo, me deu essa experiência na participação. Nunca fui da diretoria, só sou associada e, ultimamente, passei uma temporada em Montes Claros. Me afastei e não continuei. Uns três anos, mais ou menos, que eu não participo. Tô por fora, mas sempre estou nas coisas que precisam, ajudando, e minha participação agora é muito pouca, pouquíssima. Simone: Mas na época em que as senhoras estavam com suas companheiras. Teve algum momento de que a senhora recorda, algum momento de luta marcante que a senhora recorda? Mercedes: Sim. Foi uma caminhada que nós fizemos. Aliás, uma caminhada, uma espécie de dramatização, um ato público que fizemos, quase na frente da prefeitura. E esse ato público me deixou... eu num sei nem explicar... Foi uma transformação política, me deixou muito comovida e me deu mais coragem para participar e coragem para enfrentar e ir em todos os movimentos. Simone: E todas vocês participaram? Foi uma dramatização? Mercedes: Sim. Todas nós aqui participamos. Sim, foi uma dramatização.
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Simone: E como foi? Mercedes: Elas aqui vão me ajudar... Simone: E como esse movimento de mulheres lhe ajudou na sua vida, em casa, como mãe, na sua família, em como criar seus filhos? Lhe deu esse alicerce? Mercedes: Deu. Deu porque antes eu não sabia nem encaminhar, direcionar, entendeu? Então, através da participação dos encontros, das produções de tudo ali, foi clareando, e foi me dando estímulo, porque eu era assim... sem rumo (risos). Então, isso aí me deu muita experiência também. Eu sou outra depois que comecei a participar. Foi uma transformação que tive na minha vida. Raimunda: Meu nome é Raimunda. Eu sou visitadora sanitária pela fundação SESP. Hoje, eu sou enfermeira, né?, mas assim: eu tenho orgulho muito grande, porque ela [a fundação] me deu oportunidade de conhecer a maioria das famílias dentro do meu município, porque eu fazia isso, de casa em casa, por força do meu trabalho e via a situação socioeconômica de cada um. Quando Euvira, Mercedes, falam, a gente, a Igreja, temos uma responsabilidade muito grande na formação. Na minha também, em especial, porque a gente que é da Igreja não foi só do Movimento de Mulheres, foi de Conselho de paróquia, foi catequista. Você entendeu? E a formação política foi muito forte. Então assim, ninguém aqui pertenceu só ao Movimento de Mulheres. Ele pertenceu a outros grupos. As pessoas que não estavam lá no Movimento, estavam lá no grupo de mães, estavam lá em outras coisas... mas todo mundo com formação religiosa na Igreja Católica. E a irmã Vanice, que ia falar desde a catequese . Então, ela era que tava ali, sustentando. Dava um nervosinho com a gente, mas tava lá, falando, falando, falando. Ela que tava mostrando o caminho. Então assim, a formação religiosa foi que deu a formação política e políticopartidária. Não adianta a gente falar assim ó “O Movimento de Mulheres
era um movimento político que dava liberdade de escolha pra cada uma, mas a gente sabia qual era o partido político que tava voltado pro social”, né? Então assim, isso foi muito importante. Dentro dessa
formação, foi que as mulheres vistiram a camisa, botaram a cara lá na rua. Eu fui participar dos conselhos de saúde. Quando ninguém queria, eu e nem irmã Hélia estávamos lá no conselho de saúde. Evanir também participou e, nos períodos mais antigos, o pessoal já “sutacava” a gente assim: “cadê o
colega lá do sindicato? Tá demorando!!” Que era o vice. Aí a gente não tinha medo de ir, a gente criava força pra defender alguém que mais precisasse. A gente vendia panos de pratos, fazendo vaquinha pra ajudar colega pra trazer advogado. Uma dava hospedagem, tinha que pagar a passagem. Então, o movimento de mulheres também foi isso. Fez muito bem e não ajudou só a quem fazia parte do movimento, não, mas a todas as pessoas que estavam fora e precisavam da gente naquele momento. Eu vou passar aqui pra Inês e sei que ela tem muita história pra contar. Inês: Meu nome é Inês. Sou viúva. Ai, eu lembro quando a gente começou o movimento, que ele não era registrado nem nada, a gente saía todas em comemoração, de madrugada. A gente saía na rua batendo lata, não tinha instrumento e saía animando a cidade todinha. Foram muitas lá pelo lado de Seu André. Aí a gente saía batendo lata, fazendo serenata, animando a cidade, né. Depois que partiu pro movimento ser registrado, ficamos mais pra participar das reuniões. Aí a gente foi conhecendo, né? os médico pra fazer exames nas mulheres, porque as mulheres num procuravam nem o médico pra fazer. Ensinava a gente a sentar, porque a gente num sabia nem sentar direito (risos). A gente tinha o hábito de sentar com as pernas abertas (risos). Então, esse movimento ensinou muito pra gente, principalmente a gente de casa, que tinha muita preocupação com os filhos. Os maridos sempre ficavam dizendo “hoje você não vai, hoje você não vai”. “Não, moço, eu vou,
é movimento muito importante”, “pois vai, vai! Lá você vai aprender muita coisa”. Aprendia a me defender daquele machismo que não sabia
nada das coisas, e ficava dizendo que a gente sabia mais do que eles.
Simone: Isso era uma coisa que me chamava mais a atenção, porque, nesse período, a gente sabe que existia muito preconceito. Não que não tenha hoje, né?, mas para um monte de mulheres estar saindo de casa, se reunindo assim com outras mulheres, como vocês lidavam com esse “hoje você não vai, hoje você não vai”? E como vocês conseguiam sair, se reunir? Inês: Acho que não foi só eu não que já foi incomodada, muitas vezes... Mercedes: Eu já pulei a janela muitas vezes! Deixava a janela encostada porque quando eu chegava se a porta tivesse fechada eu entrava pela janela. Quando eu ia pra igreja ele falava que se eu fosse eu podia levar a cama o fogão... eu ia e dizia que não ia levar nada disso e que ainda ia deixar os meninos.
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Inês: É. Eu também. E também não foi só eu, não. Muitas mulheres não deixavam de ir pros movimentos. Darinha: O ato da prefeitura foi o melhor, porque dali abriram-se as portas. Todo mundo se encorajou. Muitos ficaram com vergonha pela coragem que nós tivemos em desafiar um chefão político. Foi um ato assim concreto. Todo mundo falava e vestia. Todo mundo vestido de político. Tinha o vereador. Tinha o prefeito. Tinha o vice. Tinha tudo e, quando a gente falava lá, já sabiam de quem era que estávamos falando, porque foi uma coisa muito concreta. Foi assim. Até muito homens ficaram por detrás, porque viram que, naquele ato, a gente ia apanhar ali, mas quando viram a coragem nossa, foi aí que descobrimos a covardia das autoridades que estavam se sentindo a autoridade. Quando a gente fez todo aquele teatro, aquele movimento concreto, porque estava todo mundo caracterizado das pessoas que andava massacrando o povo da cidade, aí diziam “hoje elas vão apanhar”. Aí os homens não queriam ver as mulheres apanharem. Nesse momento, tocou no coração deles e, quando se olhou pra trás, tinha muitos homens na retaguarda. Mas as mulheres foi que tiveram a coragem de dizer a verdade, tanto pra eles como também para toda a sociedade. Foi dali em adiante que as mulheres deixaram de ter medo. Os homens ficaram com vergonha da covardia que eles tinham de não chegar pra frente. Daí pra frente, as manifestações, as apresentações foram muito mais leves pra gente. As primeiras foram pesadas, mais daí em adiante abriram-se as portas. Simone: E qual foi a data disso? Vocês lembram? Darinha: Foi em 2002. Inês: Eu sei que eu tava viúva havia um ano. Darinha: Aí, depois que passou tudo, falavam assim:“mas vocês tem
é coragem. Num sei como num apanharam. Ai, mas vocês tem é coragem”. Foi a mulherada que falou. E não teve nenhuma represália, não.
Pronto eles perderam as forças. Até então nunca mais tivemos receio de falar o que estávamos achando sobre alguma situação.
Helena: Nasci na roça e lá na roça todo mundo sabe que é muito diferente daqui o comercio. Lá a gente saía com a imagem de Nossa Senhora Aparecida, fazendo novena nas casas. Aí, numa noite, era numa casa, noutra em outra. Aí juntava aquele grupo de mulheres, homem não, era contado os homens que tinham, era só aquela mulherada. Não tinha luz, aí a gente só pegava a quadra da lua. Quando se dizia assim, a lua já está alta, já está clareando. Aí pegava o rumo pra novena. Aí, ia na casa de um e ia pulando na casa de outro, até a lua pegar o tempo de novo. Aí a gente enterrava por ali. Quando foi um dia, choveu uma chuva, uma trovoada. Aí tinha um bocado de gado no meio do pasto e viemos de lá pra cá, montamos nessas vacas (risos) e essas vacas saíram correndo prá lá. Foi uma gritaria. Aí, agora uma vizinha veio dizer: “mas é tropa de mulher vagabunda, num tem o que fazer. Agora
apanha essa imagem. Sai agora bestando nas estradas, de casa em casa, rezando, só bestando, quase caíram nessa noite por causa das vacas que tava no caminho” e quando pensou que não, a mulher lá adoeceu. Aí chegou pra mim, “Ôh, gente, eu quero que vocês vão lá em casa levar a imagem de Nossa Senhora Aparecida, porque eu tava doente e eu fiz uma promessa com ela, e quero que vocês vão rezar”.
Aí, lá se foi nós, rezar na casa dela. A irmã Ivanice, a irmã Catarina sempre faziam reuniões lá no Frota, no coral. Lá naquele tempo, o sindicato dos trabalhadores, ela ia pra lá. A gente avisava os vizinhos. Os vizinhos vinham e elas iam passar como ia ser o partido dos trabalhadores. Agora lá tem agora um homem, que veio participar do encontro, o cunhado do cumpadre Zezim, que veio participar do encontro. Aí, quando voltou o cumpadre Zezim, pulou no cumpadre Joaquim: “mas, pai, o que o senhor foi fazer lá? Cê quer
tomar as terras nossas? Cê tá lá ajudando a tomar nossa terra? Aquele partido dos trabalhadores é tomador de terra dos outros...”. “Não, meu fi. Eu fui lá ver como é que era, mas eu num vou entrar nesse meio não”. “Pois é, pois se o senhor for fazer parte, o senhor pode sair das minhas terras”. Dizia assim porque ele morava na terra do filho, e
ele disse que não queria mais. Aí, agora mexeu, virou pra lá. As coisas foram clareando, melhorando. Aí eu mudei pr’aqui, câmara, prefeitura, câmara de vereador, me procuraram porque eu nunca tinha botado os pés, porque eu morava lá pra roça, ninguém nesse tempo. Os prefeitos que eram de primeiro só recebiam os deles. Só vim conhecer câmara de vereador, prefeitura, depois que existiu o PT. Agora, reunião lá no gabinete dela nós já fizemos com ela.
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A primeira reunião, que foi da cultura, nós fizemos lá no gabinete dela. Eu nunca tinha entrado em prefeitura e trouxemos o dela pra cá, e foi uma coisa que foi melhorando muito, e foi clareando as vistas da gente e a gente já sabe, mais ou menos, qual é o caminho errado e o certo. Neide: Sempre participei do grupo de mulheres. Foi muito bom na época. Foi assim um pouco sofrido, mas foi muito bom, porque a gente saía nas madrugadas, às 5 horas da manhã, muito animadas. A gente animava bastante. Outra coisa que me chamou muito a atenção foi que ensinou muito a gente, de muita gente conhecer e participar porque a gente num tinha conhecimento de nada. Eu vinha da roça. Cheguei aqui eu num sabia de nada, não tinha conhecimento das coisas, e esse movimento fez a gente ficar mais assim por dentro, ter mais coragem, porque a gente começou a participar e a conhecer mais a verdade de onde a gente podia pisar e entrar. É tanto que eu gostei muito e, até hoje, toda vez que tem o dia 8 de março aqui em Carinhanha, como também na roça, tem uma participação nossa como também das outras companheiras. Fazia uma festinha muito boa. Muito bom! Agora é que tá assim: quase a gente num está mais se reunindo, porque também as associadas também tem muita coisa, muitas atividades pra fazer. Só isso que eu vou falar. Tem muita gente pra participar e eu já tô aqui, já. (risos). Raimunda da Silva Montalvão: É quase do início desse movimento que eu participo, e aprendi muita coisa que eu não sabia. Também sou dona de casa, vim da zona rural, aprendi até a cuidar dos filhos, do marido, da saúde. A Raimunda e a Inês ensinaram muito a gente a viver. Não só eu, mas também outras mulheres que num sabia nem tomar um banho, andar bonita. Ensina até a evitar num encher casa de filho sem ter condições. Ela e outras pessoas que passaram por lá. Eu aprendi muito, a conhecer muitas coisinhas, assim, que a gente num conhecia e tudo, enfim. A gente recebeu muitas orientações. Enfrentamos muitas paradas duras aí nas ruas da cidade. Eu mesma tinha filho pequeno, criancinha, dava um jeitinho e ia, participava. Nunca deixei de participar. Simone: e o marido deixava? Raimunda da Silva Montalvão: Às vezes. Tinha dia sim que o marido não deixava, né? Aí a gente saía de casa cedo. Passava o dia fora. Eu mesma enfrentava. Ia. Às vezes, ia até com criança, mas num deixava de participar. Eu gostei muito e aprendi muito a viver no Movimento de Mulheres.
Raimunda: a Raimunda num queria que nós falasse, mas a filha dela, hoje, faz parte do movimento, da diretoria do grupo de mulheres. Quer dizer, deixou herança, né? Raimunda Da Silva Montalvão: É. Eu já tenho uma filha que já faz parte. Eu tenho só duas filhas mulheres. Mas uma já faz parte do Movimento, já participa. Simone: Como é o nome dela? Raimunda Da Silva Montalvão: Tatiane, já é casada, mãe de dois filhos.
Da esquerda para direita: Darinha, Abelite, Inês, Irmã Vanice, Profª. Evany, Dona Helena, Profª. Mercede, Dona Elvira, Raimunda e Maria Raimunda.
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Maria Madalena Villares Barral Foi com muita satisfação que fiz essa entrevista com Dona Hidazélia Villares, sobrinha de Dona Madalena, 69 anos, residente à Avenida Santo Antônio, professora aposentada, porque ela tem um dom de transmitir paz, um jeito todo especial de ser, uma voz suave, cheia de carinho. Segundo Hidazélia, em meados de 1934, o Sr. Antônio Rodrigues Villares, cabo, viúvo, foi destacado para trabalhar em Carinhanha como escrivão na delegacia, trazendo, assim, suas duas filhas, Dona Emília Villares Pinto e Dona Madalena Villares Barral, nascida aos 03 de outubro de 1917, natural de Santa Maria da Vitória, Bahia. Chegando aqui, com seus 17 anos, essa mulher, símbolo de bondade e compaixão, fez deste lugar a sua terra natal, ajudando a todos, sem escolher cor, raça, etnia ou crença. De acordo com a Profa. Hidazélia, Dona Madalena não chegou a se formar, porque o pai teve que tirá-la do colégio interno onde estudava para trazê-la consigo. Mesmo assim, sabia falar e escrever muito bem. Em seu destino, surgiu o Dr. Bráulio Barral, formado em medicina, natural de Salvador, Bahia. Assim que se formou, seu pai lhe ofereceu um consultório todo montado em Salvador, mas ele recusou, dizendo que ia procurar a cidade mais carente que existisse. Queria ajudar as pessoas. Pesquisando, achou Carinhanha, dizendo, então, que viria para cá. Veio de trem até Juazeiro e de Juazeiro para cá veio de vapor. Chegando aqui, montou o seu consultório e não cobrava de quem não podia pagar. Conhecendo Dona Madalena, casaram-se, e desse matrimônio tiveram dez filhos. Permaneceram casados por mais de cinquenta anos. A música tinha um valor inestimável na vida de Dona Madalena. Seu pai foi um grande compositor. Aprendeu a tocar vários instrumentos: flauta, bandolim, banjo, violão, pandeiro e cavaquinho. Sua paixão era o bandolim. Aonde ia, esse instrumento era o seu companheiro inseparável. Dona Madalena aos 17 anos, 1940.
99 Uma mulher autêntica, de garra, dava aula de culinária, de confeitaria em casa, de música no Colégio Educandário São José e em casa para um grupo de pessoas, sem interesse lucrativo. Fazia porque era apaixonada, acreditando que a música é uma das formas mais belas de expressão do ser humano. Era uma pessoa sensível e delicada. Fazia as caridades sem cobrar e nem esperar retribuição, fazia com o coração. Fazia teatro, shows, programas de calouros. Buscava doações, ajuda dos amigos para angariar fundos para fazer o Natal dos pobres, distribuindo cestas básicas e presentes para as crianças carentes.
D. Madalena e Dr. Barral
De personalidade muito forte, em 1968, com o intuito de poder ajudar mais as pessoas carentes, ingressou na política, conseguindo ser eleita a primeira vereadora mulher de Carinhanha. Sendo reeleita em 1972 e em 1974. Nessa época, quem era vereador não recebia ordenado. Um casal invejável. Duas almas caridosas que adotaram Carinhanha e aqui tiveram e criaram os seus filhos, sempre ajudando a todos que batiam à sua porta em busca de auxílio. Já idosos, com os filhos todos criados, ficando sozinhos aqui, resolveram também ir para Salvador, terra natal do Dr. Bráulio. Falecendo este aos 19 dias de abril de 1999, aos 83 anos. Dona Madalena veio a perecer aos 18 dias de dezembro de 2002, aos 85 anos, deixando muitas saudades àqueles que tiveram a honra de conhecê-la. No ano de 2005, na IV Edição da Mostra de Arte e Cultura Popular no Vale do São Francisco, que aconteceu no Encontro das Águas e dos Amigos, prestaram-lhe uma grande homenagem, em memória do ser iluminado que foi. Ser este que contribuiu e engrandeceu a cultura de Carinhanha.
Educandário São José
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A mulher que rezava pra chover D. Maria Santos Farias, conhecida como Maria de Seu Miguelzinho ou Maria da Banda (apelido que levou de um amigo da família porque vivia imitando as músicas da Banda), poderia ser somente mais uma Maria no meio de tantas outras, mais uma dona de casa carregando água do rio na cabeça para o uso da casa. Poderia ser também só mais uma mulher empreendedora como outras, haja vista a fabricação caseira de biscoitos de saquinho para vender com suas amigas, D. Lindalva e D. Estelita. Poderia ser também tão somente mais uma pessoa que gostava de festejos, de organizar e participar, junto com a parteira Sá Niceta, dos Ternos da Barquinha, das Enfermeiras, da Estrela, da Cruz Vermelha, e das Barulhentas. Mas não, Maria da Banda não era só tudo isso, era muito mais. É do Terno das Barulhentas que sua filha Margarida guarda na memória as roupas que a mãe e as outras mulheres vestiam. Ela recorda com saudade, descrevendo em detalhes a saia estampada, a blusa vermelha e o lenço amarrado na cabeça. A filha dessa mulher de muitas faces e ofícios também recorda com emoção as canções das Barulhentas:
As Barulhentas vão marchando, em direção da brincadeira, alegre vão sempre cantando, alegre vamos ver Jesus. Essa mulher de nome Maria poderia ser também mais uma mãe de muitos filhos, afinal foram oito. Das quatro filhas mulheres e dos quatro filhos homens, somente duas filhas se encontram vivas: D. Margarida e D. Alice. A primeira não lembra a data de nascimento e nem de morte da mãe, mas tenta, com ajuda do marido, e em meio às caixas que guardam os documentos antigos, alguma informação a respeito. Mas não houve jeito de achar nem a certidão de nascimento e nem a identidade dessa mulher que faleceu aos 82 anos, e que foi muito além do que tudo isso. Ela tinha um dom − ou seria uma fé especial −, uma coisa rara de se ver. E foi esse dom que a tornou diferente e especialmente lembrada por todos e a trouxe até aqui, às páginas desse livro.
Seu dom consistia, inexplicavelmente, em fazer chover. Dona Maria, religiosa que era, resguardada sua humildade, gostava de rezar ladainhas nas casas das pessoas em épocas de São Pedro, Santo Antônio e nas novenas do Natal. Em suas orações pessoais, reinava a confiança da realização de seus pedidos. Sua fé não movia montanhas, mas fazia cair água do céu quando a desgraça que é a seca assolava Carinhanha.
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Reunida com as crianças (seres puros de coração), saía lavando os cruzeiros, a igreja e os cemitérios. Segundo sua filha Margarida, ela seguia um ritual. “Ajuntava as crianças e ia rezando o Pai Nosso e Ave Maria até a beira do rio, enchia as latinhas de alumínio (latas de óleo), e voltava rezando para molhar os cruzeiros, a frente dos cemitérios e a igreja, cantando”
Senhor Deus, misericórdia, manda chuva por esmola! Somos pecadores morrendo de fome. São Rafael, que morreu lá na Serra, pede Nosso Senhor que nos dê chuva na terra. Chuva na terra por esmola, dai o pão que nos consola. Santa Maria Madalena, pede Nosso Senhor que nos dê chuva na terra. Movida pela fé que lhe acompanhava, ia a pé e rezando junto com outras pessoas até a praia*, sempre ao meio dia, o horário mais quente do sol. Essa * Lugar à beira caminhada sob um sol escaldante era uma espécie de penitência e, por incrível do rio, distante da cidade. que pareça, logo após a reza, caía a chuva tão esperada por todos,“elas saíam com o sol e voltavam com a chuva. Que bênção! ”, diz a filha Margarida. Uma Maria que pedia a outra Maria, a Madalena, água sobre a terra, e, na sua simplicidade, tentava e conseguia enfrentar as dificuldades do dia a dia com sua mais profunda arma: a fé.
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Dona Ditinha Memória viva de Carinhanha, Dona Edite Pereira Magalhães, mais conhecida como Ditinha, é moradora da Rua do Sacramento tem 86 anos e nasceu em 1926, em Pau do Mosquito, Município de Malhada, divisa com Carinhanha. Filha de José Pereira Cruz e Dona Vitalina Rodrigues Montalvão, tem quatro irmãos, um deles, o mais velho, Elvino Pereira Montalvão, mora no povoado de Angico e doou uma pequena área de terra para a prefeita Francisca Alves Ribeiro construir a Escola Luís Viana Filho. Casou-se com 15 anos e teve doze filhos. Dos doze, dez nasceram vivos. Quase todos os seus partos foram feitos em casa, com uma parteira que era sua avó, Ursulina Rodrigues Montalvão. Conta que, quando estava de nove meses, o seu marido ia buscar a avó para fazer o parto, mas somente quando chegava é que ela começava a fazer as puxadas de algodão para acender o candeeiro que era usado no parto. No candeeiro, em especifico, só podia ser usado o óleo de mamona, porque o querosene prejudicava a visão da parida. Depois de oito dias da criança ter nascido, a sua avó ia embora e sua mãe vinha para substituí-la por um mês. Lembra ainda que ela só lavava a cabeça com um mês de parto, porém, lembra que algumas de suas vizinhas só lavavam a cabeça de seis em seis meses, ou somente uma vez ao ano. Naquele tempo, era difícil o shampoo, por isso, quando lavava, usava sabão de dicoada, que é um sabão caseiro que leva um massa feita do tingui para substituir a gordura, e uma mistura de cinza e água curtida para substituir a soda cáustica. Após o banho, passava-se banha de porco fria, para sarar a dor de cabeça e para crescer o cabelo e diminuir o volume. Essas sementes usadas no sabão são boas para os cabelos, deixando-os sedosos e brilhantes. Mas desses doze filhos, dois nasceram antes do tempo e uma nasceu com deficiência cerebral. Esta, de nome Maria Helena, tem sessenta e quatro anos de idade. Nascida de sete meses, com uma semana de nascida, Maria Helena apresentou desmaios. Como tentativa de melhorar a saúde da filha, ela e seu esposo deram remédios caseiros. Alguma coisa precisava ser feita, afinal, nessa época, 1948, não havia médicos em Carinhanha. Mas o tempo não trouxe a melhora esperada para a filha. Os remédios caseiros amenizaram, mas não solucionaram a situação de Maria Helena e esta nunca andou e nem falou. “A cada ano, ela só piorava”, conta dona Edite. Sua segunda filha estudou, se formou em magistério e casou. Teve uma filha. Mas nessa
gravidez algo inesperado aconteceu: quando ela estava de nove meses, teve uma eclampsia. Conta a mãe que levou sua filha de avião para Bom Jesus da Lapa, mas não teve jeito, ela veio a falecer. Assim, dona Edite ficou com a neta durante três meses. Após esse tempo, também a criança morreu. Dona Edite foi casada cinquenta e dois anos com Alípio Pereira Magalhães, homem de boas condições financeiras. Moravam na Fazenda Venda, pequena localidade de Malhada, e era nessa comunidade que eles tinham um grande comércio que, segundo ela, vendia de tudo um pouco: tecidos, cereais, peneiras, candeeiros feitos de lata de óleo, panela de ferro, peixes, lençol, roupas. Esses produtos vinham de Vitória da Conquista e de Carinhanha. Seu Alípio também criava bois, cabras, ovelhas, galinhas e porcos, e toda semana matava um animal para alimentar a sua família. Dona Edite conta que
“a minha casa na roça era feita de taipa (varas, barro e caroá). Depois, nós construímos uma casa maior e melhor. Os móveis eram quartieiro, mesa de madeira, banco de madeira, bule, prateleira, fogão à lenha, panela de ferro, e os tachos de barro com que eu fazia o requeijão. Os tachos eram feitos por uma vizinha de nome Antônia”. Sobre o requeijão ela lembra:
“Ah! Que delícia! Eu fazia com gosto. O meu marido e os trabalhadores da fazenda levantavam cedo para tirar o leite das vacas e eu também levantava, para tirar a nata, ferventar a coalhada e coar. No outro dia, bem cedinho, os meus meninos iam bater a nata com a cabaça (vasilha feita de um fruto retirado da cabaceira) que, depois de limpo, era usado para carregar água, bater nata e fazer cuia (bacia).” E continua:
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“O requeijão não dava para juntar muitos dias, porque o leite era muito. Então, no outro dia, eu botava a coalhada na panela para ferver, despejava na peneira e deixava secar a água. Depois botava o leite e deixava ferver mais. Depois que retirava do fogo, colocava novamente na peneira em cima da bacia. Deixava esfriar e espremia, colocava o tacho de barro no fogo lá fora. Colocava a manteiga, sal, e, quando o tacho esquentava, eu colocava a coalhada e começava a mexer. Mexia dali. Mexia daqui. Até formar o requeijão que era o mais famoso da região.Vendia tudo, não sobrava nem pra nós comer, só o pregado que ficava no fundo do tacho”. Toda essa labuta com os filhos, a casa e o alimento da família, era feita em meio à ausência de água. Ela conta que “eu e meus filhos pegávamos água
na cabeça, ou então pagava para os outros carregarem. A roupa era lavada no Rio São Francisco. Era aproveitada também para tomar banho”. Era um paradoxo, às margens de um dos maiores rios do país ela desabafa, e Dona Edite sem água em casa. “A água era difícil. Tinha que ser pega na cabeça, na carroça, carro de boi ou mesmo em jumento, nos tambores de fronde. Depois meu marido abriu uma cisterna no fundo do quintal.” Dona Edite cozinhava a lenha, que também era pega em carro de boi ou no braço pelos seus filhos. A luz que iluminava a casa era somente a do candeeiro feito de lata de óleo, puxada de algodão e querosene. As comidas que ela mais fazia eram o feijão, a farinha, abóbora, carne de bode seca, cuscuz de milho pilado no pilão, canjica também pilada no pilão. “O café, meu marido
comprava os grãos e nós torrava e pisava no pilão ou mesmo torrava na bomba manual”, complementa.
Conta ainda que
“As roupas, eu passava no ferro a brasa e era eu mesma quem fazia as roupas, porque já tinha o tecido. Então, eu fazia short, camisa, calcinha, calça, vestido, lençol. De tudo eu costurava, no início, a máquina era manual, depois eu comprei uma máquina de pedal, que tenho até hoje. Eu costurava sempre à noite ou depois do almoço”. Em 1953, Dona Edite teve que vir para Carinhanha colocar os filhos para estudar. A casa que seu marido comprou − e em que mora até hoje − é de alvenaria. As telhas, portas, janelas e o piso são originais. Sobre Carinhanha, conta ainda que era uma cidade pacata, que não tinha luz elétrica, era a motor, e só funcionava até as vinte e duas horas. Quando dava esse horário, ela piscava três vezes para avisar que ia ser apagada. As ruas eram somente areia. “A única rua calçada era a rua das pedras, a Rua Duque de Caxias, onde fica o hotel de Darinha”. A praça da prefeitura era um campo de avião e na frente da Praça da Matriz, tinham muitos animais amarrados dos lavradores da zona rural que vinham fazer compra aqui na sede. Apesar de tanto sofrimento e do tanto de serviço para fazer em casa, ela conta que teve o privilégio de andar em dois vapores, o Benjamim e o Santa Clara.
“Na busca de tratamento pra minha filha deficiente, eu e meu marido resolvemos ir a Pirapora e Belo Horizonte. Fomos no vapor Benjamin. Na passagem já estava incluída a alimentação e a dormida. Durante a viagem tinha muito forró, o sanfoneiro era bom e meu marido dançava muito com as outras mulheres, só não deixava eu dançar porque, segundo ele, se eu dançasse, os outros homens iam querer dançar comigo. A viagem durou onze dias, devido ao fato do vapor ter ancorado nos bancos de areia. O rio estava muito seco. Quando voltamos, no vapor Santa Clara, a viagem durou somente 3 dias, porque tinha chovido e o rio tinha voltado a encher”.
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Os médicos desenganaram sua filha. Não tinha mais nada a ser feito.
“Meu marido enfiou umas madeiras no chão e colocou um varal de pau pra ver se ela andava, e nada. Veio uma muleta de Guanambi, cidade próxima de Carinhanha, mas não teve solução, a minha filha não andou de jeito nenhum. Ela foi a minha terceira filha, e depois dela vieram mais sete. Imagina eu, com uma filha deficiente e parindo mais filhos?” Em 1987, seus pais vieram morar com ela. Quinze dias depois, sua mãe faleceu. Sulina fez a mortalha e o caixão foi feito por um ferreiro da região. Seu pai ficou com ela ainda por um bom tempo, depois morreu de diabetes. Seis anos depois da morte de seu pai, seu marido se submeteu a uma intervenção cirúrgica e não resistiu, acabou morrendo de úlcera. “Mas ele fumava
muito, mais ou menos uns sessenta cigarros por dia, incluindo os cigarros de palha”. Quando seu marido Alípio morreu, usou a mesma roupa do casamento, pois o terno era muito bom e o pano, Casimiro, do alfaiate Dio Vieira, um renomado costureiro. Ficou sozinha com seus filhos. “Eu era muito dependente dele, até as minhas roupas era ele quem comprava” afirma. Com o seu falecimento, ficou vivendo com sua pensão e com o salário de Maria Helena, sua filha deficiente. Diz que fica muito preocupada porque já tem 86 anos, e uma filha que depende dela para tudo, “Que será de minha filha sem mim?” Dona Edite fala de suas brincadeiras de infância. Boneca de pano, feita pela mãe, boneca de sabugo de milho, boneca de madeira, carro de boi de madeira, curral feito de pedaços de pau. Os bois eram os ossos. Subir em árvores para tirar ninhos de passarinho. Lembra que as cantigas de roda da sua época eram do tipo, “Roda morena. Eu não sei rodar. Só sei dizer.
Que eu sei balancear”.
O Alto-Falante de Guiomar, rádio pioneira da comunidade e região Guiomar Pereira da Silva, filha de Dona Tereza Cristina Lemes e do Senhor Otaviano Pereira, nasceu na cidade de Carinhanha e mudou-se para Barra do Parateca no ano de 1984. O intuito da entrevista é de conhecer um pouco a história do AltoFaltante que faz sucesso na comunidade e em toda a região devido aos seus anúncios inusitados. O famoso alto-faltante de Guiomar se encontra instalado na parte da frente e no alto de seu bar. O estabelecimento está localizado próximo à Igreja de São Judas Tadeu, na rua principal. E, falando um pouco do seu estabelecimento, antes de ser um bar, já foi um minimercado onde vendiam de tudo um pouco. Cereais, produtos de limpeza, carnes etc. Sem contar que, no fundo do mercadinho, funcionava um salão de festa, ou como era chamado “uma boate”. Com o tempo, o salão de festa fechou, porque, segundo Guiomar, estava saindo de seu controle. Hoje é um simples bar, bem frequentado pelos moradores e visitantes. Segundo Guiomar, o alto-faltante foi implantado na comunidade em meados dos anos 1990. A ideia partiu do seu ex-marido, Delcique Ferreira. De início, o alto-faltante foi inserido por motivo particular. Por serem donos de um comércio, servia para avisar à comunidade da chegada de mercadorias como frango, calabresa, cereais etc. Com mais de vinte anos, hoje, o altofaltante acabou se tornando um meio de comunicação social, por onde são passados recados de reuniões, chegada de mercadorias, notas de falecimento, desaparecimentos de objetos, roubos, entre outros. Quando perguntada sobre o anúncio mais engraçado, Guiomar começou a dar risadas ao se recordar desses momentos cômicos. Segundo ela, já apareceram anúncios dos mais variados tipos. Até anúncio de desaparecimento de uma dentadura que desaparecera durante a festa de São Judas Tadeu.
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Em relato, ainda sobre as notícias engraçadas, que chamamos de “épicas”, Guiomar acaba detalhando duas das que ela considera as mais divertidas. A primeira aconteceu logo que o alto-falante chegou à comunidade. Dona Antera, hoje falecida, pediu para noticiar o roubo de sua mosqueteira. E, por ser uma novidade, e as pessoas não terem o costume, Dona Antera, ao invés de colocar o microfone na direção da boca, colocou no ouvido e começou a falar “alô, alô”. Guiomar deu uma risada ao se lembrar desse momento. Ela ainda conta que disse à senhora “está errado, Dona Antera. A senhora tem que colocar na boca”, “é mermo, minha fia, é mermo”. Outro momento cômico, e que é algo mais recente, foi o anúncio do desaparecimento do “priquito de Maria José”. O recado foi transmitido à comunidade por Delcique. O anúncio dizia, “Atenção! Atenção Barra do Parateca! Maria
José perdeu sua priquitinha. Quem encontrar, por favor, devolver a priquitinha a Maria José, que será recompensando”. Muitos jovens se lembram do recado dado por Washington, um morador da comunidade, avisando sobre a festa do grupo de jovens. “Alô, pessoal de
Barra do Parateca! Suziane manda avisar que vai ter a baladinha no mercado hoje pros jovens. Então quem gosta do escurinho, aproveite que o trem vai tá é bom! Vai começar agora. Tá escurinho do jeito que nós gosta. Hehe!”. São tantos anúncios engraçados que daria pra ter um livro só deles. Mas, com certeza, estará sempre guardado no baú da memória de todos os moradores de Barra do Parateca. E, sem dúvida, o alto-falante de Guiomar é a “rádio pioneira da comunidade e região”.
Jorge Augusto Ribeiro Como posso aqui decifrar uma figura tão importante, de um grande saber, fonte na qual me inspiro e a quem agradeço por tudo que aprendi e conquistei e por tudo o que hoje sou? Essa figura é meu pai. Magro, sorridente, alegre com todos, porém, com uma imensa solidão que procura disfarçar ao som de sua sanfona nas noites solitárias. As palavras são poucas para descrever tamanha admiração que tenho por esse homem.
Jorge Augusto Ribeiro nasceu há 73 anos, e viu Carinhanha ser construída. Participou de seus momentos mais importantes, desde a construção das estradas até hoje, morando nas redondezas de Carinhanha. Jorge e seus quatro irmãos ficaram órfãos de mãe. Ele tinha apenas 5 anos, por isso teve que aprender a sobreviver por conta própria, passando muito frio e muita fome. Conta o Sr. Jorge que teve que aprender a ser independente, pois a vida o obrigara, seu pai não sabia como educá-lo. “A gente morava em casa de enchimento. Não
tinha cobertor, cama pra dormir... à noite, a gente se embolava, os quatro irmãos, nas poucas tiras que tinha. Eram uns restos de calça e camisa rasgada feita de algodão. As roupa, naquela época, eram fiadas em rodas. As mulheres da época utilizavam apenas algodão, urdia, tecia, e costurava essas roupas. A cama da gente era só um couro de boi. Não tinha sandália, sapatos. Quando a gente veio possuir eram feito em casa, com couro de boi ou de pneu velho”.
Ele relembra que, uma vez, estando doente de sarampo e não sabendo qual medicamento usar, seu pai lhe deu pra beber chá de lagartixa. Era o santo remédio daquela época. Seus brinquedos eram ossos de mocotó de boi. Depois de comidos, jogados no quintal, ele e seus irmãos juntavam todos os ossos para brincar de fazendinha. Os pedaços dos ossos eram seus bois e seus cavalos. Assim, o sonho do Sr. Jorge era ter a sua própria terra para plantar e produzir. Buscando vários meios de sobrevivência, Seu Jorge recorria a todos que pudessem lhe ofertar serviços e conhecimentos. Muito inteligente, bastava ouvir ou ver uma vez, já era o suficiente para registrar na memória. Certa vez, ainda menino, numa feita de farinha, enquanto os mais velhos torravam a farinha, ele rabiscou com seus dedos algum desenho por cima da farinha. Achou a coisa mais linda, então decidiu que iria aprender a ler e escrever. E assim fez, quase por conta própria, sem nunca ter frequentado uma escola! Quando já havia aprendido o ABC, contou com a ajuda da sua tia para formar sílabas e juntá-las. Daí então, todos os pedaços de papel escritos que ia encontrando pelo caminho ele guardava e lia quando chegava em casa, depois de um sempre exaustivo dia de trabalho de um lavrador. Aos 20 anos, Seu Jorge já era um rapaz respeitado, dotado de muitos conhecimentos. Foi através de orações de uma bíblia e de um livro conhecido como Livro da floresta que ele aprendeu a benzer e a medicar as pessoas que o procuravam. Assim pôde auxiliar muitos a aliviar suas dores. Seu Jorge conhece muitas ervas medicinais, e as utiliza em tratamentos com chás, garrafadas e raspas para colocar em ferimentos. Seu Jorge nunca cobrou
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por suas rezas. Ele rezava de vento caído, espinhela caída, dores de cabeças provocadas por excesso de sol, doenças venéreas, lavagem em crianças, além de curar machucaduras em animais e de realizar partos de animais. Seu Jorge se casou duas vezes. Do primeiro casamento teve cinco filhos, entre eles, Francisca Alves Ribeiro, conhecida como Chica do PT, atual prefeita de Carinhanha, orgulho de todos da família. Do segundo casamento, teve oito filhas, inclusive eu. Antes do meu nascimento, comprou a sua tão sonhada fazenda, a que deu o nome de Fazenda de Trás do Morro, por ser próxima de um morro. Lá, tudo que plantava, colhia e, assim, pouca era a necessidade de vir à cidade comprar mantimentos. Existia muita harmonia e humildade entre as pessoas naquela época: ajudavam-se uns aos outros, quando necessário. Quando matavam um animal pra comer, este era distribuído entre os vizinhos. Assim, não faltava carne pra ninguém, pois quando um fazendeiro matava uma vaca ou um porco, repartia-se entre todos. Era uma espécie de rodízio. À medida que a carne ia acabando, chegava a vez do outro morador fazer sua parte. Eram divididos também outros alimentos: saca de arroz, farinha, feijão, milho etc. O vizinho tomava emprestado até que a colheita fosse realizada. Sendo assim, ninguém passava fome. Quando um vizinho estava em apuros, para fazer sua roça ou sua colheita, os outros se reuniam e faziam a “surpresa” ou “mutirão”. Juntavam todos em uma determinada casa, homens e mulheres. Os homens chegavam cedo, matavam um porco ou uma vaca e, em seguida, iam pra roça trabalhar. As mulheres se reuniam fazendo a comida. A noite se encerrava com um arrasta-pé. Também era comum entre as mulheres trocar bolos de sabão feitos de tingui ou fatos de animais. “Quando o
sabão daquela senhora acabava, ela pedia a outra um bolo de sabão emprestado, até que fizesse o seu. Assim, quando fazia o seu sabão devolvia o bolo de sabão que tinha sido emprestado.”
Seu Jorge relembra dos vapores e lanchas que eram os únicos meios de transporte daquela época. Além desses, só cavalos e carros de bois. Como a região é muito seca, a maioria dos fazendeiros tinha que abrir cisternas no seu terreno. Assim, Seu Jorge aprendeu a conhecer quais os lugares apropriados pra dar água. Desse modo, era procurado por todos da redondeza. Até hoje ele ainda é procurado para esse serviço. Segundo ele, é utilizado um prato com água com o qual percorre toda a extensão da fazenda. Então, o lugar que dá água é deixado o prato. Com sua experiência, Seu Jorge é capaz de
distinguir, através da evaporação da água, se o local é ou não próprio pra dar água. Seu Jorge conta ainda com muito orgulho que desafia qualquer engenheiro profissional nesse quesito, pois até os dias de hoje ele nunca errou um terreno que demarcasse. Há muitos anos, ele e seus companheiros estavam numa grande colheita de arroz. A safra era grande. Tinha sido um ano de muita chuva e a colheita tinha sido muito boa. Após a colheita e os ensacados, eles transportavam as sacas nos ombros até a casa do proprietário. Durante a travessia de um lado para o outro, havia um córrego. Dentro desse córrego, tinha um pau que era utilizado por eles pra passar com as sacas de arroz. Assim, eles utilizaram esse suposto pau durante toda a manhã. Depois que chegaram do almoço, o pau já não estava no local. Então se perguntavam uns aos outros se alguém deles havia pegado o pau, e todos disseram que não. Então, saíram todos à procura do pau. Foram olhando e revirando tudo ali por perto. De repente, um susto! Numa moita de árvore rasteira, estava uma enorme sucuri. Para sorte de todos, ela havia acabado de comer um bezerro. Estando de barriga cheia, não os havia engolido. Muitas são as histórias que Seu Jorge conta. E todos gostam de ouvir. Num velório, mesmo em meio a todo clima de tristeza, se Seu Jorge estiver presente, está presente também a alegria nas histórias e piadas que ele conta. De tanto participar de velórios, Seu Jorge aprendeu a fazer Cordão de São Francisco e o caixão. Conta ele que, para fazer o cordão exige-se muita concentração, por conta dos nós e dos fios de linha para confecção do cordão. Então, pega-se um novelo de linha, fiado nas antigas rocas de fiar, e, com a ajuda de duas pessoas, começa-se a urdir o cordão de São Francisco. Essas duas pessoas ficam com seus braços para cima e suas mãos abertas, utilizadas como suporte para a linha. Assim, Seu Jorge vai e vem várias vezes, passando a linha nas mãos dessas pessoas até cumprir a quantidade necessária para construção do cordão. Ao terminar, ele mede em palmo a distancia de um nó até o outro, fazendo a oração e finalizando o cordão. Para a fabricação do caixão, são utilizadas portas ou tabuas de madeira que as próprias pessoas tinham em casa. Assim, era acesa uma fogueira na frente da casa do falecido. Enquanto as mulheres costuravam a mortalha e o forro do caixão, os homens, embaixo de uma árvore, cerravam uma tábua e pregavam pregos para construir o caixão. O caixão era todo fechado e só depois de concluído era cerrado ao meio para dar abertura da tampa. Então, as mulheres já haviam costurado a mortalha e o forro. Arrumavam o defunto, concluíam
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o velório e o enterravam. Não existiam coveiros. O ofício era realizado por aqueles homens que gostavam de cachaça. Oferecia-se uma garrafa de cachaça e estes iam para o cemitério. Enquanto cavavam o buraco para abrir a sepultura, iam degustando sua cachaça. Seu Jorge lembra do início de Carinhanha, antes mesmo da luz elétrica e água encanada. Diz ele que conheceu muitas mulheres que carregavam água para sobreviver. Essas mulheres, conhecidas como “carregadeiras d’água”, não tinham como sobreviver. Assim, saíam muito cedo de suas casas e recebiam mixarias por seus trabalhos realizados. Naquela época, não existia reservatório de água em casa. Então, as pessoas que tinham melhores condições davam uma pequena quantia por esses afazeres. As carregadeiras d’água subiam os barrancos escorregadios do rio São Francisco, várias vezes, com as latas d’água na cabeça. Algumas vezes desmaiavam de tanta fome ou pelo excesso de peso na cabeça, pois algumas iam trabalhar de madrugada sem nenhum gole de café preto. Após encher todos os potes daquela casa, o proprietário lhe dava a “merrequinha” prometida. Então, a carregadeira d’água voltava às pressas para casa, passava pelo açougue e comprava um pedaço de osso de boi. Já em casa cozinhava esse osso e punha farinha, fazendo o pirão. Seria sua única refeição do dia. A tarde ia pegar água novamente. Os banhos de todos eram realizados no próprio rio, bem como as lavagens de roupa. E isto não é tudo. Seu Jorge aprendeu a fabricar corda de sedenho − produzida com crinas de cavalo −, corda de couro de boi, balaios de caroá, esteiras de palha de bananeiras, utensílios de pau, como gamela, colher de pau, camas, cabo de foice, machado e enxada, e tantas outras coisas que ele improvisa com suas artimanhas. Desse modo, não descarta nada, reciclando tudo ao seu redor, aproveitando cada objeto jogado fora. Apesar de tão importante e de possuir tantos conhecimentos, Seu Jorge hoje se depara com uma solidão enorme. Viúvo pela segunda vez, vendeu sua fazenda e veio morar na cidade. Os filhos cresceram, casaram, se estruturaram, graças a seu esforço e determinação para educá-los. Hoje, ele se encontra só em casa. Conta apenas com uma sanfona que, mesmo sem saber tocá-la, insiste em algumas notas, cantando algumas melodias para disfarçar a imensa tristeza e a solidão de um sertanejo sofrido e calejado pelos longos anos de existência. No entanto, diz estar realizado por tudo que fez, por tudo que adquiriu, pelos amigos conquistados. E assim, com os olhos marejados, ele canta uma melodia com sua sanfona, em gratidão por estarmos ali com ele.
Honorato Ribeiro dos Santos Carinhanha é uma terra de muitos artistas. Cidade ribeirinha de uma riqueza cultural muito grande. Entre os artistas mais conhecidos está o Sr. Honorato Ribeiro dos Santos, 77 anos, conhecido popularmente por “José de Patrício”. Casado há 54 anos com Dona Carminha, por quem alimenta um grande amor e admiração, tem oito filhos, todos já criados. Honorato é compositor, músico, poeta, escritor, foi professor leigo. Conta ele que foi menino criativo. Aos 7 anos, começou vendendo pão, biscoito, bolo e doce na beira do rio, quando o vapor passava cheio de gente. Ainda adolescente, começou a fazer móveis em miniatura, brinquedos para bonecas que muitos pais compravam para as filhas e fazia avião e vapor, de buriti e barriguda, para os meninos. Aos 14 anos, entra para a Orquestra da Liga Operária Beneficente de Carinhanha, tocava sempre nas festas e bailes dos finais de semana. Seu instrumento era o cavaquinho e o violão. As pessoas lhe admiram muito, pois já começava a cantar com a orquestra. Aos 15 anos, fez parte da Filarmônica Pedro Leite de Almeida; à época, sob o comando do Mestre Jacó. Seu primeiro instrumento foi o bongô. Depois requinte e, por conseguinte, clarinete. Interessado pela música, pediu a amigos para que comprassem livros em São Paulo e começou a estudar música sozinho em casa. Na década de 50, fundou, então, a Escola de Música São José, onde ensinava cavaquinho, violão, trombone, trompete, clarinete entre outros. Em seguida, Honorato foi convidado para ser regente da Orquestra do Clube 2 de Julho, que ficava onde hoje é a casa do gerente do Banco do Brasil. A orquestra era composta por 10 músicos e tocava sempre aos domingos e serenatas. Algumas vezes, foi ajudado por dona Madalena Barral e por seu compadre Juraci Pinto, o qual foi seu parceiro na composição de diversas músicas. Em 1959, foi passear em Belo Horizonte, quando lá foi até uma banca de jornal, onde encontrou o anúncio de um Concurso de Calouros na Rádio Guarani. Ele se inscreveu e participou do concurso. Passou em três etapas e, na última, ficou em segundo lugar, mas muito satisfeito, pois as pessoas ouviram aqui na cidade e, quando retornou, foi uma alegria muito grande. Sua profissão foi ser marceneiro, fazia móveis para casa junto com seu irmão. Também foi padeiro, aos 17 anos, na cidade de Cocos, em seguida Coribe e até numa cidade de Goiás, depois retornou para Carinhanha.
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* Diz-se do professor sem formação acadêmica de Nível Superior.
Quando já noivo, fez admissão ao ginásio, uma prova para estudar, mas estudou somente o 2º ano ginasial. Não tem nenhum diploma, tudo que sabe aprendeu sozinho, por isso considera-se um autodidata. Foi professor leigo* de Arte, Música e Desenho Geométrico no Educandário São José, também lecionou em Correntina, no Colégio São José. Por ser amante dos estudos, possui uma biblioteca em casa com cerca de 1000 livros. Hoje já é escritor registrado na Biblioteca Nacional do MEC. Seu primeiro livro foi O Retrato de Jesus e vai lançar seu segundo, pela Editora Baraúna, do Estado de São Paulo. Em 1977, escreveu sua primeira obra O barulho de João Duque em Carinhanha. Escreveu muitos cordéis e dedicou-se a pesquisar a história de Carinhanha, que resultou na publicação de 5 obras. No total, tem 26 livros escritos. Dois deles serviram de apoio para este livro. Entre as suas composições mais conhecidas está o renomado Hino de Carinhanha. Atualmente, tem um programa de rádio chamado “Cidadania”, na Pontal FM, que trabalha temas da atualidades com a participação de profissionais e cidadãos da cidade.
Wanderley de França Barbosa Deley, Leide, Wandeco, Wanderley França Barbosa foi cidadão Carinhanhense não por ser natural dessa cidade, mas pelo tempo vivido e pelas atividades que desenvolveu ao longo de sua história com a cidade. Pesquisar sua trajetória de vida nos remete a lembranças e sensações de um passado não muito distante, mas repleto de saudades. Para isso, ninguém melhor que a família para retratar os fatos importantes de uma pessoa inestimável. Por isso, relembrar sua importância em uma entrevista com a família nos trouxe momentos alegres e tristes e, por que não dizer?, saudades. Lembranças do ícone que contribuiu com a formação de muitos cidadãos Carinhanhenses, lembranças de sua ilustre participação nas Gincanas de Aniversário de Carinhanha, quando dizia: “Teresinhâââãã? Uh uh!!!”
Nascido em 04 de outubro de 1946, dia de São Francisco de Assis, na cidade baiana de Correntina, filho de Osvaldo França Barbosa e Edvaldina Alves da Rocha França. Por equívoco do escrivão do cartório, Wanderley levou somente o nome do pai, tornando-se Wanderley França Barbosa. Como de costume dos Baianos, também tinha seus nomes carinhosos. Como nos tempos antigos, sempre que alguém nascesse em um dia especial, levaria o nome em homenagem a esse dia. Com Wanderley não foi diferente. Como nasceu no dia de São Francisco de Assis, seu nome seria Francisco em homenagem ao Santo. No entanto, seu pai temia a escolha devido aos codinomes a ele associados. Por isso ele não recebeu o nome de Francisco. Desde criança, mostrava seus variados talentos na escola; destacandose principalmente nas artes da pintura, desenho e artesanato, dotes observados na catequese sob a coordenação dos Freis Ambrósio e Damião, que antecederam ao Padre André. Padre André F. Berenõs identificava em Wanderley a vocação para o sacerdócio e, com as bênçãos de Dom Muniz, Wanderley foi encaminhado ao Seminário do Menor em Caetité. Antes mesmo de ingressar no Seminário, Wanderley viveu em sua pequena cidade uma infância de menino peralta e em plena normalidade. Para ele, tudo era divino e maravilhoso, ora “celebrando” missas num banheiro de sua casa e debaixo de um pé de rosa graxa; ora obrigando o seu irmão mais novo, Aloízio, a fazer caretas para um velho morador de sua rua. Ele se divertia chantageando o irmão, e isso sempre acabavam em prejuízo para o Aloízio. Wanderley, que demorou a soltar a voz e a andar, deixando todos de sua família preocupados com aquela criança que não falava e nem andava, adorava brincar no quintal de sua casa, e sempre conversava com as plantas, às escondidas. Certo dia, ao atentar um senhor chamando-o de “Marco da jega”, correu para se esconder, foi então que sua mãe descobriu que ele, além de falar e andar, atentava os outros e corria. Esse dia foi uma festa em sua casa. Outra vez, ficou de castigo com seu irmão José, dentro de um quartinho onde seu pai guardava rapadura em caixotes. Traquino como era, Wanderley entrou em um dos caixotes e comeu partes das rapaduras que lá havia. Então, foi castigado novamente pelo seu pai.
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A educação, desde cedo, era uma paixão de Wandeco. Seus pais o poupavam do serviço na roça. Ele ficava mais cuidando dos porcos, cavalos e galinhas: e, a partir daí, brincava com elas de dar aulas. Esteve sempre presente nas brincadeiras de infância pelas ruas da cidade em festas escolares e paroquianas. Sua vida escolar começou na Escola Comercial de Correntina, onde concluiu o 1º Grau, atual Ensino Fundamental, em 1960. Como fora dito em plena adolescência, foi encaminhado para Caetité, em preparação ao sacerdócio. Nas férias, voltava sempre à Correntina, onde aproveitava para dar aulas para exame de admissão aos jovens que logo ingressariam no ginásio. Aqui, nota-se o quanto Wanderley gostava de ver a juventude crescer. Para melhor se desenvolver nos estudos, em 1963, aos 16 anos, foi para Mariana, onde concluiu o 2º Grau (atual Ensino Médio). No ano de 1966, no Seminário Menor Nossa Senhora da Assunção de Mariana, aos 19 anos, fez teologia no Seminário Maior São José. Em seguida, estudou um breve tempo em Fortaleza, Ceará, e, para cumprir uma missão determinada pelo pai, encaminhou o irmão Aloízio para a cidade de Recife, Pernambuco, no ano de 1968, onde passou a viver. Depois de concluídos os estudos, ordenou-se Diácono e, em seguida, ordenou-se Sacerdote pelo então Bispo Dom José Nicomedes Grossi, em 08 de dezembro de 1972, na mesma cidade onde nasceu, e celebrou sua primeira missa no dia 10 de dezembro do mesmo ano.
O Padre A história do Padre Wanderley começa quando este é enviado à cidade como diocesano para cumprir sua missão; em 28 de abril de 1973, em seus plenos 27 anos. Ele foi recebido com muita festa. Sob o som da então Banda Filarmônica Pedro Leite, rojões de fogos e alegria desse povo hospedeiro. Para satisfação do povo, um dia depois, foi empossado pároco da Paróquia São José de Carinhanha, na Igreja Matriz, com missa presidida pelo então Dom José Nicomedes Grossi. O destino lhe preparava bastantes surpresas. Fez Psicopedagogia Religiosa em Caxias do Sul, em 1976. Wandeco, nome carinhoso, acreditava no potencial da juventude e buscava torná-la protagonista da sua própria história. Foi então que, em 1978, juntamente com a Miriam Inês Bersh, fundou a Pastoral da Juventude e muitos grupos de jovens, e mais tarde trouxe para Carinhanha os Escoteiros o qual liderou até 1990.
Acreditando que não tinha vocação para o celibato, decidiu deixar a batina realizando sua última celebração eucarística a 22 de janeiro de 1981, mas não abandonou sua missão religiosa e esteve sempre disposto para ajudar no que fosse preciso. Logo passou a ser funcionário do Banco do Brasil. Naquela época, a diversão de muitos jovens era o Clube 2 de Julho. Foi então em um dos bailes que Wanderley pediu a um dos amigos para convidar Neuzinha, Neusa Maria Fernandes Moraes, para se sentar na Praça da Matriz. Adiante iniciou-se um namoro e, decidido a constituir uma família, casou-se em 14 de maio de 1982, passando ela a se chamar Neusa Maria Fernandes de França. Do fruto desse amor, nasceram Osvaldo Fernandes de França, em 1983, e dois anos depois nasce seu segundo filho, Helber Fernandes de França. Em 1986, nasce então sua caçula Láisa Thaiane Fernandes de França, filha que sempre esteve ao seu lado. Wanderley, como sempre, participante ativo na comunidade, ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores. Como um dos idealizadores, candidatou-se a vereador e, logo depois, a prefeito pelo mesmo partido. Porém, não foi eleito. Em 1995, contudo, saiu do Banco do Brasil, exercendo apenas a função de professor.
O Grupo dos Escoteiros, Educação Complementar A ideia dos grupos de escoteiros chegou ao Brasil em 1910. Em Carinhanha, na década de 70, foram então Wanderley, Zé Fernandes e Fernando quem semearam disseminaram a ideia. Naquela época, as diretrizes que regiam o grupo eram mais rigorosas, pois tinham uma ideologia militarista; símbolo disso é que os beneficiários utilizavam bastões e faquinha. A partir desse momento, Wanderley, junto com os amigos, passa a semear uma plantinha na história Carinhanhense e a semeiam na década de 80, com novos beneficiários, incluindo o entrevistado Marcos Lima.
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Nessa época, o movimento se dividia em lobinho, escoteiro, cemo, pioneiro e guia. São etapas que vão mudando de quatro em quatro anos. Assim, no Movimento Carinhanhense só tinha o escoteiro e o cemo. Diante das necessidades da vida, o grupo durou algo em torno de seis anos, permanecendo alguns anos inativos. Nessa época, Marcos Lima resolve ir embora para estudar, e lá onde está fica sabendo da volta do movimento, agora sob a liderança de Nanci Lima, e também com uma nova intitulação: Eremito Francisco Pereira, que levava o nome de Bandeirantes; atualmente não existe mais o termo, é chamado apenas de Pioneiros. Essa foi a época de maior durabilidade do grupo, pois recebeu o apoio de João do Padre e Valternan, como dirigente. Nessa época, Marcos Lima retorna à cidade e passa a liderar o grupo como vice de Valternan, perpassando alguns anos também com a Senhora Ivone Lima. Assim, acontece mais uma recaída, pois Wanderley passa a residir na cidade vizinha de Feira da Mata, ficando o movimento mais uma vez adormecido. O grupo sempre sobrevivia sob a coordenação da diretoria, que não media esforços para conseguir o possível para desenvolver as atividades do grupo, eles ganham o lote no Bairro São Francisco, era ali que se sonhava ser a sede do grupo. Mais uma vez a dificuldade bate à porta do movimento. João do Padre necessitava fazer o tratamento de hemodiálise, ocasião em que veio a falecer, quebrando a história do grupo. Wanderley sente muito a morte do amigo e perde a vontade de reerguer o grupo, que permanece adormecido até alguns anos atrás. Com a caída do movimento, o Pe. Wanderley passa a desenvolver, no aniversário da cidade, as gincanas. Foram quatros anos. Surge nessa época o chamado Grupo Decência, formado pelas pessoas que lideravam o movimento Eremito Francisco Pereira. Vale lembrar que esse grupo fez a diferença na cidade, e segurou a organização das gincanas durante muitos anos, com a ajuda de Raimundo Magalhães, que sempre bancava as premiações e aí a gincana passa a ser uma cultura da cidade. Sentindo a necessidade de contribuir com algo para as crianças, adolescentes e jovens da cidade, o Doutor Cleber convida Marcos Lima para reavivar o grupo de escoteiros, que prontamente aceitou. Eles convidaram antigos integrantes e fundaram o grupo em homenagem ao Pe. Wanderley; com algumas
reformulações, por exemplo, a proibição de utilizar a faquinha, mas com o mesmo objetivo: ajudar no desenvolvimento do caráter dos beneficiários. Os beneficiários são os meninos que participam do grupo e levam o nome de lobinhos, escoteiros, cemo e pioneiros. Os chefes que tomam conta dos meninos são escotistas, os da diretoria, dirigentes. Atualmente, o grupo tem 203 beneficiários, sendo o maior grupo da Bahia. Sentido a necessidade de criar um subgrupo, temos hoje a Tropa Mar, intitulada de 70BA, que é relacionado à água e desenvolve sua atividade na AABB sob a liderança do Doutor Cleber, atualmente com 80 beneficiários, e a Tropa Básica, chamado de 51BA, liderada por Marcos Lima, tendo como ponto de apoio o Parque de Exposições da cidade. As atividades são relacionadas à terra, com 100 beneficiários. O primeiro é chamado de Velho Chico. O segundo, Wanderley França Barbosa. Os dois possuem fortes ligações. As atividades são as mesmas, e ambos funcionam no sábado, de 8h às 10 h. O grupo se caracteriza pela ideologia, atividades e pelo uniforme, e cada um com sua cor. Por exemplo, a Tropa Mar tem uniforme na cor branca, que é relacionada à Marinha; e a Tropa Básica tinha duas opções de cores: o caqui, e a mescla entre azul claro com o escuro. Então, os dirigentes optam pelo azul, pois, para a região, é a mais adequada. Todas as atividades são educacionais, pois envolve sobrevivência.
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“ foi realizado um acampamento com um mínimo possível de estrutura, mas estrutura pouca, para trabalhar o menino em como sobreviver diante das dificuldades, por exemplo: tomar banho com o mínimo de água possível, aprender a acender a fogueira sem fósforo e sem nenhum objeto inflamável, muitas já sabem usar aquela técnica antiga. E tudo isso já adotado pelo grupo, fora os livros. Sempre que fazemos reuniões com os pais dos beneficiários, sempre passamos a eles que investir no escotismo, hoje, é investir na educação para seus filhos. É uma educação à parte, e dá resultados, você sabia? Tem meninos que mudaram tanto na escola quanto em casa” diz
Marcos Lima.
Em se tratando das emoções, percebemos o quão é importante para o entrevistado trabalhar voluntariamente, e essa é também uma ideologia do grupo: o voluntarianismo; isso porque nenhum grupo funciona com contratos. Porém, temos as exceções que são os grupos de apoio, que cuidam do bem estar do local, como também da alimentação de todos. Surge em meio à conversa uma indagação importante, que deixa o entrevistado todo emocionado, que é a pergunta: Você, enquanto ser humano, pai de família, idealizador do grupo, e beneficiário desde os 11 anos, qual a sua sensação de ser escoteiro enquanto cidadão de Carinhanha? Que contribuição o grupo proporcionou à sua vida?
“Aprendizado. Saber conviver em grupo. Isso é importante e muito gostoso. Adorei. Não me arrependo de jeito nenhum, e Wanderley era um homem espetacular. Ele sabia não distinguir poder aquisitivo dentro do grupo. Ele frisava muito isso: ‘ fulano não é melhor que sicrano, é tudo igualzinho!’ Naquela época, década de 80, não existiam barriquinhas, era de lona mesmo feita de madeira, com nós escoteiros no meio. Todo mundo dormia junto. Eu tiro como aprendizado a questão da humildade na convivência com o próximo”
Dentro do movimento, existem vários distintivos de progressão. Os distintivos são etapas que o menino cumpre. Aliás, tem uns que cumprem e outros não. Uns chegam ao Lis de ouro, que é o maior grau dentro do movimento, e têm outros que não saem do básico. Mas isso depende de cada um. O mais importante é o aprendizado, a convivência com o próximo, é saber dividir. Tudo isso é espetacular no grupo, trazer para os meninos o respeito ao próximo, o valor que o outro tem.
Amor pela Educação Wanderley foi um professor apaixonado pela educação que sempre dizia que seu sonho era ver a educação de Carinhanha brilhar. Queria que a juventude crescesse profissionalmente. Nas trilhas de sua história, em 1997, foi escolhido por unanimidade para fazer parte do conselho Municipal de Educação. Neste ano, foi para Feira da Mata trabalhar como diretor do Centro Educacional Ângelo Pinheiro de Azevedo, onde passou a morar com sua família. Na cidade de Feira da Mata, ele fez um trabalho brilhante com a educação, e em 02 de janeiro de 2001, passa a ser secretário municipal de educação. Deixa o cargo em 3 de dezembro de 2001. Quando então volta para Carinhanha e passa a trabalhar como professor na cidade de Malhada, durante três anos. Em 10 de março de 2004, realizando um de seus maiores sonhos, fundou, juntamente com sua esposa Neusa e seus amigos Alberto e Gicélia, o Colégio Paulo Freire. Em 2007, a sociedade foi desfeita, mas Wanderley dá continuidade à escola. Neste mesmo ano, passa a ser ouvidor na Prefeitura Municipal de Carinhanha, onde trabalhou apenas cinco meses. Entre os seus sonhos, estava o de escrever um livro sobre a cidade que ele tanto amava. Não era sua cidade natal, mas era a cidade que ele escolhera para ser sua. Escreveu um livro sobre Carinhanha, que se encontra incompleto, mas não chegou a publicá-lo. Assim, construiu a sua identidade de carinhanhense, dando sua contribuição para a história. Aos 60 anos, veio a falecer. No dia 1º de junho de 2007, deixando um enorme vazio e uma dor no peito.
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Seu Edésio Marques de Souza “As músicas de carnaval quem tocava era Edésio. É um baluarte daqui de Carinhanha. É uma pessoa que devia ter um outro valor. Antes de Edésio, era Pedro Leite. Edésio toca todo instrumento, saxofone... Ele é o maestro aqui da cidade”,
quem protesta é Dona Nélia.
Edésio Marques de Souza tinha como ocupação ser relojoeiro e era músico maestro da Filarmônica Pedro Leite de Almeida, há mais de vinte anos. Edésio aprendeu a tocar com Zé Correia quando Pedro Leite já era maestro da banda. Quando Pedro morreu, Edésio conta que tinha 15 anos de idade. Pedro Leite teria pedido, antes de morrer, que alguém da família assumisse a banda para que ela banda não acabasse. Foi por esta data que ele começou a tocar com Seu Honorato, começou por instrumento de sopro. Seu Edésio conta que a filarmônica é como um órgão público. Registrada no dia 12 de dezembro de 1970, tendo CNPJ, carteira da Ordem dos Músicos do Brasil (OMB). A banda toca em regime militar, mas não é militar, é particular, a roupa é que foi doada pelo exército. Edésio fala que a banda também não é uma fanfarra, pois a fanfarra vai pra rua com um mês de ensaio enquanto que a filarmônica, as pessoas que tocam nela permanecem durante um ano, aprendendo partitura, e só depois das 119 lições é que a pessoa recebe o instrumento musical que vai tocar. Ele fala do amor que sente em ensinar as crianças e da felicidade quando conquistou o troféu em Salvador, ficando em segundo lugar. As músicas têm artigos de músicas antigas, tocando os dobrados dos compositores daqui e alguns arranjos militares. A banda atende em toda a comunidade, desde Lapa e Correntina até Guanambi, Iuiu etc. Casou-se com Dona Lourdes em janeiro de 1970. Desta união nasceram nove filhos. Homem de coração bom, além destes ainda criou mais nove.
Antônio Rodrigues Villares, o início Em meados da década de 1930, veio morar aqui em Carinhanha um homem de nome Antônio Rodrigues Villares. Ele montou uma Filarmônica que chamou 19 de abril. Nessa época, a banda era formada por Hercílio Mangabeira, José de Artur, Arnaldo Cipriano, Antônio Cardoso de Lima, Urbano Marques, Jaime Alkmim, Afonso Castro, João Lucílio e Geraldo Sena. Eles se apresentavam em festas de casamento, festas religiosas, ternos, bodas etc. Durante muitos anos, esta banda foi a grande atração de Carinhanha. Com o dinheiro das apresentações, Villares comprava instrumentos e o figurino dos músicos. Todos tocavam com seus uniformes brancos, gravata azul e botões dourados em todas as festividades de Carinhanha. Todas as pessoas que lembram da Filarmônica dizem que é uma cultura que traz na lembrança as festas carnavalescas nos salões de nossa cidade, nos clubes, nos ternos, ou seja, era a Filarmônica que fazia a animação dos cidadãos carinhanhenses. Apesar do grande apreço dos cidadãos Carinhannhenses pela Filarmônica de seu Vilares, não era um tempo bom para a música. A falta de estabilidade financeira levou a 2 de julho ao fim. Então, Seu Vilares doou os poucos instrumentos que restaram para Pedro Leite. Desse momento em diante,
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ele assumiu a banda, ocupando o posto de maestro. Fez grandes trabalhos na filarmônica, porém, não demorou muito na função devido a estar com problemas de saúde. Foi então que, em 1962, ele chamou três pessoas de sua confiança para dar continuidade à banda: José Candido da Silva, Benedito Pereira do Nascimento e Adalberto; todos já integrantes da banda.
Filarmônica Pedro Leite É festa do Padroeiro São José, a 19 de março, e já cedo da madrugada podemos escutar a alvorada animada pela Filarmônica Pedro Leite de Almeida, no comando do maestro Edésio, acompanhados por fogos, acordando a população, anunciando a festa. Isso ocorre não somente nestes dias, mas em outras festas religiosas como a Festa do Divino e também outras comemorações na cidade em que a Filarmônica Pedro Leite abrilhanta a festa com seu som dando alegria e brilho ao dia. Edésio é um homem como poucos. Dotado de um talento musical muito grande, ele ensina os jovens carinhanhenses formando bandas com eles. Em entrevista com o maestro, ele relata que teve várias profissões. Como ajudante de marceneiro e servente de pedreiro, construiu várias casas. Vendo que esta profissão não dava certo, resolveu ser relojoeiro e, através da leitura dos manuais, começou a exercer a profissão. Edésio aprendeu na prática a profissão de relojoeiro e, aos 17 anos, deu início ao seu ofício de consertar relógios até hoje. Como músico, começou a tocar na orquestra de Honorato Ribeiro tocando bumbo, fazendo sua primeira apresentação na Festa do Divino Espírito Santo. E foi a partir daí que ele começou a estudar música, pois, apesar de já ter tocado e precisava se aperfeiçoar melhor. Zé Correia foi o homem responsável pelo aprendizado de Edésio, e também pela sua entrada na Banda de Pedro Leite. Nesta época a banda passou por dificuldades, pois não tinha instrumentos e, na época da Festa do Divino, todos saíam para ariar os instrumentos musicais no rio. Foi um período difícil, pois a valorização da Banda não acontecia e, como a banda não era registrada, não recebia as verbas para a
compra dos instrumentos. O deputado Vasco Neto fez a doação dos primeiros instrumentos e aconselhou Edésio a registrar a banda. E, assim, depois de uma reunião com a diretoria, todos concordaram em registrar a banda com o nome do Maestro Pedro Leite de Almeida. A filha de Pedro Leite, Dalva Leite, de 72 anos, nos conta com muita emoção do amor que seu pai tinha pela música. “Muitas vezes, para conseguir
dinheiro para a compra de instrumentos, ele contava com a ajuda da igreja, realizando leilões, bingos e formando ternos para se apresentar, mas nem sempre dava certo. Ele vivia remendando os instrumentos”. Ela contou que, certa vez, ela foi se apresentar num terno montado por seu pai, o Terno das Baianas, toda enfeitada e, quando o terno foi sair, caiu um temporal e todas voltaram pra casa molhados onde a apresentação foi cancelada. Elvira Ramos, diz ela, foi quem incentivou Pedro Leite a organizar o Terno das Baianas com a finalidade de angariar fundos para a compra dos instrumentos da banda. É com lágrimas nos olhos que Dalva conta que o trabalho do seu pai teve que ser interrompido.
