HOMEM AO MAR Um prelúdio para o Titanic de James Cameron
de CAÍQUE PEREIRA Apoio criativo de BEATRIZ RODRIGUES
2015 HOMEM AO MAR | fanfic
CAPÍTULO 1: À DERIVA 14 de abril de 2054 Southampton, Hampshire / Reino Unido – Tem certeza que não tem outro jeito? – Eu só preciso de algumas horas no currículo, Jack. É importante. – repetiu Lizzy pela décima-quarta vez desde que saíram de seu apartamento aconchegante na Cossack Green, bem no coração de Southampton. Ele já esperava que, após uma semana na cidade, sua melhor amiga insistisse em algum programa acadêmico. Quase como o curso de Artes que fazia em Paris, Jack achava as Ciências Sociais da Universidade de Southampton nada interessantes. – Nós já não passamos por aqui? – ele perguntou, apontando no vidro da janela para um parque cercado de árvores. – Não adianta tentar, eu não vou me perder. E você vai gostar da exposição, acredite. – Lizzy sorria sem tirar os olhos da estrada e as mãos do volante. Eles alternavam na casa um do outro nos grandes feriados. Depois da jovem passar o último Natal com ele na França, foi a hora de devolver-lhe a visita na Páscoa. Assim como a família de Jack, os pais de Lizzy insistiram em uma graduação no exterior, independente do custo. Parece que economizaram ao menos no carro da filha, oferecendo um modelo sem mesmo piloto automático. – E que tipo de artista é você que não gosta de ir a um museu? – Sou um pintor que gosta de jogar pôquer em cômodos quentes e tardes frias. Eu pensei que você havia dito que Southampton tinha sol – Jack se abraçava em seu suéter cinzachumbo. – Esse tanque de guerra não tem aquecedor? – Você é o culpado de trazer esse frio parisiense. – brincou Lizzy. – Mais fácil você ter se perdido. – Chegamos! – e ela abriu um sorriso irônico. Jack destravou o cinto-de-segurança, achando divertido o carro não fazer isso sozinho como era normal. Para alguém que não estuda História, ela tinha um gosto bastante retro. – “Suicídios Históricos”. Isso é sério? – Jack gargalhava ao saírem do veículo, lendo o grande telão ao lado da entrada do museu. – Pensei que um carro com rodas já era chamativo o suficiente para você. Lizzy rolou os olhos.
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– Já falei, uma professora recomendou – ela dizia, fechando o carro e pegando a bolsa. – E quando ela disse “recomendar” quis dizer “vá se quiser passar na minha matéria”. Eu não reclamei quando você me levou naquele museu lotado no Natal. – AQUILO ERA O LOUVRE! – E esse é o SeaCity. Sorria. Lizzy passou o indicador na haste direita do óculos e Jack ouviu um “click!” vindo do objeto. – Você vai me agradecer depois. – ela admitiu, passando o braço pelo do amigo, que não tirava as mãos do bolso, graças aos ventos fortes que vinham do mar. – Eles têm até uma área de joias. Quem sabe você não se inspira para algum quadro? O Museu SeaCity era o cartão de visitas da Rua Havelock, geralmente abrigando exposições ligadas aos moradores e à própria história de Southampton. Jack lia e relia as informações do folheto entregue pela guia de seu grupo, procurando o horário do término do tour, mas sem sucesso. – Pelo menos eles têm uma loja de souvenir. – sussurrou para Lizzy, concentrada na explicação da guia sobre navios cargueiros. – Quem sabe eu te compro um baralho? Sabe, para a gente jogar pôquer. – Shhhh. – e até quando o mandava calar a boca, ele conseguia ouvir o sotaque quase britânico da vizinha de infância. Jack resolveu tentar prestar atenção à explicação da mulher à frente, curadora do ambiente cheio de luzes e sombras bem colocadas e caixões de vidro transparente para proteger o que chamava de “arte”. Jack frisou mentalmente a palavra “caixões”. – Você não está prestando atenção no que ela está dizendo. – comentou baixinho para Lizzy. – Está de olho nela. A estudante desistiu de ignorá-lo e virou o rosto, os olhos arregalados e a boca entreaberta de susto. Jack comemorou a pequena vitória só de tê-la visto assim. – Não estou, não. – ela sussurrou em resposta. – Está sim. Rabo de cavalo – Jack contava nos dedos. –, óculos quadrados e assunto chato. Você está apaixonada. Lizzy não resistiu e riu, chamando a atenção de um casal de idosos atrás deles que os fulminaram com um olhar de reprovação ao desrespeito à regra do silêncio. – Eu posso querer o telefone dela e prestar atenção ao mesmo tempo, sabia? E ela voltou a olhar para a cabeça bem à frente dos dois. Lizzy tinha uma grande cabeleira crespa que emoldurava bem sua pele negra. Na cidade natal dos dois em Wisconsin, Chippewa Falls, Jack adorava fingir que tirava coisas de seu cabelo, cartas de baralho na HOMEM AO MAR | fanfic
