Mulher Ao Mar

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MULHER AO MAR A continuação de “Homem Ao Mar”

de CAÍQUE PEREIRA

2019

MULHER AO MAR | fanfic


PRÓLOGO ANOTAÇÕES DA ARETHA – LINHA DO TEMPO DA MAMÃE 2054 Mamãe tinha um melhor amigo chamado Jack. Ele estava passando as férias aqui em Southampton, mas desapareceu de repente. Mamãe fica sozinha. 2059 Cinco anos se passaram desde que Jack sumiu, mas mamãe não desistiu de encontrá-lo. É quando ela se apaixona pela mamãe Gillian, uma detetive particular que contratou para ajudá-la. Mamãe Gillian recupera sua velha personalidade e elas ficam juntas. É a primeira vez que Mamãe Lizzy sorri em anos – cinco, pra ser mais exata. 2062 Mamães se casam. 2064 Mamãe Lizzy engravida por inseminação artificial (de mim!) e mamãe Gillian sai da investigação de Jack. 2065 Mamães dão à luz uma menina que chamam de Aretha (eu de novo!). ? (Não lembro da data e mamãe Gillian não conversa sobre isso) Mamães brigam muito, todo dia. Eu e mamãe Gillian vamos morar em seu antigo apartamento. Mamãe Lizzy fica sozinha de novo. ? (Também não lembro, tenho que insistir mais com Gillian) Lizzy voltou a pesquisar sobre o sumiço de Jack. Ela não atende às ligações de Gillian. Ela não atende às minhas ligações também. Gillian tenta chorar escondida de mim. 2082 – presente Lizzy não veio à minha formatura do Ensino Médio. Vejo Gillian sair do auditório e telefonar para alguém, provavelmente ela, mas já sabemos que não vai atender. Fico no palco esperando Gillian voltar, ela tem meu anel de formatura. Nunca o usei. Estou sozinha. MULHER AO MAR | fanfic


CAPÍTULO 1: A BORDO 14 de abril de 2082 – aproximadamente 17h Southampton, Hampshire / Reino Unido – Terapeuta idiota. Não penso duas vezes: amasso e jogo fora todas as anotações que fiz na consulta daquela tarde chuvosa de terça-feira. A bolinha disforme de papel amarelo se perde entre os objetos dentro da bolsa. “Aretha, preciso que escreva uma linha do tempo começando quando a relação com sua mãe desandou”, argumentou a suposta doutora. Ela parecia ter engolido o roteiro de uma reprise da Oprah, então me reservei ao direito de questionar o diploma emoldurado com macarrão colorido na parede. Tentei um certo sarcasmo redigindo cada memória como a “Aretha” daquela idade faria, abusando no uso de “Mamães” pelos parágrafos, até no título da cronologia. Torci para que a psicóloga percebesse minha falta de vontade em estar ali e encerrasse a sessão. Me surpreendi quando aconteceu exatamente o contrário: ela achou genial e perguntou sobre meu histórico com a literatura infanto-juvenil. Gillian ia me pagar. Já tinha desistido de ter uma das famosas conversas de “mãe e filha”, mas me obrigava a falar com alguém sobre Lizzy. Arrasto a palma da mão sobre a pulseira e o celular holográfico surge. Por costume, seleciono o contato “Lizzy” e cai, como sempre, na Caixa Postal depois de inúmeros toques, o barulho sincronizado com os pingos sobre a entrada do consultório. A chuva aperta no centro comercial de Southampton enquanto eu verificava as ligações perdidas, duas no total: “Mãe” e “Benjamin”. Sorrio quando vejo que ele trocou o nome de seu contato para “Me Beijamin” de novo. Ligo para o namorado primeiro. – Oi, amor – que saudade daquela voz constantemente rouca. Era como se, a todo momento, Ben tivesse acabado de acordar – Como foi a consulta? – Tirando o incômodo durante todo o tempo, foi ok. – Menos mal. Já decidiu se vem para cá no sábado? Sua sogra quer planejar o banquete – Ben morava em Verwood, do outro lado do Parque Nacional New Forest, a quase 30km de distância de Southampton. Nunca fui adepta de relacionamentos à distância, porém, desde que nos formamos no Ensino Médio, essa é a realidade. – Banquete? Quando ia me contar que vamos casar? – Talvez você engasgue com uma aliança no primeiro bolo do café da tarde. Talvez. Rimos juntos, aproveitando aqueles segundos gostosos de silêncio logo após. MULHER AO MAR | fanfic


– Tô com saudade – seguro o embargo na voz e lembro do abraço dele, viria a calhar nesse tempo. Um vento mais forte corre pela calçada e fecho mais o cachecol no pescoço, voltando uns passos para perto da porta de entrada. – Então venha, também tô doido pra te ver. Prometo que vamos assistir todos os filmes de faroeste que detesto. – Vou cobrar isso. Minha memória fotográfica, às vezes, era um ponto positivo no relaciomento. Bastante negativo para Benjamin e suas promessas impulsivas, mas extremamente útil para mim. – Cobre da minha mãe, a coleção de filmes é dela – Ele pondera no outro lado da linha. – Se bem que, depois de experimentar os bolos, vai preferir casar com ela. Quer saber? Esquece o banquete, eu vou cozinhar pra você. Recordo em silêncio do omelete no teto e no par de vezes que chamamos os bombeiros ao apartamento quando Ben estava responsável pela cozinha. Uma comédia trágica em três atos e muito cheiro de queimado. – Eu vou te encontrar, sem falta. Minha mãe ainda tá naquele congresso de detetives. “Veterinários pela Coroa” ou algo assim. – “Veteranos da Rainha” – ele adora me corrigir nas raras vezes que está certo. – Foi o que eu disse. De qualquer forma, fiquei com o carro dela. – Então já não tem desculpa. Se não vier, vou te buscar com o Borges. – Mais fácil seu cavalo vir montado em você. Tenho que ir, amor – uma dor de cabeça começa a surgir e automaticamente entendo o porquê: estou atrasada. – Ok, mas promete que vai vir? Meu coração gelou e não tinha nada a ver com o clima. De alguma forma, tive uma intuição de que faltaria ao encontro com Ben. Não veríamos filmes de faroeste para dublar as partes que decoramos, não daria cenouras frescas ao Borges depois do café da manhã, muito menos provaria os bolos de sua mãe e fingiria procurar a aliança de mentira no recheio. A hora seguia e o atraso só aumentava, o latejar trovejando na minha cabeça. – Prometo. 14 de abril de 2082 – aproximadamente 17h Verwood, Dorset / Reino Unido Os aromas do café pronto e bolo saindo do forno namoram pelo ar quando Benjamin se despede de Aretha e desliga o celular. Ele se levanta para deixar a sala-de-estar, mas, antes,

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verifica o bolso da calça pela milésima vez, e sente o chaveiro de cavalo que seu pai presenteou sua mãe um dia, e ela lhe deu quando começou a namorar Aretha. Enquanto o lado materno da família mantinha uma pequena criação de cavalos, o pai de Ben era um artesão de chaveiros por encomenda. O jovem já tentou convencê-lo a aprimorarem juntos o chaveiro de cavalo com alguns gadgets, mas seu pai nunca aceitou. Benjamin era mais ousado nesse sentido, um inventor de mão cheia, e tentava, aos poucos, trazer suas criações tecnológicas para a loja do pai. De volta ao bolso de sua calça, um objeto faz companhia ao chaveiro. A mão de Ben dedilha a abertura, olhando ao redor do cômodo para confirmar se está realmente sozinho. Ele escorrega de vez a palma para dentro do bolso e, depois de agarrar o que buscava, retira uma caixinha aveludada, agora em destaque entre seus dedos. Ele tem prática em abri-la apenas com um movimento do polegar, revelando o anel de noivado que dará para namorada neste fim da semana. Nenhuma de suas invenções seria tão perfeita quanto os dois juntos. 14 de abril de 2082 – aproximadamente 19h Universidade de Southampton, Hampshire – Aretha Bray. É bom finalmente ver o senhor ao vivo. Aperto a mão do homem miúdo atrás da mesa de madeira, a cadeira prestes a engoli-lo. “Dr. Becergi Ganse – geólogo” brilha em dourado na placa à sua frente. O escritório combina com seu dono recém-chegado à cidade: pequeno e abarrotado de móveis ainda sob plásticos. Espacialmente falando, pareciam impossíveis de caber ali – como a enorme quantidade de tatuagens que Dr. Ganse tinha orgulho em exibir. – Dr. Ganse, à sua disposição – ele larga minha mão e tomo o lugar à sua frente. Sua careca é lisa apenas de cabelos, adornando um dragão vermelho que sugere se mexer na luz fraca. Ele percebe meus olhos acima da linha dos seus e pigarreia forte – Então, trouxe o que pedi? – Tudo. Retiro da bolsa um envelope pardo bastante recheado e lhe entrego. Ele tira com calma cada um dos documentos guardados, cortesia do acervo doméstico de Gillian e sua antiga linha de acesso hackeada ao banco de dados da polícia de Southampton. Se ela não queria que eu visse aquilo, teria pensado em uma senha melhor do que meu aniversário. – Aqui são relatos de testemunhas no desaparecimento do indivíduo – aponto para os papéis com post-its verdes. – Jack Daniels. MULHER AO MAR | fanfic