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No dia 12 de dezembro de 1970 veio o registro da Banda. A FUNARTE (Fundação Nacional de Arte) no Rio de Janeiro forneceu os instrumentos para as filarmônicas legalizadas. Foi então que a Banda começou a ter várias melhorias. Edésio fazia os projetos e sempre ia à Salvador pegar instrumentos. Com a morte de Zé de Artur, Edésio ficou sendo presidente, maestro e músico.
João Pernambuco, Vaqueiro Rei do Sertão João Freire de Carvalho, vaqueiro nascido em Parnamirim, em Pernambuco, morava numa comunidade chamada Lagoa do Meio. Aos 16 anos, saiu dessa localidade e veio para Carinhanha morar com seu tio Ernesto Lopes de Carvalho, conhecido vaqueiro da região, cujo respeito que todos da região conservam por ele, rendeu-lhe a homenagem de ter seu nome marcado no parque de Vaquejada da localidade, o Parque de Vaquejada Ernesto Lopes. João é conhecido por todos os parentes e amigos como “João Pernambuco” ou “João de Ernesto”. Sua esposa, Maria do Carmo, é quem relata sua trajetória como vaqueiro e como parteiro de vacas. Ela conta que, quando casaram, chegaram a morar em várias fazendas, porque ele trabalhava como vaqueiro. Sua primeira experiência fora na fazenda do Sr. Nanô, genro de Ernesto Lopes, seu tio. Em seguida, foi trabalhar na fazenda de Dr. José Antônio filho, médico pediatra e clínico geral em Carinhanha. Seu trabalho consistia, dentre outas coisas, em campear e viajar muito com as boiadas para todas as regiões vizinhas como Feira da Mata, Montalvânia, São Gonçalo e Caio Martins (Juvenília), vacinar e fazer partos. É preciso que se diga que João Pernambuco e seus tios foram os primeiros vaqueiros desta região, os primeiros a campear no mato e a seguir viagem com as boiadas tocando gado a cavalo. Seu Ernesto, além de trabalhar nas fazendas da região com a lida do gado, também fazia suas próprias vestimentas de couro. O gibão e perneiras saíam de suas próprias mãos. Mas sua arte não parava por aí. As selas e arreios que colocava em seu cavalo também eram obra sua.
Em suas andanças no campo, campeando muito, sem dia certo pra voltar pra casa, os vaqueiros levavam seus alimentos. Eles mesmos cozinhavam sua própria comida acendendo fogo no mato e se alimentando de feijão com carne de sol, ossada de porco e de gado, feijão de corda com tudo junto: arroz e carne de porco ou de sol, farinha com rapadura, queijo que eles mesmos faziam e farofa de carne de sol. Nessa lida de passar muito tempo longe de casa, o vaqueiro vai aprendendo a cuidar de si e da vida dos bichos. Benzol, creol com alho e sal eram os remédios dados ao gado para muitas doenças. Também serviam como remédio as garrafadas de babosa e óleo de mamona. E, para evitar que o gado sucumbisse nos períodos de seca, aprenderam que a palma seria uma boa ração.
Vaqueiro também por fazer parto de vaca Quando veio de Pernambuco, João já tinha o costume de lidar com o gado e, entre seus saberes nessa lida, também já sabia fazer partos de vacas. Mas é seu filho, José Raimundo Sena, que acompanhava o pai nessa empreitada veterinária, que conta como procediam. Ele diz que, quando as vacas tinham dificuldade para parir, ele fazia o parto tirando o bezerro, muitas vezes ainda vivo. Em partos mais complicados, somente a vaca se salvava. Era chamado por pessoas das comunidades vizinhas para prestar esses serviços, muitas vezes até de madrugada. Tudo deve ser feito com muito cuidado e atenção, equilíbrio e pensamento positivo. Quando se coloca a mão e se toca lá dentro da vaca, o parteiro de vacas consegue saber se o bezerro está virado de bunda ou atravessado. E, se estiver nessas posições, é necessário virar o bezerro e colocá-lo em posição correta para puxá-lo. Quando não é possível tirar o bezerro vivo, faz-se de tudo para salvar a vaca. Entretanto, ocasionalmente, a vaca também acaba morrendo por ter sofrido muito.
Vaqueiro Ernesto Lopes, à direita
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Após o parto, ensina Jose Raimundo, pisavam a umburana de cambão. Essa umburana é uma semente vermelha que era colocada de molho. Depois de coada, é dada para a vaca beber. Esse remédio era usado para desinflamar e cicatrizar alguns ferimentos, resquícios do parto. Usavam-se também injeções como Agrovete, que servia para fortalecer a vaca depois do parto, e Terramicina, para desinflamar. Outro remédio bastante utilizado era o feijão de corda pisado no pilão. Desse, tirava-se o pó na água e se fazia uma garrafada. Servia para quando a vaca estivesse colocando para fora o “amado”, o útero. Quando isso acontecia, passava-se óleo de mamona para não ficar seco e colocava o útero para dentro da vaca novamente. Se ficasse para fora, a vaca morreria. Ensina que não pode haver demora no parto, isso também pode levá-la à morte. E foi com essa vida, e depois de muito trabalhar como vaqueiro, campeando gado no mato, de fazenda em fazenda, que João comprou das mãos do seu sogro um pedaço de terra em Lagoa Dantas, e assim foi vivendo a sua vida de vaqueiro. Nesse pedaço de chão, também foi lavrador. Plantava milho, feijão, mandioca, melancia, arroz, abóbora. Mas a vida de vaqueiro não se resume somente a vacinar o gado, alimentar, fazer partos e correr atrás deles no mato. Também há espaço para festa. E, mesmo nela, aquilo que lhe faz vaqueiro não pode faltar, o gado, em especial o boi. Assim é que os que enveredam pelo ofício de vaqueiro não deixam de participar de vaquejadas e derrubar os bois nas arenas.
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Versos de Vaqueiros 1º verso Minha mãe, quando eu morrer, me enterre no juazeiro. No lugar que o gado amaia para ali deixar assentado um cruzeiro, deixando escrito ali que existe um vaqueiro. 2º verso Minha cela é minha cadeira. Minha cama é meu gibão. Quem me criou foi o gado. Meu alimento é a rama. Morrendo, levo saudades do berro da bezerrama. 3º verso A cachaça tá no copo. O copo tá no balcão. Cachaça e mulher bonita foram a minha perdição.
* Cantado por Cosme Sena e Reginaldo Lopes.
4º verso Minha vida é um esporte. Gosto da vida de gado. Por mulher mato e morro. Sou vaqueiro apaixonado*. 5º verso Couro de moça nova dá corda de coração. E couro de moça velha dá perneira e gibão. 6º verso Quem namora moça gorda vai topar com satanás. Apaixonado e dizendo lá vai meu bujão de gás. Namorei uma menina por nome de Terezinha. Fecho os olhos faço que morro, você me mata Terezinha.
7º verso Cavalo só presta grande, que tem bom espinhaço. Mulher só presta bonita, de dezoito anos abaixo. 8º verso Já tive muitos amores de causar recordações, mas só uma dessas coisas. Foi minha grande paixão. Não foi carro, nem mulher. Foi um cavalo campeão*. 9º verso Sou um vaqueiro velho, acostumado a trabalhar. Dentro da minha profissão, ninguém nunca pode me ensinar. Nasci no Pernambuco. Hoje estou neste lugar, devido à seca que há. Mas quando houver inverno, Torno voltar pra lá*.
Seu João Pipoqueiro Seu João Luiz de Souza, 92 anos, o seu João Pipoqueiro, que todos os dias, finalzinho de tarde, costurava as ruas da cidade com seu carrinho com sua cobal, amarrando com um mesmo laço a memória coletiva do lugar. Nascido em Sobrado, município de Juazeiro, casou-se com dona Sebastiana Santos de Souza, com quem teve 05 filhos, todos Carinhanhenses. Primeiro pipoqueiro da cidade, ele fez, durante muito tempo, a alegria da criançada. Final de tarde, noitinha, lá vinha Seu João com seu carrinho de pipoca. Era um carrinho de pipoca que não vendia só pipoca. Eram também balas, chicletes, pirulitos, maria-mole, cocada, algodão doce, cigarro, pinga, dentre outros produtos, era tantos produtos que seu carinho de pipoca era conhecido como “cobal”. Cobal era uma lancha que trazia de tudo para comprarmos. “Quando
estava perto da chegada dela, a gente já prevenia o dinheiro”, conta
alguém. Quando ele apontava na esquina, os meninos inundavam as ruas
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* Cantado por Reginaldo Lopes
* Cantado por Sebastião Lopes
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e era aquela algazarra, “Mãããe, lá vem o pipoqueiro!” Era a diversão. Conversas ao pé das calçadas, como é o costume das pequenas cidades, “regadas” a pipoca do Seu João. “Era até um jeito de fazer os meninos
ficarem quietos”. Em tempo de festa, seu João e sua esposa colocava a canga no jegue com as mercadorias e saía vendendo no município todo. A canga é um suporte de madeira em formato de cavalete que é colocado no lombo do jegue, no qual se penduram bolsas, trouxas, sacos, sacolas, enfim, a bagagem. Seu João Pipoqueiro saía todos os dias, às 18h, da sua residência para ir às ruas vender pipoca, todos já aguardavam. As pipocas eram todas vendidas. Não dava para quem queria! Ele era tão famoso que é lembrado até hoje. Ele também vendia quebra-queixo, receita que aprimorou em Petrolina, quando passava uma temporada por lá. Foi por lá que ele mandou fazer um tabuleiro onde ele colocava o quebra-queixo pra vender. Com esse tabuleiro na cabeça, ele ia de casa em casa, entoando sua ladainha à criançada. Seu João Ferraz hoje não vende mais. Diz que sente saudade daquela época.
“Ali era que era bom de viver, tudo era mais saudável e as pessoas respeitava mais a todos e sentia prazer em tudo o que fazia”. RECEITA DO QUEBRA QUEIXO 05 kg de açúcar 05 cocos 04 litros de água. MODO DE FAZER Junte a água e o açúcar. Mexa até dissolver. Rale três cocos e coloque junto. Corte dois cocos em tirinhas e junte também em um copo duplo. Coloque três colheres de chá de ácido cítrico. Misture tudo e leve ao fogo mexendo sempre até que cozinhe e dê o ponto certo. O PONTO Pegue um copo com água e uma colher e enfie no copo. Coloque dentro do quebra-queixo. Quando não grudar mais, está no ponto.
Quando Seu João parou de vender, Seu Donizete foi quem assumiu o posto de vendedor de quebra-queixo.
Seu Donizete De uniforme verde, de boné e de crachá, pedalando o seu triciclo, lá vem ele.
Vambora, vambora! Venha até a rua comprar o quebraqueixo mel do seu amigo Donizete. É assim que ele chama atenção da meninada na rua que, de ouvido apuradíssimo, na primeira nota da loa de Seu Donizete, corre pra rua pra comprar o “Quebra-Queixo Mel”. Donizete Rodrigues dos Santos, casado com dona Edna Oliveira Lima e pai de um filho, começou a vender quebra-queixo quando ficou desempregado. Ele procurou uma pessoa que sabia fazer e pediu que lhe ensinasse. Recebeu um “não” como resposta. “Tentei fazer sozinho mas não deu certo”, disse entre risos. “Mas, assim como o quebra queixo, eu sou duro na queda”. Comprou uma bicicleta cargueira e mandou fazer o tabuleiro onde se coloca o quebra-queixo. Assim, começou a vender nas ruas vendendo o que as pessoas conhecem como “quebra-queixo mel”. Depois de passar certo tempo com a bicicleta, teve outra ideia para tornar seu produto mais chamativo. Assim, ele fez um triciclo adaptado que ele saía empurrando por toda a Carinhanha até em Malhada. Depois de mais algum tempo, e com sua criatividade inquietante, resolveu melhorar o triciclo, tornando-o motorizado e muito bem equipado. Para fazer esse triciclo, diz que contou com a ajuda da população que fez doações. Seu equipamento tem até som, e é este som que ajuda a atrair os clientes. Ele conta que até o uniforme que usa, inclusive o boné e o crachá também recebeu de doações. Para Donizete, o problema que enfrenta é de segurança. Seu João Pipoqueiro é quem diz que “Antigamente, não era como hoje,
não fazia medo, eu podia deixar a mercadoria só e sair um pouco. Hoje, faz medo até mesmo dentro de casa”. É justamente o problema
que Seu Donizete tem enfrentado ultimamente, vítima de roubos feitos por adolescentes enquanto ele atende os clientes e se afasta do seu triciclo.
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Donizete não cansa de criar coisas e tornar seu trabalho diferente e alegre. E foi assim que mais uma vez ele pensou em outra coisa: uma música para chamar a atenção da clientela.
Ó minha nossa senhora aparecida do céu e da terra também está passando pela sua rua o quebra-queixo mel, além de ser barato ele não quebra o seu queixo, o danado não tem caroço, você come pela a boca e desce pelo pescoço. Se o seu filho chora a culpa não é do seu amigo Donizete é do seu pai que não comprou. Vambora! Vambora! Venha até a rua comprar o quebra- queixo mel do seu amigo Donizete Deus nos abençoe e nos dê a paz que só o amor é quem nós traz, a paz pra quem viaja a paz pra quem ficou.
Seu Conde Os fotógrafos são testemunhas oculares da história. Seus olhos mecânicos conseguem não só ver, mas capturar a vida em cores, luz e sombra, e congelar o tempo em folhas de papel para que os que estão longe dali, no tempo e no espaço, possam também ver o mundo e testemunhar, também, a história. São como fantasmas viajantes do tempo, que nunca aparecem nas fotografias, mas estão presentes em todas elas, materializando a memória viva no velho álbum de fotografias. Seu Conde mais parece um Duque pelos trejeitos, pelos modos, pela delicadeza, fineza e educação. Sua esposa Raimunda e seu delicioso pão de queijo feito com queijo genuinamente mineiro completam o cenário. Vindo
de Januária, Minas Gerais, aportou em Carinhanha aos 20 anos, quando ia em direção a Paulo Afonso. Diz que veio em uma canoa de remo. Ao chegar de passagem nessa cidade, num momento de festividade religiosa, percebeu que ali, em meio a tanta gente, conseguiria vender bem as fotografias que tirava ali mesmo no meio do sagrado e do profano da festa. Como era o único fotógrafo, foi adquirindo fama e sendo cada vez mais reconhecido. Menos de dez anos depois, conheceu sua Raimunda que, segundo ele, inventando querer fotografar seus cachorros, conquistou seu coração. Assim, casaram e ela, ainda estudante, teve os pagamentos da escola garantidos pelo esposo. Com o trabalho das fotografias, Seu Conde construiu sua casa e criou os filhos que hoje moram fora. Na parede da sala de sua casa, em meio aos móveis e ao colorido das colchas de fuxico, que de longe se vê, no entreaberto da porta do quarto, estão as fotos dos filhos ainda pequenos. Esse fotógrafo conhecido em toda a redondeza, viajante nada solitário, conta que já chegou a dormir em calçadas junto ao padre Vanderlei. Para além das fotos de ordem religiosa, como as festas, casamentos, batizados, também fazia parte de seu metiê o registro de mortos (pecadores e anjos) de presos (chegava a se camuflar usando chapéu de palha para não ser reconhecido pelos presos) e até pessoas em estado de putrefação, que este, certa vez, se negou a fotografar. As fotos para documentos também eram feitas por ele, e ainda são. Fala do título de eleitor que, antes, era acompanhado de uma foto 3x4. Seu trabalho também foi reconhecido por ocasião do filme Sentinela (15 min, MG, 2007. Direção de Afonso Nunes) filmado em terras baianas e mineiras. As fotografias de morte entre sertanejos e de tudo o que a envolve, seus ritos, simbologias e crendices também passaram pelo olhar desse homem que teve uma de suas fotos na capa do filme. Em suas fotos, de modo geral, não só aparecem rostos e corpos, eventos e situações, mas as histórias dos moradores de Carinhanha e da redondeza, os amores, as tragédias, as alegrias da vida e as dores da morte, tudo ali entre o mundo do rio e as veredas desse sertão. Certa vez, ele estava fazendo uma viagem e, ao chegar a Carinhanha, no vapor, ele se deparou com uma pilha de sacos de milho. “Era mais de mil sacos”, diz Seu Conde. De repente, ele começou a fotografar tudo e foi tirando fotos e tirou várias, umas trinta. No mesmo instante, o pessoal do vapor comprou todas. Um acontecimento muito marcante em sua vida foi uma grande festa
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aqui na região, na cidade de Palmas de Monte Alto, É lá que se apresenta um desfile muito famoso cujo tema, naquela época, foi “Apolo 11”, espaçonave que levou o primeiro homem à lua. Isso teve muita repercussão, foi um momento ímpar para a sua profissão.
A maioria das pessoas agendava sessões de fotografia, para que ele tirasse fotos de aniversários, casamentos, formatura, batizados, velórios, entre outros. Uma das festas que era muito boa para ele trabalhar, era a Festa do Divino. Muita gente queria foto e, como era em monóculo, entregava na hora; isso fazia com que o retorno financeiro fosse rápido. Seu Conde lembra que as famílias que tinham algum dinheiro, quando uma criança da família nascia, os pais acompanhava o desenvolvimento da criança com fotos de todos os meses da criança até que ela completasse um ano de vida. No Clube 02 de julho, já fez cobertura em grandes bailes e festas que aconteciam por * Em verdade, lá. No dia 21 de setembro, também tinha o desfile da primavera, no qual os lambe-lambeé o estudantes passavam pelas ruas chamando a atenção de todos e tudo tinha nome dado aos que ser registrado.
fotógrafos de rua, que usavam máquinas fotográficas. Em verdade, caixas fotográficas apoiadas em tripés. Essas “caixas fotográficas” era cobertas por um tecido escuro sob o qual o fotógrafo colocava a cabeça para visualizar a imagem a ser fotografada.
“Na época de Manoel Pereira, o popular Manoel feio, ele usava uma máquina conhecida como lambe, lambe*. A foto era entregue na mesma hora. Em seguida, veio a polaroide, que também revelava na hora.” Seu Conde também acompanhava o Pe. Wanderlei em todo o município, nas festas e nas celebrações. Algo que ele não gostava de fazer era fotografar criminosos. Certo dia, ele foi chamado pelo delegado para fotografar uns pistoleiros que estavam presos acusados de matar o ex-prefeito de Malhada Pedro Pires. “Eu já fotografei de tudo no mundo. Algo muito marcante
também foi quando fotografei uma criança recém-nascida no hospital que tinha apenas um olho no meio da testa. Ela ficou viva por uns quinze minutos”. Ele lembra de outros fotógrafos da região: Zé do Ouro, Zé Vieira, Artur Viana, Barbosa, Manoel Pereira, conhecido como Manoel Feio entre outros.
Atualmente ele vem tirando fotos apenas para documentos, pois a tecnologia está avançada e as próprias pessoas é quem fotografam os eventos de que participam. Os momentos em que atuou na profissão, no entanto, foram exercidos com muito amor. Espalhados por todos os lugares, esses heróis cotidianos se dividem em várias categorias. Há deles que são pescadores, rezadeiras, benzedeiros, parteiras, há deles que são músicos, artesãos, e há também os anti-heróis excêntricos, ou os popularmente conhecidos, “loucos” etc.
Pescadores, heróis encantados “Em certa época, uma senhora, moradora da comunidade recebeu um convite em sonho. Foi um convite de alguém especial, o Encanto D’água. A senhora foi chamada para realizar o seu parto no fundo do Rio São Francisco. Se o convite fosse aceito, eles fariam um pacto. A senhora protegeria o filho do Encanto D’água e, em troca, seus filhos não morreria nem afogado, nem de tiro e nem por faca. Teria uma morte natural. O Encanto D’água é a companheira do Compadre D’água. E, segundo os moradores, essa história teria que ser mantida em segredo.’’ Carinhanha desfruta das águas de dois rios. A cidade se ergueu às margens do São Francisco e do Carinhanha. Das águas vem o sustento de suas famílias, a água, o peixe, o caminho, a estrada. O rio conduz à vida. O rio também tem vida, vida que vai para além dos peixes e das plantas. Essas águas são cheias de mistérios. O rio tem os seus encantos, encantamentos e encantados. Para entender esses mistérios, ninguém melhor para explicar que quem faz dos caminhos dessas águas seu espaço, seu ofício. É o pescador quem navega, convive, vive, sobrevive dessas águas... nesses encantos.
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Porto Mari, 1969
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Seguindo o cais como quem sobe rumo à prefeitura, existe ali, logo à esquerda de quem sobe, a Associação de Pescadores Piscicultores do Velho Chico. Um humilde prédio azul rico por demais em histórias. É lá que se pode encontrar seu Honório, presidente da associação . Seu Honório se comprometeu em chamar outros pescadores para se reunirem ali na associação mesmo. O motivo do encontro? Escutar as histórias dos pescadores a respeito dos mistérios do rio.
Seu Alexandre, Seu Zé Ribeiro (Dequinha), Seu Agripino, Seu João, Seu Joaquim Pepi, Seu Jason, seu Vicente, Seu José Messé, Seu Honório “A barca segue seu rumo lenta como quem não quer mais voltar, como quem se acostumou com canto das águas como quem não quer mais voltar”
Muito próximo ao mercado, havia muito movimento de gente, de carro, e de carro-de-som. Os pescadores organizaram-se em um pequeno círculo na sala de entrada, Seu Alexandre, Seu Zé Ribeiro (Dequinha), seu Agripino, seu João, Seu Joaquim Pepi, Seu Jason, Seu Vicente, seu José Messé. E foi Seu José quem começou o narratório, dizendo que
“Quando eu era criança, eu tinha de uns 7 pra 9 anos, eu e meu irmão pegamos a canoa de meu pai e fomos pro rio pescar. De longe, começamos a ver um menino que mergulhava e saia lá na frente, longe. E fomos acompanhando. Depois, já não era mais só um, eram dois. Eles mergulhavam, saiam longe, mergulhavam de novo. Pareciam dois meninos, duas criança, brincando na água.
Eles apareceram do nada. Eram pequenos, mas tinham uma tora de braço, braço grossão. Nós ficamos vendo aquilo e não entendia de onde tinha saído aqueles dois. Começamos a jogar pedra neles e saímos remando rápido pra chegar em casa logo. Contamos pro nosso pai e ele chamou a gente num canto e foi explicar o que tinha acontecido. Ele disse que nunca tinha falado isso com a gente mas agora ia falar. Ele disse que o que nós tinha visto era o dono das águas e que nunca mais a gente jogasse pedra ou tratasse eles mal porque eles podiam proteger quem tivesse por ali pela aquelas águas, mas também podiam prejudicar. Por isso, era bom respeitar.” Das histórias fabulosas que viveram, dos encantados, é Dequinha quem, num rompante, duvida
Isso aí é confusão. Não, não é não? E as histórias minam.
Da esquerda pra direita: Seu Joza, Seu João, Seu Agripino, Seu Dequinha, Seu Honório e Seu Alexandre.
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Lá em Minas, onde eu morava, aqui abaixo da boca do Rio Verde, a gente andou vendo várias coisas que dizem que era encanto. Mas ninguém via porque subia e descia e desaparecia. Existe sim hoje não mais em outro tempo existia. O diálogo corre livre, uma conversa espontânea entre amigos de muito tempo.
Agora, é que nem essa história. Uns acredita, outros não. Falando de encantados, eu viajei por essa águas dezoito anos sozinho, pescando de linha de terrena, eu e um cachorro. Quase não tinha cidade por essas beira de rio. Carinhanha era muito poquinha. Eu via e só via uns remanço. Eu com idade de 18 anos aportava em Carinhanha e todo mundo que tá aqui sabe: aqui só tinha dois depósitos de peixe. Eu vendia o peixe salgado porque naquele tempo não tinha gelo. Eu vendia meu peixe, fazia minhas coisinhas e arribava no mundo. Quando o lugar era feio, eu dizia ‘Aqui pode ter onça, pode ter um bicho aí, eu não vou dormir no seco, não’. Eu apanhava uma pedra, amarrava noutra pedra, e apoiava no meio do rio, lá no meio do rio. Eu passava a noite com o cachorro na proa, e eu deitado cá atrás, no piloto do barco. Eu nunca vi encantado. Eu vi muito terremoto, ouvia uns estouro, eu abria os olho e aquele remanço mais horroroso levantava até maré. Tem muito pescador que diz ‘eu vi o compadre d’agua, apareceu na minha frente, ele era careca’, mas eu mesmo nunca vi. Uma vez eu tava com um colega de pescaria dentro do meu barco. Nesse dia, eu tava pescando de rede, aí nós vamos com a rede descendo rio abaixo. Aquele trem arrastou a rede pra fora. Eu disse ‘Ai, um Deus do céu! O que é isso? Isso deve ser
um surubim muito grande’. Aí ele tornou arrastar pra fora. Eu disse ‘Colega, vamos puxar a rede que nós mata esse peixe’ e começamos a puxar a rede. Quando eu cheguei perto, era um trem que pesava uns cem quilo, aí eu disse ‘Ai, meu Deus do céu! Agora eu vou ver o bicho’. Quando eu vi, o trem arrastou a rede que eu tinha dentro do barco todinha. Ele saiu lá na frente, turvo, uma cabeçona grande. ‘Olha aí, é encantado, Alexandre!’. Calma escuta a história. O companheiro botou os remo dentro do barco, se sentou e disse ‘Ai, meu Deus do céu! Nós tamo morto’. Eu disse ‘Calma, moço! Calma! Num é assim, não, eu ainda não enxerguei o que é, nós tem que ver o que é’. Aí eu comecei a punhar a rede, quando chegou num lugar raso, o trem rasgou a rede ‘trá-trá-trá’. Saiu em cima, uma anta. Mas ele diz até hoje que não era uma anta era um homem, porque ele viu um homem, mas era uma anta, eu vi uma anta. Isso aí é que eu conto porque pra muitos pescador podia ser um homem. Uma coisa é isso que eu digo. Por isso que o povo diz que vê as coisa no rio. A pessoa tem que ver direitinho pra saber o quê que viu. Seu Alexandre interrompeu o amigo,
Mas é isso. Pra você era uma anta, mas pra ele não era. É como fantasma, tem gente que diz que não existe, mas eu mesmo já vi. É como um camarada que vem na estrada e vê um cachorro e pensa que é um jumento, aquela coisa é transformada.
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Explica Seu João, e continua,
Vê onça e pensa que é homem. Cada um vê no ato ali, num barrocão. Havia um senhor que vinha de Januária pra cá sempre mudando. Aí, nós encostamo a lancha, fomo lá, conversamos com ele, oferecemo a mercadoria pra ele. Ele disse ‘Eu quero tantos quilos de arroz, de feijão’. Aí eu desci pra pegar as coisa na lancha, mas eu não tive coragem porque tinha aquele escumeiro e as barreira caído escorregando, e eu fiquei olhando aquela situação aquele escumeiro. Eu corri pra lá e contei a situação. Disse o que tava acontecendo. Uma coisa lá que tá derrubando o barranco todinho. Aí o dono falou que sabia o que era, que aquilo era um caboclo d’água. ‘Nós somo intrigado. Essa é a sexta vez que eu to me mudando e ele me acompanha’, ele disse. Quando eu e os outros companheiros descemo pra seguir viajem, pegar a lancha, o rio já tava todo em silêncio. E o senhor disse que, quando a gente chegasse no porto, não xingasse, não falasse palavrão e que, se a gente tivesse fumo, deixasse um pedaço de fumo nas beiras de barranco e seguisse nossa viagem. Seu Dequinha é quem diz que
A única presepada que eu vi foi em Botirama, num lugar chamado por braço dos macacos, porque é uma fundura imensa. Nós chegamo em quatro. Botamo os anzóis, o rio muito cheio, não achamo isca. Aí fomo por ali, pelos alagadiços, pelas água rasa. Eu peguei nove curumatãzinha. Um irmão meu não pegou nenhuma isca. E outro pegou uma. Só eu dividi as isca e nós botamos os anzóis. Ainda era poça e, como não achamo isca branca, pegamo o muçum, uma
cobra preta lisa. A gente pega aqueles troço com balaio no mato, corta as torinha e isca os anzóis com elas. Eu peguei as minhas três curimatã e isquei no anzol grande. Um dos meus irmão iscou os azol perto dos meu. Quando ele vem subindo, eu já tava no barraco fazendo um café. Aí ele perguntou ‘Aquela cabaça grande que tem lá em cima é tua?’ Eu disse que era. ‘Pois você vai lá que tem um peixe e é grande’. E eu cheguei lá e era mesmo. Eu tirei um peixe de 52 quilo, um surubim. Eu não tinha mais curumatã pra botar no anzol eu botei uma muçum inteira. O Francisco meu irmão tirou um surubim de 40 quilo. De manhã, o Marcelino, o outro irmão, foi vê os anzol dele e não tinha nada. Ele ficou meio chateado e perguntou se só nós era que era fi de Deus e ele fio do diabo. Num tinha pegado nenhum peixe. Eu disse, ‘Rapaz isso aí é sorte’. Moço, aconteceu uma maré naquele instante quase da altura dessa casa, não tinha barco que pegasse, e, sem vento, sem nada, fazia váááááá, váááááá. ‘Meu Deus o que é isso? Bota o barco pra beirada que o barco vai virar’. No meio daquele negócio, tava as minha nove cabaça, as nove de Francisco e as nove de Marcelino. Pois dessas vinte e sete só as de Marcelino desapareceu. Isalou de chão adentro até os dia de hoje, e as nossa ficaram lá. No meio daquela maré, só as nossa ficou e as dele sumiu, só por causa das palavra que ele disse. Essa foi a única coisa que eu vi no rio. Seu Alexandre duvida do colega
Mas ele disse que nunca tinha visto nada no rio. Então, é Seu Agripino que sentencia entre risos
Mas eu não tô falando que tu é o mais mentiroso que tem, Dequinha?
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Seu Dequinha se defende
Mas aquilo pra mim foi um nada. Não é muita coisa. Foi a única coisa que eu vi no São Francisco. Dezoito ano andando sozinho por essas água e eu nunca vi nada. Seu Honório debocha
Mas o que Cê viu foi muita coisa. Seu Dequinha argumenta
Mas na minha cabeça aquilo ali não foi negócio de encanto de compadre d’água de caboclo, não. Aquilo ali foi foi castigo que Deus mostrou pra ele. Todas essas histórias se misturam, se confundem umas com as outras. A história de um é a história de todos. Separá-las seria como querer separar águas de um mesmo rio e é na coletividade que as histórias se reforçam. Seu Alexandre conta que começou
“a pescar com a idade de 9 anos. Morava em Minas Gerais e mudei pr’aqui em 62. Nem os 9 anos completos eu tinha ainda. Foi quando comecei a pescar com meu pai. Aí fui levando minha vida, pescando, pescando. De tudo quanto era diversidade de peixe tinha aqui: curimatã, surubim, dourado, pocamã, pirá... esses peixes daqui da região. Aí o tempo foi passando, foi passando e, no tempo em que nós estamos, quase metade desses peixes estão em extinção, como é o caso do surubim. O pocamã quase ninguém vê. O Pirá é muito difícil. Agora, o curimatã, a traíra, o pião, a piranha se encontra. Já o tambaqui que não era um peixe presente, agora é o mais presente. Antigamente não tinha.”
“A minha história é que quando eu cheguei aqui, em Carinhanha, quase não tinha quase nada. Quem conheceu sabe. Era só aqui da Prefeitura, esse pedaço aqui de centro. Hoje em dia, ela já esbanjou até onde está. Calçamento não tinha. Só tinha duas ruas calçadas. E a pescaria, o meu conhecimento é igual de todos. Esse cidadão, eu cheguei aqui já conheci ele pescando, em época de garoto, não foi, não, Agripino? Alguns parceiros dessa época já se foram. Então, tem outras histórias que a gente pode conta, mas no momento a mente não funciona diretamente.”
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Seu Dequinha diz que
Eu nasci e me criei no rio. Minha mãe me teve numa coroa*. Eu fui nascido numa coroa no meio da água. Eu fiquei sem pai com cinco anos. Minha mãe tinha seis filhos e nós ficamos morando na ilha. Naquele tempo, não tinha condições nenhuma. Nós não tinha pai, e uma mulher sozinha pra criar seis filhos! Aí, fomos pra roça apelar pra roça. Os mais velhos tomando conta dos mais novo. Ainda é ele quem conta que
Quando eu cheguei, com nove anos de idade, eu mesmo tomei conta do meu barco. E a gente tirava assim ‘Dequinha, vai pro rio porque ele é que é o fera mesmo’. Aí eu pescava a noite toda. Chegava tinha o peixe pra comer. Meu irmão vendia o resto e comprava aquele quilim de café, café branco no caroço, que minha mãe torrava pra alimentar a gente. Comprava um quilim de açúcar. Não, açúcar não, que naquele tempo pobre só comia açúcar era de rapadura, aquelas bandinha de rapadura. Eu tinha que ir pro rio de novo pra comprar tudo no outro dia. A gente apelou pra roça e pro rio.
* Diz-se de uma nesga de terra que aponta na água formando como que uma pequena ilha.
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Um dia uma professora disse pra minha mãe que nós tinha que estudar e minha mãe disse que se a gente fosse estudar ia comer o quê? Quem ia trabalhar? Ela disse uma coisa que até hoje dói: Quem não tem leitura também vevi. E criou os filho tudo analfabeto. Da Barra até Januária, nas margens do Rio São Francisco, não tem uma cidade que eu não conheça. Eu pescava de tudo enquanto era profissão, anzol, rede, tarrafa... não tem uma traia que eu não tenha executado, que diga ‘Dequinha não executou essa traia’. Seu Agripino conta que
Eu comecei pescar acho que até mais novo que o Dequinha, mas eu num sei pescar igual a ele não, ele pesca mais. E nem menti porque eu só falo a verdade. Esse negócio de ver coisa em água, ele já disse que não tem, mas tem. Quando eu cheguei aqui, rapaizim novim, eu já botava barco pra pescador pescar. Naquele tempo, a gente pegava num era poquim peixe, não, pegava era barco cheio. Nós demo uma volta assim num rio que dava mais ou menos um quilômetro. A gente subia o rio era batendo suvaco, remando. Naquele tempo era no remo, não tinha motor. Eu, criança, chegava a vim gosto de sangue na boca. Costurados uns nos outros pelas memórias, todos são um só.
Benzer e Rezar Benzedeira, benzedor, rezadeira e rezador. Existe diferença entre essas duas práticas? Em Carinhanha, a rezadeira/o rezador é aquela(e) que sabe orações como as ladainhas dos Santos, o ofício, e que faz celebrações coletivas quando lhe é solicitado. São pessoas muito comprometidas com as práticas da Igreja. Rezar é missão, e sempre atendem a uma precisão. Rezam pela manutenção da fé. Já o benzedor e a benzedeira também rezam, mas a finalidade é a cura de alguma enfermidade de alguma pessoa, de algum animal. Cada uma dessas práticas, entretanto, se apropria dessa missão de forma muito particular e, dificilmente, seus praticantes revelam a reza/oração que conduz à cura.
A fé que move montanhas, a reza que move a fé: rezadeiras de ofício, ladainhas e velórios As rezadeiras e os rezadores são aquelas pessoas que conhecem as orações e conduzem as celebrações. Não são freiras, nem padres, são rezadores. Muitas famílias convidam essas pessoas para fazer celebrações como pagamento de uma promessa, por ocasião de uma graça alcançada, na semana santa, em sentinelas. Cada ocasião tem rezas próprias:
“Rezo a Ladainha de cada santo. Se for São José, rezo na intenção de São José. Se for Santa Luzia, rezo para Santa Luzia. São Sebastião, rezo na intenção do santo. Na hora da reza da ladainha, usamos os santos daquele dia. Usamos a cruz que simboliza Jesus, a vela e a voz. Só adoro e beijo santo na semana santa.” Ladainhas, ofício, benditos também já fizeram parte da minha vida. Eu apenas tinha deixado essas memórias bem distantes do meu alcance. De tanto mergulhar na memória de outros, acabei reencontrando as minhas. Também conheci algumas rezadeiras e, junto delas, já fiz parte do coro que repetia o “rogai por nós”.
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No mês de maio, a imagem de nossa senhora visitava todas as casas do bairro. Cada morador preparava um pequeno altar ornamentado com flores, toalha branca e velas. Começava próximo das seis da tarde. Em cada casa se rezava um mistério e se cantava benditos. Na casa em que se rezasse o último mistério do terço, a imagem de nossa senhora ficaria e só no outro dia se começava tudo novamente. Esse ritual era feito por todo o mês de maio. Quem conduzia e organizava esses momentos eram aquelas mulheres mais afeiçoadas às rezas. De uma delas me recordo bem. É Dona Rosinha. Ela sabia todos os benditos, ofícios e ladainhas decorados. Um verso do ofício nunca saiu da minha cabeça : Ouvi, Mãe de Deus, minha oração. Toquem vosso peito os clamores meus. Deus vos salve, relógio Que, anda atrasado, serviu de sinal ao Verbo encarnado. Que o homem suba às sumas alturas...
As rezadeiras também prestam seus serviços em velórios, e desses momentos são o que mais me lembro: os timbres de voz, o coro do “rogai por nós”, que parecia interminável, o latim que, nas orações, se misturava ao português. O tom choroso, doído, denso. O cheiro das flores que ornamentavam o corpo agora morto. Não demorava muito e essas mulheres puxavam todos para reza de um outro terço, um outro bendito, e, de novo, uma ladainha. Era como um serviço, uma missão. Se elas sabiam as rezas, tinham que estar presentes para rezá-las, cantá-las e − por que não dizer? − dramatizá-las.
Natalina Francisca Moreira Natalina Francisca Moreira, popularmente conhecida como Muqueca, nasceu 1958 e é Moradora do Cavalo Morto, Localidade de Queimada. Essa mulher, casada, mãe de quatro filhos e avó de duas netas tem vários ofícios. Da reza à cozinha, da cozinha ao bordado, do bordado às atividades domésticas, ela vai acrescentando à sua vida muitas atividades. Na comunidade onde mora, o número de mulheres supera o dos homens, e, talvez por isso, foi preciso aprender a fazer muitas coisas e desenvolvê-las ao mesmo tempo.
Rezadeira de toda região de Carinhanha, quase impossível dizer que há alguém que não a tenha visto rezando em Varginha, Lagoa Danta, Várzea das Caraíbas e Micaela. Aos vinte anos de idade, ensinada pelo pai Antonio Moreno também rezador, foi que começou sua experiência de rezadeira. Reza se aprende, assim como se aprende a falar, a andar e a ter fé. Tornou-se conhecida através do seu ofício e, principalmente na quaresma, nas promessas, ladainhas, e no natal, não tem como não ter a presença de dona Muqueca. Na quaresma, especificamente na Quinta-feira Santa, já é tradição a reza que é feita em sua casa, todos os anos. Sempre que vai rezar, pega o catecismo que é o caderno de ladainhas, escrito em latim e é passado de geração em geração. Dona Muqueca não reza só, aliás, ninguém faz quase nada sozinho nessa vida. E, por isso, ela tem algumas companheiras de fé e de caminhada. Quando são convidadas a rezar, vestem-se lindamente de branco, a cor da paz. Conta-nos da beleza do ofício, de sua importância e das vezes que deixou a diversão de lado para rezar. Como gosta de rezar! E assim ela ensina que existem muitos estilos de reza e que estes estilos mudaram muito com o caminhar do tempo. Hoje, diferentemente de seu tempo de juventude, não são mais rezados cantos, e os benditos estão ficando de lado, esquecidos. E o oficio que era rezado todo em latim, nos dias de hoje, poucos são aqueles que o sabem assim, em outra língua. Ela e suas companheiras não rejeitam reza. Seja de que jeito for, lá vão elas, a cavalo, a pé, de carona, de carro. O importante é rezar! O seu pai, o homem que lhe ensinou a rezar, diz que “ela está se fazendo às vezes de mim” e, aproveitando a prosa, pede que ela nunca deixe de rezar. Ela conta que, certa vez, foi a uma ladainha sem ser convidada, e, ao chegar, os rezadores não quiseram rezar de jeito nenhum, e pediram pelo amor de Deus que ela rezasse com eles. Dona Muqueca é uma referência de reza, a ela se deve respeito. “A reza é uma caridade”, diz ela. E é através dessa caridade que sua religiosidade se reforça. “Ela ajuda a me dar fé e também a dar
mais fé para os jovens. As famílias se fortalecem e também fortalece a alma de meus filhos e netos”. Aprendo com Dona Muqueca que, se é a fé que move montanhas, então, é a reza que move a fé.
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Dona Rita Carvalho “Começo a rezar a ladainha e todas as mulheres acompanham” Dona Rita Carvalho Moreira é moradora da comunidade de Tapera. “Sou
uma rezadeira muito conhecida na comunidade nunca nego um chamado”, dispara logo de cara. Diz que sempre reza no sábado. Quando é convidada para pagar uma promessa feita por alguém que oferece a ladainha ao santo como forma de agradecimento pela graça alcançada. Mas também reza na semana. Não cobra nada das pessoas porque acredita que quem dá recompensa é Deus. O dono da casa também agradece. No dia 29 de junho de 2012, completam-se 27 anos que ela aprendeu. “A rezar
mesmo só tem 22 anos”, explica. “A primeira vez foi promessa minha mesmo e aí eu rezei e toda a comunidade gostou e continuo até hoje”. A primeira rezadeira da comunidade era a finada Antônia Viola, que herdou da mãe Josina. Antônia Viola copiou para a sua sobrinha Maria, que copiou para Dona Rita Carvalho, de quem é prima. “Foi passando de mãe para filha, de filha para sobrinha e de sobrinha para prima”, diz em bom astral.
A Tradição da Ladainha de Santo Antônio A origem da Ladainha de Santo Antônio se perde no tempo. Apesar disso, o que a motivou ainda está vivo na memória dessas rezadeiras. “Foi por causa duma promessa que a Dona Candinha fez”, é o que dizem. Depois disso, a reza era feita na casa de alguém que se chamasse Antônio. Dona Ana Farias Cerqueira, uma candura de pessoa, é uma senhora muito lúcida em seus 87 anos. Quem chega a sua casa aí por volta das 19h30, encontra-a sentadinha em uma cadeira assistindo à missa pela TV, na sua sala de jantar, um espaço aconchegante, onde a gente pode se sentir no passado, uma mesa grande de madeira, uma cristaleira com fotos, uma estante com objetos decorativos, alguns jarros de porcelana e um aparador antigo de madeira com fotos da família. Trajando sua roupa de dormir, com um pente preso aos cabelos (costume dos mais velhos), ela convida a entrar e sentar, e vai, com sua voz suave e meiga, em tom baixinho, falando da
importância da reza “é uma coisa muito importante porque a gente
confia naquele santo, tem aquela fé e recebe muitas graças, pra mim é muito importante”. Desde criança, Dona Ana já acompanhava sua mãe à casa de Dona Candinha, pois esta mantinha a tradição de realizar a Ladainha todos os anos no dia de Santo Antônio, dia 13 de junho. Após a morte de Dona Candinha, seu filho Antônio, casado com Dona Flor, continuou a tradição da reza. Depois de certo tempo, Dona Flor e o Sr. Antônio de Candinha se separaram e ele foi embora da cidade. A reza, então, deixou de ser praticada. A velha Cristina que era amiga e vizinha de Dona Candinha foi quem seguiu a tradição até a sua morte. Então a reza passou a ser praticada na casa do Sr. Antônio Alves de Araújo. No dia 13 de junho, homenageava-se o Santo Antônio. Assim, acendia-se a fogueira, rezava-se a ladainha, e logo após tinha a Dança de São Gonçalo, servia-se café, bolo de puba, e biscoito caseiro a todos os presentes. Quando o Seu Antônio Alves de Araújo morreu, a ladainha passou a ser praticada por seu filho Sr. José Alves Araújo (Zé Preto), que também tinha um filho chamado Antônio, já falecido. Hoje, a reza é praticada na casa de Mercede Fernandes de Araújo Nascimento neta de Sr. Antônio, continuando a tradição, e na casa de Almerinda Fernandes (Dona Merú), que também é sua parente e tem um filho chamado Antônio. Segundo Dona Margarida de Almeida Souza, 71 anos, também participante dessa manifestação, os cantos mais utilizados são: Santo Antônio de Lisboa, Antônio acudis Antônio e Ladainha de Nossa Senhora, em latim. Todas as pessoas hoje envolvidas nessa manifestação têm uma grande fé, e também uma grande lembrança das pessoas que hoje já não estão presentes em nosso meio. Dona Ana recordou de várias amigas que já faleceram dizendo que tem 88 anos, mas não quer morrer agora, quer participar da Ladainha ainda por muitos e muitos anos. Dona Almerinda (Meru), quando estavam cantando a Ladainha, sentiu uma forte uma emoção chegando mesmo às lágrimas, lembrando de uma amiga que fazia parte da reza, Dona Maria da Banda, que rezava as ladainhas e os benditos sem olhar no papel, inclusive a ladainha em latim.
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Ladainha de Nossa Senhora Kirie eleison Christe eleison Kirie eleison Christe, audi nós Christe, exaudi nós Pater de coelis Deus, miserere nobis. Fili, Redemptor mundi Deus, miserere nobis Spiritus sancte Deus miserere nobis. Sancta Trinitas unus Deus, miserere nobis. Sancta María, ora pro nobis. Sancta Dei Génitrix, Sancta Virgo vírginum, Mater Christi, Mater divínæ grátiæ, Mater puríssima, Mater castíssima, Mater invioláta, Mater intemeráta, Mater amábilis, Mater admirábilis, Mater boni consílii, Mater Creatóris, Mater Salvatóris, Virgo prudentíssima, Virgo veneránda, Virgo prædicánda, Virgo potens, Virgo clemens, Virgo fidélis, Spéculum justítiæ, Sedes sapiéntiæ, Causa nostræ lætítiæ, Vas spirituále, Vas honorábile,
Vas insígne devotiónis, Rosa mystica, Turris Davídica, Turris ebúrnea, Domus áurea, Fderis arca, Jánua cæli, Stella matutína, Salus infirmórum, Refúgium peccatórum, Consolátrix afflictórum, Auxílium Christianórum, Regína Angelórum, Regína Patriarchárum, Regína Prophetárum, Regína Apostolórum, Regína Mártirum, Regína Confessórum, Regína Vírginum, Regína Sanctórum ómnium, Regína Sine labe origináli concépta, Regína in cælum assúmpta, Regína sacratíssimi Rosárii, Regína pacis, Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi, parce nobis, Dómine. Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi, exáudi nos, Dómine. Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi, miserére nobis. V. Rogai por nós, Santa Mãe de Deus. R. Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.
“Eu rezo, Deus Cura”: Ofício de Benzimento As modernas teorias médicas se contrapõem enormemente a essas práticas mais tradicionais, ao trabalho com ervas e plantas medicinais, às rezas e benzimentos. E durante muito tempo até as combateu. Na segunda metade do século XIX, a Comissão Científica Imperial visitou os sertões na expectativa de compreendê-lo, mapeá-lo, “descobri-lo”. O sertão brasileiro era alcunhado de “terra exótica” sobre o qual pouco se sabia. Assim, a Comissão instituída pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), patrocinada pelo imperador Dom Pedro II, tinha o objetivo de colher informações sobre a fauna, a flora, os minerais, a geografia, além dos usos e costumes. Visitando o Ceará, região mais recôndita da “terra exótica”, contase que, após um dia inteiro de trabalho, os membros do grupo voltaram para a casa de um senhor onde estavam hospedados e pediram que ele armasse redes sob o alpendre da casa, para fugir da alta temperatura do lugar. Assim fez o senhor, advertindo, entretanto, que não seria adequado, já que choveria. O céu estava limpo e um dos membros da Comissão debochou do Senhor duvidando do seu veredicto. O senhor deu de ombros e entrou, deixando seus hóspedes à vontade, como bem entendessem. Alta noite já se ia quando o Sr acordou com os membros da Comissão batendo na porta, ensopados, querendo entrar por conta da chuva. Na manhã seguinte, durante o café, intrigados com aquele senhor que pôde adivinhar o que os mais modernos aparelhos meteorológicos não conseguiram, e perguntaram como ele tinha feito aquilo. “Tá vendo aquela cerquinha ali?”, teria perguntado o Sr. “Pois lá tem um burrinho que toda vida que vai chover, ele fica relinchando como ele estava fazendo ontem à noite”. Capistrano de Abreu, famoso historiador do século XIX, sempre espirituoso, diante da explicação do Sr., comenta entre risos “É isso, Senhores! Estamos numa terra em que burros sabem mais do que homens da ciência”. Essa história é exemplar desse conflito histórico entre a ciência, que representa a modernidade, e a tradição. No livro Como água para chocolate, da escritora mexicana Laura Esquível, John Brown é o médico que, numa grave crise de depressão da personagem principal Tita, a leva para sua própria casa, passando a cuidar dela com uma maior atenção, tanto que se apaixona por ela. John é de uma família norteamericana radicada no México. Seu avô, igualmente um norte-americano, apaixonara-se por uma índia kikapú e a raptou para morar com ele longe de sua tribo, ganhando a ira da orgulhosa e nitidamente norte-america família.
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Essa índia passava boa parte de seu tempo num quarto construído aos fundos da casa, onde a avó podia passar a maior parte do dia dedicando-se à atividade que mais lhe interessava: investigar as propriedades curativas das plantas. Sua bisavó, filha de um médico respeitado no lugar, orgulhava-se de estar a par dos melhores conhecimentos científicos que lhe permitiam cuidar da saúde de sua família, de uma maneira moderna e adequada. E desdenhava da “ciência” da índia kikapú, mais afeita às ervas, rezas e benzimentos. Por estas duas influências, o próprio John resolveu cursar medicina. Quando entrou na universidade, entretanto, ele, que costumava frequentar o “laboratório” da avó, a índia kikapú, deixou de frequentá-lo, pois as modernas teorias médicas que ali lhe ensinavam se contrapunham enormemente às dela e ao que aprendera com ela. Conforme a medicina foi avançando, foi levando John de volta aos conhecimentos que a avó lhe havia dado no início. Depois de muitos anos de trabalho e estudo, voltava ao laboratório da velha índia convencido de que só ali encontraria a última palavra em medicina. Contemporaneamente, em muitos lugares a medicina moderna já admite a possível eficácia de certos tratamentos, digamos, “alternativos”. Em Sobral, interior do Ceará, há 230 km da capital, a prefeitura municipal adotou a prática de chamar as benzedeiras e rezadeiras locais para atuarem dentro do programa Saúde da Família, como aliadas em prol da Saúde Coletiva. Seja como for, os benzedores são figuras muito importantes na manutenção da saúde da comunidade, e todos devotam a essas personagens muito respeito e consideração.
Seu Vicente Benzedor Num sábado de Sol, na Agrovila XXIII, na parte da tarde, dia e horário em que muitos moradores costumam ir à praça apreciar a feira, seu Vicente tirava um cochilo no sofá, Interromper o sono de alguém, principalmente um benzedor, não é só falta de educação, é quase um sacrilégio. Mas da cidade até aqui são quase 70 km. Então, não se pode perder a viagem. Seu Vicente Ferreira Gonçalves, a quem muitas pessoas no povoado chamam de “Parente”, levantou e ficou cismado quando lhe perguntei sobre seu ofício de benzedor. Ele disse que Benzer não é só uma prática, é um saber, e o saber
de Benzedor começou a se manifestar nele desde muito novo. Ele reconheceu que recebia de Deus um dom para benzer as pessoas ofendidas por cobra, por lacraias e por outros tipos de situações e doenças.
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Ao contar essa história, ele revelou um marco muito respeitoso. Falou que, antes, esse saber era exercido apenas pelo seu tio Terêncio, que morava no povoado do Capinão. Seu tio era conhecido por toda região, o povo vinha de longe para Terêncio fazer um “rogativo”. Por isso, seu Vicente disse que não colocaria seu dom em prática enquanto seu tio Terêncio estivesse na ativa, e assim cumpriu a sua promessa. As pessoas escolhidas para receber esse tipo de dom atendem a certos princípios misteriosos. Disse ele que benze para estancar sangue, dor de cabeça, para controlar fogo nas roças etc. Por isso, já atendeu a pessoas de vários lugares: São Paulo, Mato Grosso, Paraná, Salvador e outros. Às vezes não vem a própria pessoa que precisa de ajuda, ela manda um objeto para ser benzido e, assim, o ofício de benzimento é conduzido. Seu Vicente diz que desde os troncos velhos*, a sabedoria se procede. Suas * Diz assim avós eram parteiras. “Esses conhecimentos vêm desde muito tempo. “troncos velhos”
Minhas bisavós eram índias, foram pegas a dente de cachorro. Eram pessoas cheias de sabedorias. Agora, esse saber de benzer e orientar algum remédio, eu herdei foi de meu tio Terêncio”. Diz ele. “É de fato impressionante um saber dessa natureza. Não foram ensinamentos dos pais, nem de alguém mais velho que tenha lhe passado. Não foi através da simples observação. Esse dom aparecer assim, em alguém, sem que ele menos espere, é realmente uma dádiva de Deus, é muito encantador”, comenta Áurea, ex-professora da Agrovila XXIII e pesquisadora.
Ele afirma ainda que seu tio dizia às pessoas que ele era a pessoa indicada para levar a frente esse ofício do benzimento. Seu Vicente diz que é preciso ter fé, muita fé em Deus e em Jesus Cristo para que, de fato, o benzimento dê certo. Ele conta que uma vez, no hospital, estava com o irmão doente e, ao visitá-lo, seu irmão pediu que o benzesse. Então, Seu Vicente foi para casa e, de longe, procurou alguns ramos e benzeu
referindose a seus antecedentes mais velhos.
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seu irmão. Uma paciente que estava no hospital com a filha internada percebeu a recuperação do irmão de Seu Vicente e pediu, encarecidamente, que Seu Vicente benzesse sua filha, que estava praticamente desenganada dos médicos. Mas Seu Vicente não queria, de forma alguma, fazer isso dentro hospital. Tinha medo dos médicos chamarem a polícia, mas a mulher insistia, “pelo amor de Deus, moço, benza a minha filha” e Seu Vicente não conseguia, tinha muito respeito. A mulher disse “pelo leite que o senhor mamou em sua mãe, benza minha filha”, e seu Vicente, então, resolveu. A mulher foi lá fora, pegou uns raminhos verdes, escondeu dentro da blusa, nos seios, e trouxe para seu Vicente. Assim, ele benzeu a criança e, ao terminar de passar o ramo, a criança já começou a ter melhora. Quando Seu Vicente foi visitar novamente o seu irmão, a mulher disse que Seu Vicente fizera um milagre, mas ele afirma que apenas benze com muita fé viva em Jesus, “Quem faz a melhora, quem cura é Deus!” afirma. Ao terminar de benzer uma pessoa seu Vicente diz “Jesus que lhe dê boa
saúde, felicidades e lhe proteja. Nossa Senhora do Manto que lhe cubra com o seu Divino manto e não deixe nada de ruim acontecer com você e a sua família” e a pessoa responde “Amém”. Seu Vicente sempre insiste em dizer que não sabe muita coisa, “o povo é quem diz que ele é bom para benzer”. O povo admira o que ele faz. Diz que é milagre de Deus. Seu Vicente deu testemunho de um fogo recente em sua roça. “Estava eu e meu netinho. Quando o menino viu, o fogo
grudou na perna dele, e o fogaréu veio muito valente para cima de mim e do meu neto. Naquele momento, eu fiz um ‘rogativo’, e o fogo sapecou o andu, o capim e foi virando pro outro lado da roça e amenizando, mas ficou muito apertado. Eu fiquei doido com aquela cena de destruição”. Diz que não cobra nada por isso, porque, quando Jesus veio ao mundo, curava as pessoas e não recebia nada em troca. Então, se Jesus confiou esse dom de alguém benzer as pessoas, é porque as pessoas agraciadas com esse dom não devem cobrar. O que pode ocorrer é que, às vezes, as próprias pessoas que o procuram lhe dão algum agrado, “mas não é como pagamento”, justifica.
As pessoas confiam tanto em seu Vicente que, quando o procuram e não lhe encontram, o aguardam até que ele possa atendê-las. Ele benze pessoas de qualquer idade e indica remédio que vem da sua mente, benze para cobra sair do lugar, benze contra o veneno da cobra, benze animal. Tudo isso ele faz com a fé viva em Jesus.
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Chica Mocotó Há uma peculiaridade em Carinhanha. As pessoas vivem muito. Há muitos velhos muito velhos. E muitos velhos desses velhos muito velhos que nem parecem velhos. O tempo parece não ter passado por aqui, só presente. Dona Francisca Xavier Costa, uma senhora de 78 anos, moradora na Rua do Capão, é uma dessas pessoas. E é no semblante forte dessa mulher negra, nascida aos 22 de agosto de 1934, que se podem encontrar os mistérios dessa vida longa. Suas mãos contribuíram para a saúde e para o paladar de muitos Carinhanhenses. Dona Francisca Xavier Costa, filha do Sr. Francisco de Deus Dias e da Sra. Júlia Xavier da Costa, viveu muito a vida e teve 13 filhos. A vida lhe reservou apenas sete. Destes sete, alguns moram em São Paulo, outros em Guanambi, somente um filho vive com ela. Ora, quem numa necessidade de saúde nunca procurou uma benzedeiras? O ritual da benzedeiras é uma tradição cheia de mistérios envolvendo santos, divindades, rezas, rosários, sal, água benta, cordão e nomes de santos. O cerimonial demonstra todo o sincretismo religioso que envolve essas pessoas. Sobre como aprendeu a rezar, sua resposta foi imediata: “Dom de Deus!”. Foi da necessidade de ver seus filhos protegidos do quebranto* que veio a vontade de aprender a rezar. E foi num sonho que apareceu a imagem de uma mulher lhe evocando esse dom, figura de mulher linda, toda vestida de branco. A mulher que aparecia no seu sonho lhe perguntava: “Você quer aprender a rezar?” Então é assim, e lhe disse as palavras que são proferidas no momento em que elas, as benzedeiras, absorvem o espírito da doença.
* Diz-se de quando a criança apresenta um comportamento muito atípico: ou fica muito caladinha, muito quietinha, tristinha ou apresenta sintomas físicos do tipo vômitos, diarreia e enjoos.
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As benzedeiras entendem que as doenças (sempre físicas, ainda que psicológicas) são manifestações de algum desajuste no plano espiritual. Assim, as pessoas estariam sujeitas a certas “impurezas” espirituais (“espírito da doença”). A reza teria, assim, a função de “absorver” esse “espírito impuro” que é a doença. Ainda que intuitivamente, essa percepção tem relação com certas verdades ontológicas que estão disponíveis, de alguma forma, nas práticas discursivas e culturais da maior parte da população: 1) a ideia de que a palavra tem poder; 2) a ideia de que a saúde é um espírito puro. A ideia de que a palavra tem poder pode estar vinculada à catequese cristã, segundo a qual, a partir do evangelho de João 1, 1: “No princípio, Deus é o verbo e o verbo é Deus”. Esse “princípio” não estaria aí sendo empregado no sentido de “início”, mas no sentido de “fundamento, ordem, base etc.”. Esse é um princípio bíblico, afinal, no princípio (agora “princípio” como “início”), ou seja, no Gênesis, que conta a origem da vida, do mundo, do universo, teria sido através da palavra que o mundo inteiro teria se originado. Fiat Lux! (E faça-se a Luz!) e a luz se fez. As parábolas a respeito dos milagres de Jesus Cristo estão baseadas nesse mesmo princípio. Já a ideia de que a saúde é um espírito puro está baseada em algo muito, muito intuitivo. Esse conhecimento está também disponível nas práticas discursivas e culturais provenientes do catolicismo, inclusive práticas esquecidas de que as línguas neorromânicas (aquelas que vieram de Roma, onde se falava Latim; daí essas línguas também receberem o nome de “neolatinas”) dão pistas. “Espírito” é palavra donde vem “espirro”, que vem pelo nariz. Por isso, diz a Bíblia que Deus soprou nas ventas do homem para lhe dar vida. Os antigos diziam que o espirro era reação natural de quando outro espírito tentava entrar em nosso corpo (seria um “espírito de doença” e por isso se diz, ainda hoje, “saúde”?). Os gregos chamavam as pessoas tomadas pelo espírito de Deus de “endosiasmos”: endo (dentro), si (si mesmo), asmos (ar, espírito), que dá a palavra “entusiasmo/entusiasmado”, que significa o mesmo que “animado”. Ora, “anima”, em latim, significa “alma”, que também pode se chamar “psiquê”’, do grego que também quer dizer “mente”. Os gregos chegavam nesse estágio mental/espiritual do “entusiasmo” bebendo vinho. “Bebiba destilada”, em inglês, é “spirits”. Ou seja, nestes exemplos todos, temos a ideia de que um outro “espírito” entra em nosso corpo (seja pela via nasal, seja pela via oral). É esplêndido que uma pessoa como Dona Francisca Xavier tenha alcançado essa profundidade intuitivamente. Esse é um traço muito significativo de sua sensibilidade.
Assim é que se percebe, pelo seu olhar, como é gratificante retirar do corpo do doente, o mal que lhe causa a doença, que pode ser quebranto, espinhela caída, engasgo de peixe, dor de dente, vento caído, indigestão, sol na cabeça, enzipa. Dona Francisca Xavier Costa, num momento de descontração, se lembra dos seus filhos doentes de quebranto, e como era difícil, para ela, achar alguém para rezar, e, por isso, no momento em que aprendeu, foi um alívio, pois seus filhos agora a teriam para lhes benzer sempre que alguém lhe colocasse mal olhado. O ofício das benzedeiras envolve um mistério: no ato da reza, não é permitido cruzar os braços ou as pernas, para que a oração não seja invalidada. As benzedeiras fazem suas orações com ramos que murcham quando a doença deixa o corpo, e o ex-doente sai com uma sensação de alívio e com uma paz de espírito tamanha. Mesmo diante da explicação de que isso é dom de Deus, Dona Chica Mocotó é uma senhora cuja simplicidade e dificuldades que passou em vida lhe obrigam a cobrar dos doentes, algo para rezar, já que só o agradecimento não faria encher a sua panela. “Não aceito ‘Deus lhe pague’!”. Ela diz que o comércio não aceita que ela diga “Deus lhe pague!” na hora de comprar seus mantimentos e por isso mesmo, ela não aceitava quando alguém lhe pedia para rezar e dizia esta frase. Dona Chica Mocotó não é conhecida assim por sua reza. Ela também faz ótimos pratos de mocotó. O mocotó foi uma invenção dos escravos negros brasileiros, e é um prato típico saboroso e requintado, que é servido em muitos restaurantes brasileiros. É ela quem conta a receita.
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RECEITA DE MOCOTÓ 3 kg de mocotó (ou dois mocotós de boi) 3 cebolas grandes 3 tomates grandes 3 dentes de alho 3 folhas de louro 1 colher de sobremesa de cominho e coentro 3 limões 4 colheres de sopa de óleo 1 kg de farinha de mandioca para o pirão sal e pimenta-do-reino a gosto Modo de Preparo:
Lave muito bem o mocotó com limão, raspando o osso com a ponta de uma faca. Corte a cebola, os tomates, o alho, o coentro. Tempere o mocotó com o cominho, o sal e a pimentado-reino e as folhas de louro. Coloque óleo em uma panela grande e leve ao fogo para refogar a cebola. Junte o mocotó temperado e deixe refogar bem. Coloque água aos poucos e, quando começar a ferver, diminua o fogo, deixando cozinhar por várias horas. Para o pirão, coloque água fria na farinha para inchar numa panela. Adicione bastante caldo de mocotó e leve ao fogo, mexendo sempre. Sirva quando estiver pronto. Chica Mocotó, mulher humilde e leiga, fez e ainda faz a felicidade de muitos Carinhanhenses, de baixo e alto poder aquisitivo, alimentando o corpo, limpando seu espírito. Com galhos de arruda ou peão roxo, ela expurga do corpo as enfermidades do doente, através de palavras minuciosas e de cruzes que faz no ar com seus ramos na cabeça da pessoa enferma. E é por isso que a reza não pode ser contada a ninguém, pois, se assim o fizer, esta perde o poder ficando enfraquecida.
Seu Olegário Ribeiro de Lima Era uma Sexta-feira Santa, por volta das vinte e duas horas. E lá estava eu no fundo do quintal da sua casa, debaixo de uns pés de laranjeiras, à noite estava enluarada e as árvores fazendo sombra davam pequenos sustos, como se quisessem que eu fizesse parte daquelas histórias que seriam relembradas naquela noite! Edna de Silva Lima de Aquino, neta de Seu Olegário, ia lembrando histórias vividas ou contadas por seu avô. Sentíamos medo não só por ser um dia santo também por estarmos ali relembrando causos e histórias mal assombradas. No começo de nossa conversa pensei, (e pedi): “Meu Deus e seu Olegário, me protejam, pois hoje é dia sagrado e não sei se é conveniente mexer em feridas já cicatrizadas, revirar a história de uma pessoa que já se encontra em seu descanso espiritual e que já havia cumprido sua missão aqui na terra”. Meu medo era tanto que eu nem tentava mais disfarçar os arrepios e calafrios que sentia. Cada galho que estalava em uma árvore, cada pegada de pessoa que se aproximava aumentava mais o suspense daquela noite! Seu Olegário morou na Fazenda do Morro, próximo à Comunidade Santa Luzia. Muitos até o chamavam de “Doutor”, pelos feitos que ele realizou na região. Era uma homem muito paciente, não desejava mal a ninguém, sempre procurava remediar e aliviar as dores das pessoas ou dos animais. Raras vezes era visto fazendo seus trabalhos. Estes só eram vistos quando ele precisava fazer os remédios destinados a estancar sangue, hemorragias, disenterias,
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dores de dente. Para esses procedimentos, seu Olegário contava com a ajuda de sua neta, Edna. Ela ia para a cozinha preparar os remédios com ervas e raízes de pau encontradas nas redondezas. Foi dessa forma que ela aprendeu a preparar muitos remédios de que ainda hoje faz uso. Além dos remédios, Edna também aprendeu algumas rezas. Segundo ela, as mais fáceis. Ela conta que seu avô, ainda em vida, pediu que ela aceitasse os conhecimentos que ele deixaria quando morresse, ou seja, que desse continuidade a esse dom. Por medo, Edna não quis assumir este compromisso. Seu Olegário não tinha muitos apetrechos para realização de seus benzimentos. Ele usava umas correias de sola (uma espécie de couro) como cinto para segurar as calças, outra amarrada no punho e uma outra no tornozelo. Usava um chifre de veado gaieiro para raspar e fazer remédios para dor de dente. Também usava o mesmo chifre para pendurar suas roupas. Além disso, também fazia uso de uma Bíblia. Essas eram as três coisas das quais seu Olegário não abria mão para realizar seu oficio. Pais o procuravam levando seus filhos doentes para que ele benzesse de quebranto, vento caído, prisão de ventre, mal olhado, empanzinamento. As crianças chegavam todas de corpo mole, tristes, sem ânimo e com o corpo febril. Ao recebê-las, pegava-as no colo e brincava com a criança, que, como num passe de mágica, saía do estado de febre e retribuía com risos. A maioria de seus benzimentos era feita de forma rápida e não deixava vestígios. Todos confiavam e acreditavam em suas orações. No entanto, como eram realizadas ainda hoje é um mistério para muitos. Assim, esse homem de barba branca, chapéu de palha e de trajes simples tinha o mesmo prestígio de um médico. Procurado por muitas pessoas da redondeza, curava quase todos. Quando não sabia como aliviar a doença, pedia que a pessoa procurasse o médico com muita urgência. Poucos, entretanto, foram os casos que ele não pode solucionar. Edna narrou algumas histórias do período em que morava com seu avô. Ela lembra que, à noite, quando todos iam dormir, ouviam-se ruídos estranhos dentro da casa. Barulhos de ferramentas sendo derrubadas, cancelas e portas rangendo como se estivessem sendo abertas, barulho de louça sendo lavada e passos de pessoas andando dentro de casa. Conta que quase ninguém gostava de pernoitar nessa casa, mas que ela havia se acostumado a todos esses ruídos estranhos. Após apagar os candeeiros e quando todos se encontravam em seus
aposentos para o descanso noturno, no restante da casa começava a labuta.
“Era como se uma pessoa estivesse arrumando a casa, mexendo em tudo”, conta. Depois ia até o quartinheiro*, tirava a tampa dos potes,
enchia o copo d’água e depois tornava a tampar os potes. Eles ouviam esses ruídos como se tudo fosse real. Todas as noites, era esse o dilema, e, no outro dia, quando eles acordavam, os objetos estavam do mesmo jeito que eles haviam deixado! Certa noite, antes de deitar, Seu Olegário pediu que “quando vocês forem
dormir deixem um copo d’água cheio em cima do quartinheiro que é para esse sujeito não fazer tanto barulho quando vier beber água a noite!”. Segundo Edna, seu avô chamava essas aparições de “Meu povo”.
Dizia que eram almas pedindo orações. Essas aparições eram constantes na casa. O “seu povo” estava sempre presente em sua moradia, os visitantes que não tinham conhecimento só pernoitavam uma vez, por medo. Iam embora e só apareciam durante o dia, pois, à noite, eles temiam o que poderiam ouvir. Edna conta que, certa vez, estava com problema na garganta e depois que seu avô soube da gravidade da doença pediu a ela que procurasse os médicos para fazer cirurgia. Então, ela foi pra Brasília. Já no hospital de Brasília, depois de ter feito a cirurgia, ela teve uma forte hemorragia. Como o sangramento não parava, os médicos ficaram muito preocupados. A enfermeira, de minuto em minuto, trocava o utensílio cheio de sangue. Edna, como medo e assustada, sem saber o que fazer, pensou: “se pai véio tivesse aqui ele me benzia e
esse sangue parava.” Chamava o avô de “pai véio” por ter sido criada por ele.
Nesse instante, conta que uma luz invadiu seu leito e, em sua direção, veio uma senhora de branco com uma bíblia nas mãos, encostou em sua cama, apoiou sua mão na testa de Edna e começou a orar. Edna tentava decifrar a oração feita por essa senhora, mas não conseguia entender uma palavra. Em seguida, acha que desmaiou, pois não recorda de ter se despedido da senhora ou de vê-la saindo do seu quarto. Recorda que, minutos depois, ao acordar, tinha duas enfermeiras ao seu lado. Ela então perguntou pela senhora que a tinha benzido, até mesmo porque queria lhe agradecer. As enfermeiras disseram para ela que não havia ninguém ali com essas descrições. A hemorragia tinha passado e ela estava fora de perigo. Então, lembrou do pedido que tinha feito ao seu avô através do pensamento e lhe agradeceu. Ela tem certeza de que o ocorrido fora obra dele.
165 * Móvel de madeira que serve de apoio para os potes de barro com água.