maioria das vezes. Lizzy ainda questiona sua autoridade capilar de alguém que, segundo ela, mantém um corte de 1930. Talvez ela não se lembre, mas Jack não se esqueceu de como tudo isso começou, lá atrás em uma roda-gigante de um píer em Santa Mônica. Lizzy não queria subir na estrutura de jeito ou maneira, mas o amigo insistiu tanto que ela cedeu. Lá em cima, ela desatou a chorar de medo. Jack se sentiu tão culpado que fez a primeira coisa que lhe veio à mente: mexia em seu cabelo cheio e fingiu tirar os prêmios que tinham ganhado em outros brinquedos; balas, anéis de plástico e cartas de um baralho de Doctor Who. Quando Lizzy percebeu a palhaçada, parou de chorar e sucumbiu a um ataque de risos. – Jack, é agora. – O quê? – e ele se sentia puxado de seu devaneio, andando em direção a uma outra sala da exposição, menor, mais escura e com vários holofotes espalhados. – A sala das joias. Dentre as gargantilhas de esmeraldas, brincos de ônix e tantos anéis de rubi que formariam uma luva inteira, um colar diferente se destacou para Jack. Quando a guia parou ao lado do pedestal onde ele era guardado por uma redoma, foi a primeira vez que o rapaz quis, de fato, prestar atenção. – ...carro-chefe da sala, doado à nossa coleção recentemente por um benfeitor anônimo. Como vocês podem ver, toda sua estrutura é feita de platina, com diamantes percorrendo a borda no formato do coração que abriga essa linda safira no centro. A joia pertenceu originalmente a Luís XVI, polida nesse formato logo após a Revolução Francesa, até ser destinada à jovem Rose DeWitt Bukater, uma das passageiras do RMS Titanic em abril de 1912. É claro, nós contatamos os DeWitt’s para saber se eles doaram a joia ou se tinha sido roubada, mas parece que o colar havia sumido antes mesmo do navio chegar aqui em Southampton, logo após sua pioneira viagem transatlântica bem sucedida. Pelo que sabemos, ele desapareceu ao mesmo tempo em que a srta. Rose se jogou do Titanic quando percorriam o meio do Atlântico em uma certa noite, cometendo suicídio apenas aos 17 anos. A família estava muito desorientada quando o navio parou para procurar a jovem e ninguém notou quando o colar sumiu de uma das cabines. Nunca acharam o corpo ou se ouviu falar outra vez da joia, bem, até agora. A guia sorria, orgulhosa de si, de orelha-a-orelha, como se ela própria tivesse resgatado a joia do fundo do mar. Jack se surpreendeu pelo pouco caso que fez ao falar da morte da jovem. Alguém que ganha um presente daqueles, pertencido outrora a um rei, aparentemente estava atormentada por demônios maiores que qualquer valor. Uma dor
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curiosa começou a coçar em seu peito, como se algo naquela história mexesse mais do que o normal com ele. – Há registros de que ele era conhecido como Le Cœur de la Mer na corte francesa, um dos adornos da própria coroa do rei. Mas como vocês podem ver nesse documento bem ali – a guia direcionava para um papel envelhecido ao lado da redoma, quase tão protegido quanto, e Jack abriu caminho entre todos, passando até por Lizzy para ficar bem de frente para o objeto –, verão que entre os pertences declarados do sr. Caledon Nathan Hockley, noivo da srta. DeWitt que iria lhe presentear com a joia, não havia nada do tipo ou fora do comum, exceto por um nome misterioso que não especificava nada em particular. E antes que a mulher concluísse o raciocínio, Jack dançava os olhos pelo documento, encontrando o nome do noivo de Rose e lendo em voz alta, mesmo sem perceber, o título atribuído ao colar. – O Coração do Oceano.