– Dawson. – Ah, sim. Desculpe, é esse tempo, me faz confundir nomes. Fiquei em uma ligação de três horas com a equipe de mudança para acertarem meu endereço, eu não lembrava a rua. Ganse veio de um centro de geologia de Edimburgo, na Escócia, para estudar o fenômeno das safiras de Southampton. Anualmente, por volta do dia 14 de abril, elas eclodem do chão em cavernas e câmaras subterrâneas da região, principalmente perto do mar. Os olhos do especialista nesse tipo de pedra brilham quando para de folhear os documentos. – Eu sabia... – O quê? – arregalo os olhos e quase levanto da cadeira acolchoada para ver o que ele observa. Desde que comecei a estudar o sumiço de Jack e seu contexto, quase 30 anos depois que tudo ocorreu, as expectativas de descobrir algo novo eram microscópicas. Gillian foi a melhor detetive particular do sudeste da Inglaterra; Lizzy rodava o mundo atrás de seu paradeiro há anos; a polícia de Southampton e de Wisconsin, nos EUA, investiram recursos além da conta no caso e ninguém – ninguém – obteve sucesso. A investigação de uma garota de 17 anos não tinha chance alguma. Ganse virou o papel para mim. – Le Cœur de la Mer – legendou oralmente a imagem familiar que segurava em minha direção: um colar de base platinada, diamantes formando um coração ao redor de uma grande safira azul – O Coração do Oceano. Respiro fundo. Aquilo estava longe de ser alguma novidade. – Sim, é a joia que Jack tentou roubar antes de sumir – aperto com o polegar e o indicador o espaço entre as sobrancelhas, inspiro e expiro novamente. Lembro da linha do tempo que escrevi na terapia, essa era a primeira lembrança. Tinha esquecido como era mais difícil verbalizá-la – Até pesquisei a história dela, é só mais uma daquelas coisas que passa de mão em mão pela história. Era de uma mulher que se suicidou antes de vir pra cidade. Já revi essa história milhões de vezes, incluindo a gravação de segurança do museu, com direito a Jack correndo em direção à Sala de Joias. Depois disso, o colar foi encontrado no chão do lugar, todavia, nada do homem por trás do quase crime. Ganse também sabe disso tudo, e desperta a velha desconfiança que precede a decepção de não chegar a lugar algum. – Rose DeWitt Bukater – Ganse lê minhas anotações no verso da fotografia através dos óculos caídos. Faz anos que não vejo um óculos tão de perto, acho que Gillian tinha um que a mãe dela usava para leitura. Depois de lhe presentear com uma lente fixa de autocorreção, ela deu sumiço no objeto – Sabe, estima-se que o fenômeno das safiras em Southampton começou na década de 2060, mas sem data exata. – Talvez seja pelos desaparecimentos. Muita gente que teve contato com as pedras sumiu pouco tempo depois, aí não dá para saber quando começou exatamente. Tá na pesquisa – MULHER AO MAR | fanfic


apontei mais uma vez para os documentos. Estou orgulhosa do meu trabalho e o geólogo não dá a mínima. Tem até vídeo das câmeras de segurança do museu na noite do roubo, mesmo que tenham registrado somente até o momento em que Jack entra na sala das joias. – Sim, sim, mas a questão não é essa, srta. Bray. Acho que confirmei uma teoria. Ganse se levanta de repente e senta ao meu lado, as patas de cachorro tatuadas em seu rosto margeando a expressão, um misto de assombro e frenesi. – Os olhos de todos os envolvidos nessa pesquisa – é a vez dele de apontar para os papéis sobre a mesa – estão viciados. Onde vocês veem um roubo, eu vejo 14 de abril de 2054: a data do primeiro sumiço do Fenômeno de Southampton. O quê?! Ouvi minha vida toda essa história e a visão de Ganse está longe da verdade. Jack e Lizzy eram melhores amigos, viviam passando as férias um na casa do outro. Ele a visitou na Páscoa, eles foram até um museu, voltaram para casa e, logo depois, ele desaparece depois de tentar sair com o objeto mais caro da exposição. Jack é um ladrão. Me recuso a pensar o contrário, mas a dor de cabeça volta a latejar e dou corda para o doutor continuar a falar e me distrair. – Isso não faz sentido. As safiras não eclodiam naquela época – no instinto, saco um bloquinho e caneta da bolsa, pronta para anotar qualquer luz que o professor possa jogar sobre o caso. Mesmo que sirva apenas para, depois, se provar algo impossível. – Por isso mesmo. Um evento geológico dessa precisão precisa de um ponto de início, uma causa – Ganse apelava ao didatismo e fazia desenhos no ar com um dedo – e acredito que o sumiço de Daniels... – Dawson. – ...tenha sido esse começo. Apoio a testa com uma das mãos, o latejar vai sumindo. Os contos do Papai Ganse pareciam prestar só para uma coisa: melhorar minha dor-de-cabeça. – Digamos que o senhor esteja certo – mesmo que não esteja –, que tipo de coisa poderia ter acontecido no desaparecimento? Para as safiras surgirem todo ano nessa época? O rosto do doutor se austera. Sua figura pequena se levanta devagar, em silêncio, e vai em direção à janela fechada do outro lado do cômodo. Um chuvisco dá trégua à tempestade que assolou o dia inteiro. Ele olha para fora intensamente, por mais que não dê para enxergar qualquer coisa àquela hora e naquele tempo. – Eu já vi muitas coisas que preferia não ter que explicar, srta. Bray. Essa é uma delas. A senhorita provavelmente vai me chamar de lunático e ignorar todo o contato que tivemos e as informações que trocamos pela Internet nesse semestre. MULHER AO MAR | fanfic


A fala de rodeios de Ganse começava a me irritar, mas um ponto não podia negar: fazia sentido. Não Jack ter “apenas” sumido e deixar de ser o ladrão que odiei por todos esses anos mas ser o estopim do surgimento das safiras. Que se dane, preciso entender o que aconteceu. – Eu quero saber – respondo à pergunta implícita do geólogo. Ele bufa. – Muito bem. Cientificamente, ao meu ver, só há uma causa plausível presente no sumiço de Dawson com o Fenômeno das Safiras: uma ruptura no espaço-tempo – minha expressão de confusão reage na postura de Ganse, que volta a se sentar ao meu lado sem demora – Veja, eu gosto de pensar no tempo como um anel, e nós só estamos percorrendo a circunferência, sempre em um único sentido – o professor faz um “O” com uma das mãos e gira a ponta de seu indicador ao redor dela – Mas e se pudéssemos sair de um ponto dela e ir para outro, atravessando o vazio no meio do círculo? Não poderíamos quebrar o anel, obviamente, mas a fratura na linha temporal então faria sentido. E digo mais: para criar um rastro magnético desse tamanho, que tira as safiras do solo sempre no mesmo dia de cada ano, o ato de Jack deve ter até criado uma segunda linha temporal. Nunca fui muito fã de ficção científica, sempre gostei mais dos filmes de faroeste. Lembro de brincar com minhas mães de caçar procurados pela casa quando chegava da escola. A recompensa sempre era deitar depois da hora de dormir. Minha quietude de devaneio estimulou o estudioso a continuar a falar. – Tem uma teoria que não gostam que eu use muito no campo da geologia, mas deve elucidar alguma coisa – ele acena para mesa de madeira em nossa frente e um painel holográfico surge sobre ela. – H.G. Wells – tenho a impressão instantânea que nunca vou esquecer como aquelas letras soaram na voz soturna de Ganse, formando um nome escrito no holograma. O conteúdo da tela sumiu e reapareceu, várias capas de livros flutuando uma ao lado da outra. O homem tocou em uma delas, cuja capa cresceu. Pude ler seu título, seguido de um nó na garganta: – “A Máquina do Tempo”.