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Os mistérios que fazem parte da vida de seu Olegário nutrem nas pessoas certos receios. Muitas ficaram felizes ao dar os depoimentos em sua homenagem, outros tinham receio de narrar os fatos. Alguns não quiseram falar devido a tamanha devoção que tinha com o benzedor. Outro ainda pediram até para revisar os textos com medo de que a história fosse interpretada de outra forma. No entanto, todos, ao falarem transmitiam, em suas expressões, a admiração, o respeito e a idolatria que tinham (e ainda têm) por Seu Olegário. Hermínio Leandro de Souza foi um dos que vivenciaram uma experiência que carrega até hoje na memória. Quando criança, machucou o joelho e seu pai, o Sr. Antônio de Baia, resolveu levá-lo ao Seu Olegário para que o benzesse. Este os recepcionou e pediu que o aguardassem enquanto ia à cisterna dar água aos animais. Pai e filho aguardavam ansiosos o retorno do benzedor. Mal sabiam que, enquanto estava cuidando dos animais, fazia sua reza. Ao voltar, perguntou a Hermínio se já estava andando. Sem entender, o menino, com ar questionador e ainda com receio, colocou o pé no chão. Assim, pôde constatar que o joelho já não doía e que ele já tinha sido curado. Só não entendeu em qual momento e como Seu Olegário curou a sua dor! Ainda na conversa com Hermínio, ele contou que seu pai era muito amigo e compadre de Seu Olegário. O compadrio se deu com o batizado de Américo, filho primogênito do Seu Antonio de Baia. Hermínio lembra que, próximo à morte de Seu Olegário, ele quis transmitir o seu saber para seu compadre Antônio. Este, porém, não aceitou e aprendeu apenas as rezas mais fáceis utilizadas para rezar em animais. O Seu Antônio não gosta de divulgar as rezas aprendidas, e, quando as utiliza, é para cura de animais que estejam com alguma bicheira ou patas machucadas. Muitas vezes, o dono nem fica sabendo que o Sr. Antonio curou o animal, pois seu trabalho é sigiloso. Seu Olegário fez duas tentativas de transmitir seus conhecimentos, e as duas pessoas citadas, Edna e Seu Antonio, não quiseram dar prosseguimento a esse saber. Outro fato também muito importante é que seu Olegário não cobrava nada das pessoas que ele benzia. Se as pessoas lhe dispusessem alimentos ou outro tipo de agrado, ele recebia, só não recebia dinheiro. “Eu rezo e Deus cura”, era assim que ele terminava a reza.
Seu Olegário, além de benzer, também adivinhava e previa muitas coisas. Umas de suas premonições mais conhecidas e recorrentes na fala das pessoas que o conheceram é a história da Boneca e da Mocinha. Conta-se por essas bandas que uma moça de família, muito direita, engravidou sem casar, e isto não era socialmente aceito há algumas décadas. Então, com medo de falar para seus pais que estava grávida, a moça silenciou sobre o ocorrido. Não falou para ninguém sobre seu estado. A família, preocupada com o estado diferenciado da moça, levou-a ao médico. Este diagnosticou a gravidez e a tal moça, por sua vez, preocupada com a reação dos pais, disse que o médico estava mentindo. Seu Olegário, ao saber, pelos vizinhos, que a moça não estava bem e que ninguém entendia qual era o seu mal, disse:
“Vocês sabem da minha vaca, a Boneca? Quando ela, parir a moça será curada”. As pessoas ouviram, mas não deram muita importância, não
entendiam a ligação da “prenhes” da vaca com a suposta doença da moça. O tempo passou e, às vésperas da Semana Santa, todos se reuniram no cemitério para fazer a Via Sacra. Na Sexta-feira Santa, todos estavam no cemitério, menos a família da moça, que sempre esteve presente. Essa ausência deixou as pessoas preocupadas. Mas logo se ouviu o estouro de foguetes. É que, naquela época, estouravam-se esses fogos para anunciar algum casamento ou o nascimento de uma criança. Foi quando Seu Olegário, então, repetiu: “Eu
não disse para vocês que a moça iria sarar no dia em que a Boneca desse cria.” Como sua vaca Boneca havia parido naquele dia a moça estava curada, e todos se entreolharam e entenderam a mensagem.
Conta-se também de um senhor que, andando pela estrada, foi picado por uma cobra e, com medo de perder a vida, se dirigiu à casa de Seu Olegário, que o acalmou e deu logo ao enfermo um dos remédios por ele mesmo preparado. Depois de ter sido benzido, e com forças para voltar para casa, ele pediu permissão ao Seu Olegário para voltar para casa. “Pode ir, meu filho, mas não se esqueça de matar a cobra”, foi o que Seu Olegário teria dito. O rapaz pensou que seria impossível encontrar, de novo, a mesma cobra e, de volta para casa, foi pensando no que Seu Olegário lhe pedira. Para seu espanto, lá estava a cobra, no mesmo local, como se estivesse a espera dele. No intuito de concretizar o pedido do benzedor, matou a cobra e mais nada sentiu.
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No que diz respeito a cobras, bicho muito fácil de encontrar nas veredas e caminhos do campo, é preciso dizer: um dos dons mais preciosos de Seu Olegário era fazer a retiradas de cobras. Joaquim Ferreira Bispo conta que morou alguns anos com seu Olegário e muitos foram “os bem-feitos” que viu Seu Olegário realizar. Entre eles, a retirada de cobras de sua fazenda e a cura de seu filho Jardel. Segundo Joaquim, até hoje não existem mais cobras em sua fazenda. “Antigamente era muito comum encontrar cobra aqui na
fazenda. Devido às mata não serem devastada, tinha muito abrigo pra cobra e tinha muitos casos de picadas tanto em pessoas como em animais”, explica. Quando isso acontecia, todos da redondeza recorriam a seu Olegário. Ele, então, ia até a fazenda indicada pela pessoa e, ao chegar, percorria os quatro cantos da fazenda e pedia ao dono que escolhesse um canto, pois aquele canto determinado pelo fazendeiro daria passagem para a saída das cobras. Assim, ele benzia os outros três cantos e o dono, que ficava observando o quarto canto da fazenda, podia ver as cobras saindo enfileiradas, uma após a outra, seguindo noutra direção que não pertencesse mais àquela fazenda. As cobras que não saíam da fazenda eram encontradas mortas após o benzimento. Seu Joaquim também falou da morte de crianças naquela época. Diz que, antes da criança falecer, os pais tinham que batizá-las, pois não era recomendando deixá-las morrer pagãs. Seu Joaquim, certa vez, ao ver seu filho Jardel passando mal, correu em busca do Seu Olegário e pediu que batizasse com a sua esposa, pois sabia que o menino não ia resistir. Seu Olegário batizou a criança e o benzeu. A criança se recuperou e foi salva. Seu Olegário dizia-se católico não-praticante, e todos que conviveram com ele sabiam que suas rezas e orações eram para curar doenças em pessoas e animais, e o que ele não podia resolver encaminhava para o médico. Todas as pessoas que dele falaram deram depoimentos pautados pela gratidão e, em nenhum momento, foi citado que ele fazia reza para separar casamentos, oferecer riquezas, ler mão ou outras coisas parecidas. Seu intuito era tão somente amenizar o sofrimento de quem lhe procurava. Sua missão aqui na terra foi cumprida: ajudou todos os que lhe procuraram. No entanto, ninguém sabe explicar de onde surgiu tanto conhecimento, quem o inspirava no ato de suas rezas, quem invocava ou de onde surgia esse poder extremo, que ligação Seu Olegário possuía com a alma de pessoas já falecidas ou o porquê das
visitas constantes do “seu povo” em sua residência. Essas são questões que por muito tempo ainda ficarão sem resposta. Seu Olegário vive nas lembranças e no imaginário de seu povo (tantos os mortos quanto os vivos) e deve pairar, quem sabe no ar, ele, como abençoado que é.
Parteiras Era chegada a hora. O bebê pedia pra nascer. O corpo da mamãe começava a atender a esse pedido. Vinham as primeiras contrações, aquela dorzinha fina no final da coluna que avisava: é hora de ir buscar a parteira. Quando a parteira chega, começa a espera pelo nascimento. Escuta-se o choro e, lá fora, o som dos fogos avisava a chegada do bebê. Ser parteira parece ser um dom, uma missão, um servir sem medidas àquelas que, antes de sentir o filho no colo, tinham que passar pela provação de parir. Tão sublime é essa missão que elas também são chamadas de “mãe”: Mãe Ana, Mãe Nilza, Mãe Nilza Martins, Mãe Nilza Mangabeira, Mãe Ninha, Mãe Perolina, Mãe Antônia Batata, Mãe Joaquina e tantas outras mães. Também elas têm um papel importantíssimo para a saúde da comunidade.
Mãe Ana A porta estava trancada, mas a janela aberta, televisão ligada, uma moça e uma criança pequena sentadas no sofá. Quando nos ouviu chamar gritou “o senhor barriga tá chamando”. Rimos muito e a moça pedindo que o garoto se aquietasse. Batemos palma na janela, a moça levantou e abriu a porta. Sentamos no sofá, perguntamos pelas donas da casa. Antes da resposta, Dona Nélia se dirige à sala vindo da cozinha, e, não demora muito, Dona Bezinha também chega trajada em um conjunto de saia e blusa de um azul feliz, sereno. Argolas douradas nas orelhas casavam perfeitamente com o azul da roupa. Ela se sentou e disse que acabava de sair do banho. Perguntamos se estávamos incomodando e se podíamos conversar naquela hora, se não íamos atrapalhar o seu jantar. Ela nos respondia ao mesmo tempo em que conversava com a criança e a mocinha que nos recebeu. “Não. Não atrapalha, não. Eu não janto.” Elas nos recepcionaram com um abraço forte, acolhedor, e pediu que sentássemos.
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Em Carinhanha, é comum se dirigir às parteiras como “mãe” e lhe pedirem a benção, um símbolo de respeito àquelas que têm o dom de abraçar essa missão. Dona Bezinha é filha de Dona Ana, Mãe Ana, parteira, como muitas a chamavam. Ela começa a nossa conversa falando que sua mãe trouxe muitas crianças ao mundo e que serviu muito as pessoas. Batiam à sua porta a qualquer hora, gente da cidade e da roça também. Para onde precisasse, ela ia. “Não sei porque, mas o povo só batia à porta mais à noite. Uma
vez, um senhor a levou no colo. Ela estava com uma bolha no pé e não podia andar. As pessoas vinham buscar e deixar ela em casa”. Ela
nunca cobrava dinheiro ou qualquer outra coisa pelos partos que fazia, mas ganhava muitos presentes: roupas, galinha, às vezes até dinheiro, porque os maridos e a família ficavam muito agradecidos pelo nascimento da criança e pelo alívio da mãe. Se a pessoa não tivesse condições, não tinha nenhum problema. Ela não era parteira por dinheiro ou por profissão, era a sua missão. Quando alguém batia em sua porta, lhe chamando para um parto, como se obedecesse a um ritual, tomava um banho, colocava uma roupa limpa, punha o seu xale nas costas e, antes da saída, ainda na porta de casa, confirmava a devoção à nossa Senhora do Parto e São Raimundo. “Meu São Raimundo. minha Nossa Senhora, me acompanha pra eu ser feliz”. Ela era muito devota dos dois e, antes dos partos, rezava muito para os dois para tudo dar certo. Dizia que ela mesma só era a intermediária, que quem fazia o parto mesmo era nossa senhora e São Raimundo. Uma vez, ela foi chamada para auxiliar em um parto que um farmacêutico da cidade já havia começado, um parto difícil, a mãe estava sofrendo muito. Mãe Ana, que já havia se afastado um pouco da sua missão de parteira por conta da idade, atendeu ao chamado. Quando findou o sofrimento da mãe com o nascimento do bebê, a grande surpresa: não era uma criança igual às outras: “quatro braços, quatro pernas e essa parte aqui (o tronco, aponta com as mãos) uma só. Se botasse assim (deitada de bruços), parecia uma só.” Muitos foram os curiosos que quiseram comprovar a veracidade do fato que tomou conta das conversas da cidade. Felizmente, a mãe sobreviveu, mas o bebê já nasceu morto. Esse foi um dos partos que marcaram a história de Mãe Ana. “Minha mãe saiu daqui nos barulho de João Duque, comigo na barriga e o meu irmão João no colo. Saiu sem nada. Deixou casa e tudo. Não levou nem uma camisinha do meu irmão com medo dos barulho.”
Mãe Ninha Mais um final de semana, sol, esplendor e novamente eu na Rodovia 161, dividindo a pista com máquinas e maquinistas. Mais adiante, entramos na estrada de chão batido, como dizem por aqui. O movimento das grandes caçambas carregadas era intenso, nas estreitas e longas estradas, mas a viagem continuou entre caatingas e capoeiras. À proporção que o carro ia adentrando estradas e vicinais, tínhamos a oportunidade de observar as verdadeiras características do sertão nordestino, uma vegetação seca castigada pela predominância do clima quente. Mas aqui, acolá, uma árvore verde perdida entre as demais. Árvore forte que consegue superar o período da seca, mantendo-se viva até a próxima estação. Chegamos à Agrovila XXIII, na Rua B, à casa de Dona Ivonete Pereira, na verdade, Dona Ninha, ou Ninha da Farmácia, que nos recebeu justamente no seu horário de descanso. Com muito prazer ela falou de toda sua trajetória nesse ofício. Iniciou esse lindo trabalho de ajudar as mulheres a dar a luz em 1982, na cidade mineira de Matias Cardoso. Ela lembra desse episódio como se fosse hoje. Inclusive, isso aconteceu por uma grande necessidade: a família não tinha como sair para chegar até o médico. Então, foi o único jeito ela realizar essa experiência. Essa primeira criança era do sexo feminino. A segunda experiência foi numa época em que estava havendo uma colheita de feijão de arranca e a panha* de algodão em uma fazenda que fica na Serra * Colheita da Agrovila XXIII. Tinha várias pessoas trabalhando e, nesse grupo, havia uma mulher grávida. Algum tempo depois, a mulher incomodou. Seu marido saiu procurando entre as mulheres que lá estavam para ver se alguém fazia esse trabalho, mas nada. A maioria eram novas e não tinham experiência no assunto de parteira. Então, o marido da grávida falou com Dona Ninha e ela disse que não era parteira, o que poderia fazer era apenas dar o toque na mulher, e assim fez. Observando seu estágio, pediu que o marido fosse do outro lado da serra procurar uma parteira, e o marido foi em busca de uma parteira. Nesse intervalo, a mulher incomodada acelerou o momento, e Dona Ninha teve a oportunidade de realizar o segundo parto.
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A tradição aqui na região, naquele tempo, era soltar foguete quando o neném nascia, para anunciar que já veio ao mundo. Como eles estavam longe de casa, longe do comércio, estavam desprevenidos, então, o aviso foi dado por seu Manoel de Dona Leolina, através de uma espingarda. Disparou três tiros. Na estrada, o marido já ficou sabendo que o filho havia nascido, mas ainda assim a parteira terminou de chegar. Assim que chegou, olhou o umbigo do neném e estava tudo certo. Acompanhar a narração desta história é aprender como nasce e sobrevive uma cultura e ao mesmo instante alegrar-se ao ouvi-la, pois, em tempos atrás, o povo não se limitava diante das dificuldades. Ainda na imensidão serrana, longe dos recursos prováveis, esse povo ainda conseguia inventar algo para preencher as lacunas encontradas pela localização geográfica. Na Agrovila XXIII, Dona Ninha fez o parto de várias mulheres. Inclusive, teve mulher de que ela pegou até cinco crianças. Dona Ninha aprendeu esse ofício através de seus próprios partos, observava quando a parteira ia lhe ajudar a dar a luz. Foi fácil também, porque tinha vocação e muita vontade de fazer esse trabalho. Aperfeiçoou quando foi trabalhar como auxiliar de enfermagem no Hospital de Carinhanha. Ajudava a fazer parto, porque, naquele tempo, esses procedimentos podiam ser feitos pela auxiliar. Durante sua trajetória, Dona Ninha pegou cerca de 300 crianças, fez dois partos complicados, um porque a mulher sofreu eclampse, outro porque o bebê estava sentado, vieram primeiro os pés, foi Lucas, filho de Ana de Nenzim. Alguns também com o cordão umbilical enrolado; o bebê pode terminar sufocado. Segundo Dona Ninha, é uma profissão que não rende dinheiro. É um trabalho solidário. Já chegou tempo de Dona Ninha ficar até três dias na roça para fazer parto, porque tem parto rápido de até 10 minutos e tem parto que a mulher entra em trabalho umas duas horas antes. Dona Ninha disse que houve dias de pegar até duas crianças e os meses de junho e dezembro foram os meses de pico. Dentre essas crianças, Dona Ninha já fez até parto de gêmeos. Explicou a diferença entre gêmeos e mambaços. Gêmeos têm duas placentas, uma para cada bebê. Mambaços é uma placenta só para os dois bebês.
Ela conta que até hoje as pessoas lhe procuram. Mas ela disse que não pode fazer mais esse tipo de trabalho, a lei da medicina não permite, ainda que as pessoas sintam muita confiança em sua pessoa, em seu trabalho. Já houve vez da mulher sair para Carinhanha e não deu tempo chegar, ganhou na estrada e terminou voltando para ela cortar o umbigo. Dona Ninha diz que se sente muito feliz por ter contribuído para a chegada de muitas vidas ao mundo real. Muitos dos bebês que receberam essa ajuda de Dona Ninha a chamam de mãe e sempre pedem sua benção. Ela ainda citou mais duas parteiras na Agrovila XXIII: Dona Emília e Dona Cila, que também ajudaram muitas mães a trazer seus filhos ao mundo.
Mãe Nilza Mangabeira A saúde era precária e não havia médico na cidade nas décadas de 40. As mulheres não tinham maternidade, nem médico. Quem realizava os partos eram as parteiras. Hercílio Mangabeira, morador da cidade da Barra, veio juntamente com seu pai Antônio Mangabeira para construir o altar da Igreja Matriz, pois era um marceneiro. Clotilde Oliveira Silva lhe viu e arranjou este rapaz para casar com sua filha caçula Nilza Mangabeira. No ano de 1944, casaram-se e tiveram 18 filhos. Como a saúde era precária, vários de seus filhos faleceram antes de completar um ano de idade. Hercílio começou a trabalhar nos correios como guarda fios, e sua esposa, Nilza, permanecia em casa, fazendo os trabalhos domésticos. Aprendeu a costurar e fazia roupas para vender e ter seu próprio dinheiro. Como nos anos de 1940 e 1950 era difícil o acesso a médico na cidade, Nilza teve muitos filhos sozinha. Era devota de Nossa Senhora dos Partos, e, nesta época, começou a realizar partos. Seu marido a proibiu. Mesmo assim, continuou com sua missão, trazendo os filhos dos Carinhanhenses ao mundo. Quando ia fazer um parto, havia todo um ritual. Deixava uma vela acesa em frente a sua santa Nossa Senhora do Parto, levava consigo uma maleta com tesoura, óleo de mamona, seu jaleco branco, uma toalha branca. Lá, fazia massagem na barriga da grávida para ver se estava na hora da criança nascer. Fazia uma oração para a sua santa, e realizava o parto. O remédio
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que as gestantes tomavam era feito de hortaliças como erva cidreira, arruda e hortelã. Ela fazia chás para as grávidas e sumos para tomarem banho, o que ajudava na cicatrização. Na década de 80, seu marido a abandonou e esta pôde se dedicar totalmente à sua missão. Agora, ela podia se aperfeiçoar, já que era parteira leiga. Com a Igreja, conheceu a irmã Catarina, que também se dedicava à área da saúde e lhe ensinou a aplicar injeção, o que lhe facilitaria o trabalho na hora do parto.
“Doutor Manoel, um médico que veio para cá, vendo a dedicação das parteiras, deu vários cursos que auxiliavam no nosso trabalho.”
Mãe Antônia Batata Antônia Maria Dias, uma parteira muito famosa também, era conhecida como Antônia Batata. Era lavradora e parteira e recebeu este nome porque seu marido, João Dias Sobrinho, era conhecido como Antônio Batata, porque plantava e vendia batatas. Fez cursos e, como parteira, trouxe várias crianças ao mundo. Além de parteira, também era rezadeira e, como muitas crianças pegavam quebranto, com um galho de arruda ela rezava nelas. Joselina Dias, sua filha, disse que não entende como uma pessoa tão boa pudesse sofrer e ficar naquela situação. “Mas quem é capaz de entender os desígnios de Deus?”. Quando criança, sempre via Dona Antonia Batata feliz, distribuindo alegria por onde passava e, quando a vi tão quieta naquela poltrona, aquela mulher tão serena, com seus cabelos brancos e os olhos atentos, o semblante carregado de histórias, sem poder contar a sua própria história, que é tão relevante para nós, carinhanhenses, que tanto lhe devemos, já que usufruímos dos seus saberes, é que compreendi o verdadeiro valor de seu trabalho. Enquanto estivemos ali, ela permaneceu sentada, sozinha com suas lembranças. Em alguns momentos se batia como quem dissesse “Eu estou
aqui. Esta é a minha história”.
Dona Antônia nasceu no dia 15 de abril de 1926. Não era moradora de Carinhanha. Veio de Casa Nova para cá. Da década de 70 até 2001, atuou como parteira, pois algumas mulheres não queriam ir para o hospital e pediam para Antônia Batata realizar o parto. Somente em 2001, quando sofreu um derrame, foi que parou de exercer a profissão que tanto amava. Dona Antônia via na sua profissão um dom de Deus que tinha que exercer para cumprir a sua missão. As parteiras, com o passar dos anos, começaram a acompanhar os médicos na realização dos partos, tamanha era a importância do seu trabalho.
Mãe Joaquina Joaquina Francisca de Jesus, nascida em 1927, foi uma parteira que realizou muitos partos em Tumenune, onde nasceu e foi criada. Via na sua profissão um dom de Deus, aprendendo sozinha a realizar os partos. Ora, se na cidade não havia médico, na zona rural era pior ainda. Mãe Joaquina corria nos povoados de Ilha das Melancias, Ilha, dentre outros, fazendo seus trabalhos com muito amor e dedicação.
Mãe Perolina Muito importante para Carinhanha foi a Mãe Perolina, na verdade, Perolina Lorença da Silva, que auxiliou muitas parteiras a se dedicarem melhor à sua vocação. A vida das parteiras sempre foi dedicada a trazer ao mundo crianças. É uma profissão milenar que, devido ao avanço da medicina, foi se acabando. Mas nas pessoas que tiveram seus partos realizados pelas mãos de parteiras, sobrevive seu agradecimento a elas, que tanto se doaram em prol de outras que tanto necessitavam do seu auxílio.
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O Rio e as Lavadeiras “O rio sempre foi do mesmo jeito. Encheu e vasou. Carinhanha é que tá diferente! Num tinha tanto comércio desse jeito.” “Eu era muito danada pra trabalhar. Plantava na ilha e atravessava o rio a remo.” “Morria muita criança nesse rio. Iam encher a cabaça, enfiavam na água e não tinham força pra segurar, acabavam caindo no rio e se afogando. Eu mesmo perdi nove irmão para o rio.” “Tinha muito peixe nesse rio, muito peixe. Era cada pexão do tamanho de homem. Tinha pescador que nem podia com o peixe.” “O rio num deixava ninguém passar fome. Meus filhos comiam muito peixe. Meu marido pescava e às vezes ele chegava tarde da noite. Eu fazia o peixe, acordava os meninos, eles comiam e dormiam de novo.” “Em 69, ainda não tinha água encanada. Nós punha água do rio nas latas de querosene grande. Outros que vinham de mais longe usavam o carro de bode. Era um carro de boi menor, pois era o bode que fazia força. Naquele tempo, não tinha vasilha com tampa. Com o balanço da carroça a água das vasilhas derramava quase toda.”
“Depois, a Fundação de Saúde construiu uma caixa de água e um chafariz, mas a água ainda não era tratada.”
“Naquele tempo, se botava água logo cedo para encher as vasilhas para o banho, para cozinha. Depois do almoço, levávamos a louça para lavar no rio. A roupa também era lavada no rio, mas, no inverno, a água ficava muito barrenta e aí as mulheres combinavam de lavar roupa em outras águas.”
No período de inverno, as águas do São Francisco ficam muito barrentas. Muitas mulheres que lavavam a roupa de casa e de fora combinavam para lavar roupa em outras águas. Reunia-se aquele grupo só de mulheres e iam para a Lagoa do Pirapora. Apesar de ter muita piranha e jacaré, era um lugar muito bonito, com muitas árvores ao redor e os galhos verdes iam envergando quase que encostando na água. Era muito bonito, muito verde. A gente passava o dia lá, levava comida para fazer, às vezes até uma garrafa de vinho, e, quando alguém do grupo tinha um radinho de pilha, também levava; o que era muito bom, porque naquele tempo não era todo mundo que possuía essas coisas. Tomávamos muito banho, os jacarés não atacavam porque eles ficavam mais pro meio da lagoa comendo peixe, passarinho e a gente mais na beira d’água. Quando a roupa era branca, a gente reservava uma bacia grande, colocava um pedaço de pedra-ume dentro e a lama que tivesse naquela água ia para o fundo, assentava. Toda a água limpa ficava em cima e a lama no fundo. Aí era só enxaguar a roupa nessa água, tirando com cuidado a água pra não misturar tudo novamente.
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Colocávamos a roupa ensaboada para quarar no sol. Ficava tão cheiroso, porque parece que pegava o cheiro do mato. Depois de enxaguar a roupa, ela era estendida no mato. No final do dia, depois das conversas, risadas, de fazer a comida na beira do rio, de ouvir música no rádio de pilha, de lavar muita roupa, e de tomar muito banho, dobrávamos a roupa limpa e seca e fazíamos uma trouxa, colocávamos na cabeça e voltávamos para casa. Lembro que, em 1966, saímos de Itambé, Bahia, para irmos para Montalvânia, Minas Gerais. Essa viagem, na época, era feita pelo vapor Benjamim Guimarães, que passava pela cidade de Carinhanha.
Mais louco é quem me diz que não é feliz O louco não é louco. Louco é todo aquele que foge dos padrões convencionais, que tem a coragem de fugir dos padrões convencionais. Muitos conseguem perceber o status que têm de loucos e acabam aproveitando isso para atender vontades a que jamais atenderiam caso não fossem assim considerados. Ele é andarilho, enérgico, imortal, está livre dos padrões sociais para ficar à vontade, vez ou outra, perturbando a ordem estabelecida com suas travessuras. O louco é o ser espontâneo. Aparecendo súbita e inesperadamente ora aqui, ora ali, e depois desaparecendo, antes que se possa apanhá-lo. Gosta de estar onde está a ação e, quando não há nenhuma, ele a cria. Por estas e outras razões, o louco (ou quem é taxado de “louco”) é personagem marcante no imaginário coletivo. Sobre ele, a sociedade projeta seus sonhos e, paradoxalmente, seus pesadelos, seus medos e, ao mesmo tempo, seus desejos, fazendo desses antiheróis um tipo especial de heróis.
Dona Zizinha, cadê o fusca? Hoje, 22 de maio de 2012, estou a caminho da casa de Zizinha, com uma insegurança enorme, um frio na barriga, um medo de ser xingada por ela, medo dela não me conceder uma palavra sequer. Desde criança, ouço histórias a respeito de Zizinha. Nessas histórias, eu ouvia o pessoal comentar que Zizinha gostava de, com o perdão da palavra, “falar putaria”. Quando as pessoas perguntavam pelo fusca, ela falava vários palavrões, coisas do tipo “tá no meio das pernas de sua mãe”. Eu cresci ouvindo estas histórias, acreditando que Zizinha era uma pessoa muito diferente da Zizinha que conheci hoje. Nunca tive coragem de sentar e ouvi-la, só agora, com a ideia do mapeamento cultural, é que achei interessante falarmos de Zizinha, pois esta figura faz parte da memória de Carinhanha; já que sua residência está situada em um entrocamento que liga as cidades de Feira da Mata, Carinhanha, Vila são José (“Cheira Cabelo”), Barrinha e Feira de Santa Luzia.
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Ao chegar fiquei meio tímida. Fui sozinha e, como eu disse, tinha medo das respostas que ela me daria ou mesmo se ela me expulsaria de lá! Então, logo que a vi, a cumprimentei e fui explicando o motivo de eu estar ali. Para minha surpresa, ela foi muito educada. Falou que sabia que eu tinha ido lá no dia em que ela estava recebendo sua aposentadoria em Montalvânia, e, então, me senti mais confiante, pois estava claro que ela iria me conceder a entrevista. Observei o lugar, vi seu pequeno comércio de bebidas, uma geladeira que ainda funciona a gás, seus “bonecos legais” em cima de uma prateleira, um pote com água que Zizinha oferece aos visitantes sem cobrar nada − por coincidência havia um fusca estacionado em frente ao boteco, e o barulho dos carros que passavam de lá para cá o tempo todo. No local, tinha um pessoal concertando um caminhão carregado de carvão. Outro enchendo um pneu de uma moto que havia furado havia alguns quilômetros dali. Um senhor esperando um carro para seguir viagem e outro senhor viajante a cavalo. Esse senhor do cavalo apeou, amarrou o cavalo e pediu a ele um remedinho. Fiquei a observar. Então ela seguiu em direção
ao balcão, pegou uma cachaça com algumas cascas de pau dentro, e serviu ao senhor. Perguntou a ele sobre sua família, sua lavoura e se tinha alguma novidade. Em seguida, recebeu o dinheiro e passou o troco direitinho para esse senhor. Nesse momento, olhei para ela com mais firmeza, e ela sorriu para mim. Pude ver o seu sorriso maroto e conquistador, e, ao mesmo tempo, os traços de uma pessoa acolhedora e batalhadora. Nesse momento, um turbilhão de ideias passou por minha cabeça. Pensei comigo “esta não é apenas uma mulher que gosta de falar ‘putarias’, é também uma mulher que socorre todas as pessoas que passam por aqui, que informa aos turistas e visitantes, que acolhe estas pessoas do frio, do sol e das chuvas” e, mergulhada em meus pensamentos, imaginei quantas pessoas Zizinha já teria visto passar por ali; quantas ela já tinha ouvido, participando de suas dores, seus amores; quantos segredos esta mulher saberia − ela sabe de tudo que acontece nas redondezas. É bastante informada, e, assim, fiquei a observá-la por alguns instantes olhando ela sorrir. Raquel Viana, Zizinha, é uma mulher de fibra que, aos seus 82 anos, ainda faz a alegria de muitas pessoas que por ali passam. Arrisquei uma pergunta,
como surgiu a história do fusca? Ela deu uma gargalhada e disse
“é besteira para passar o tempo, pura malandragem! Esta história surgiu por conta de meus dois filhos e um sobrinho. Meu filho tinha um fusca que vivia quebrado por aí. Então o pessoal passava e para encher meu saco ficava me preguntando pelo fusca. Eles faziam isso porque sabiam que eu os respondia com palavrões. Então, eu falava todos os tipos de palavrões que conheço, mas isso era pura diversão.” Zizinha sorri ao lembrar das risadas que o povo dava quando ela os xingava. Ela disse não lembrar da origem do seu apelido, mas gosta de ser chamada assim. Zizinha conta que o orgulho da vida dela é nunca ter precisado pedir nada a ninguém. Sempre foi muito trabalhadora, e nem ela nem seus filhos nunca precisaram pedir nada pra sobreviver. O que ela acha mas ridículo na vida é alguém pedir por preguiça de trabalhar.
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À medida que eu ia conversando com Zizinha, ia percebendo que ela era uma pessoa guerreira, que escolheu seu próprio caminho e o seguiu de acordo o que ela achou melhor, sem medo ou rejeição da sociedade. Perguntei a ela sobre seu casamento. Ela me disse que casou aos 20 anos e que ficou casada até os 35 anos. Desse casamento, teve seus três filhos, e depois disso nunca mais teve ninguém. Disse que sempre gostou de seu ideais e que não sente saudade de seu relacionamento. Também não quis comentar muito sobre o ex-esposo. Perguntei se ele a agredia, se era preguiçoso, se bebia. Ela não quis comentar nem as coisas boas do relacionamento nem as coisas ruins. Falou apenas que preferiu educar seus filhos trabalhando sozinha e que até hoje trabalha para seu sustento. Com seus próprios esforços ofereceu os melhores estudos para seus filhos. Se não são alguém na vida é porque não quiseram, mas chegaram a estudar em Vitória da Conquista, nos melhores colégios de lá. Zizinha diz que há 33 anos reside nesse lugar, e ninguém nunca a desrespeitou. Apesar de falar suas putarias, nunca passou disso; exige respeito e sabe respeitar as pessoas e os ambientes sagrados. Aproveitei a deixa e perguntei a ela qual era a sua religião. Ela me disse ser católica e diz que sempre que tem oportunidade vai à missa. Disse que não gosta de evangélicos. Nesse instante, ela foi à prateleira e pegou um boneco dizendo para mim que era seu Pastor, um boneco a bateria todo no paletó. Então, ela ligou esse boneco e ele começou a gemer. Em seguida, o boneco abre o paletó e mostra seu órgão genital avantajado. Achei muito engraçado e nós duas rimos muito.
* Uma coleção de brinquedos, bonecos, instrumentos com conotação sexual. De vários tipos, formatos, cores e tamanhos.
Contou-me ainda que o pessoal, quando passa na casa dela e vê aqueles objetos, promete a ela que, na próxima vez que voltarem, trarão outro objeto inédito para ela, e assim veio surgindo a sua imensa coleção de “objetos legais”* que ela possui. Muitas pessoas de diversos lugares a presenteiam. Ela disse que gosta para se divertir. “Assim eu me divirto e não fico na solidão”. Perguntei a ela se era devota de algum santo. Ela disse que não, que apenas tinha fé em Deus e tudo que pedia a ele com fé conseguia. Falou ainda que as pessoas tinham que ter muita fé em Deus. Perguntei a ela se sabia alguma prece ou reza em especial. Ela disse que não orava para dormir e agradecia a Deus ao acordar, só precisava disso, pois a natureza já oferece tudo o que precisamos para sobrevivermos. Em troca, precisamos zelar da natureza e das pessoas ao nosso redor, e ter coragem e saúde para trabalhar.
Zizinha você toma uns goles?
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“Não, minha filha. Nunca gostei de beber. Pulei muitos carnavais em Carinhanha, mas sem bebedeira. Gostava era de me divertir. Parei de brincar carnaval por conta dos meus três filhos. Eles não gostavam que eu saísse de careta. Até pedra, eles jogavam em mim para eu não ir para a rua encaretada.” Zizinha ria ao relembrar das travessuras. “Hoje, estou desse jeito. Mas quando ia para as festas, eu ia bonita, cheirosa e gostosa”. Ela sorria sempre com olhar “maldoso”*. Ela não recorda o nome das escolas de samba * Malicioso de que participou. Perguntei a ela sobre sua saúde e se já teve alguma doença grave.
“Nunca, minha filha. Também nunca fui ao médico. Meus remédios faço aqui mesmo com raiz e casca de pau. Tudo que precisamos taí na natureza. Os remédios também são fabricados de cascas de pau. Se eu for ao médico, eles vão me iludir, mandando ter um monte de resguardos e regimes. Eu tô bem do jeito que estou. Tô bem melhor assim”. Perguntei a ela sobre suas refeições.
“Tem dias que como uma vez. Noutro dia como quatro vezes. Tem dia que não como nada. Ontem mesmo espremi um monte de limão em um copo e fiquei tomando durante todo o dia. Aí a fome passa. A solidão é muito ruim, e cozinhar para uma pessoa só não tem graça. À noite, eu faço uma comidinha para mim e para meu filho Cléber, pois esse, quando pode, vem dormir comigo. Eu passo o dia aqui na venda, pois toda hora tem gente aqui. Então, eu fico conversando e as horas
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vão passando. Durmo cedo da noite e acordo de madrugada, mas durante toda a noite, quando os viajantes passam e pedem pra comprar bebida ou outra coisa, eu abro a porta e os atendo”. Nesse instante, ela descobre a minha perna com um machucado de uma queda de moto. Vai lá dentro do seu quarto e volta com um medicamento em uma garrafa. Pergunto a ela o que é, e ela me diz que é cachaça com aroeira curtida. Falei com ela que não ia passar, pois ia arder. Mesmo assim ela pegou um chumaço de algodão e passou o líquido em minha perna. Ardeu um bocado, mas tive que resistir. Falou ainda que tinha vários remédios na cachaças que ela vendia, como raiz de aroeira e barbatimão, usado para cicatrizar feridas, quebra-facão, usado para inflamações, caatinga de porco, que é bom para cortar os vômitos e aliviar a gripe, cagaita, boa para amenizar a gastrite e finalizou dizendo que todas as cachaças servidas têm uma erva medicinal dentro, por isso que o pessoal compra muito. Zizinha diz que
“Gosto de viver aqui. Aqui é tranquilo. Mesmo não tendo água encanada, nem luz elétrica, me divirto muito aqui. Não sou noveleira, gosto de assistir um jornalzinho para eu ficar informada das coisas. Aqui tem meus porcos, meus cachorros, minhas galinhas. Faço o que quero e quando quero. Sou feliz do meu jeito. Vou estar aqui até os dias que Deus me permitir. E penso que, quando eu morrer, muita gente, ao passar por aqui, vai ver a minha imagem sentada e fazendo brincadeiras na janela dessa venda.” Ao terminar a entrevista, ela me agradeceu por eu ter ido até sua residência, ter dado atenção a ela e ter ouvido suas histórias que não têm sentido pra ninguém. Eu retribuí os agradecimentos dizendo que ela era muito importante para aquelas pessoas que passavam por ali, como para todos nós que, por isso, agora, iríamos homenageá-la contando sua história nesse livro.
Chica de Amélia, Família & Sociedade Chica de Amélia era uma mulher negra, alta e de ancas largas. Seus lábios carnudos e cabelos grossos, sempre enfeitados com uma rosa natural vermelha, despertavam o desejo de muitos homens, principalmente dos coronéis desmunidos de piedade. Casar e ser mãe não fez parte de sua vida. Contam que, ao envelhecer, sua única companhia era uma cachorra mirrada e magricela. De nome Família, a cachorra obedecia apenas quando chamada pelo seu irônico nome completo Família & Sociedade. Família e Sociedade não era só nome de um bicho de estimação, mas também uma forma de representar tudo o que ela tinha: uma cachorra que era sua família e sua sociedade. Ao mesmo tempo, família e sociedade enquanto bicho podia dizer muito do que Chica de Amélia compreendia por essas duas organizações. Será? Na juventude, Chica, que de Amélia parece ter tido só o nome, trabalhava nas casas de família da alta sociedade Carinhanhense como lavadeira e engomadeira, mas esses não eram seus únicos ofícios. Ela também era cortesã, daquelas que gostava de tomar umas e outras. Quando o gosto por umas bebidinhas passava dos limites, a sua Família, não arredava o pé e lhe dava a devida proteção. Se Chica de Amélia adormecia pelas calçadas, lá estava Família velando seu sono. Ao avistar de longe a presença de Chica de Amélia, os grandes nomes da cidade mudavam de calçada ou viravam a esquina para não encontrar com quem não hesitava em falar em alto e bom som as histórias de camarinha que ela guardava. Muitos foram aqueles que nos cabelos de Chica de Amélia respiraram apressados para depois, em passos ligeiros dela e de sua Família não esbarrarem pelas ruas. E, para aumentar a afronta, aumentava ainda mais o tom e acelerava o andar de sua companheira chamando: Família! Sociedade!
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Raimundo doido Raimundo era uma pessoa especial, que não agia de acordo com os padrões socialmente aceitos ou considerados “normais”. Esse estado mentalespiritual que o tornava “diferente” foi o motivo para despertar a indiferença das pessoas. Raimundo Farias Rosa nasceu doente, com uma espécie de paralisia na perna e no braço esquerdo. Sofria ainda de epilepsia e de doença de Chagas. Há quem diga que tinha mentalidade de criança. E foi nessa fase que o pai, Manoel Francisco de Oliveira, conhecido como Manoel Combiongo, largou sua mãe, Dionísia Maria de Jesus; deixando-a criá-lo sozinha com muita dificuldade. Procuramos Fabrício Welington de Oliveira, 34 anos, sobrinho de Raimundo. Ele teria maiores informações. Raimundo, figura de quem não se pode esquecer por essas bandas. Pra se saber da data de seu nascimento e morte, foi preciso ir até o cemitério, verificar as informações na sua lápide. Ele nasceu em 1941 e faleceu em 2001. Pronto. É o que sabemos. Viveu, portanto, sessenta anos de sofrimento, pode-se dizer. Judiado pelas pessoas, agredido física e verbalmente. As agressões também vinham dos apelidos: Raimundo Doido, Combiongo, Dim: quem deitou no banco, entre tantos outros. Seu sobrinho Fabrício lembra com revolta e os olhos cheios lágrimas esses fatos. Relatou que Raimundo contava os dias da semana, os meses nos dedos das mãos sem saber ler e nem escrever. E sabia as datas corretas de todas as festas religiosas da região, pois não perdia uma, e ia a pé, para Barra do Parateca, Malhada, Iuiú, Feira da Mata, Julião, Canabrava, Mocambo, Porto Agrário, Tomé Nunes, Ressaca, Ramalho. Literalmente andava atrás de festa. Foi numa dessas viagens a pé que um temporal o pegou na estrada. Por ter pego toda a chuva, passou mal e só foi encontrado no dia seguinte. A partir daí, ele ficou doente e não sarou mais. Raimundo não perdia uma festa da cidade. Religiosa ou não, ele marcava presença com o dedão na boca mastigando e babando. E, se alguém o provocasse, ele corria atrás e ainda jogava baba na pessoa, falava palavrões, e ainda mostrava os órgãos genitais, dizendo: “eu já comi sá mãe”. Como era muito religioso, não perdia uma missa, e sabia todos os cantos e benditos de cor. Na hora das orações, mesmo com toda a dificuldade que tinha para falar, sempre respondia na frente dos outros fiéis: Senhor, atendei
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nossa prece! Ele também não deixava ninguém carregar a Cruz que se levava na frente dos enterros. Se uma pessoa quisesse levar a cruz no seu lugar, não importava quem fosse, ele brigava mesmo. Era seu posto de carregadorguardador da cruz. Seu sobrinho conta ainda que, quando eles moravam na roça, em um lugar chamado Praia, Raimundo tinha o costume de levantar cedinho, acender a fogueira e ficar esquentando o frio. Depois que mudaram para a cidade de Carinhanha, um de seus costumes passou a ser seguir os caboclos e carregar os cipós para fazer o balaio. Era acompanhante assíduo da Banda de Edésio, músico e maestro da banda de música da cidade. Em todos os lugares que a banda se apresentasse, Raimundo marcava presença. Sua morte, na presença dos familiares, anunciada como infarto, aconteceu dias antes da Festa do Divino. E, no dia dessa festa, foi homenageado na missa através das palavras de Pe. Getúlio. Ao Raimundo foi dada uma salva de palmas por todos os presentes. Seu enterro repleto de homenagens e com o acompanhamento dos Caboclos e da Banda Pedro Leite mostrou que ele se tornou uma pessoa ilustre da cidade. Mesmo considerado como uma pessoa de hábitos estranhos, por conta de suas limitações, não poderia deixar de ser uma pessoa importante na cultura Carinhanhense. Assim também foi reconhecido e homenageado tendo seu nome dado ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade. Lá está seu verdadeiro nome: Raimundo Farias Rosa. É preciso que se diga, quando o apontam como doido, que de louco e de doido todo mundo tem um pouco.
As Caminhadas de Sassá Lá vem procissão! O povo fervoroso, acompanhando o Santo devotado que vem em cima de um andor, canta:
Abre a porta povo que lá vem Jesus Ele vem cansado com peso da cruz Logo na frente da procissão, a cruz. Durante muitos anos, ela foi carregada pelo inesquecível “Raimundo doido”. Agora, ela é levada por Alonso Gonçalves Lopes, mais conhecido como Sassá. Carregar a cruz é para ele um ato especial e sifgnicativo. Em dias de procissão Sassá chega cedo à Igreja para carregar sua cruz; afinal, todo mundo tem a sua. Quem ousa, mesmo que por desaviso, tomá-la nas mãos e levá-la, anda buscando ver Sassá com a cara fechada de raiva e desgosto. De estatura baixa e com pescoço encurvado, Sassá traz, junto com a cruz, um semblante alegre e satisfeito. Está ali à frente, levando a cruz e, por que não dizer?, conduzindo o povo para o caminho da fé e de Cristo Jesus. Alonso tem uma trajetória de vida triste e hoje, como diz sua irmã, busca levar uma vida feliz. Desde que nasceu, aos 15 de setembro de 1942, já sentiu o gosto de momentos dolorosos. Sua mãe e sua irmã gêmeas morreram no parto. Ele, como único sobrevivente desse momento infeliz, foi zelado por Dona Matilde, na cidade de Malhada. Com a morte dela, passou a ficar com a sua irmã de criação Georgina, que também veio logo a falecer. Assim, seus dias se tornaram de muito trabalho, pois, sem a proteção e o cuidado de antes, ficou nas mãos dos fazendeiros daquela região. Seu trabalho consistia em carregar muitas latas d’água nas costas. Foi então que Dona Joanita, sua irmã de criação, que se emociona ao contar essa história, veio embora de São Paulo e foi em busca de Sassá. Ela afirma que sempre recebia notícias de que ele estava sofrendo e sendo explorado em sua força de trabalho. No ano de 1983, Sassá chega a Carinhanha. Com seu jeito simples, como até hoje é, caminhava pelas ruas, sossegado, tranquilo, e sempre disposto a fazer favores àqueles que lhe pediam ajuda. Nunca mexeu com ninguém, tampouco demonstrou alguma vez ter raiva de quem mexe com ele, a não ser daqueles que queriam lhe “tomar” a cruz. Mesmo assim,
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sua raiva só se resume a uma cara fechada e nada mais. Sassá é da paz e da alegria. E é com esse espírito que frequenta aquilo que ele mais gosta: as festas, principalmente as religiosas. Como bom católico fervoroso que é, não perde uma Santa Missa. Dos Caboclos, ele é o capitão do cipó. Sempre que os Caboclos terminam sua apresentação após a Missa do Divino, é ele guarda os cipós. Sua presença também é importante nos velórios. Antes do sepultamento, levase o corpo para Igreja, lugar onde acontece a celebração de corpo presente. Conhecendo ou não em vida o morto, Sassá vai ao sepulcro somente para levar a cruz. Ele tem a responsabilidade de levá-la de volta para a Igreja. Certa vez, fui à via-sacra e, como não vi ninguém para levar a cruz, a peguei. Como não sabia, carreguei-a durante um considerável tempo e ali, bem próximo a mim, estava Sassá com semblante de raiva, fechado. Foi então que alguém chegou do meu lado e disse: “Passa a cruz para Sassá que ele está com raiva”. Assim o fiz e ele logo sorriu. Sassá é da paz e não guarda rancor. Assim, em sua simplicidade, se tornou conhecido por todos e hoje faz parte da história de Carinhanha. E, como conta a sua irmã, chegou aqui chorando muito e hoje não quer nem ouvir falar em ir embora. De certo, sua cruz já não pesa tanto como outrora.
Chiquinho Doido Homem simples, bondoso, de hábitos estranhos, comportamento e costumes bastante diferentes do que entendemos como normal, mas querido por todos, pois nunca foi visto de mal humor, e nunca participou de brigas. Após uma incessante busca por informações sobre Chiquinho, consegui falar com as pessoas que cuidaram de Francisco Rodrigues Cerqueira até a sua morte. D. Maria Roberta dos Santos, 70 anos, esposa do primo carnal de Chiquinho, e seu filho Nivaldo Rodrigues Cerqueira, 36 anos, ambos moradores da Rua Ana Nery. Dona Roberta conta que Chiquinho não era doente da cabeça. Era um homem bondoso, trabalhador. Ia para a igreja aos domingos e não se sentava para não amarrotar a roupa branca de linho puro, pois era vaidoso, gostava de andar impecável, só na beca, e no seu documento não constava o nome do pai.
Naquela época, alugava uma bicicleta, aos domingos, para passear, e escolhia as moças de “cor branca” para passear na garupa da bicicleta. Não comia qualquer tipo de comida, como buchada, carne com pele e gordura, costela. Só queria comer carne maciça. Ela relata que, quando chegou a Carinhanha, Chiquinho já era doido, mas a mãe dele contava que ele era a melhor pessoa do mundo, e que gostava de andar só arrumado. A mãe, D. Antonia Rodrigues Cerqueira, passava a roupa – a do trabalho e a que ele vestia para passear na rua − com maior zelo. No cabelo, passava um creme para ficar lisinho, “gaspeado”. Nivaldo fala que ele ficou “parado no tempo”, tácito, sem se comunicar com as pessoas. Foi na época que a aeromoça que ele contemplava todas as vezes que a viação da Varig vinha para Carinhanha deixou de vir. Dentre os tripulantes, havia uma aeromoça linda, por quem Chiquinho se admirava a ponto de se enamorar por ela. Um belo dia, o avião aterrissou e a aeromoça cheia de formosura não apareceu, deixando-o triste para sempre, falando baixinho consigo mesmo, sorrindo sozinho. Ele praticamente enlouqueceu de amor, um “amor platônico” que o fez ficar amargurado, desolado. Assim, começou a triste sina de um rapaz vaidoso, que perdeu o amor de sua vida, depois sua mãe, a vaidade e ficou doente aos cuidados de parentes. Ele saía para o mato à procura de gravetos, formava um feixe e os carregava sempre debaixo do braço cheio de pedaços de pães enfiados. Antes um homem elegante que se exibia numa bicicleta, foi ficando cabeludo, maltrapilho, andava descalço pelas ruas da cidade. Muitas das vezes Chiquinho entrava na igreja com aquele tanto de mato e assistia um pouco da missa, sempre calado, de vez em quando ria misteriosamente. Passou a perambular pelas ruas da cidade, virou pedinte, pedia comida e água, suco ou leite. E mesmo louco, alienado, ainda tinha resquícios de sua vida anterior, pois quando chegava à porta das pessoas pedindo uma garapa, e se o morador trouxesse leite, ele não recebia, virava as costas e ia embora. Chamava algumas pessoas conhecidas pelo nome.
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192 O primo de Chiquinho relembra algumas situações. Uma vez, foi ao banco para renovar o cartão de benefício de Chiquinho, que não deixava os feixes de mato por nada nessa vida. Quando ia dar o banho, não aceitava qualquer pessoa, somente D. Roberta e Nivaldo poderiam cortar-lhe o cabelo e fazer a higiene pessoal dele. Disse ainda que Francisco sofreu dois AVCs. Do primeiro ele conseguiu se reestabelecer logo, mas, do segundo, não teve a mesma sorte. Inquieto, Chiquinho saía arrastando as calçadas, porque não conseguia ficar dentro de casa, tinha de perambular pelas ruas. De vez em quando, seu primo Nivaldo o carregava no colo para levá-lo de volta para casa. Faleceu no dia 05 de junho do 2006. Foi homenageado numa gincana cultural da cidade, e também pelo escritor Honorato Ribeiro, o qual atribuiu um capítulo em seu livro.
“Morre um homem e nasce um mito”, frase utilizada pelos componentes
da gincana, prestando uma simples homenagem àquele que nos comoveu com sua linda história de vida.
Mentiras ou anedotas? Histórias de Deraldinho da Malhada Quem por aqui não já foi chamado de Deraldinho, principalmente quando fala uma mentira? Mas por que será? Ora, por conta de Deraldo José Cerqueira. Mineiro da Cidade de Manga, conhecido popularmente Deraldinho da Malhada, Deraldo era um grande contador de anedotas. Foram estórias que marcaram muita gente, que fizeram o sorriso de muitos. Teve cinco filhos com Dona Antônia, com quem foi casado. Todos esses, atualmente, moram em outras cidades. Também criou Ermelinda, popularmente chamada de Lulu, que reside no bairro São Francisco em nosso município. Uma mulher que mostra no seu semblante, mesmo tendo uma vida sofrida, o sorriso que muitas vezes deu na sua infância das anedotas contadas pelo seu pai. Artesão de mão cheia e de grande fama, Deraldo fabricava sapatos, tanto masculinos como femininos, juntamente com seu irmão Genésio. Eles eram procurados por muitas pessoas na cidade, principalmente as de maior poder aquisitivo.
194 Dona Lulu, com seus 59 anos de idade, nos conta emocionada a história de seu estimado pai de criação. Funcionário público e também sapateiro, veio para Carinhanha trabalhar como fiscal do mercado. Moravam na rua Santa Luzia. Aqui ficou um tempo e logo foi transferido para a cidade vizinha, Malhada, onde por volta de 1970 foi delegado.
“Ele tinha muitas histórias, era cada coisa que contava. Veja bem, como é que pode! Ele disse que uma canoa de rapadura caiu dentro do rio lá em Pirapora, e as mulheres foram aqui no cais e pegaram a água para fazer café sem precisar por açúcar”. Logo conta ela uma das estórias de que se lembra que o pai contava.
Mas não para por aí. Muitas são as estórias mirabolantes do Deraldim. Conta-se que, certa vez, seu relógio de bolso caiu no rio próximo a Januária e o mesmo foi resgatado na cidade de Bom Jesus da Lapa marcando a hora certa. Se era verdade ninguém sabe, mas o relógio brilhava sempre que ele tirava do bolso. Esse bendito relógio foi roubado em Belo Horizonte. Então, Deraldinho correu atrás do ladrão, sacou seu revólver e deu um tiro certeiro no ladrão que caiu morto. Levaram-no para o pronto socorro. O médico afirmou o seu falecimento, mas havia algo batendo em seu corpo que não era o coração. Então abriram o corpo do defunto e, no estômago, estava o relógio, que, segundo Deraldinho, marcava a hora certa. Também, a alavanca de ferro que caiu em Pirapora e veio boiar aqui na malhada. Não se pode deixar de lembrar de que seu disco de vinil rodou em um graveto e tocou as músicas. E sem sombra de dúvida todos dançaram. Sua filha de criação conta que, muitas vezes, Deraldim disse que foi compadre de João Duque, “um homem formoso, elegante, de muitos prestígios e
poder na cidade”, com quem ele se dava muito, eles eram grandes amigos. De outra feita, dizia ele que bastava desenhar um quarto (1/4) de boi na parede que as moscas assentavam e colocavam varejeira ali na parede. O povo sorria e o chamava de mentiroso, mas gostava das suas estórias. Deraldim faleceu em abril de 1979, e é lembrado por muita gente. O povo não esquece, e o faz eterno quando lembra suas anedotas, basta dizer uma mentira e logo será chamado de Deraldim da Malhada.
Celso Barrão Hoje saí de casa, por volta das 8 horas. A manhã estava agradável. O céu nublado e o sol, tímido, não quis aparecer. Segui, assim, o meu trajeto em busca de dados sobre a vida do popular Celso Barrão. Segundo informações, fui procurar uma irmã de sua cunhada, Dona Dira, mas esta não pôde me atender no momento. Dessa forma, fui atrás da segunda opção, outra cunhada de Celso. Cheguei à casa de Dona Neozita e fui atendida pela sua irmã, dizendo que ela estava no banho. Fui convidada a entrar e ali fiquei esperando. Quando pôde me atender, me identifiquei e expliquei porque estava ali. Para minha tristeza, ela não me soube falar quase nada sobre o cunhado, justificando que quase não teve contato com ele, pois, logo que casou com o irmão dele, conhecido como “rabada”, Celso morreu. O engraçado é que, quando estávamos conversando, ela não tirava os olhos do meu crachá. Sem saber do motivo de tanto olhares, pensei que ela estivesse desconfiada de mim por algum motivo, mas quando fui me despedir lhe agradecendo, ela me perguntou em tom curioso “porque você está usando a foto dessa atriz no peito?”, “Que atriz?”, eu perguntei. “Essa da novela, a Taís Araújo.” Aí eu ri demais. “Esta aí não é a Taís. Sou eu!”. Saindo da casa de Dona Neozita, voltei a importunar a Dona Dira, que me atendeu ali mesmo na porta, sem ao menos me convidar pra entrar. Ela não quis falar nada, dizendo que não sabia muita coisa sobre o nosso personagem. Por mais que eu tenha insistido, ela se recusou a me dizer qualquer coisa. Eu tinha uma terceira opção: a Dona Jandira. Perguntei a ela onde ela morava. Ela me explicou e eu fui seguindo sem desanimar. Chegando a casa de Dona Jandira Martins de Abreu, 45 anos, doméstica, moradora à Rua Santos Dumont, Bairro São Francisco, me identifiquei logo. Ela me convidou a entrar, e aí começamos a conversar ali mesmo na sala. Tive muita sorte, porque Dona Jandira é uma pessoa simples, humana. Em sua companhia, estava sua netinha Heloísa, menina falante e esperta essa: me convidou para comer peixe frito, tomar café. Por fim, além de conseguir o meu objetivo ainda conquistei uma amiga, deixando o convite para voltar outras vezes em sua casa.
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Segundo Dona Jandira, a família de Celso Barrão, veio de Pinga Fogo, um povoado distante 15 km da sede de Palmas de Monte Alto, Bahia. Uma família composta na época pelo Sr. Sebastião Borges dos Santos, sua esposa Emília Rodrigues Montalvão e mais três filhos. Chegando aqui, compraram uma casinha e aqui fincaram raízes, permanecendo até a morte. Ao total, o casal teve doze filhos: Elcina, Diva, Ecília, Maria Borges, Raimundo, Carlos, Anastácia, José Borges, Maria Auxiliadora, Antônio, Mariinha e o nosso personagem, Celso. Alguns já falecidos, outros morando em outras regiões. O seu Sebastião, para sustentar a família, trabalhou como carregador de água por muitos anos, usando como transporte um jegue. Por isso ficou conhecido como “Sebastião do jegue”. Naquela época, quando não havia água encanada, era ele quem carregava água do rio para as pessoas da cidade que podiam pagar. Depois de alguns anos nesse trabalho árduo, Seu Sebastião conseguiu um trabalho pela prefeitura, na área de serviços gerais. Ele era um lutador e sofredor. A vida nunca lhe foi fácil. Passou por várias provações e uma delas foi perder a visão. Cego, não podendo mais trabalhar, conseguiu se aposentar, morrendo assim com seus mais de 80 anos. Sua esposa, Dona Emília, símbolo também de mulher guerreira, para ajudar o marido no sustento, trabalhava como lavadeira. O dia mal clareava e lá ia ela a pé com a sua trouxa à cabeça lavar no Prefere. Quando voltava pra casa, já cansada, o sol já se fazia alto. Sofreu três ataques cardíacos. Não resistindo ao terceiro, morreu aos seus sessenta e oito anos mais ou menos. De acordo Dona Jandira, depois que a mãe de Celso morreu, ele e o pai foram morar na casa dela e lá ficaram até os seus últimos dias de vida. Conhecido carinhosamente como Celso Barrão, solteiro, um negro do rosto liso brilhoso, meia altura, andar ligeiro, tinha um pé redondo, cheio de rachaduras, só vivia descalço, era inimigo de camisa, só andava de calção (bermuda). Esperto, gostava muito de jogar uma pelada e pescar de anzol. Uma pessoa muito boa, querido por todos, trabalhador. Era fiscal de avião, ajudava nos açougues, era um pau pra toda obra. Só tinha um defeito: bebia demais, embora não incomodasse ninguém com a sua bebida. Ganhou esse apelido porque desde menino não gostava de tomar banho, “Celso não era aquele rapaz de chegar em casa, tomar banho, arrumar”, só depois de passar a conviver com os pescadores − uma turma de turistas de
Belo Horizonte- MG, vem todo ano acampar no pontal – foi que ele começou a ter higiene. E quando chamavam ele de “Barrão”, ficava ofendido, xingava. A mãe do povo sofreu na boca dele, porque, quando falavam “ó Barrão”, ele respondia, “ fedido tá é lá o negócio de sua mãe”. Celso era visto como um doido, mas o seu problema não era loucura. Ele sofria de epilepsia. Várias e várias vezes, as crises se manifestavam na rua, e cada vez ficavam mais frequente os ataques, que se prolongaram até a sua morte. Dona Jandira, emocionada, com os olhos em lágrimas, disse que Celso Borges dos Santos morreu aos 45 anos de idade, mais ou menos. Em uma manhã, levantou e foi na casa de uma vizinha, e logo em seguida seu filho chega chamando, dizendo que o tio não estava respirando. Retornando à casa, viu que ele tinha sofrido uma crise e já se encontrava morto. “Já tem mais de doze anos mais ou menos e até hoje aquela cena não me sai da cabeça, parece que foi ontem esse acontecimento”, diz Dona Jandira com muito saudosismo.
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O Rio dorme Eu deveria estar dormindo. Cinco da manhã e ainda está escuro, ainda não amanheceu. Olho por entre a janela de vidro, um silêncio ensurdecedor, frio. Uma brisa fria e úmida vinha do rio e resfriava o vidro da janela. Abro a janela e a brisa toca levemente meu rosto sonolento. O tempo pára. Olho pro rio e ele parece que nem está la de tão quieto. Uma névoa branca constrasta com a cor da noite que está para se despedir. Uma névoa que se debruça amorosa sobre ele, um lençol úmido a cobrir o sono do rio. O rio continua quieto, sem nenhuma corrente, sem nenhum movimento, sem nenhum pássaro a sobrevoar seu espelho, nem barulho de gente, nem de bicho, nem de peixe. E na janela de Darinha, apenas eu a observar a paz dos que dormem depois da janela. Ele dorme. Ele também dorme e como dorme bonito, imenso, profundo, de uma beleza tão extensa quanto o seu percurso. E eu fiz o mesmo, me dirigi ao sono para não vê-lo despertar.
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Notas (1) AMADO, Jorge. Seara Vermelha. 44ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1984, p. 133. (2) SOUZA, José Evangelista de. Coronéis no Médio São Francisco: fatos e histórias. 2ª ed. Santana, BA: AJASS, 2007, p. 60. (3) SANTOS, Honorato Ribeiro dos. História de Carinhanha. 4ª ed. Guanambi: Gráfica Papel Bom, 2006, p. 17.
De Sanfonas e Sanfoneiros CapĂtulo II
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Introdução Ouvi o toque da sanfona me chamar... Ouvi o toque da sanfona me chamar... O Sanfoneiro bem maneiro puxa o fole, Folia a noite inteira até o dia clarear. Luiz Gonzaga
R. J. Stewart, em seu Música e Psique, chama de “música tradicional”, “música étnica” ou “música ambiental” um gênero de música que gera certos laços entre aqueles que tocam e cantam, entre aqueles que ouvem e mesmo entre aqueles que cantam, tocam e ouvem. Esses “laços musicais” geram uma identificação mútua que costura estas pessoas em torno de uma mesma identidade cultural, criando uma ambiência pela qual essas pessoas podem se reconhecer. Diz R. J. Stewart que A música ambiental ou étnica (...) [tem] uma qualidade culturalmente única, que está intimamente relacionada com a terra de origem. É essa qualidade que torna a música folclórica capaz de ser reconhecida instantaneamente. (...) A música ambiental (...) é a expressão musical de um grupo que vive há muitas gerações na terra natal.1
Em Carinhanha, dois instrumentos representam bem essa “consciência musical partilhada”, essa “música ambiente”, pois estão presentes em quase todas as manifestações culturais da cidade: a Caixa e a Sanfona.
A sanfona “A música tocou. Os violinos, não... as sanfonas, por debaixo, crescendo, subindo, as lágrimas descendo, a música mais linda do mundo, a melodia de fazer todos juntos chorarem o choro junto de todos de uma só vez, para sempre.” (Carlos Emílio Barreto Corrêa Lima, Além, Jericoacoara)
A sanfona é um instrumento de sopro, como uma gaita, mas que, por ser alimentada por um fole, e não pelos pulmões do tocador, alcança uma potência muito maior. Além disso, ela tem uma série de sons graves no lado esquerdo (botões), e de sons agudos do lado direito (teclado), o que permite tocar duas melodias distintas simultaneamente. Além da voz do instrumentista que faz a terceira melodia. Esses botões do lado esquerdo, que provocam um som grave, “grosso”, popularmente dizendo, são conhecidos como “baixos”. Os botões do lado direito, que emitem um som mais agudo, mais “fino”, montam o teclado, semelhante a teclas de um piano. Ambos sopram um conjunto de harmônicos – que chamamos de “harmonia” – em tons diferentes mas que não se chocam, dando a sensação de som mais encorpado, de sinfonia (será por isso que chamamos esse instrumento de “*sanfônia/sanfona”?). A voz do cantorinstrumentista junta-se a esse coro de tons, misturando o sanfoneiro à sua própria sanfona. Tanto um quanto outro formam juntos, assim, um único instrumento harmônico. Existem dois tipos básicos de sanfona: a com teclado de piano (acordeon, acordeão) e a gaita-ponto, com botões no lugar das teclas (gaita-de-botão, pé-de-bode ou “oito baixos”). A própria sanfona recebe outros nomes como fole (“puxa o fole, sanfoneiro!” fala típica dos cantores de forró quando vão começar uma canção), gaita-de-fole e realejo2. As sanfonas mais modernas diferenciam-se pela quantidade de baixos que elas têm. Existem sanfonas com 8, 24, 48 baixos e mais uma grande variedade, mas as mais comuns são as de 80 e 120 baixos. Oswaldinho do Acordeon, conhecido músico de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, diz que
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“A verdadeira sanfona é aquele instrumento menor, de oito baixos, onde abrindo o fole é uma nota e fechando é outra, ensinada de pai para filho, conhecido no interior do nordeste como pé-de-bode ou concertina, e no sul como gaita-ponto”3.
A sanfona de 80 e de 120 baixos representa já uma modernização do instrumento rústico pé-de-bode, bem mais difícil de tocar porque precisa encontrar, nos 8 baixos que têm, a mesma gama de tons que a sanfona de 120. Entretanto, com a leva de modernização do interior do Brasil, no início do século XX, a sanfona moderna (com maior número de baixos) foi ganhando cada vez mais espaço e se tornando a preferência das gerações mais novas, que desdenhavam do instrumento mais rústico de apenas 8 baixos. A música “Respeita Januário”, de Luiz Gonzaga, reflete bem esta relação. Respeita Januário Quando eu voltei lá no sertão Eu quis mangar de Januário Com meu fole prateado Só de baixo, cento e vinte, botão preto bem juntinho Como nêgo empareado. Mas antes de fazer bonito de passagem por Granito Foram logo me dizendo: “De Itaboca à Rancharia, de Salgueiro à Bodocó, Januário é o maior!” E foi aí que me falou meio zangado o véi Jacó: Luiz respeita Januário Luiz respeita Januário Luiz, tu pode ser famoso, mas teu pai é mais tinhoso E com ele ninguém vai, Luiz Respeita os oito baixo do teu pai! Respeita os oito baixo do teu pai!
Na letra da música, há um diálogo entre duas pessoas que vão ver tocar Luiz Gonzaga, a essa altura já famoso tocador de sanfona conhecido como “Rei do baião”. Esse diálogo é um debate a respeito da sanfona moderna de 120 baixos, comparando Luiz Gonzaga, tocador dessa sanfona de 120 baixos, com Januário, seu pai, tocador da sanfona de 8 baixos. − Eita, com seiscentos milhões, mas já se viu! Dispois que esse fi de Januário vortô do sul Tem sido um arvoroço da peste lá pra banda do Novo Exu Todo mundo vai ver o diabo do nego Eu também fui, mas não gostei
O nego tá muito mudificado Nem parece aquele mulequim que saiu daqui em 1930 Era malero, bochudo, cabeça-de-papagaio, zambeta, feeei pa peste! Qual o quê! O nêgo agora tá gordo que parece um major! É uma casemira lascada! Um dinheiro danado! Enricou! Tá rico! Pelos cálculos que eu fiz, ele deve possuir pra mais de 10 contos de réis! Safonona grande danada 120 baixos! − É muito baixo! − Eu nem sei pra quê tanto baixo! Porque arreparando bem ele só toca em 2. Januário não! O fole de Januário tem 8 baixos, mas ele toca em todos 8. Sabe de uma coisa? Luiz tá com muito cartaz! É um cartaz da peste! − Mas ele precisa respeitar os 8 baixos do pai dele. − É por isso que eu canto assim! “Luí” respeita Januário “Luí” respeita Januário “Luí”, tu pode ser famoso, mas teu pai é mais tinhoso Nem com ele ninguém vai, “Luí, Luí” Respeita os oito baixo do teu pai! Respeita os oito baixo do teu pai! Respeita os oito baixo do teu pai!
Seja como for, de lá pra cá, a sanfona veio se firmando como um dos instrumentos que melhor caracterizam a cultura do sertão. No filme O Milagre de Santa Luzia (Brasil, 2009. 104 min), de Sérgio Roizenblit, Dominguinhos, reconhecidamente o melhor tocador de sanfona vivo do Brasil, percorre as mais diversas regiões onde a sanfona ganhou destaque e de onde surgiram seus maiores intérpretes. Numa das entrevistas, é o músico Gabriel Levy quem diz que “o acordeon, por ser portátil, virou um instrumento muito conectado às tradições rurais dos países. É um instrumento que entra muito forte em todas essas expressões folclóricas de arte popular menos urbanizadas”. As festas em que se usa sanfona em Carinhanha são as festas juninas e os casamentos na roça.
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Ouvi o toque
da sanfona me chamar São muitas as manifestações culturais em que a sanfona aparece. Sua principal função ali é criar uma ambiência harmônica em que as pessoas, cantando em uníssono a mesma canção, a mesma cantiga, a mesma música, reconheçam-se mutuamente, costurando laços de uma Identidade Cultural compartilhada entre todos. Tanto no ritual da Quebra da Panela, quanto nas Festas Juninas, passando pela Quadrilha dos Quadrados, é a sanfona quem dá o tom da animação, tanto que se pode dizer que a voz do povo é a voz da sanfona chamando.
Festas Juninas Para materializar as memórias dos santos e das festas juninas de Carinhanha é preciso apurar os ouvidos para ouvir as vozes que vêm da Vila São João, dar-se preferência àqueles que guardam em si as memórias mais distantes do agora, desse tempo moderno que tudo devora, os mais velhos, portadores da memória do tempo. A fogueira é o símbolo mais marcante dessa festa. É entorno dela que as famílias se sentam para celebrar. Ela é a luz e o calor desses dias. Há muito tempo era comum, em algumas casas, colocar um arvoredo no centro da fogueira. Enchiam-se os galhos secos de prendas, e ele ia queimando de baixo para cima, os ansiosos já aguardavam o momento em que os galhos não sustentariam o próprio peso e cairiam espalhando, ao alcance dos mais velozes e atentos, as prendas. Era uma correria só. Traques e bombinhas impediam alguns de ter sucesso na correria. Em Carinhanha, é na Vila de São João o lugar onde as festas juninas adquirem maior significado, porque elas representam a própria fundação e o desenvolvimento do povoado.