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CAPÍTULO 2: MAREMOTO – Tem certeza que não quer jogar pôquer? – questionou Lizzy mais uma vez ao chegarem em seu apartamento, logo após o fim da exposição. Ela olhava para Jack como se houvesse algo de errado em seu rosto, ou pior, nele. – Não, eu... Eu preciso dormir um pouco. Você se importa? Por mais insano que fosse o segredo que Jack guardou por toda vida, a ideia que lhe arrebatou no museu não saía de sua mente. Mais do que ninguém, ele sabia que até as impossibilidades tinham limites. Só havia uma pessoa que poderia aconselhá-lo sobre isso. Lizzy parecia desconfiada, tentando com todas as forças entender o que acontecia com o jovem. Ela riu e cruzou os braços, franzindo a testa. – Sem problemas. Vou aproveitar e começar o trabalho da faculdade. Jack tentou esboçar um sorriso sem muito sucesso quando ela atravessou a sala pequena, desviando dos móveis usados de madeira, para chegar ao seu quarto. Antes de adentrar o cômodo, Lizzy se virou para ele uma última vez. – Jack, você está bem? Mesmo? – ela soava realmente preocupada. Essa era uma ótima pergunta, ele pensou. A história da mulher suicida, o colar e seu próprio mistério... Tudo era uma massa cinzenta pesando como concreto injetado aos poucos em seu crânio, impedindo-o de pensar em qualquer coisa além disso. Jack não estava bem. As mãos formigavam, a barriga zunia, o coração corria e as bochechas esquentavam. Ele também não estava mal. – Estou sim. Ao menos Lizzy conseguiu esboçar algo mais próximo de um sorriso se comparada à Jack. Assim que ela deu meia volta e fechou a porta atrás de si, o pintor correu para o banheiro, trancando-se por dentro. Inspirou, expirou. Ele perdeu a noção de quantas horas ficou lá; mesmo que pudesse ter passado apenas alguns minutos, pareceu uma eternidade. Talvez Lizzy tivesse pegado no sono, também não ouvia nada vindo de seu quarto pelas finas paredes do edifício. O que era esse desconhecido? O que, por Deus, seria esse querer emergencial que o colocou ali, prestes a fazer exatamente aquilo que há tantos anos evitava? A história de Rose girava pelos seus olhos, por seus pensamentos, tudo ilustrado por aquele colar. Ele sentiu algo de diferente nele, algo místico. Se alguém poderia notar algo que beirasse o sobrenatural em um lugar, esse alguém era ele. Jack, afinal, era um Lake Dawson. O banheiro começou a lhe parecer claustrofóbico o suficiente para um ataque de pânico. Para seguir com o plano insano que lhe apeteceu, ele precisaria se consultar com seu velho HOMEM AO MAR | fanfic
guru. Era estranho lidar com a pressão de resolver tudo o mais rápido possível ao lado de considerar as possíveis consequências de seus atos dali em diante. Jack poderia perder todos que amava só por uma loucura repentina que mal entendia ou sabia explicar. Ele sentiu um puxão no estômago só de pensar nisso e ficou parado por mais um tempo impossível de calcular no toalete. Talvez esse fosse mais um truque cruel do destino, pensou. Perdurar segundos, minutos, horas, tão somente a fim de prolongar o sofrimento alheio o quanto quisesse. Jack concluiu, baseado em experiências anteriores, que era bem a cara do destino fazer isso. Quando se viu preparado, tocou no interruptor e a luz se apagou. O toalete de ladrilhos azul-bebê vertera-se em breu, a reles iluminação abrindo caminho com dificuldade pelas frestas ao redor da porta. Jack se posicionou atrás dela, fechou os olhos, pôs as mãos em punho ao lado do corpo e mentalizou a data para onde – melhor, quando – queria ir. As sensações inquietantes aumentaram, mas ele se controlou até cessarem. Para um viajante do tempo, Jack Dawson sempre soube lidar com suas emoções, ao menos até agora. 