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CAPÍTULO 2: SUBMERSA 14 de abril de 2082 – quase 20h Universidade de Southampton, Hampshire A Universidade de Southampton não limitava seu arcaísmo apenas à mobília predominantemente de madeira, ou mesmo nas antigas luminárias pelos corredores, que até são charmosas. Ainda faziam questão de manter um vigia no estacionamento, o senhor barbudo de sobretudo marrom se apertava debaixo da marquise. Não entendi uma palavra do que ele disse quando atravessei ao seu lado, como um raio em direção aos carros. Um simples “boa noite”? Algum aviso de acidente na estrada? Temi nunca saber, afinal, minha cabeça fazia o favor de se ocupar com algo muito pior naquele momento. O chuvisco abandonou a noite tão rápido quanto minhas certezas sobre Jack Dawson. Ele não podia ser uma vítima nisso, muito menos ter viajado no tempo. Não podia ser verdade, lógico que não. Ganse só me fez perder tempo. Isso não existe. Isso não existe. Os sapatos afundam nas poças que não enxergo e nas que faço questão de pisar. Seu material escurece e minha calça segue pelo mesmo caminho. Cadê a droga do carro? A água ensopa meu cabelo em segundos, os pingos estalando com força nos braços pelo atrito do meu corpo em fuga. Até que eu paro. Sou um ponto encharcado no concreto negro e molhado do estacionamento. O céu tempestuoso se debruça acima de mim, consigo delinear o riscar da chuva através dos altos postes ao redor. Um mar de veículos desconhecidos e estou perdida em todos os sentidos. Minha mente borbulha incessantemente, não mais com a dor-de-cabeça de antes, porém com perguntas estranhas e respostas tortas. O que aconteceu com esse maldito cara no dia que ele ferrou a vida da minha mãe? Abraço a bolsa junto ao peito. Olho para trás, a vista molhada e a distância transformam o vigia em borrão, mal dá para saber se ele continua lá. Interrogações se acumulam, tal qual a umidade em minhas roupas. O bloquinho e a caneta vão estragar no bolso de trás da calça? Foram presentes de Gillian – ela vai me matar se eu ficar doente. Se eu ficar doente e morrer, ela vai me ressucitar só para me matar com as próprias mãos. Não a culpo, até Ben me mataria se soubesse das condições. Ben. Ben! Junto os dedos na boca e assovio o mais alto que consigo. Escuto um click atrás de mim e viro a tempo de ver o carro familiar saindo de uma das vagas e vindo em minha direção. Suspiro de alívio e os pingos atrapalham minha boca. A porta do motorista se abre e a fecho, destravando manualmente a porta de trás. Me jogo no banco largo e o automóvel se fecha. MULHER AO MAR | fanfic


– Aquecedor – imploro entre tossidos, um vapor morno se formando ao meu redor. Agradeço mentalmente a Benjamin por ter instalado o aplicativo “Transforme seu carro em um cachorro”, por mais idiota que tenha achado na hora. Um assobio do dono e ele vem. Ben nunca se convenceu do fato de eu não querer um animal de estimação. – Qual é o seu destino? – a voz irritantemente calma do sistema de comando de voz sempre me assusta. Minha pulseira começa a vibrar e vejo que é Gillian ligando. Tiro o objeto do pulso e o jogo sem muito cuidado dentro da bolsa. “Museu SeaCity” sai da minha boca e eu nem sei o porquê. O SeaCity surge em alguns minutos com um letreiro piscante e um portão fechado ao longe. Visto um enorme suéter cinza-chumbo de Gillian perdido pelo chão quando o carro para. Tantas vezes vim aqui, mas nunca nessas condições. Jack Dawson, o ladrão d’O Coração do Oceano, esteve naquele mesmo lugar há 30 anos e, depois, nunca mais foi visto. O homem que acabou com a vida de Lizzy. O pintor que a enganou para roubar um colar de pedras preciosas. O ladrão que a fez esquecer da própria filha. O estranho que abomino. Taí uma série de bons desenhos para fazer na próxima terapia. As safiras eram uma constante que eu não entendia, fato. A ajuda do dr. Ganse mais confundiu do que elucidou nesse ponto. Pedra alguma, muito menos do colar, poderia fazer alguém viajar no tempo – seja lá para qual época fosse. Era engraçado só pensar nessa “possibilidade”. Começo a rir sozinha. Que absurdo. Rio mais. Mamãe tinha um melhor amigo chamado Jack. Gargalho. É muito absurdo. Desapareceu de repente, um ladrão de joias. Gargalho sozinha no meio do nada. No colar havia uma safira. Gargalho fechada em um carro. Quem teve contato com as safiras sumiu. Gargalho sob a chuva forte. Ruptura no espaço-tempo. O riso começa a morrer quando reparo um brilho na bolsa entreaberta ao meu lado. É isso. Entendo o motivo de ter escolhido vir aqui. Uma das mãos agarra a origem do brilho na bolsa enquanto a outra tira de lá um envelope. Observo por alguns segundos – se foram horas, não saberia dizer – os dois objetos, cada um sobre uma das palmas. Na mão esquerda, a carta que tanto procrastinei abrir.

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Na direita, meu anel de formatura cravejado com uma safira bruta das cavernas de Southampton. “Querida Gillian, Que surpresa maravilhosa foi receber sua carta! Eu vou bem, na medida possível. Os quadris não respondem mais como antes, escolhem quando querem doer. Acho que acabo ingerindo mais remédios do que comida por esses dias. Pelo menos são coloridos. Como está a família? Pelas minhas contas, Aretha já deve estar até dirigindo. Lembro como se fosse ontem, você e Lizzy entrando na clínica cheias de sorrisos. Acompanhar de perto a gestação foi um prazer como poucos que tive na Medicina. Nunca vou esquecer daqueles olhinhos teimosos me seguindo pelo berçário. Eu mandaria o que pediu pela Internet, mas como seu pedido chegou pelo correio, resolvi responder da mesma forma. É mais seguro mesmo. E peço perdão desde já pela demora, precisei de um tempo para reunir toda a burocracia da inseminação de Lizzy, você sabe, a clínica fechou e foi comprada por um desses conglomerados. Um horror. Algo deve ter se perdido pelo tempo, mas acho que encontrei o que procurávamos. É o primeiro documento do processo 1791908: um congelamento de sêmen no nome de alguém chamado ‘Jack Lake Dawson’. Não posso mandar a papelada, eles nem sabem que ainda tenho esses arquivos aqui no almoxarifado de casa. Mas o que entendi desse burocratês todo é que o tal Jack procurou a clínica para congelar o próprio material. O espaço da justificativa está em branco. Só que o hospital tinha essa ‘cláusula de responsabilidade em caso de falecimento do doador’, é assim que está escrito aqui. Já tinha acontecido um caso antes, de alguém doar e depois falecer. Ficamos com o sêmen sem ter o que fazer, deu um problema danado. Foi quando puseram essa cláusula no contrato de congelamento. Parece que o nome dele saiu no obituário de um jornal aqui de Chippewa Falls. A clínica foi atrás e descobriu que a família tinha dado ele por morto mesmo. Foi a primeira vez que contactamos o responsável da cláusula de falecimento. “Elizabeth Easton”, não lembrava desse sobrenome da Lizzy, tão bonito. Acho que ela usou o seu “Bray” quando se consultou. Foi destino mesmo, porque vocês queriam engravidar logo naquela época, né? Espero ter ajudado. É muito bom já se prepararem, guardando esse tipo de carta para quando Aretha começar a perguntar das origens. Está quase na época que eles costumam querer saber disso. Venham me visitar, estou com saudades. Grande beijo! Dra. Cordélia Moreno.” MULHER AO MAR | fanfic


14 de abril de 2082 – aproximadamente 23h Museu SeaCity / Southampton Jack é meu pai biológico. A dor-de-cabeça voltou, a corja dos tambores mais fortes da Terra sob meu crânio. Releio a carta, pingos falsos da chuva que cai lá fora saem do meu rosto e mordiscam o papel. Releio a carta. A caligrafia de Gloria é delicada, deve ter passado uma tarde desenhando cada sílaba, cada palavra. Devaneio. Releio a carta. Interceptei o envelope antes que chegasse à Gillian, sua verdadeira destinatária. O endereço da remetente, o mesmo de Dawson, não me deixou dúvidas de que se trava de uma nova pista da investigação abandonada. Não podia ignorar. Entretanto, faltou-me coragem para abrir a mensagem que não era para mim. Não havia urgência até então, muito menos a conversa com dr. Ganse. Não havia a sensação de estar à beira de um precipício – só não imaginava o que iria encontrar no fundo desse abismo. Uma ânsia de vômito se personifica em minha garganta, arranhando por dentro. Flexiono os dedos, em parte pela raiva, mas também pelo frio. A chuva piora e não enxergo mais nada pelos vidros do carro. Relâmpagos e trovões episódicos iluminam ao redor de vez em quando. Chego a pensar que serei levada pelo vento ao mar. Seria uma bela morte. Tento afastar o pensamento suicida com um saculejar de cabeça. Há um certo alívio e, da mesma forma, seja lá o porquê, não consigo detestar Jack por completo. Talvez haja uma justificativa decente escondida atrás das nuvens pesadas. Não. Sinto nojo de mim mesma por tentar humanizar o homem causador das noites que passei em claro. Minhas mães gritavam, acusações trocadas de sumirem com os arquivos antigos da investigação por motivos opostos. De quantas vezes fui esquecida, ignorada e ofendida quando precisava da ajuda de Lizzy e acabava sozinha em casa. Eu não devia ter cinco anos naquela época. Ou dos desenhos de família que comecei a fazer na escola, até pendurei na geladeira: eu e Gillian no parque. Ou do olhar de pavor em seu rosto me mandando para o quarto, os berros se confundindo com as lágrimas, quando encontramos Lizzy em um mar vermelho na banheira. Terapeuta alguma é capaz de me fazer esquecer daquele olhar. Agora, fazia muito mais sentido a obsessão de Lizzy em encontrar Jack. Não era só uma questão de amizade. Ela havia usado seu material para engravidar depois dele desaparecer. Ela usou o sêmen de um amigo que poderia estar morto. Jack também é uma espécie de vítima desse ato. Eu sou uma vítima desse ato. Eu não deveria existir. Não penso e ajo. Péssima combinação. Enxugo as lágrimas apressada, meu braço roça no brinco de pérolas que Benjamin me deu de presente. Ben. Me perdoe, Ben. MULHER AO MAR | fanfic