A Vila de São João O povoado de Vila São João fica situado a 42 km da sede e a 10 km de distância das margens do Rio São Francisco. É uma área de assentamento rural empossada pelo INCRA na década de 80, sendo um lugar de encontro entre comunidades, por isso foi apelidado de “Feirinha do Entroncamento”. Durante alguns anos, todos os sábados, realizava-se uma feira e todas as pessoas da redondeza se reuniam, uns para pôr barracas, outros para comprar. Era bastante movimentado e com isso o povoado foi crescendo e os comércios foram aparecendo e a feira, aos poucos, foi desaparecendo. Hoje, poucas pessoas colocam barraquinhas de roupa. O povoado também é contemplado com uma escola de porte médio, que recebe aproximadamente 900 alunos do povoado e de comunidades vizinhas. Na cidade, o festejo grande é a linda festa comemorando o São João com santos festejos. João Damasceno e seu Florzinho são os primeiros moradores e fundadores do povoado. João Damasceno, 65, relata que a comunidade iniciou em Julho de 1986. Ele tinha uma barraquinha de café e bolo que se chamava “Entroncamento”. Dona Rosa, sua esposa, vendia para caminhoneiros e para as pessoas que por ali passavam rumo ao povoado mais próximo, onde iam fazer compras, na Barra do Parateca. Tinha uma linha, isto é, uma estrada, mas ainda não existia a BA 161, que hoje corta o povoado. Seu João Damasceno conta que a feira atraía pessoas de diferentes regiões, que foram se apossando das terras e, aos poucos, formando a vila. Antes, a escola mais próxima funcionava num meio rural de nome “Pajeú”, a uns 3 km do entroncamento. Como a vila foi crescendo, através de uma votação a escola foi transferida para cá. Depois de uns três anos, quando a população já havia crescido o suficiente para se constituir em uma vila, foi organizado o primeiro festejo em comemoração à sua fundação. Esse festejo é a Festa de São João. Daí a vila ser batizada de Vila São João. A proposta foi levada para a câmara de vereadores e foi aprovada. Desde, então, todo ano se comemora o São João com os Santos Festejos, e é uma manifestação cultural que atrai gente de toda região. Seu Florzinho, Florisvaldo Pereira Magalhães, 58 anos, também conta a sua história de São João.
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Vivo nesta comunidade desde 1983. Quando cheguei aqui, isso aqui nem caminho tinha, era uma mata. Aí cheguei e consegui botar a primeira roça. Aí, quando foi no outro ano, João me pediu um lugar pra fazer um barraco. Aí dei, e ele conseguiu, e por causa dele, João Bundão, foi que foi colocado o nome daqui de Vila São João. Morava os dois João: o de dona Rosa e o Bundão. O João Bundão tinha uma casa, e o de dona Rosa tinha uma vendinha que vendia café. A ideia do lugar surgiu quando estava reunido com alguns colegas para tomar umas cachaças. E chamei eles para fazer uma currutela no lugar − isso foi em 85 − e eles toparam. Comecei a distribuir as posses. Os lote de terra eu media era nos passos, e saía entregando pra cada um. Quando foi no outro dia, tinha uns vinte barraco. Fizemos tudo de tardizinha. O terreno era meu e por aí foi começando. Deixei o local reservado para construir as praças, a escola, o mercado, a Igreja e aqui tinha uma cisterna que não era pra desfazer não, mas ela ficou dentro do mercado. Tenho ‘maior sentimento’ por terem matado ela, pois foi ela que ajudou a fazer essa cidadezinha aqui. O nome Vila São João foi colocado por causa do João morador, não foi por causa dos festejos não. Os festejos da quadrilha foi a escola que começou. Projetei tudo aqui, deixei o lugar para fazer a Igreja, o mercado, a escola, mas mudaram tudo. Hoje, a praça que era pra ser a Igreja tá lá cheio de mato, e a Igreja fizeram em outro lugar.
Santos festejos: festa do padroeiro com missa solene Para compreender o processo de formação e o desenvolvimento da festa do padroeiro do povoado foram entrevistados vários moradores e narradores da própria história como Pedro de Zizú, D. Ana, Maria de Argemiro, Laíze, Roseli, e ainda Josélia, entre outros que ajudaram a construir e a promover o povoado, muitos já “em memória”. No dia 27 de setembro de 1997, reuniu-se a comunidade de Micaela de Fora com a comunidade do povoado Vila São João para organizar a construção de uma Igreja Católica. Organizou-se, primeiramente, uma novena para fazer leilões. Para isso, reuniram-se uns festeiros, que “são aqueles que fazem as despesas da folgança”, explica o folclorista Silvio Romero em Estudos sobre a poesia popular do Brasil4. No caso da Vila, trata-se daqueles que organizam a festança: Primeira noite, dia 28 de setembro de 1997, Seu Aurelindo e Sona Lurdes de Seu Zé de Brito. Segunda noite, 05 de outubro de 1997, Pedro e Irene. Terceira noite, Getúlio e Pretinha, 12 de outubro de 1997. Quarta noite, Seu Alípio e Dona Josefina, 19 de outubro de 1997. Quinta noite, Sivaldo e Dona Arminda, 26 de outubro de 1997. Sexta noite, Joselice e Joaquim Saraiva, dia 02 de novembro de 1997. Sétima noite, Delino e Dona Maria, dia 16 de novembro de 1997. Oitava noite, Joaquim de Zé Roxo e Carmelita, dia 23 de novembro de 1997. Nona noite, José de Clemência e Dona Ana, dia 30 de novembro de 1997. (Escrito por José de Clemência in memoriam)
Pelos relatos dos moradores, as celebrações de São João só tiveram início em 1997, quando aconteceram os primeiros leilões para a construção da Igreja. Durante esse período, realizaram-se leilões com o fim de ir guardando dinheiro suficiente para isso. Comprou-se um terreno e ganhou-se outro, até que, enfim, começou a construção da Igreja São João. No ano seguinte, o padre Getúlio, em visita à comunidade, viu a necessidade de ampliá-la, e a comunidade ganhou uma igreja de grande. Foi uma doação dos católicos da Alemanha para Vila São João, através de projetos para melhoria dos encontros católicos. Depois da Igreja construída, ficaram faltando os acabamentos. O padre que estava na comunidade na época era o Pe. Vander. Ele reuniu toda a comunidade e organizou a primeira festa de São João em Vila São João, já em 2000, com a novena onde havia noiteiros e festeiros.
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Os noiteiros assim ficaram distribuídos: a primeira noite era das crianças, elas eram responsáveis pela organização dos leilões de sua noite; a outra, dos jovens; a terceira, das mães; ainda uma quarta só dos pais; e ainda outra noite da comunidade vizinha. Assim até a nona noite. A cada leilão, o arrematador era elogiado com um toque de música de sanfona, em sua homenagem e, no dia da festa, havia os festeiros, que seriam os responsáveis pela organização da festa no dia 24 de junho, sendo o diretor da escola na época um dos noiteiros: Elivaldo, Galego Paraíba e outras pessoas da comunidade que, na época, estavam coordenando a Igreja. Porém, todas as pessoas da comunidade se reuniam juntamente com a escola e, nesta primeira noite, houve missa à tarde, quadrilha das crianças. À noite, o bingo de um bezerro, o pau de sebo, a quadrilha dos adultos e a festa dançante com show de sanfona com o sanfoneiro Delindo e a banda da região, o Trio Lopes, cujo sanfoneiro, inclusive, era muito afamado na região, o Geraldinho do acordeon. Assim, a festa se tornou tradicional e todo ano tem a festa com os Santos Festejos. O dia de São João é o mais conhecido, o mais falado e o que marca de nome e alicerça os festejos juninos. Porém, outros santos também têm grandiosa importância e significado para estes festejos.
Santo Antônio O dia de Santo Antônio é comemorado no dia 13 de junho. É o santo casamenteiro, o primeiro santo junino a ser comemorado. No município de Carinhanha, em especial, na zona rural, todas as pessoas respeitam e tratam esse dia com bastante carinho. Também nesta data há festas com quadrilha. Em alguns lugares, esse dia abre as festas juninas. Sempre é dito pelos mais velhos que Santo Antônio é o santo das solteiras. Daí, neste dia, as solteiras fazem promessas e simpatias para arrumar namorado. Um dessas simpatias consiste em
No dia de Santo Antônio, logo cedo, enche-se um copo com água e dentro do mesmo colocam-se todas as letras do alfabeto: diz-se que a letra que descer primeiro na água é a inicial do nome de quem você vai casar.
Na noite de Santo Antônio, coloca-se debaixo do travesseiro o nome de três rapazes pelos quais se tenha afeição. Quando raiar o dia, logo ao acordar, feche os olhos e pegue um dos nomes. Esse será o nome do rapaz com quem se vai casar. As simpatias se tornaram algo tão expressivo que elas vêm ser feitas até no dia de São João, Quase um mês depois.
Pegue uma bacia branca com água fria, leve para a beira da fogueira [de S. João]. Pegue duas brasas acesas, uma que represente você, outra, a pessoa com quem você namora e quer casar. Jogue as duas brasas acesas dentro da água e espere o resultado observando-as. Se juntarem uma na outra, você e a pessoa com quem você namora e quer casar irão ficar juntos, se as brasas se separarem, o casal, futuramente, vem a se separar. São poucos os lugares em que essa prática ainda resiste, principalmente na zona rural de Carinhanha. As mocinhas ainda acreditam no poder de Santo Antônio, na Lagoa de João Neto, Lagoa de Capim, Aguadas... essa prática de fazer simpatias e rezas para Santo Antônio ainda permanece, porém as moças fazem suas simpatias escondidas de todas as pessoas, ou para não quebrar o encanto, por receio de que as pessoas joguem sobre a simpatia, o ritual, o pode do “olho gordo”, seja por vergonha.
São João O São João acontece em todas as comunidades do município. Com uma fogueira acesa, comemoram o São João, na noite do dia 23 pra 24 de junho. Para os católicos, essa festa tem como objetivo comemorar o nascimento de São João, pois no dia em que ele nasceu, conta-se a história, foi acesa uma fogueira bem no alto para anunciar seu nascimento.
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Quadrilha junina
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O pessoal aproveita a fogueira para fazer simpatias sobre casamento, namoro, brincar, dançar, em torno dela ou não, e também fazer celebrações: batizados, casamentos; porém, essas são práticas acontecidas anos atrás segundo Maria José, Dona Alzira e Dona Ana, moradoras da Vila São João, essas práticas não são mais usadas. Esse também é um dia de fazer churrascos assando carnes na brasa da fogueira, de assar abóbora, mandioca, batata doce: coloca-se a mandioca doce, batata doce e a abóbora debaixo das brasas da fogueira. Depois de 20 a 30 minutos, retira-se a mesma com um pedaço de tição apagado. Deixa-se esfriar, depois descasca-se e já está pronto para servir. Aqui, a culinária mais saborosa é a do São João, pois tem bebidas e comidas saborosíssimas como o quentão, que é servido quente. No quentão, os ingredientes são bastante picantes e cheirosos, pois em seu preparo acrescentam-se: água, açúcar, hortelã, gengibre, abacaxi, capim santo e um pouco de cachaça, cravo e canela. Colocam-se todos os ingredientes em uma panela grande e, acrescentando, o açúcar, aos poucos, e, por último, a cachaça, e deixa ferver, até evaporar um pouco. Está pronto para servir. É servido quente. A canjica, o milho verde e o bolo de fubá não podem faltar. Também tem o porco e o frango assando temperados com temperos caseiros que são uma delícia! As pessoas aproveitam o período junino, principalmente o São João, para sair do regime e comemorar com muita alegria e comilança. Muitas pessoas viram a noite em volta da fogueira, e no dia 24 tomam o primeiro café da manhã ainda ao redor da fogueira; isso acontece bem cedinho. Na expressão de alegria e folia, todos soltam fogos, traques e bombinhas, quando se acende a fogueira no dia 23, à noite, e no dia 24, logo cedo, às cinco da manhã. Essas duas noites são de festa, com músicas típicas da época, o forró pé-de-serra ao toque da sanfona, e do acompanhamento do pandeiro, do triangulo, do surdo e, também, dançando ciranda ao redor da fogueira. Tem as danças de quadrilhas, pau-de-fita, pau-de-sebo etc. As danças de quadrilha, para diferenciar e atrair mais pessoas, vão sendo diversificadas, dançando homem com homem, homem que se veste de mulher, também mulher com mulher, mulher que se veste de homem, e outra onde reverte o papel mulher e homem, ou seja, a mulher se veste de homem e faz o
papel do cavalheiro, e o homem se veste de mulher e faz papel de dama. São práticas feitas da Vila São João, da Agrovila XVI, e também em Carinhanha, na sede. Muitas pessoas aproveitam esse dia para virar compadres por meio do tição de fogo, saltam o tição três vezes e falam algumas palavras ensinadas. Como essa prática foi deixada de lado, as pessoas dizem não lembrar, mas os mais velhos dizem que a partir desse dia já se podiam considerar compadres. Também se fazem batizados neste dia, saltando o tição de fogo.
São Pedro São Pedro é considerado o santo das viúvas, sendo celebrado nos dias 28 e 29 de Junho. Por isso acendem fogueira nesse dia viúvos e viúvas na frente das suas casas, em homenagem ao santo e ao seu dia. Por essa razão essa fogueira é conhecida como “fogueira das viúvas”. No dia de São Pedro, as pessoas que se chamam Pedro também acendem fogueira. Antigamente, todas as viúvas, viúvos e pessoas que tinha o nome de Pedro só podiam acender a fogueira no dia de São Pedro. “Era uma coisa praticamente sagrada”, comenta Dona Valdeci. Viúva de Seu Emanuel, Dona Valdeci reside na Fazenda Pajeú, e conta que seu “esposo faleceu em 3 de novembro de 1990, há 21 anos. Porém, no ano seguinte, não acendi nenhuma fogueira” diz ela, “porque os mais
velhos falam que no primeiro ano de viúva ou viúvo faz mal acender a fogueira”. Ela explica que geralmente não se acende fogueira no primeiro
ano por respeito mesmo ao falecido ou falecida.
Muitas viúvas fazem a fogueira na frente das casas em homenagem ao santo e ao seu dia, pois quem é viúva não comemora o São João, não acende em sua casa fogueira para o santo, sua data comemorativa é sempre o dia de São Pedro, por ser ele o santo protetor das viúvas. Seu Gerson, residente em Carinhanha, é viúvo da Sra. Antônia, falecida há quatro anos. Ele conta que se lembra da fogueira dos viúvos e viúvas desde menino,
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“vendo meus avós acenderem a fogueira no dia de São Pedro. Esse dia é escolhido porque esse santo é responsável pela chave do céu. Por isso, cultua-se esse costume que segundo os mais velhos abre as portas do céu para os mortos e também abençoa os vivos”. A fogueira das viúvas é acesa na noite do dia 28 de Junho. As mulheres da igreja geralmente vêm e rezam a oração de São Pedro. Depois, serve-se um cafezinho com biscoito e, no decorrer da noite, os filhos do viúvo (ou da viúva) se reúnem e compram cerveja para tomar. Cada viúvo ou viúva acende sua fogueira individualmente. Cada um faz de sua maneira. Cada um tem seu ritual. Alguns fazem rezas em volta da fogueira com todos os familiares de mãos dadas, outros rezam antes de acender a fogueira, e ainda aqueles ou aquelas que rezam o terço durante a queima d a fogueira. Mesmo individualmente, o costume de acender esse tipo de fogueira especificamente costura a comunidade em torno de uma prática coletiva que mantém, ali, uma identidade comum marcada, no caso, por um sofrimento comum. Seu Gerson se emociona bastante quando fala a respeito de sua falecida esposa. “É muito difícil viver só”, diz ele, “mas eu prefiro
guardar minha viuvês, pois jamais teria coragem de colocar outra pessoa no lugar da minha mulher, que, em vida, sempre me respeitou. Por isso, quando acendo a fogueira dedicada a ela, me emociono muito lembrando os bons momentos que vivemos juntos”. “Muitos acendem a fogueira, mas poucos mantêm o respeito à pessoa que já se foi”, acrescenta. Esse é também o dia em que estão se encerrando os santos festejos; tem danças de quadrilhas e festas dançantes também neste dia.
Quadrilha dos quadrados Grande roda! Preparar para o passeio das noivas. Olha a chuva! Êêêêêê! É mentira!
No ano de 1993, em uma brincadeira de boteco, Dr. Osvaldo (já falecido) e Nitinho, Joanito Costa Cruz Pinto, resolveram fazer uma quadrilha só de homens. Convidaram os amigos e todos concordaram com a brincadeira. Sem ensaiar e na base do improviso, dançou a primeira vez a quadrilha dos quadrados na praça do sangradouro. Desse dia em diante a festa cresceu. A cada ano atraía novos adeptos para dançar ou apenas para espiar. Hoje, com seus 19 anos, na noite de sua apresentação a quadrilha reúne na praça do sangradouro cerca de 5.000 a 6.000 pessoas. Com vestidos e saias coloridas, salto alto, maquiagem e perucas se trajam os homens para dançar na quadrilha dos homens, quadrilha dos quadrados ou ainda quadrilha maluca, que acontece sempre em julho no encerramento de todas as festas juninas. É uma quadrilha especial de que só os homens participam. As damas são homens vestidos de mulher. Diferenciando-se das demais, eles não fazem ensaio de passos e nem tem uma quantidade exata de participantes. Nitinho, idealizador do movimento, convoca os amigos para realizarem a brincadeira. Homens de todos os bairros participam, pessoas de todas as ocupações: médico, advogado, vereador, prefeito, pedreiro, mecânico, pescador, comerciante, lavrador, pessoas de diferentes profissões e classes sociais. Os patrocinadores da festa são os próprios participantes. No dia da brincadeira, todo que chegam fantasiados e querem dançar podem. A combinação entre os pares é feita pelos participantes. Cada um já vem combinado com o seu par. Quem grita a quadrilha, como é de costume falar aqui, é o Nitinho, mas tem a professora Doralice (popular “Dora”) que, quando pode, vai auxiliá-lo. “No ano que ela está é bem mais animado”, assim diz o Nitinho. Depois da brincadeira, tem o forró dançante e a atração que toca a festa é sempre patrocinada pelos dançantes e participantes da festa, que são homens adultos, solteiros e casados.
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Quadrilha dos Quadrados
Esse evento tem grande significado na vida dos carinhanhenses, pois é uma forma diferente de organização de um traço marcante da nossa cultura: as festas juninas. Onde os homens se unem, programam e realizam a festa. E como não existe dança sem música, e em quadrilha que se preze não podem faltar músicas acompanhadas de sanfona, pandeiro, zabumba para conduzir os passos animados dos que dançam, além de acompanhamento musical típico desse tipo de festa, a quadrilha dos quadrados tem música própria. Além de acompanhamento musical típico desse tipo de festa, a quadrilha dos quadrados foi presenteada com uma música própria, feita pelo compositor e cantor Nelcino Mendes.
Eu Tô Doido Chegou o dia da quadrilha dos quadrados, Só não brinca quem não quer, É a única que só tem homens barbados, E não tem vez pra nenhuma mulher. Mas é o que vê a mulherada falando, vamos lá vê os homens brincando, a gente vai ver também a noiva Nenca, e aproveita e arruma uma dama de penca. Eu tô doido, eu tô doido, hoje é dia da doidice tomar pé (bis) Eu tô doido, eu tô doido vou enterrar na pinga até encostar o pé (bis) Nelcino Mendes mora em Carinhanha. Ele relata que sempre foi convidado para participar da dança, porém, como é muito tímido, nunca quis participar. Mas adora assistir e, para contribuir com a festa, ele fez a música em homenagem. Nelcino conta que desde criança gosta de criar música e que começou a escrever aos dez anos de idade. Usava o recreio e as aulas vagas da escola onde estudava para compor e, até na roça trabalhando, ele escrevia e hoje escreve nas horas de folga do serviço e faz isso por inspiração própria e amor à vocação.
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A quebra da panela Para Dona Maria Saraiva, moradora da Agrovila XXIII, a “quebra da panela” simboliza que chegou ao fim uma grande preocupação dos pais de família: casar e fazer a festa de casamento das filhas. Ela explica que na tradição da região os pais da noiva é que tinham a obrigação de fazer a festa do casamento. Por este motivo, os mais velhos cuidavam de conservar bem os utensílios necessários à preparação das comidas nas festas de casamento. Quando eles casavam, a última filha solteira, na maioria das vezes a caçula, faziam a brincadeira da quebra da panela, querendo dizer que esta preocupação tinha acabado. A missão deles e da panela estava encerrada.
Dona Diolina Encontramos Dona Diolina Moreira Saraiva “tomando uma fresca” embaixo de uma árvore no quintal de sua casa na Agrovila XXIII. Surpresa com a visita, começou logo a falar de costumes tradicionais e aproveitamos para perguntar sobre o assunto de nosso interesse, a quebra da panela do casamento de sua filha. A sua satisfação era tamanha em falar sobre o assunto. “Você não quer
saber da minha história? No meu casamento também teve a quebra da panela”, perguntou ela. Essa disposição foi providencial, pois o relato de Dona Diolina contou sobre a quebra da panela em épocas distintas: no casamento da filha, e como foi vivida por ela mesma.
O casamento de Dona Diolina Os pais de Dona Diolina tiveram três filhas. Como as outras ficaram solteiras, no seu casamento fizeram a “quebra da panela”. Naquela época, as festas de casamento duravam três dias consecutivos. Conforme os hábitos de então, a casa dos pais de Dona Diolina foi toda enfeitada. Uma latada bem grande −
uma cobertura provisória feita com forquilhas, varas e coberta de palhas de coco – foi armada na frente da casa para receber todo o povo e realizar a festa, inclusive o forró. Enquanto os preparativos seguiam, Diolina, na época com apenas dezoito anos de idade, saiu para casar em Carinhanha. A noiva acompanhada dos convidados, trajava como mandava o figurino da época, vestido branco, véu e grinalda. Ela relembra que era uma felicidade compartilhada com familiares e amigos. Os pais de família da época tinham o maior prazer de realizar um casamento. Na volta da cerimônia, quando o cortejo trazendo os recém-casados se aproximava da casa dos pais da noiva, era costume soltar fogos para avisar que estavam chegando. Os que tinham permanecido ultimando os preparativos respondiam com fogos para dar a entender que estavam cientes da chegada. O barulho dos fogos aumentava a movimentação, acelerava os preparativos da festa e, ao mesmo tempo, avisava a vizinhança e era um convite para todo mundo ir receber os noivos. Quando o cortejo finalmente chegava próximo à latada erguida na frente da casa, aumentava ainda mais o estouro dos fogos. Neste momento a cavalaria, formada por pessoas montadas em animais − na época o meio de transporte mais comum − já estava de prontidão e saía para encontrar os que vinham se aproximando. Começava, então, a cerimônia de cumprimentos aos noivos e aos pais dos noivos. À noite, após o jantar acontecia a festa, animada por um sanfoneiro acompanhado de pandeiro, triângulo e zabumba. Para o casamento de Dona Diolina, como era comum a todos os demais, estes instrumentos chegaram transportados em burro de cangalhas, dentro de bruacas. Durante o jantar, na mesa dos noivos, começavam as loas. Uma delas dava vivas aos noivos.
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Viva daqui pra lá Viva de lá pra cá Viva quem já casou Viva quem vai casar Vivá, á, á, á. Pra, pra, pra, pra, pra (Dona Diolina imita o som das palmas) Solta fogos, muitos fogos (pô, pô, pô, pô, ô, ô, ô...) Outra loa se referia à mudança que o casamento traz para a vida dos recém-casados:
Chora noivo, chora noiva Chora até não querer mais Essa vida de solteiro Não chega pra você mais Dona Diolina mostra-se muito emocionada com as lembranças como se tudo estivesse acontecendo de novo neste momento. Mostrou até as malas de madeira que seu pai lhe deu para guardar o enxoval, que incluía, além das roupas, panelas de ferro e roda de fiar.
A brincadeira, o ritual Para fazer a brincadeira da “quebra da panela”, era escolhida uma pessoa extrovertida. Quando a festa já ia lá pelo meio, essa pessoa pegava a panela, colocava na cabeça e saía dançando pela casa e nos arredores. Os convidados acompanhavam dançando, sambando. Em certo momento, a pessoa fazia um movimento fingindo que ia jogar a panela no chão. O povo todo corria para pegar as coisas. Mas era só um faz de conta. A pessoa não jogava a panela no chão. Pelo contrário, colocava novamente na cabeça e recomeçava a dança e o suspense. As simulações de quebrar a panela aconteciam várias vezes,
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sucessivamente. Até que em determinado momento, quando ninguém estava esperando, o animador jogava de verdade a panela no chão. Quando ela se espatifava, a animação chegava ao auge. Eram risos, empurrões, gritos, animação total, todo mundo querendo pegar alguma coisa. Dona Maria Saraiva e o esposo Corinto Saraiva viveram também a brincadeira, por ocasião do casamento da sua filha Ivany. De acordo com as informações deles, a panela tem que ser de barro. Ela é toda enfeitada com papeis coloridos e dentro são colocadas as surpresas: balinhas, doces, bolos, dinheiro, moeda, arroz. Eles acrescentam outros detalhes: depois dos comes e bebes, as pessoas se juntam, inclusive o noivo e a noiva. Com o sanfoneiro tocando, o pessoal sai em volta da casa, rodando, dançando, soltando fogos. É a maior animação. Todos acompanham ansiosos. A pessoa que leva a panela faz o papel de um comediante. De uma hora para outra faz que vai quebrar a panela e povo corre para cima. Ele levanta a panela, bota na cabeça e continua dançando, o pessoal atrás. Até que chega um momento em que a pessoa solta mesmo a panela no chão, transformando-a em caquinhos. O que está dentro se espalha para todos lados e o povo corre para cima, cada um querendo chegar primeiro. E assim a festa continua.
O casamento da filha de Dona Diolina Dona Diolina teve sete filhas. Casou todas. No casamento da última, Leny Moreira Saraiva, treze anos atrás (1999), fez a “quebra da panela” por achar bonito e importante esse costume. No relato que ela faz, é possível ver mudanças, pois aparecem antigos e novos costumes. Primeiro os noivos foram casar na cidade. Após o casamento, vieram para casa da mãe da noiva. As pessoas aguardavam do lado de fora da casa. Jogaram flores e pó de arroz nos noivos. Na porta da frente, estava colocado um pano branco no chão, servindo de tapete. Ali, os noivos se ajoelharam e pediram a benção aos pais da noiva, dizendo: “Para sempre seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo”. Os pais do lado de dentro responderam “Para sempre seja louvado Nossa Mãe Maria Santíssima”.
A festa de Leny Moreira foi animada com som mecânico. O sanfoneiro acompanhou apenas na chegada. A noiva convidou as moças presentes, ficou de costas para as elas e jogou o buquê para trás. À meia noite, retirou o vestido de noiva e colocou outra roupa. A madrinha é quem toma de conta dos pertences retirados. A bendita panela de barro fora doada por Dona Palmira e enfeitada para a brincadeira por Dona Ione Pereira Santos, madrinha da noiva. Seu Emílio de Canabrava foi escolhido para a “quebra da panela”. Nesta ocasião, todos rodaram a casa, dançando, tocando o pandeiro, soltando fogos, na expectativa de pegar as surpresas. Quando se completaram três voltas ao redor da casa, Seu Emílio jogou a panela no chão.
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O Sanfoneiro
bem maneiro puxa o fole Um sanfoneiro é um mantenedor das manifestações culturais. Como artista popular, muitos herdam do seu pai, quando com eles aprendem a tocar o instrumento, a função de dar continuidade às práticas culturais de uma região, garantindo, assim, as feições características do povo. Como animadores das festas, eles são peça-chave na manutenção da história de um lugar, pois são as festas que ritualizam essa permanência.
Seu João Sena “Ainda muito menina presenciei muitas noites de São João em que meu avó João Sena tocava para nos alegrar, são muitas as lembranças dos nossos momentos de criança ao seu lado, homem simples meigo e amigo de todos, nunca dizia uma palavra para magoar alguém. Hoje ele mora nas lembranças de filhos, netos, bisneto, amigos... ’’. Ana Maria Sena Cacarecos. Velhas teclas de piano espalhadas pelos cantos. Pedaços de madeira, velhas folhas bolorentas de foles bem antigos. Numa pequena pilha de sucata, carcaças do que antes fora um instrumento musical. Peças e pedaços de peças dispersos pelo chão. Uma bancada com um pedal e um fole, um pequeno teclado em cima e uma pequena ferramenta de ferro lustrado que, se batido com delicadeza, vibra um som monótono como um “ohm” universal. Os especialistas chamam essa ferramenta de “diapasão de afinação”. Uma fina camada de poeira cobre os cantos mais inalcançáveis das pilhas que pr’aquele
menino parecem bem maiores do que são. A nossa casa nunca é do jeito que é, é do jeito que a gente lembra dela. Estamos em um dos quartos de uma casa antiga. Estamos numa oficina. Mas não é uma oficina qualquer, é a oficina de um luthier, o Seu Jesuíno Sena, o consertador de sanfonas. “A música é um poder físico, e não apenas emocional, intelectual ou espiritual. O corpo reage diretamente a certas ressonâncias, timbres e ritmos”, diz R. J. Stewart, em Música e Psique5. O som é um corpo vibrando no espaço, um ponto no universo reverberando no ar ondas que se expandem como quando tocamos com a ponta dos dedos um lago que dormia. Pelo ar, em cada centímetro cúbico, habita um som em silêncio, uma voz adormecida como bailarinas guardadas em caixinhas de música esperando para serem despertadas. Cada caixinha esperando para ser tocada pelo instrumento exato, pelo afinado instrumento. O instrumento musical é um captador, um catalisador, um filtro para fazer ouvir essa música que está em tudo, “eco do impulso da criação divina”6. Assim, um consertador de sanfonas nunca é só um consertador de sanfonas. Ele é também um artista, o artista dos artistas, inclusive, um artesão do som que desenha, modela, enfeita, lima, apara, aprimora, torce, esculpe, lapida o instrumento porque sabe e sente que trabalhando o instrumento ele está, na verdade, tateando o próprio som. João Soares de Sena, conhecido como João Sena, apelidado pelos irmãos e primos como Joãozinho, era esse menino que passeava pelas veredas instrumentais desta oficina de seu pai, Jesuíno Sena, onde a música estava sempre em conserto (com “s”) e, não demorava muito, entrava também em concerto (dessa vez com “c”). Sanfoneiro pelo seu próprio dom, ainda muito jovem, com 16 anos começou sua profissão de tocador, arriscando as primeiras notas nas sanfonas que o pai Jesuíno Sena consertava. A primeira sanfona que tocou era um acordeon de 120 baixos. Depois que já sabia tocar, comprou uma sanfona de 80. Festas de casamento, quadrilhas e até carnavais, tudo ele animava ao som de sua sanfona. Era sempre convidado pela Sra. Madalena Barral, mulher do Dr. Barral, médico muito conceituado na cidade, para as festas familiares que ela organizava. Tocava bolero, forró, chote, baião, marchinhas de carnaval, músicas de Luiz Gonzaga. Tocava João Sena
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por prazer, e sempre que as pessoas amigas e de comunidades vizinhas lhe convidavam, ele ia muito satisfeito. Às vezes ele cobrava, quando a localidade era muito distante. Todos os anos, em época de carnaval, ele tocava na Liga Operária, fazendo a festa com as marchinhas. Quando ainda jovem, em meio a seus familiares, primos, irmãos e amigos, ele fazia sempre no final de tarde de domingo a farra entre todos tocando cavaquinho. Certo dia, a corda do cavaquinho quebrou e veio a furar um de seus olhos, e seu pai o levou para Januária, em Minas Gerais, para fazer tratamento, e chegando lá ele viu um acordeon. Já com o dom de tocador, comprou o acordeon e trouxe para melhor aperfeiçoar o seu dom. João Sena era muito respeitado e admirado por todos os amigos e conhecidos. Ele gostava também de tocar forró pé-de-bode, com uma sanfona pequena de 8 baixos, e por muito tempo foi o sanfoneiro de toda região. Lagoa Dantas é uma pequena comunidade localizada a 13 km de Carinhanha. É nessas terras passadas de geração para geração que vivem os filhos, netos e bisnetos do senhor João Sena, tocador de sanfona e meu avó. Quando criança, lembro-me que sua casa estava sempre cheia. Era um lar muito visitado pelas pessoas conhecidas e amigas de toda a vizinhança. Acho que a música que vinha de suas mãos chamava toda essa gente, como um alaúde encantado. O tempo foi passando e foram surgindo outros sanfoneiros: João Braúnas e seus filhos: Leocádio Braúnas, Alexandre Braúnas, Sebastião Braúnas, todos tocando sanfona, mas por diversão, não em festas. Juraci de Augusto, Nelson Sena, Nelson Alexandre, Valdir filho de Zuza, morador da Micaela, são todos tocadores que tocam em festas e outros movimentos em época de São João. A sanfona e o sanfoneiro não são responsáveis apenas pelos laços culturais da comunidade por estarem presentes na maior parte das manifestações populares. É muito comum que o sanfoneiro herde de seu próprio pai (ou algum parente próximo) o ofício de tocador. Assim, além de reforçar os laços culturais de um povo, a sanfona reforça laços de afetividade entre o safoneiropai e o sanfoneiro-filho que se estendem a toda a família.
A Sanfona e os Baraúnas A história começa com João Alves de Souza, conhecido como João Baraúnas, já falecido. Ele viveu até os 90 anos e teve uma história muito bonita. Ele era um cara de fibra, estilo Lampião, o contado no romance. Vivia em cima de um bom burro viajando com sua tropa e por onde passava era reconhecido por sua luta e esforço físico. Tocava sanfona e fazia forró na região, “na redondeza”, como é o costume falar por aqui. Essa arte era exercida com muito carinho, sendo uma forma de sustentar a economia da casa, para ajudar a criar os filhos, e também uma diversão. Observando o pai tocar, seu filho mais velho, Alexandre Alves de Souza, também aprendeu a tocar acordeom e ia a festas junto com o seu pai, auxiliálo. Juntos tocaram por muito tempo. Depois dos 18 anos, já fazia festas sozinho, para auxiliar nas despesas de casa, pois tinha muitos irmãos. Ganhou muito dinheiro e se divertiu muito. “Não tinha diversão melhor”, conta, “era uma farra muito boa e uma brincadeira sadia”. Mais tarde, dois irmãos mais novos também aprenderam a tocar, o Leocádio Alves de Souza, hoje com 70 anos, que toca e canta, e o Sebastião Alves de Souza, 68, que toca e também reforma, transforma e conserta sanfona. Essa arte dentro da família Baraúnas é considerada como um dom e uma vocação familiar, passada de pai para filho, pois, para continuar a tradição, o filho mais velho de Alexandre, Delindo Filgueira de Souza, 50 anos, aprendeu a tocar sanfona e executa muito bem a arte, sendo considerado um dos melhores do munícipio de Carinhanha e, junto a ele, seu primo, filho de Sebastião, Adonias Alves de Souza, 38 anos, que toca sanfona muito bem. Em seus relatos, todos contam que são felizes com a profissão, e que tocam por prazer. A sanfona tem um valor e um significado muito especial na vida da família Baraúnas. Anos atrás, eles faziam festas quase todos os dias. A sanfona, antes de introduzir os sons automotivos e os novos aparelhos e ritmos sonoros, era o instrumento do momento. Tinha os salões de festas onde todos iam dançar o forró e se divertir a noite inteira. A cidade era totalmente diferente de hoje, as pessoas davam valor especificamente à cultura da época.
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Seu Delindo Seu Delindo Filgueira de Souza, 50 anos, lavrador e sanfoneiro, morador da comunidade Vila São João, é um dos mais tradicionais músicos da localidade.
“Aprendi com meu pai, e porque era minha vontade meu pai comprou uma sanfona pra mim, isso foi em 1976. Toco até hoje porque gosto de tocar, e o povo também gostou, então...”. É um apaixonado pela sua arte e diz que toca por diversão e pra ganhar dinheiro. “Para mim não tem arte melhor que essa, não. Quando toco”, diz ele, “nada falta”. Completa que toca “por profissão e quando estou alegre, a inspiração vem da cabeça. Quando vejo uma música de que gosto, quero logo aprender a tocar. Isso me inspira!” Seu Delindo conta que tem sido cada vez menos procurado pelas pessoas para cumprir o que reza a tradição dos sanfoneiros locais. “As transformações foram muitas”, comenta. “Com o surgimento de ritmos diferentes, as festas de sanfona diminuíram muito... novas bandas musicais”. S. J. Stewart, em seu livro Música e Psique, aponta a música contemporânea como uma canção que representa bem a época em que estamos vivendo, e que ele chama de “Colapso de Culturas”. O pesquisador argentino Nestor Garcia Canclini, em seu Culturas Híbridas, diz que “a modernização [é uma] força alheia e dominadora, que opera por substituição do tradicional e do típico”7. E basta olharmos direitinho para as coisas: há uma sede geral pela novidade, o carro do ano, o celular mais avançado, o computador de última geração. O novo é supervalorizado, e essa supervalorização do novo acaba subtraindo das tradições os significados que lhe são inerentes, e que não são mais compartilhados pelas gerações mais jovens, ou porque essa geração tem outros meios para expressar o que os mais velhos expressavam pelas suas próprias tradições, ou porque esses jovens foram levados a crer que tudo aquilo que é velho deve ser descartado. Dona Diolina, moradora da Agrovila XXIII, conta que o ritual da “Quebra da Panela”, costume da região de quando se casa a última filha solteira, já não segue a tradição, pois a festa de casamento é animada com o que ela chamou de “som mecânico”. S. J. Stewart diz que “a emissão física de som é o
agente externo e audível de um poder interno e transcendente”8. Isso significa, de maneira mais simples, que a música exerce determinadas influências sobre o comportamento e o pensamento humanos. Ora, isso pode explicar o porquê de preferirmos determinado estilo de música quando estamos tristes ou alegres ou chateados ou com raiva, porque a música reforça determinado estado de espírito nosso. As mãos cerradas de Seu Elpídio da Canabrava, que participou da luta pela garantia da posse da terra ameaçada de expropriação pelo governo federal, cantando “sou lavrador e eu nasci foi nessa terra/ nem que eu morra eu faço guerra/ ninguém pode me tomar”, e repetindo esses versos, indicam a força que a música em seu estado natural tem de representar o que sentimos. “A música”, segue Stewart, “[age] por causa de um conteúdo secreto presente na expressão do som”9. Dessa forma, a música é “uma ciência abençoada”10 − ciência no sentido de “saber, conhecimento, técnica”, “um veículo sagrado ou mágico da consciência”11. Segundo o estudioso de música, os aparelhos modernos de reprodução musical (gramofones, toca-cds, toca-vinis, tocafitas e, por consequência, os MP3 Players, Iphones, MP4 etc.), o tal “som mecânico” de que fala Dona Diolina, não conseguiriam capturar certos subtons e harmônicos que compõem a música em seu estado natural (a que sai do próprio instrumento), esvaziando, assim, o seu poder “mágico”. Essa breve fuga teórica, esse pequeno devaneio acima vem para elucidar a fala de Seu Delindo quando ele diz que “Antes eu tocava do mesmo jeito que
toco hoje, mas era mais procurado. As pessoas de antes gostavam mais. Hoje, os jovens não dão mais valor. Agora, só treino mesmo, toco mais no bar, em casamento, São João e festas tradicionais que assenta sanfona”.
Seu Delindo
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Meleta “Conceição, ele veio saber do pai e a vida dele vai sair num livro” Conhecido popularmente por Meleta, Etelvino Lopes da Silva foi um grande homem que aprendeu a arte da música. Quem o conheceu o via sempre nas ruas da cidade com sua sanfona tocando melodias, como dizia o mesmo, “para a memória”. Filho de Emenegildo Lopes da Silva e de Rosa Maria de Jesus, viveu sua infância na Comunidade de Bebedouro. Quando adolescente, por volta dos 14 anos, com o falecimento de sua mãe, foi morar com o Senhor Arthur Macedo de Lima na Fazenda Alto do Paraíso, próximo da cidade. Ninguém melhor para falar de sua vida do que seu irmão de criação, assim considerado por Seu Totó, Antônio Cardoso de Lima, que conta que lembra muito dele, “um rapaz muito asseado, sempre muito vistoso”. Contase que quando ele chegou para a Fazenda de seu Arthur, este deu a ele seu material de higiene pessoal (escova, toalhas, sabonete etc.) e ele aprendeu certinho que devia tomar banho, escovar os dentes, lavar as mãos antes das refeições, foi tanto que ele não comia nada sem antes lavar as mãos. Uma anedota que se conta nas rodas de amigo diz que ele era tão asseado que lavava até a rapadura antes de comer. “Conheci Meleta desde criança” diz seu Totó, “recordo dele antes de ir lá pra casa com um burro e as
cangaias cheia de lenha que ele mesmo tinha tirado no mato para vender aqui. Era assim, uma vez era lenha, outra vez, mel, também pra vender, ele sempre foi muito interessado”. Católico fervoroso não
perdia as celebrações e sempre lia a Bíblia e o Catecismo da Igreja Católica.
Tinha também o apelido de “Gato Branco”, pois sempre que era para podar ou derrubar uma árvore ele subia com o machado e caminhava de galho em galho.
Primo carnal de Geraldinho do Acordeon, sua história com a música começa logo cedo. “Eu ganhei um rialejo (gaita) e aprendi a tocar sozinho.
Sempre que eu ia levar o gado para beber água eu tocava. Eu tocava o tempo todo. O interessante é que quando eu parava de tocar o gado parava de andar. Mas antes disso, já pegava a bruaca e tocava nela batendo”. Seu Meleta ganhou também um cavaquinho e, logo em seguida,
uma sanfona que, sozinho, sem ajuda de ninguém, foi aprendendo a tocar.
“No dia que ele ganhou esse presente, ô, meu Deus do céu! Quase caiu de tanta emoção que ele ficou” afirma seu Totó. Pelas ruas da cidade, tocava sua sanfona. Aonde ia, era com a sanfona do lado. E ia tocando. Não tocava em festas, mas fazia show por onde passava. Para seu filho Juvêncio seu pai tem uma história muito bonita e deixou grandes saudades, ao se entrar no seu comércio logo se vê na parede a foto de Meleta com a sanfona nas mãos. Ele diz que não moraram muito juntos, “coisas da vida”, diz ele, ficou com ele até os três anos de idade, só voltando a vê-lo após 14 anos, e com a sanfona na mão. Diz que sabe que seu pai foi um homem bom, trabalhador e lutador. No momento da nossa conversa, sua irmã por parte de mãe entrou e a alegria de Juvêncio era tão grande que ele foi logo dizendo: “Conceição, ele veio saber de meu pai e a vida dele vai sair num livro”. Meleta morreu aos 61 anos de idade, no ano de 1990, na comunidade de Canabrava, município de Malhada, deixando muitas saudades. Segundo contam, ele foi picado por uma cobra e o levaram para um curador do povoado que disse que ele não podia atravessar água. Seus familiares até quiseram trazê-lo para a cidade, mas como ele acreditava que não podia atravessar água, “e olha que ele tinha medo de morrer”, afirma seu Totó, acabou ficando em Canabrava até a morte.
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Seu Geraldo Lopes Geraldo Lopes Gonçalves (1958-2011), conhecido como Geraldinho do Bebedouro, era sobrinho de Etelvino Lopes da Silva, o Meleta, e filho de Júlia Lopes Gonçalves e de Antônio Barbosa Gonçalves. Era sanfoneiro, mas deu início à sua profissão sendo tocador de zabumba no grupo musical do sanfoneiro João da Praia, conhecido como Joãozão da Praia. Depois de muito tempo comprou uma sanfona e começou tocando em festas da sua comunidade e em todas as comunidades vizinhas. Tocava em casamentos e eventos religiosos. Uma tradição local era a presença da sanfona na chegada de casamentos, uma tradição que todos da região têm como cultura. O sanfoneiro acompanhava os noivos até a igreja e da igreja até a casa da noiva. Ao sair de casa, a noiva ia para a igreja a pé, o sanfoneiro ia atrás tocando e todos os parentes e amigos acompanhando até a igreja. Quando voltava, tudo era repetido até chegar onde iam recepcionar os convidados, e prosseguia a festa até amanhecer o dia, com forró a noite toda. Era costume também o sanfoneiro tocar quando os noivos estavam chegando em casa após a cerimônia na igreja ou no cartório. Era ele, Seu Geraldo Lopes, o responsável pela trilha sonora de amor do casal. Em 2004, Seu Geraldo formou o Trio Lopes do Forró com seu irmão Nivaldo Lopes e seu sobrinho Diego Lopes que animou festas até agosto de 2011, quando do aniversário de Carinhanha. Em novembro desse mesmo ano, Seu Geraldo Lopes faleceu.
Dois sanfoneiros, uma história Quem não já foi em um forró de Walmir do Correio? Ou quem, dos mais antigos, não já foi num forrazão de casamento de Alvinão das Três Ilhas? Para falar dos sanfoneiros de Carinhanha tem que lembrar dessas figuras. Tal pai, tal filho, assim diz o ditado que, muitas vezes, é correto. Walmir de Souza Gonçalves, funcionário por um longo tempo da agência dos Correios de Carinhanha − por isso ficou conhecido por Walmir do Correio −, é um grande sanfoneiro e sua história com a sanfona começa dentro da sua própria casa, vendo seu pai Alvinão das Três Ilhas tocar.
235 Uma das suas irmãs mais velhas, Juliana de Souza Gonçalves, conta que moravam na Fazenda Três Ilhas, município aqui de Carinhanha, com seus pais Alvino Ferreira Gonçalves, sua mãe Francina Rosa de Souza e seus 11 irmãos, dentre eles Walmir. Alvinão das Três Ilhas era um grande forrozeiro saía sempre para tocar em casamentos e bailes, e consigo levava Walmir que, ainda garoto, já tocava pandeiro. Então, enquanto seu pai tocava a sanfona, ele tocava no pandeiro e o forró “comia” noite adentro. Mas o pandeiro era pouco para o garoto. Dona Juliana diz que quando seu pai saía pra roça, Walmir ia lá e pegava a sanfona para “bulinar”, mexer escondido no instrumento, e ficava assuntando, abrindo e fechando, sem muito barulho. Certa vez, quando seu pai chegou da roça, disse ele, “Pai, eu sei tocar sanfona”. “Tu sabe o que, moleque? ”, respondeu Seu Alvino. Walmir, todo empolgado, “sei sim. Quer ver? ” Seu Alvino então propôs o desafio: “pois toca aí pra mim”. “Lembro como se fosse hoje”, diz Dona Juliana, “ele pegou a sanfona, bem maior que ele, sentou na cadeira,
afinou e começou a tocar a musica ‘Asa Branca’ do Luiz. Tocou a música todinha sem errar”. Entre risos, Dona Juliana acrescenta que nessa época Walmir devia ter uns 8 anos de idade.
Depois desse dia Walmir ganhou créditos com seu pai. Então, seu Alvino começou a incentivar o filho, já que ele estava herdando a sua profissão, e, vendo que o garoto tinha talento, começou a dar a sanfona pra ele tocar nas festas. Walmir começou a fazer tanto sucesso que tomou o lugar de seu pai. Sim, o povo queria sempre ver aquele menininho franzino tocando a sanfona quase do tamanho dele nos forrós. Tendo a música como uma paixão, Walmir adotou a sanfona como sua profissão. Veio para a cidade trabalhar na agência dos Correios, mas não abandonou a música. Precisou de ir embora da cidade e aproveitou para crescer na profissão. Em Salvador, tocou na Banda Cueca Branca. Depois foi para São Paulo, onde tocou na Banda Garota PlayBoy e, atualmente, com seus 54 anos de idade bem vividos, toca na Banda Bandalas. Assim, continua levando em frente o que aprendeu com seu pai: tocar forró e fazer o povo dançar a noite inteira até o sol raiar.
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Outros sanfoneiros de Carinhanha Adonias Sanfoneiro, morador da Agrovila XVI. Antônio de Uílson, sanfoneiro antigo. Dedício de Melo, Barra do Parateca. Francisco Manoel dos Santos, sanfoneiro do Angico. Leocádio Braúna, sanfoneiro da zona rural. Nelson Sena é também tocador de sanfona na zona rural. Nezinho do Foli ou Nezinho fogueteiro. Valdir Sanfoneiro mora em Micaela, zona rural. Valmir Sanfoneiro não mora mais em Carinhanha, mas foi um homem que tocou bastante sanfona por aqui, conhecido como “Valmir do Conjunto” por ter organizado um grupo musical. Zezinho Sanfoneiro, mora em Carinhanha.
Dedício de Melo e seu terno
Notas (1) STEWART, R.J. Música e Psique: as formas musicais e os estados alterados da consciência. São Paulo: Círculo do Livro S.A., 1987, p. 40. (2) LOPES, Ibrantina Guedes de Casvelho. Forró pé-de-serra: descompasso entre letra e música. Monografia de Especialização em Cultura Pernambucana. Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE). Recife, maio de 2007. Disponível em <http://www.ladjanebandeira.org/cultura-pernambuco/pub/m2007n04. pdf>. Acesso em 12 de junho de 2012. (3) Apud PERES, Leonardo Rugero. A sanfona de oito baixos na música instrumental brasileira. Disponível em <http://ensaios.musicodobrasil.com. br/leorugero-asanfonadeoitobaixos.pdf>. Acesso em 12 de junho de 2012. (4) ROMERO, Silvio. Estudos sobre a poesia popular do Brasil. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 48. (5) Idem, p. 31. (6) Idem, p. 51. (7) CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.4ª ed. São Paulo: EdUSP, 2008, p. 19. (8) STEWART, R. J. op.cit., p. 74. (9) Idem, p. 75. (10) Idem, loc. cit. (11) Idem, loc. cit.
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Terno, eterno Terno CapĂtulo III
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Batendo Caixa misturando a Vida Introdução No capítulo anterior, afirmou-se que, em Carinhanha, dois instrumentos representam bem o que R. J. Stewart, em seu Música e Psique, chama de “música tradicional”, “música étnica” ou “música ambiental”, pois estão presentes em quase todas as manifestações culturais da cidade: a Caixa e a Sanfona. A hipótese inicial era a de que a sanfona, instrumento medieval e, portanto, europeu, estaria mais ligada às manifestações culturais cristãs, enquanto que a caixa, instrumento ancestral africano, por sua vez, corresponderia às manifestações mais afrobrasileiras. Assim, os textos estariam organizados em dois blocos: num capítulo, aquelas manifestações cuja música teria base na sanfona (festas juninas, a quebra da panela, as quadrilhas etc.); noutro, aquelas cujo ritmo estaria mais pautado pela Caixa (os ternos de reis e os reis de boi). A divisão permaneceu, mas essa simbologia pseudo-antropomusicológica, não. Não é difícil descobrir por que. Não demora muito para perceber o quão essa hipótese é absurda. Há historiadores e folcloristas que, num primeiro momento, apontam os reis de boi como uma “dança típica dos negros africanos”. Isso não é totalmente correto, afinal, os reisados (ternos e bois) são uma tradição cristã que celebra a partida dos três reis Magos do Oriente para Jerusalém a fim de encontrarem o menino Jesus que acabara de nascer. Sendo uma tradição cristã é, portanto, europeia e não “tipicamente africana”. É um equívoco comum, que se dá pela força sugestiva da presença dos instrumentos de percussão na realização dos ternos.
Os tambores são para os africanos muito mais do que um instrumento musical. Para algumas comunidades tribais, o tambor é um meio de comunicação por excelência entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Para outros, é o meio através do qual o homem pode se conectar à natureza cósmica, ao universo e aos seus ancestrais. É em torno dele que toda a comunidade tribal se reúne para celebrar seus rituais, cuja pulsação é sempre marcada por tambores.
A caixa A caixa é um tambor pequeno, artesanal, em formato cilíndrico em cujas extremidades constam duas peles tensionadas sobre as quais os tocadores batem com duas baquetas de madeira num ritmo que segue o andamento da dança. Em Carinhanha, essa caixa é menor que as caixas mais comuns, uma adaptação árabe (ou mourisca) do instrumento maior, a zabumba. Segundo Paulo Dias, famoso etnomusicólogo brasileiro, essas caixas eram muito bem aproveitadas pelas Irmandades de Nossa Senhora do Rosário, que no Nordeste brasileiro eram celebradas dentro da Festa do Divino, junto com a extinta Cavalhada, e acompanhavam com o ritmo o galope dos cavalos. Luis da Câmara Cascudo, em seu Literatura Oral no Brasil, apresenta o conceito de “despersonalização cultural”, em que fala da mistura dos elementos culturais de dois ou mais povos que entram em contato direto em determinada região por um indeterminado período. Segundo o folclorista, as culturas destes dois ou mais povos se misturariam ao ponto de não mais se poder distinguir claramente os elementos de uma ou de outra cultura numa ou noutra manifestação. Silvio Romero, em seu Estudos sobre poesia popular, diz mesmo que Indicar no corpo das tradições, contos, canções, costumes e linguagem do atual povo brasileiro, formando do concurso de três raças, que há quatro séculos [ele escreveu isso na segunda metade do século XIX] se relacionam, indicar o que pertence a cada um dos fatores, quando muitos fenômenos já se acham baralhados, confundidos, amalgamados, quando a assimilação de uns por outros é completa aqui e incompleta ali, não é tão insignificante, como à primeira vista pode parecer.1
E foi justamente isso o que aconteceu em Carinhanha.
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Temos aqui, nos ternos de reis e nos reis de bois, o mais claro exemplo de “despersonalização cultural”, no sentido que Câmara Cascudo lhe emprega, pois ao mesmo tempo em que são manifestações próprias do cristianismo, apresentam estruturalmente elementos da cultura africana: a presença da caixa, por exemplo. É essa elasticidade da cultura popular que permite sua eternização ao longo dos séculos através dos povos.
Lapinhas, reis e reiseros Ó Deus Salve a casa Santa onde Deus fez a morada onde mora o calisbento e a hóstia Consagrada. Porta Aberta, luz acesa, recebeis com alegria recebeis o Santo Reis, filho da Virgem Maria.
Falar do tempo de reisado pra mim é algo muito emocionante. São memórias ligadas à minha infância em Lagoa Dantas, uma comunidade pequena, de terras passadas de pai pra filho, de geração a geração, localizada a 13km de Carinhanha, onde hoje resido. Bem, para falar dos reisados, preciso falar das lapinhas. A espera pelo dia de Reis se iniciava já na época do Natal, quando dia 6 de dezembro, um mês antes do dia de Santo Reis, começavam os preparativos das lapinhas. As lapinhas são feitas dentro de casa. Escolhemos um canto da sala, a parte da frente da casa, e fazemos um presépio com imagens do menino Jesus e outros santos de devoção da família. A minha mãe, todos os anos, faz. Antes, eram bem grandes, quando morávamos em Lagoa Dantas. Hoje, não mais.
Ela pegava o saco vazio de cimento, abria e preparava uma tintura com água, carvão e tapioca. Com essa tintura, pintava o papel e colocava para secar. Depois de seco, ficava bem firme, duro. Aí, ela os enrolava em formato de pedras, dizia que era para ficar parecendo um morro. Assim, ela ia montando a sua lapinha, ou seja, o seu presépio. Tinha ano que ficava até no teto da casa, de tão grande que ficava. Ela fazia bonecas de pano para enfeitar. Nós, quando criança, usávamos a argila (piçarra) de cisterna para fazer animais de barro, para colocar representando os animais que estavam presentes no dia do nascimento do menino Jesus. Na lapinha também ficavam as imagens de santos que fossem da devoção do dono da casa e a imagem do menino Jesus. Essas imagens passavam o ano todo guardadas na casa de meu avó. Assim, quando chegava o dia de fazer a casa do menino Jesus, íamos buscar as imagens dos santos que meu avô guardava com carinho e cuidado dentro de uma casinha de madeira que ele e sua esposa chamavam de nincho. No caminho, com as imagens nas mãos, tínhamos sempre a preocupação de colocar os santos de frente. Afinal, eles não poderiam andar de costas. Lembro de uma chuva que caiu e nos banhou, nós e os santos banhados por aquelas águas tão esperadas. Chuva era uma coisa que nos trazia felicidade e nossa alma de criança ficava uma festa só! Durante a lapinha armada no período de 6 de dezembro até 6 de janeiro, era preciso acender velas todos os dias em frente a ela. No anoitecer, minha mãe dizia que o menino Jesus estava no escuro, e que ele precisava de luz. A lapinha não podia ficar no escuro porque lá estava Jesus, presente no meio de nós. Nós, crianças, ainda fazíamos a competição da lapinha mais bonita. E, claro, a de nossa mãe era mais bonita do que a da tia Nilza, esposa do meu avô. Essas coisas de criança enchem meu coração de saudade. Depois das preparações da Lapinha já podíamos esperar ansiosos o dia que os reiseiros iam para nossa comunidade. Antes de ir, era comum avisarem o dia exato da visita, já que eles tiravam o Reis em várias comunidades vizinhas a nossa. Assim, começávamos a nos preparar com antecedência. Fazíamos o jantar dos reiseiros. Minha mãe cozinhava muita comida e os bolos não podiam faltar acompanhando o café durante a noite; porque acontecia deles cantarem a noite toda. Os Reis eram cantados em comemoração ao dia de Santo Reis, todo dia 6 de janeiro.
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Às vezes, tocavam toda a noite e às vezes iam só de passagem. Quando isso acontecia era uma tristeza porque a nós, mulheres, não era permitido acompanhar o reisado nas outras casas. Somente meu pai e os meus irmãos é que podiam ir. Muitas vezes essa comemoração se prolongava porque muitas pessoas faziam promessas e chamavam os reiseiros para tocar após a reza da ladainha. Lembro que minha mãe fez uma promessa para São Pedro lhe pedindo saúde porque estava muito doente, e disse que se ficasse boa ia rezar uma ladainha em sua homenagem e acender a fogueira. Nesse dia, o Reis de Joaquim tapuio tocou após a ladainha. Assim, foi cumprida a promessa, depois de ficar curada do que estava passando naquele momento difícil. Lembro-me que quando os Reis iam para Lagoa Dantas apresentavam-se primeiro na casa do meu tio Raimundo, depois na casa do meu avô, e por último era a vez de nossa casa. Ao chegarem à porta, cantavam uma música saudando o dono da casa e louvando a Santo Reis. As letras das músicas possuem uma força que nos emociona. Lembro, como se fosse hoje, o exato momento em que eles chegavam a nossa casa cantando para o nosso pai abrir a porta.
Hô de casa, hô de fora, hô de casa, hô de fora, hô de casa, hô de fora. Porta aberta, luz acesa, recebeis com alegria, Recebeis com alegria recebeis os Santos Reis. Vai uma pombinha avoando, com uma corrente no pé, cantais esse Reis a São José, em louvor a Santo Reis, e também a sua dona, é uma flor de melancia, parece a estrela guia,
quando vê o romper do dia, e não canto os seus pequenos, que eu não sei quem ele é, se é um cravo, se é uma rosa, com uma açucena no pé. Oliviva o Santo Reis, que de fora viva nóis, e o dentro viva vanceis, que o de dentro viva vanceis*. Ao terminarem de cantar os reiseiros diziam: − Viva o dono dessa casa! E
o dono respondia: − Viva! Quando eles, já dentro de casa, estavam se apresentando, convidavam quem estava presente na roda para participar da dança. O convite era apenas um sinal feito com a perna para a pessoa que eles queriam que entrasse na roda. Os grupos de Reis, muitas vezes, eram formados por causa de uma promessa. Seu Silvino Rodrigues Nogueira, nascido em 1956 no município de LagoinhaCarinhanha, foi reiseiro durante 20 anos. Ele fez uma promessa para Santos Reis. Se ele alcançasse a graça, cantaria Reis pelo resto da vida. E assim foi seguindo essa arte e todo janeiro eles saíam cantando em várias localidades: Varginha, Jatobá, Braúna, Barra do Parateca, Angico, Micaela, Cavalo Morto, Barrinha, Feirinha de Santa Luzia e Carinhanha. Ele conta que de seis pra sete anos começou a observar os reiseiros e, aos onze, começou a cantar Reis com seus quatro irmãos. Todo terno de Reis tem um cabeceiro, um líder que toma conta do grupo, que reúne e comanda os cantadores de Reis. Por isso, o “reis”, o grupo, fica conhecido pelo nome do cabeceiro: o Reis de Zuza, o Reis de Joaquim Tapuio... enfim. Contando com Seu Silvino, o terno de Reis de que ele fazia parte eram dez pessoas que cantavam e tocavam zabumba, gaita, caixa, pandeiro, triângulo e reque (reco-reco). Seu Reis era conhecido como de bumba, por causa da zabumba, feita por um senhor com o nome de Rodolfo. Outros Reis são conhecidos como Reis de Caixa, por causa da marcação do ritmo ser feita por um pequeno tambor, a Caixa.
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*Letra concedida por Seu Silvino, antigo reiseiro.
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Antigamente, quando um cabeça de Reis queria parar de cantar, Santo Reis aparecia e pedia que não parasse, que continuasse. Seu Chico Machado (Francisco Azevedo Soares) do reisado da comunidade da Tapera, conta que
“quem canta o reis não pode sair (do Reis), nem faltar (à apresentação) porque quem fica em casa não consegue dormir pensando e ouvindo os cantos, e mexendo a noite toda na cama, ouvindo o som do tambor tocando. Isso já havia acontecido com filho de um dos integrantes do Reis, o João Paulo filho de Paulo Azevedo Soares”. O Terno de Reis da Tapera surgiu há 25 anos, e participam dele Nelson Moreira, Antônio Moreira, Pedro de Alcântara Moreira, Josué Moreira, Francisco Azevedo Soares, Paulo Azevedo Soares, Cosme Moreira carvalho, João Paulo Moreira Soares, Jerônimo Soares de carvalho (conhecido como Jerônimo Cocá), Magno sena Soares. Eles usam os instrumentos feitos por Seu Nelson: a gaita, a viola, triângulo, caixa, meia-lua, reco-reco, pandeiro, carrocheu (feito de madeira e tampinhas de garrafa), tendo ainda uniforme.
Contradança dos filhos de Ricardo
Já no Terno do Seu Silvino, eles se vestem assim: de calça social, camisa e lenço branco com flores de ponto cheio ou ponto de espinha de peixe, bordado pelas mulheres dos reiseiros, eles se trajam para começar a noite.
“Era uma farra. Todos nós íamos a pé de uma localidade a outra. Só que antigamente as pessoas respeitavam os reiseiros, quando íamos cantar em uma casa, era silêncio total no caminho, para que os donos da casa não escutasse nenhum instrumento bater, os acompanhantes iam bem afastados dos reiseiros, para não fazer barulho. Tínhamos que chegar nas pontas dos dedos para dar surpresa.” Assim, todos entram na casa e começam a contradança. A contradança é um círculo onde todos os reiseiros dançam, cantam. Todos têm que ir ao centro da roda sambar, colocando um pé dentro e um pé fora. Depois, aquele sai e entra o próximo, assim sucessivamente. O Senhor Silvino, até hoje, quando passa Reis em sua casa, ele dança com muita animação; e também para matar a saudade. É então servida a cachaça e os reiseros voltam a cantar a contradança. Logo em seguida é a hora da marchinha, e nela os reiseiros rodam a casa e retornam para dentro, dando mais uma volta e saindo. Mas se o dono da casa colocar mais uma garrafa de pinga no chão, é sinal de que ainda quer festa. Então os reiseiros continuam cantando. Os donos da casa oferecem a esmolas, uma pequena quantia em dinheiro para o cabeça do Reis. E esse dinheiro serve para financiar a reza no último dia. O dia da reza é dia 06 de janeiro, só que às vezes vai até final de março, pois são muitas as localidades e muito distantes umas das outras. É uma reza especial, porque no dia tem ladainha de Santo Reis, os reiseiros cantam, e todas as famílias em que no passado o Reis foi na casa vão apreciar o Santo Reis. E era assim que eram feitas as apresentações dos Reis. É preciso que se diga que os Reis tocavam tanto por causa das rezas de ladainha, mas também para cumprir com sua tradição de todos os anos.
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Diz Seu Silvino que o Reis lhe dava felicidade, principalmente quando tocava o instrumento que mais gostava de tocar, o pandeiro. E esse ele aprendeu sozinho, olhando os outros tocar. “Quando eu cantava os Reis, me
sentia bem, feliz, era uma diversão, mesmo porque nós éramos quatro irmãos cantando no mesmo Reis”. E foi assim no meio de tanta
festividade, alegria e músicas que ele, em um Reis ocorrido na casa do senhor Ezequiel José Gonçalves, conheceu a Dona Ana por quem se apaixonou. Mas para vivenciar essa paixão, conta, teve que passar um ano e quatro meses só pegando na mão da amada. De pais ciumentos, Dona Ana teve que casar logo. E assim aconteceu. Ana com 16 anos e ele, Silvino, com 19. A maneira como eles se apresentavam e apresentam a contradança era emocionante. Relembrar esses momentos é como voltar no tempo. Ouvir as músicas dos Reis é de fazer chorar um coração saudoso do passado. As letras das músicas possuem uma força que nos emociona.
Essas memórias não são de ontem nem de hoje, são de um tempo mais distante, mas está tudo tão vivo em mim que os reiseiros ainda fazem festa nas minhas recordações. Como eram bonitas as noites em que os Reis visitavam nossa casa! Todos os anos eles, com muita empolgação, cantavam os seus Reis nas comunidades vizinhas, onde todos se conheciam e eram amigos. Porém, infelizmente, aos poucos, esse momento de festa e alegria está ficando cada vez mais raro. Isso é sentido pela fala de Seu Joaquim Tapuio, reiseiro da região quando diz que “os jovens não querem seguir
a tradição dos mais velhos. Estão deixando morrer, acabando essa tradição cultural”. Seu Joaquim vê nos próprios filhos o exemplo de quem não quer seguir com o Reis.
Aquela roda... os sons... a alegria... Por um instante, tudo é festa e fé no meu pensamento. Santo Reis vai embora com prazer e alegria. Quem tiver saudade dele, vai à reza do seu dia. Deus lhe pague sua esmola Que nos deu aqui agora. Seja ajuda de Deus, E da Virgem Nossa Senhora.
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Os Ternos de Reis Esta é a nossa Bahia, considerada a terra de todos os Santos, das misturas de raças, de ritmos, cores e diversas manifestações folclóricas que permeiam o imaginário popular, resultado de uma rica miscigenação. Uma enorme vastidão cultural, assim é a Bahia. Em Carinhanha, esta cultura rica e diversificada se manifesta nos Ternos. Durante o mês de janeiro, a cidade de Carinhanha adormece e desperta ouvindo o batuque dos tambores. A afirmação feita sobre as manifestações culturais resume com muita propriedade o clima de festa que envolve durante o período as comunidades, muito particularmente as que estão na sede do município. Ano após ano, vivem, os carinhanhenses, a emoção de acompanhar as apresentações dos Ternos de Reis que dançam nas casas em troca das ofertas de comida, bebida e algum dinheiro.
Terno da Contradança De 1º a 5 de Janeiro, na simplicidade das suas cantorias acompanhadas por tocadores de viola, caixa, reco-reco, dois pandeiros e caracaxá, um grupo de homens sai de casa em casa cantando em homenagem ao Santo Reis, nas quais as ofertas fazem a alegria dos que religiosamente cumprem a sua missão. No dia 6 de Janeiro, é a reza em comemoração a Santos Reis que se realiza na residência do chefe. Terno Contradança de Hermínio Ricardo
250 Conhecido como Terno da Contradança de Hermínio de Ricardo é uma tradição viva, uma manifestação cultural magnífica pela sua pureza e expressão da alma do homem rural. Procuramos o Sr. Hélio Sena Alves, 56 anos, vulgo “Branco”, ex-cabeceiro do Terno, para um diálogo sobre essa manifestação. Fomos recebidas em sua residência com muita satisfação. Uma pessoa muito agradável, sempre risonho e feliz, contou-nos de sua alegria em ter participado muitos anos do terno e também de suas mágoas. Sentimos um tom nostálgico em sua voz, enquanto falava em todos esses anos que esteve responsável pelo terno. Ao fim da conversa, o Seu Hélio nos levou à residência do seu tio Gertudes, que naquele momento estava na roça. Então, marcamos com a sua esposa Dona Merença para retornarmos no dia seguinte. Ela nos alertou que chegássemos cedo, pois quando Seu Gertudes chega da roça, gosta de sair para passear e tomar uma pinguinha. Seguindo o conselho de Dona Merença, chegamos em sua casa às oito horas. Seu Gertudes estava na porta, conversando amistosamente com alguém de suas relações ao pé da porta. O seu modo de ser elegante nos chamou atenção: chapeuzinho de massa na cabeça, as mãos no bolso da calça social azul escuro. Após as saudações de praxe, ciente do interesse em conversar sobre a Contradança, convidou-nos para entrar em sua moradia. Fomos entrando porta adentro, um neto seu estava assistindo TV na sala, dona Merença, seu esposa, na cozinha. Fomos parar no quintal. Era um ambiente que representava bem a cultura da zona rural. Vários objetos da roça. Pilão, banco de madeira, pedra de amolar faca, bacia de alumínio, gamela, panelas antigas de ferro, sacos cheios de esterco, chão batido, bananeira, samambaias, coqueiro, crotes, girau com cebolinha, coentro, hortelã miúdo, hortelã grosso, vários vasos com outras espécies de plantas. Vez ou outra, éramos presenteadas com o cantar dos pássaros, além da cadelinha alegrando ainda mais o ambiente.
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Seu Gertudes Sr. Gertudes Alves Ferreira, 82 anos, nascido aos 17 de Fevereiro de 1931, símbolo de um ser admirável, onde as marcas de expressões não lhe tiram o brilho de viver, um ser de uma humildade e uma simplicidade e carisma inigualáveis. Devoto de Santos Reis, reza um Pai Nosso e uma Ave Maria todos dos os dias para o Santo. Vez ou outra, chegava um parente do Seu Gertudes e sentíamos a felicidade dessas pessoas, a satisfação em estar contribuindo para o nosso trabalho. E, numa dessas visitas, chegaram a sua filha e o seu neto. Este, a pedido de sua avó Merença, foi para o quintal pilar tempero (alho, sal e coentro verde), exalando, assim, um cheiro apetitoso. Estar na presença desse homem encantador, um indivíduo real, condensado à sua expressão mais simples, me trouxe lembranças de fatos que estavam perdidos dentro de mim, e pude constatar que os pequenos detalhes de nossas vidas são o que realmente contam. Um dos primeiros participantes do Terno, e atualmente o chefe da Contradança, Seu Gertudes relata que a manifestação se iniciou com uma brincadeira na Fazenda Alagoinha pertencente ao município de Carinhanha. Um grupo de três irmãos mais três amigos todos lavradores. A saber: Hermíno batedor de caixa, Gertudes cantador e violeiro, Silvino pandeiro e caracaxá, Edmundo violeiro e Gerulino violeiro. Na hora da folia, revezavam os instrumentos para fazer a Contradança. Quase todos da mesma idade. O mais velho tinha doze anos, entusiasmados de tanto ver folia. Quando os grupos iam apresentar em sua localidade, tiveram a ideia de formar um. Diz o Seu Gertudes “da
brincadeira pegamos, brincando, o povo foi chamando atenção da gente. Nós já temos várias representações, né, e tamo por aí, tem DVD, da folia”. Explica que deram o nome Contradança por causa dos trocados (movimentos das pernas no momento da folia). O reisado não tem zabumba e nem gaita, conta Seu Gertudes, e a primeira apresentação do grupo foi na casa dos pais e irmãos. Depois, ainda “meninado”, eram convidados para vir fazer apresentação aqui na cidade.