16 de agosto de 2052 Chippewa Falls, Wisconsin / EUA – Vô. Tim Lake não havia mudado muito nos últimos dois anos, mas vê-lo depois de quase seis meses longe pela faculdade mergulhou o jovem em uma nostalgia profunda. Lá estava o avô de Jack, sentado ao sopé da janela acolchoada aproveitando a luz do dia para ler Moby Dick. Os óculos só não caíam do rosto pela cordinha bege que fazia um colar em sua nuca, bem abaixo dos ralos cabelos brancos, outrora tão vermelhos quanto as bochechas de Jack naquele momento. Ele olhou para o neto com as duas safiras que trazia nos olhos, fechando o livro. – Já voltou? Jack sentou na sua frente, o cheiro da chuva da noite anterior escapando pelas dobradiças da janela para dentro da sala de estar da casa dos avós. Aquela foi mesmo uma época chuvosa. Ele levantou uma sobrancelha e Tim abriu a boca em surpresa. – Oh, você voltou. E não do mercado com sua avó. – Não, eu... Daqui a dois anos. Eu vim de lá. O homem bufou e colocou a brochura de lado, soltando os óculos para se pendurarem no pescoço enrugado. HOMEM AO MAR | fanfic
– Você tem alguma dúvida, não tem? – sugeriu Tim. Jack nunca foi a fundo em todo o aspecto das viagens do tempo em sua vida, limitando-se a saber o básico. Era um gene passado de geração em geração? Correto. O dom era herdado apenas pelos homens da família? Correto. Seu pai era um deles? Errado. Sua mãe, Posy, havia lhe passado a genética. Filha de Tim, ela morreu de câncer antes de Jack se formar no ensino médio. Eles podiam ser mestres do tempo, mas analfabetos em mudar algo tão biologicamente entranhado. O pintor decidiu, desde então, que se viajar no tempo não podia salvar a vida da mulher de sua vida, não era algo a ser usado. Só isso poderia fazê-lo viajar novamente. O dia do funeral foi a última vez em que Jack voltou ao passado. – Tenho. Eu preciso viajar... Pra longe. O idoso cerrou os olhos, em dúvida. – Quão longe? – a voz grave ficava ainda mais embargada no tempo úmido. Jack refletiu mais uma vez antes de falar e todas as sensações estranhas voltaram. Ele engoliu em seco. - 1912. Seu avô se tornou avesso à fotografias e sua perda de valor com o passar dos anos, mas o neto ficou tentado em clicar sua expressão quando ouviu a data. – Jack, is-isso é loucura – ele ergueu as mãos, enfatizando e até se enrolando com as palavras. – Você conhece as regras, só podemos ir para onde estivemos! Isso pode ameaçar toda a estrutura do tempo, até te machucar... Olha, ontem vi um documentário sobre a Arábia Saudita e, só porque vi o lugar, não quer dizer que eu possa tentar ir para lá na hora da gravação. Eu não estava lá. Você não conseguiria. – Eu preciso. Tem uma garota que se suicidou... Sei o que vai dizer, “pessoas se suicidam todos os dias”, mas ela... Ela é diferente. – Você nem a conhece, Jack. Desculpe, mas isso é uma idiotice. E suponhamos que desse certo, como ia ter certeza que não estaria alterando tudo que conhecemos? Isso era verdade, mas Jack sabia que deveria ter uma alternativa. Rose precisava ser salva, independente do quão recente isso martelasse em sua cabeça. Ele sabia que não estava sendo razoável, contudo, quanto mais se desviava do que viera fazer ali, mais as inquietações aumentavam, como se o destino quisesse que fosse em frente com aquilo. – Não foi o senhor quem me disse que uma pedra pisada de um jeito errado no passado pode causar o apocalipse do futuro? – contra-argumentou o pintor com uma das frases de efeito do avô de toda vez que falam sobre as viagens.