A outra joia brilha sobre a bolsa, o delicado anel contrastando com a safira irregular em seu topo. Seu tom está mais azul do que nunca. Coloco-o no dedo indicador. Ganse estava certo, o roubo do colar atrelado ao sumiço de Jack foi mesmo o início de tudo. Agora, eu vou roubá-lo da dona original. O Coração do Oceano nunca vai chegar ao museu SeaCity Jack nunca irá roubá-lo, muito menos sumir por causa dele. Lizzy vai ficar bem, por mais que eu... Não exista mais. Ignoro aquele pensamento e começo a falar repetidamente a data recorrente nos arquivos de Gillian: 12 de abril de 1912. 12 de abril de 1912. 12 de abril de 1912. 12 de abril de 1912. Minha visão começa a turvar ao imaginar o Titanic. 12. Fecho os olhos. Abril. Não é só para segurar as lágrimas. 1912. É também pelo medo do que vou encontrar quando abrir.

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CAPÍTULO 3: NAUFRÁGIO 12 de abril de 1912 – Noite RMS Titanic / Em algum lugar no Oceano Atlânico Esperei a dor. Esperei os braços formigando, a tontura giratória, os pensamentos embaralhados, mas, para minha surpresa, me sinto estranhamente aliviada. Lembro da sensação de experimentar lasanha pela primeira vez, da primeira briga da minha vida na quarta série, do primeiro beijo com Ben, até quando perdi a virgindade. É esse tipo de sentimento, de descoberta, ativando algo em meu corpo já preparado e desejoso de fazer. Estou deitada sobre um colchão, o corpo virado para uma parede branca. Não enxergo nada além do tom leitoso, também presente no lençol da cama e nos ferros de sua estrutura. É, isso faz bem mais sentido: enlouqueci e fui internada. Bem-vinda à nossa clínica de repouso, Aretha. Vamos cuidar tão bem de você quanto nos empenhamos em esconder “manicômio” na placa de entrada. Os suspiros e roncos entrecortados sussurram uma canção calma pelo ar, e percebo um padrão no que seriam as notas mais altas, zumbidos respirados. Há pessoas dormindo ao meu redor. Aproveito um crescendo entre as estrofes do sono, que pudesse abafar qualquer ranger, quando sento na cama. Por pouco não acerto a cabeça na cama de cima, minha beliche não é a única do cômodo. Alguém dorme sobre mim e duas mulheres dividem outra cama de dois andares ao meu lado. As beliches seguem até o fundo do lugar a perder de vista. É minha chance. Levanto e vou em direção à porta, o olhar pipocando através de uma portinhola circular. Não há ninguém no corredor e arrisco que estou na ala hospitalar do Titanic. Funcionou. Viajei no tempo. Meu Deus. Viajei no tempo. Inspiro, expiro. Calma, Aretha, pensa nisso depois. Agora é fazer o planejado. Se estou no hospital do navio, isso me coloca no Convés D, lá pelo lado direito do navio e perto da quarta chaminé – as horas a fio estudando o acervo de Gillian vieram a calhar. Gillian. Southampton. Safira. A safira! Confiro o anel e ele olha de volta para mim em meu dedo, a safira está lá. Na meia luz do local, ela parece um pouco menos azul, mas sua beleza permanece hipnotizante. Entretanto, lembro do colar de Rose, o real motivo de eu estar ali. É minha missão aqui. Respiro fundo e rumo à maçaneta, com destino à Primeira Classe.

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O corredor serpenteia um cheiro misto de temperos, mas não esbarro com ninguém. As paredes simples reproduzem o tom apático da enfermaria. Sigo um farfalhar de vozes, tão misturado quanto o aroma de comida no ar, até me deparar com uma porta dupla e mais portinholas. Quando tomo coragem para olhar através delas e do vapor abafado ao seu redor, vejo que se trata de uma cozinha a pleno vapor. O lugar parece enorme. Por alguns segundos, consigo avistar mesas cobertas por leguminosas, bancadas enfarinhadas, caldeiras fumegantes e fornos com a logo engordurada da Cooking Wilson. Entretanto, o ingrediente principal do funcionamento do ambiente é, sem sombra de dúvidas, os cozinheiros. Fardados de branco – Tudo combina com aquele hospital ou é o contrário? –, correm de uma praça à outra, anunciando pedidos que transportam em panelas flamejantes; uma dança de cortes, picotes, mexidos, viradas e muitas doses de experimentação na colher. É hipnotizante. Abandono a visão e colo o corpo na parede ao lado da porta, meio ofegante. Fico tentada a tirar o suéter pelo calor que emana das chamas vizinhas, mas foco no problema que surge em meu caminho: a escadaria que dá acesso à parte superior do navio – e, consequentemente, ao quarto de Rose – fica do outro lado da cozinha. Para chegar lá, preciso nadar entre seus tubarões de avental, que alimentam homens e mulheres nos andares de cima. Impossível não ser notada, quanto mais com essas roupas. O caminho se ilumina em minha mente mais uma vez. Tenho uma ideia que talvez soasse arriscada em outros contextos, mas não vejo alternativas imediatas. Quanto mais o tempo passa, é mais desafiador continuar por aqui. Essa loucura foi um erro. Depois de olhar mais uma vez pela portinhola e ver a cozinha seguindo seu funcionamento na velocidade máxima, faço o caminho contrário e retorno à realidade perolada do hospital do Titanic. Chego à escadaria do outro lado da cozinha a tempo de não derreter sob o dólmã e o chapéu branco, acumulados sobre meu suéter. Olhando para baixo, sigo até achar uma sombra próxima e isolada, para só então arrancar o disfarce. Enrolo tudo em uma muda já suada, que deixo em um canto no chão. Um armário com roupas de pacientes foi a salvação que encontrei na enfermaria: algum cozinheiro estava de cama e guardou o uniforme. Em meio à correria culinária, ninguém reparou enquanto atravessei o ambiente, mantendo a cabeça baixa e passos apressados. Quando finalmente subo a grande escadaria, a ação só não tira tanto o fôlego quanto a visão que me recebe lá em cima. Estou realmente em um navio. A ficha cai quando a brisa fria do mar me surpreende, acariciando meus cabelos quando corro para me debruçar na mureta. O calor da cozinha MULHER AO MAR | fanfic