Seu Gertudes
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“Na década de cinquenta, aí, nós passamos a sério. Nós era convidado pra vir aqui pra praça. Os chefes aí mandavam recado pro meu pai, pra nós vir fazer a Contradança. E conseguimos, graças a Deus”. Os instrumentos utilizados na formação antiga, alguns, foram confeccionados por eles: a viola com dez cordas foi feita de umburaninha vermelha, usando a crina do rabo do cavalo como corda. Atualmente, usase uma viola que foi comprada em Aparecida do Norte. A primeira caixa que tentaram fazer usando uma lata de flandre não deu certo, então recorreram ao Seu Francisco marceneiro, e este fez a caixa utilizando um pedaço do coqueiro de licuri e o couro de gato do mato. Para fazer o Caracaxá, utilizouse um quadrado de madeira com tampinhas de garrafa. Para o reco-reco, um pedaço de madeira cavacado com formão, e no centro uma espécie de mola. Os pandeiros foram comprados. Uma passagem que emociona o Sr. Gertudes é falar da saída de seu sobrinho Hélio Sena Alves, o Branco, que por muitos anos era o chefe depois de receber a tradição do pai. Gertudes cita dois motivos: além de ser seu sobrinho, foi ele quem educou Hélio Sena no Terno. Diz que hoje já está cansado, “as canela
já tá ressecada, tem que passar sebo”. Ressaltando que a voz também hoje já não é mais a mesma, ele diz que
“quando tinha os dentes bom, a voz era boa. Por falta dos dentes, a voz não entoa. Mandei fazer a chapa mas não adaptei. As vezes que ia espirrar, a danada voava longe.” Dizem que a fé move até montanhas, e foi essa fé que fez o Seu Gertudes livrar-se da morte. Há quarenta e cinco anos, uma pessoa que trabalhava com a família lhe ofendeu com uma facada nas costas. Ficando entre a vida e a morte, fez uma promessa a Santo Reis, pedindo para não lhe deixar morrer que ele brincaria até o fim de sua vida. Fato interessante é que o Seu Gertudes está tentando repassar a tradição para alguns meninos que moram em Lagoinha, pois tem medo que acabe esta folia que já vem há muitos anos encantando a todos.
Com muita graça, o cabeceiro da Contradança nos relatou que no início do ano de 2012 foram “representar” no Assentamento Mel de Abelha, e, como estava chovendo bastante e a estrada estava ruim, o carro atolou. Tentaram empurrar, mas não conseguiram. Tendo ficado todos sujos de lama, pararam por dois dias de cantar os reis. Mesmo com muita dificuldade, diz que onde chamam eles vão, tanto faz na cidade quanto na zona rural a satisfação é a mesma. Quando o Sr. Hélio Sena Alves organizava a Contradança, sempre procurava comprar roupas iguais para os participantes: calça preta, camisa branca ou colorida, uma toalha branca bordada em uma das extremidades com as iniciais do nome, e, na outra, flores pintadas ou bordadas, penduradas no pescoço, chapéu de palha ou de massa. Hoje, Seu Gertudes sendo seu cabeceiro, ainda se usa a toalha, mas a roupa fica a critério de cada participante: Gertudes (viola/caracaxá), Geraldo (viola), João (caixa), Pedro de Zizu (pandeiro), Nedino (pandeiro) e Raimundo de Áurea (reco-reco). No último dia, a tão esperada Folia inicia-se a partir das 20 horas, na casa do cabeceiro. Casa cheia, com muita alegria em frente ao altar com imagens de Santo Reis, Nossa Senhora Aparecida, São José, Senhor do Bom Jesus, velas acessas irradiando luz, representando o culto, as orações e o ato de Fé a Deus Nosso Senhor e aos Santos. Um grupo de rezadeiras reza Ladainha e benditos oferecidos a Santo Reis. Com todos os participantes acompanhando, rezam também o credo, a Ave Maria, Pai Nosso, louvando ao Nosso Senhor Jesus Cristo dando o Viva a Santos Reis. Ao término da reza, o grupo se prepara para dar início à Contradança. Dispostos em duas filas, um de frente para o outro, começando em dupla, um solta o verso e o outro responde num vai e vem em ritmo frenético, sem se esbarrarem, cantando.
Caracaxá
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− São José, Nossa Senhora foi a Belém cantar os Reis pra nós cantar também. − Deus lhe salve, casa santa, onde Deus fez a morada, onde mora o cálice bento e a hóstia consagrada. − Brabo! Brabo! Brabo! Hoje que é dia, é o reis de Baná, e véu de maraviá. − Porta aberta e luz acesa, recebestes com alegria, recebestes o Santo Reis, filho da Virge Maria. − Santo Reis é que chegou (2x) visitando os morador. − Lá no céu tem uma estrela, afinando uma viola, que eu canto em Santo Reis, São José e Nossa Senhora. − Que também a sua dona, passa a mão no seu cabelo, que do céu é vem caindo, três pinguinhos de água de cheiro.
E assim, vão cantando, tocando e dançando, aos trocados de pernas, cada um querendo fazer mais bonito que o outro, e o povo todo aplaudindo com muito entusiasmo essa “representação” cultural de pessoas simples, mas de grande valor cultural. Para encerrar a folia, cantam a música de despedida,
Adeus, trago o ouro. Adeus, eu vou embora. e cada um agradece a seu modo. Em seguida, é servido aos convidados os comes e bebes, o cozinhado (feijão, arroz, carne) e o assado (carne, galinha, carne de sol).
Terno de Contradança da Tapera. Da esquerda para a direita: João Paulo (filho de Paulo Moreira), Cosme Moreira (filho de Josué Moreira), Magno Sena, Pedro de Alcântara Moreira, Nelson Moreira, Jerônimo Cocá, Josué Moreira, Paulo Azevedo e Antônio Moreira.
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Outros olhares sobre a contradança Outros observadores, em suas descrições e interpretações, acrescentam olhares externos, complementares sobre a Contradança. O historiador Honorato Ribeiro dos Santos descreve a manifestação realçando os instrumentos, os significados e descrevendo os movimentos: É um conjunto de homens com caixa e zabumba, reco-reco, pandeiro, viola e dois tocadores de gaitas que cantam à porta das casas, bendito com letra louvando ao menino Jesus. Após o cântico, entram para a sala, onde será apresentada a contradança. São duas filas, que, cada uma fica de frente a outra cantando e dançando num ritmo qual baião, fazem fricotes, uns passam para lá outros para cá, sem que se atrapalhem.2
Escrevendo sobre a antiguidade, as formas e as sucessivas transformações das danças, o pesquisador Luís da Câmara Cascudo nos ensina que ao lado dessas danças populares e sem idade no tempo (as danças em círculo ou em duas filas paralelas) existem as de formação mais estilizada, recriações ou ajustamentos para salões, os pares unidos e ao som de melodias concordantes. “Ajustamentos” porque a maioria provinha de danças campestres que se tornaram famosas pela elegância e donaire dos participantes, como a countrydance [que teria dado] as contradanças aristocráticas e a valsa senhorial nasceu de bailados alemães ou das voltas provençais.3
Se nós voltarmos um pouquinho no relato do Seu Gertudes, encontraremos uma versão diferente a respeito da origem do termo contradança. Segundo ele, “o nome Contradança foi dado por causa dos trocados (movimentos das pernas no momento da folia)”. Longe de estarmos aqui apontando a definição de um pesquisador da importância de Câmara Cascudo como a correta, e a definição do Seu Gertudes como a errada, estamos levantando um ponto que é muito comum quando se trata de cultura oral, cultura popular ou manifestações culturais: como tudo é do âmbito da oralidade, mais do que a verdade dos fatos, temos os fatos da verdade, isto é, tantas verdades quantos forem aqueles que participam (ou pesquisam) os fatos. É o mesmo caso da explicação para o surgimento da Dança dos Caboclos. Segundo o historiador Honorato Ribeiro, um homem de nome Miguel, descendente de índio, seria o introdutor dessa manifestação cultural em Carinhanha. Segundo Netinho, atual líder dos Caboclos de Carinhanha, teria sido seu avô Vital Rodrigues Cerqueira quem, voltando de uma pescaria, teria dado de cara com os índios em plena ação do que seria uma espécie de ritual de iniciação aos caboclinhos, e resolveu trazê-la, a manifestação, para a cidade.
Não estamos aqui no plano das certezas. Como não existem registros ou documentos históricos, navegamos pelo terreno incerto da memória coletiva. Maria Cristina de Freitas Bonetti, por exemplo, que estuda a presença da contradança nas Festas do Divino de cidades do vizinho estado de Goiás, em Pirenópolis, nos diz que a Contra-dança também é uma dança de par e em círculo, com um jogo coreográfico tradicional, representando a geometria sagrada, com seus símbolos. Os participantes dançam em forma de círculo as passagens de estações, quando fazem o arco com os lenços como passagens e mudança de direção. O túnel como um novo começo. Também são formados pequenos grupos ou constelações. A contradança é de origem européia, com bastante influência portuguesa, e, atualmente, é composta por doze pares de sexo diferente. Vários símbolos geométricos e mandalas são formados entre os participantes da dança, sempre aos pares ou pequenos grupos. 4
Já na cidade de Santa Cruz, na festa de Pentecostes a Contra-dança é realizada nas ruas da cidade, em frente das casas, onde ela é apreciada. Existe um convite do dono da casa para que ela seja apresentada. Isto acontece, na sexta-feira pela manhã e no sábado à tarde. No domingo, após a missa do Divino, a Contra-dança se apresenta em frente à Igreja.5
Samba no pé e garrafa na cabeça: Terno Reis de Caixa O Reis de Caixa é também conhecido por Samba de Caixa ou Samba no Pé. Há quem pense que são manifestações diferentes, mas os nomes representam, na verdade, um único Reis. Trago no sangue essa herança: minha mãe faz parte dessa tradição.
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Para possibilitar a pesquisa, minha mãe reuniu no ritmo da caixa e no sabor da jurubeba, bebida muito apreciada por elas no momento do Reis, um grupo de senhoras que dançam e cantam o samba do Reis de Caixa, o Reisado de Dona Maria Pinto. Vieram Zezinho de Chica Boa e a Sra. Joana Barbosa, que era do Reis de Dona Chica Boa (in memoriam), Ana Carvalho, Maria Pinto, Lúcia Costa, Maria Bonjardim, Lurdes de Sá Rosa, Isabel Pereira Pinto, Antonia de Faustino e seu filho que ficou responsável pela caixa e pela gaita. Também vieram José Luís Elfinin e o garoto Damião, que não perde nada. A sala da casa ficou pequena pra tanta animação. Quem passava na rua vinha de encontro ao movimento e também entrava na roda ou assistia às que sambavam. A idade de algumas não foi empecilho para requebrar as cadeiras e aproximar os quadris do chão. Uma grande roda se formava entre palmas e pés. Elas marcavam o contratempo no som da caixa. Reunir um grupo de mulheres que formava um reisado havia já algum tempo foi gratificante. Na verdade, o objetivo era apenas pesquisar a história da manifestação, mas minha mãe, Lúcia Costa, aproveitou o ensejo para organizar um fleche para matar a saudade, e a mulherada caiu no samba; momento ímpar, pois, diante daquela ocasião, a sensação de ver mulheres entre 50 e 94 anos sambando foi bem especial. A alegria com as chulas era tanta que a osteoporose não incomodou, e elas iam entoando no ritmo das palmas.
Encontrei dois caboclos Todos dois iam para lá Um ia para Descoberto e Outro pra Paraná (bis) A procura de uma morena A cabocla que eu amo Êh, descoberta nova Ou Paraná difama (bis) Eu aqui não vinha não E nem fazia tensão Vim dá gosto à dona casa Com toda sua geração (bis) Vou-me embora, Vou-me embora, Hoje estou me arrumando O cavalo da viagem Está no mato se criando. Ouvi o sabiá cantar no trecho daquela serra Adeus minha linda baiana, Patrícia da minha terra. Cidade de Uberaba, Riacho de São Mateus. Você viaja com seu Patrão E eu viajo com o que é meu. Ai. Valei-me nossa Senhora, Valei-me nosso Senhor, Nossa Senhora me ajuda, Nosso Senhor me ajudou. No destino de meu destino Naquele destino forte Só tenho medo de Deus Abaixo de Deus a morte.
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Carinhanha traz em seus traços culturais a forte presença da cultura africana. São grupos folclóricos que há muitos anos fazem do dia de Santo Reis um dia festivo. A influência africana é marcada pelo som da caixa, um pequeno tambor feito de madeira, corda e couro de animal. Duas baquetas de madeira somadas a um bom batedor de caixa fazem o som que marca os passos das mulheres que fazem o Reis de Caixa. O Reis é formado por mulheres de origem humilde e simples. São donas de casa, lavradoras e pescadoras. Os homens, quando presentes, são responsáveis pela música, tocando instrumentos: caixa, pandeiro, flauta e, às vezes, um prato, em que se utiliza uma colher ou faca para tirar-lhe algum som. De acordo com a Sr.a Maria Rodrigues Pinto, o rito é fruto do culto dos africanos que aprendeu com sua mãe. Esse Reis não tem características típicas de grupos formados com trajes a rigor. Há muitos grupos pela cidade: entre eles o da finada Chica Boa, de Zelinda e o grupo de Dona Helena do Senhor Zuíno, ex-moradores do Frota, zona rural de Carinhanha. Atualmente, é o grupo que ainda vemos percorrer a cidade, entoando seus ritos na porta das casas que têm “presépio” (também conhecido por “lapinha”). A Sr.a Helena acredita que seu amor pelo Reis de Caixa nasceu de seu pai, que, com a saúde muito debilitada, fez a promessa de que, se melhorasse, cantaria reis todos os anos. Melhorou e assim o fez. Quando chegava a data, lá estava ele cantando os Reis. Foi assim até falecer. E sua filha, a Sr.a Helena, vendo a necessidade, continuou com a tradição. O historiador Honorato Ribeiro, personalidade emblemática da cidade, em seu livro História de Carinhanha assim descreve o Reis de Caixa. Um grupo de mulheres e homens com viola e caixa [que] cantam à porta das casas em louvor dos Santos Reis. Depois que acabam de cantar, uma mulher coloca uma garrafa na cabeça, dá uma umbigada, sapateia, mas a garrafa não cai da sua cabeça. A viola acompanhada pelo o repique da caixa e as mulheres em contra tempo batem palmas e cantam pisando forte e sapateiam dando requebros e umbigadas. Jogam versos uma para as outras ... brincam quase a noite toda do dia primeiro até o dia seis de janeiro dia de Santo Reis.6
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De casa em casa, entoam ritos convocando os donos da casa abrirem a porta e recebê-las em sua sala. Ouri, viva, ouri, viva, Viva os três Reis meu (bis) Vivo José e Maria, Jesus Cristo verdadeiro. Ouri, viva, ouri, viva. Viva nossos Santos Reis Viva no viva nosso Santos Rei ‘Qui de fora nós Dentro viva você Dentro da casa, uma das mulheres coloca uma garrafa de bebida na cabeça – outrora fora uma panela de barro − salta no meio da roda, com as mãos na cintura, bamboleando e sapateando, ora girando pra esquerda, ora girando pra direita, ora recuando os braços, ora estendendo os braços, e a garrafa, bem equilibrada, não cai. Eis o desafio do jogo: elas vão trocando de lugar, quem estava na roda agora fica no meio e é a sua vez de equilibrar a garrafa na cabeça: pra ver quem consegue sambar o maior tempo com o litro na cabeça sem deixar cair! A alegria é total para o grupo, porque o desafio é emocionante! Em torno, o entusiasmo toca o delírio, aplausos explodem de vez em quando, as palmas ritmadas insistem, cadentes, certas. Enquanto isso, entoam-se outras chulas que chamam atenção por fazerem todo mundo sorrir.
A formiga que morde É formiga que mordêêêêê É formiga que mordêêêêê É formiga que mordêêêêê É jiquitaia, Ela morde que dói É jiquitaia Ela morde em cima É jiquitaia Ela morde embaixo É jiquitaia Ela morde no pé É jiquitaia Ela morde o joelho É jiquitaia Ela vai subindo É jiquitaia Como de costume, os donos da casa oferecem aos reiseiros momentos regados a cafezinho, sucos e aperitivos. Durante muitos anos, o Samba de Caixa (ou Reis de Caixa, ou ainda Samba no Pé) também permeava momentos festivos em casamentos de muitas famílias que traziam no sangue a herança do batuque. Assim, quando alguma filha casava, sempre havia o momento do samba. E quando a última filha casava, tinha a quebra da panela. A família enfeita uma panela de barro e recheia de biscoitos, balas, doces, pipocas e vários outros aperitivos, e uma pessoa da família vêm com a referida panela na cabeça, enquanto o grupo entoa um pequeno refrão: Êh, panela Êh, minha panelinha Êh, panela Vem cá minha panelinha. A pessoa vem trazendo a panela e quando chega determinado momento a panela é jogada no chão, e todos pegam os objetos que caem.
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Dona Zelinda Para conhecer a história do Samba de Caixa em Carinhanha, foi preciso procurar por Dona Zelinda, para que ela relatasse como foi participar e idealizar esse Reis. A emoção tomou conta do momento, pois as dificuldades de saúde a impediam de contar suas memórias dos tempos de reisado. Lembra que começou a tirar Reis juntamente com Raimunda Pereira dos Santos, conhecida por Raimunda Preta e Chica Boa, isso há muitos anos, e que até dois anos atrás participou da manifestação, e que por conta de um AVC que sofreu por esta época sente dificuldades de andar, dançar e articular a fala. “Tem uns dois dias que eu tirava umas chulas”, disse ela. “Quando o grupo chegava à residência de alguém qual a primeira chula que entoava?” Perguntei. Com muita dificuldade, ela tenta lembrar, mas não consegue e se emociona mais uma vez. Nesse momento, senti que relembrar esses momentos especiais de sua vida lhe traria bastante sofrimento, e isso poderia até fragilizá-la mais ainda. Ela se forçava a entoar dois ou três versos de alguma chula, e mais uma vez o esquecimento lhe cobria as lembranças, ao mesmo tempo em que lágrimas riscavam o seu rosto como uma lâmina salgada. Os olhos azuis de Dona Zelinda marejados de memória se tornavam caudalosos como as águas do Velho Chico.
Grilo Edmundo Ferreira da Silva, mais conhecido como Grilo, acompanha os ternos que homenageiam a festa de santos reis. Lá está aquele Senhor franzino, com bumba, tocando no ritmo a música que dos ternos. Mas quem é esse senhor? Quem são seus pais? Muitos já ouviram falar na palavra “grilo”, que do latim grillus é designação comum dos insetos ortópteros, subordem ensífera, que constituem a família dos gryllidae, ou grilídeos, que possuem, além de longas antenas filisiformes, órgãos auditivos para perceber os sons que produzem com possantes estriduladores situados nas suas asas anteriores.
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Pois é, os grilos emitem som, um som que muitos gostam e outros chamam de azar Esse Grilo tem a cultura do tocar. Por isso, sua história é importante. Entretanto, falar ou cantar são dois verbos que há alguns anos não fazem parte da sua vida. E entre os vizinhos, quase nada se sabe sobre ele. Grilo não quis disponibilizar documentos, fotos, memórias. E nem convida para entrar. Segundo a vizinhança, isso é normal. Ninguém entra em sua residência já faz tempo, só ele e seu cachorro de estimação, de quem só se pode ouvir o latido.
Terno da Barquinha Cada terno de Reis têm as suas especificidades e o Terno da Barquinha sempre coloca a Barquinha (de madeira ou isopor) no meio. Inicia-se no 1º dia de janeiro e só termina quando acaba de dançar nas casas que receberam os convites. Às vezes durava um mês. Dona Ana Aparecida Santana, 53 anos, autônoma, conhecida como Ninha de Dona Bezinha, ex-participante do Terno da Barquinha, disse que há uns trinta anos quem encabeçava o terno era Dona Júlia Farias Coelho, lavradora da Ilha, e pequena produtora de farinha de mandioca. Diz à entrevistada que a cada ano, a Tia Júlia fazia um terno diferente: um ano era o Terno da Rosa, noutro o da Estrela, num terceiro o da Cruz Vermelha, o da Gaúcha, dos Inocentes e também o Terno da Barquinha. Depois que Dona Júlia “ficou caduca”, os ternos passaram a ser feitos por Dona Maria do BatePapo, pessoa ilustre que sabia todos os ternos. Lembra ainda de algumas participantes do terno na época: Ana (Ninha), Glafira, Cidinha, Rita de Mucucum, Edna do Sr. Bernardo, Rita de Dona Júlia e Cidinha de Dona Anita, que carregava o estandarte. As participantes trajavam uma saia de pregas azul, blusa branca de manga fofa e um gorro azul marinho com desenho de uma âncora. O velho Caduco, Seu Dionísio, falecido, trajava um paletó, gravata, chapéu de palha, levando um cacetinho na mão. A Bela Júlia, na sua formosura, usava uma saia comprida, blusa de manga comprida e um lenço adornando a cabeça.
Ensaiavam uns quinze dias antes no Grupo Escolar Oliveira Cunha, ou no Círculo Operário, ou no Centro de Estudos Dona Carmen (CEDOCA), situado à Praça Rui Barbosa, conhecida como a Rua de Baixo. Em seu livro História de Carinhanha, o Sr. Honorato Ribeiro dos Santos nos diz que o Círculo Operário foi fundado em 1964 por Manoel Dias da Silva, Joaquim Farias de Oliveira e César Lopes do Rosário. De caráter religioso, em sua sede acontecia a festa de Santa Cruz do Rosário, no dia 3 de Maio, mas logo foi transformado em Centro Cultural, quando passou a ser conhecido pelo nome de SEDOC.7 Chegando o dia, as participantes reuniam-se na casa de Dona Júlia para a saída do terno. Faziam duas filas, uma pessoa na frente com o estandarte e outra no meio, segurando a barquinha, e no final da fila o Velho Caduco e a Bela Júlia. Do início do trajeto até a casa do convidado, o terno era acompanhado pela turma de Edézio, com piston, tambor, pandeiro e triângulo, instrumentos típicos dos ternos de Reis.
Festa do Terno da Barquinha
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Dona Ana desabafa dizendo que
“na época de Tia Júlia tinha mais gente, mais movimento e mais casas para dançar, e hoje quase não tem participantes no terno, e poucas são as pessoas que aceitam o convite para o terno dançar na casa”. Foi em meados de 1986 que Dona Ana passou a organizar ternos como o da Barquinha, da Cruz Vermelha, Rosa e Estrela, mantendo viva a tradição ainda por alguns anos. Nas lembranças de Dona Margarida de Almeida Souza, 71 anos, ex-integrante do terno da Barquinha, recorda com muita alegria e saudade como se apresentavam. Cantou alguns versos. Do Terno das Barulhentas
As Barulhentas vão marchando em direção da brincadeira alegre vão sempre cantando alegre vamos em Jesus E também do Terno da Barquinha. Dona Margarida descreveu ainda como acontecia o Terno nas casas. Ao chegarem à residência, tomam a sala formando um círculo no meio do qual a pessoa que está com a barquinha na cabeça fica dançando, sapateando, rodopiando e cantando:
A bandeira da Barquinha deu sinal, Deu sinal o povo todo, A bandeira da Barquinha deu sinal, Deu sinal que vai fundar, A bandeira da Barquinha deu sinal, Deu sinal que já fundou, A bandeira da Barquinha deu sinal, Deu sinal o que seria,
A bandeira da Barquinha deu sinal, Me dá uma canoa aí, A bandeira da Barquinha deu sinal, Me dá uma cuia aí, A bandeira da Barquinha deu sinal, Me dá um remo aí, A bandeira da Barquinha deu sinal, Deu sinal que se salvou, A bandeira da Barquinha deu sinal, Jogo o lenço na dona da casa. Em seguida, a moça da Barquinha joga o lenço na dona da casa e se retira da roda dando a vez para o Velho Caduco e a Bela Júlia, cantando os seguintes versos:
Velho Caduco Eu sou um Velho Caduco (bis) Gosto muito de caducar, Quando eu vejo uma menina (bis) Gosto muito de requebrar (bis) Bela Júlia Arretire-se senhor velho (bis) Não venha me atentar (bis) Eu quero é meu iôiozinho (bis) Que tem dinheiro pra mim dá. Velho Caduco Eu também tenho dinheiro (bis) Tenho navio no mar (bis)
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Bela Júlia No tempo que te amava (bis) Saltava sete quintais (bis) Já hoje que não te amo (bis) Saltarei catorze a mais. Velho Caduco Oh! Ingrata tirana, Reconhecida do bem, Ama quem te ama Não despreza quem te quer bem, Eu vivo como um louco, Vivo por te a chorar, Meu coração é de bronze, Dai-me alívio ao meu penar. Bela Júlia Se queres meu amor, Com todo embaraço, Meu coração de mudôr. Dai-me alívio ao meu penar. Os dois dão os braços e saem cantando pela sala:
Ossalina mandou liê, Ossalina mandou liá, Ossalina mandou lhe dizer, Que agulha sem fio Não pode coser. Em seguida solta outros versos:
Quando nesta casa entrei, Pela dona procurei, Não me deram nova dela, Com vergonha eu não chorei. E assim prossegue o Terno com cada participante entrando na roda e soltando um verso. Terminando o ritual da roda é a vez dos tocadores alegrarem os participantes, com muita dança e animação. Depois de tudo, come-se e bebe-se. Findando a apresentação na casa do convidado, os integrantes saem cantando:
Adeus saudade, Não me acaba de matar, Arreda o povo do caminho, Deixa a barquinha passar. No último dia de apresentação, realiza-se a Festa do Terno no salão do CEDOCA. Satisfação e alegria não faltam na comemoração final. Logo após, enchem a Barquinha com todas as guloseimas da festa: biscoito, bolo etc. e saem pelas ruas cantando com a barquinha com destino à beira do rio. Lá, soltam a barquinha e deixam as águas levarem. Quem conseguir pegar é o dono.
Terno das Ciganas Levando em consideração o quanto é importante o resgate cultural de uma região para a preservação de sua história, um grupo de amigas, todas professoras, Cleusa Cunha, Arlinda da Cunha Neves Neta-In memorian, Nélia de Castro, Alzira de Castro e Vilma Cunha, em 1996, buscaram, através de suas lembranças, reavivar o Terno das Ciganas, antigamente feito por Dona Maria do Bate-Papo. Conseguiram, então, reunir um grupo de moças e rapazes e organizaram, com muito brilho e requinte, o famoso terno das ciganas, que se apresentavam nas casas com a famosa dança zíngara.
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Os ensaios aconteciam na Escola Municipalizada José de Oliveira Cunha, onde as professoras lecionavam. Levavam dois meses ensaiando para não fazer feio, e todos davam o melhor de si. A apresentação se iniciava do dia primeiro ao último dia de janeiro. Chegado o tão esperado dia para exibir, com muito glamour, esta manifestação que enchia os olhos de quem a via, por tanta elegância e sofisticação, o grupo de moças e rapazes organizados pelas amigas professoras se reuniam na escola sob o caramanchão, uma estrutura de madeira formando um quadrado todo enfeitado com fitas de cetim colorida, e lanternas penduradas em cada canto, carregadas por quatro homens. O grupo era acompanhado com alguns componentes da Banda Pedro Leite, com instrumentos de sopro, saxofone, clarineta, pandeiro e surdo. As moças trajavam saias rodadas de cor vermelha com enfeites dourados e miniblusa também com enfeites dourados, deixando à mostra a barriga, e completavam o visual com colares, pulseiras, bandana vermelha ornamentada com moedas douradas e chinelos aos pés. Os rapazes vestiam calça preta, uma faixa vermelha na cintura, camisa branca de manga comprida, sobreposto com um colete preto, um lenço vermelho no pescoço, e nos pés sapato preto.
Terno das Ciganas
Formavam duas filas: uma de moças com seus pandeiros batendo ao ritmo das marchas, e outra de rapazes. No centro, uma participante levando o estandarte escrito Terno das Ciganas, com o desenho de uma cigana nele. Seguia até a porta da igreja para pedir a benção. Em seguida, percorriam as ruas até a casa onde iam se apresentar, cantando:
Lá no Egito a caravana ao sol, Com o Terno da Cigana de escol. Viemos aqui reunidos como irmãos, Sempre alegre a divertir neste sofão, A cantar sorrir andando com prazer, Só paramos onde achamos o que beber. Linda música afinada a tocar, Ampla sala enfeitada pra dançar. Chegando à porta, saudavam o dono da casa com a música:
Moradores de Belém, Que viemos do Oriente, Visitar a Deus Menino, Somos o Terno da Cigana, Cantando lindo fulgor, A Deus menino louvores, Com prazer vamos entoar. Na entrada da casa cantavam:
Correr depressa, vamos comprar (bis) Anéis de ouro e perolas do mar. (bis) Com muito pouco dinheiro, Basta somente um tostão, Nós lemos a sua sorte (bis) Na palma da sua mão. (bis)
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Dentro da casa, todos os componentes faziam um círculo e uma cigana ficava ao meio. Ao som da música, apresentavam a dança zíngara, através de gestos, de passos e da harmonia de sua dança que manifestava sentimentos repletos de mistério e magia, nos movimentos e no olhar.
Vem, ó cigana bonita, Ler o meu destino, Que mistério tem, Tu com os olhos de quem vê, No acaso, o amor da gente, Põe nas minhas mãos, O teu olhar ardente, E procura desvendar o meu segredo, A dor cigana do meu amor Mas nunca digas, ó Zíngara, Que ilusão me espera, Qual o meu futuro, Qual aquela por quem vou vivendo assim à toa, Tu dirás se a sorte será má ou boa, Para que ela venha consolar-me um dia, A dor cigana do meu amor. Após a apresentação da dança zíngara, eram oferecido os comes e bebes. Depois seguiam para outra casa. Segundo Dona Vilma, apresentavam de três a quatro casas por noite. Era um terno que todos queriam ver. Em dois anos seguidos, exibiram o terno, depois passaram a apresentar periodicamente em desfiles, no Canta Vale ou *Diz-se assim também em outras cidades como em Bom Jesus da Lapa.
de quem morre, “ faz a passagem” para o outro lado, para o mundo dos mortos, para a vida eterna etc.
Em meados de 1999, o terno que levou muitas alegrias a várias casas, com sua Cigana dançando a zíngara, esbanjando mistério e sedução, devido ao afastamento de vários componentes, e também a passagem* de uma das suas principais cabeceiras, o Terno finda seus trabalhos, deixando muitas saudades e lembranças para aqueles que tiveram oportunidade de assistir a esse magnífico espetáculo que representava o povo cigano.
Terno das Baianas A origem do Terno das Baianas remontam à época do Brasil Colônia. Criado em Carinhanha na década de 50, pelo maestro Pedro Leite de Almeida. Em 1997, foi resgatado pela professora Eliete Brandão, para se apresentar no I Canta Vale, organizado por Carlos Lélis, conhecido como “Carlão da gaita”, Projeto que visou, aqui em Carinhanha, o fortalecimento de ações em defesa da preservação do Rio São Francisco, não apenas do ponto de vista ecológico, mas também, sociocultural. Através da cultura, da divulgação da música regional, do folclore e das artes em geral, conseguiu, por alguns anos, manter certa dinâmica, criando possibilidades para o resgate e consolidação da Cultura Popular. Constituído por mulheres, caracteriza-se pelo seu traje típico, pela sua orquestra, seu estandarte, foi inspirado pela canção do cantor baiano Dorival Caymmi “O que é que a baiana tem?”. Saem as componentes vestidas de saia rodada rendadas, blusa tomara-que-caia de renda com babados, um torso com um enfeite de uma cestinha, frutas na cabeça, muitos balangandãs (colares, pulseiras, brincos) e chinelos enfeitados. Imagine tudo isso e ainda todo o encanto que a baiana tem... Tem graça como ninguém. Os rapazes que seguravam o caramanchão trajavam calça e camisa branca com um torso na cabeça e sapato branco. Dispostas em duas filas, embaixo do caramanchão com o estandarte à frente, dirigia-se, o terno, à Igreja da Matriz, em meio a cantatas alegres entoadas ao longo do percurso.
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Marcha da rua Nós somos as baianas queridas, Que viemos de muito além, Visitar a Jesus Menino, No presépio de Belém,
Ouro, incenso e mirra trouxeram, Para Jesus presentear, Dando-nos sempre o exemplo, Para o nosso bem estar.
Para a cidade de Belém de Judá, Vieram os três Reis Magos, A procura do Menino Jesus, Sem fazer nenhum afago.
Viva, viva o Terno das Baianas, Viva, viva a nossa Bahia, De um povo muito elegante, Da mais velha capitania.
Aí, chegando, pediam a benção na porta da Igreja e depois desfilavam com entusiasmo aos lugares destinados. As residências familiares, previamente avisadas e dispostas a acolher o terno, recebiam-no com fartas mesas onde muito se podia comer e se beber. Então, o terno parava em frente da casa e cantava:
Uma estrela lá no céu, Veio ao mundo anunciar, Que nasceu Deus Menino, Para o nosso bem estar, Para nós trouxe paz, Alegremos neste grande dia. Alegres cantemos a Virgem Maria, Também ao grandioso São José. Em uma Manjedoura, nasceu Deus menino, Confirmando nossa fé. Ó Natal tão feliz, Ó Natal de alegria. Cantam os anjos nas alturas. Glória in excelsis Deo. E, aberta a porta, a festança começava:
Os senhores desta casa, Dá licença nós entrarmos, As baianas em fileira, No salão querem brincar, Dai-nos logo o seu óbulo, Não tenha pena de dar, Nós pedimos a Jesus, Para vos recompensar,
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Não precisa muita coisa, Quero apenas atenção, E um pequenino agrado, Com alegre coração. Depois, se faz um círculo e as baianas dançam. Uma no centro canta a música de Dorival Caymmi “O que é que a baiana tem?”.
O que é que a baiana tem? Que é que a baiana tem? Tem torço de seda, tem! Tem brincos de ouro, tem! Corrente de ouro, tem! Tem pano-da-Costa, tem! Tem bata rendada, tem! Pulseira de ouro, tem! Tem saia engomada, tem! Sandália enfeitada, tem! Tem graça como ninguém Como ela requebra bem! Quando você se requebrar Caia por cima de mim Caia por cima de mim Caia por cima de mim O que é que a baiana tem? Que é que a baiana tem?
Tem torço de seda, tem! Tem brincos de ouro, tem! Corrente de ouro, tem! Tem pano-da-Costa, tem! Tem bata rendada, tem! Pulseira de ouro, tem! Tem saia engomada, tem! Sandália enfeitada, tem! Só vai no Bonfim quem tem O que é que a baiana tem? Só vai no Bonfim quem tem Um rosário de ouro, uma bolota assim Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim Um rosário de ouro, uma bolota assim Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim Oi, não vai no Bonfim Oi, não vai no Bonfim Um rosário de ouro, uma bolota assim Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim Oi, não vai no Bonfim Oi, não vai no Bonfim. Assim finaliza o Terno das Baianas.
Entrevista com Joaquim Tapuio Em 15 de abril de 2012, num belo domingo de sol, fomos a campo para entrevistarmos pessoas da comunidade de Lagoinha, Lagoa Dantas e Tapera. Chegando à Lagoinha, encontramos com o senhor Joaquim Martins de Souza, 59 anos, conhecido por Joaquim Tapuio, e sua família. Ele é casado com dona Conceição Rosa de Nunes, com quem teve nove filhos, sendo somente uma filha mulher. Trabalhador rural que, além de trabalhar em sua roça, trabalha em outras localidades para outras pessoas, para ter o sustento para seus filhos. O nome Joaquim se deve pelo fato dele ter nascido no mesmo ano em que morrera seu pai, Joaquim Martins de Souza, um reiseiro antigo da região, 1953. Quem lho dera foi sua mãe, Lôzinha em homenagem ao seu falecido pai. Já o nome Tapuio não faz parte do seu nome na Certidão de Nascimento.
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Ele tem esse nome por causa da sua avó que foi encontrada no mato. Índia “braba” que foi pega por outras pessoas e tinha o nome de Isabel. Ela morou muito tempo na comunidade de Canabrava, município de Carinhanha; sendo esta bem aceita nesse local onde viveu muito tempo. Tinha sempre o costume de fazer remédios caseiros para curar doenças. Como surgiu o reisado de que o senhor é ló cabeceiro? Comecei minha trajetória de reisado desde muito cedo, aos 18 anos de idade. Eu cantava com meus cunhados para o lado de Capinão e Serra. Por conta de trabalhar muito na roça, adoeci da coluna e fiquei muito doente, até pensava que não voltaria a caminhar mais, de tão ruim que fiquei. Aí fiz uma promessa para Santos Reis que se ficasse bom cantaria o Reis todos os anos até quando aguentasse. E aí fiquei bom e fiz as “traias”, instrumentos dos reisados. A partir daí montei o meu próprio grupo de Reis, no ano de 1990, e continuo cantando até hoje. Como o seu Terno de Reis se mantém? Como ele se organiza? A organização sou eu mesmo, que compro e reformo os instrumentos. São duas gaitas, que é feita com cano, um tambor feito da madeira de cedro, com um couro especial de cutia. Esse tambor que eu uso até hoje tem mais de 50 anos. A pessoa que fez ele não está mais viva. Foi o Seu Chico Baiano. Tem também dois pandeiros, um Maracaxá, que é feito com tampinha de garrafa, madeira e pedaço de arame, uma viola, um triângulo e uma zabumba, que é dos instrumentos principais que faz um som muito forte. Essa zabumba é feita também de madeira com couro de veado, porque tende a dar um bom som. Hoje em dia usam couro de bode, porque esses outros estão difíceis de ser encontrado, creio eu que seja por conta da extinção desses animais na região. Quem faz parte do seu grupo de reisado? São nove reiseiros. Cada um com seu instrumento, cantam e dançam ao mesmo tempo. O Raimundo de Áurea canta em todos os grupos de reiseiros, e nesse meu ele toca gaita. O Nedino canta também no grupo do senhor Gertudes e
“As traia” – Instrumentos do Reisado
comigo ele toca o bumba. Eu toco bumbo e canto o reis. Tem também o Damião de Virgílio, que toca pandeiro e canta também no grupo de reis do pai dele, o Seu Virgílio de Teodoro, e no grupo de reis de Zuza de Lúcio. O Zé Carlos filho de Antônio Zé Roxo toca gaita. O Fernando de António de Zé Roxo toca gaita também. O Cristiano, meu filho, toca reco-reco e zabumba. O Geovane filho de Miguel de Casé toca caixa. Muitos do meu grupo de reisado já faleceram. Tem o Seu Rafael, também, que era integrante, mas hoje, por causa da idade, não participa mais... O senhor tem algo de recordação da prática do seu reisado, alguma foto, carta, algum outro registro? Não. Nesse momento, Milton Viola, rezador de Ladinhas da localidade onde Joaquim Tapuio mora, presente no momento da conversa, pergunta por uma foto que foi tirada há alguns anos. Seu Joaquim Tapuio entra num vão que dá pra um quarto e logo retorna com a única fotografia que tem guardada de recordação.
Março de 1993. Joaquim Tapuio, segundo de cócoras, com chapéu de couro e pífano na mão
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O senhor acha que algum dos seus filhos vai dar continuidade aos reisados? Eu não sei. Os jovens de hoje não têm tanto interesse. Está muito difícil porque as pessoas mais velhas que cantam comigo estão muito cansados... Pra este ano, eu pretendo procurar outros mais novos para compor o grupo comigo, até porque a gente sempre sai mais tarde que os outros, porque fica esperando terminarem de cantar com outros integrantes de grupos de reis para cantar aqui. A festa dos reisados tem início em dezembro, mas o meu sai mais tarde porque tem que esperar os integrantes que também cantam com outros grupos se desocuparem, o que acaba atrapalhando um pouco, e a gente sempre sai por último. Seu Joaquim, o Reis ainda está como era antes no seu tempo de criança? Na época em que eu morava na Lagoa Dantas arrastava multidões, porque era famoso lá na região. Ainda vai muita gente. Ainda vai muita gente. O povo ainda gosta muito.
Entrevista com Joaquim Tapuio.
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Nomes de outros Ternos da Região No livro Carinhanha de ontem e de hoje, o historiador Honorato Ribeiro dos Santos nos diz que foram muitos os ternos que houve na cidade. Dentre os quais ele cita: o Terno da Magnólia, o do Jaburu, o Terno dos Marinheiros, dos Bombeiros Musicais e o das Gaúchas; o do Rouxinol, o da Barquinha, do Bacurau, das Enfermeiras, da Cruz Vermelha e dos Arigós. Descrever a história de cada um, dos que houve e dos que ainda há, ou simplesmente fazer-lhes o registro, demandaria um tempo excessivo de que não dispõe uma pesquisa do porte deste livro. Assim, logo abaixo, disponibilizamos uma breve lista de ternos de que tivemos notícia ao longo destes poucos meses de trabalho, cientes de que mesmo estes que aí estão não são todos. Terno de Antônio Pecó, organizado por Antônio Alves da Silva, telegrafista na época de 40. Terno das Alsacianas. Terno das Bonecas. Terno das Casadas. Terno das Magnólias. Terno das Pastorinhas, organizado pela Dona Madalena Barral. Terno das Saloias, camponesas portuguesas. Terno de Reis de João Braúna. Terno de Reis de Rodolfo Macambira, Lindolfo Joaquim da Rocha. Terno de Reis de Raimundo de Emiliano. Terno de Reis de Silvano Braúna. Terno de Reis de Virgílio de Zé de Teodoro. Terno de Reis de Zuza de Lúcio (zona rural, Micaela); Terno do Jaburu, organizado por Wilson Ferreira de Araújo. Terno dos Arigós (tabaréus), organizado por Honorato Ribeiro e Geraldo de Deraldin. Terno da Bonecas - 1948
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Os Reis de Bois Os Reis de Boi nas ruas de Carinhanha é um movimento popular que agita, arrasta multidões e atrai a atenção dos visitantes por sua música, dança e beleza. O Boi de Olívia tem um extraordinário poder de arrebanhar multidões pelas ruas da cidade, sobretudo jovens. Interagindo com o Boi, a multidão o provoca e ele persegue seus desafiadores. Não há meio termo, quem não sai da frente é atropelado. Existem relatos de que já houve casos de pessoas que saíram da brincadeira com “cabeças e braços quebrados”. Já o Boi de Homero brinca mais na periferia da cidade. Não tem a mesma quantidade de seguidores e é mais manso. Essa diferença sugere a possibilidade de que o Boi de Olívia teatraliza a relação entre a dimensão da violência e do entretenimento presentes nas pessoas e nos grupos sociais, envolvendo, no seu ritual, sobretudo, as pessoas mais jovens, mais dispostas a esbanjar as energias vitais. A Mulinha de Ouro é um Reis em que entram dois outros personagens além do boi, a Fera, que pode representar a própria morte, e a Mulinha de Ouro, uma mula com cabeça dourada, que é a redentora dos males causados pela Fera.
A Mulinha de Ouro subiu o São Francisco “Aqui mesmo na Festa dos Reis eu faço (a mulinha) aqui em casa. Nós fizemos a festa do ano trasado. Amanheceu o dia e esse povo aí. Quando chega o dia da festa, aí compra mais um pouquim de coisa, comida, tira gosto, faz um almoço e faz a festa. A gente reza a ladainha de santos reis e depois é samba. Aí, é a noite toda.”
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manhã já começa a pender para o meio dia quando Cizaltina Pereira da Silva e seu marido desligam o aparelho de televisão, abrem a casa e a alma para falar mais uma vez sobre a Mulinha de Ouro. Apesar de ainda não ter feito nada para o almoço dos dois e da filha que vem do trabalho, ela se dispõe a contar as peripécias da vida subindo o São Francisco. A falar de como organiza a Mulinha. Não hesita mesmo em desarrumar o lugar onde estão bem guardados os apetrechos da brincadeira. Mostra os movimentos da queixada que em janeiro se transforma na temida Fera. Exibe na cabeça o vistoso chapéu usado pelo dançador da Mulinha. Por fim, mostra a cabeça da Mulinha, guardada tão bem protegida que é preciso desenrolar as orelhas para que ela fique esperta. De onde veio esta Mulinha tão esperada nas Festas de Reis. Festas que incendeiam, meses antes, a imaginação dos carinhanhenses?
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O Dicionário do Folclore Brasileiro, obra da maestria de Câmara Cascudo, colhe no livro História da Música Brasileira, de Renato Almeida, notícia da presença dela na região do Rio São Francisco: Na zona do São Francisco, faz-se, durante as festas de Reis, o rancho da mulinha, sendo o animal conduzido por um vaqueiro. O rancho sai para tirar Reis nas casas, a cujas portas cantam, dançando uma chula, variante da tradicional. Depois de entrarem, os do rancho abrem roda, para que ao centro dancem a mulinha e o vaqueiro, fazendo uma série de passos e flexões, numa coreografia animada, em que o bicho deve revelar grandes qualidades, sempre acompanhados pelo canto tirado por um dos presentes, repetindo o coro o refrão de um só verso, ao fim de cada verso, com metro variado, assim: Sapateia mulinha, É ouro só Dá pinote mulinha É ouro só Faceira mulinha É ouro só. Finda a dança, a mulinha canta uma quadra, pedindo dinheiro e, na saída, agradece e se despede até para o ano. Os instrumentos são ganzá, viola, pandeiro e um tamborete que faz a marcação do ritmo.8
E a Mulinha de Ouro de Cizaltina? Como terá chegado a Carinhanha? Como ela brinca?
A família de Dona Cizaltina e a Mulinha de Ouro sobem o rio A família de Cizaltina Pereira da Silva é originária do município de Remanso. Ela resume em duas informações o perfil do pai Procópio e da mãe Tomázia Maria das Virgens. Os dois trabalharam a vida inteira como lavradores e na olaria, fazendo telha, ladrilho e alvenaria. Bem antes dela nascer, já em Pilão Arcado, eles dançavam a Mulinha de Ouro em Remanso. Cizaltina recorda que nasceu no ano de 1934 e chegou em Carinhanha juntamente com sua mãe em 1955. Estava no auge dos seus 21 anos, quando teve o primeiro de um total de 15 filhos, dos quais 9 sobreviveram.
Antes de fixar residência em Carinhanha, a família passou por Pilão Arcado, Barra do Parateca, Malhada e uma das ilhas do São Francisco. Foram anos de luta contra a fome, que em circunstância extrema chegou a ser saciada com caldo de pimenta com farinha. No meio das maiores incertezas só uma garantia: onde estivessem saia a Mulinha de Ouro. Na aventura destes personagens subindo o São Francisco, entre Remanso e Itacarambi, quem carregou quem? A família levou a Mulinha? Ou a Mulinha de Ouro transportou a família? Se parece impossível responder a esta difícil charada, não há dúvida de que uma alimentou a outra na luta e na esperança. A sobrevivência muitas vezes esteve ameaçada, a da família e a do folguedo. Assim é que após a morte de Procópio e Tomázia, os troncos familiares, a Mulinha não saiu durante alguns anos. Cizaltina assevera que a retomada das apresentações se deve ao incentivo das pessoas que gostam da brincadeira e às apresentações organizadas na praça pela Prefeitura. Menciona que o Encontro das Águas e dos Amigos valorizou mais a Mulinha de Ouro, que anteriormente se apresentava apenas em janeiro. Como o Encontro reúne as diversas apresentações culturais do município, a Mulinha ganha o tecido para fazer os trajes e uma ajuda de custo para o grupo de brincantes.
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A vida de Cizaltina em Carinhanha: dificuldades e resistência Cizaltina relembra que, quando chegou com a família em Carinhanha, a sede do município se resumia apenas ao atual centro da cidade. Para ajudar na renda da família, ela vendia buchada e trabalhava como costureira. Aliás, para contar de sua vida e da Mulinha, ela interrompeu as costuras, pois ainda hoje exerce o ofício. Com o olhar voltado para um ponto no infinito da lembrança, ela recorda que eram tempos difíceis. Carinhanha não tinha água encanada. Quem tinha maior poder aquisitivo pagava alguém para abastecer a casa. Havia os que carregavam água na cabeça e os que transportavam em jegues, duas latas de água em cada viagem. Família pobre como a dela não tinha como pagar. Ia buscar água com a lata na cabeça. Com ironia e humor, declara que, para amenizar o sofrimento, ela cantava uma canção de protesto do começo da década de 1960.
Lata d’água na cabeça é vai Maria, e vai Maria. Outra incumbência dolorosa para as mulheres era a maternidade. O corpo de Cizaltina traz ainda as consequências de partos difíceis e resguardos mal cuidados. Ela relata que naqueles anos, décadas de 60 e 70, a assistência à saúde era precária. Como era costume, teve todos os filhos em casa, pela mão de parteiras bem conhecidas na cidade como Antônia Batata, Nilza Mangabeira e irmã Catarina. Um dos partos foi muito complicado, aquele em que deu a luz à filha Maria José. Ela afirma que a criança gerou-se sentada, pois ela ficava muito tempo sentada, costurando. Passou três dias de sofrimento porque a parteira Perolina não achava jeito de realizar o parto. Já em desespero, seu pai chamou a Irmã Catarina e as duas conseguiram, enfim, realizar o parto. Ela afirma que quase morreu para trazer Maria José ao mundo. Conta com emoção que só foi possível porque Deus iluminou a mão da irmã Catarina e de dona Perolina.
Daqueles anos, Cizaltina lembra também dos barcos a vapor que navegavam o São Francisco acima e abaixo. Sempre que viajava ia na segunda classe, já que na primeira só podia ir quem era rico. Ela lembra que “cansava de
subir para a primeira classe, curiosa para observar como eram os passageiros e as acomodações”. Também perduram em sua memória as cenas do vapor chegando ou saindo de Carinhanha. O cais ficava repleto. Predominava a alegria das pessoas, felizes, acenando para os que chegavam. Quando o barco partia era o contrário, o que mais se via era tristeza no rosto de quem estava se despedindo.
A Mulinha de Ouro nas festas de Reis A vida da Mulinha de Ouro em Carinhanha está relacionada a motivações diversas. Ela dança para o pagamento de promessas alcançadas com os Santos Reis. Do mesmo modo, vai à casa de quem quer o folguedo somente pelo prazer da dança. Sua dona diz que gosta mesmo é da diversão, de ver as pessoas felizes cantando a música da Mulinha; embora em sua residência ela reze a ladainha para os Santos Reis antes de começar a brincadeira. Como é de costume, por todo o mês de janeiro, o grupo de reiseiros sai nas casas oferecendo a dança. Conta Cizaltina que
“A gente vai andando até que chega numa porta e canta o reis e, se o dono quiser, aí eles dançam o boi, depois a mulinha, depois a fera e depois ainda tem o samba. Tem mais coisa também, mas a gente não faz, não. Os meninos não têm treino nem nada e eu, com problema nas pernas, não consigo ensinar direito. Tem sabiá, tem caipora, tem nego, tem ema, tem tanta coisa”, completa o marido de Cizaltina. Nós aqui cantamo o reis só com três: boi, mulinha e fera, responde ela. Depois de oferecer a dança, se recebe sinal positivo do dono da casa, que aceita, e o grupo canta:
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Porta aberta mesa franca Recebei com alegria Recebei meu Santos Reis Filho da Virgem Maria. Senhora dona da Casa Não se dê por agravada Eu deixei por derradeira Porque tinha reservado. Se tiver o que nos dá o Santos Reis Não precisamos cantar São José, Santa Maria Santos Reis mandou nos dá. Ô, bonito reis de Belém
Estou na casa de homem de bem (repete)
Depois desta saudação os vaqueiros ofertam o boi dizendo:
- Ê patrão. Quer comprar o boi? Boi gordo! Chega tá liso! Tá derretendo! Se a pessoa da casa fala “pode cantar”, aí canta:
Esse boi dê Ê boi baiano Esse boi dá Ê boi baiano Sapateia meu boi.
Depois da apresentação do boi chega a vez da Mulinha:
Cambrainha bebe vinho, Também bebe aguardente Arrenego desta mula Que não brinca com a gente. A mulinha vem, É vem é vem Como ela vem Tão bonitinha A mulinha é de ouro É ouro só (repete) Eu também sou de ouro É ouro só (repete) Ela é tão bonitinha É ouro só (repete) Sapateia minha mula É ouro só (repete) Corre a roda mulinha É ouro só! (repete)
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Finalmente entra a Fera. A fera, conta Cizaltina com os olhos muito arregalados, é feita com
“uma cabeça de jegue, uma cabeça de animal... com os dentão. A gente passa tinta preta na cabeça, no olho. Depois vem com uma roda branca, bota ali no lugar do olho do animal e uma rodinha vermelha por dentro. Fica a coisa mais horrível.” Ô lá vem a fera Deixa vim! Ô fera danada Deixa vim! Ela morde gente Deixa vim! Quando termina a apresentação dos três animais, os brincantes vão comer e beber o que o pessoal da casa oferece. Sempre tem pinga, presidente (conhaque) e catuaba. E ao final saem cantando:
Dona da casa adeus, té logo Adeus que eu vou imbora! Adeus adeus adeus té logo Adeus que eu vou imbora!
O futuro da Mulinha de Ouro Cizaltina mostra um leve desapontamento com as limitações do grupo:
“Em janeiro, a gente saía os três: o boi, a mulinha e a fera. Ano passado ou ano trasado, ainda, o boi também saiu. Mas, quando vai apresentar fora de janeiro, só vai a mulinha.” Não disfarça, porém, o orgulho que tem da fama da Mulinha de Ouro. E faz questão de mencionar sua irmã Julieta, que também faz a Mulinha:
“O nome do reis é Mulinha de Ouro. Agora esses reis que tem tudo tá em Itacarambi, com meu povo também. Porque a minha irmã do meio, Julieta, levou prá lá, prá Itacarambi, e lá eles continuaram fazendo reis e nós aqui cantando também o reis só com três: boi, mulinha e fera”. Com visível satisfação, Cizaltina enumera os brincantes da Mulinha de Ouro. Filhos, netos, sobrinhos:
“O grupo são umas quinze pessoas: Raimunda, Julieta, Luzia, Taís, Cida, Alice, Das Dores, Nicinha, Tarcíso, Tyson, Meim, Etevaldo, Damião, Luis e Wesley. Tudo da família. A idade é de 17 anos acima. Tem um de 15, Damião que é o vaqueiro. Tudo é neto, sobrinho. Cada pessoa tem dois, três, quatro filho, e assim vai rendendo a família. Um dança a mulinha, outro dança o boi, outro é o vaqueiro”. Pouco antes de encerrar a conversa, pois ainda ia cuidar do almoço, Cizaltina imagina o futuro da Mulinha de Ouro:
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“Se Deus der vida e saúde, se der licença, vamos cantar o reis (em janeiro do próximo ano). Eu não. A moça, mulher de um sobrinho meu, é quem tomou conta, Raimunda de Antonio Procópio. É a que mais faz a frente, é quem canta, que recebe, é quem ajeita. Ela só não sabe fazer a roupa ...da mulinha”.
Os “Barulhos” dos Reis de Bois Que anjos são esses Que andam guerreando É de noite, é de dia Padre Nosso, Ave Maria!
As descrições dos movimentos em torno das Festas de janeiro, à primeira vista, contrastam com a rotina tranquila da cidade; impressão que é mais aguda quando se comparam os relatos com o que se presencia no cotidiano. Entre o meio dia e o início da tarde, as atividades parecem completamente suspensas ou simplesmente recuam para o interior das casas. Sossego ampliado pelo correr supostamente manso das águas do São Francisco, que dilatam o silêncio somente quebrado aqui e ali por algum riso ou fala que se perde rapidamente por entre ruas e casas. As memórias que constroem Carinhanha são pródigas em mostrar a convivência de calmarias e agitações. Sejam em lembranças que sobrevivem impressas nos livros, gravadas em músicas ou postadas na rede mundial de computadores em blogs ou emails; sejam nas conversas esparsas, de pessoa para pessoa. Estas memórias confirmam que a agitação das festas religiosas,
dos folguedos profanos e dos embates sociais e políticos convivem desde muito lado a lado com a tranquilidade da vida ribeirinha e dos pequenos aglomerados humanos. Desse modo, pode-se dizer que os espaços de sossego e apatia, que os carinhanhenses sabiamente constroem para se refazer de suas lutas cotidianas pela sobrevivência, convivem com as agitações da lida diária de cada um e dos diversos grupos sociais. Olhada deste ângulo, a história de Carinhanha registra diferentes tipos de barulhos: o barulho dos Reis de Bois, que arrasta multidões de jovens pelas ruas da cidade, e desperta a memória dos velhos e a curiosidade das crianças; e os “barulhos” de uma época e de um sistema social e político que marcou o município de Carinhanha e toda uma vasta região destes sertões, em que as energias despendidas estavam a serviço de outros horizontes históricos. A reconstituição que José Evangelista de Souza faz em seu relata que Coronéis no Médio São Francisco: fatos e histórias. Tudo começou em 1919 e 1920, quando o Major Leônidas, o braço armado do Coronel Clemente Araújo Castro, de Santa Maria da Vitória, invadiu a cidade de Carinhanha para libertá-la do cerco imposto pelo Coronel João Duque contra o Intendente Dr. Josephino Moreira de Castro. Desta primeira vez, em 1919, foi a ruína total: todas as casas da Praça da Matriz queimadas.9
A arqueologia da memória de testemunhas desses eventos detalha mais sobre os “barulhos” ocorridos ao longo dos anos de 1920. Encontrei a cidade toda deserta (isso era em 1928). Aliás, Jeremias tinha me avisado: “Eu vi a cidade toda destruída!”. Nada ficou de pé. As casas do povo, o Paço da antiga Câmara dos Vereadores da Villa de San José de Carinhanha, as nossas defesas, o porto de “Sacavém”, o altar e a matriz de São José, a igrejinha de Santo Antônio, da família Gusmão, uma casa emendada de um lado da Praça da Matriz, tudo destruído pelo fogo. O estandarte de veludo do Coração de Jesus, com brocados de ouro, queimado e o veludo, o resto atirado no rio. Profanou-se o templo do Senhor, a cidade perdeu tudo; povo sem chefe, sem sacerdotes, sem celebrações, sem as festas do Divino, sem as festas do Padroeiro São José, da Senhora do Rosário e da Santa Efigênia dos negros. As casas saqueadas, os santos roubados! E o ouro? Muita gente passava fome, mas guardava o ouro na arca. Não sobrou um quilate sequer e, toda a Carinhanha. A matriz de São José, a glória da cidade, foi invadida e transformada em trincheira de jagunço.10
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Diferentemente desta imagem de destruição e terror de um lado da moeda, do outro lado, os Reis de Bois mostra uma constante e paciente (re)construção cultural, de uma geração a outra.
A genealogia dos Reis de Boi Olívia e de Homero Quando se fala no Rei de Bois, em Carinhanha, considera-se que a brincadeira compreende “duas ramificações da mesma tradição: o boi de Homero e o boi de Olívia”11. As informações deste documento somadas a outras constituem um inventário que possibilita acompanhar o processo de formação dos Reis de Bois de maior nomeada sede do município. Francisco Rodrigues Coutinho e José Mendes Ferreira foram os fundadores do Reis de Boi, que hoje é conhecido como Boi de Homero. José de Coquinho e mais dois irmãos tomavam conta. José de Coquinho comprava o tecido e Zé Viana o pintava imitando as manchas do boi. O primeiro vaqueiro foi João Cachimbo. Entre os dançadores, poucos nomes são lembrados: Cassiano Cunha, Vital Cerqueira e Antonio Vermelho. Francelina Coquinho, filha de José de Coquinho, tocava bumba, flauta, gaita e outros instrumentos. Acontece a primeira transmissão: Zé de Coquinho adoece e entrega o boi para Vítor Mendes. Vítor dá continuidade à tradição com a ajuda de Francelina, a talentosa filha de Zé de Coquinho.
Boi de Homero - 1998
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Tempos depois acontece a segunda transmissão: Vítor Mendes morre. A partir daí, quem dá continuidade é Geraldo, seu filho, casado com Olívia. A terceira *Caçar transmissão ocorre com a morte trágica de Geraldo. passarinho, Geraldo Mendes Ferreira, filho de Ana Mendes e do Senhor Vitor Mendes Ferreira nasceu no dia 05 de março de 1940, em Carinhanha. Seus pais eram comerciantes, donos de um açougue e depois de um mercadinho de cereais. Quando criança, apresentava um comportamento “agitado”, ou, como dizem os mais velhos, ele era um menino muito “traquina”. Como as crianças da época, ele gostava de brincar de bolinha de gude, ir para o mato pilotar* passarinho entre outras brincadeiras. Na juventude, ajudava o pai no açougue e por mais que ainda fosse um pouco traquino mostrava respeito aos pais: para sair com os amigos precisava da autorização deles. Seu pai Vitor recebeu de Seu Coquinho a tradição do Reis de Boi. Ele, sempre presente e envolvido com a tradição, após o falecimento do pai, por volta de 1971, assumiu a responsabilidade. Quando Geraldo conheceu Olívia, sua futura mulher, houve resistência do pai dela ao namoro. Olívia saía escondida da casa onde trabalhava para se encontrar com Geraldo. Em um desses encontros, ela acabou “se perdendo”* O pai de Olívia, sabendo do ocorrido, chamou Geraldo para “uma conversa” e decidiu aceitar o relacionamento, fazendo então o casamento dos dois. Com sua esposa, teve onze filhos, dos quais sobreviveram oito. No dia 20 de março de 1979, aos 39 anos, Geraldo foi assassinado por uma amante. Conta-se que por ocasião do casamento de uma amiga, em uma roda de samba, Geraldo, em companhia dos foliões, pediu para que Homero desse continuidade ao Reis de Boi depois de sua morte. Geraldo foi assassinado no dia seguinte. O irmão dele, José, entrega o boi para Homero, que, atendendo a seu pedido, lhe dá continuidade. Sobrevêm, então, a ramificação ou a multiplicação: um ano após a morte de Geraldo, sua esposa Olívia resolve dar continuidade ao boi que marca a família. Desde então, os dois Reis de Boi passam a dominar o cenário: o Boi de Homero e o Boi de Olívia. Esta linhagem de dois dos Reis de Bois de Carinhanha, como
usando estilingue feito com um pedaço de madeira no formato de um “Y” (conhecido como “gancho” ou “ forquilha”, é feito de pequenos galhos de árvore), soro e um pedaço de couro. Utilizamse pedrinhas como munição.
*Diz-se da mulher que mantém relações íntimas antes do ritual do casamento religioso e civil.
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também é o caso de outros que existiram, e dos que continuam existindo em outras localidades do município, se insere nas relações que colocam em contato diferentes estratos e interesses sociais. Sinais destas relações podem ser encontrados na História de Carinhanha, de Honorato Ribeiro dos Santos. O historiador atribui ao Capitão Joaquim do Amorim Castro da Gama, possuidor de rebanho de gado bovino e de escravos, a introdução das festas dos reis em Carinhanha: Foi Joaquim do Amorim Castro da Gama, que tinha a patente de capitão, que primeiro organizou, através de seus negros, as festas dos reis de boi, no mês de janeiro; dança típica dos negros africanos. Por isso, até hoje aqui, no mês de janeiro, é bastante animada com esse folclore dos reis de boi, reis de caixa, contradança e mulinha de ouro; e a cidade se alegra até o dia seis do corrente mês.12
Vestígios destas relações que envolvem recepção e transformação de significados estão também na notícia sobre as comemorações do período de reis nas metrópoles de tantas colonizações, como assinala o Dicionário de Folclore Brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo Foram festas populares na Europa (Portugal, Espanha, França, Bélgica, Alemanha, Itália etc.) dedicadas aos três Reis Magos em sua visita ao Deus Menino, e ainda vivas em vestígios visíveis. Na Península Ibérica, os reis continuam vivos e comemorados, sendo a época de dar e receber presentes, “os reis”, de forma espontânea ou por meio de grupos, com indumentária própria ou não, que visitam os amigos ou pessoas conhecidas, na tarde ou noite de 5 de janeiro (véspera de Reis), cantando e dançando, ou apenas cantando versos alusivos à data e solicitando alimento ou dinheiro.13
A transmissão destas práticas, reforçando ou afrouxando os laços da dominação, o mesmo Cascudo encontra, no Compêndio Narrativo do Peregrino da América, de autoria de Nuno Marques Pereira, uma passagem em que ele descreve um grupo pedindo os Reis na Bahia na segunda metade do século XVIII: “uma noite dos Santos Reis, saíram estes (homens) com vários instrumentos pelas portas dos moradores de uma vila, cantando para lhes darem os Reis, em prêmio do que uns lhes davam dinheiro, e outros doces, e frutas etc.”14
Os Reis de Bois de Carinhanha realizam uma operação social e histórica de alta complexidade. Através de processos sucessivos de transmissão, asseguram o processo de tradicionalização em seu próprio meio. Neste processo, mais do que simplesmente dar continuidade, eles ressignificam as Festas de Reis se utilizando de trechos do Bumba-meu-boi, outro folguedo originário dos colonizadores e que no Brasil
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começaria nos engenhos, entre negros, mamelucos, mestiços, na forma inicial boi canastra, armação de vime, coberta de pano pintado, cabeçorra bovina, ampla cornadura, unicamente destinado a dispersar e afugentar os curiosos atrapalhantes de uma função representada ao ar livre. Era assim na Espanha e Portugal, o falso boi chifrando diante dos cortejos mascarados e mesmo fazendo rir ao monarca. Havia touradas cômicas com esses touros de junco, as tourinhas.15
Construindo o Boi A dança do Reis de boi é uma folia de homens com caixas, zabumba e dois que tocam gaitas de bambu, que tocam um ritmo de samba e cantam em duas vozes em louvor ao menino Deus. Depois que acabam de cantar, o vaqueiro, com a cara pintada de carvão, pede que todos abram o caminho para que ele possa ofertar o boi gordo ao dono da casa. O dono da casa compra e manda dançar o boi. O vaqueiro com a sua guiada grita o boi que dança entre os gritos do vaqueiro que com sua guiada governa o boi, mas este lhe remete derrubando-o no chão entre gritos e alvoroços dos jovens e garotos e gritam a vaca atolada. Este parte em disparada atrás dos garotos e rapazes a fim de chifrá-los.16
Dias antes da saída do Reis, os brincantes vão à mata retirar as madeiras (os arcos e as varas) para fazer o boi. Além do facão, levam uma garrafa de pinga e o bom humor para tornar o trabalho alegre. Após a retirada do material, as varas e arcos são raspados para apressar a secagem.
Boi de Homero
O procedimento seguinte é construir a armação do boi. Primeiramente, cavam-se seis buracos no chão, três de cada lado. As madeiras dos arcos são fixadas nos buracos, permitindo fazer a curvatura necessária. Firmados os arcos, as varas são colocadas horizontalmente e amarradas com corda. Está pronta a estrutura do boi. Para a confecção da cabeça do boi, utiliza-se uma caveira de verdade. Duas varas são introduzidas no sentido vertical, uma de cada lado da cabeça, e o conjunto é amarrado na armação. Vem então a cobertura, para a qual se usam panos estampados, costurados de modo a cobrir a parte de cima, a frente e a traseira do boi. A etapa final são os detalhes, sendo o mais importante a cara do boi. A caveira recebe uma cobertura feita de couro, na qual são pintados os olhos, a boca e mais detalhes que dão a personalidade do boi. Esta preparação geralmente termina no dia 1º de janeiro.
Olívia Olívia dos Santos Ferreira, filha do senhor Geraldo Mineiro Ferreira com a senhora Adelaide Dionísia dos Santos, nasceu em Mangas, cidade pertencente ao estado de Minas Gerais, no dia 06 de agosto de 1945. Olívia fazia parte de uma boa família. Não eram ricos, mas seu pai tinha uma pequena fazenda. Contando com ela, seus pais tiveram sete filhos. Viveu boa parte de sua infância em Minas Gerais, mas aos 10 anos de idade mudou-se com sua família para a cidade de Carinhanha . Na adolescência, começou a se envolver com Geraldo, mas por já estar prometida a um fazendeiro da região, seu pai não aceitava essa relação. Também por Geraldo ser negro e de família de cangaceiros. Devido à proibição de seu pai, Olívia se encontrava às escondidas com Geraldo, até que um dia manteve relações íntimas com ele. Devido a esse acontecimento, seu Pai Geraldo se viu obrigado a aceitar a relação e deu permissão para que se casassem.
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Já casados, tiveram sete filhos. No dia 20 de março de 79, Geraldo acabou falecendo, deixando Olívia sozinha com sete filhos para criar. A única coisa deixada por Geraldo foi um saco de peixe no quarto dos fundos. Olívia mostrou que mesmo sozinha daria conta do recado e faria de tudo para sustentar seus filhos. Passou por dificuldades, houve dias de oferecer somente farofa de sebo para seus filhos. Até que conseguiu emprego em uma escola local. Era uma mãe guerreira, seus filhos eram sua vida. Olívia faleceu no dia 15 de fevereiro de 2002, na cidade de Carinhanha vitima de um câncer no útero.
Reis de Bois: o mesmo e o diferente Para a movimentação da noite de abertura, o grupo canta o reis primeiramente na Igreja. Em seguida, começam as visitas nas casas. O momento inicial conta com a presença das rezadeiras. Em frente ao altar, todos rezam e sambam em homenagem aos Santos Reis. Encerradas as orações, tanto antigamente quanto hoje, os reiseiros dançam em frente ao altar fazendo o sinal da cruz. Em seguida, seguem para a frente da casa cantar
Boi de Olívia
o Reis. Ao final, são distribuídos os “comes e bebes”, em primeiro lugar, para os foliões e as rezadeiras, depois para a assistência. O festejo é finalizado com um samba que vai até o dia amanhecer. Todos os presentes recebidos neste e nos dias seguintes, inclusive as ofertas em dinheiro, são guardados para a festa do derradeiro dia. Atravessando tempos e gerações, o Reis de Bois passou por modificações ao longo dos anos. Em Carinhanha, o folguedo tinha início no dia 1º de janeiro, e prosseguia até o dia 6, dia dos Reis. No dia 7, era realizada uma festa na casa do dono, com comida, reza da ladainha e o terço. Hoje mudou. Não tem mais uma data certa para começar e segue praticamente todo o mês de janeiro. A participação das mulheres também sofreu mudanças. Em outras épocas, elas pouco apareciam em público, reduzidas ao trabalho de cuidar das roupas dos brincantes, de preparar e servir as comidas. Atualmente, começam a ter uma participação mais ativa, desempenhando papeis na organização antes reservados somente aos homens. A agitação e o interesse da população em torno do Reis de Boi sempre existiram. Interpretações correntes arriscam dizer que, diferentemente de outros tempos quando as pessoas eram movidas pelo sentimento religioso, o Reis de Boi hoje se caracteriza mais por correrias e gritarias do que pelo louvor aos Santos Reis. As mudanças citadas − quanto ao período de saída do folguedo, a participação das mulheres e possíveis alterações no aspecto devocional − são temas de grande interesse para compreender as tendências do processo sociocultural de Carinhanha. Um indício merece atenção. Enquanto os mais idosos sentem saudades do “seu tempo”, participando dos momentos mais calmos, são os jovens que se destacam nas escaramuças. Desconhecem estes jovens os significados considerados mais importantes para os mais velhos e vão ao Reis de Boi movidos simplesmente pela busca da diversão? Se isto for verdade, eles agem de modo muito diferente dos antepassados? Os mais velhos seguiam o reis de Boi por causa dos aspectos devocionais, ou buscavam também o divertimento?