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– Está comparando uma pedra à vida de uma pessoa? Jack, são forças muito ligadas. Tempo, destino... Morte. Podemos brincar com uma e outra, mas todas ao mesmo tempo? É loucura, tão louco que você sabe e ainda insiste. Droga, ele estava certo. Mas por que a vida de alguém era menos importante que uma incerteza? As perguntas começavam a embaralhar na mente de Jack, quanto mais o avô recusava sua meta. – Tem um colar. Tim enrijeceu a postura. – E? – Não é um colar comum, sabe? Tem algo nele... Algo que eu acho que pode me deixar, bem, brincar com as três ao mesmo tempo. O homem riu, emendou uma tosse que Jack julgou ser da idade e apertou a junta no alto do nariz entre o indicador e o polegar. – Você é doido. – Disse o viajante do tempo. Ambos gargalharam, um pouco pela preocupação, um pouco pelo ridículo. Jack se levantou de súbito, esfregando as palmas na calça. Tim reparou no ato e abandonou a poltrona, também se pondo de pé. – Eu preciso ir. – Suas mãos estão suando. Jack se alarmou instantaneamente, pensando se estaria suando frio e havia contraído uma gripe, quem sabe impedindo seus planos. – Isso é mal? – É estar apaixonado. – Tim pensou alto enquanto procurava os óculos, sem perceber ao certo o que havia dito. – O quê? – o jovem se alarmou tanto com a questão do suor que não chegou a ouvir a insinuação do avô. – Nada demais. Você vai tentar de qualquer jeito, não vai? O neto segurou o riso dessa vez e se jogou em um abraço no avô. No fim das contas, era uma decisão só dele, tal qual as responsabilidades por ela. – Te amo, vô. – Jack declarou, a cabeça no ombro de Tim reparando nos fiapos da camisa verde de gola que ele adorava e se recusava a aposentar. – Também te amo. – ele segurava a parte de trás da cabeça do neto durante o abraço, como quem zela pela moleira de um recém-nascido. – E se o mundo acabar por sua causa, vou culpar sua avó por ter te passado a teimosia e o gosto pelas más escolhas amorosas. HOMEM AO MAR | fanfic
CAPÍTULO 3: ÂNCORA 14 de abril de 2054 Southampton, Hampshire / Reino Unido Jack sempre imaginou a estrutura do tempo na forma de uma esfera armilar; um globo recheado infinitamente de circunferências girando em incontáveis direções, formando caminhos e conexões a perder de vista. Entretanto, a base original de metal ainda era contida por simples parafusos que, caso se perdessem, colocariam abaixo todo o sistema. Naquele momento, correndo na chuva cinzenta com seus pensamentos, ele se imaginava engatilhando a desparafusadeira elétrica do avô. Assim como seu sentimento sobre Rose e o colar, um táxi virou a esquina atrás dele de supetão. As folhas do Parque Palmerston se agitaram no asfalto encharcado quando o automóvel aplainou por cima delas. A porta traseira se abriu para Jack, que entrou no carro e retirou uma luva, encostando a palma no leitor de digitais nas costas do banco do carona. – Qual é o seu destino? – interrogou-lhe a voz serena do sistema de comando de voz. Rose. – Museu SeaCity. Rápido. A faxineira quase lhe arremessou a vassoura quando empurrou as portas do salão que antevia o lugar onde mantinham o colar. Sem visitantes, o museu estava prestes a fechar, o silêncio quebrado apenas pelo tilintar das louças sendo lavadas ao longe na cafeteria. Ele não se importou com as câmeras, tampouco se a mulher chamasse alguém; sua mente precisava estar com a energia da joia como nunca precisou de nada antes na vida. Sem perder muito tempo olhando em volta, o viajante seguiu o caminho do tour que fizera pela manhã, chegando exatamente lá. A safira parecia piscar para ele com seu brilho, ofuscando todas as outras riquezas históricas do ambiente soturno. Se aproximando, tocou na redoma que a protegia, refletindo em como seria apertá-la dentro de sua mão e sentir Rose mais perto do que nunca. – Por que isso está acontecendo comigo? – questionou Jack em um suspiro para si mesmo, ao que ajoelhava em frente ao objeto. Era loucura. Seu lado sensato da mente estava certo. Seu avô estava certo. Lizzy, caso soubesse de toda situação, diria o mesmo. Viagens no tempo já eram ultrajes suficientes à ordem natural das coisas, como ele podia sequer cogitar a tentativa de quebrar um de seus mandamentos mais estoicos? O pintor debruçou a testa no vidro que o separava do colar e fechou os olhos com força. HOMEM AO MAR | fanfic