parece uma lembrança distante. A lua tamborila seu reflexo sobre as ondulações do Atlântico, o aroma salgado perfumando o balanço do chão de madeira. A magnitude do oceano se tentacula por todas as direções e não enxergo nada além da escuridão de águas pesadas por quilômetros, preservando o desconhecido assustador sob as ondas. Estou em um navio. Giro o corpo de supetão e dou as costas ao mar. Meu Deus. Casais aristocráticos me olham torto com seus trajes de gala, luvas brancas e cartolas intimidadoras. Não encaro os olhos de ninguém e ando em direção às cadeiras de madeira esparramadas pelo corredor. Altos janelotes vidrificados iluminam o deque com feixes de luz, um corrimão demarcado na parede. Não posso me alienar agora. Foco, foco, foco. Se isso for um sonho, vou até o fim para acordar. Se isso for uma alucinação, sigo até cair na realidade. Se isso é verdade... Agora não há mais volta. As noites em claro, estudando os dossiês da investigação de Gillian, vêm a calhar. A planta arquitetônica do navio, a divisão dos níveis por classes, os estudos que tentavam traçar os rumos do ladrão d’O Coração do Oceano, que levavam diretamente ao quarto de sua dona. Os detalhes do documento se iluminam em minha mente e sei exatamente como chegar no quarto de Rose. Estou a ponto de seguir o caminho rumo às suítes da Primeira Classe, quando sinto um impacto no ombro direito e tropeço pra frente, quase caindo no chão. – Desculpe... A senhorita se machucou? – Não, tá tudo bem – respondo à voz masculina que toma forma, mãos estendidas para me segurar. Subo o olhar para encará-lo e vejo Lizzy. Não fisicamente, mas a lembrança é tão contundente que envolve e permeia o ser humano real em minha frente. O homem cultiva cabelos loiros em um corte incomum, moldurando o rosto de uma assombração. Roupas simplórias quase o tornam invisível, um fantasma entre as galas da noite naquele andar do navio. Algumas cartas de baralho se destacam para fora no bolso da calça, porém não perco tempo reparando ali. Algo logo me atrai e, sem muita escolha, fixo minha atenção. Engulo seco. Os olhos azuis-esverdeados de Jack me pertubam mais do que o desconhecido sob as ondas. Ele é o homem que esbarrou em mim. Estou de frente para Jack Dawson em pessoa. Vácuo, o ar desaparece. Nos meus pulmões, parece que nunca existiu. Tento me mover, esboçar uma expressão, mas o corpo não obedece. Está congelado, tanto quanto se estivesse MULHER AO MAR | fanfic


à deriva no oceano lá fora. Não consigo respirar. A garganta fecha, mas as palavras almejam sair. O raciocínio se confunde: o quê falar? Da pedra? Das viagens? Da paternidade? Oi, cara que nunca conheci, mas odeio. Obrigado por estragar minha vida e meio que criá-la também. Não consigo respirar. O quê falar? Em como ele destruiu a vida de Lizzy? O ar fica pesado como um iceberg ao meu redor, sinto que vou afundar com ele. Quero afundar. Meu Deus, o que foi que eu fiz? – Com licença! – de repente, uma voz anasalada atravessa entre nós. Uma senhora de vestido pomposo, acompanhada de um senhor elegante, rouba meu campo de visão de Jack. Suas roupas espalhafatosas não me deixam mais enxergá-lo, e perco seu olhar. – Com licença! Ora, liberaram o andar para terceira classe? Onde já se viu... Eles não esperam que eu saia do caminho e passam aos empurrões, o que me tira do torpor. Titanic. Viagem. Colar. Volta, Aretha. Me vejo caminhando para trás no automático, até encostar na parede. Quando me dou conta, Jack já segue seu caminho rumo à proa, logo atrás do casal mal-educado. Mais um homem na multidão, como dezenas que caminham pelo navio de cima a baixo. Tudo dura um, dois segundos, no máximo. Não sei se é pela viagem no tempo, mas pareceu uma eternidade. Inspiro, expiro. Isso não pode estar acontecendo. Inspiro, expiro. Era ele. Inspiro, expiro. Ele. Fecho os olhos e sigo inspirando, expirando, o corpo sem desgrudar da parede. Dou um tempo para me recompor, as pernas ainda sem me obedecer. Suor frio desce pela nuca, a maresia arrepiando meu torso. A lembrança da cozinha quente soa uma tentação. Minha cabeça cai, a pressão deve ter baixado. Arrisco abrir os olhos e, encarando o chão do corredor, vejo uma carta de baralho perdida no assoalho de madeira. Jack tinha um baralho no bolso. Funciona como um gatilho, tal qual a interrupção do casal aristocrata, e retomo o controle do meu corpo. Testo um passo à frente e, ao conseguir, agacho e pego a carta. É a Rainha de Copas. Olho para o fim do corredor, em direção à proa, e a figura de Jack já sumiu de vista. Tranco a porta atrás de mim e respiro aliviada, a primeira vez desde que acordei nesse lugar. Obrigada, memória fotográfica. O caminho até a suíte de Rose se entremeava MULHER AO MAR | fanfic


exatamente como nos dossiês, mas Ben também merecia um beijo especial de agradecimento. Nunca me importei com o par de brincos que ele me deu em nossa última viagem, para o Brasil. Duas pérolas que, unidas, se transformam em uma chave universal. Ele nunca mostrou essa invenção para os pais, mas sei que é seu maior orgulho. A ideia era descobrirmos juntos se realmente funcionava, e prometemos que só iriam testar na próxima viagem, lá pelo fim do ano. Nem tínhamos visto o destino ainda. Destino. Pensar nessa palavra tem um sentido totalmente diferente agora. Mas não pude esperar, e, graças à chave, consegui retrair as trancas do miolo na porta. Me perdoe, Ben. O bálsamo cálido das rosas na cabine de Rose substitui o aroma salgado dos corredores externos. Pude perceber que o balanço das ondas também diminuiu no caminho, fruto da localização central no navio. Os luxos da Primeira Classe não pareciam acabar, bem no instante em que identifico não estar exatamente no quarto de Rose. Estou na sala de estar. Paredes de madeira reluzente me rondam, imponentes com seus ornamentos dourados. Avisto as flores cujo perfume me recebeu, rosas brancas e vermelhas em vasos de porcelana. Os jarros não estão posicionados com esmero, mas adornam um belo espelho sobre a lareira. Um relógio cheio de arabescos fica entre as flores e temo que, a qualquer momento, ele implore que eu quebre a maldição da Fera no castelo. Quadros, mesinhas, sofás estão espalhados pelo lugar – aquilo é um Monet? –, que se amplia para minha frente, um acesso levando ao próximo cômodo. Apesar disso, não vejo nenhuma caixa de joias ou algo emprumado o bastante que se assemelhe com isso. Os segundos silenciosos de observação me certificam que estou sozinha na cabine, talvez não por muito tempo. No bolso, a carta de Jack pesa com o lembrete de que ele pode me flagrar aqui. Rose também pode voltar a qualquer momento. Consigo atravessar o mais rápido possível até o novo ambiente, o entorno amadeirado dá lugar a um papel de parede que combina com a estampa dos sofás na sala anterior. Mais móveis luxuosos acompanham meu olhar e sigo caminhando, os passos se firmando, até que chego a uma entrada à direita. Ao fundo dela, um cofre verde-musgo surge sobre uma bancada. Sinto os batimentos cardíacos crescerem no pescoço. Passo pela porta já aberta e chego ao cofre, ajoelhando para enxergá-lo de perto. Há um “VALE” escrito no disco de senha, que nem ouso tentar. As pérolas já estão em minhas mãos, recém-usadas na entrada da cabine, e as acoplo novamente. A chave universal se destaca da joia e a insiro na tranca, girando em sentido antihorário. Ouço o maquinário do objeto acordar e se espalhar dentro do cofre. Em alguns segundos, um som metálico me convida a abrir a portinhola. O Coração do Oceano me encara como se batesse tão forte quanto o meu.

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CAPÍTULO 4: REDEMOINHO 12 de abril de 1912 – Noite RMS Titanic / Em algum lugar no Oceano Atlânico A estrutura platinada acompanha diamantes, que formavam o símbolo de um coração. No centro, uma safira brilhava com a luz de um olhar apaixonado, e perco o fôlego ao ver algo tão precioso de perto. Joias nunca estiveram em meus gostos pessoais, mas a arte por trás do colar cantava uma canção hipnotizante. Talvez tivesse pertencido a uma sereia, no início de tudo. Quando dou por mim, a mão já está estendida para alcançá-lo. Quero tocá-lo. Entretanto, antes de abraçá-lo com os dedos, o menor dos toques coincide com uma pontada gelada em meu bolso, tirando-me do torpor. Recolho o braço pelo susto, o bolso ficando cada vez mais frio. A carta de Jack está lá. Me preocupo se algum líquido caiu ali, esfarelando o objeto, e insiro a mão na brecha da roupa sem hesitar. É bem o contrário do que imagino: a carta está mais dura, pesada, e consigo segurá-la por alguns segundos apenas. Está tão gelada que queima as pontas dos dedos, mas, além da sensação, parece intacta, seca. Tão fria que queima. Tudo dura algumas frações de segundos, a frieza da Rainha de Copas impedindo que aguente segurá-la por muito tempo. Solto a carta no chão, o vermelho dos dedos ameaçando explodir a qualquer momento. Em câmera lenta, o objeto congelado se projeta no ar, espatifando-se ao pó no impacto com o chão. Fumaça branca ergue-se no lugar da queda. O que foi isso? Afasto a pequena nuvem de poeira balançando as mãos. Uma cópia d’O Coração do Oceano jaz no chão, exatamente onde a carta deveria ter pousado intacta. Encaro o colar no cofre, imóvel desde que tentei pegá-lo. Olho de volta para a sósia no chão, e pisco algumas vezes. Não é possível. A carta se dissipou em uma segunda joia, idêntica à original. A confusão me tira o nervosismo de segurá-la e acabo pegando o colar no cofre sem receio. A estrutura é mais pesada do que imaginava, revelando belezas ocultas a cada virada de ângulo em meu pulso. Retorno minha atenção à cópia perto do pé, preciso pegá-la para comparar com a original bem de perto. Tento segurar o colar-cópia com a outra mão, e me surpreendo mais uma vez: ele não se mexe. É como se pesasse toneladas e não posso mexer um milésimo de centímetro em sua potestade. Estaria grudado de alguma forma no chão? O gelo da carta serviu de um certo tipo de cola? Talvez consiga puxá-lo com as duas mãos. O Coração do Oceano original se MULHER AO MAR | fanfic