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Neste processo, que valores culturais estão sendo perdidos? E que valores estão sendo redimensionados, refeitos? Que novos valores podem ou estão sendo construídos? Todo e qualquer valor cultural tem que ser mantido a todo custo, somente porque é tido como tradicional? Que iniciativas os carinhanhenses podem tomar para assegurar a positividade da dinâmica dos processos culturais? O que cabe aos gestores do município? O que cabe às instituições educativas, escolas, igrejas, associações, movimentos artísticos e movimentos sociais, aos artistas e intelectuais, a cada cidadão?
Notas (1) ROMERO, Silvio. Estudo sobre a poesia popular do Brasil. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 196. (2) SANTOS, Honorato Ribeiro dos. História de Carinhanha. 4ª ed. GuanambiBA: Gráfica Papel Bom, 2006, p. 54. (3) CASCUDO, Luís da Câmara. Folclore do Brasil (pesquisas e notas). São Paulo; Lisboa: Editora Fundo de Cultura, 1967, p. 157. (4) BONETTI, Maria Cristina de Freitas. Contra-dança: ritual e festa de um povo. 2004, 196 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) Departamento de Filosofia e Teologia, Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2004, p. 116. (5) Idem, p. 121. (6) SANTOS, Honorato Ribeiro. História de Carinhanha. Guanambi, BA: Gráfica Papel Bom, 2006. p. 46.
(7) Idem, ibidem. (8) CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 8ª ed. São Paulo: Global, 2000, p. 484. (9) SOUZA, José Evangelista de. Coronéis no Médio São Francisco: fatos e histórias. 2ª ed. Santana, BA: Editora Ajassa, 2007, p. 16. (10) Idem, p. 15. (11) SILVA et al., Manifestações Culturais na cidade de Carinhanha: o olhar dos idosos. Monografia de Graduação em Pedagogia. Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Campus XII – Guanambi-BA, 2006, p. 53. (12) SANTOS, Honorato Ribeiro. op.cit., p. 45. (13) CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 8ª ed. São Paulo: Global, 2000, p. 668-669. (14) Idem, ibidem. (15) CASCUDO, Luís da Câmara. Folclore do Brasil (pesquisas e notas). São Paulo; Lisboa: Editora Fundo de Cultura, 1967, p. 35. (16) SANTOS, Honorato Ribeiro. op.cit., loc.cit
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Festas e festejos CapĂtulo IV
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Introdução Na sequência do mês das Festas de Reis − a que em Portugal dá-se o nome de “Janeiras”, por conta do mês em que elas acontecem – ocorrem várias outras comemorações que, mais uma vez, reforçam as relações sociais e ritualizam a prática coletiva, costurando laços culturais e traçando uma Identidade compartilhada por todos, seja pelas classes mais abastadas, seja pelos grupos mais pobres, cada um tendo, por sua vez, o espaço que lhe cabe dentro de cada celebração.
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Fevereiro
Carnaval, Clube Recreativo 2 de julho e Liga Operária Beneficente “Era festa no famoso Clube 2 de Julho. Eu fui muito linda. Impecável. Com um belo vestido de tule amarelo e sapato de bico fino cor-de-gelo. Os cabelos longos batendo na bunda e com muitas joias.” Dona Eulália “Eu gostava mais da Liga Operária. Ali é que era o meu lugar, porque além de pobre, preto.” Seu Conde Sob influência das festas carnavalescas que aconteciam na Europa, o carnaval chegou ao Brasil em meados do século XVII, e, assim, foi disseminando pelo país e popularizado no começo do século XX.
Clube Recreativo 2 de julho
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Em Carinhanha, esta tradicional festividade passa a ganhar destaque em meados da década de 1940, com o famoso carnaval do Clube Recreativo 2 de Julho, o “Cordão das raparigas”, também conhecido como “Cordão do Couro” (denominação depreciativa para “mulher da vida”) da Rua do Cantim ou da Rua do Brega (atualmente, Praça do Relógio), o “Bloco Zé Pereira”, o desfile de carros alegóricos, o carnaval da Liga Operária, o “Bloco dos Intocáveis”, as “Caretagens” e os “Entrudos”. Na véspera da folia carnavalesca, acontecia a brincadeira dos Entrudos. Ali, não tinha divisões de classes. Era praticada até mesmo pelos que se diziam ser da alta sociedade. A arma da brincadeira era jogar água, talco, uns nos outros. Desde o sábado até a terça de carnaval, a cidade era animada pelo grupo das Caretas. Era uma brincadeira onde um grupo de homens com bumba, caixa e gaita, todos fantasiados. Percorriam as ruas da cidade com o objetivo de alegrar e, ao mesmo tempo, amedrontar com suas máscaras e fantasias bizarras. A identidade não podia ser revelada e nem serem descobertos. Era um insulto se isso acontecesse. Careta que se preze tem que estar incógnita. Essa era a tradição.
Bloco dos Intocaveis - Roque, Eliodorio, Zé Lima, Newilton, Lucas, Deco, Tianinho, Cristovão e Raimundo Doido
Havia alguns grupos diferenciados de caretas: o Urso eram dois homens. Um fantasiava de urso, o outro, de domador: roupa de couro de boi, que oferecia o espetáculo do urso amestrado ao som do caixeiro, que tocava a caixa para o urso dançar e fazer mesuras. Tinha os que mascaravam de bode, de vaqueiro... Os Laçadores se vestiam de vaqueiro, saíam a pé pelas ruas, à procura de crianças para laçar. Os Cabeçudos são no estilo dos bonecos de Olinda, com mascaras gigantes feitas de papel. No sábado, a alegria ficava por conta do bloco conhecido como Zé Pereira, um grupo de homens com caixa, zabumba, saxofone. Saíam pelas ruas da cidade de madrugada com muito júbilo e senso de humor, cantando:
Viva Zé Pereira (bis) Na noite sem rival, Viva Zé Pereira (bis) Na noite de carnaval. Viva Zé Pereira (bis) Debaixo da bananeira Comeu tanta banana Que morreu de caganeira. Ainda tinham os blocos carnavalescos, geralmente formados por grupos de amigos. Os Intocáveis saíam para se divertir tocando os seus instrumentos, todos com fantasias iguais. O Bloco do esculacho já foi mais recente, meados de 1990: um grupo também de amigos que faziam a festa entre si.
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312 Pelas manhãs, o povo também era agraciado com o desfile das Escolas de Samba dos jovens. Tinha a escola de samba organizada por Zé de Lurdes, outra por João Capela e a de Seu Zé Bonitinho. O carnaval do Clube Recreativo 2 de Julho, organizado pelos homens da Sociedade: Joaquim Borges de Araújo, Jorge Navarro, Dedeco, Juracy Pinto, Antônio Alves, João Nunes, José Serra Vale, Edmar Pinto, Dr. Barral e Dr. Heber. Era uma festa onde só participava quem era sócio, e para ser sócia a pessoa tinha que apresentar uma boa conduta: se fosse casado tinha que apresentar a certidão de casamento para comprovar, e, mesmo sendo casado, se um dos dois não tivesse um bom comportamento perante a sociedade não era aceito. “Moça falada”, como se dizia na época, não podia passar nem na porta. Negro só participava se tivesse condições. O Clube tinha regras a seguir, e se por acaso alguns dos sócios infligisse alguma regra, era expulso. Era uma festa muito bem organizada, com o seu Carnaval de salão, seu Rei Momo, Rainha, Princesas e desfiles pelas ruas da cidade. A escolha das rainhas e princesas era feita através da vendagem de bilhetes. Quem vendesse mais seria a rainha, e quem vendesse menos ficaria no cargo de princesa. Com o dinheiro da venda dos bilhetes, era custeada toda a festa, em especial os carros alegóricos. No sábado de carnaval, com a chegada do Rei Momo, declamando o seu discurso, abria-se, assim, oficialmente, o carnaval para os associados do Clube. Na tarde de domingo, a alegria ficava por conta dos cordões dos foliões, todos fantasiados, exibindo as mais belas fantasias carnavalescas em clima de diversão e ao som de marchinhas tradicionais. Sendo figuras ilustres o Rei Momo, Rainhas, Princesas e os carros alegóricos. A beleza destes carros alegóricos marca até hoje a memória de quem viveu este momento. Dona Nélia, filha de Dona Bezinha, relembra com saudosismo o carnaval de 1958,
Carro alegórico - 1958
em que desfilou um grande carro alegórico onde uma jovem exibia uma exuberante fantasia de borboleta com cerca de 3 metros de comprimento de uma ponta a outra da asa, rodeada de crianças com fantasias de flor que montavam o cenário alegórico de um jardim. A noite era o famoso baile de fantasia, com a orquestra tocando as marchinhas, frevo, samba e muita animação, confete, serpentina. Nos turnos matutinos no Clube, a festa era para os pequenos foliões. Como a divisão de classe imperava na época, e como em qualquer disputa a demarcação de território é a regra número um, o carnaval para quem não fazia parte da elite era realizado na Liga Operária Beneficente, cuja sede ficava na Avenida Santo Antônio, em frente à casa do Sr. João Fernandes, e ao lado tinha um beco chamado “Beco da Liga”. Tinha a porta de entrada na frente, e do lado do beco tinha outra, e um portão no fundo virado para a praça conhecida por “Praça de Pepê”, onde residia o Sr. Virgilio Souza, professor de artes e mestre em marcenaria e carpintaria; recebeu esse nome porque esse senhor era dono de uma padaria chamada “Padaria de Pepê. O “beco da liga” era bem estreito, e não passava carro. O movimento das pessoas no final de semana era grande por conta da matinê à tarde e da festa à noite, pois todos os finais de semana tinha som mecânico lá para os jovens se divertirem. O historiador autodidata carinhanhense Honorato Ribeiro dos Santos, em seu
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livro História de Carinhanha, afirma que a Liga foi fundada em 3 de setembro de 1944, com o objetivo de fazer o funeral dos sócios falecidos. Todo 1º de maio, a Liga organizava comemorações ao dia do trabalho. Não demorou muito, ela começou a realizar outras comemorações, até organizar o carnaval para a classe operária de Carinhanha. No carnaval da Liga Operária Beneficente, as pessoas também se fantasiavam, e tinha também o Rei Momo, a Rainha e as Princesas. Darinha, dona do principal hotel da cidade, o Hotel União, lembra que “Luzia foi a primeira
mulher a desfilar em trajes de maiô na passarela da Liga Operária como Rainha do Carnaval”, completando que “muitos homens passaram noites sem dormir só lembrando do maiô de Luzia”. Outra lembrança marcante foi o carnaval de 1962, cuja rainha foi a Chinha.
Hoje com 66 anos, Ataíde Maria de Almeida, a Chinha, nos fala dos momentos bons do carnaval que vivenciara na Liga Operária. Aquele era o primeiro ano de Rainha na Liga. A ideia surgiu com o fim de arrecadar dinheiro para a compra da primeira geladeira para a sede da Liga. Eram feitas urnas para concorrerem os votos das rainhas. Eram vendidos os votos em cartelas de bingos. As pessoas compravam os números e assim iam contando os votos. Quem vendesse mais números era a rainha.
“Foi muito emocionante”, conta. Quem fez o seu vestido foi uma das primeiras e melhores costureiras de Carinhanha, a Dona Margarida Sena, tia da Elza Sena, costureira também. O vestido era feito de um tecido verde chamado “pele de ovo”, que diziam ser muito chique e muito caro naquela época. Tudo foi uma repercussão muito grande, e sua emoção era tanta que não tinha palavras para dar conta de tanta alegria. Chinha Rainha do Carnaval da Liga Operária em 1962. A esquerda Maria Santana, a direita Sila de Julieta, mãe de Antônio de Uilson
Chinha também foi Rainha Primavera, em 1963. Por essa ocasião, ela teve a oportunidade de entrar no tão elitista Clube 2 de julho. “A gente ficava
olhando da janela, do lado de fora, as festas que aconteciam. Era um clube só pra rico”, explica. Naquele ano, conta Chinha, foi uma emoção
muito grande. Ela vestiu um vestido de cassa todo bordado e, arrumada pela Sra. Madalena Vilares Barral, esposa do Dr. Barral, médico afamado da cidade, conta que usou muitos colares de ouro da própria Dona Madalena. “Aqueles colar de ouro... foi muito bonito e emocionante esse momento”, diz com emoção. Nesse mesmo ano, ainda, Valdivina Nogueira, a Valda de Gedeon, foi eleita Rainha da Liga Operária. O baile era animado por uma banda tocando as marchinhas, frevos. Engraçado que, na época, os excluídos, os pobres e a negrada não podiam fazer parte do carnaval da elite, mas a elite podia participar do carnaval destes. Muitos, quando dava intervalo na festa do Clube, corriam para a Liga, e eram todos muito bem recebidos.
A Rainha Primavera desfilando em carro alegórico - 1963
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O Pe. José Evangelista de Souza, em seu livro Coronéis no Médio São Francisco: Fatos e Histórias, diz que do Clube 2 de Julho só fazia parte a “fina flor da aristocracia Carinhanhense”, e que nas noites de festa de que só podia participar a alta elite, “a plebe rude trepava nas galhas e se pendurava nos muros (...) para ver e ouvir, de longe”1, as orquestras dos bailes tocando as valsas pela madrugada. Organizado por Joaquim Borges de Araújo e Antônio Alves da Silva, o Clube tinha como objetivo “desenvolver a cultura dentro de um ambiente recreativo e social, para que todos se sentissem alegres e seguros com seus familiares”2. Seu Quincas, morador de Carinhanha, conta que
o Clube 2 de Julho era um clube, como se diz, era da elite. Ficava no centro. Tinham os sócios. Lá eram promovidos os carnavais, festas juninas. Os sócios podiam participar das festas. Meus pais eram sócios. A Liga Operária ficava mais ali na Praça do Pepê, mesmo, onde a população em geral podia participar. Lá também tinha carnavais. Eu, rapazote, participava do carnaval no clube e na hora do intervalo − naquela época tinha intervalo... porque só era uma banda − a gente ia na Liga ver como é que tava a festa lá também.” Dona Bezinha conta que ia para o Clube levar suas moças (filhas).
“Eu fazia uma lata de frito, galinha assada ou qualquer outra coisa e elas dançavam a noite inteirinha, e eu só lá, sentada. Depois elas vinham comer na mesa, bebiam água e voltavam a dançar de novo. Quando eu via, o sol já tava ali.” E assim era o carnaval em tempos remotos.
Valdivina, 1963
Não só no carnaval, mas em todos os setores o preconceito imperava contra os pobres e os negros, contra as pessoas que tinham uma conduta que fugia aos padrões pré-estabelecidos da moral e dos bons costumes. Que o digam “as mulheres da vida”, meretrizes, rameiras, mulheres-dama, cortesãs, prostitutas, como eram denominadas. Essas também faziam o carnaval, percorriam as ruas, todas fantasiadas, acompanhadas de uma banda, e faziam a festa delas sem medo de serem felizes, julgadas ou agredidas. A turma do cordão de folia da sociedade, que se incomodavam, fazia de tudo para não encontrar com o cordão das “mulheres rameiras”. O senhor tempo, sem a gente se dar conta, tudo transforma, tudo ressignifica. Quando bem percebemos, estamos ali diante do novo sem saber ao certo quando foi sua chegada. Obedecendo à lei natural do ciclo da vida, a partir da década de 1960, os eventos foram desaparecendo. Primeiro a folia do Clube, depois a da Liga. E novos espaços foram se construindo. Passado alguns anos, surgiu o Pontal Clube, as boates Primavera e Cascata. Aí o carnaval passou a ser nesses locais. No Pontal Clube só participava quem era sócio, na maioria o pessoal da elite, e nas boates participava o povo em geral. Em meados de 1980, com a extinção dos carnavais no Clube e nas boates, ganha destaque o carnaval de rua com bandas tocando a noite todos os dias na praça. Todos podiam participar, o preto e o branco, o pobre e o rico, os grandes e os pequenos, sem distinção, nessa enriquecedora mistura humana em busca do prazer, fazendo e difundindo alegria. Hoje o carnaval em Carinhanha é uma festa muito esperada. Reúne multidões, foliões de várias cidades e municípios vizinhos que desembarcam na cidade para prestigiar e se divertir nos quatro dias de folia. Uma festa que vai ganhando proporções a cada ano, com novas manifestações de brincadeiras de rua, as Caretas são presença indispensável. Estas saem às ruas uns cinco dias antes do início oficial do carnaval. É adolescente, é adulto, é criança. Todos aderem a essa brincadeira se fantasiando da cabeça aos pés, com muita animação e festa. O Carnacarinho, como é conhecido o carnaval local, ainda conta com os famosos blocos da terceira idade: Rosas de Ouro e as Margaridas. Bloco de mulheres, que saem às ruas todos com trajes iguais, acompanhadas com a Banda de Edézio, tocando marchinhas de carnaval.
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Taí eu fiz tudo pra você gostar de mim, Aí meu bem, não faz assim comigo não, Você tem, você tem, que me dar seu coração. Outra marchinha
As águas vão rolar Garrafa cheia eu não quero ver sobrar Eu passo mão na saca-saca-saca-rolha E bebo até me afogar Deixa as águas rolar Se a polícia por isso me prender Mas na última hora me soltar Eu pego o saca-saca-saca-rolha Ninguém me agarra, ninguém me agarra Outra
Ei, você aí! Me dá um dinheiro aí! Me dá um dinheiro aí! Não vai dar? Não vai dar não? Você vai ver a grande confusão Que eu vou fazer bebendo até cair. Me dá me dá me dá, ô! Me dá um dinheiro aí! A alegria vê impressa no rosto de cada participante, não importando se está frio ou se está calor. O que vale é a diversão.
Ainda fazem parte dessa tradicional festa vários outros blocos: 100% Negro, Sem Censura, Tribo do Crocodilo, 100 Limites, Galera do Amém, Pinico, Me Xamega, Camaleão, Tô Te Querendo, Os Inocentes, Beija-For, Os Animados, Embolotando Angu, entre outros. No sábado de carnaval, durante o dia, a festa é na Praia do Pontal. O local fica repleto de pessoas, turistas, vendedores ambulantes, além dos bares locais. Várias pessoas aproveitam para montar sua barriquinha para vender cachorro quente, espetinho, cerveja, refrigerante etc. É montado um palco para receber as bandas que fazem a animação nos quatro dias de festa para os foliões. A praça do cais recebe uma infraestrutura de palco. São montadas várias barracas de bebida e comida (acarajé, cachorro quente, espetinhos), banheiros químicos. Tudo para receber os foliões nos dias de festa. À noite, os foliões tomam conta da praça do cais. Muita gente bonita e divertida, que aproveitam e dançam ao som das bandas, varando a madrugada afora.
Desfile do Bloco Rosas de Ouro
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Março
Semana Santa
“Toda esta descrição me leva a crer que num passado bem distante a maioria das pessoas (devido ao tipo de formação católica recebida) tremia diante das predições e conseguia guardar com muito respeito os dias reservados às devoções, às penitências, aceitando todos esses costumes como algo divinamente sagrado.” O comentário de Aurea Belém expressa com fidelidade o sentimento que atravessa como uma flecha as percepções dos professores e bolsistas envolvidos no Mapeamento Cultural quando falam das práticas culturais da Semana Santa em Carinhanha, depois de ter ouvido os mais idosos e as vozes de suas próprias lembranças de infância. Pra estes, “tudo se passou há muito tempo”, “aquele tempo era melhor do que hoje”. De fato, o que se narra diz respeito a uma geração que hoje está na casa dos 80 anos de idade, e as lembranças dessa geração dos pesquisadores remontam, em média, aos anos de 1980. Os primeiros relatos estão relacionados, sobretudo, à presença da Igreja Católica Romana e o que ela representou como braço da cultura europeia, do colonialismo e dos grupos sociais dominantes entre os “pequenos”. Os segundos dizem respeito aos modos de vida dos “pequenos” de Carinhanha, agricultores e agricultoras, artesãos e artesãs, barqueiros e pescadores, loucos e loucas, brincantes, rezadeiras e rezadores, curadores, parteiras, artistas de toda versidade. Mulheres e homens negros, índios e brancos; geralmente empobrecidos materialmente, ao mesmo tempo principescos em suas artes e pensares.
Ler esses relatos aguça a curiosidade sobre pessoas e estilos de vida diversos dos de agora; mas convida à aventura de compreender como culturas interagem, entram em choque, completam-se, transforma-se e se reconstroem no tempo e no espaço.
A quaresma Áurea Belém propõe olhar para um intervalo mais amplo, os quarenta dias que se estendem da quarta-feira de cinzas até o domingo de Páscoa – a Quaresma. “Em épocas passadas”, diz ela, “quando chegava este
período - considerado época das perseguições a Jesus - o povo rezava todos os dias até o dia da Ressurreição, no sábado da Aleluia”. Na
Semana Santa, última semana da Quaresma, os Dias Grandes, o pessoal tinha o costume de fazer o Jejum na quarta, quinta e sexta-feira.
Alimentos: jejum e ceia A tradição é manutenção de um mesmo gesto, de uma mesma prática que reflete uma imagem que está em algum espelho do passado, guardado na memória do tempo, como o eco de um som muito antigo tocado em algum tempo perdido. Assim é que Aurea Belém reencontra no relato dos mais velhos as suas próprias memórias de infância.
Era realizado por uma família ou por várias pessoas. Começava de manhã na casa escolhida. Não se comia nenhum alimento nem tomava água até no horário do almoço. Não podia comer doce. Era tomado o amargo, bebida feita da raiz de fedegoso ou de bute, plantas nativas da região. O amargo simbolizava o sofrimento que Jesus passou até a sua morte quando tomou vinagre e fel.
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Cada um levava um alimento e todos ajudavam na preparação. Faziam feijão de arranca, feijão catador, arroz, peixe, angu de milho verde, abóbora, batata, mandioca, maxixe, canjica. Chupavam melancia e laranja cortada em cruz. Quando acontece de uma mesma memória ser contada quase em uníssono por pessoas inclusive de idades diferentes, elas formam como que um coro de vozes que soam harmonicamente na orquestra universal das tradições que se repetem de geração em geração, e o fio dessa lembrança compartilhada tece o que se torna comum à “Comun-Idade”. Áurea conta que, depois do almoço, elas pegavam suas vasilhas e iam para o rio, onde se jogavam os restos de comida para as piabas dizendo “Toma essa comida piaba. Eu lhe dou esse ano e você me dá para o ano”. Era uma ritualística. Áurea Belém revive as lembranças do jejum, da mesa farta, várias comidas e frutas, as laranjas de casca bem verdes, as limas de casca esverdeada, o trajeto que o povo fazia da estrada da casa dos pais até a beira do rio, com duas baixas no meio e aquelas roças de pasto, onde só se via capim entrelaçando o caminho. Ao chegar ao porto, avistava um areal movediço e o barranco do rio, de onde desciam por uma escadinha cavada no próprio barranco. Lá em baixo, uma praia de água doce, de onde, dependendo da época, avistava-se uma coroa – uma espécie de ilha temporária que surge quando o rio baixa as águas. O jejum continuava após o almoço até o horário do jantar. Após o jantar, todos pegavam ao mesmo tempo a mesa e a suspendiam três vezes dizendo:
“Vamos levar a mesa ao céu”. Com a mesa suspensa, falavam: “Olha aqui, meu Senhor Jesus Cristo, esse jejum que eu fiz hoje, ou bem feito ou mal feito, o Senhor queira aceitar, pela Sagrada Morte de Jesus Cristo”. As sobras do jantar eram dadas aos cachorros. Logo depois, uns rezavam ali mesmo e outros iam participar da Encomendação das Almas feita longe das casas.
Abaixo de sete anos, Áurea não podia participar. Conta que ficava ansiosa para chegar o seu tempo. Hoje considera aquele um tempo diferente. Mesmo
não havendo festa, havia uma convivência prazerosa baseada na união e no respeito. Isso realçava aqueles costumes. Sobre o jejum, Dalvanice e Lucinete relatam que logo de manhã bem cedinho a pessoa toma uma xícara de café meio amargo e não ingere mais nada até o horário do almoço. Logo que almoça, faz uma oração de louvor, agradecimento e pedido: um Pai Nosso e uma Ave Maria. No intervalo, entre o almoço e o jantar, não come nada. Às sete horas da noite, mais uma vez, faz a mesma oração do meio dia e o jejum se encerra à meia noite. A partir daí pode comer qualquer coisa. Elas assinalam que, para os mais velhos, o jejum tinha o sentido de penitência, quando se busca o perdão pelos erros graves, o pecado. O jejum podia ter a intenção de agradecer por uma graça alcançada ou obter o merecimento de alcançar uma graça pleiteada. Iranildes dos Santos descreve uma outra prática ligada à alimentação, provavelmente originária de outras influências, a ceia da Sexta-feira Santa em família. Ela conta que a família dela mantém a tradição de se reunir neste dia sagrado para fazer uma grande ceia marcada pela confraternização e pela demonstração de carinho; todos unidos mostrando confiança de um para o outro. Os pratos são à base de peixe e a bebida é o vinho. Não comem carne vermelha por representar o sangue derramado da vida de Jesus. Na hora do almoço, ficam de pé, rezam de mãos dadas e bebem o amargo, feito com raízes de plantas medicinais.
Pais e filhos, padrinhos e afilhados Dalvanice e Lucinete lembram que na sexta feira, logo ao amanhecer o dia, tinha que ficar de joelhos e pedir a bênção aos pais e padrinhos. E havia uma ritualística a ser cumprida:
Filho ou afilhado: Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, bênção! Pais ou padrinhos: Para sempre seja louvado! Nossa Mãe Maria Santíssima e Deus o abençoe!
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Proibições As diferenças notadas são apontadas por Edimaura Sena Guedes recorda a Semana Santa da época em que sua mãe era viva, morando na zona rural de um município vizinho. Diz ela que
Não podia xingar, não podia tomar banho, olhar-se no espelho, namorar, cantar, dançar e até assobiar. Seriam sinais de uma alegria incompatível com um momento tão triste. Manter relações sexuais durante a Semana Santa seria pecado mortal, até mesmo usar batom e perfume. Não se varria a casa, e quando era impossível deixar de fazer, deixava o lixo atrás da porta. Não se comia carne durante toda a semana. Já atualmente as pessoas só guardam a Sexta-Feira Santa. Dalvanice e Lucinete lembram que na casa dos pais, na Sexta-Feira Santa, nem as Marias nem as Anas podiam tomar banho, nem pentear o cabelo. Ficavam meio isoladas dos outros e só no sábado, bem cedo, tomavam banho e tiravam a aleluia.
Na minha casa não se comia carne durante umas três quarta-feiras antes da Semana Santa, pois tinha a semana da Quaresma, das Dores e da Paixão. A Semana da Paixão era a “pior” de todas, pois não podíamos nem andar pela fazenda. Os meus pais diziam que fazia mal, Deus castigaria a gente. Não montávamos a cavalo, pois não podia botar o arreio. Quando íamos rezar no cemitério mais próximo à nossa fazenda, apenas as crianças eram montadas nos cavalos, arreados apenas com o cabresto para Deus não nos castigar. E não podia ir a galope, tinha que ser bem devagar senão aconteceria algum castigo como caírmos do cavalo, machucar em alguma cerca, o cavalo disparar... Não podíamos tirar nem beber o leite que este virava sangue, só as crianças podiam (beber).
Áurea recorda que neste período não podia ter festa, não podia dançar, xingar, cantar, bater, nem mesmo nos animais. “Mãe não podia bater nos filhos.
Se algum dos filhos fizesse algo contrariando a mãe, ela teria que deixar para o sábado da Aleluia. Quando era no sábado a mãe dizia “agora vou tirar a aleluia” e batia na criança”. Raimundo Nonato Sena conta que em época de semana santa até o café se fazia amargo. De acordo com Maria Aparecida Oliveira de Sena,
“Antigamente o povo não comia na mesa eu era minina (menina) e alcancei o povo colocava o lençol no chão e comia todos sentados no chão, fazia as orações de agradecimento e os restos de comida jogam em cima da casa, o povo jejuava, era um dia de não fazer muitas coisas, não varria a casa, não toma banho neste dia, não podia falar e nem conversar alto, não montava a cavalo”.
Rezas e cantos em casa e na rua Dalvanice e Lucinete rezava muito o tempo todo. A minha mãe cantava uma música que não lembro muito bem. Sei que desde a segunda feira ela iniciava e todos os dias à noite ela cantava. Era mais ou menos assim:“segunda feira da semana santa aonde que meu Deus está?”. E assim repetia todos os dias até a sexta feira. A via sacra é constituída de orações e cantos. Os pontos onde a caminhada para reza são as estações. São 14 estações. Geralmente, as vias sacras acontecem às quartas, quintas e sextas feiras santas.
O sábado de Aleluia Dalvanice e Lucinete contam que, no sábado, bem cedo, todas levantavam e ficavam do lado de fora.
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“A minha mãe colocava uma bacia de água no meio do quintal e minhas irmãs mais velhas ficavam deitadas olhando a aleluia aparecer. Às oito horas da manhã, a aleluia aparecia. Elas contam que era uma bolinha redonda bem amarelada. Outras falam que era um beija-flor bem rápido, mas eu acho que era o sol aparecendo na água sobre a bacia, pois elas tinham que ver logo aleluia senão minha mãe não matava as galinhas nem fazia café da manhã antes da aleluia aparecer.” Então, todas tomavam café e em seguida iam para a fonte (lagoa) lavar roupas. Cantando
Uma lavadeira, com o beija flor, lavando os paninhos de Nosso Senhor, quanto mais lavava o sangue escorria, sua mãe chorava os Judeus sorria. “Essa musica era infinita e chorávamos muito lembrando o sofrimento de Jesus”, relembra. As duas contam que, na noite de sábado, iam para o povoado próximo comemorar a aleluia e aproveitavam da melhor forma que podiam, “tirando o atraso”, como se diz por aqui quando se quer dizer da tentativa de se “recuperar o tempo perdido” e nos domingos comemoravam apenas a ressurreição de Jesus, sem chocolates, sem ovos de páscoa. No sábado, teria que esperar a Aleluia aparecer. Quando a Aleluia aparecia, todos iam rezar e soltar foguetes para comemorar a Ressureição de Jesus. No domingo de Páscoa, não se comia peixe, já se podia comer a carne vermelha. Na sexta-feira, acontecia a Procissão de Senhor Morto e no Sábado da Aleluia a queima de Judas.
O ritual da Igreja Católica O primeiro domingo que antecede a Semana Santa é o domingo de ramos, e há uma procissão grande com ramos de qualquer planta e a representação de Jesus no templo. Doze homens se vestem de discípulos e 01 representa Jesus, que vai montado em um jumentinho. Na Quinta-feira que antecede a Sexta Santa, há uma celebração na igreja e também a encenação do lava-pés. Na Sexta-feira Santa, há uma procissão com velas acesas, cantos e orações. Nesse dia, a caminhada serve como penitência, pois se caminha tanto que as pernas doem muito e os pés enchem de calos(bolhas de água). Sábado de aleluia é um dia normal e se come carne. É também o dia de queimar o Juda. “As pessoas confeccionam um boneco bem feio e tacam fogo nele”. No domingo de páscoa, comemora-se o ressurgimento, a volta, a ressurreição de Cristo.
O lava pés O ritual de lava pés é a simbolização da caminhada de Cristo e seus discípulos. As pessoas se reúnem na Igreja para essa celebração, onde um animador e mais doze homens senta em frente ao altar representando os doze apóstolos com o gesto significativo: o lava pés. Vestidos de branco, todos fazem a liturgia da palavra lendo e dramatizando o gesto de Jesus com os seus discípulos e seu povo.
A limpa do cemitério Ana Maria e Maria do Socorro descrevem a celebração da Semana Santa na comunidade de Lagoa Dantas. Aproximadamente vinte e duas famílias de agricultores, seleiros, oleiros, crocheteiras, sacoleiras: Raimundo Nonato de Sena e família, Milton Pereira de sena e família, José Raimundo Sena de
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Carvalho e família, João Freire de Carvalho e família, Cosme Sena de Carvalho e família, José Antônio Dourado de Sena e esposa, Carlos Mendes de Oliveira e família, Nilza Dourado de Sena e família. Raimundo Nonato de Sena, Milton Pereira de Sena e Maria Aparecida Sena de Oliveira, filhos de João Soares de Sena e Suzana Pereira de Sena (In memoriam), dizem que a limpa do cemitério surgiu há muito tempo. Raimundo conta que “desde quando eu me entendo por gente” acontece a limpa do cemitério. A limpa do cemitério consiste, como o próprio nome diz, em limpar o cemitério, organizá-lo, arrancar-lhe o mato, varrer as lajes e os túmulos, enfim, prepara-los para as visitas que acontecem na Semana Santa.
Curiosidades Dizem que no período da Semana Santa, alguns homens viram lobisomem. Na Semana Santa, dizem que se se matar uma cobra peçonhenta, fica-se protegido durante o ano todo.
A Lamentação ou Encomendação das Almas A Semana Santa, também chamada de Semana Maior, recorda aos cristãos o sofrimento e a morte de Jesus. Seus rituais convidam à reflexão sobre o sentido da vida. Nesta época, parte da população de Carinhanha, por influência da formação católica, cultiva a espiritualidade: guarda silêncio, faz jejum e penitência, participa de celebrações. As cerimônias da liturgia oficial da Igreja Católica acontecem no interior dos templos. Como parte das práticas do denominado catolicismo popular, nas derradeiras horas da noite e início da madrugada, um grupo de mulheres e de homens percorre as ruas desertas da cidade ribeirinha. Entoando cantos e preces, alertam os vivos sobre a realidade após a morte e pedem pelas almas dos que já se foram.
Esta prática é conhecida como a Lamentação ou Encomendação das Almas. Silvio Romero, em seu Estudos sobre a poesia popular do Brasil, livro da segunda metade do século XIX, já registra essa prática assim a descrevendo: Em certa noite do ano saem os penitentes, de matracas em punho, a cantar em tom lúgubre composições adequadas. Vão parando de porta em porta sobretudo nas casas de certas velhas a quem querem aterrar 3.
O que acontece anualmente nas ruas da cidade de Carinhanha pode ser considerado a versão local e atualizada de um costume incorporado através do processo de colonização. O Dicionário do Folclore Brasileiro registra que, na Europa, “até meados do século XIX, nas sextas-feiras da Quaresma ou durante o mês de novembro (mês das almas), saíam procissões noturnas em sufrágio das almas do purgatório. Muitas não eram dirigidas pelos sacerdotes. Cantavam rogatórios, ladainhas, rezando rosários, e detinham-se ao pé dos cruzeiros, para maiores orações, em voz alta.”4
A lamentação: devoção, medo e molecagem Se para os praticantes do ritual, a Lamentação das Almas é penitência para prevenir os vivos e favorecer os mortos, os que não partilham das crenças vêem nela um costume esquisito e lúgubre. Talvez certas particularidades do ritual provoquem a sensação de temor do desconhecido. As encomendadeiras, homens e mulheres, percorrem a cidade na escuridão noturna carregando uma cruz e entoando as preces lamentosas em frente a igrejas, cemitérios, cruzeiros e nas encruzilhadas. Cobrem-se com lençóis brancos semelhantes a mortalhas. Cantos e preces advertem os pecadores vivos sobre a possibilidade constante da morte ou pedem misericórdia para aliviar o sofrimento das almas. A cidade adormecida estremece com o som da matraca, que, para muitos, se assemelha ao canto agourento da coruja.
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Certamente devido a estas características, a Encomendação sempre tenha atiçado a curiosidade, mesmos em épocas em que as regras de convivência eram rígidas e maior o temor de quebrá-las. Há muito desrespeito com relação às encomendadeiras. Esse desrespeito chegou, algumas vezes, até a agressão. Uma indiscrição muito comum e menos ofensiva é chegar mais cedo, dissimuladamente, nas paradas, e esperar o cortejo. Em alguns casos, pela mera expectativa de ver de perto. Quem sabe, reconhecer alguém. Mas havia os casos em que a intenção era fazer troça, imitando os cânticos do grupo ou tirando brincadeiras de mau gosto. Nestas histórias, sempre há referências aos jovens. Dona Joana Dias da Silva, referindo-se às brincadeiras mais ofensivas, que ela sofreu, conta que
Eles amarravam um mata paço (mata pasto), naquela Rua de Conde. Pegava o mata paço, marrava. Pegava o boi e soltava e quando a gente ia cantar - Alerta, Alerta... Ai ai ai! Saía as mulheres correndo, passando por cima do mata paço e era uma brincadeira (risos). Já havia outros que fazia questão de matar cobras e colocar nas paradas. Quando chegava para tirar o bendito, saía correndo. Toda vida teve malandragem. E teve um tempo que Aniceta ficou tão acoada com Chico de Ozebio e outros, que foi rezar na Lagoa Seca. E aqui não teve por causa da malandragem. Continua o depoimento de Dona Joana:
Lembro que no tempo da finada Raimunda Preta a malandragem era tanta que os jovens jogavam bomba nas mulheres, mandavam tirar aquela máscara ou então falavam: Ei careta!
Houve época que a polícia teve que acompanhar o grupo para que pudessem rogar em paz. Devido a estas atitudes, e provavelmente em razão também das mudanças nos costumes e na formação religiosa, a Encomendação das Almas fraquejou ao longo dos anos, notadamente após o falecimento da Senhora Marina Barbosa. Em 2012, depois de dois anos sem se realizar, o cortejo saiu devido à persistência dos jovens José Luis Elfinin e André Monteiro da Silva, Andrézinho, e de um grupo de devotas, Julieta, Orelina, Jumária, Antonia, Geralda Osório Lopes, Cecília Pereira do Nascimento, Lúcia Costa do Ouro, Iara Rodrigues dos Santos, Vanda Oliveira Ramos, Inês Cabral Gonçalves do Rego e Bela. Este ano ainda, o desrespeito e a ignorância ficaram patentes na reação das pessoas que passavam de carro, indo ou vindo para o Pontal. Uns jogavam pilhérias: “Ei caretas! Olha a assombração aí gente!”. Outros procurando assumir uma atitude mais respeitosa diziam: “Reza pra nós avó que vamos pegar a estrada!”.
O ritual em Carinhanha Informações dos participantes localizam o começo desta devoção em Carinhanha a partir de meados dos anos de 1940. Daquela época, os nomes mais lembrados são o de Dona Aniceta, esposa do Senhor Bibiano, e o de Esterlita Dias de Oliveira. Participavam também Joana Dias da Silva e Raimunda Preta. Mais recentemente, citam o nome de Marina Barbosa dos Santos. Dona Joana Dias da Silva oferece um valioso depoimento sobre as atitudes que asseguraram a permanência do ritual em momentos de transição social e situações ameaçadoras à sua continuidade:
Quando Aniceta morreu, Esterlita tomou conta. Levou muito tempo com Esterlita. Aí, Esterlita adoeceu e pediu eu e mais Maria pra que seguisse, não acabasse a Lamentação das Almas. Aí eu mais Maria disse: - Como é que nós faz? Vamos
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atrás de Raimunda Preta. Aí, nós fomos na casa de Raimunda e Raimunda disse: - Eu não sei, como é que vou? Eu não sei rezar. Nós respondemos: - Aí nos acompanha você. Então, o tinha eu, Maria e Raimunda na frente. Aí ela: - Então vamos. A memória de Dona Joana destaca uma informação relevante para compreender tanto o peso sociocultural desta prática devocional como certas feições da relação de representantes oficiais do catolicismo com os praticantes dos rituais “populares”. Diz ela que
Então, com a continuação do tempo, Dona Carmem mais o Padre Souza disse que aquelas prece dava de incluir na Igreja. A reza incluía na Igreja. Aí mandaram nós ir pro altar, lá pro lado de cima, rezar. E nós fomos... Aí nós fomos e continuamos sempre rezando ali. O sacerdote citado é o Padre José Evangelista de Souza, da Congregação da Missão. Exerceu seu ministério no sertão de Carinhanha e de Cocos entre 1980 e 1988. Padre Souza fundamenta sua ação pastoral na Teologia da Libertação. Por isto, torna-se pesquisador da história e da cultura do povo do São Francisco e um incentivador das lutas populares, destacando-se como assessor da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP)5.
Símbolos Os lençóis brancos enrolados sobre os corpos à moda de mortalhas, a cruz misteriosa do sacrifício, as encruzilhadas solitárias, os pátios desertos de igrejas, os cemitérios e seus mortos silenciosos, a batida seca da matraca, o coro das exortações ampliado pela ventania friorenta que vem do Rio. Objetos e situações, sons e silêncios cheios de simbolismos. Este conjunto de sinais acontece e ganha sentido no interior do símbolo que os envolve: o percurso da caminhada. Quando se observa a localização das paradas no mapa da cidade e se refaz o itinerário dos fiéis é possível perceber que a ligação dos pontos evidencia a forma de uma cruz.
A natureza dos lugares em que acontecem as principais paradas e os rogatórios (igrejas, cemitérios e cruzeiros) guarda também seus sentidos. As que acontecem no patamar dos templos reforçam a ligação com os ritos ortodoxos do catolicismo. As pausas diante dos cruzeiros sublinham os sinais da religiosidade popular. Estas cruzes geralmente estão vinculadas a tragédias pessoais ou coletivas e à busca da intercessão de almas milagrosas. Os cemitérios são a evidência incontestável da validade do próprio ritual, pois para ali todos virão um dia. A parada do cortejo nas encruzilhadas é motivo de interpretações divergentes. Quando perguntada se há um lugar especifico para rezar o Pai Nosso, Dona Joana responde enfática que em encruzilhada não louvam o Senhor Jesus; tiram um bendito.
- Não! É onde Zé Luiz está protestando comigo! A encruzilhada não existe nada que presta! A gente não pode louvar Nosso Senhor Jesus Cristo numa encruzilhada! Louva Nosso Senhor Jesus Cristo no lugar que tem cruz ou que foi igreja e que acabou, mas aquele lugar foi consagrado. Agora, quando é na encruzilhada, que acontece a gente parar na encruzilhada louva assim: Lembrai irmãos das almas, amigo de Jesus Cristo! Ela refere ao jovem José Luis Elfinin, que, diferentemente dos integrantes de mais idade, não atribui à encruzilhada as características negativas. Dona Joana reforça os argumentos dos mais antigos:
Zé Luís não quer aceitar! Se na encruzilhada tem é Exum e Exum não louva. Exum gosta de acidente, de bagunça. Isso é que Exum gosta. Aí oferece o Pai Nosso. Na encruzilhada é bendito, e na igreja e no cruzeiro, o Pai Nosso.
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O som da matraca não apenas anuncia a procissão penitencial e rogativa, indica aos devotos determinados procedimentos, como fazer as paradas ou reiniciar a caminhada. O Dicionário do Folclore Brasileiro descreve a matraca como “um instrumento de percussão, de madeira, com uma ou mais tábuas, que se deslocam, percutindo a própria plancha onde estão presas, quando se oscila o instrumento”. Acrescenta que “produz um rumor seco, persistente. É de origem oriental, servida pelos sacerdotes para orientar os devotos nas genuflexões e dirigir os desfiles. Na liturgia católica, figura durante a Semana Santa, Quinta Feira e Sexta feira da Paixão. Na gafarias da Idade Média, os leprosos eram obrigados a fazer-se anunciar, agitando uma matraca”6. A escolha de quem conduz e toca a matraca, e quem leva a cruz, expressa o reconhecimento da pessoa pelos pares. Durante muitos anos, Raimunda Preta conduziu a matraca e a cruz. Hoje, as duas são carregadas por pessoas diferentes. Conta-se que Raimunda teria feito uma advertência: a indicação de sua sucessora na função seria feita por ela. A desobediência a este preceito poderia ocasionar algum mal a quem desobedecesse. Acontece que Raimunda faleceu sem ter oportunidade de fazer a nomeação, e diante do risco, por anos, evitou-se carregar e tocar a matraca. O impasse foi resolvido este ano, quando o jovem José Luis Elfinin resolveu assumir o tão temido encargo.
O percurso, os cantos, as orações A peregrinação começa no portão do Cemitério Nossa Senhora Santana com o toque da matraca. Ali, acende-se uma vela que permanece depositada no portão e se canta o “Alerta, pecadores!”.
Alerta, Alerta, Alerta, Pecadores! Hoje vivo e amanhã morto! (bis) Vida breve e o tempo chega! Quanto mais, menos espera Mais depressa o tempo chega! Pecadores, irmão meu, Ouve missa e se confessa! Faça a sua penitência Olha o fogo do inferno!
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Na sequência, duas pessoas do grupo começam a cantar o bendito:
Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo Louvado seêêêja. Louvado seja Lou- va- do se-ja A paixão do Redentor Do Redentor (3X) Um Pai Nosso com Ave Maria Ave Mariaaaa (mulheres) (3X) Para a todos aqueles que morreram sem a luz de Deus Sem a luz de Deus (3X) Para que Deus Nosso Senhor Cristo tenha eles na sua eterna glória Eterna glória (mulheres) (3X) Seja tudo pelo Divino Amor de Deus Amor de Deus (mulheres) (3X) Amor de Deus seja Após entoarem o bendito mais uma vez, soa a matraca no silêncio da noite, uma pessoa tira o Pai Nosso. Antigamente o tirador era João Leli. Hoje é a Senhora Julieta:
Mais outro Pai Nosso! (bis) Com uma Ave Maria! (bis) Para todos aqueles, que morreram sem a luz de Deus! Sem a luz de Deus! (bis) Para que Deus Nosso Senhor Jesus Cristo! Tenham eles em sua eterna gloria! Eterna gloria! (bis)
Sejaâââââ! Seja tudo pelo Divino Amor de Deus! Amor de Deus! Amor de Deus seja! A matraca é tocada e duas pessoas fazem o rogatório, respondido em voz alta por todo o grupo, três vezes:
Senhor Deus, Misericórdia! Misericórdia! Senhor Deus, Misericórdia! Misericórdia! Senhor Deus, Misericórdia! Misericórdia! O grupo inicia o percurso, rompendo a noite e a madrugada, e em cada parada repete as orações e cantos. Ao chegar ao final do roteiro, a Igreja Matriz de São José, canta e reza os mistérios do rosário. A procissão para diante das Igrejas de Santa Luzia, no bairro Alto da Colina, a de São Francisco, que tem o mesmo nome do bairro, a da Sagrada Família, no Alto do Paraíso e na Igreja Matriz de São José. Existe mais uma parada, excepcional, na Avenida Santo Antônio, entre a casa do Senhor Demócrito e o Depósito de Chicório. Neste local, dizem os mais velhos, existia a Igreja de Santo Antonio. O nome da avenida teria se originado do referido templo. A peregrinação faz interrupções diante dos cruzeiros: o de Nossa Senhora Santana, próximo ao Rio Carinhanha, na Rua de Baixo; o da Santa Cruz, no bairro do mesmo nome; o cruzeiro do Zé Pedreiro, que fica no fundo do prédio dos Correios; e o cruzeiro do Bexiguento, localizado na estrada que vai para o Pontal.
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Percurso e pontos de parada durante a perigrinação
Sobre o Cruzeiro do Bexiguento conta a tradição que ali foi enterrado um homem vitimado por uma doença que causou feridas em todo o corpo, provavelmente a bexiga. Outros indivíduos que morreram de mal semelhante foram ali enterrados. O cerimonial exige que as paradas sejam em número impar, o número sete. Somente na sexta-feira santa fazem 14 estações. O trajeto é o mesmo todos os dias, pois segundo a Senhora Lucia Costa, o objetivo deixado pelos mais antigos é trazer todas as almas para a igreja. Ao encerrar a Lamentação o grupo canta a despedida de mais um ano de ritual.
Despedida, despedida Despedida de Belém Irmãs das almas Oh, de Belém, irmãs. Se algum de nós morrer, até o dia de juízo Irmãs das almas. Oh! De juízo, Irmãs das almas.
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Festejos de São José Seu Honorato Honorato Ribeiro dos Santos nasceu em 21 de Dezembro de 1934. Atualmente, é escritor, historiador e escreveu vários livros a respeito da história de Carinhanha, dois dos quais estão sendo incansavelmente referenciados neste trabalho. Seu Honorato é também uma pessoa muito querida e respeitada na cidade. É ele quem nos conta a respeito dos festejos de São José. Diz ele que
“primeiro a igreja era só uma capelinha. De um lado e de outro tinha um arco e essa tinha como santo protetor São Caetano. Depois que foi descoberta a paróquia, reconhecendo que ela começava em Paracatu, perto de Pirapora, ficou decidido que toda região, inclusive Carinhanha, pertenceria à diocese de Cidade da Barra. Foi só depois disso que a cidade recebeu o nome de Vila de São José de Carinhanha. A partir daí, veio o primeiro bispo e padre e tomou conta de Carinhanha (ou da Paróquia de São José, mesmo que São Caetano tenha ficado do lado do altar)”.
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Conta ele que aqui, havia, no começo de 1942 a 1943, uma filarmônica chamada Euzépio 19 de abril, do maestro Antônio Vilares que era pai de Dona Madalena Vilares Barral. “Essa foi a maior banda que já tivemos aqui.
Ela tocava muitos dobrados difíceis, tocava valsa, chula, tocava tudo”, comenta Seu Honorato que também é músico, foi professor música
durante muitos anos e organizava também a banda conhecida até hoje como a Banda de Seu Honorato.
Conta ele que todas as noites a banda do maestro Antônio Vilares tocava. Tinha alvorada toda noite. Aí, em cada noite, por exemplo a noite dos pescadores, eles todos se ajuntavam e saíam com uma lista pedindo ajuda para a realização da alvorada.
“Quando entrava o povo, naquele tempo tinha o coro, e botava aquelas cortinas bonitas de um lado e de outro. Cada um queria uma noite mais bonita, mais engalanada (cheia de pompa), mais cheia de flores. E era bonito mesmo todo esse ornamento. E aí se perguntava sobre qual era a noite mais bonita. A partir daí começava uma linda disputa envolvendo muita beleza e fé”.
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A noite mais disputada, segundo Seu Honorato, era a dos rapazes e das moças. Conta ele que os rapazes fechavam a igreja e ficavam o dia inteiro arrumando. Só abriam a igreja na hora da novena começar. Havia um rapaz chamado Antônio Pecó, cunhado de José Lima. Seu Honorato diz que ele era um homem terrível. “Tinha uma arte danada”, explica. Quando arrumação que Antônio Pecó fazia ficava pronta, dava pra ver São José no altar,
“mas parecia que estava no céu, aquela coisa de pano, de véu... ele fofava de um modo que parecia o céu, as nuvens... e aí aquela cortina bonita, aquelas flores. Era espetacular!” Todos ficavam na expectativa de ver esse grandioso espetáculo. “Mesmo
valorizando o religioso o pessoal competia mesmo, como se fosse uma escola de samba, com seus mais belos enfeites”. Observa Seu Honorato.
Maestro Antônio Vilares - 1947
Quando chegava o dia dos casados, ou dos casais, vinham Joaquim Araújo, Jorge Navarro. Na arrumação e na beleza do altar, esses dois eram imbatíveis. Naquela época, havia ainda a noite das crianças, dos rapazes, das moças, das viúvas. A noite dos pescadores e lavradores era realizada em conjunto. Havia, além dessas, a noite dos artistas, em que apareciam carpinteiros, pedreiros, alfaiates, ferreiros, flandeiros, marceneiros etc. Quando terminava a missa, a procissão se organizava em fila, de um lado e do outro. A procissão saía da igreja, rodava na rua de baixo, passava pela rua 02 de Julho, saía na prefeitura e vinha para a rua de cima.
“Era bonito, pois todo mundo era católico praticante. Naquela época também não tinha missa à noite, era sempre de manhã. À noite, era novena com ladainha e coro lá em cima, com harmônico, e tudo cantava lá. Eu mesmo toquei muitas vezes lá no órgão e o coral cantando, era muito bonito.” Na véspera da festa, segundo Seu Honorato, havia o leilão em honra a São José. Quem gritava o leilão era o Sr. Eremito Fumo e José Perninha. Tinha boi, bode, ovelha, mamão, galinha, vara de cana. Hoje, não se realiza mais o leilão, no lugar, agora, realiza-se um grande bingo para arrecadar fundos. Banda de Honorato
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São José foi talhado aqui mesmo. A imagem era feita de cedro e havia na peça uma coroa feita toda de ouro maciço, parafusada na cabeça da imagem. A imagem foi roubada e até hoje ninguém sabe de seu paradeiro. Depois disso, comprou-se a imagem que está ali até hoje. Essa imagem veio de vapor.
“Lembro que no dia que chegou, teve uma festa que aglomerou mas foi tanta gente para buscá-la!” diz Seu Honorato.
Dona Elvira Dona Elvira Nascimento Santos nasceu em Carinhanha, no ano de 1938, na rua Duque de Caxias. Hoje, está com 73 anos. Segundo ela, foi em 1950 que chegou aos cais de Carinhanha a famosa imagem de São José trazida pelo vapor São Francisco. Essa, por sua vez, foi buscada pelo Pe. Emílio e, juntamente com os católicos e a banda filarmônica Pedro Leite, vestida de branco e regida pelo Sr. Evilázio, pai de Dona Madalena. Dona Elvira conta que foi uma procissão muito bonita, que levou a imagem não para igreja, mas para casa do senhor Claudimiro Santos, pois o altar mor da matriz ainda estava por terminar. Rua 2 de julho
Depois que a imagem já estava no seu devido lugar, continuaram os festejos de São José sob a organização de Pe. Emílio. Apesar de ser uma festa simples, era muito rica de fé. O Pe. Emílio era um espanhol que morou em Carinhanha durante uns cinco anos. Ele não sabia falar português, mas mesmo assim foi um grande catequista. Como a praça a matriz era toda de areia, Pe. Emílio fazia uma fogueira e nela cozinhava muita canjica em um panelão e uma grande colher de pau. Ele distribuía para todos e, além disso, fazia quermesse com brinquedos e prêmios para as crianças. Comunidades próximas como Bebedouro, Canabrava e outras também participavam dos festejos. A paróquia, além das comunidades rurais, englobava também as cidades de Feira da Mata, Cocos, Malhada e Iuiu. Vinha muita pessoas dos mais diversos lugares para pagar promessas ou somente rezar junto a seu santo querido. Pelo fato da paróquia pertencer à diocese de Cidade da Barra, o bispo praticamente não vinha para os festejos em nossa cidade, pois era muito longe. O roteiro das procissões de todas as festas religiosas era sempre o mesmo: saía da igreja, passando pela rua Santa Efigênia, descia a Avenida São José e subia na Duque de Caxias retornando para matriz. Banda Filamôrnica Pedro Leite
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Dona Elvira conta que,
“na construção da Igreja Matriz, já quando estavam trabalhando no telhado, um trabalhador ao colocar uma linha de madeira acabou se machucando. Isso fez com que ele soltasse um palavrão dentro da igreja. Eles terminaram o serviço do dia e foram embora. Conta-se que São Caetano, o santo que até então era o padroeiro, jogou a linha de madeira colocada pelos trabalhadores longe no meio da rua, pois não tinha gostado da atitude do homem”. Durante muito tempo, as missas eram todas rezadas em latim, e o povo ficava sem saber o que fazer. Então, se passou a rezar o santo terço na hora da missa. A primeira missa celebrada aqui em português foi em 1964, pelo padre Celestino. O mastro da festa de São José era buscado na casa do festeiro e vinha nos ombros de mais de vinte homens, com a banda tocando ao largo.
“Atualmente, existe, por parte de algumas pessoas, a intenção de recriar a Irmandade de São José, mas isso nós vamos ver” arremata
seu Honorato.
Vaquejada da Agrovila XXIII Agrovila XXIII A Agrovila XXIII é um povoado de Carinhanha. Foi a última Agrovila a ser construída na época da reforma agrária, na década de 1980. Fica a aproximadamente 70 km da sede do município. Limita-se com os povoados de Alagoinhas (município de São Félix do Coribe), com Agrovila XVI e Canabrava. Foi um assentamento fundado pelo INCRA em 1984, no qual foram assentadas, naquela época, duzentas e cinquenta famílias, com a finalidade de desenvolver as atividades na área da agricultura e pecuária. Hoje, o povoado já aumentou bastante, e traz em sua história algumas culturas típicas do comportamento do seu povo.
Pretinho Mascate O caminho de Carinhanha rumo a Serra Geral, quilômetros mais quilômetros, é uma estrada de curvas e mais curvas, subidas e descidas. A medida que se sobe, consegue-se ver as pontas das rochas em formato de torre de igreja. Passase por uma pedreira e grotas. Quem chega ao pequeno vilarejo de Alagoinhas, à boca da noite, ao sol poente, pode avistar a pracinha movimentada. Bem em frente está Pretinho, na casa de sua mãe, que, relembrando seu trajeto na Agrovila, aos poucos conta a história da “Vaquejada da Agrovila XXIII”. A tradição da vaquejada na Agrovila XXIII começou no ano de 1989. A ideia inicial foi dele, Edenilton Pereira, conhecido popularmente como Pretinho Mascate, ou Preto Baiano, que na época convidou Vicente Trindade e Teófilo para, juntos, organizarem a vaquejada. Logo se percebe que os três amigos possuíam os critérios de comungarem junto o sonho de realizar essa cultura do Nordeste brasileiro. Resolveram, então, fazer uma pista, local onde se corre a vaquejada.
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A pista Como todo sonhador, Pretinho queria realizar a qualquer custo o seu sonho da vaquejada e, para isso, teve que arregaçar as mangas e mãos à obra. Para construir a pista, Pretinho trocou dois hectares de terreno dentro da rua por um hectare e meio de terreno no matagal, tudo isso a fim de levar adiante o que dissera ao povo. Para essa demanda da construção da pista, ele teve que contar com a ajuda de muitas pessoas e principalmente de Deca de Tintino, porque era muito trabalho, tinha que roçar, arrancar tocos com boi, arar a terra com boi, fazer cerca, fazer curral, colocar areia na pista, fazer banheiro, uma tarefa muito árdua. Então, mais pessoas precisaram ajudar. Quem pegou no pesado mesmo, no entanto, foi Pretinho e Deca de Tintino, que ficou até o final. Mas, como tudo na vida depende de muito esforço e recursos, chegou a um ponto em que Pretinho já estava quase desistindo, porque queria fazer o “Bolão” (uma vaquejada menor), mas nada da pista ficar pronta, e nada do material ser suficiente. Para completar, o povo ficava cobrando o que ele havia prometido. Foi quando ele teve a ideia de pedir ajuda à prefeitura de Carinhanha. Então, foi para a cidade e, chegando a Carinhanha, Pretinho conversou com o prefeito e ele perguntou se Pretinho daria alimentação para o pessoal das máquinas. Pretinho concordou e, então, foram enviadas três caçambas e uma pá enchedeira. A pá ficou no areal e as três caçambas deram várias viagens pegando o barro no areal e levando para o lugar onde ocorreria seria a pista.
Então, foram colocadas lá doze caçambas de areia. Com tudo isso, fica claro que, de fato, Pretinho queria levar adiante o seu plano e, consequentemente, alegrar o povo que aguardava ansiosamente por aquele momento. Mas, depois de muita persistência do vaqueiro Pretinho e de seus colaboradores, a pista ficou pronta, e ele dera o nome de Parque Mundo Novo.
Patrocinadores Depois de tanto sufoco, os ventos pareciam naquele contexto soprar a favor de Pretinho, pois muita gente ajudou para que tudo desse certo. Seu tio Nenen Mascate deu a madeira para fazer a cerca do curral. Zé Tim deu cesta básica para alimentar a vaqueirama. O pessoal ficava na casa dos três organizadores: Pretinho, Vicente e Teófilo, mas principalmente na casa de Pretinho. E os ventos continuavam soprando a seu favor, pois a vaquejada organizada por eles recebeu vários patrocínios que vieram da prefeitura de Carinhanha, de algumas pessoas que trabalhavam com comércio em Carinhanha, da própria Agrovila XXIII e de outras Agrovilas também: banda musical, cartazes, palanque, máquinas para trabalhar na construção e reforma da pista; areia, arame, policiamento e outros. Uma pessoa que sempre o ajudou desde o início da vaquejada, na organização do dinheiro e das senhas, foi Aloísio de Nego Gravatá, de Canabrava. “Ele sempre fez esse trabalho e nunca cobrou por isso, fez para ajudar e porque gostava”, comenta Pretinho.
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Realização das vaquejadas Em 1989, aconteceu o primeiro “Bolão”. Foi num Sábado de Aleluia, a boiada foi com os gados de Pretinho, Vicente e Teófilo. Nesse Bolão, a boiada foi composta com mais ou menos 120 novilhas, das quais sete quebraram as pernas, porque a pista ainda era a base de terra dura, havia sido arada com boi. Como se tratava de um evento que tinha importância para o lugar, as novilhas quebradas foram vendidas para Manoel Cuiúda e para o tio de Pretinho, Tõe Mascate, que trabalhavam com açougue, o que amenizou mais o prejuízo. De qualquer modo, esse “bolão” trouxe grandes expectativas para o público da vaqueirama, pois vieram vaqueiros da região de Carinhanha e da Agrovila V, para cá. “Houve uma boa concorrência”, relembra Pretinho. Com um entusiasmo que contagiava a equipe de organização, Pretinho conseguiu realizar a segunda vaquejada, em 1990. Nesse ano, a prefeitura de Carinhanha arrumou caçambas de areia para preparar melhor a pista. Nessa vaquejada, a boiada foi de Nelson Correia, Raimundo Pedro e o restante do gado era de Pretinho, Vicente e Teófilo; mais ou menos uns 120 gados ao todo. Nesse ano, houve confecção de cartaz, premiação, festa dançante para o público apreciador. A vaquejada já estava firmada como evento tradicional do lugar, porque Vicente, Pretinho e Teófilo, nessas alturas, já participavam de outras vaquejadas em outros lugares, faziam a divulgação e convidavam vaqueiros de outras localidades para concorrem na vaquejada da Agrovila XXIII. Das seis primeiras vaquejadas, a boiada era composta pelos gados de várias pessoas: Raimundo Pedro, seu pai Joaquim Antônio Pereira, Dorival e Luiz Pinto. Nessas primeiras vaquejadas, uma das mais concorridas foi a quinta, quando compareceram duzentos vaqueiros e mais ou menos oitenta senhas. Nessa, já tinha mais ou menos uns duzentos e quarenta gados.
O esporte Muito ciente do que estava falando e, de certo modo, muito satisfeito, Pretinho diz que essa cultura é conhecida por toda região e reúne pessoas de várias cidades. Realizada durante dois dias, é um esporte que atrai muitas pessoas. Gente de todas as idades, de todas as classes sociais, de todos os gêneros. “Depois do futebol”, diz ele, “é um dos esportes em que mais corre dinheiro”. Na época das vaquejadas, Pretinho consegue empregar várias pessoas, antes, durante e alguns dias depois do período, o que gera muita renda para o comércio local. A diferença entre a vaquejada e a corrida do boi resume-se à premiação, pois na vaquejada existe o cartaz já com o valor da premiação estipulado do primeiro ao último lugar. Além do mais, a vaquejada traz mais pessoas, tanto para apreciar como para concorrer. Acrescenta ainda que no bolão o valor é divido entre o parque e os vaqueiros.
A corrida do boi O boi fica preso no curral, sob a guarda de seis homens que compõem a equipe do curral. Quando o locutor anuncia o boi através de uma numeração, os homens do curral soltam o boi respectivo, que sai correndo, passando pela porteira. Dois vaqueiros aguardam o boi na porteira. Um é o puxador e o outro esteireiro. O esteireiro tem obrigação de receber o boi, pegá-lo pelo rabo e correr cem metros com ele. Aproximando-o da faixa, ele passa o boi para o puxador que enrola o rabo do boi na luva e derruba-o dentro de uma faixa. A dupla de vaqueiros (puxador e esteireiro) devem derrubar 3 bois dentro da faixa, um de cada vez. O primeiro boi vale 8 pontos. O segundo, 9. O terceiro boi vale 10 pontos, somando um total de 27 pontos. Caso a dupla consiga esse total, eles têm uma senha batida, garantindo, assim, uma vaga para a próxima fase. Toda essa pontuação é marcada pelo juiz. Caso o boi caia de forma que suje o risco da pista – marca feita com cal que limita a faixa onde o boi deve ser derrubado − tanto o primeiro quanto o segundo risco, o boi do vaqueiro fica valendo zero. Ainda tem o “caleiro”, pessoa responsável em acender o risco da pista caso ela se apague.
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A festa da vaquejada Cultura popular que atrai pessoas de vários lugares sempre acaba desencadeando festas profanas, e, na vaquejada, isso não é diferente. Após a corrida, o restante da noite fica animada através de uma festa dançante, que geralmente é acompanhada por um cantor, por uma dupla sertaneja ou por uma banda. Assim, nessa festa ouvem-se músicas sertanejas, forró, toadas de vaquejada. Na festa da vaquejada, as pessoas sempre se vestem a caráter.
Vicente Trindade Pretinho precisou ir embora da Agrovila XXIII e, mais tarde, vendeu a pista para a prefeitura. Durante esse tempo, quem ficou organizando a vaquejada foi Vicente Trindade. Vicente Trindade reside em um lugarejo próximo à Agrovila XXIII, cerca de três quilômetros de distância, bem ao lado de uma barragem que com o seu conjunto de plantas naturais, umas mais verdes, outras mais secas, e com o verde das águas, dão àquele lugar uma verdadeira atmosfera de harmonia. É uma linda paisagem.
Vicente conta que Carinhanha já havia feito uma vaquejada antes, muito antes, com Abel, Zé Carlos, Gercino e Mano de Ernesto. Também já havia acontecido uma na Barrinha, em 1982, com Zelito, em que houve bons prêmios. Muitos vaqueiros da Bahia e de Minas vieram. Naquela época, o 1º lugar ganhou cem mil cruzeiros. Quem ganhou esse prêmio foi o vaqueiro Joaquim Bandeira, montado em um cavalo chamado “Dominó”. Ao falar um pouco do histórico da vaquejada no município, Vicente disse que, antes da vaquejada da Agrovila XXIII, houve a construção de várias “pistinhas”, como ele mesmo chama: Fazenda do Imbuzeiro, Fazenda Pingueira, roça de Vicente, “isso pra lá de 88”, comenta. Citou os vaqueiros que iniciaram o ofício aqui no município: Abel, Pantica, Nego Lio, Gercino, Mundim de Jaime, João de Clide, Gercino de Pedro Brito, Caetano. Da Agrovila XXIII, Vicente e Teófilo. Da localidade da Barrinha foi Joaquim de Julião, Osvaldo de Octacílio e Divino de Pedro. O interessante é perceber que os envolvidos em uma organização dessa natureza se sentem bem ao falar de toda esta dinâmica que os envolve. É com satisfação que ele fala de um cavalo muito importante naquela época, o “Esnuque”, que levou três vaqueiros para a disputa: Vicente, Teófilo e Gercino de Pedro Brito em uma mesma vaquejada, feito heroico para um cavalo.
Zé de Aciza Uma das situações importantes dentro desta cultura é que sempre haverá alguém que dê continuidade a ela. Isso significa que a vaquejada sempre se manterá viva para as próximas gerações conhecerem. Durante todo esse percurso das vaquejadas em Carinhanha, José de Souza Saraiva, o Zé de Aciza, também deu sua contribuição. De 2000 a 2006, Zé de Aciza ficou a frente da vaquejada. Diz que muitos são aqueles que contribuem para a vaquejada. E cita a lista de pessoas que cederam gado para a vaquejada durante o período que esteve a frente dela. Sã elas: Bastião Caetano, Berto, Pedrão, Geraldo Pedro, Vianez, Tõe de Isaías, Júlio Cinzino, Carlito, Joaquim trocado e Dedé da Barra. Zé de Aciza diz que é necessário pelo menos três meses para se organizar uma vaquejada, e cerca de 20 pessoas para trabalhar no dia do evento. Em algumas das vaquejadas, o parque já recebeu um público de aproximadamente cinco mil pessoas.
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354 Em 2007, Vicente retoma novamente a vaquejada, e a prefeitura de Carinhanha reconstrói o parque de vaquejada, legaliza-o, registrando-o como patrimônio público e o inaugura com o nome de Parque de Vaquejada Andalécio Moreira, pois até então ainda continuava como se fosse uma pista particular. Daí, até 2011, os gados fornecidos eram de Dr. Marlindo, Marcio de Joaozinho, Pacheco, Pedrão de Canabrava; Manoel Rubens, Zé Buchim, João de Arlindo, João de Manezim da Barrinha, Dalmir de Alipinho, Albenário, o prefeito de Alagoas, Sr. Arnaldo, Haroldo da Agrovila IX, Zezim Carias, Victor, Paulo da Yonara, Obenário, Dalmir e Beto da Barrinha. Naquela tarde de domingo, em um lugar bastante calmo, de vez em quando batia uma brisa que certamente tocava Vicente fazendo-o lembrar-se de todos aqueles que, hoje, compõem a vaquejada da Agrovila XXIII: Vano do mercado, ou Vano de Adélio, Mundico, João de Tintino, Manoel de Tintino, Carlinhos de Tintino, Paulo de Tintino, Deca de Tintino, Vicente Trindade, Zé de Aciza, Pombinho, Manoel da Gruna, Jurandir da Gruna, Leodílio da Gruna, Josino da Gruna, Fernando de Adélio, Adailton e Danilo de Sinvaldo. Vicente fez algumas ressalvas dizendo que algumas dessas vaquejadas foram organizadas com Zé Buchim, Adélio, com o próprio Pretinho Mascate, e também com Zezim Carias. Disse que os campeões da Agrovila XXIII, durante toda essa história, foram Teófilo, Pretinho Mascate, Vicente, Zé de Aciza, Vano de Adélio, Mundico, Manoel da Gruna, Jurandir da Gruna, Josino da Gruna e João de Tintino. Voltou a citar os vaqueiros das outras comunidades. Barrinha: Dalmir, Dim de Alvino, Manoel Fogaça, Sinvaldo de Chico Conrado, Zé Buchim, Danilo de Zé Buchim. Capinão: Júlio, Josué, Almir, Danilo de Delino e Cizino. Canabrava: Vianez, Edvânio de Gerson, Adão e Albertino de Nego. Agrovila XVI: Zezim Carias, Gilson de Lio, Bruno de Gilson, Carlito de Bastiãozinho, e Cezinha. Feirinha: Elias de João Guarda, Zé de Doda, Joaquim de Doda, Agemiro e Antônio de Isaías e Tiago. Carinhanha: Flavinho da casa rural, Quincas, Zé Berõ, Jau de Dona Raimunda, Océlio, Nenem da ração e Deca da Casa Rural.
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Abril
Pega do boi A comunidade Cheira Cabelo Em Carinhanha, existe de tudo o que se possa imaginar, desde pessoas trabalhadoras, honestas, hospitaleiras, pessoas de talentos inatos, que não estudaram em escolas para aperfeiçoar seu dom e, no entanto, os desenvolve muito bem, a pessoas que gostam de tomar umas pinguinhas e, de gole em gole, acabam perdendo a timidez e muitas vezes até a noção do perigo. Foi assim, entre um gole e outro, que se derivou o nome de Cheira Cabelo. Depois de tomar uns goles, um camarada se empolgou ao ver uma senhora loira muito bonita passando por ele. Ele, coitado, naquele estado, não se deu conta de que “era muita área para seu caminhão”, como se diz em linguagem do povo, e, como todos os que bebem e que já beberam sabem, com a coragem que a bebida costuma forjar, esse camarada se sentiu “a última bolacha do pacote” e lá se foi com toda a sua elegância – “efeito cachaça” − e tascou um profundo cheiro naqueles longos e ondulados cabelos loiros. O que ele não sabia era que aqueles cabelos loiros já tinham dono, e o coitado recebeu foi um tabefe daqueles do esposo da senhora de cabelos loiros. Os dois começaram a rolar pelo chão provocando o maior tumulto. As pessoas iam chegando, algumas para apartá-los, outras para “botar lenha na fogueira”, debochando da situação. E foi essa inverossímil mas verídica comédia que chegou aos ouvidos de Dona Zizinha, que não pensou duas vezes: com seu jeito alegre, rebatizou a Vila de São José como vila Cheira Cabelo.