Jack. Uma voz. Uma voz calma chamava seu nome, baixa como o zumbir de um inseto que atravessa uma orelha. Jack abriu os olhos, o queixo despencando ao entender que o som viera do colar. Jack... Rose. Aquela era voz de Rose. Ele abriu um sorriso automático, desacreditando no que acontecia e quase dando um abraço no pedestal sob a redoma. Mas a fala lhe soou triste, incompleta. Ela tentava lhe dizer alguma coisa. Não cabe a você me salvar, Jack. Não. Não. O que ela quis dizer? O que isso significaria? Jack temia estar perdendo a sanidade; a raiva lhe subia pela resposta de Rose. Ela não sabia como a história terminava, ele sim. O Titanic chegava a Nova Iorque e ela não estaria lá para desembarcar. Era verdade, não cabia a Jack salvá-la do mundo, dos perigos, tampouco do mar. Ele necessitava salvá-la de si mesma. Girando o corpo no que soava em sua cabeça em câmera lenta, Jack tencionou as forças no braço direito e desferiu um soco na redoma, partindo sua estrutura. A dor das fagulhas que penetraram em sua pele sumia com o susto que levou ao ouvir uma sirene. O alarme. Quem sabe Lizzy leria a manchete do jornal local no dia seguinte que seu melhor amigo roubou a joia mais valiosa do museu? Talvez alguém na redação ficasse agradecido por darlhes uma notícia grande em uma cidade vagarosa tal qual Southampton. Essa certeza Jack não poderia ter, mas sabia que, sem sombra de dúvidas, não estaria lá para ver. Segurando o Coração do Oceano com ambas as mãos, o viajante retesou os cotovelos ao corpo, fechou os olhos e anulou mentalmente o grito do alarme. Inspirou, expirou. Aos poucos, Jack sentia o corpo mais leve, porém o ar mais pesado, lento ao seu redor. Era o momento de traçar sua rota. Quando mentalizou Rose em 1912, não havia rosto, corpo, formas, somente uma voz que balançava em ondas. A falta de referências logo surtia efeito, conforme o pintor voltava a experimentar a gravidade usual. Mais forte, Jack, anda. Ele se incentivava, colocando-se de volta no ponto inicial de viagem. Rose. 1912. Colar. Rose. 1912. Colar. A repetição só causava uma dor de cabeça maior, intensificada pelo tempo que passava mais devagar à sua volta. Encostou o colar mais ao peito, em dado momento deixando de saber se as batidas de seu coração vinham de lá ou da joia em si. De alguma forma, ela emanava a sensação do desejo que ele viajasse tanto quanto o próprio Jack. Rose. 1912. Colar. Os batimentos cardíacos aumentavam vigorosamente e ele se questionou, entre uma tentativa e outra, se era assim que uma pessoa enfartando se sentia. HOMEM AO MAR | fanfic
Rose. 1912. Colar. Jack percebeu o quanto forçava seu dom quando começou a perder a sensibilidade das mãos, o momento atual se chocando com a data passada. As duas épocas o recusavam, em meio a uma batalha da realidade de seu próprio corpo. Rose. 1912. Colar. Ele quase abriu os olhos para confirmar se nenhuma multidão cavava suas pernas com garfos ao passo que a dor se tornava insuportavelmente lacerante. Ele não podia movê-las, mas sentia cada parte delas sendo dilacerada. O tempo da esfera armilar engalfinhava duas de suas circunferências que não o queriam sob sua responsabilidade. Uma sensação molhada deslizou de seu nariz e caiu no lábio superior, boca adentro. Sangue. Rose. 1912. Colar. A dor de cabeça evoluiu para um latejar praticamente contínuo, testando sua concentração e a sensibilidade para não desmaiar. Jack se entendeu prestes a implorar para que aquilo funcionasse ou o matasse de uma vez, o sofrimento convocando lágrimas tímidas no canto de seus olhos. Apertava a joia com tamanha força e intensidade que os gumes da safira retalhavam suas mãos de leve. Rose. 1912. Colar. Não, ele não desistiria. Jack martelava em sua mente a decisão que se formou no instante em que conheceu a história do colar, cuja jovem dona se jogou no frio Atlântico para uma morte solitária. Rose. 1912. Colar. O viajante ancorava-se no mantra, já se sentindo mais morto do que vivo, mais certo do que em dúvida de que conseguiria salvar Rose. Talvez seu entusiasmo inerente fosse amor, ele se questionou. Mas como poderia amá-la conhecendo tão pouco? O medo ainda era maior que tudo; de falhar, de aceitar o que sentia, de deixar de lado a ciência do quão descabido e apressado tudo aquilo soava. Jack tentou voltar a se concentrar contando as batidas atropeladas de seu peito. Rose. 1912. Colar. O amor inexplicável faz o coração bater mais depressa. As mãos voltavam ao seu controle, enquanto o peso da gravidade no recinto pesava mais que um transatlântico, bem mais do que precisou ao viajar para encontrar o avô dois anos atrás. Mas pesava. Estava dando certo. Sabe-se lá por qual motivo, Jack conscientizava-se não só de estar quebrando a regra do impossível, contudo também de se transportar para décadas, séculos atrás, o corpo sendo abraçado finalmente por uma das realidades. Jack. Ele escutou a voz uma última vez antes de perder os sentidos. Na sua mente ou não, Rose deixava de chamá-lo para, então, dar lhe as boas-vindas. O choro de dor passou a correr livremente por sua face quando percebeu que não havia mais a batida entre seu peito e o Coração do Oceano. Havia duas.
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