acomoda no chão quando o ponho ali e então, ambas as mãos livres, vou à sósia. O sobrepeso desaparece e a pego com a facilidade em que tomei a primeira joia do cofre. O que está acontecendo? O colar original brilha ao lado, retornando ao meu campo de visão. Resolvo testar uma teoria e, com a cópia na palma direita, busco segurar a original com a esquerda. Sem sucesso, agora é ela que não se move, talvez pesando tanto quanto esse navio. Testo a troca de colares mais algumas vezes e os resultados não mudam; toda vez que seguro um, o outro se torn impossível de pegar. Não posso segurar os dois colares ao mesmo tempo. Click. Maçaneta. Som de maçaneta. Aquilo foi o som de uma maçaneta? Tem alguém aqui? Meu Deus. Meu Deus. Meu Deus, preciso ir embora. Os colares olham para mim e, por um momento rápido, penso ter escutado outro barulho, uma voz vindo deles. Estou enlouquecendo, mas preciso escolher. Não consigo segurar ambos ao mesmo tempo. Qual, Aretha? São estupidamente iguais, mas alguma lógica me cai sobre os ombros. Vim buscar o Coração do Oceano no cofre e é esse que levarei, já que não posso pegar as duas versões. – Escolha. Uma voz sai das joias e me jogo para trás, a respiração montando um pula-pula em meu tórax. Estou enlouquecendo, joias não falam, objetos não falam. Você não vai quebrar a maldição da Fera hoje, Aretha. Ouço passos ao lado. Alguém se aproxima e não demorará muito para chegar até aqui. Não penso e, mais uma vez, é uma péssima combinação. Volto à frente do cofre e guardo lá o colar-cópia. É só uma sósia, não tem problema em deixá-la aqui, certo? Passos, passos, passos. Não há tempo hábil para calcular alternativas, tampouco as pessimistas. Recolho o colar original do chão, correr para trás da única porta no cômodo é o que me resta. As sombras encapuzam meu medo ao passo que alguém entra devagar no ambiente, um único pedaço de madeira nos separando. Serei descoberta. Meus olhos se fecham em automático, a joia original se delineia em minha mão quando cerro os punhos, tentando silenciar quaisquer resquícios de respiração. Talvez haja uma prisão no navio e me mandem para lá. Um perfume cítrico antecipava o caminho da pessoa que entrava na cabine de Rose, os passos ficando mais pesados conforme a distância entre nós dois diminuia. Serei descoberta. As pálpebras cerradas não me deixam enxergar quem é, minhas mãos coladas nas laterais do corpo, uma delas guardando o Coração do Oceano no bolso da calça como se minha vida dependesse disso – e talvez dependa. Não sei quanto tempo a sombra atrás da porta me MULHER AO MAR | fanfic


esconderá, mas os pulmões parecem não se abalar com a tensão. Coloco uma mão sobre a outra, como em uma oração, e sinto a safira no anel. Que ela me ajude. O fôlego começa a se equilibrar gradualmente uma calma ameaça me invadir. A visão embaça antes de escurecer, a solidez sob os pés perdendo-se nos sentidos. Talvez quebrar a maldição da Fera fosse melhor do que desmaiar em seus braços. 16 de agosto de 2052 Chippewa Falls, Wisconsin / EUA – A senhorita não pode dormir aqui. Senhorita... Há um balanço leve em meus ombros no instante em que sinto o alívio. Aquele alívio. O mesmo que senti ao acordar na ala médica do Titanic. – Senhorita, por favor... A sonolência me envolve feito edredom, acho que peguei no sono a bordo no navio. O saculejo da maré tenta me ninar e, quanto mais resisto, mais adormeço. – Não pode dormir no ponto de ônibus. Entre cílios, percebo que o balançar vem de um par de mãos enluvadas, sacudindo suavamente meus ombros. Sigo o olhar, dois braços, um corpo, um rosto. A voz sai dali. Escolha. Levanto de supetão e a policial dá um passo pra trás, levando as mãos ao coldre por instinto. Estou sobre o banco de um ponto de ônibus, de frente para uma rua molhada no que parece um bairro domiciliar. As roupas da oficial são levemente familiares e, o que se sobrepõe à minha atenção, mais atuais do que o guarda-roupa aristocrata dos passageiros no Titanic. A mesma sensação, a mudança de local... Viajei no tempo. De novo. – Quando estou? – a frase sai grave, como se tivesse acabado de acordar após uma boa noite de sono. Uma longa noite. – Chippewa Falls, mas se não sabe ond-Espera! Você perguntou “quando”? Chippewa Falls. Já ouvi esse nome antes. – Desculpe, acho que ainda estou meio sonolenta, oficial... – me esforço para focar o sobrenome da policial em seu uniforme. – Dunlop! Oficial Dunlop. Voltei de uma... Festa, é, festa. Acho que não consegui pegar meu ônibus para casa. Solto uma risada forçada e ela me encara com um ar desconfiado. Chippewa Falls... Onde já ouvi esse nome?

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– Não pode dormir no ponto de ônibus – a mão da policial abre a trava do coldre quando uma gota gelada de transpiração se joga da minha nuca, suicidando-se costas abaixo. – Sim, claro, claro, eu... Eu vou pra casa agora mesmo. Minha mãe deve estar preocupada, sabe como é... O suor chega à altura do tórax. – Não, não sei – Dunlop é intransigente na resposta automática, sua desconfiança avançando sobre mim. Ela me lembra Gillian. Não está comprando a história. Cóccix. Ela vai descobrir. – Por favor, seus docum– Dunlop, na escuta? Uma voz mecânica surpreende nós duas e a gota se seca no contato de meu suéter com a pele. A policial me dá as costas em reflexo, parece que o chamado vem de sua moto, que não tinha visto até então, estacionada em frente a uma lata de lixo aberta. Dunlop se vira de volta para mim. Minha garganta seca mais do que minhas costas. – Espere aqui. Aceno com a cabeça, almejando passar naturalidade, e a vejo se aproximar do veículo, de novo de costas para mim. Ela responde ao chamado, mas não consigo ouvir o que dizem, só me resta reparar na lata de lixo ao lado do banco em que estou. Talvez alguma embalagem tenha datas que ajudem a me localizar. Ou temporalizar, seja lá o termo adequado. Nenhuma loucura nas últimas horas chegou perto de ser adequada gramaticalmente. Quando inicio um movimento em direção ao lixo, noto um deslocamento em resposta na direção de Dunlop, uma dança implícita entre nós duas, com a minha desvantagem de ter dois pés esquerdos. Ela trocou o peso do corpo de uma perna para a outra, ao passo que seus ombros se resetam sob a jaqueta. Dunlop sobe na garupa da motocicleta, que plana sobre o chão. Sua atenção retorna para mim, estática no banco. – Vá para casa. Sua mãe deve estar mesmo preocupada. A policial toca em uma espécie de protetor auricular na orelha, e um capacete se desdobra a partir dali, recobrindo toda sua cabeça em um segundo. Ela arranca com o veículo, levitando sobre o asfalto em velocidade. Mal espero Dunlop sair de meu campo de visão e corro até a lata de lixo. Rápido, Aretha, rápido. Entre restos de alimentos e algumas amostras grátis de sanduíches provavelmente ruins, encontro um jornal de aparência recente, com exceção de algumas manchas de café, e uma data que me preocupa mais do que toda a interação com a policial: 16 de agosto de 2052. “Chippewa Falls” está escrito com uma delicada letra cursiva, imitando folhetins antigos e com manchetes bem menos perigosas do que minhas últimas ações. Sabia que já tinha visto MULHER AO MAR | fanfic


aquele nome em algum lugar. No extremo norte dos Estados Unidos, a cidade-natal de Jack me recepcionava 13 anos antes do meu prรณprio nascimento.