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Seu Jerônimo Há no lugar uma bela escola rodeada de pés-de-coco, licuris, pés-de-juá e uma horta de verduras e hortaliças que a direção da escola e os alunos trabalham no grande projeto do Município “Educando com a Horta Escolar”. A esta escola deram o nome de Escola São Jerônimo, em homenagem a um Sr contador de histórias que vivera naquela região, avô da atual gestora do Município. Seu Jerônimo era um tanto acomodado, não se importava muito com a vida. O que ele gostava mesmo era de contar casos, casos sempre muito cabulosos. Conta-se que, certo dia, Seu Jerônimo, homem forte, alto, robusto, cheio de vida, porém preguiçoso que só, adoeceu e ficou de cama. Sua esposa, Neném, preocupada com o estado de saúde do seu esposo e não sabendo o que fazer, devido à inexistência de médico ou remédios por ali naquela época, perguntou a Seu Jerônimo se ele aceitava um chá caseiro para amenizar suas dores. “Aceito, sim, Neném, mas só se for com farinha”, respondeu ele. Ao contar seus casos e seus causos, todos sempre caem na gargalhada. Os moradores relembram que Seu Jerônimo era muito comilão, e nesse dia comera duas cuias inteirinhas de chá com farinha. “A maioria dos causos contados
pelo Seu Jerônimo 100% é de aumento e de invencionice fantasiada dele”, comenta uma moradora. Assim, acharam por bem homenagear aquele senhor que fizera a alegria de muita gente daquelas proximidades.
O caso que conta a origem do nome Cheira Cabelo bem poderia ser mais um caso contado por Seu Jerônimo. Seja como for, é nesse povoado que acontece a festa a que se dá o nome de Pega do boi. São três dias de festa, sempre no último fim de semana de abril. Os preparativos para a festa começam com um mês de antecedência. Há muito que organizar.
Os preparativos O povoado todo se agita com os preparativos da festa. Algumas pessoas constroem barracos de palha de coqueiro, outras pintam suas casas. As donas de casa faxinam suas casas, colando suas melhores capas de sofá, roupas de
cama e toalhas novas no banheiro, bem como arrumam os cabelos e fazem as unhas, não esquecendo o mais importante detalhe: as vestimentas. Os homens e mulheres usam camisas xadrez, calças jeans, botas e chapéus. Esse traje é fundamental para quem vai curtir a festa. No entanto, de quem vai participar da pega do boi e da vaquejada, exige-se mais. Eles exibem seus melhores cavalos, disputam os arreios ou montarias mais bonitos ou mais caros, gibão de couro, chapéu de couro, perneiras de couro. Cada um mais bonito que o outro. É de praxe também escolher as moças mais bonitas para serem oficialmente a Rainha e a Princesa da festa. Por conta disso, as moças produzem cabelos, roupas, cavalo e montarias, tudo da melhor qualidade, pois vão elas na frente do desfile representando todos os vaqueiros. Bem antes da festa já começam as primeiras seleções da rainha e da princesa, onde as mulheres de toda a região se inscrevem. Quando há um grande número de inscritos, o grupo responsável pelo evento é que faz o julgamento eliminando algumas inscritas. Assim, prevalecem a Rainha, a Princesa e algumas Porta-bandeira.
A pega do boi No primeiro dia de festa, acontece o desfile. As damas vêm pela ala principal. Atrás aparece a escola que destaca o tema-homenagem desse ano: a filha de uma professora, que morreu afogada. Logo em seguida, vêm todos os outros participantes. O desfile é destinado a todos os que queiram participar, basta terem bons cavalos, arreios e se vestirem a caráter. O desfile é feito nas principais ruas do povoado, onde em um carro de som o locutor vem destacando todos os acontecimentos da festa. Depois de passar pelas principais ruas do povoado, o desfile segue em direção ao local da pega do boi, onde será realizada uma missa ao ar livre, no mato. Ao longe, no palco, os primeiros concertos para a festa da vaquejada. Homens trabalhando duro para entregar o serviço na data certa, mas felizes para a grande festividade que se aproxima. Ainda existem muitas árvores nativas no local da pega do boi. Entre elas, o pequi, o tingui, o pau d’arco, o cagaita, o jatobá, a aroeira, o braúna, o
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pau-ferro, a umburana, a mamoninha, o barbatimão. O lugar foi justamente escolhido por conta disso. A prefeitura, ao doar as terras para a realização da festa, fez questão de abrir o compromisso através do qual os responsáveis pela festa garantem nunca desmatar o local, e continuaram plantando e cuidando dessas árvores. A mata precisa estar preservada, pois ela faz parte do cenário da pega do boi. A pega do boi ocorre da seguinte forma: são escolhidos bois brabos, cedidos pelos fazendeiros da região. Esses bois são soltos em uma região de mata bastante fechada e de difícil acesso. Quando se abrem as porteiras, o boi corre para o mato. O vaqueiro que persegue o boi é chamado de peão. Os peões correm em dupla. Com suas montarias completas de gibão, perneiras e bons arreios, os peões partem à captura do boi, no mato, e se embrenham mata adentro na expectativa de pegar o boi. Vence quem trouxer o selo de identificação do boi em menor tempo. Não é necessário trazer o boi, apenas o selo de identificação que é pregado no pescoço do gado. O cenário desse evento é o parque de Vaquejada José de Azevedo. É lá que se pode encontrar José Raimundo, o “Déu”, vaqueiro experiente e engajado nos eventos de vaquejadas que, sentado no tronco de uma árvore, conta a história da Pega do Boi.
Origens A festa do vaqueiro é um evento muito importante que acontece na Vila São José (Cheira Cabelo). Déu conta que a festa do vaqueiro vem de muito tempo, de quando seu pai era competidor das festas de pega do boi no mato. Segundo ele, a pega do boi começou quando as terras não eram cercadas e o gado vivia solto. Isso começou a ser um problema para os fazendeiros, pela dificuldade de pegar o boi quando estes desapareciam no meio do mato. Assim, alguns fazendeiros acharam por bem reunir todos os vaqueiros da região e dizer: “Olha! O boi
de fulano está no mato, vocês vão lá e, se conseguir pegar, matem e façam um churrasco”. E foi assim, na corrida para pegar o boi fujão e comer sua carne em churrasco, que Ernesto criou a festa. É uma homenagem à vida e ao trabalho do vaqueiro, a festa da pega do boi encena a vida real desse tipo característico do nosso sertão. Déu conta que, em Carinhanha, essa festa acontecia duas vezes. Uma em Fátima e outra na Varginha. Depois da organização de seu Ernesto, a festa passou a ser comandada por Raimundo Bala Doce, Valderino e Antonio Lacerda, até que um dia eles deixaram de fazer a festa. Havia onze anos, a festa acontecia na fazenda de Horozino, próximo ao Cheira Cabelo. Um homem chamado Manu, preocupado com o fim dessa tradição, achou que era preciso fazer alguma coisa para ela não acabar e, dessa forma, organizou a festa no Cheira Cabelo, com apenas um boi. Na segunda festa, ocorrida em 1997, Raimundo Bala Doce resolveu auxiliar Manu na organização e realização da festa. Em 1999, Déu começou a fazer parte da organização da festa, através de um convite dos outros organizadores. Ele quis fazer algumas modificações e, em 1999, a festa de aconteceu forma diferente Ao invés de usarem apenas um boi, usaram oito. Déu lembra que Zé das Bananas, que estava por ali vendendo suas bananas, foi quem fez a locução da festa. O juiz foi Noé, um dos organizadores da festa. No ano seguinte, a quantidade de bois aumentou para vinte, e depois, para noventa. E, assim, a festa só crescia. No início, a festa era chamada de “Pega do boi”, mas foi rebatizada de “Festa do vaqueiro”.
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Atualmente Em 2012, aconteceu a 13ª Festa do Vaqueiro. Hoje, além da pega do boi no mato, tem a vaquejada organizada por Badu e João de Arlindo. Na vaquejada, homens, mulheres e jovens de menor com autorização dos pais participam. A prova consiste em, montado a cavalo, laçar, derrubar e pear o boi. Além dessa inovação de mais de um boi, foi implementada também uma competição entre as mulheres para laçar um bezerro. Nessa competição, aquela que amarrar o bezerro em menos tempo fica sendo dona dele. Esse foi o primeiro ano a contar com a participação de mulheres na prova. As mulheres, de tanto trabalhar na organização da festa, sentiram a necessidade de mostrar para os homens que também eram conhecedoras do assunto. Assim, foi consentida a sua participação, embora numa atividade não tão rigorosa quanto a dos homens. Na disputa das mulheres, pontuava quem laçasse, peasse e derrubasse o bezerro em menos tempo, ao contrario da prova dos homens que tinha que correr montado num cavalo. Déu enfatiza que os meninos também fazem parte dessa competição e que as meninas são muito boas no laço. Ele deixa claro que os homens precisam se aliar às mulheres em todas as instâncias. Esse homem simples, que lida com gado, mostra através de suas palavras que a mulher deve ser tratada com respeito e com igualdade. A pega do boi é a festa do vaqueiro por excelência. Afinal, depois de tanto trabalho, é preciso comemorar a força, energia e a coragem dos que se gastam cotidianamente na lida com o gado. A festa é empolgante, e foi ele mesmo, Déu, quem convidou a equipe de pesquisa para o grande forró que aconteceria em seguida. A sequência da festa noturna a equipe não conseguiu descrever em detalhes menores, pois, de gole em gole, já estava igual ao camarada que cheirou o cabelo da outra.
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A Festa do Divino Espírito Santo A Festa do Divino Espírito Santo, em Carinhanha, é um espaço de manifestação da diversidade das culturas presentes no município. Nas atividades de caráter religioso, o tríduo, as missas, os batizados e as procissões mesclam ritos do catolicismo romanizado e práticas do catolicismo popular. Outras expressões ocupam espaço: o hasteamento das bandeiras; a entronização do Imperador, Reis e Rainhas dos Reinados; a presença dos caboclos com danças e cantos de inspiração indígena; a alvorada festiva animada pela Filarmônica; a carreata em homenagem a São Cristovão, padroeiro dos motoristas; as comidas, bebidas e danças. Aspectos desta miscelânea são aqui registrados com o auxílio de depoimentos de Armezinda Dias da Silva, João Euzébio Oliveira e Honorato Ribeiro dos Santos.
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Origens... próximas, distantes No calendário da Igreja Católica Romana, a liturgia de Pentecostes celebra a presença do Espírito Santo a insuflar o fogo da coragem nos apóstolos de Cristo, então, amedrontados e desnorteados com os acontecimentos da Paixão e Morte de seu Mestre. É uma Festa móvel, podendo ocorrer nos meses de maio ou junho, contados cinquenta dias após a Festa da Páscoa, o dia da Ressurreição. Honorato Ribeiro dos Santos afirma que teve início em 1906, na cidade de Carinhanha, a celebração da Festa do Divino Espírito Santo. A respeito de seus primórdios, destaca que
“No início, era somente a festa religiosa. Depois de algum tempo, no mandato do primeiro prefeito Francisco Luiz da Cunha, conhecido como Chico Timóteo, foi que iniciou essa integração do litúrgico com o sincretismo. Segundo minha mãe, que nasceu no dia da República (15 de novembro de 1889), 1934
o Prefeito, indo a Salvador, lá copiou algum rei, aquela coisa e de lá veio com coroa, com essa roupa, tudo. O primeiro rei aqui de Carinhanha foi ele, minha mãe contava, foi bonito, sendo o primeiro imperador da cidade, fazendo parte do Convênio do Divino Espírito Santo”. Conforme o historiador, depois da introdução do Reinado, viriam outras incorporações do que ele denomina sincretismo: a apresentação dos Caboclos, grupo criado por Bernardino Caboclo, descendente de índio; a criação das Irmandades, a de Nossa Senhora do Rosário, e a de Santa Efigênia. Por último, a incorporação da Festa de São Cristovão. Ainda de acordo com Honorato, com o barulho de João Duque, entre os anos de 1922 e 1928, não houve Festa e nem Missa, pois
“fizeram da Igreja (matriz) um forte. O povo correu só ficando na cidade o povo que apoiava o Coronel, a família dos Lacerdas, os Pintos e os Limas, que eram o braço direito dele. Somente em 1930 que tudo acalmou e voltaram as festividades”. O incansável pesquisador Câmara Cascudo informa que a “Festa do Divino (Espírito Santo) veio para o Brasil no século XVI como uma solenidade, religiosa e popular, privilegiada em Portugal, excluída das restrições proibitivas pelas próprias Ordenações do Reino, desde o Rei D. Manuel”7. Indica ainda o mestre acerca da Festa que As Folias do Divino percorrem a pé, a cavalo, em barcos, grandes distâncias angariando esmolas para a festividade, função precatória que não acontece em Portugal. Levam a Bandeira do Divino, coroada pela Pomba simbólica, na mão do Alferes, e acompanham músicos e um tesoureiro recebedor. A tradição é o Império, tablado onde o festeiro fica, coroa na cabeça, cetro na mão, recebendo as homenagens, terminada a função na Igreja. Seguem-se refeições copiosíssimas, apresentação de folguedos, cantos, bailados.8
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É interessante perceber que o notável pesquisador afirma reiteradamente que no território compreendido entre a Bahia e o Piauí “a Festa do Divino não é conhecida e comemorada como nas demais regiões”, o que desperta a curiosidade sobre o que ocorreu em Carinhanha, seja considerando uma possível influência dos festejos do Divino em Minas e Goiás, por ficar próxima a estes estados, seja investigando mais o que teria Chico Timóteo trazido de Salvador.
O Convênio, as Irmandades e o controle da festa A Festa do Divino de Carinhanha era financiada com a arrecadação de dinheiro feita em leilões organizados sob a supervisão de instituições controladas pelos segmentos ricos da sociedade local, o Convênio, e pela Igreja Católica, as Irmandades. O Convênio do Divino Espírito Santo era formado por parte da sociedade que tinha posses, destacando-se as famílias Lima, Lacerda e Numa Campos. Sobressaem nomes como o dos senhores Demócrito Oliveira, Zeca Lima, Artur Lima.
“Imperadorzim”
As Irmandades eram associações leigas devocionais, criadas para organizar os fiéis em torno do culto de determinados santos. Desempenhavam importante papel na Festa do Divino, pois era possível pertencer a mais de uma irmandade e não havia restrições sobre cor ou condição sócio-econômica. Já o Convênio só admitia a participação de pessoas dos estratos ricos da sociedade, obedecendo e reforçando o costume de impedir a presença de pretos e pobres nos espaços e mecanismos de poder e decisão. Os leilões eram, sem dúvida, espaços de exibição e consolidação do poder político, econômico e social. Segundo Honorato Ribeiro, começavam no Domingo de Páscoa:
Era uma mesa farta. O povo que doava. E era desse leilão que rendia para o Festeiro fazer a Festa. Era leilão até no dia da missa de cada Festeiro. O leilão era rico, o povo dava boi, porco, galinha. O leilão ficava até de manhã lá. Naquela época, não tinha negócio de bingo. Cada domingo o leilão era de um Festeiro até o dia do Santo. O maior leilão era no dia da coroação do festeiro, durava até o outro dia. Outro símbolo da estratificação econômica e social eram as regras referentes a honrarias e cargos. Do sorteio para assumir o principal símbolo de poder da Festa, a figura do Imperador do Divino*, não podiam participar pobres e pretos. Estes podiam concorrer ao sorteio de reis e rainhas das Irmandades de Santa Efigênia e Nossa Senhora do Rosário, hierarquicamente situados abaixo do Imperador. O Sr. João Euzébio, bancário aposentado, fala sobre a Irmandade do Rosário. * Foram festas de alta receptividade coletiva no Brasil e em Portugal, mas estão decadentes, relativamente às áreas geográficas de sua existência histórica. De seu prestígio, basta lembrar que o título de Imperador do Brasil foi escolhido, em 1822, pelo Ministro José Bonifácio de Andrada e Silva, porque o povo estava mais habituado com o nome do Imperador (do Divino) do que com o nome de Rei. A festa, missa cantada, procissão, leilão de prendas, exibição de autos tradicionais, cavalhadas etc. positivava um centro de interesse real. Em certas vilas e cidades, o Imperador do Divino, com sua corte solene, dava audiência com as reverências privativas de um soberano. (CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 8ª ed. São Paulo: Global, 2000, p. 294).
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Filho do comerciante João Farias de Oliveira, vulgo João Leli, que morreu aos 72 anos, baluarte da Irmandade Nossa Senhora do Rosário, ele relembra nomes: José Farias Rosa (Zé Perninha), Salustiano Belém e José Belém, todos já falecidos.
A data da fundação (da Irmandade) eu não sei. Só lembro de fatos ocorridos da década de 60. No final dos anos 50, quando eu comecei a entender as coisas é que vi aquele movimento lá em casa. Nas proximidades da Festa o pessoal começava a aparecer, vinham os encarregados e a Irmandade tinha um Procurador. Então quando chegava essa época eles tinham que pagar uma cota. Segundo João Euzébio, a Irmandade organizava leilões para angariar fundos para pagar a banda, a missa e ajudar os festeiros no dia de cada Santo. Todos os participantes pagavam um taxa anual, um valor simbólico, e quem fazia a arrecadação era o Sr. José Farias Rosa (Zé Perninha), tesoureiro da Irmandade, pai de um dos integrantes dos caboclos, o Sr. Ruberto.
Da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário podiam participar homens e mulheres de qualquer idade. Do sorteio de Rei e Rainha estavam impedidos de participar quem não estivesse em dia com a Irmandade e quem fosse pagão. Especificamente para o sorteio da Rainha existia a exigência quanto ao comportamento sexual da mulher. Sob a justificativa de que “a Rainha era a representação de Nossa Senhora” só eram aceitas as candidatas solteiras que fossem virgens; “se fosse casada teria que ser um ‘casamento casto’”. Esta exigência e as formas de controle eram motivo de constrangimento. Houve caso em que a mulher sorteada não foi coroada devido aos comentários que atribuíam a ela uma condição não aceita pelas regras vigentes. As Irmandades e o Convênio foram extintos com a chegada do Pe. Getúlio Mota Grossi. João Euzébio demonstra descontentamento ao comentar que
“era muito bom, era uma verdadeira irmandade mesmo. Os irmãos, eles se uniam na época da Festa, para fazer uma Festa mesmo. Era comida e bebida à vontade”. Sobre a Irmandade de Santa Efigênia* discorre a professora aposentada Armezinda Dias da Silva, filha do Sr. Manoel Rapego. Ela mesma, nos anos de 1940, foi Rainha na Festa de Santa Efigênia, aos 14 anos. Reinou em companhia do Sr. Antônio Marques, maçom e músico, particular saxofonista. A Irmandade custeou a festa, o vestido e a comida.
* Santa Ifigênia, virgem da Etiópia, é mártir, com festa votiva a 21 de setembro. Santa Preta foi uma das devoções dos escravos africanos, especialmente no sul do país. Várias Irmandades de Santa Ifigênia foram fundadas e, nelas, havia a caixa social, destinada ao resgate dos escravos associados. O lendário Chico Rei, de Vila Rica (Ouro Preto), era devoto de Santa Ifigênia, padroeira da respectiva Irmandade, que o soberano negro auxiliava financeiramente. No Dia de Reis, em Vila Rica, as negras do cortejo de Chico Rei vinham, com as carapinhas polvilhadas de ouro, lavá-las e deixar o ouro cair numa pia de pedra existente no Alto da Cruz, onde havia uma imagem de Santa Ifigênia. O ouro servia para a libertação de outros escravos. Johann Emanuel Pohl (Viagem no Interior do Brasil, 2º, 72-76, Rio de Janeiro, 1951) assistiu em Traíras (Goiás) em junho de 1819, a uma semana de festejos a Santa Ifigênia, com cortejos aparatosos, onde figuravam rei, rainha, príncipe e princesa, bailados com indumentária rica, descargas, foguetes e roqueiras e entusiasmo vibrante dos negros e mulatos. (CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 8ª ed. São Paulo: Global, 2000, p. 380).
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Formada praticamente de negros, a Irmandade representou uma forma de organização da comunidade negra para expressar seus interesses e suas interpretações do mundo. O baluarte da Irmandade de Santa Efigênia era o Sr. Manoel Dias da Silva, conhecido como Mané Rapego, apelido dado por conta de jogar dominó e baralho e não perder o jogo para ninguém. Mestre de obras, funcionário da Comissão do Vale São Francisco. Gostava de fazer política e, embora não tivesse envolvimento direto, apoiava candidatos que, coincidência ou não, os que recebiam seu apoio, eram quase sempre eleitos. A professora Armezinda relata que a Irmandade, através dos pedreiros Joaquim Farias (Joaquim Torrado), Teodoro (Sr. Dodô), Miguelzinho e o próprio Manoel Rapego, construiu a casa onde hoje funciona o Centro de Estudos Dona Carmen (CEDOCA). A construção era destinada a ser a Capelinha de Santa Cruz, pois existia no local um cruzeiro trazido por missionários alemães. Entretanto, o Bispo Dom Grossi não aceitou a ereção da Capela, alegando que ficava próxima a Igreja Matriz de São José. O prédio tornou-se sede do Círculo Operário, abrigando ainda uma escola primária, uma escola de datilografia e um curso de corte e costura. A Profª. Armezinda recorda as comidas dos leilões e da Festa: galinha caipira, porco assado, lombo recheado com toucinho, carne de bode assado e lombo de carneiro, gamelas e mais gamelas de tapioca, ovos para fazer o biscoito de saquim e os bolos de puba e tapioca. Na época, não havia muita variedade Santa Efigênia (1985)
de bebida, era só vinho tinto, licor de jenipapo, conhaque e uma pinguinha. Relembrou com ar risonho que o festeiro separava uma bandeja farta de alimentos só para o padre. A Irmandade tinha um livro de Atas, lembra a professora, mas como havia um costume de jogar no rio ou queimar os pertences de quem morria, provavelmente o livro de Atas foi queimado juntamente com os pertences de seu pai: documentos, lençóis e livros.
Mudanças... permanências na estrutura da festa Em 1968, o pároco Padre Pedro Moura resolveu separar as comemorações reunidas no mesmo período − Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia, Divino Espírito Santo – ficando, cada uma, em uma data específica. Em 1970, assume a paróquia o Padre Wanderley França Barbosa, que decidiu juntar novamente as comemorações, incluindo outra festa, a de São Cristovão. A comemoração de São Cristóvão foi um pedido do devoto Sr. Valdemir Carvalho (in memoriam). Vado Buchudo, como era mais conhecido, e um grupo comemoravam com as suas famílias o dia do protetor dos viajantes e motoristas. Eles pediram ao vigário para trazer a parte religiosa da festa de São Cristovão para a véspera da Festa do Divino Espírito. Padre Wanderley aceitou e daí em diante a festa cresceu, ficando popular na cidade, atraindo muitos seguidores. Na alvorada de São Cristóvão, há o desfile de veículos, acordando a cidade com buzinaço e fogos. Ao final da missa, os motoristas exibem as chaves de seus veículos para serem abençoadas. Outra modificação aconteceu no paroquiato do Padre Wanderley. As famílias que tinham filhos estudando fora pediram ao padre para mudar a data da Festa para o mês de julho, a fim de que os ausentes, quando retornassem no período de férias, pudessem participar dos festejos, tendo, enfim, obtido a concordância do sacerdote. O Sr. Honorato interpreta esta solução não como uma mudança e sim como uma repetição. Ele justifica dizendo que, conforme o calendário da Igreja Católica, a liturgia continuou acontecendo no dia de Pentecostes. Continuou, assim, a prática de vestir uma criança para representar o Imperador do Divino.
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Em julho, o ritual era repetido, acontecendo, então, uma festa grande com a participação de todos os reinados. Era também em julho a festa profana. As ruas ficavam abarrotadas de barracas de vendedores ambulantes. Roupas, comidas, sapatos, utensílios domésticos, brinquedos entre outros eram vendidos em plena festa sacrossanta, entre o sagrado e o profano. Em 2004, por recomendação do Bispo Dom Francisco Batistella, o Padre Wander Ferreira fez retornar a Festa para o dia de Pentecostes, alegando que não poderia haver duas celebrações do Divino. A festa de julho continuou, no entanto. Agora, com nome e a idéia do Encontro das Águas e dos Amigos de Carinhanha.
Ontem... Hoje, Rituais A coroação do Imperador Honorato Ribeiro aponta uma mudança na coroação do Imperador do Divino. Antigamente, quando o cortejo chegava à Igreja Matriz, o padre saía do altar e vinha ao encontro dos festeiros, na porta, para benzer a coroa e ele próprio fazer a coroação. Hoje, a coração acontece dentro da igreja, onde é preparado um trono. Após benzer as insígnias (coroa, cetro, capa), o festeiro do ano anterior coroa o festeiro atual.
Imperador - 1987
Levantamento do mastro O costume corrente era haver o levantamento do mastro a cada dia, um para cada santo:
“A levantação do mastro era bonita, porque era aqueles mais de vinte homens com o mastro nas costas, e tinha a procissão na cidade todinha, a banda de música tocando, foguete, e quando botava para suspender o mastro o povo aplaudia ‘ê, ê, ê!’ Isso aí era bonito, folclore, né, isso aí acabou”, comenta
Honorato.
Atualmente todas as bandeiras são hasteadas em mastros simples no primeiro dia do Tríduo, e não há mais o carregamento pelas ruas da cidade. A primeira bandeira hasteada pelo mordomo do mastro é a do Divino Espírito Santo, no centro das torres da Igreja, ao som do canto “Vem, vem, vem, vem Espírito Santo de Amor. Vem a nós, traz à Igreja um novo vigor”.
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Imperador Edson - 1956
A segunda é a de São Cristóvão, ao som do Hino a São Cristóvão “Oh! São
Cristóvão, querido. Seja o nosso guardião, ao lado de Jesus Cristo, nosso amigo e irmão”. E a terceira é a de Nossa Senhora do Rosário, com o canto “Nossa Senhora,
rogai por nós, intercedei a Deus por nós, para o mundo ser mais justo, intercedei, pela paz na humanidade, intercedei, para sermos mais fraternos, intercedei!” A última é a de Santa Efigênia, cantando os fiéis “Santa Efigênia rogai por
nós, intercedei a Deus por nós, para sermos mensageiros, intercedei, da justiça e da esperança, intercedei!” A folia do Divino Até a década de cinquenta, havia a Folia de Reis do Divino, criada por Seu Antônio Rodrigues Villares, pai de Dona Madalena Barral, primeira mulher vereadora em Carinhanha. A Bandeira do Divino era acompanhada por um grupo de mulheres que cantavam a folia, acompanhadas dos tocadores de caixa e viola: Sá Nén, Sá Marta, tia Prisca e duas irmãs gêmeas, solteiras, que só andavam juntas, Chica e Dos Anjos (analfabetas de pai e mãe, tinham sotaque africano, faziam parte do Apostolado da Oração, sabiam cantar todos os benditos e ladainhas da Igreja, tanto em Português, quanto em Latim, uma na primeira, e a outra na segunda voz). Com o alferes da bandeira à frente, iam de porta em porta batendo palmas, entoando os benditos e pedindo esmolas para o Santo do dia. Se era o dia de Santa Efigênia, quando a bandeira entrava, elas cantavam
Aqui está Santa Efigênia Chegou hoje da Bahia Veio pedir a sua esmola Para a missa do seu dia.
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Hoje, só o Alferes que sai com as bandeiras passando de casa em casa pedindo esmolas e levando proteção. A Filarmônica Pedro Leite só acompanha a Bandeira do Divino, tocando dobrado.
Os Caboclos e a Cavalhada Honorato nota transformações na apresentação da dança dos caboclos. O caboclo de hoje não é aquele de antigamente, não tem a peleja, não tem a loa, não tem o choro da cabocla, não tem a briga. Acabou, não tem não. O choro da cabocla é bonito, eles ficam deitados no chão e começa a briga. Um cai pra lá outro prá cá. Era um teatro no meio da rua. Vital era bacana pra isso: morreu caciquinho mor, morreu mamãe cabocla, morreu. E aí começa a chorar e passa falando o nome de todos, morreu capitão pó etc. Quando chega em caciquinho e anãozinho eles levantam: - Tamo aqui caboclo! Pula e abraça ele e aí todo mundo levanta e canta, um canto bonito. Era lindo demais, moça, eu não perdia um ensaio só para ver isso.
Uma manifestação que desapareceu por completo foi a cavalhada, relembrada pela Profª. Armezinda: um grupo de homens montados a cavalo que acompanhava o Cortejo do Divino Espírito Santo trajando roupas próprias enfeitadas com pedrarias: colete, chapéu com plumas e botas com espora.
A organização da Festa Hoje, ao invés do Convênio e das Irmandades, o Conselho Paroquial de Pastorais (CPP), juntamente com o Pároco e festeiros, organizam a Festa. A organização envolve comunidades rurais e a sede. São nomeados responsáveis para a arrecadação de fundos, através de leilões, bingos, festival de pipoca e barraquinhas para vender comidas (salgados, bolos, tortas, e refrigerantes). A cada ano, para cada dia de festa, é escolhido um festeiro. O Imperador, rei, rainha, mordomo e alferes são escolhidos por sorteio e qualquer cidadão pode se candidatar. O sorteio é realizado em público depois da missa de cada festeiro. Iniciam-se as festividades com a preparação através do Tríduo em honra ao Divino Espírito Santo: no primeiro dia, procissão seguida de Celebração na Igreja Matriz; segundo dia, Celebração Penitencial; terceiro dia, consagrado a São Cristovão, com a Alvorada e carreata, e à noite a Benção das Insígnias e Coroação do Imperador do Divino.
Cortejos e procissões A Festa propriamente dita tem início no domingo de Pentecostes, dia do Divino Espírito Santo. Ao raiar do dia, a Filarmônica Pedro Leite, juntamente com os Caboclos, vai buscar o Imperador trajando uma roupa luxuosa feita de veludo e cetim, bordada com pedrarias, a Corte e o Alferes da Bandeira em sua casa para seguir em cortejo com os familiares e as pessoas da comunidade até a Matriz para a celebração da Santa Missa. Após a missa, seguem em Cortejo pela cidade até o local da Festa. Este ritual se repete nos demais dias, com Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia. O encerramento da Festa acontece com a grande procissão dos quatro Santos percorrendo toda a cidade, acompanhados da Banda Filarmônica Pedro Leite.
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A Dança dos Caboclos Vital Ferreira de Araújo Neto, o Netinho, disse estas palavras enquanto entregava um pedacinho de papel. Assim teve início uma conversa com ele e seu sogro, cadeiras na calçada, embaixo de uma deliciosa sombra, ao som do canto de pássaros. O pequeno texto era sobre a Dança dos Caboclos de Carinhanha. Da leitura surgiu a pergunta: é verdade que a dança dos caboclos tem origem indígena? Netinho contou sua versão recorrendo às lembranças do vivido: o que percebeu, o que presenciou, o que experimentou; descreveu a luta para manter a presença dos Caboclos no cenário cultural de Carinhanha; enalteceu a memória dos participantes já falecidos e mostrou ser um apaixonado pela tradição herdada do avô; destacou a determinação de sua mãe, sempre incentivando a família a dar continuidade aos Caboclos.
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A fabulação de Vital Rodrigues Cerqueira a respeito da origem indígena dos Caboclos Conta Netinho que seu avô Vital Rodrigues Cerqueira foi um dia a uma pescaria no Rio Carinhanha, acompanhado de amigos. Ao passarem na região do Pontal, antigamente uma mata fechada, ouviram um canto e ficaram cheios de curiosidade. Saíram procurando de onde vinha a música e o rumor de dança. Era um grupo de índios.
Quando eles estavam olhando os índios dançando aquelas dança deles lá, com pena, capacetezinho assim na cabeça de pena, aqui na cintura umas penas amarradas e com a cabacinha fazendo aquele barulhozinho − e roda em círculo, né? Os índios usavam a cabacinha, com aquela coisinha lá, parecendo uma semente dentro assim. Aí eles de longe! Eles tinham medo de estar perto e algum deles ver e pegar eles lá. Naquela época era perigoso. Então ele achou assim: já que existia o Festejo do Divino, em Carinhanha, ele falou assim: “vou formar um grupo de índios”.
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O Dicionário do Folclore Brasileiro descreve os Cabocolinhos, grupos fantasiados de indígenas, com pequenas flautas e pífanos percorrem as ruas nos dias de carnaval nas cidades do Nordeste do Brasil. Executam um bailado primário, ritmado ao som da pancada das flechas nos arcos, fingindo ataque e defesa, em série de saltos e simples troca-pés. Não há enredo e nem fio temático nesse bailado, cuja significação visível é a da apresentação das danças indígenas aos brancos, nos dias de festa militar ou religiosa. Outrora, os caboclinhos visitavam os pátios das igrejas antes do alardo nas ruas, lembrados da passada função homenageadora. É uma reminiscência do antigo desfile indígena, com a dança, os instrumentos de sopro e o ruído dos arcos guerreiros.
Honorato Ribeiro tem outra versão sobre o aparecimento da Dança do Caboclo em Carinhanha. Ele afirma que por volta do ano de 1912, morava aqui um cidadão por nome Miguel, descendente de índio, estatura média e muito forte. Teria sido ele o introdutor da manifestação. Miguel treinou um grupo de homens bem ensaiados, vestidos como índios e pela primeira vez apresentou a dança nos festejos do Divino. Após a morte de Miguel, Bernardino Caboclo tornou-se o representante da dança. Somente após a morte de Bernardinho Caboclo o Sr. Vital Rodrigues Cerqueira, que já participava do grupo desde o tempo do Sr. Miguel, passou a tomar a frente da organização.10 O singelo relato de Vital Cerqueira, que pode parecer simplesmente fantasioso, de fato reúne elementos reais da história social de Carinhanha; as mais antigas referências aos grupos humanos que habitavam a região e que foram exterminados física e/ou culturalmente pelos conquistadores brancos, tendo, a partir de então, de sobreviver no refúgio da mata; e aquela que durante muito tempo foi a mais esplendorosa festa religiosa, a Festa do Divino, espaço que abrigava os mais diferentes significados sob o signo da ideologia dos colonizadores e o controle social das famílias importantes. O “vou formar um grupo de índios” pronunciado por Vital Rodrigues Cerqueira, real ou imaginário, recolocou os que estavam ocultos no centro da cidade, à frente da Matriz, no meio da Festa organizada pelos detentores de poder econômico, político e cultural. O grupo dos Caboclos faz apresentações fora de sua sede. Em Salvador, participou da Caminhada Axé. Sempre que é convidado e tem condições, exibe-se em Feira de Santana, Malhada, Monte Alto e cidades circunvizinhas. Em Carinhanha, além da participação ritualística na Festa do Divino, apresenta-se em julho, no Encontro das Águas e dos Amigos.
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Os Caboclos na Festa do Divino Naquela época, a Festa do Divino tinha apresentação da Cavalhada, da Corrida das Argolinhas e da Filarmônica Pedro Leite, que levava o cortejo da residência do festeiro até a Igreja Matriz de São José e, de volta, da Igreja para a residência. Vital Cerqueira imaginou que a introdução dos caboclos daria um realce maior ao cortejo. Para concretizar a ideia convidou os amigos, entre eles o Sr. Bibiano, Sr. Alberto, Sr. Daniel açougueiro, Zé Bodim, Zé Magrim, Geraldo de Vitor, Zé de Sabino, Sr. Ruberto e o Sr. Dionísio. Começaram a ensaiar a Dança dos Caboclos, fazendo uma adaptação do que tinham visto na mata. Netinho, sorrindo maroto e falando mais com os olhos, explica que resolveram usar roupas porque os homens não se sentiriam à vontade com o corpo coberto somente com as penas e as folhas que os índios usavam.
Os homens que era o chefe ali usavam calça comprida. Já os meninos que iriam enfeitar a brincadeira botaram foi uma saia chamativa de cor vermelha, para chamar mais atenção, né, com os enfeites. Quanto aos instrumentos, na mata,
eles tinham umas flechas e batia uma cabaça. Então meu avô inventou uma flecha de madeira que contem um náilon que a gente puxa e dá aquele som. Em vez de uma, de duas, fez três. E foram todo mundo junto. E deu aquele som que encaixa com o som da viola. A viola foi introduzida para facilitar um eco certo com a batida da flecha. No grupo, uma pessoa toca a viola. O restante dos caboclos bate o arco nas flechas para marcar a pulsação nos cantos. Netinho lembra que, no tempo de seu avô, era o finado Geraldo de Vitor que tocava a viola, passando depois para o primo dele, Zé Magrinho. Com a morte de Zé Magrinho, seu filho Rildo deveria ficar tocando no lugar do pai, mas ele
não mostrou interesse. Em 2011, tocou só um dia, deixando o grupo na mão. Quem substituiu foi um primo do Sr. Vital, Cazuza Belém, morador de Porto Agrário, povoado de Malhada. Perguntado sobre quem eram os índios avistados no Pontal, Netinho disse que
Eu mesmo não sei, não, porque eu só alcancei na minha época, aqui, o tupi e o guarani. Os anos foram passando e eles já vieram pra cidade alguns deles. Inclusive, hoje até, na Agrovila XXIII, tem o tupi. Residia aqui em Carinhanha. Era os dois, que eu lembro assim, que ouvi falar no meu tempo. Era esse que conhecia aqui, aí foram embora.
A sobrevivência do grupo: disciplina, dedicação, apoio No tempo em que Vital Cerqueira comandava o grupo, para não haver atraso, os Caboclos se reuniam na véspera da Festa do Divino e dormiam todos juntos em uma escola ou no salão da Igreja. Às quatro da manhã, todos se levantavam e iam de lanchinha (embarcação de madeira movida a óleo diesel) tomar banho na coroa, ilha de areia do outro lado da cidade. Na volta, se arrumavam e iam para a Igreja acompanhar a alvorada juntamente com a Filarmônica. Hoje, cada um dorme em sua casa e, no horário certo, se encontram na casa da mãe de Netinho. Esta mudança, ressalta ele, é para evitar a desordem e conflitos entre os integrantes, devido hoje as pessoas não se respeitarem mais como em épocas passadas. A preparação começa uns 35 dias antes do início da festa. O grupo se reúne para discutir como vai ser a participação, e para ensaiar. Diferentemente de outros tempos, quando o ensaio era escondido no pátio da Escola Estadual Coronel João Duque, agora acontece na Praça do Relógio, com o povo todo acompanhando. A manifestação procura manter a tradição que, há mais de setenta anos, vem passando de geração a geração. Depois que o Sr. Vital Rodrigues Cerqueira faleceu, há trinta e oito anos, quem ficou responsável foi seu filho Antônio de Vital. Falecendo este, seu irmão André de Vital ficou sendo o chefe. Hoje, o
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chefe é o Sr. Vital Ferreira de Araújo Neto. De olho no futuro, ele se esforça para que os mais novos da família, seus sobrinhos, assumam essa tradição, para garantir levá-la à frente, mesmo que vá ficando diferente do que era ou do que é. Ao mesmo tempo, faz o que pode para valorizar os participantes mais antigos que ainda estão vivos. Diz ele que
Eu não quero eles pra correr, quero eles para acompanhar, entendeu? De qualquer forma, não deixar acabar e resgatar aqueles velho. É para acompanhar, né, porque cada um sabe contar uma história. E eu quero isso. Alguns não aguentam mais participar por causa da idade, mas fazem questão de vir assistir. Zé de Sabino, com quase oitenta anos de idade, morador do Bairro São Francisco, é tido como um homem de muito valor e grande importância para o grupo. Porque ele é um dos mais antigos que participou junto com o criador da manifestação. Como Seu Zé não aguenta mais caminhar, Netinho paga um mototaxista para trazê-lo nos dias do Festejo para prestigiar os Caboclos, “porque ele é um apaixonado”. O Sr. Roberto, outro participante antigo, tinha parado de brincar. Com muita insistência, Netinho o convenceu a voltar ao grupo e ele participou até sua morte. Recorda com muita emoção a perda desse integrante que era do tempo de seu avô. No dia do seu enterro, o grupo acompanhou, fazendo uma homenagem. A família agradeceu demais porque era uma paixão do Sr. Roberto. Netinho ficou muito magoado porque o filho do finado não quis ocupar o lugar do pai. Por isso, chegou mesmo a pensar em parar de liderar o grupo, deixar para quem quisesse. Mas sua mãe o fez mudar de ideia, fazendo-o reconhecer que os Caboclos eram sua vida. Hoje ele tem consciência da importância dessa tradição: “da maneira do possível ou impossível, vou
levar isso até quando Deus quiser”. O grupo de Caboclos tinha de trinta a trinta e duas pessoas. Depois, aumentou para quarenta e três participantes. Hoje está com trinta e seis componentes. Ao mesmo tempo em que procura manter os antigos participantes, colocando-
os no centro, vai pondo e treinando os mais novos na fila. Por este motivo, não responde negativamente quando uma criança pede para participar do grupo. Chama a mãe ou pai para conversar e explica como a criança deve se comportar, ressaltando que acha muito bom, porque dessa forma essa tradição não acaba tão cedo, recordando que ele próprio começou a brincar com nove anos de idade. Uma época foi embora para São Paulo trabalhar, mas todo ano, na época da festa do Divino, tinha que vir participar dos Caboclos. O grupo sempre teve ajuda da Prefeitura: sapato, pano para confecção das roupas e um cachê, que vem do tempo do antigo prefeito finado Zeca Breu. Hoje em dia, a única coisa que a Prefeitura não dá é a pena de ema e de pavão. O pessoal tenta conservar as penas que a Prefeitura deu no início da formação do grupo. Quando precisam mesmo, usam pena de galinha, de cocá, ou cada participante compra um espanador, utilizando as penas para o enfeite. Netinho ressalta que os gastos são muito altos para sua condição financeira. Somente com os calçados, anualmente, são aproximadamente R$ 1.000,00 e mais uns R$ 200,00 com pano para fazer as roupas. Além disso, tem a gratificação, que varia entre R$ 40,00 e R$ 50,00 para as crianças e R$ 120,00 para cada adulto. No caso das crianças, as mães têm interesse em mandar os filhos na esperança de obter alguma ajuda. Já os adultos deixam de trabalhar e não ganham nos dias da Festa. Netinho demonstra compreender a justeza destas exigências e o quanto elas lhe custam. Mas ressalta a impossibilidade de sua família abandonar a tradição e tem a noção do sentido social e cultural dos Caboclos para Carinhanha. Por isto, faz muito malabarismo para resolver estas questões, pois o apoio da Prefeitura geralmente demora a ser liberado.
Rituais dos Caboclos na Festa do Divino A participação dos Caboclos na Festa do Divino começa no sábado. Neste dia, o grupo se dirige à delegacia de polícia e faz o ritual do pedido de licença para brincar durantes os festejos. Nos dias seguintes, domingo, segunda e terça-feira, às cinco da manhã, tomam café na casa da mãe de Netinho, uma das maiores incentivadoras dos Caboclos. Seguem para a cidade e, juntamente com a Filarmônica, acompanham o cortejo do Imperador, do Rei e Rainha do dia até a Matriz. Enquanto acontece a celebração da Missa, os Caboclos vão ao rio, tomam
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banho e voltam à Praça. Terminada a Missa, os Caboclos se apresentam, e participam do cortejo que leva o Imperador ou o Rei e a Rainha do dia para sua residência. Netinho não sabe todas as encenações e cantos porque quando seu avô morreu era muito pequeno. Considera que uma das melhores partes é o “choro da Cabocla”. Quem sabe é o seu irmão Zé. Ele próprio é muito tímido e não faz. Antes de recitar alguns cantos dos Caboclos, ele adverte que foram uma invenção do Sr. Vital Rodrigues, pois ele teve que diferenciar dos cantos dos índios, cantados na linguagem deles: Nega mina quando morre
Vai na tumba de bangüê Curuquinho ê vai dizendo Que urubu tem que comê! Bruuuuuu! Na homenagem que fazem ao Santo do Dia, ao Rei ou Rainha daquele dia eles cantam:
Minha gente o que é isso Hoje aqui nesses ares, Isso tudo são louvores À Senhora do Rosário. Minha gente o que é isso, Hoje aqui nesses ares, Isso tudo são louvores À Senhora Santa Efigênia. Minha gente o que é isso, Hoje aqui nesses ares, Isso tudo são louvores ao Divino Espírito Santo.
Honorato Ribeiro dos Santos, em um de seus livros sobre a história de Carinhanha9, relaciona a existência de três danças nas antigas apresentações: a dança do cipó, a dança da peleja e o choro da cabocla. As duas últimas não são mais representadas. Na dança do cipó, os caboclos exibem a arte de trançar fibras, herança deixada pelos índios, embaralhando os cipós e os olhos do povo na hora da apresentação, mostrando um domínio e uma habilidade impressionante na confecção do balaio. Um passa a ponta do cipó para o outro, ao mesmo tempo em que vão rodando, dançando e cantando, trançando um cipó no outro até formar o balaio. Depois de confeccionado o balaio, cada um segurando a sua ponta, o caciquinho é levado nos braços pela Vovó e colocado dentro. Todos cantam e embalam o caciquinho:
Lá se vai seu caciquinho Lá se vai seu caciquinho Dentro do seu balainho. Curuquinho ê vai dizendo Curuquinho ê vai dizendo Que ele é um passarinho Que ele é um passarinho. Na última estrofe dão uma forte puxada nos cipós do balaio e o caciquinho sobe no ar. A vovó que está segurando a mão do índio não deixa que caia e o coloca com graça novamente no balaio sob os aplausos da assistência. O grupo canta:
Quando eu vim da minha terra minha Quando eu vim da minha terra minha Minha mãe ficou chorano Eu também chorei com ela Eu também chorei com ela E sem remédio eu vim andano
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E sem remédio eu vim andano Quando eu vim da minha terra Todo mundo me rogou Etindererin, etindererin, entidererim, era, Etindererin, etindererin, entidererim, era. Para a preparação do balaio cada um dos integrantes tem a responsabilidade de ir à mata colher o seu cipó um dia antes da primeira apresentação. No tempo em que Antônio de Vital, pai de Netinho, era o líder, os cipós eram colhidos após as 16 horas e levados para a casa dele. Ali, eram cuidadosamente guardados na sombra de uma mangueira para não secarem. Quem tinha a função de carregar os cipós para o local da apresentação era o finado Raimundo Doido, que acompanhava os Caboclos em todas as apresentações e brigava com quem dissesse que ele não iria levar o cipó. Hoje, quem leva o cipó é Alonso, conhecido como Sassá, apelidado pelos Caboclos de Capitão Cipó.
Personagens e figurinos Nas roupas usadas pelos Caboclos, por eles chamadas de Fardas, predominam as cores vermelha e branca, cores do Império do Divino. O branco significa a Paz e o Vermelho o Sangue de Jesus. A Pomba representa o Altíssimo, que pousou sobre Jesus, o Espírito Santo com as labaredas de fogo. O coro de curuquinhos usa uma saia vermelha enfeitada com bicos de renda branca. Trazem no centro do peito nu um adorno formado por um coração vermelho e branco. Na cabeça um capacete de penas com enfeites em branco e vermelho. Nas mãos, o arco e a flecha. O Caciquinho e o Anãozinho, chamados Irmãos Mambaço, usam os mesmos adereços. A diferença é que a saia deles é de pena de ema. O Demeregé, o líder do grupo, usa calça e camisa de manga comprimida. A parte final das roupas, junto dos pulsos e dos pés, é enfeitada com penas miúdas. O Vovô usa calça e camisa vermelhas de manga comprida, capacete de penas e a flecha.
389 A Vovó, representada por um homem, usa saia comprida rodada, camisa de manga comprida vermelha, o capacete de penas e uma peruca branca feita de saco de náilon desfiado. O Capitão Pó traja uma roupa estilo policial, calça branca, um camisão de manga comprida de cor caqui com um cinto preto na cintura, quepe e uma espada. A Cabocla é peça chave dos caboclos. Ela leva os curuquinhos a fazer o ziguezague. Traja uma saia rodada vermelha, uma peruca preta, capacete de penas, camisa de manga longa vermelha, o adorno de coração e uma luva branca.
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Junho
O Ritual da Cavalhada Entre Mouros e Cristãos: origens A história da Cavalhada começa muito, muito antes de hoje, antes de Carinhanha, antes da Bahia, antes até do Brasil ou mesmo de Portugal. Para contar essa história, precisamos voltar mais de mil anos no tempo, quando os Cristãos entraram em conflito direto com os negros islamizados vindos do norte da África, os assim conhecidos “mouros”. Houve um momento do Império Romano em que ele se tornou tão grande que ficava impossível a um único poder central, localizado em Roma, na Península Itálica, controlar toda sua extensão. Assim, ele foi divido em dois: o Império Romano do Ocidente, cuja sede ficava em Roma, e o Império Romano do Oriente, cuja sede ficava em Constantinopla, atual Turquia. Além disso, algumas regiões foram divididas em microrregiões para facilitar o controle político-econômico sobre elas. A Península Ibérica, onde hoje ficam Espanha e Portugal, fora dividida em três partes Terraconensis, Baética e Lusitânia.(Mapa 1)
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Interessa-nos esta última. O peso que o Império Romano exercia sobre a região não era apenas político-econômico, era, mais que isso, cultural e religioso. O Catolicismo, portanto, religião oficial do Império, prevaleceu mesmo depois de sua queda, no século V d.C. Em 711 d.C., entretanto, os mouros (negros islamizados do norte da África) invadiram a Península Ibérica. (Mapa 2)
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O Império Romano já não mais existia, mas mesmo assim a organização social, política e econômica instaurada durante sua vigência prevalecia. Os mouros permaneceram na Península Ibérica até 1492, quase oito séculos, tempo suficiente para deixar marcas na língua e na cultura da região. Muitos cristãos não se deixaram assimilar, contudo, e recolheram-se no extremo norte da Península, numa região montanhosa conhecida como Montes Cantábricos. (Mapa 3)
Estavam, assim, isolados do restante do mundo românico, já que toda a Península estava ocupada pelos mouros. Pouco a pouco, os cristãos concentrados ali foram se organizando para reconquistar seus territórios originais, a área que séculos mais tarde comporia a extensão territorial da antiga Lusitânia, hoje Portugal. (Mapa 4)
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A Cavalhada conta essa história.
A Cavalhada no Brasil e em Carinhanha De origem portuguesa, a cavalhada era um ritual que tinha como objetivo a exibição de força, domínio e coragem. Celebrado durante o período da Reconquista, era onde guerreiros e nobres exibiam seus dotes físicos e sua coragem. Findo o conflito histórico, a Cavalhada eternizou-se como apenas uma representação do conflito entre mouros e cristãos na reconquista do território ocupado. Em muitos lugares do Brasil, colônia de Portugal, a cavalhada ocorre durante a festa religiosa do Divino. Os personagens principais, cavaleiros cristãos e mouros, vestem-se com cores diferenciadas enquanto galopam em seus cavalos como uma espécie de luta. É uma manifestação artística, religiosa e cultural que tem no cavalo seu elemento essencial.
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Da Cavalhada brasileira participavam originalmente os grandes senhores de terra, fazendeiros que podiam apresentar animais de grande porte ricamente vestidos. Era uma festa de sedas e veludos. Poucas cidades brasileiras conservaram a Cavalhada com o mesmo esplendor de antigamente, entre elas Montes Claros (Minas Gerais). É comum às famílias de Carinhanha enviarem seus filhos para estudar em Montes Claros. Assim, dada esta proximidade, é possível que a cavalhada tenha chegado à Carinhanha atravessando a fronteira do próprio rio que dá nome à cidade, área limítrofe entre a Bahia e o estado de Minas. Outra possibilidade, embora bem menos plausível que a primeira, pode explicar o fato da cavalhada hoje, em Carinhanha, concentrar-se numa comunidade remanescente quilombola: muitos negros que vieram para o Brasil, embora a historiografia oficial ensinada nas escolas omita este fato, não eram analfabetos. Eram os Malês, negros islamizados que, em 1835, organizaram um motim contra a coroa e o então governo do estado da Bahia. Eles escreviam em árabe, falavam em árabe, enfim, eram “mouros”. Há registros de que os mouros e árabes tenham subido o Rio São Francisco, mas não há registro de que por aqui eles tenham aportado. 1957
Seja como for, a julgar pelos registros fotográficos mais antigos, a Cavalhada parece ter mantido esse caráter, pelo menos é o que se pode perceber ainda na década de 50, pela caracterização luxuosa das vestimentas, pelo porte dos cavalos utilizados e mesmo pela referência direta, através de símbolos próprios, aos mouros e cristãos. O motivo pelo qual a Cavalhada se tornou uma prática erradicada da sede do município concentrando-se mais na área rural, na localidade da Barra do Parateca, especificamente, não está claro. O certo é que, lá, ela perde essa ligação mais direta com as camadas sociais mais abastadas, perde a narratividade da “justa” (combate individual) ou do “torneio” (combate coletivo), ficando apenas um dos momentos da Cavalhada: a corrida das argolinhas.
A Cavalhada na Barra do Parateca A Cavalhada que acontece em Barra do Parateca começou como uma simples brincadeira, no ano de 1972. Uma brincadeira que os jovens da época faziam usando cavalos. Era, portanto, um momento de descontração. No ano seguinte, entretanto, passou a ser levada a sério. A Cavalhada passou a ser apresentada no mês de maio, durante a festa do Divino Espírito Santo, que era organizada pela senhora Olímpia. O Sr. Otalhio Magalhães recorda de quando fez parte do primeiro grupo de
cavaleiros. “O negocio era animado. Lembro que essa rua, na época
que ia correr a cavalhada, ficava cheia de água. Tínhamos que colocar terra pra poder correr”. A cavalhada acontecia na rua principal
da comunidade, e a corrida das argolinhas, atrás da Igreja de São Judas Tadeu. Em 1979, devido a uma cheia no rio, o senhor Patrício Vieira Lima, que era morador do Pau D’arco, município de Malhada, mudou-se para Barra do Parateca, trazendo consigo belos cavalos que passariam a ser usados nas apresentações. Nos anos 80, com o falecimento da senhora Olímpia, a organização da festa do divino ficou sob a responsabilidade de sua filha Aristea. Mas não durou muito tempo, pois o festejo começou a enfraquecer. Com isso, a Cavalhada passou para as mãos do senhor Patrício, e passou a acontecer durante a festa de São João Batista.
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398 Atualmente, a grande apresentação acontece nos dias 22 e 23 de junho. Os participantes passam por ensaios que duram quatro domingos, iniciando no último domingo do mês de maio. O número de participantes varia a cada ano. Conta-se que houve um ano em que participaram 42 homens. Mas a quantidade mais frequente é de cerca de 24 homens, que são divididos em dois grupos trajados um com a cor azul, outro com a cor branca. Dona Geralda Rodrigues de França, 73 anos, moradora da Barra do Parateca, filha do Sr. Antônio Rodrigo e de Dona Rosenda Maria da Conceição, explica as cores as vestimentas pelas cores do manto de São João. Além dos cavaleiros, o grupo conta com a participação dos tocadores de reis, que são moradores da comunidade. Os músicos usam a flauta, caixa e zabumba para produzirem o tão famoso reis, que serve como trilha sonora para a apresentação da cavalhada. A música do reis não contém letra, é somente a melodia. Mas isso não diminui o encanto e a beleza da apresentação. Homens montados, vestidos com camisas azul e branca, chapéus enfeitados com fitas coloridas, lanternas enfeitadas e iluminadas e, no contexto desta apresentação cultural, dois cavaleiros que são escolhidos como líderes chamados de “cabeceiras” que, de certa maneira, têm a função de organizar o percurso das tropas. A apresentação finaliza com o samba dos cavaleiros em volta de uma garrafa de litro. Segundo Dona Geralda, a Cavalhada por aqui começou com uma corrida de jegue, só posteriormente é que passou a cavalo.
O ritual da Cavalhada tem início no último domingo de Maio. Quando finda o ritual, todos vão sambar até chegar o início das novenas, no dia 14 de Junho, com a primeira noite das crianças, depois, das viúvas, em seguida, noite dos lavradores, noite dos pescadores, noite dos artistas, noite dos vaqueiros, noite dos rapazes até a noite das moças, cada grupo desse é responsável por uma noite de novena. Os membros dos grupos são chamados de “noiteiros”. Os noiteros revezam-se a cada ano e os do ano passado ficam em uma das casas por onde a novena vai passar para entregar aos novos noiteros os ramos do festejo. Depois, saem pelas ruas com os foliões tocando para homenagear cada noiteiro dizendo “Viva São João Batista! Viva! Viva as crianças! Viva!
Viva as viúvas! Viva! Viva as casadas! Viva!” E assim por diante,
conforme a noite.
No dia 22 de Junho, na noite das crianças, os cavaleiros juntam-se com os donos do mastro. O mastro é um tronco de árvore bem alto, enfeitado com papel de seda e crepom, e bandeira de tecido com o desenho de São João pendurada no topo. Ao redor do mastro, ficam várias velas acesas, e os cavaleiros sambando em volta dele. No dia 23 de junho, pela manhã, acontece a corrida dos cavaleiros (24 homens, 12 de cada lado) com os vestuários branco e azul, chapéu de palha enfeitado com fitas coloridas e espelho no chapéu, lanterna de madeira enfeitada com papel de seda e uma vela dentro. Meio dia o almoço com os donos da festa e do mastro, e, às três horas, batizados, e, em seguida, a procissão com a imagem do Santo São João Batista. Logo mais à noite, a festa, com comidas típicas e bebidas.
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O ritual e a Corrida das Argolinhas No dia da apresentação, o ponto de encontro é o mercado da comunidade. Ali, cavaleiros devidamente trajados e montados em seus cavalos. O grupo de tocadores segue em frente mostrando o ritmo quente do Reis. Dão uma volta em algumas ruas, seguindo para o local da apresentação e convidando os moradores a assistirem sua apresentação. Já no local, a primeira parte da apresentação consiste em um tipo de desfile, dos cavaleiros e seus cavalos. Logo começa a segunda parte da apresentação. No meio da rua, encontram-se dois paus colocados no chão, um de cada lado da rua. Os cavaleiros vêm de dois em dois (um da cor azul e outro de branco), fazendo sua apresentação em volta dos paus, em zigue-zague. A terceira parte é a corrida das argolinhas. Feita de arame enrolado com fita vermelha a argolinha fica presa em uma corda. Cada cavaleiro deve correr em seu cavalo e, com o auxílio de uma varinha de madeira, deve tirar a argolinha da corda. Essa parte acontece em três sequencias, ou como dizem os participantes, “três carreirão”. A caixa toca no ritmo do galope. Quando tirada, o cavaleiro segue com a argolinha pela comunidade, tentando vender a argolinha. O morador pode comprar a qualquer preço. Se a pessoa triscar na argolinha ela tem que comprá-la. É uma forma de arrecadarem dinheiro para suprir as despesas. Uma curiosidade: o comprador não fica com a argolinha, ela é devolvida ao cavaleiro no mesmo instante. Nessa parte da apresentação, há uma disputa entre os cavaleiros azul e branco. No final, conta-se qual grupo conseguiu pegar mais argolinhas, quem conseguiu vender mais argolinha e quanto arrecadaram com as vendas.
Logo chega a dança dos cavalos. Um dos organizadores faz um círculo no chão, onde cada cavaleiro irá dançar com seu cavalo. Se o cavalo encostar no círculo, o cavaleiro será multado em um litro de bebida. Em seguida, é a dança dos cavaleiros ou a dança do litro, onde uma dupla de cavaleiros dança em volta de uma garrafa de bebida que fica no centro do círculo. Em comparação com o passado e o presente da cavalhada, o senhor Otalhio afirma que “Cavalhada foi na minha época. Hoje não tem cavalhada, isso aí é bagunça. Não tem organização”. Ele ainda fala que em sua época havia os cavalos certos para a apresentação, diferentemente de hoje, em que aparecem cavalos bravos. Maria de Fátima, moradora que nos conta como os cavalos eram bem preparados para as apresentações, relembra “quando
soltavam os fogos, os cavalos começavam a dançar amarrados. Me arrepio só de lembrar”.
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Julho
Dança de São Gonçalo A Dança de São Gonçalo é uma das danças mais tradicionais da cultura de nossa cidade. “Ori Viva, Ori Viva, Viva São Gonçalo viva!”. Esse é o refrão com que as mulheres do grupo louvam a São Gonçalo. Para lembrar de quando essa dança se iniciou na região é preciso ouvir as memórias daqueles que dançam desde sua infância. Assim, foi preciso ouvir a Dona Raimunda Rodrigues Belém, em cuja família a dança começou, com a sua avó, Dona Maria Ilária Belém, e sua bisavó, Ana Belém. Dona Raimunda não lembra onde elas aprenderam a dança, recorda apenas que eram somente as mulheres mais velhas que dançavam: Juliana Belém, também conhecida por Mãe Julia, por ser parteira no local, Pedrelina, Vitalina, Ângela Selina, Raimunda de Zé de Salú, Joana, Natalina de Zé de Teles, e outras senhoras que moravam na Ilha Maria da Noite; ilha próxima ao município de Malhada. As crianças até então não dançavam. Era no terreiro, à luz de lampião, chamado na época de Aladim, que as mulheres louvavam ao Santo no dia 02 de Julho, dia de Santa Isabel também. Antes da dança, era celebrada uma missa. O padre era levado de canoa ao local, remada por um morador que vinha buscá-lo em Carinhanha, e no outro dia, com o amanhecer, levava-o de volta. Depois da missa, no final da tarde, trazia-o. Além desse dia, elas dançavam como pagamento de promessa do povo da região. O pagador da promessa dava os papeis para o enfeite dos arcos e um café no fim da reza. Dona Raimunda, em meio à labuta com os preparativos do almoço, lembra, entre um verso e outro, que começou dançar ainda bem pequena (pequena na idade e no tamanho, pois tem um pouco mais de 1,50m de altura) e sua parceira era Natalina de Fiçu, ambas mais novas. Sua avó a integrou no grupo por acha que
ali ela iria aprender a se comportar na sociedade. Em outras palavras afirma
“minha avó dizia que era para mim aprender a portar no meio de gente”. Os anos passaram, ela se casou em 1964, com José Nascimento Alves e continuou morando próximo ao Rio São Francisco, mas agora na Ilha da Ingazeira. Ali, teve seus filhos, pescava e plantava milho, melancia, abóbora e feijão com seu esposo José para criar os quatro filhos. No ano de 1979, houve uma grande cheia na região, e, com o aumento do nível do rio, teve que se mudar com toda a família para Carinhanha, pois a água inundara todo o seu terreno e derrubara sua casa. Mesmo com o fim da cheia, continuou morando na cidade, mas ainda sobrevivia da pesca e da plantação no terreno da ilha. O referido terreno só fora vendido quando seu marido faleceu, em 2003, pois as dificuldades financeiras aumentaram e a opção de solucionar os problemas foi se desfazendo das terras. As outras integrantes mais velhas já estavam morando na cidade na época, inclusive seus pais, os quais tinham vendido o terreno e vindo morar na cidade para que os filhos dessem continuidade aos estudos. E aqui a Dança de São Gonçalo continuava. A dança é tocada ao som de uma caixa de Reis e de uma viola. A caixa de samba de reis é comum na nossa região. Esta é feita de madeira e coberta com couro de veado. E para batê-la o tocador usa dois palitos, ambos feitos de madeira. O senhor Antônio Baixote era quem batia essa caixa no início do grupo e o Seu Erpídio, conhecido como Piu, era quem tocava a viola. Com a morte do Seu Antônio, o seu neto Durvalino foi quem passou a batê-la. E como a morte do Seu Piu, a Dona Mãe Julia, convidou o Seu José (esposo da Raimunda Belém) para tocar a viola, pois este tinha aprendido olhando o Seu Piu tocar. O Seu José tocou a viola para o grupo até setembro de 1993, época em que teve um derrame cerebral e acabou perdendo os movimentos do braço direito.
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Dessa forma, quem assumiu seu lugar foi Feliciano, popular Fiçu. Tanto Fiçu quanto o Durvalino ainda permanecem no grupo. Na década de 80 e anos 90, o grupo se apresentava muito em celebrações religiosas nos bairros da cidade. Dessas apresentações, Dona Raimunda lembra com risos o dia em que elas voltavam de uma apresentação feita na Igreja Matriz. Um jovem ironicamente perguntou onde elas iriam rezar a encomendação das almas, já que o grupo se veste tradicionalmente de branco. Rindo, afirma que respondeu “Vamos dançar na casa de sua mãe!”. A cor branca na vestimenta do grupo tem uma simbologia. A cor das vestes usadas pelo santo é o branco. Além dessa, outra cor bastante presente é o vermelho.
Menina da saia branca, quê que traz nesse balaio? Trago cravo, trago rosas, pro Senhor São Gonçalo. Lá vem o carro cantado cheio de cravo vermelho São Gonçalo vem no meio escolhendo a mais formosa. Vem cheio de cravo e de rosa. Vésperas de dia de apresentação, elas vão para a mata arrancar cipós ainda verdes e, na porta da rua da casa de Dona Raimunda, elas descascam e enfeitam os cipós com papeis de seda coloridos, usando goma de tapioca para colá-los. Ainda na véspera da apresentação, o grupo realiza alguns ensaios, sempre à noite e, na rua Porto Alegre (Bairro São Francisco), em frente a casa de Dona Raimunda. Atualmente, o grupo vem apresentando somente em eventos culturais promovido pela Secretaria de Cultura do município, em eventos realizados em praça pública e que reúnem outros grupos culturais. Nesses eventos, o grupo recebe patrocínio para os papeis de seda dos enfeites dos arcos. A blusa usada – com a estampa do Santo – também foi a Secretaria que viabilizou, há dois anos.
405 Na dança, as mulheres são organizadas em pares. Cada uma carrega um arco todo enfeitado de papeis coloridos. O arco serve para fazer um balaio durante a dança. Ele é usado também em outros dois momentos: quando colocado no chão para as integrantes saltá-lo; − aqui todos saltam, arco por arco, mas sem deixar soltar o seu; e durante a despedida do grupo, quando cada dupla vem em direção aos tocadores, roda, os cumprimenta e bate um arco no outro, depois retorna ao seu lugar, sempre seguindo a sequência. A cada parte do canto corresponde uma coreografia. A segunda parte da dança é uma rápida apresentação chamada Tindá. Aqui, o ritmo da caixa é mais rápido e pés e corpo devem acompanhar esse ritmo. Cada dupla vem com o Senhor Daniel entre ela e na direção dos músicos rodam e cumprimentam os tocadores. Aqui, tudo é muito rápido. A animação é provocada pelo ritmo do samba, que é algo contagiante. Quem ouve, mesmo sem querer, acaba movimentado o corpo. Nessa parte, há somente o seguinte verso que é repetido com muita animação:
Oh, Tinda! Oh, Tinda! Oh, Tindá! Mancabira no pau de sereá! Oh, Tinda! Oh, Tinda! Oh, Tindá! Mancabira no pau de sereá! Nessa parte, Seu Daniel canta e as mulheres respondem. Toda a apresentação da dança de São Gonçalo dura em torno de 40 minutos.
406 A Dança de São Gonçalo fora passada de geração a geração na família Belém. Hoje, porém, nota-se que esse costume vem se perdendo na família, pois à maioria dos mais novos não foi ensinada a prática dessa dança, e, por isso, não sabem os versos nem a coreografia. Atualmente, o grupo conta com dezesseis mulheres, os dois tocadores e o Seu Daniel Belém, filho da Mãe Júlia. A função do Seu Daniel na dança é a de ser o cavalheiro, que, ao dançar na frente, serve de guia, de condutor das mulheres. No passado, quem fazia essa função era o Seu Zeca ou Salú. Dona Raimunda, emocionada, narra o porquê de ainda continuar no grupo. Afirma que permanece até hoje por essa ser uma tradição dos mais velhos de sua família e, principalmente, por estar atendendo a um pedido da Mãe Julia quando esta ainda era viva. Emocionada lembrou que a Mãe Julia a chamou e disse “‘Raimunda eu sei que eu tô desse jeito e não sei se vou
sarar. Se eu morrer, você toma conta do meu São Gonçalo, não deixa acabar’. Era coisa que minha mãe falava, ‘Juliana vou morrer você toma conta do meu São Gonçalo’”. E, com esse pedido, fez-lhe a doação
do santo que pertencia a Zeca Belém. O verdadeiro santo foi roubado quando o Zeca morrera. E lembra também que na antiga imagem era São Gonçalo e Santo Antônio juntos. São Gonçalo com uma viola e Santo Antônio com uma caixa. Com detalhes, recorda que Santo Antônio era o mais baixinho e que ele não gostava de festa, ao contrário de Gonçalo. Afirmou, ainda, que Santo Antônio era o santo dos casamentos e que São Gonçalo era o dono da folia, das festas. E, cantando um verso, lembrou:
São Gonçalo e Santo Antônio só andavam de profia. Santo Antonio dizendo missa, e São Gonçalo na folia. Oh, meu Senhor São Gonçalo, casamento a todas as velhas, Por que não casa essa moça? Que mal fizeram elas?
E ela ainda acrescentou, entre risos e com preocupação, onde guardaria as coisas da mudança do filho, que os mais velhos diziam que “eram as moças velhas que fazia essa dança junto com o Santo. Cantavam esse Reis para ver ser arranjavam um casamento”. Acrescentou também que na abertura do Reis, as mulheres cantam dizendo,
Jesus, Santa Maria Jesus, Santa Maria. Louvores da gloria, Santa Maria. Estrela no céu será nosso guia. Viva São Gonçalo, hoje aqui nesse dia. Ao ouvir minha avó cantar todos os versos do Reis de São Gonçalo, senti mais que emoção ao vê-la nesse entusiasmo. Me emocionei não somente ao ouvi-la, mas principalmente ao transcrever esse momento, pois aqui me dei conta do que representa a história dessa dança não só para a sua vida, mas principalmente para toda nossa família. Me fez recordar que aprendi a cantar esses versos ainda quando criança, em sua casa, nos dias de ensaio do grupo e que, ainda adolescente, cheguei também a dançar. E como minha avó, eu e minha parceira éramos as menorzinhas entre as senhoras. Me emocionei, principalmente ao sentir que, mesmo passando por problemas de saúde e com apreensões para uma cirurgia, minha avó, Dona Raimunda Belém, espera se recuperar. E, por fim, afirma, com emoção e principalmente com fé,
“Se Deus me der vida e saúde, espero ir para Romaria da Terra e das Águas em Bom Jesus da Lapa, e, quando chegar, rezar em honra a São Gonçalo. Tenho fé em São Gonçalo. Tudo que peço ele me ajuda”.