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CAPÍTULO 5: TERRA À VISTA 16 de agosto de 2052 Chippewa Falls, Wisconsin / EUA O mundo gira ao meu redor mais rápido do que consigo acompanhar. Sinto vontade de voltar para o banco, sentar lá e esperar até a oficial Dunlop voltar para me prender e, quem sabe, isso me devolva um pouco de sanidade. Ou aguardar o ônibus para casa que inventei e me prostrar na frente dele antes de encostar na calçada. Eu preciso de sanidade. Penso que a consciência da busca por algo que me dê segurança mental é um sinal. Isso, Aretha, você não está em surto. Pessoas em surto não ficam com fome e você está faminta. Engulo seco com a pouca saliva que me resta e levanto o rosto da lixeira, finalmente analisando o entorno. Um bairro aparentemente residencial me cerca sob um céu escuro, o cheiro de chuva recente ainda perambulando no vento inconstante, tal qual meus pensamentos. Isso explica a falta de uma alma viva sequer pelas ruas que meu olhar alcança, parece mesmo que mal parou de chuviscar. Com um brilho opaco da umidade sobre suas tonalidades neutras, as casas são cuspidas do estereótipo de um perfeito subúrbio americano, algumas cultivando jardins floridos e outras que brincam com a organização de pedras diferentes até suas respectivas portas. O ponto de ônibus fica logo antes da esquina de um cruzamento, onde carros passam com um intervalo imenso. Parece uma ilha fantasma. Talvez eu tenha morrido e meu espírito veio para cá. Balanço a cabeça, minha própria mente pregando truques de novo, talvez em resposta à fome ascendente em meu estômago. Como lutar contra si mesma? Atenção aos significados. A voz de Gillian se contrapõe aos meus pensamentos, talvez vinda de um lugar quente e aconchegante no fundo das minhas memórias. Ela sempre frisava essa abordagem ao me contar de sua carreira como investigadora, buscando sentido ao evitar a naturalização dos fatos. A paz de espírito na certeza do que fazer, apesar de abstrata e imediatista, dissipa o torpor em minha mente. Nada de congelar diante do desespero, pois é isto que preciso fazer: me ater ao que significa estar aqui, na cidade onde Jack nasceu e cresceu, exatamente nesse momento. Mal posso entender melhor a situação e uma pontada gelada atinge minha perna, de modo que solto o jornal de volta para o lixo e levo as mãos direto a um dos bolsos. Apalpo uma massa dura e fria sob o jeans; é o colar de Rose. Outra fisgada vinda dali arrepia meu corpo

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da cabeça aos pés. Tiro a joia depressa dali e, por acidente, voa uma carta de baralho que estava junto ao colar. Ela vai em direção ao gramado de um dos jardins. Me apresso atrás do papel, alcançando-o na metade de caminho entre a grama e a casa em questão. É uma Rainha de Copas, idêntica à que se dissipou na cabine de Rose e se dissolveu na cópia do colar. Mais uma interrogação para lista: como isso veio parar aqui? Pelo menos a monarca mantém uma temperatura ambiente, diferente de sua versão no navio. O gramado molhado amorteceu meu joelho ao me agachar para pegá-la de volta, mas também suja a calça, agora carimbada de terra e matos finos. Não tenho tempo de bater fora a sujeira ao me levantar, pois meus olhos se hipnotizam pelo imóvel em minha frente. Apesar das residências terem similaridades, há algo de especial nesta em específico que logo me arrebata. Há o espaço para um jardim, mas nenhuma flor desabrochada – talvez ainda estejam crescendo ou seus cuidadores não conseguem se decidir sobre qual muda escolher. Uma árvore baixa se ergue em ângulo e distâncias estratégicas de uma grande janela, que imagino ser uma companheira ideal para leituras longas. Eu não estou aqui por acaso, e tenho certeza disso ao reconhecer esta casa de uma fotografia dos arquivos de Gillian, memorizados com afinco ao longo dos anos no banco de trás do carro da mãe. Esta é a casa dos avós de Jack, Tim e Mary, onde ele cresceu. Atenção aos significados. Olho para o colar e, pela primeira vez, suspeito que algo n’O Coração do Oceano me olha de volta. A Rainha de Copas se exibe majestosa na outra mão, me lançando sua perpétua expressão blasé, quase em desafio. A monarca quer que eu me atreva a continuar nesse caminho de raciocínio sem volta, porque já sabe o final. Há anos atrás, ainda embrulhada na beca de formatura, tentei me esconder de Gillian na garagem do prédio, o corpo já habituado ao formato do banco de trás do carro. Eu queria me distrair do fiasco da cerimônia e continuar mais uma releitura dos dossiês caiu como uma luva. Estava na parte sobre o colar quando uma marcação me chamou a atenção pela primeira vez, mais especificamente na fala da curadora da exposição vigente no museu. As palavras “benfeitor anônimo” brilhavam grifadas em laranja, encabeçadas por um ponto de interrogação nunca respondido. Elas se referiam à pessoa que doou O Coração do Oceano para a exposição, até então desaparecido a bordo do Titanic, logo após o suicídio de Rose. Jack estava indo em direção à proa do navio quando nos esbarramos. Rose foi vista, pela última vez, por um dos vigias na proa, mas ele só percebeu sua intenção suicida quando já era tarde demais – mas nunca é tarde demais para um viajante do tempo. Meu coração acelera ao perceber que Jack ia impedir Rose de tirar a própria vida. Tudo faz sentido agora.

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Nunca descobriram como ou quem roubou o colar naquela noite no navio. Abaixo o olhar de volta à joia, a joia que eu roubei. Eu sou a ladra do colar, fadada a pescá-lo no rio da história que nunca sai do próprio curso. O destino cai sobre mim, uma chuva de sentimentos que poderia inundar toda Chippewa Falls mais uma vez, e eu me encharco. Meu corpo cai em choque, agora ajoelhado por completo sobre o gramado, e minhas lágrimas ajudam a enlamear ainda mais a terra úmida. Independentemente do que eu fizesse, Jack estava destinado a salvar Rose. Ele sempre iria desempenhar o mesmo papel em sua própria jornada: achar o colar na exposição, viajar através dele e deixar tudo (e todos) para trás, criando uma “segunda linha temporal”, como disse o dr. Ganse. Lá, Rose foi salva do suicídio, conheceu Jack e sabe-se Deus o que aconteceu depois com ambos aquele maldito navio. Enquanto isso, na primeira, a jovem se suicidou e o Titanic seguiu sua viagem normalmente, deixando-a trás no Atlântico. Eu nunca fui a pessoa que destruiu o colar, e a viagem do tempo ter me trazido para este lugar, neste momento, me mostra isso. Talvez eu ainda possa ser essa pessoa. Talvez consiga quebrar o colar e dar à Lizzy um futuro longe do abandono, da perda, de mim. Ela e Gillian nunca se conheceriam para minar a vida uma da outra, não sofreriam por anos e anos em decorrência das ações de Jack. Eu não sofreria. Não haveria brigas de segunda a segunda, os gritos mais altos do que o volume máximo de qualquer música que eu colocasse no meu quarto. Nada de mudança repentina para o apartamento de solteira da Gillian, meu carrinho de bombeiros de brinquedo esquecido na calçada. Droga, eu amava aquele carrinho. Esquecer da existência da formatura, a fatídica formatura. Nada de banheira vermelha. Mas também não haveria Ben. Nada de lembranças calorosas da minha infância, quando minhas mães eram unha e carne, e fazíamos piqueniques no Parque Palmerston. Certa vez, um esquilo roubou nossas nozes e brinquei de detetive com Gillian para achá-lo. Nunca vi Lizzy tão radiante quanto naquele dia. Sempre amei o sorriso dela, sinto falta de vê-la assim. Sinto falta dela. Ganse estava certo, o anel é inquebrável. Não há início e fim, apenas as voltas. Eu posso percorrer a circunferência do tempo, atravessá-la para pontos que nunca vivi ou fazem parte do meu passado, mas nunca conseguiria quebrar o círculo. As dores não podem ser apagadas, mas as felicidades também não, e eu precisei das duas para chegar até aqui, pronta para voltar. Voltar para casa, para Ben, Gillian, Lizzy... Eu preciso recuperá-la. Jack salvará Rose e, para isso, precisará abandonar Lizzy ao viajar pel’O Coração do Oceano, mas eu

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estarei lá por ela quando retornar. Para isso, devo cumprir o meu papel: devolver o colar roubado ao museu SeaCity para que tudo isso aconteça. No instante em que me aproximo da varanda na casa dos avós de Jack, o vento para de soprar. Revejo todas as opções em minha mente, porém esbarradas em empecilhos e incertezas. Dar um jeito de enviar pelo correio? Precisaria de documentos que não tenho na hora do pedido. Viajar até a Inglaterra e entregá-lo em mãos ao museu? Além do problema dos documentos, a falta de dinheiro impede qualquer ação desse nível. As carteiras nunca deveriam se separar de seus donos em viagens no tempo, aprendi. A alternativa seria para alguém realizar o envio por mim, mas não parecia certo confiar uma joia tão valiosa a um total desconhecido. Foi quando percebi que havia alguém que eu conhecia ali, por mais que indiretamente: Tim, o avô de Jack, uma das minhas figuras preferidas nos dossiês. A viagem do tempo poderia ter me levado diretamente ao museu ou até os DeWitt’s, os descendentes da família da Rose, mas não. A escolha de Chippewa Falls não foi à toa, muito menos estar em frente à casa de Tim. Não arriscaria interagir com ele de propósito, então isto terá que servir. Saco o bloquinho e a caneta do outro bolso da calça, felizmente intactos da chuva que pegamos no estacionamento da Universidade de Southampton – aquilo soa como uma lembrança de anos atrás. O esforço de fazer minha caligrafia mais legível resulta em uma nota curta, cujo texto atravessa zilhões de revisões mentais antes de ser escrito:

“Tim Lake, Esta joia é O Coração do Oceano e pertence à Rose DeWitt Bukaker, a jovem que se suicidou no navio Titanic. Jack precisa salvá-la. Envie o colar para o Museu SeaCity, em Southampton, na Inglaterra, o quanto antes. Não deixe remetente. Obrigada por isso. Assinado: Viajante do Tempo” A varanda da casa é pequena, provavelmente os donos gostam mais de ficar lá dentro. Ainda assim, há um banco azul de dois lugares no canto esquerdo, com estofado de margaridas, e meia dúzia de vasos com plantas ornamentam o espaço. O número 1316 está MULHER AO MAR | fanfic


afixado com peças métalicas em vertical em uma das pilastras e, acima da minha cabeça, uma lamparina ainda está desligada. Os avós de Jack ainda têm apreço por certos itens antigos e charmosos. Releio o bilhete mais algumas vezes e, quando me dou por satisfeita, posiciono-o encaixado no colar, que está em cima do pequeno tapete marrom e felpudo frente à porta. É isso, Aretha, agora ou nunca. Eu toco a campainha e saio correndo em direção à lixeira no ponto de ônibus, o coração disparado como uma criança pregando uma peça nos vizinhos. Quisera eu que uma bronca das minhas mães fosse tudo que estivesse em jogo agora. Agacho atrás dela, torcendo para nenhuma parte do meu corpo ficar exposta. Segundos se passam e sinto que atravessei horas até o som de uma porta se abrindo surgir. Conto até três e arrisco metade de um olhar ao lado da lixeira, a ponto de conseguir ver um não tão nítido Tim em sua varanda. Ele é mais alto do que eu pensava, vestindo uma camisa verde que vai até o pescoço de um jeito fofo. Definitivamente gosta de itens antigos e charmosos. O avô de Jack olha para os dois lados e, ao não ver ninguém, tem a visão atraída para baixo, encontrando o colar. Ele o pega com uma das mãos enquanto a outra vai de encontro ao meu bilhete. Minhas batidas cardíacas são possíveis de serem ouvidas a quilômetros, mas Tim não suspeita de nada ao olhar novamente para os lados, após a leitura do bilhete. Ele entra de volta em casa e não o vejo mais. Sinto um peso enorme se dissolver em meu peito. Estou sozinha, sorrindo. Acabei de conhecer meu bisavô. Uma gota d’água lava o rosto da Rainha de Copas, ainda presa em minhas mãos. De imediato, imagino que estou chorando – de alegria, alívio, gratidão ou tudo ao mesmo tempo –, mas outras duas se precipitam em minhas unhas. A chuva voltou. Olho para cima e minha básica observação metereológica garante uma tempestade em formação sobre o bairro, montanhas escuras se atacando com raios e rajadas de vento, uma guerra pelo domínio do céu em Chippewa Falls. Não demora para o som cadente dos pingos em queda no asfalto chegar aos meus ouvidos, e eles vêm em minha direção. Preciso me abrigar. Busco um refúgio com o olhar e um punhado de árvores entre duas casas entra meu campo de visão, do outro lado da rua larga. Antes que eu possa racionar mais, corro para lá, a torrente de água me inundando em menos de três passos. A chuva se acumula em meus cílios e os cabelos molhados já pesam o dobro, meus sapatos já são barcos de papel inundados, rumo ao bueiro mais próximo. Sigo até a árvore mais próxima e suas folhagens diminuem a força da água sobre mim; apoio minha mão em seu tronco na busca por apoio.

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A safira no anel em meu dedo surge como um tapa na minha cara. Ao contrário d’O Coração do Oceano, ela não me olha de volta, porque não é a mesma safira que está ali, a estrutura prateada em contraste com o caule escuro. Seu tom de azul real foi substituído por uma tonalidade branca, como a mente que perde a informação no momento crucial. A preocupação arregala meus olhos, entretanto, tento pensar que não é nada. Não pode ser nada, não à essa altura, não depois de tudo que aconteceu. Balanço minha cabeça na esperança de afastar os pensamentos e avanço entre o grupo de árvores, há um espaço mais seco ali, quase uma clareira de uma pessoa. Depois de pular o tronco curvado de uma delas, sento no desconforto de galhos e raízes, mas é o melhor que pude alcançar. No fechar dos olhos, respiro fundo, o ar de 13 anos antes do meu nascimento preenchendo e se despedindo do meu organismo. Seguro as mãos como uma oração, a safira descolorida sob a palma esquerda. Isso precisa funcionar. Retrato Southampton em minha mente o melhor que posso naquele contexto. As áreas arbóreas sobre o concreto. 14 de abril de 2082. O sol sempre tímido, que aparece tarde e vai embora cedo de todas as festas. 14 de abril de 2082. O Rio Itchen arrastando sua forma de serpente sob a ponte homônima, rumo ao Estreio de Solent. Não era raro ver pais e filhos na pesca com mosca por lá, no ônibus voltando da escola. 14 de abril de 2082. 14 de abril de 2082. 14 de abril de 2082. A data se repete em minha cabeça e nada acontece. O desespero que havia ignorado ao flagrar a pedra branca começa a crescer, e parto para vociferar dia, mês e ano, no intuito de fazer a viagem acontecer de qualquer maneira. Enquanto uma batalha é travada nos céus e trovejos pontuam as frases, minha voz duela contra o volume alto da chuva forte. A Rua Havelock surge em minhas imaginações, movimentada nas exposições conceituadas no Museu SeaCity. 14 de abril de 2082. O piquenique com Lizzy e Gillian no Parque Palmerston, a busca pelo esquilo ladrão. 14 de abril de 2082. 14 de abril de 2082. O abraço de Ben durante as maratonas de filmes do Clint Eastwood no meu quarto. 14 de abril de 2082. Todas as vezes que nos beijamos no meu quarto. 14 de abril de 2082. Todas as vezes que fizemos amor no meu quarto. 14 de abril de 2082. 14 de abril de 2082. Os banquetes exagerados e deliciosos de sua mãe, sempre me engordando nos finais de semana. Ela é a melhor sogra do mundo. 14 de abril de 2082. Minha mãe perdendo a compostura e gritando de medo sobre um dos cavalos quando a levei lá pela primeira vez. Foi a primeira vez que ouvi Gillian xingar. 14 de abril de 2082. A terapeuta idiota me elogiando por bobagens infantis; até dela eu sinto falta. 14 de abril de 2082. Sinto falta de Lizzy. 14 de abril de 2082. Sinto falta da minha mãe. 14 de abril de 2082.

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Não sinto meus olhos ficando turvos, tampouco alguma sensação diferente, mas deixo de ouvir a chuva ao meu redor. Funcionou. Abro os olhos quando as últimas gotas rebeldes fazem seu próprio caminho pelas folhagens e caem sobre mim. É possível avistar a casa de Tim por uma pequena frestra entre os caules. Ainda estou em 2052, em Wisconsin. Isso não pode estar acontecendo... O anel de formatura não está funcionando. Repito todo o processo, a ordem das lembranças em mudança constante, até que esqueço de mencionar algumas. O esforço é tanto que dá branco; a safira está branca. É como a mente que perde a informação no momento crucial. A pedra que levou ao Titanic e me trouxe para cá não é mais a mesma. Eu não sou mais a mesma. Talvez tenha perdido a cor pelo uso seguido, talvez com o agravante de serem tempos tão distantes? Ela estava mesmo mais clara no navio, depois da primeira viagem. Mas o que isso importa agora? Comprovar minha teoria não faz diferença, suposição alguma resolve o que estou prestes a enfrentar. Não estou em casa. Não posso ir para casa. Minha casa é o futuro e eu estou no passado. Estou sozinha no passado, sem saída. Estou presa em um tempo que não é meu.

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EM BREVE NO FIM DE TUDO O MAR VOLTARÁ PARA TOMAR O QUE LHE É DE DIREITO

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