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Notas (1) SOUZA, José Evangelista de. Coronéis no Médio São Francisco: Fatos e Histórias. 2ª ed. Santana, BA: Editora AJASS, 2007, p. 40. (2) SANTOS, Honorato Ribeiro dos. História de Carinhanha. 4ª ed. GuanambiBA: Gráfica Papel Bom, 2006, p. 70. (3) ROMERO, Silvio. Estudos sobre a poesia popular no Brasil. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 45. (4) CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 8ª ed. São Paulo: Global, 2000, p. 307. (5) SOUZA, José Evangelista. op.cit. (6) CASCUDO, Luís da Câmara. op.cit., p. 484. (7) . Folclore do Brasil (pesquisas e notas). São Paulo; Lisboa: Ed. Fundo de Cultura, 1967, p. 53. (8) Idem, loc.cit. (9) SANTOS, Honorato Ribeiro. op.cit. (10) Idem, Ibidem.
Minha terra é minha nação Capítulo V
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Territórios, culturas
e identidades: movimentos sociais e a luta pela terra Introdução
“A gente não é de um lugar enquanto não tem um morto enterrado nele.” Gabriel Garcia Marques. Cem anos de Solidão.1
Os textos que compõem esta seção tratam de uma parte significativa da história e da cultura de Carinhanha porque retratam um traço marcante do povo desta cidade, ou, melhor dizendo, de toda essa região abençoada pelas águas do Velho Chico. Água é sinônimo de riqueza, porque pressupõe saciedade, fertilidade e abundância de alimento para aqueles que podem usufruir dela. As terras próximas ao São Francisco sempre foram alvo da cobiça e da ambição de pessoas que só viam nessas terras uma forma de acumular riquezas, de construir patrimônio à custa da exploração irracional dos recursos naturais da região, exploração cujas consequências podemos ver já nos dias de hoje. Bem diferente dos povos nativos que, há muitas gerações, vivem do e com o rio, parte de suas próprias vidas. Suas histórias, práticas e modos de vida, crenças e cosmologias têm no Rio São Francisco o principal elemento constitutivo. É neste cenário de contrastes e lutas que se estabelece a história de diversas comunidades ribeirinhas da margem esquerda do São Francisco. No município de Carinhanha, enfrentaram e até hoje enfrentam obstáculos para permanecer em seus territórios. Esse território é muito mais do que um pedaço de terra, pois se constitui de lugares que guardam lembranças, trajetórias e sentimentos inscritos no corpo e na alma de cada morador. O chão onde pisam é muito mais do que um encalço para os pés, é aquilo que dá segurança, que os norteia e lhes faz sentir protegidos dos perigos “lá de fora”. É a junção da terra habitada como os sentimentos, memórias, experiências, percepções e destinos comuns o que servem de suporte para construção de uma identidade sociocultural e territorial.
Essas identidades se tornam evidentes, se manifestam, quando esses povos e comunidades têm seus territórios ameaçados pela especulação imobiliária, pela cobiça de fazendeiros ou quando se encontram em áreas inseridas em grandes empreendimentos. Algumas dessas situações foram ou estão sendo vivenciadas em comunidades como Barra do Parateca, Estreito, Canabrava e Três Ilhas*. Às duas primeiras se acrescenta o elemento étnico, pois são comunidades que reivindicam uma identidade quilombola. As comunidades Remanescentes de Quilombo, contemporaneamente, são grupos étnicos que compartilham de um passado comum, de valores, práticas, rituais e tradições que os distinguem de outros grupos. Acrescentase a isso, um histórico de resistência a toda forma de opressão e a defesa de um território comum*. Essa distinção passa a se tornar visível a partir de estímulos externos, ou seja, quando são obrigados a estabelecer critérios que os diferenciam dos outros. Geralmente, esse processo acontece em momentos de conflito, sobretudo conflitos envolvendo os territórios onde vivem tradicionalmente. A partir desta noção, é necessário esclarecer ao leitor a importância de compreender que tais comunidades não são obrigatoriamente resquícios de um passado colonial e escravagista, mas também são grupos que se constroem e reconstroem a partir de elos sociais e culturais que ligam o passado ao presente. Nesse contexto, os relatos históricos contados nas próximas páginas tratam de conflitos pela posse de terras tradicionalmente ocupadas por comunidades que lutam para permanecer em seus territórios, utilizando todos os instrumentos de que dispõem para tornarem legítimas suas reivindicações. Na construção dos instrumentos de defesa, as relações de parentesco, as crenças e rituais religiosos, as tradições culturais e a organização política se misturam para compor a história e a identidade dessas comunidades. Por isso, decidimos contar a trajetória dessas quatro comunidades que têm em comum uma relação marcante com o lugar onde vivem e que, no confronto com fazendeiros e órgãos do Estado que tentam usurpar seus territórios, narram a própria história para convencer a todos da justeza de sua luta a fim
413 * Das quatro comunidades citadas, somente Canabrava não se encontra na margem do São Francisco, estando no centro-norte do município, banhada pelas águas do Riacho Canabrava.
* v. Art. 68 - Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988.
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de poder permanecer nos locais onde vivem. Nestas narrativas, o território está intrinsecamente relacionado aos rituais religiosos, às danças e festas, práticas de subsistência e uso comum dos recursos naturais, entre outros aspectos da vida cotidiana.2 Por estas histórias, é possível entender que cultura, religião e política não são esferas autônomas e dissociadas. Pelo contrário, estão em íntima relação, e, neste caso, são usadas como armas de defesa. Nesta perspectiva, é importante lembrar o importante e decisivo apoio da Igreja Católica nas lutas pela terra em Carinhanha. Como se poderá ver adiante, as pastorais sociais e algumas lideranças religiosas tiveram uma atuação intensa na mobilização e na assessoria política às comunidades negras rurais do município, sobretudo a partir da década de 1970. Por último, e a título de contextualização, a inclusão das comunidades de Canabrava e Três Ilhas nesta seção, deve-se primeiramente à questão da terra. Mas é importante notar também que, mesmo não utilizando um discurso étnico, todas se constituem como comunidades negras rurais, compartilhando de processos de ocupação e afirmação territorial semelhantes.3
Comunidade Quilombola da Barra do Parateca “O navio negreiro aportou no porto”
Formação e povoamento Barra do Parateca, na margem esquerda do Rio São Francisco, fica localizada no município de Carinhanha-BA, pertencente à microrregião do Médio São Francisco, região limítrofe com o estado de Minas Gerais. A comunidade iniciou-se como um desmembramento da Fazenda Várzea Grande, já no tempo dos “Bastos”. Segundo relatos, a família do Major Olegário Bastos detinha a posse das terras que compreende a região onde está localizada Barra do Parateca. Segundo Maria Pereira Rocha, liderança local, a comunidade era uma fazenda devoluta em que a família dos Bastos chegou e de que tomou posse, da Volta até o Espírito Santo. Major Olegário Bastos, montado em um cavalo, demarcou as terras pra ele, os irmãos e demais familiares. Como o fazendeiro não tinha herdeiros, deixou sua herança para os sobrinhos, filhos de Maria Cota Bastos, sua irmã, e Sinésio Bastos. A ancestralidade das famílias que hoje habitam a comunidade remonta à figura de certo homem chamado José Ribeiro, que veio do outro lado do São Francisco para Barra do Parateca em busca de trabalho. José Ribeiro, inicialmente um agregado, tornou-se funcionário da família Bastos, trabalhando como vaqueiro. Com o passar do tempo, tendo adquirido a confiança dos patrões por seus serviços prestados, Major Olegário, por meio de um acordo, “arranja” um casamento entre José Ribeiro e Filomena, filha de uma escrava que vivia na fazenda de Homero Bastos, filho de sua irmã Maria Cota. Dessa união originaram-se as famílias existentes hoje na comunidade. Com o casamento, José Ribeiro recebeu um pedaço de terra da família Bastos. Algum tempo depois, Ribeiro trouxe outras pessoas para se agregarem nesse pedaço de terra. Segundo relatos locais, algumas famílias vieram de localidades como Parateca, Riacho do Santana, Rio das Rãs entre outras.
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A origem do nome da comunidade veio devido a um córrego local que formava uma barra no encontro com o São Francisco, na altura de Parateca, no lado direito do rio. O córrego era chamado de “Barra”, e como estava em frente à localidade de Parateca, o recém criado povoado passou a ser denominado Barra do Parateca.4 Atualmente, a comunidade possui uma população de aproximadamente 1.200 pessoas distribuídas em mais de 240 famílias.
Barra do Parateca
“O navio negreiro aportou no porto”: marco étnico Embora a luta pelos direitos sociais e fundiários da comunidade quilombola da Barra do Parateca tenha iniciado há alguns anos, um fato específico se configura como um marco étnico da luta pela afirmação identitária, pela busca dos direitos sociais, étnicos e fundiários da comunidade: a discriminação sofrida por uma adolescente da Barra do Parateca por colegas da escola onde estudava, numa localidade vizinha. Durante o tempo em que permaneceram na escola, as estudantes eram vítimas de ofensas e xingamentos. Conta-se que quando chegavam ao portão da escola, se ouviam piadas e comentários preconceituosos do tipo “o navio negreiro aportou no porto”.
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O caso foi levado à direção da escola, que não conseguiu averiguar a ocorrência de qualquer ato discriminatório. No sentido de buscar respeito, os alunos se reuniram com os líderes da comunidade na Igreja de São Judas e juntos realizaram um abaixo-assinado denunciando a discriminação. Dessa reunião, resultou um documento que foi entregue a um promotor que logo enviou uma intimação à escola e outra aos alunos responsáveis pelas ofensas. Apesar da escola não ter conseguido averiguar a ocorrência de qualquer discriminação, ela está explícita em frases escritas nas carteiras, nos banheiros, nas paredes, nas palavras e atitudes de alguns alunos. Quando o ônibus trazendo os alunos da Barra do Parateca, negros em sua totalidade, parava na porta da escola, podiam-se ouvir frases como “o navio negreiro aportou no porto”. Quando eles passavam, “os alunos da Barra fedem peixe”. Identificando alguém, dizia-se “ fulana de tal é uma negrinha” ou mesmo na generalidade “os negrinhos da Barra são insolentes”. Uma das estudantes relata que no final de um dia de aula, quando se dirigia ao ônibus que a levaria para casa, um dos alunos que havia sido intimado partiu em sua direção pilotando uma moto em alta velocidade tentando agredi-la. Com o grito de uma colega, ela teria conseguido se desviar. Mesmo assim, o estudante ainda jogou a moto por cima dela, que caiu na calçada. O Caso foi levado novamente ao promotor e à rádio de Carinhanha, onde ela mesma esclareceu o acontecimento. No dia seguinte, o pai de um estudante acusado foi até a escola com um cabo de machado com o intuito de agredir as alunas da Barra da Parateca, que acabaram ficando encurraladas na sala, sem poder ir embora. A polícia chegou à escola e as escoltaram até a porta do ônibus. Depois disso, algumas estudantes não retornaram mais à escola. O fato relatado acima poderia ser mais um dos inúmeros casos de preconceito étnico-racial sofrido por dezenas de pessoas cotidianamente neste país e em outros espalhados pelo mundo. Entretanto, ele adquiriu um significado histórico e simbólico em Barra do Parateca, sobretudo porque despertou na comunidade uma reação que se manifestou num processo de organização cujo objetivo era, ao mesmo tempo, a luta contra a discriminação e a afirmação de uma identidade étnica. O ato discriminatório passou a ter um sentido político e cultural, pois ao mesmo tempo em que as famílias de Barra do Parateca organizam uma reação
contra o preconceito, elas também iniciam a luta pelo reconhecimento da comunidade enquanto remanescente de quilombo. Com a ajuda da professora Heldina Pereira Pinto e do Advogado Célio dos Santos, a comunidade funda a ONG Movimento pela dignidade, cidadania do povo negro do meio rural de Barra do Parateca. A instituição foi fundada no dia 27 de novembro de 2005 e passou a ser de suma importância para as ações etnopolíticas da comunidade, principalmente de construir uma história pautada na memória coletiva que, apesar de um histórico de lutas, ressalta o orgulho e o pertencimento ao lugar de origem. Isso pode ser visto no discurso das lideranças locais. Em conversa com alguns líderes da comunidade, percebe-se o interesse, o prazer e a satisfação de relatarem a história da comunidade. São pessoas que não se envergonham de suas origens, valorizam sua história e fazem questão de expor, para todos, as lutas em busca de reconhecimento e garantia dos direitos que lhes possibilitam uma vida melhor. Nesse contexto étnico, a história de luta pela terra nessa região teve sua primeira vitória em 2005, quando a comunidade recebeu da Fundação Cultural Palmares a carta de reconhecimento como uma área remanescente de quilombo. Em 2008, com apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento Estadual de Trabalhadores Acampados, Assentados e Quilombolas (CETA), foi fundada a Associação Agropastoril Quilombola de Barra do Parateca. Desde então, a comunidade vem lutando junto ao INCRA para a regularização fundiária da comunidade como terras quilombolas.
Luta pela terra O histórico de conflito e luta pela permanência na terra em Barra do Parateca remonta aos anos 1970, com o projeto de reassentamento das famílias que tiveram suas terras inundadas pela barragem do Sobradinho. Na época, o INCRA iniciou a construção de Agrovilas para receber as famílias desapropriadas. No entanto, não se importou com as famílias e povoados que já habitavam a região. A truculência e o autoritarismo do órgão federal levaram muitas famílias de Barra do Parateca e outras localidades a abandonar suas terras com medo de represálias da polícia, caso não saíssem de lá.
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Com a saída de uma parte das famílias, alguns fazendeiros se aproveitaram para se apossar das terras e se proclamarem donos das propriedades. Alguns anos depois, as famílias voltaram, porém, agora os fazendeiros foi que passaram a resistir e ameaçar as famílias que tentavam voltar aos seus territórios. Desde então, a comunidade de Barra do Parateca vive espremida numa área de pouco mais de 18 hectares, aguardando a regularização fundiária pelo INCRA. A luta se intensificou no dia 03 de maio de 2008, quando os quilombolas reocuparam e utilizaram para o plantio as terras próximas do rio São Francisco, em área que pertence à União. Um grupo de fazendeiros entrou na justiça, a Associação foi processada e algumas lideranças foram criminalizadas. Uma dezena de processos de interdito proibitório foi impetrada em uma semana contra a comunidade. Além disso, houve uma operação truculenta da polícia federal que destruiu casas, roçados e hortas das famílias de Barra do Parateca, além da prisão de uma liderança local. Somam-se a isso as ameaças de morte aos coordenadores da associação. Em 18 de julho de 2008, houve uma Audiência Pública na região, e o pedido de reforço policial para a área feito pela justiça federal diminuiu temporariamente as tensões na região. O INCRA iniciou as etapas para a regularização fundiária, tendo inclusive concluído o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do território quilombola de Barra do Parateca. A comunidade aguarda a publicação em Diário Oficial e o prosseguimento do processo fundiário. A comunidade também obteve outras conquistas, como uma estação digital, cestas básicas para os associados, um trator equipado para preparar a terra, um projeto de uma casa de Farinha, um CRAS quilombola, que oferece serviço socioassistencial e, desde 2006, a escola Francisco Pinto tornou-se extensão do Colégio Estadual Coronel João Duque, oferecendo o Ensino Médio aos estudantes de Barra do Parateca.
Sincretismo A história de Carinhanha é fortemente marcada pela presença indígena e africana. Tanto o livro do Pe. Souza quanto o livro do Sr. Honorato Ribeiro fazem menção aos índios Kaiapós, que habitariam esta região quando da
chegada do bandeirante Manuel Nunes Viana, em 1612. No período colonial, temos a chegada da população negra para trabalhar nas lavouras de algodão e cana-de-açúcar. Escravos fugidos e seus remanescentes vão, então, formar comunidades resistentes à escravidão nas margens do São Francisco, onde tradicionalmente já habitavam esses e outros indígenas. Na comunidade do Estreito, existem relatos sobre uma índia que teria sido capturada nas matas do São Francisco e “domesticada” pelos negros. A partir desses contatos teremos a união de negros e índios – e isso sem mencionar o elemento europeu, branco − que deu origem a uma população etnicamente “misturada”. Nas comunidades negras rurais de Carinhanha, sobretudo na comunidade quilombola da Barra do Parateca, os rituais religiosos praticados por alguns moradores refletem ainda a religiosidade afro, agora contornada por crenças e rituais que reiteram esse sincretismo. Entre os resultados dessa mistura, surgiram religiões como a umbanda e o candomblé. A umbanda e o candomblé congregam, em seus rituais, práticas mágiconaturais e cultos aos seres que habitam a natureza, de origem indígena, como também o culto e devoção aos Guias, Orixás, Exus e outras entidades, cuja origem remete às religiões africanas e que, a partir das estratégias e agenciamentos culturais dessas populações, foram sincretizadas nas crenças, devoções e adoração aos personagens do cristianismo católico. A presença dessa diversidade religiosa, além de um importante elemento étnico e histórico que corrobora a presença desses grupos na formação das comunidades locais, mostra as articulações étnicas para que essas práticas religiosas pudessem permanecer apesar da intensa perseguição e hostilidade das religiões católica e protestante com relação a essas religiões.
O Candomblé Por volta dos anos 20, fundou-se o primeiro terreiro de candomblé na Barra do Parateca. O senhor João Malaquias, pertencente à cidade de Bom Jesus da Lapa, foi o primeiro Pai de Santo da comunidade. Ele foi o
Altar de Santa Bárbara
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responsável pela construção do terreiro. Como não pertencia à comunidade, deixou o centro sob a responsabilidade do senhor Valdivino. Segundo relato de seu filho Antônio, o senhor Valdivino tinha certo “assanho” por mulheres. Essa euforia acabou deixando-o perturbado. Preocupada, sua mãe procurou meios para ajudar o filho. O senhor João Malaquias acabou afirmando que era espírito ruim. Com isso, Valdivino passou a frequentar o terreiro e, com o tempo, começou a ser preparado para assumir o terreiro com a partida do senhor Malaquias, que consideravam “um Pai de Santo bom”. Com a morte do senhor Valdivino, em novembro de 2007, seus filhos, Antônio e Celsa assumiram o terreiro. “É uma tradição de família que não queremos que morra”, afirma seu filho Antônio, que demonstrou bastante emoção ao se lembrar do pai e de seus feitos como Pai de Santo. Ele afirma ainda que sempre gostou e prestigiou os trabalhos realizados no terreiro. Atualmente, Antônio é o Pai de Santo e sua irmã Celsa, a Mãe Pequena, quem assume a responsabilidade dos trabalhos na ausência do Pai de Santo.
Terreiro de Santa Bárbara
Dona Celsa, em suas memórias, relembra como o terreiro era visto antes e compara com os dias atuais. Antes, eles eram rotulados de “macumbeiros”, não eram bem aceitos na comunidade. Chegaram a realizar um abaixoassinado para a remoção do terreiro. Hoje, no entanto, quase todos abraçam e demonstram respeito. Segundo eles, é bem frequentado. Dos trabalhos que são realizados, eles destacam a limpeza, a perturbação, a bruxaria e a preparação do santo, mas não podem detalhar o processo desses trabalhos. Segundo Antônio, a mulher menstruada e parida não pode fazer parte das celebrações, por estarem de corpo aberto e, assim ficar fácil pegar um mau espírito. Ele afirma que os Orixás veem isso como sujeira, o que acaba atrapalhando nos trabalhos. Dona Celsa conta ainda um pouco da Igreja de Santa Barbara. A Igreja é mais velha que o terreiro. Mas, antes de sua construção, Santa Bárbara já era celebrada. As celebrações aconteciam na casa de sua avó. Só alguns anos mais tarde levantaram a Igreja. A escolha de Santa Bárbara se deu pelo fato dela ser uma Pastorinha e Rainha do Candomblé.
Igreja de Santa Bárbara
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A Umbanda Com o tempo, surgiu outro terreiro, mas de Umbanda, que foi construído na comunidade por Clotildes Ferreira, mais conhecida como Dona Coló. A mãe de santo, sendo devota de Cosme e Damião, decidiu dedicar as celebrações de seu terreiro a eles.
* Diz-se assim das pessoas que frequentam os centros, terreiros de Umbanda ou Candomblé.
Edna dos Santos, filha de Dona Coló, é quem conta um pouco da história de sua mãe. Dona Coló está há mais de 40 anos nos trabalhos. Antigamente, como os moradores discriminavam as “pessoas de centro”*, Dona Coló realizava seus trabalhos escondida no mato. Edna estava sempre em sua companhia. Com alguns anos, Dona Coló foi trabalhar no terreiro do senhor Valdivino. De seus filhos, somente Edna se mostra interessada a dar continuidade aos trabalhos. Ela fala, ainda, que quando voltou a viver na comunidade, sua mãe fez o trabalho dela para que ela lhe pudesse ajudar. “Pra ajudar o chefe, você tem que estar limpo”, diz ela. “Tem que ter limpeza, batizado, confirmação”, se referindo ao processo de preparação. Com a ausência da Mãe de Santo, ela pode realizar banho de proteção, limpeza etc. Edna diz ainda que é preciso estar preparada, pois o que tiver de mal na pessoa pode acabar passando pra outra pessoa. Dentre os trabalhos realizados no terreiro, foram apresentados os de proteção (um banho com rosas, vassourinha de Nossa Senhora, São João, perfume e talco), banho de abô ou descarga (tipi, palha de alho, lança de xangô, espada
Terreiro de Dona Coló
de ogum, laranjeira brava, espinho branco). Àqueles que querem se iniciar é preciso, antes de tudo, passar por um processo de limpeza a fim de que possa, assim, entrar no meio dos outros. Durante a festa do terreiro, não é permitida a entrada de bebidas alcoólicas. Devido o terreiro ser de Cosme e Damião e se tratarem de duas crianças, só são servidos sucos, refrigerantes, bolo, biscoito, pipoca, balas etc. Como se fosse uma festa de aniversário de uma criança. Edna aproveita o momento para desmentir falsas informações que giram em torno do terreiro. Historinhas criadas por pessoas que desconhecem os trabalhos realizados dentro do terreiro, como as que dizem que lá só se realiza “macumba para prejudicar pessoas”, ou que fazem “pedidos ao demônio”, entre muitas outras mentiras. Além dos chefes, os terreiros da comunidade contam ainda com outros participantes que são fundamentais durante os trabalhos: os Filhos de Santo, também conhecidos como Médium ou Iaô; o Zelador de Umbanda, responsável por zelar a casinha de Oxum e por levar o despacho para o cemitério ou para a encruzilhada; os Ogãs, batedores de tambor e atabaques. Uma das coisas que chama a atenção de quem está assistindo os trabalhos são as roupas das mulheres. Elas estão vestidas de saia rodada com estampas floridas ou de cores claras, colares, enfeites em suas cabeças. Durante os trabalhos, só são usadas roupas de tons claros, pois, para eles, cores escuras como o preto simbolizam a negatividade. Sem falar nos movimentos de seus corpos durante as danças.
Altar de São Cosme e Damião
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Comunidade Quilombola do Estreito “Nós quer ser quilombola porque é difícil vender a terra... A terra é uma nação; eu quero a terra para os meus netos”. Seu Elias, presidente da Associação do Estreito
Formação e povoamento A comunidade de Estreito, também situada na margem esquerda do Rio São Francisco, teve seu processo de formação semelhante às demais comunidades situadas nas margens do Velho Chico. Segundo relatos orais, as primeiras famílias chegaram nas primeiras décadas do século XX, vindas de fazendas e localidades como Parateca, Pilão Arcado, Remanso, Macaúba, Bom Jesus da Lapa e Feira de Santana. De acordo com Seu Elias, liderança local e Pai de Santo, os que vieram de mais longe, teriam migrado em busca de água e terras férteis no período de uma seca intensa ocorrida na década de 1930. Ao chegar ao leito do São Francisco, conta ele, teriam encontrado um paraíso, rico em água, peixe, frutos e terras férteis para o plantio agrícola. Entretanto, os primeiros núcleos familiares que chegaram ao local se depararam com uma densa mata, tendo que desbravar a terra a partir do leito do rio.
Ainda segundo Elias, a família Bastos teria se apropriado das terras onde se formaria a comunidade do Estreito. Algum tempo depois, a família teria vendido uma parte da terra para Otávio Barbosa, que, por sua vez, a teria vendido para um fazendeiro gaúcho por nome Lindolfo. Ao longo de várias décadas, as famílias do Estreito teriam ocupado as terras na condição de “posseiros”. Alguns sendo obrigados a ceder pedaços de terras, com suas roças, para aqueles que se diziam proprietários da terra. Tal situação durou até a década de 1970, quando os fazendeiros foram indenizados pelo INCRA, que pretendia transformar o local em área de Reserva Legal do projeto das Agrovilas. Com a indenização, os fazendeiros se retiraram da terra, como também algumas famílias do Estreito e de outras comunidades próximas que aceitaram os lotes doados pelo INCRA nas Agrovilas. Entretanto, a maior parte das famílias resolveu permanecer no local e lá estão até hoje. Até bem pouco tempo, as habitações eram espalhadas ao longo do território da comunidade, mas com a chegada da energia elétrica as famílias foram reassentadas em casas construídas pelo INCRA em duas ruas principais. Com isso, houve uma separação entre o espaço de habitação e o de trabalho, já que as roças ficam um pouco distantes das casas.
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Atualmente, a comunidade do Estreito é formada por 230 habitantes distribuídos em mais de 40 famílias que descendem basicamente de dois ancestrais: Seu Cipriano, falecido recentemente, e Dona Maria das Neves, que morreu em 2008. Há aqui, portanto, certo vínculo de solidariedade familiar e social. Seu Cipriano faleceu aos 98 anos de idade e foi um dos principais moradores do Estreito. Ficou conhecido na comunidade como rezador, pelo seu ofício de interceder pela cura das enfermidades das pessoas que o procuravam. Quando alguém era acometido com algum tipo de doença, logo procurava Seu Cipriano para ser rezado por ele. Dona Maria das Neves foi uma das pessoas que prezavam bastante pelas tradições cristãs no Estreito. Conhecida popularmente como Badega, hoje já falecida. Segundo o relato de Domingas, sua nora e ajudante, Dona Maria das Neves reunia toda a comunidade para rezar em sua casa nos dias dos santos de que era devota. Rezava na Semana Santa e principalmente na Festa do Divino, no mês de maio. Na Festa do Divino, Maria das Neves mantinha o costume de levantar e fincar o mastro com a bandeira do Divino hasteada. De acordo com alguns moradores, há uma tradição que reza que se a bandeira cair do mastro é porque a pessoa que a hasteou, a que comanda o levantamento, morrerá antes do levantamento do mastro no ano seguinte. Curiosamente, quando Dona Maria das Neves levantou o mastro pela última vez, em 2009, a bandeira caiu. Pouco tempo depois, ela veio a falecer. Após sua morte, não se praticou mais o costume de levantar o mastro do Divino. Além disso, infelizmente, ninguém quis continuar as rezas e reuniões que Maria das Neves fazia costumeiramente, estando ainda seu oráculo com todas as imagens que ela utilizava para rezar guardado na casa de um de seus netos.
“Minha terra é minha nação”: marco étnico Diferente da Barra do Parateca, a situação fundiária da comunidade do Estreito é relativamente tranquila e estável, já que não há conflito pela posse da terra, embora a comunidade ainda não tenha o título definitivo da propriedade. Em tese, numa perspectiva extramente utilitarista, a busca pelo reconhecimento oficial da identidade quilombola não seria um bom empreendimento, dados os aspectos fundiários estarem parcialmente resolvidos e principalmente porque o reconhecimento tem se mostrado historicamente um processo lento. Entretanto, em 2006, a comunidade do Estreito iniciou, junto à Fundação Palmares, seu processo de reconhecimento como Remanescente de Quilombo. Nessa época, receberam ajuda de instituições como a CPT, CETA e das lideranças da Barra do Parateca. A luta dos vizinhos serviu também de estímulo e referência para que as famílias do Estreito pudessem tomar consciência do que o reconhecimento étnico representa aos quilombolas. Ao perguntar às lideranças locais que motivações impulsionaram a comunidade a buscar seu reconhecimento, três aspectos fundamentais apareceram no discurso das lideranças: o primeiro se refere à questão da “luta”, no que esta palavra assume um significado histórico que compreende desde os deslocamentos vivenciados pelos ancestrais em busca de terra até o esforço conjunto para garantir à coletividade uma vida digna no presente e no futuro; o segundo aspecto está relacionado aos laços sanguíneos e afetivos que une as famílias em torno de uma memória coletiva que constrói uma história singular, marcada pela solidariedade social; o terceiro aspecto se manifesta na relação com o território compartilhado, bem como o valor social, político e cultural atribuído a ele. Ao ser questionado pelo motivo do reconhecimento étnico, Seu Elias afirma que sua “terra é uma nação”, ou seja, um lugar portador de uma coletividade e de um território comum. Elias complementa sua fala afirmando José Ferreira - Mais velho do Estreito
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que “no quilombo é difícil vender a terra”, e que “quer deixar a terra para seus netos”. O desejo de Seu Elias expressa uma lógica de ocupação da terra que a vê não como uma mercadoria, passível de negociação, mercantilizada, mas como um lugar-refúgio, portador de uma história de luta, resistência e vitórias, bem como da memória coletiva e identidade quilombola que deve ser repassada para as futuras gerações da comunidade. Até maio de 2012, a comunidade ainda aguarda a chegada do Certificado de Reconhecimento como Remanescente de Quilombo emitida pela Fundação Cultural Palmares, a qualquer momento.
Comunidade de Canabrava “Sou lavrador e eu nasci foi nessa terra Nem que eu morra eu faço guerra Ninguém pode nos tomar” Trecho da Música de Elpídio Oliveira, morador de Canabrava.
Formação e povoamento Canabrava é um povoado carinhanhense situado a 60 Km da sede do município. A origem do nome da localidade vem de uma planta da família do bambu, chamada Canabrava, que tinha em abundância nas margens do Riacho das Pitubas, que banha o povoado. Hoje, devido o desmatamento, a planta foi extinta. Canabrava faz limite com as localidades de Agrovila XXIII, Riacho do Capinão, Agrovila XVI e Núcleo II. A comunidade local é formada praticamente por pessoas pertencentes à mesma família. Segundo relatos da comunidade, o primeiro morador de Canabrava foi Laurentino Fernandes Reis, conhecido como Seu Fulozinho, um remanescente de quilombola já falecido, que, juntamente com sua família se estabeleceu no local, plantando ali sua roça. Como não possuía documentos que comprovassem a posse da terra, Fulozinho foi expulso pelo Senhor Zizinho, que afirmava ter herdado a terra de seu pai Cipriano Rodrigues da Silva, que dizia ter documentos que asseguravam o direito às terras. Como não queria viver no local, Zizinho decidiu ir para São Paulo, e vendeu suas terras para
Pedro Manoel Moreira, conhecido como Pedro Macaúbas, fazendeiro que tinha uma grande influência na época dos coronéis. Mesmo afirmando ter sido o primeiro morador, Seu Fulozinho não teve como provar a posse da terra. Juntando-se a isso a influência política de Pedro Macaúbas, o fazendeiro ganhou a questão e a justiça desapropriou Seu Fulozinho e sua família sem nenhum direito. Assim, o povoamento de Canabrava foi se constituindo a partir da família de Pedro Macaúbas e de outras famílias que foram chegando e comprando terrenos que foram vendidos pelos filhos do fazendeiro. Nesta época, as famílias tinham um modo de vida rurícola. De posse do seu pedaço de chão, plantavam milho, feijão, amendoim, abóbora, melancia, mandioca etc., e criavam animais como galinhas, porcos, vacas e ovelhas. As tecnologias utilizadas nas lavouras eram bem rudimentares. O arado era puxado pelo boi ou cavalo. A enxada e a foice para limpar e capinar o mato. O mutirão era uma atividade constante nas roças dos vizinhos e compadres. Os recursos naturais eram utilizados de forma equilibrada, pois ainda não havia o desmatamento para o fabrico do carvão, nem o uso de agrotóxicos para combater insetos e herbicidas. Apesar das dificuldades existentes, os moradores tinham uma vida tranquila, pois tudo que plantavam, colhiam com fartura para o sustento da família e da criação. A educação ficava exclusivamente por conta da família. Não havia escola no lugar e nem professor habilitado a ensinar. Os filhos, desde cedo, ajudavam seus pais na lida com a terra e no cuidado com os animais.
Festa de 12 de agosto
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Somente a partir do ano de 1985, a prefeitura assumiu a responsabilidade pela educação primária na zona rural. Porém, as aulas continuavam sendo ministradas na casa das famílias, debaixo das árvores, em latadas; e por professores leigos. Em 1985, essa informação chega ao conhecimento da Secretaria de Educação do Estado, que propõe um projeto de lei para construção de vários prédios escolares nas localidades rurais e a formação de professores através do magistério. Entretanto, em Canabrava, o prédio escolar não chegou a ser construído por conta do projeto de desapropriação da área pelo INCRA.
Dona Glória Maria da Glória de Jesus nasceu na comunidade de Aguada, próximo a Canabrava, em 21 de janeiro de 1948. Desde cedo já iniciara seu trabalho como professora leiga. Diz que foi a necessidade que a fez enfrentar o desafio de lecionar, mesmo não tendo oportunidade de ter formação superior, tendo cursado apenas a Habilitação para Professores Leigos (HAPROL). A professora lecionou primeiramente em sua comunidade, passando também por outras localidades até se estabelecer em Canabrava. A professora conta que foi convidada para trabalhar em Canabrava em 1980, quando lecionava o dia todo para cerca de 80 alunos. Pela manhã, trabalhava com as turmas de Pré e 1ª série. À tarde, com alunos da 2ª até a 4ª série. Desde que assumiu o magistério, o ensino passou a ser ministrado de forma crítica e reflexiva, com conteúdos que eram aplicados de acordo com a realidade dos alunos. A questão do meio ambiente era trabalhada o ano todo com os alunos, que aprendiam a lidar com a natureza de forma responsável. Com uma dedicação ímpar, Dona Glória conseguiu realizar um trabalho pioneiro e engajado, sendo responsável pela educação de muitas crianças, num tempo em que o acesso à escola na zona rural era bastante precário; sobretudo pela falta de infraestrutura escolar na época. Vendo a falta de estrutura no local, a professora mobilizou pais e alunos para construir um prédio que funcionaria
como igreja, escola e sala de reuniões para toda a comunidade. Sem recursos financeiros, a comunidade construiu o prédio com o que tinha disponível no local: taipa e barro. Por suas atitudes ousadas, Dona Glória se tornou uma grande liderança política e religiosa, tendo uma atuação notadamente marcante nas lutas de Canabrava. Era, ao mesmo tempo, educadora, catequista e liderança comunitária.
12 de agosto, o dia “D”: luta e conquista Em 1975, o INCRA desapropriou toda a redondeza devido aos conflitos de grilagem de terra existentes na região, mas principalmente para construir as Agrovilas. O objetivo maior dessa desapropriação era abrigar colonos que tiveram suas terras inundadas pela barragem do Sobradinho. As Agrovilas seriam construídas para os colonos. Os moradores nativos seriam assentados em outras localidades. Com a desapropriação, os moradores ficaram proibidos de plantar suas lavouras e com isso começaram as dificuldades, o desespero das famílias que ficaram sem ter para onde ir, sem dinheiro, sem terra, sem escola para seus filhos, pois a que havia no local parou de funcionar. Dona Glória não deixaria o INCRA fazer tudo isso sem pelo menos tentar mudar essa história. Assim, a professora inicia uma grande articulação, e alguns moradores decidem ficar e resistir pelo seu “torrão de chão”, enquanto outras famílias vão embora por achar que nada podia ser feito para mudar aquela realidade. Igrejinha de Canabrava
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434 Numa época marcada pelo autoritarismo, como o povo de Canabrava encontraria suporte para vencer uma decisão federal? A influência de Dona Glória fez com que muitos decidissem lutar para conquistar suas terras. Então, saíram à procura de entidades que pudessem apoiar sua luta. A partir disso, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, a paróquia e a Diocese fizeram o levantamento de todas as famílias da área desapropriada e traçaram um mapa da nova Canabrava. Após uma conversa com Dilermando, diretor da Federação dos Trabalhadores na Agricultura da Bahia (FETAG), Dona Glória passou a se sentir mais confiante, “eu cresci nesse momento da conversa”, diz ela. O plano do INCRA para o povo de Canabrava e demais comunidades era construir Agrovilas com casas com água encanada, energia elétrica e 20 hectares de terra para cada família. Entretanto, as famílias reivindicavam 100 hectares e a permanência no local onde já habitavam. O INCRA não concordou e no ano de 1981 chegava a decisão oficial que determinava a extinção de Canabrava para construção de uma Agrovila. A partir desta decisão, o confronto entre as famílias e o órgão da reforma agrária ficava iminente.
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435 A professora contou com a ajuda dos seus alunos, de forma que eles pudessem convencer os pais a lutar contra o INCRA. A batalha travou-se. De um lado, o INCRA. Do outro, o povo de Canabrava. Para não serem pegos de surpresa com a chegada das máquinas, a cada dia um grupo de cinco pessoas permanecia na ponte, sempre fazendo um revezamento. Num certo dia, para impedir a passagem da máquina, a professora, juntamente com os alunos e mulheres, se posicionaram sobre a ponte, enquanto os homens ficaram “entrincheirados” nas moitas à espera do inimigo. De longe, ouviam o barulho da máquina, os corações aceleravam os apelos aos santos, palavras de ordem eram ditas para animar os companheiros: “coragem”, “o povo unido jamais será vencido”. Quando a máquina chegou, encontrando aquele cenário montado, não conseguiu passar e voltou derrotada. O maquinista, quando percebeu o protesto com várias pessoas em cima da ponte, recuou e nunca mais voltou a Canabrava. Assim, conta Dona Glória, só restava a negociação, outra etapa difícil, pois o INCRA não queria abrir mão de seus projetos. Foram quase dois anos de intensa negociação até conseguir fechar um acordo. No dia “D”, 12 de agosto de 1982, a discussão durou cerca de cinco horas de um debate acirrado em Bom Jesus da Lapa. O INCRA, que inicialmente só queria dar 20 hectares, igual à quantidade dada para o pessoal das Agrovilas, recuou e aceitou conceder 70 hectares.
436 Como retaliação, O INCRA queria a qualquer custo retirar Dona Glória da função de professora por causa de sua atuação política em Canabrava. Mas seus alunos não permitiram que o INCRA colocasse alguém no lugar de Dona Glória, de maneira que qualquer professor que chegava para trabalhar na comunidade não encontrava os alunos, que se recusavam a ir para a escola. A única forma de resolver esse impasse foi deixando a antiga professora. Percebem-se, na atitude dos alunos, os resultados dos ensinamentos proferidos por Dona Glória, como também a importância que ela tinha para os alunos e para a comunidade. Mas as investidas do INCRA não pararam por aí. Quando o povo de Canabrava ganhou a posse da terra, os representantes do órgão disseram que não dariam nenhuma infraestrutura. Dona Glória novamente articulou as famílias, fez um abaixo-assinado com duzentas assinaturas e levou para Dr. José Arruda, presidente do INCRA. No dia 12 de Agosto de 1986, os engenheiros chegaram para demarcar a escola. Na ocasião, a comunidade estava arrumando a igreja para celebração de Nossa Senhora das Graças. A escola recebeu o nome de Escola 12 de Agosto, a mesma data em que o povo de Canabrava havia conquistado a posse da terra, quatro anos antes. A luta pela permanência em suas terras de origem fez com que a comunidade passasse a ter consciência da importância de se organizar politicamente. Se reunir, promover assembleias para discutir os problemas da comunidade, traçar estratégias e lutar por melhorias para a coletividade são atividades fundamentais.
437 No município de Carinhanha, a comunidade de Canabrava era protagonista na participação da “Romaria da Terra”. O evento consiste numa grande romaria organizada pela Comissão Pastoral da Terra, da qual participavam agricultores familiares de todo o Brasil. Unindo religião e política, o evento surgiu na época da ditadura como forma de resistência ao autoritarismo vivido pela sociedade brasileira naquela época. Hoje, o evento representa a luta das comunidades campesinas pelo acesso à terra e pela melhoria de vida dos agricultores familiares. A partir da conquista da terra, as famílias de Canabrava fundaram a Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Canabrava – Área dos 70. Dona Glória, que teve um papel decisivo na sua fundação, ajudou a Associação a “correr atrás” de projetos para construir a sede, comprar trator e angariar recursos para ajudar os produtores. A associação permanece ativa até hoje, reunindo os moradores todos os meses para discutir e deliberar ações e projetos para a comunidade de Canabrava.
O bravo canto de Canabrava E foi assim, que aconteceu a trajetória percorrida no período da luta em Canabrava rendendo diversos detalhes que não podiam ser limitados apenas ao registro oral, mas de certo modo se estender até ao registro escrito. Naquele tempo o povo de Canabrava que enfrentavam a batalha estava tão instigado, que conseguiram organizar o tempo de forma que para tudo tinha hora: existia o momento para meditar, ler a Bíblia, momento para compor e cantar música, contar causos, preparar as pessoas, enfim, sabiam realmente fazer os planejamentos, e tudo que podia produzia bons fluídos, era colocado em pauta de acordo com os objetivos traçados. Havia um momento em que era necessário cantar para alguns e fazer reflexões.
Nova Igreja de Canabrava
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A canção Mudança Danada, de Elpídio Oliveira Fernandes, morador de Canabrava e batalhador na luta pela conquista da terra, representa bem esse momento de luta.
Mudança Danada Pra onde vai com essa mudança danada Companheiro na Agrovila Não tem terra pra trabalhar. Sou lavrador e eu nasci foi nessa terra Nem que eu morro eu faço guerra Ninguém pode nos tomar. Nessa terra já ponhamos muitas roças Faz tempo que ela é nossa Foi herança de avô Tinha beneficio com todos os documentos Mas com o passar do tempo Veio o INCRA e nos tomou Mas temos que viver na união companheiros Pois a terra pertence nós agricultores As nossas mãos representam este retrato E a força do Sindicato e a união dos lavradores. Temos fé e acreditamos na vitória Pois a condição divina um dia vem nos libertar. O presidente conhece os nossos direitos Sabendo que é perfeito ele tem que concordar. Em outros momentos, a força, a fé, a união tinha que ser exaltada e cantada, para que de fato a coragem fosse agraciada por todos. A música Não pode rasgar a Bíblia, de Edson Oliveira Fernandes é simbólica a esse respeito.
Não Pode Rasgar a Bíblia Estou pensando o assunto (bis) E vou falar sem ter medo algum (bis) Tem que ser unido, bem unido, reunido. Se quiser falar, se quiser falar, Das grandes injustiças que existe nessa terra Daqui do São Francisco, Canabrava ao pé da serra. Eu digo sim, sim... Mas se não fosse o sindicato do trabalhador rural Não saia em manchetes ninguém via em jornal O INCRA proibindo plantar em nosso chão Do jeito que estava indo ia ter fome na nação E ia sim, sim... Mas se não fosse o poder da organização A gente ia andando pra boca do tubarão É na comunidade que você descobre o jeito Gritar pra sociedade enxergar os seus direitos E dizer sim, sim... Tem que ser unido, bem unido, reunidos. Se quiser falar, se quiser falar. Pois até a igreja está sendo perseguida e sei Que o evangelho faz parte da nossa vida E é preciso dele sim, sim... Mas eu sei que eles não podem. É mandar rasgar a Bíblia Porque se isto acontecer Esse mundo se liquida O sol e as estrelas sobre a terra vêm descer O fogo vai pegar e vamos morrer Dizendo sim, sim...
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Naquele tempo, a força da união se fez tão presente que a palavra LUTA estava presente por toda parte, misturando crianças, jovens, adultos, em prol de uma única causa, e, assim, alunos, catequizando, professora, tinham, cada um, sua parcela de contribuição. A música A Igrejinha de Canabrava composta por Dona Glória e seus alunos é um retrato dessa luta comum, fundando o verdadeiro sentido da Comunidade.
A Igrejinha de Canabrava A Igrejinha de Canabrava Foi deita de palha e casca Vamos todos adorar Nossa Senhora das Graças Nossa Senhora das Graças Foi a Santa da Devoção Unidos e organizados Conseguimos nosso chão Entramos na luta Com a proteção de Nossa Senhora Lutamos firmes e conscientes E ganhamos a vitória
Essa riqueza nas diversidades de ideias criativas que nasceu do povo de Canabrava, se configura em um patrimônio cultural, em que as futuras gerações desse lugar, um dia sentirão orgulhosos por ter suas raízes afincadas em uma base solidificada culturalmente, construída pelos seus próprios pais, avós, bisavós...
Comunidades das Três Ilhas “Todo mundo é uma ilha”
Formação e povoamento Navegando pelo Velho Chico, avistamos dois cruzeiros em um barranco grande, de uma enorme visibilidade, entre os povoados de Angico e Barra da Parateca, na margem esquerda do São Francisco. É ali onde está a pequena comunidade de Três Ilhas que fica na ribanceira do rio. Segundo moradores locais, estes cruzeiros sinalizam a morte de dois irmãos que se mataram por amor a uma jovem e ali foram enterrados. Bem defronte a estas cruzes, encontra-se a enorme casa da família Fonseca, dona das terras de todo aquele derredor, cuja Fazenda chamava-se “Espírito Santo”. Segundo o Pe. José Evangelista de Souza, a fazenda era situada à margem esquerda do Rio São Francisco; a fazenda tem uma légua de extensão, pouco mais ou menos, e quatro léguas de largura, pouco mais ou menos, e se limita pela parte do Nascente sobre a margem do Rio São Francisco; pelo lado Norte, extrema com a Fazenda da Pituba; e pelo Sul com a Fazenda da Lagoa da Porta.5
Complementa o padre que a Fazenda Espírito Santo foi registrada no ano de 1859, sob o n.º 32 e 69, como propriedade de Luís Pereira Falcão e posse de Joaquim Nunes de Azevedo, às folhas 15 e 19. Nota-se, portanto, que somente após o ano de 1859 foi que a referida fazenda veio a ser propriedade de Agostinho Fonseca, cuja família era muito extensa. Outras muitas famílias também chegaram ao local e foram fincando suas raízes, gerando outros núcleos familiares. Em alguns relatos, conta-se que algumas dessas famílias foram de antigos escravos que fugiram da escravidão e buscaram refúgio no local, estabelecendo, ali, suas moradas. Como se vê a partir das histórias de Barra do Parateca, Estreito e Três Ilhas, processos de ocupação territorial semelhantes aconteceram em toda a margem do São Francisco, tendo como público comum populações quilombolas ou remanescentes destas.
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Três Ilhas tornou-se uma comunidade mais conhecida por volta dos anos de 1983 e 1984, quando um episódio marcante na história que repercutiu em toda a cidade de Carinhanha. Quem narra essa história é Lindalva Ferreira da Silva, costureira autodidata que foi criada em Três Ilhas e presenciou todo aquele rebuliço no qual sua família também esteve envolvida.
A batalha das Três Ilhas Isso aconteceu há alguns anos, na época em que Luís Pinto foi prefeito de Carinhanha, na década de 80, nas imediações da comunidade que se formou e que hoje é conhecida como Três Ilhas. No Rio São Francisco havia três ilhas. Lá nessas ilhas as pessoas cultivavam alimentos para o sustento de suas famílias. Depois de um tempo, duas ilhas se foram junto com as correntezas do rio, ficando apenas uma. Quando o rio enchia, as ilhas desapareciam e depois, quando as águas voltavam, as ilhas reapareciam. Batalha das Três Ilhas
Seu Henrique, avô de Lindalva, criou seus filhos, entre eles, Benvindo, pai de Lindalva, que por sua vez também criou seus filhos com o que era plantado nas ilhas. Muitas pessoas usavam aquele pedaço de terra rodeada por uma imensidão de água para suas atividades produtivas e de subsistência, entre eles os senhores Henrique, Benvindo, Manuel, Durvalino, José, Joaquim e Pedrinho, que na época era presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Carinhanha. A medida que o tempo ia passando, a ilha ia se aproximando cada vez mais da margem direita do rio, e assim foi encostando nas terras que pertenciam ao Dr. Valdemar, proprietário de terras da região. Segundo Lindalva, Dr. Valdemar queria proibir os trabalhadores de usar as terras da ilha para plantação da lavoura, isso porque, como o estreitamento do rio, a ilha se aproximou de suas terras. Como se sabe, as margens dos rios e as ilhas que se formam neles, são de propriedade da União e tradicionalmente utilizadas por famílias ribeirinhas que usufruem dos recursos naturais ali disponíveis para sua sobrevivência.
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Nessa época, tinha dois padres em Carinhanha, Padres Souza e Getúlio, e esse último falou aos agricultores que não era certo eles deixarem de plantar na ilha, já que a área vinha sendo tradicionalmente utilizada pelas famílias de Três Ilhas para suas atividades de subsistência. Portanto, deveriam continuar e não sair. De acordo com Lindalva, “ foram muitas vezes que
este fazendeiro chegava lá com seu carro e saía cheio de mercadoria: feijão, abóbora, moranga, dos coitados dos lavradores que às vezes davam o que não tinham”. Reconhecendo as terras como de sua propriedade, o fazendeiro, com a ajuda de políticos da época, juntou policiais de outra cidade organizou uma operação para prender um grupo de dez lavradores que supostamente estariam usufruindo de suas terras. Num certo dia, onde aparentemente tudo parecia correr bem, todos levantaram cedo. Uns foram para a ilha trabalhar e outros, para um casamento na sede de Carinhanha, na Igreja Matriz de São José. Quando menos se espera, chega um monte de policiais prendendo o povo e ninguém entendia o que estava acontecendo, nem o motivo pelo qual estavam sendo presos. Era por causa daquela ilha. Os policiais foram na roça, por volta de meio dia, pegaram os trabalhadores e trabalhadoras, levaram para a delegacia de Carinhanha e puseram-nos na prisão. Eles estavam famintos, com suas roupas rasgadas e sujas por conta do trabalho agrícola. Algumas pessoas correram para não serem presas e outras resistiram pela necessidade de plantar e colher. Na cidade, haviam alguns moradores de Três Ilhas na igreja e os policiais partiram para lá. Chegando na igreja, prenderam o restante das pessoas. O pai e os tios de Lindalva, que narra este relato, também foram presos. O padre Souza, que naquele momento celebrava o casamento, ficou chocado com a cena. Deram voz de prisão ao padre Getúlio, que não se intimidou. Ergueu os braços para cima e falou aos policiais que poderiam prendê-lo. Os policiais recuaram, pois o padre tinha nível superior e em Carinhanha não tinha sela especial; o padre ficou na delegacia, porém chegou a ser preso.
A cidade toda se mobilizou contra essa injustiça e a praça da delegacia ficou repleta de gente, muitas delas vindas da zona rural para se solidarizar com os que foram detidos. A população em polvorosa queria derrubar a delegacia e libertar na marra os agricultores. Na época, a diretora do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Carinhanha era a Dona Glória, moradora de Canabrava. Ela articulou juntamente com Seu Nego Gravatá de Canabrava, Djanete da CPT, Irmã Mirian, Padre Getúlio e Padre Souza uma manifestação de protesto. Mobilizaram as famílias de Canabrava, Três Ilhas e outras localidades, e foram para frente da delegacia de Carinhanha. Neste momento, “coincidentemente”, o juiz da cidade estava ausente. Algumas pessoas chegaram a afirmar que o sumiço do magistrado seria proposital. Era uma estratégia para não soltar o presidente do Sindicato, Pedrinho Sena, um dos que estavam presos. Era tanta gente que a polícia temia a revolta da população. Dona Glória pediu que o povo não se deslocasse dali, pois já estava tarde, anoitecendo, e se fossem embora isso dificultaria a soltura do presidente. Um outro grupo de pessoas cercou a prefeitura de Carinhanha, para que o prefeito e demais autoridades que se encontravam ali dentro, não saíssem sem recebê-los, pois seria muito difícil o atendimento das reivindicações caso não conseguissem discutir com as autoridades naquele momento. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) foi acionada e junto com o apoio da população, de deputados, advogados, do sindicato dos trabalhadores rurais, entre outras pessoas e entidades, conseguiram libertar os lavradores que ficaram na cadeia durante três dias. Após isso, ouve audiência, mas os lavradores não conseguiram voltar a plantar na ilha. As terras continuam lá apossadas pela família do fazendeiro, nada ainda foi resolvido. Muitas dessas pessoas já faleceram e deixaram sua marca na história de um povo perseguido injustamente, mas que mostraram união e coragem, qualidades importantes numa luta.
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Seu Francisco, morador de Canabrava que participou do movimento, relembrou essa passagem de luta como uma prova de fogo. Mostrou a foto do povo reunido em frente à delegacia no período da “Batalha das Três Ilhas” e afirmou que essa luta foi muito difícil. Só ganharam porque o povo unido é mais difícil de ser vencido pelo inimigo. No semblante de Seu Francisco, olhando a foto, um sentimento de angústia e ao mesmo tempo de dever cumprido se misturavam. Angústia pela ilha que até hoje não foi devolvida à comunidade, mas o dever cumprido pela participação naquela imensa mobilização de apoio e solidariedade ao grupo das Três Ilhas que culminou na libertação dos presos. Hoje, a comunidade de Três Ilhas conta com uma nova ilha que se formou em frente à pequena Vila, e cada pessoa usa um pedacinho dela para plantar milho, feijão, abóbora, melancia e outras plantações.
Notas (1) MARQUES, Gabriel Garcia. Cem anos de Solidão. Trad. Eliane Zagury. 59ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 19. (2) Cf. ALMEIDA, A. W. B. Terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de pastos: terras tradicionalmente ocupadas. Manaus: UFAM, 2008. (3) Cf. LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma Antropologia da Territorialidade. Brasília: Série Antropologia nº 322, 2002. (4) Para uma descrição mais detalhada sobre Barra do Parateca v. PINTO, Heldina Pereira. Os saberes das práticas religiosas da comunidade rural negra de Barra do Parateca: uma articulação com a cultura escolar. Dissertação de Mestrado em Educação. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), 2000. (5) SOUZA, Pe. Jose Evangelista de. O itinerário das famílias (Lá de fora até o sertão de Côcos). 2ª edição, 2007.
Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção. João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas
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O Senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala? João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas
Ana Maria Sena de Carvalho A cada pessoa entrevistada, pude ver nos olhos o prazer e a alegria de estarem contando para nós as suas origens culturais, os seus saberes. Isto é fazer história. Histórias essas que estavam escondidas sem sabermos o tamanho da importância delas para nós e para as outras pessoas que conviveram com muitas dessas histórias culturais locais. Durante esse trabalho, fizemos o nosso percurso quase todo na zona rural. Não posso deixar de registrar aqui que o José Raimundo meu irmão foi uma pessoa que auxiliou bastante comunicando os eventos, as pessoas das localidades, indo, muitas vezes, à Algoinhas e Tapera para avisar que estávamos indo para a comunidade. Foram domingos de muito trabalho e também de muitas alegrias, muitas risadas e emoções em nossas caminhadas a campo.
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Áurea Belém Mapear as comunidades da Agrovila XXIII e Canabrava, geograficamente, as mais distantes da sede, não foi uma tarefa simples. Logo no início, pensei que não daria conta de realizá-lo, e desistir, por muitas vezes, foi a minha vontade; visto que as dificuldades sempre batiam na porta. Mas a minha vontade de ajudar a registrar a história desse povo era tamanha que enfrentei todos esses obstáculos. À medida que o prazo se esgotava, mais histórias interessantes eu descobria. E cada uma com um saber e um sabor diferentes, um detalhe peculiar. Esses assuntos me impressionavam ao mesmo tempo em que me angustiavam, pois meu desejo era conseguir escrever todas as histórias construídas ao longo da vida daquelas pessoas. Então, não podia deixar de retornar, embora o tempo urgisse e os demais afazeres se acumulassem. O trabalho de pesquisa trouxe muitos anseios, pois desde o princípio já tinha a convicção de que não seria fácil, porém não seria impossível. O que de fato ia requerer era tempo e condições de trabalho. À proporção que fui adentrando na pesquisa, consegui perceber que a pluralidade cultural era tanta, que o trabalho não se resumiria apenas em entrevistar as pessoas e dar-lhe um adeus. E sim ouvir e mergulhar junto com elas naquele importante momento de suas vidas.
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Cristiane Fernandes de Araújo Nascimento Participar desse projeto me possibilitou levantar informações sobre a cultura da princesa Sanfranciscana, nome carinhoso dado pelo Seu Honorato no hino de Carinhanha. Além de entender e mapear atores, saberes e fazeres, o mapeamento propiciou uma reflexão e uma comparação com a Carinhanha de ontem e de hoje. Pude perceber, através de vários relatos, o quanto Carinhanha de antigamente era boa para viver, com suas festas de pompa, fartura e religiosas, dos ternos belíssimos, dos carnavais inesquecíveis dos clubes e da liga, do vapor de carga e passageiros que traziam turistas, do tempo em que as pessoas sentavam-se nas portas para conversar na época de lua cheia, do bate-papo dos compadres e amigos, do respeito e da consideração pelas pessoas mais velhas, enfim da cidade tranquila. Enfim, esse projeto serviu para que viesse à tona o desconhecido, através de um levantamento de informações e das possibilidades de se fazer a interação entre a população e cultura, que representa a expressão local que possa ser valorizado como identidade de um povo.
Damião Ribeiro Dos Santos Descobri que os casarões antigos guardam muito mais que tijolos e madeira, guardam uma história que ecoa em suas entranhas. Ali prontas para qualquer pessoa ouvir e se apaixonar por elas. A cada nova pesquisa, cada vez mais me apaixonava por tudo que ia descobrindo. Pelo fato de que grande parte da história não foi construída por aquelas pessoas que já ganharam seu espaço em outras literaturas, mas verdadeiramente foi construída por pessoas que até
hoje eram pouco lembradas, mas que têm uma singular participação na história e na cultura de nossa cidade. A estas tenho, a partir de então, tentado dar o verdadeiro valor que merecem. Considero que meu maior aprendizado é entender que um povo sem história é a mesma coisa que uma árvore sem raízes. E que o presente é o reflexo do passado glorioso vivido por nossos antepassados, que deram, à nossa cidade, tudo isso que ela tem hoje: uma cultura rica só encontrada nestas bandas do Rio São Francisco.
Dalvinha Ribeiro Desde o início do mapeamento, eu já sabia do tamanho da responsabilidade que seria. Por isso, não medi esforços para dar conta das atividades que me foram delegadas. Em nenhum momento pensei em jogo político, pois sei que, se a gestora quisesse, ela teria feito o livro só sobre a trajetória pessoal dela; como é comum de se ver por aí. Assim, sou eternamente grata à gestão de Chica, por ter oferecido a oportunidade para pessoas humildes e talentosas, donas de histórias fantásticas, que jamais teriam uma oportunidade de ter seu nome escrito em um livro. Falar do mapeamento, para mim, é me enriquecer como pessoa, profissional, acadêmica, como moradora dessa cidade incrível; é ter a coragem de ir em busca de novos caminhos e novas conquistas. É agradecer a Deus e a todos pela oportunidade vivenciada de me emocionar com as historias vividas e narradas. É lembrar da satisfação das pessoas entrevistadas que, no início, sempre ficavam acanhadas, tímidas, mas que no final sempre nos faziam sair com os olhos cheios de lágrimas de contentamento, emoção e gratidão.
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Iranilde dos Santos O projeto contribuiu para o meu conhecimento em relação à interação da comunidade. Trouxe o entendimento que quando se trata de compreender o espaço físico torna-se necessário buscar o entendimento da construção desse espaço de convivência entre a formação da população e o seu contexto de socialização do modo de vida e da sobrevivência.
Jeane Mangabeira O trabalho do mapeamento foi gratificante, pois nele descobri as nossas origens, as nossas culturas, as nossas raízes. Ouvir pessoas simples contarem suas histórias foi belíssimo, já que nos proporcionou descobrir o significado das nossas tradições culturais. No início, tive orgulho, depois medo, frustração, mas nada se compara à emoção de ver nosso trabalho concretizado. E, apesar de ter doado pouco de mim, o máximo ainda seria pouco diante da grandiosidade desse trabalho. Hoje, entendo o que vem a ser a cultura, nossas origens, e fico feliz ao saber que pessoas simples que fazem parte da nossa cultura serão contemplados e homenageados num livro repleto de riquezas. O meu muito obrigado a todos pela oportunidade de fazer parte deste riquíssimo trabalho.
Joana Rodrigues Gonçalves Magalhães O mais legal é que pude participar de histórias de pessoas que eu já conhecia, mas de quem não tinha um conhecimento tão profundo como tenho hoje. Ao entrevistar minha avó, fiquei muito feliz e emocionada, pois, ao a sua história, eu estava
também conhecendo a minha. Após viver esta experiência, percebo como é importante a pesquisa, pois hoje, quando vejo uma pessoa que conta histórias ou que diga algo que me interessa, eu procuro o porquê daquilo. Como aconteceu? As minhas colegas sempre me falam: Joana parece uma jornalista, é muito curiosa. Tudo que vê, quer saber.
Josemária Alves Participar da realização do projeto do Mapeamento Cultural da minha cidade foi uma oportunidade de conhecer quais foram realmente nossas origens, origens essas, muitas vezes, contadas apenas por poucos e, por muito tempo, aceitas por muitos, inclusive por mim. A partir desse trabalho, houve a possibilidade de compreender o real significado da cultural local, valorizando todas as experiências vivenciadas por nossa gente, sem desmerecer ninguém. Ele nos ajudou a construirmos uma identificação com o nosso lugar, evidenciando as conquistas desse povo, desde as raízes, pessoas batalhadoras. Nesse mapeamento, envolvi muita gente para me ajudar, meu esposo, meus parentes, amigos e até os colegas de trabalho. Conhecer as histórias das antigas casas, ouvir parentes dos proprietários ou aqueles que conheceram sua história não foi simplesmente mapear o processo de construção de um edifício, sua data de edificação bem como sua localização. Foi algo ainda mais prazeroso, foi a oportunidade de conhecer o contexto histórico daquela época, a vida da família, sua vivência, seus medos e seus sonhos. Pois contar a história de uma casa é antes de tudo, contar também a vida de quem ali reside.
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Leandro Vianah O Mapeamento Cultural não foi só um projeto de governo. Foi um projeto de vida. De nossas vidas. Deu voz aos verdadeiros heróis de nossa história. Foi a oportunidade de conhecer a fundo a verdadeira história que constrói a cultura carinhanhense. Esse projeto contribuiu bastante para meu crescimento profissional, pessoal e social. A partir do momento em que comecei a percorrer esse universo tão rico, passei a ver nossa cultura com outros olhos. Pude perceber que, para que a cultura possa ser compreendida, ela não tem que ser só vista, tem que ser vivida. E o mapeamento nos proporcionou essa vivência. Pudemos viver através das emoções dos entrevistados, que sempre demonstraram interesse e satisfação em relatar os fatos que estão vivos em suas lembranças.
Lucinete Pereira de Jesus O mapeamento pra mim foi uma das melhores experiências vividas. Foi um período de muitas agonias mas que resultou em muitas alegrias. No primeiro momento, a gente imagina mil e uma coisas, e tudo vai se desenrolando, e percebemos que tarefas como essa nos trazem muito prazer. Percalços acredito que todos tivemos, mas o trabalho foi compensado, e podemos dizer que somos pessoas de muita coragem. Enfrentamos o medo, as dificuldades, o tempo curto e, enfim, levamos avante e cumprimos com o nosso compromisso. Durante todo o percurso e entrevistas conheci muitas pessoas importantes para a história de Carinhanha, são pessoas inesquecíveis. Todas essas pessoas me receberam com todo
carinho do mundo, que abriram suas portas e as portas do seu passado, que se emocionaram e me emocionaram, que se dispuseram a ajudar e dizer que eu poderia voltar a procurar quando quisesse, disponibilizando, inclusive, números de contato. Tudo isso é muito para colocar no papel. Estou muito agradecida, primeiramente a Deus e depois aos coordenadores e aos colegas de mapeamento e a todos envolvidos nesse mapeamento.
Luisa Kelly Marques de Jesus Falar do mapeamento é descrever uma aventura pedagógica que colaborou muito para meu crescimento como educadora e como pessoa. Tenho hoje a certeza que a cultura é capaz de descrever a vida de uma sociedade porque é uma manifestação rica em todos os sentidos. Portanto, valeu a pena sair de casa para ir à zona rural, acabar se desviando do caminho, se perdendo, andando por meio da mata sozinha até encontrar o destino correto, sentindo um medo até então nunca sentido e, no fim, receber a recompensa: ser muito bem recebida pelas pessoas que de uma maneira simples tiveram uma enorme satisfação em colaborar com o trabalho. Seria uma grande hipocrisia dizer que não foi cansativo. Porém, seria injusto dizer que esse esforço não valeu a pena, pois, nessa caminhada, descobrimos pessoas maravilhosas que ficam escondidas não apenas pela distância, mas também pela falta de reconhecimento. Nossa caminhada quebra as barreiras da exclusão, fazendo pessoas simples, mas ricas em conhecimento, serem reconhecidas e se tornarem pessoas fundamentais para escrever a história e vida de Carinhanha.
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Magda Lima Esse Mapeamento Cultural realizado em Carinhanha foi de uma grande importância histórica, pois abordou todos os elementos que compõem a história de uma nação, sem negar a nossa tradição histórica, possibilitando resgatar o que estava oculto na sociedade, detectando quem são seus atores, quais são seus saberes e os fazeres do nosso universo cultural local. Fica a certeza de que o resultado desse projeto culmina num valioso tesouro para Carinhanha, porque, em cada linha escrita, estará narrada a memória e a cultura desse povo de lutas. Ter feito parte desse projeto me possibilitou um grande aprendizado, contribuindo para o meu desenvolvimento profissional e me engrandecendo como ser humano, pois a correria do dia a dia, muitas vezes, vai tirando o nosso foco de tudo que é belo. Através desse trabalho, tive a honra de enxergar as coisas com um olhar muito mais humano.
Manoel Gomes Filho Durante este tempo em que estive envolvido com este importantíssimo trabalho, enfrentei alguns problemas de saúde. Graças a Deus tive melhoras e continuei pesquisamdo. Fiz várias viagens ao Estreito, onde concentrei mais o meu trabalho. Descobri muitas histórias do povo que até então não conhecia. Percebi muitas vezes as pessoas se prendendo para não darem informações, outras, se interessando muito em passar suas histórias. Neste percurso, atravessei águas, areias, sol e chuva para conseguir um pouco de informações. No entanto, foram informações superúteis para o meu desenvolvimento estudantil.
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Maria Sena O Mapeamento Cultural foi, sem dúvida, um momento de grandes descobertas e aprendizado para nós que fizemos as pesquisas e a escrita da história de cada pessoa entrevistada. Para nós, que fizemos quase todo o percurso na zona rural, foi principalmente o momento de retornar às nossas origens. Em tão pouco tempo, esse projeto assumiu um significado muito especial. Esse trabalho fez com que eu passasse a dar mais valor às coisas que até então para mim não tinham tanta importância: ouvir e registrar a fala das pessoas, as emoções e sentimentos ao falarem de suas vidas, do que fazem, enfim, de toda a cultura de um povo que tem a maior satisfação em contar.
Sara Costa do Ouro Participar do projeto trouxe mais conhecimento da nossa rica história, que estava na memória de um povo e que precisava ser reavivada. No início, foram grandes as expectativas, pois iríamos vivenciar a alegria do povo ao recordar cada fato. Como tudo tem suas dificuldades, suas barreiras, o trabalho foi se tornando fatigante. Hoje, tudo foi superado. Estamos às vésperas de vê-lo concretizado. Mas diante das dificuldades, algo foi maravilhoso: a emoção nos momentos de entrevista. Vários foram os momentos que passamos com cada entrevistada, por isso valeu a pena. Fica o desejo de que nosso povo se delicie também com o trabalho.
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Sônia Sena Um aprendizado para além da vida, registros e memórias. Aprendendo a ser pesquisador e observador do meu próprio lugar. Durante o período do mapeamento fomos levados a um trabalho de muita responsabilidade e significado para a população Carinhanhense e para cada pesquisador. Esse foi um trabalho que deixou em mim muitas impressões, que me levou a observar melhor a minha origem, o meu povo e o povo da minha cidade e, além disso, ter orgulho dela, pois foram tantas coisas bonitas, tantas maravilhas contadas pelo povo que é mesmo de se orgulhar.
Wesley Brunno Nesse intuito de registrar a história do povo carinhanhense é que se idealizou o Mapeamento Cultural de Carinhanha, o que nos trouxe grandes aprendizagens e, mais ainda, o incentivo a valorizar a nossa gente e a nossa cultura. Entrei para o projeto com muitas expectativas que, ao longo do tempo, foram se concretizando. Como todo trabalho de pesquisa, foi às vezes cansativo ou até mesmo estressante. Por outro lado, os desafios foram sendo superados e o trabalho realizado. Algo que me fascinou foram as entrevistas, momentos de emoção, de você ser bem acolhido na casa do entrevistado e ver o brilho e o sorriso no rosto dele (ou dela). Isso foi gratificante! Muitas pessoas conseguiam nos contagiar com suas histórias, nos transmitindo pensamentos e emoções, nos causando arrepios que nos impulsionavam a escrever com gosto e prazer.
Os textos que compõem este livro têm por base essencial os relatos de campo dos pesquisadoresalunos da UnB/UAB Pólo Carinhanha. Os relatos foram trabalhados, adaptados e transformados. Muitos foram acrescidos de trechos teóricos, dados históricos ou outros tipos de complementos textuais. Muitos foram acrescentados de trechos de textos dos próprios orientadores-organizadores, do editor ou mesmo de trechos de textos diferentes do mesmo pesquisador ou de trechos de textos de pesquisadores diferentes. Todos esses trechos misturados entre si compuseram juntos novos textos, e essa movimentação toda de trechos de vários autores descaracterizou a autoria individual, de modo que todos os textos que compõem este livro são, a bem da verdade, uma criação coletiva.
Ficha Técnica Prefeita
Francisca Alves Ribeiro (Chica do PT) Pesquisadores e Autores
Ana Argentina Castro Sales, Ana Maria Sena de Carvalho, Anderson Dias dos Santos, Áurea Belém Farias Santana, Cristiane Fernandes de Araújo Nascimento, Dalvanice Santana Ribeiro, Damião Ribeiro dos Santos, Iela Silva Martinelli, Iranilde dos Santos Ferreira, Jeane Mangabeira, Joana Rodrigues Gonçalves Magalhães, João Santos de Souza, José Edvar Costa de Araújo, Josemária Alves de Jesus, Leandro Cerqueira Viana, Léo Mackellene , Lucinete Pereira de Jesus, Luisa Kelly Marques de Jesus, Magda Pereira Lima, Manoel Gomes Filho, Maria do Socorro Sena de Carvalho, Ronaldo Santiago Lopes, Sara Costa do Ouro, Simone Passos, Sonia Sena de Souza, Tatiana Rodrigues Passos e Wesley Bruno Silva do Nascimento Gomes Orientadores e Organizadores
Ana Argentina Castro Sales, José Edvar Costa de Araújo, Léo Mackellene, Ronaldo Santiago Lopes, Simone Rodrigues Passos, Tatiana Rodrigues Passos
Editores responsáveis
Léo Mackellene, Simone Rodrigues Passos, José Edvar Costa de Araújo Direção de Arte
Léo Mackellene e Simone Rodrigues Passos Projeto Gráfico
Léo Mackellene e Caio Danieli Diagramação e Capa
Caio Danieli Ilustrações
Cris Soares Impressão
Expressão Gráfica e Editora Ltda.
FICHA CATALOGRÁFICA